Aplicação de dolo eventual nos crimes de homicídio no trânsito
O tema brevemente comentado é gerador de polêmica e celeuma na
sociedade brasileira.
Os crimes de trânsito têm tratamento legal previsto pelo Código de
Trânsito Brasileiro, qual seja a Lei 9503/97, recentemente alterada pela Lei 12.760/12,
esta última conhecida popularmente como “Lei Seca”.
Verifica-se que, em razão da periodicidade com que ocorrem acidentes no
trânsito, causados muitas vezes em razão de embriaguez ou direção perigosa, houve
uma preocupação do legislador em dar mais rigor às regras regentes do trânsito.
Foi neste intuito, que a lei 12.760/12, dentre outras alterações, modificou o
artigo 306:
“Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade
psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de
outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e
suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a
habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 1º As condutas previstas no caput serão constatadas por:
I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por
litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool
por litro de ar alveolar; ou
II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran,
alteração da capacidade psicomotora.”
Para caracterizar a embriaguez, antes da mudança na lei, era necessária
apenas constatação da concentração alcóolica além do limite tolerado, de 6
decigramas de álcool por litro de sangue, lembrando que o condutor não era e não é
ainda obrigado a produzir a prova da alcoolemia.
Após a alteração acima transcrita, tem-se que para caracterizar a
embriaguez, deve ser constatada alteração psicomotora em razão do uso do álcool ou
substância análoga, o que por consequência lógica, faz necessário, que além da prova
de alcoolemia, faça-se prova de que aquela substância provocou alteração psíquica
significativa no condutor do veículo que o incapacitou de dirigir sem causar risco a si
mesmo ou à outrem.
A partir de interpretação do artigo 306, não é razoável que o Estado, sem
indícios e provas materiais suficientes, puna o indivíduo que conduz veículo, que se
prontifica ao teste de alcoolemia, unicamente em razão do resultado do exame. Da
mesma forma, não é correta a imputação criminal do condutor que, se recusando ao
exame do bafômetro, é avaliado pelo agente de fiscalização como embriagado por
apresentar “olhos rubosos” ou “hálito etílico”.
Ora, se o próprio legislador exige a comprovação da alteração psicomotora
para caracterização do crime de perigo, não pode esta ser constatada só pela
concentração alcoólica verificada no teste, nem só pelos sinais que o agente
fiscalizador entende como sinais de embriaguez, mas sim por um conjunto de
circunstâncias que demonstre a efetiva alteração da capacidade do agente.
Pois bem, ultrapassada a análise crítica do novo artigo 306, dá-se início ao
tema proposto, diretamente ligado à questão da embriaguez, como será visto a seguir.
Os crimes de homicídio no trânsito tem tipo previsto pelo CTB em seu
artigo 302:
“Art.302- Praticar homicídio culposo na direção de veículo
automotor:
Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou
proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir
veículo automotor.
Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de
veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade,
se o agente:
I - não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de
Habilitação;
II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;
III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem
risco pessoal, à vítima do acidente;
IV - no exercício de sua profissão ou atividade, estiver
conduzindo veículo de transporte de passageiros.”
Em prima análise temos em estudo um crime material (exige o resultado
morte) de modalidade culposa, ou seja, não há intenção do agente ou consciência de
que tal resultado poderia ocorrer. A conduta culposa prevista pelo tipo é originada de
uma situação de negligência, imprudência ou imperícia na direção do veículo.
O crime de homicídio culposo no trânsito não possui agravante para
casos de embriaguez, desde a revogação do inciso V do artigo 302, pela Lei
11.705/08.
Desta forma, aos casos de homicídio no trânsito, só seria possível a
punição agravada com a cumulação dos artigos 302 (homicídio culposo) e 306
(embriaguez) do CTB.
No entanto, tal não é razoável, uma vez que, em concurso, o crime do
art. 302, que é de dano, absorve totalmente a conduta do artigo 306, de perigo,
impedindo assim a cumulação dos dois.
Assim, em casos de morte no trânsito, causadas supostamente por
embriaguez do condutor, tem sido recorrente a aplicação do dolo eventual, para
incriminar na forma dolosa o agente causador da morte e aumentar sua punição.
Sabe-se que o dolo é a intenção consciente de praticar certo crime.
Para que uma conduta seja dolosa, basta que se verifique a vontade e a consciência
(previsão de resultado) do agente.
Já o dolo eventual, trata de uma aceitação do possível resultado de uma
conduta. O agente prevê o dano (resultado), sabe que este é provável e o aceita, mas
não há intenção (vontade) direta de alcançar tal resultado.
De acordo com a teoria que vem sendo aplicada, o condutor de veículo
que ingere a bebida alcoólica ou outra substância que altera sua capacidade
psicomotora, ou que dirige em alta velocidade, apesar de não ter a vontade de
cometer homicídio, sabe que poderia causá-lo e assume todos os riscos
conscientemente.
Desta maneira, aplicado o dolo eventual, o crime deixa de ser tratado
pelo CTB, que não admite crimes dolosos, e passa a ser imputado ao agente o
homicídio doloso, do artigo 121 do CP, cumulado com o artigo 18, I, ou, a lesão
corporal seguida de morte, prevista pelo artigo 129, § 3º, do mesmo diploma.
Vejam que a mudança é extrema, visto que se responde pelo crime do
Código de Trânsito, o agente sofreria a detenção máxima de 4 (quatro) anos. No
entanto, ao responder pelo homicídio doloso na modalidade eventual, o condutor
poderá ser julgado pelo Tribunal do Júri, e ser penalizado com reclusão de até 20
(vinte) anos. Ao mesmo passo, se responder pela lesão corporal seguida de morte,
será punido com reclusão de até 12 (doze) anos.
Em verdade, há na aplicação do dolo eventual aos homicídios no
trânsito, grande perigo de injustiça.
Primeiro, porque o crime de trânsito deve ser tratado pela legislação
especial e não pelo Código Penal. Segundo, porque quando se fala em dolo eventual
e se afirma que o agente que ingeriu álcool ou substância análoga, ou o que dirige em
alta velocidade, assumiu o risco de matar alguém, mister atentar para o fato de que
também está colocando em risco a própria vida, e se há tal consciência e aceitação
expressa como explica a teoria que vem sendo aplicada, e conforme ratificado por
alguns Tribunais, há neste caso uma tentativa clara de suicídio, pois o mesmo
acidente capaz de causar a morte de alguém, poderá causar a morte do próprio
condutor.
Em terceiro lugar, e não menos importante, deve-se destacar que
quando não há prova suficiente para auferir que a embriaguez foi preordenada
(intencional e para dar coragem ao agente) e alterou efetivamente a capacidade
psicomotora do condutor, a ponto de ser o “pivô” da fatalidade, não pode ser utilizada
tal justificativa para remeter o dolo eventual à conduta.
Merece ainda destaque, que a aplicação do dolo eventual vem sendo
confundida com a chamada culpa consciente.
Age em culpa consciente, o agente que, prevendo o resultado danoso,
tem convicção de que não o provocará. Nessa modalidade, pontua Assis Toledo1, o
agente não quer o resultado nem assume deliberadamente o risco de produzi-lo. A
1
Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos de Direito Penal, p. 302.
despeito de sabê-lo possível, acredita piamente que pode evitá-lo, o que só não
consegue por erro de cálculo ou por erro na execução.
Conforme as exposições acima, os casos de embriaguez e direção em
alta velocidade tratam de situações de culpa consciente, e não de dolo eventual, pois
como citado, não é crível que um indivíduo tenha a consciência e aquiescência de
causar sua própria morte em um acidente de trânsito.
Este é o entendimento de Guilherme de Souza Nucci2 quanto a
diferença de culpa consciente e dolo eventual:
“Diferença entre a culpa consciente e dolo eventual: trata-se de
distinção teoricamente plausível, embora, na prática, seja muito
complexa e difícil. Em ambas as situações o agente tem a
previsão do resultado que sua conduta pode causar, embora
na culpa consciente não o admita como possível e, no dolo
eventual admita a possibilidade de se concretizar, sendo-lhe
indiferente.”
Compreensível, de tal modo, que o agente tenha noção de que aquela
conduta pode gerar o resultado, mas de forma alguma o deseja ou crê e aceita que
ocorrerá.
Neste sentido, em decisão do Habeas Corpus 107801 SP, o STF
reconheceu a ocorrência de culpa consciente e decidiu por desclassificar o homicídio
qualificado como doloso, para homicídio culposo na direção de veículo.
Colaciona a ementa da acertada decisão:
“Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI.
PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE
DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO
CULPOSO
NA DIREÇÃO
DE VEÍCULO
AUTOMOTOR.
EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA.
AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO.
REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE
2
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 4 ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2003. p. 146
COM
REVOLVIMENTO
DO
CONJUNTO
FÁTICO-
PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA. 1. A classificação do
delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e
influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o
procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due
process of law, é reformável pela via do habeas corpus. 2. O
homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor
(art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída
ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção
ante a embriaguez alcoólica eventual. 3. A embriaguez
alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é
apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se
embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzilo. 4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas
razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não
restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas
alcoólicas no afã de produzir o resultado morte. 5. A doutrina
clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que “ O
anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava
resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º
estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de
efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a
responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se
a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do
crime, o agente é punível a título de dolo; § 2º. Se, embora não
preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente
previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer
crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é
punível o fato” . (Guilherme Souza Nucci, Código Penal
Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: RT, 2005, p.
243) 6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias
inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto
fático-probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz
Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de
6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira Alves, DJ de
17/8/1990. 7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em
exame, porquanto não se revela lex mitior, mas, ao revés,
previu causa de aumento de pena para o crime sub judice e em
tese praticado, configurado como homicídio culposo na direção
de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB). 8. Concessão
da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente
para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art.
302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à
Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP.”
(STF - HC: 107801 SP , Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data
de
Julgamento:
06/09/2011,
Primeira
Turma,
Data
de
Publicação: DJe-196 DIVULG 11-10-2011 PUBLIC 13-10-2011)
Ainda, quanto à desclassificação do homicídio doloso, válido citar a
seguinte ementa do TJPR:
“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO SIMPLES.
DELITO COMETIDO NA CONDUÇÃO DE MOTOCICLETA.
PRONUNCIA. ART. 121, CP E ART. 306 E 309, CTB. DOLO
EVENTUAL.
RECURSO
DESCLASSIFICAÇÃO.
DA
DEFESA.
DISTINÇÃO
PEDIDO
INTRINCADA
DE
ENTRE
DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE QUE EXIGE
CONTROLE
MAIS
ACURADO
NO
JUÍZO
DE
ADMISSIBILIDADE DA PRONÚNCIA NOS CRIMES CONTRA
A VIDA EM QUE ENVOLVAM ACIDENTE DE TRÂNSITO.
INEXISTÊNCIA DE ELEMENTO CONCRETO, DIVERSO DA
EMBRIAGUEZ, QUE DEMONSTRE TER O RÉU ANUIDO, AO
DIRIGIR EMBRIAGADO, COM O RESULTADO MORTE.
DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME DE HOMICÍDIO DOLOSO
(ART. 121, CAPUT, DO CP) PARA O CRIME DE HOMICÍDIO
CULPOSO
COMETIDO
NA
DIREÇÃO
DE
VEÍCULO
AUTOMOTOR (ART. 302, DO CTN). RECURSO PROVIDO. Não havendo, na espécie, outro fator que aliado à embriaguez,
a qual, por si só, configura quebra do dever de cuidado (art.
165, do CTB), que permitisse aferir que o réu agiu por motivo
egoístico, que possibilitasse amparar um juízo de fundada
suspeita de que o réu anuiu com o resultado, ou seja, de que o
réu agiu com Recurso em Sentido Estrito nº 838790-6. dolo
eventual, é de rigor que se desclassifique o crime de homicídio
doloso (art. 121, caput, do CP) para o crime de homicídio
culposo cometido na direção de veículo automotor (art. 302, do
CTN). - É de se frisar que aqui não se está a afastar a
competência, constitucionalmente assegurada, do Tribunal do
Júri para julgar os crimes dolosos contra a vida, o que se faz é,
através da distinção do dolo eventual e da culpa consciente,
com amparo em balizas mais concretas, consistente na
necessidade de ficar evidenciado um "plus" que demonstre o
agir egoístico, torpe, do motorista embriagado que possa
evidenciar que o mesmo anuiu com o resultado morte, afastar a
configuração do dolo eventual.”
(TJ-PR 8387906 PR 838790-6 (Acórdão), Relator: Naor R. de
Macedo Neto, Data de Julgamento: 09/02/2012, 1ª Câmara
Criminal)
O Estado, que na seara jurídica atua através dos legisladores e
aplicadores do Direito, vê-se muitas vezes movido pelo clamor social diante das
inúmeras mortes no trânsito, e é natural que em consequência disso, tome medidas
mais severas para diminuir os riscos à segurança pública no trânsito. Porém, não é
justo ou razoável promover a punição exacerbada do indivíduo como forma de acalmar
os ânimos da sociedade.
A punição ao condutor que causa acidente com vítima, deve sim ser
aplicada, mas para tanto, a legislação de trânsito deve ser alterada, para tratar de
agravantes nas situações específicas como embriaguez, direção perigosa e outros
casos. O que não é aceitável, e causa enorme insegurança jurídica, é o
desvirtuamento do dolo eventual para classificação do crime de trânsito como doloso,
imputando prática do artigo 121 (homicídio simples) ou do artigo 129, § 3º (lesão
corporal seguida de morte) do CP, sob a frágil afirmação de que há a consciência e
aceitação do resultado pelo agente.
Para que se alcance a verdadeira Justiça, devem ser analisadas todas
as circunstâncias do crime, bem como deve ser respeitada a legislação aplicável, até
superveniência de novas alterações.
Samantha Braga Pereira. Advogada. Pós-graduada em Direito de Empresa pelo CAD,
da Universidade gama Filho.
10/02/2014
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