0 UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA MESTRADO EM PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE Eliana Julia de Barros Garritano O adolescente e a cultura do corpo Rio de Janeiro 2008 1 Eliana Julia de Barros Garritano O adolescente e a cultura do corpo Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida por ELIANA JULIA DE BARROS GARRITANO, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Orientadora: Profª.drª. Maria da Glória Sadala Rio de Janeiro 2008 2 Eliana Julia de Barros Garritano O adolescente e a cultura do corpo Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida por ELIANA JULIA DE BARROS GARRITANO, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração: Psicanálise e Saúde Linha de pesquisa: prática psicanalítica Data de Aprovação: 26 de setembro de 2008 Orientadora: Profª. Maria da Glória Sadala – Doutora Universidade Veiga de Almeida – UVA BANCA EXAMINADORA Profº. Marco Antonio Coutinho Jorge – Doutor Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ Profº. Luis Bittencourt – Doutor Universidade Veiga de Almeida – UVA 3 FICHA CATALOGRÁFICA G242a Garritano, Eliana Julia de Barros O adolescente e a cultura do corpo / Eliana Julia de Barros Garritano, 2008. 165p. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Prática Psicanalítica, Rio de Janeiro, 2008. Orientação: Maria da Glória Sadala 1. Psicanálise do adolescente. 2. Corpo. I. Sadala, Maria da Glória (orientador). II. Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, III. Título. CDD – 155.5 Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Setorial Tijucal/UVA 4 DEDICATÓRIA À Marina e Isabella, presentes da vida, que me permitem, a cada dia, viver a magia de ser avó. 5 AGRADECIMENTOS A Chiquinho, meu pai, com ele aprendi sobre o amor e a dignidade de viver. A Ismael, marido amado e companheiro de todas as horas, pelo compartilhar de nossas vidas, pelo apoio nesta jornada e pela compreensão de minhas ausências. À Adriana, filha querida, que muito me fez pensar nos encontros e desencontros da adolescência. À minha estimada irmã Lena, pelo afeto e incentivo, nas horas que o cansaço chegava. À Glória Sadala, orientadora deste trabalho, que com seu jeito especial e carinhoso, sempre soube acolher, criticar, incentivar e transmitir, sem perder a objetividade e a excelência na qualidade de seu ensino. Obrigado por sua presença neste caminho. Aos professores Marco Antonio Coutinho Jorge e Luis Bittencourt pelas valiosas contribuições por ocasião de meu exame de qualificação. Às colegas Bela, Marisa, Gabriela Barbosa e Gabriela Abreu que estiveram ao meu lado neste percurso, por tudo que trocamos. Aos professores do mestrado por seus ensinamentos. À Ana Gil por sua total disponibilidade na digitação e nos momentos das “dúvidas virtuais”. A todos os adolescentes, com os quais compartilho em minha clínica, por tudo que me ensinam. 6 EPÍGRAFE Ignoras que o começo de toda coisa é o que importa mais, sobretudo quando se trata de algo novo e tenro? É, com efeito, principalmente então, quando a coisa é maleável e adota a forma que desejamos imprimir-lhe. (Platão) 7 RESUMO GARRITANO, Eliana Julia de Barros. O adolescente e a Cultura do Corpo. Orientadora: Maria da Glória Schwab Sadala. Rio de Janeiro: UVA, 2008. Tese (Mestrado) – Programa de Pós Graduação – Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Universidade Veiga de Almeida, UVA, Rio de Janeiro. Esta pesquisa tem como objetivo apresentar uma análise do sujeito adolescente e o culto promovido ao corpo na contemporaneidade. A partir da relevância que o corpo do jovem assume como ideal na cultura contemporânea buscamos correlacionar, à luz da psicanálise, as interferências do consumo excessivo e da saturação do mundo de imagens direcionados ao corpo como geradoras de uma possível inflação narcísica do sujeito adolescente. A adolescência é um trabalho psíquico e podemos considerá-la como um tempo lógico, onde são consolidados valores éticos e aspirações tanto pessoais como sociais no seio da cultura. O impacto de novas tecnologias de visualização sobre o corpo, articulado à moral do espetáculo, podem ser compreendidos em um contexto especular, onde o adolescente e seu corpo são tomados como paradigma e transformados em objetos geradores de lucro e poder econômico. Na atualidade, constatamos uma dificuldade considerável de encontrar um suporte simbólico estável, lugar imprescindível à constituição do sujeito. O apelo fortemente idealizado à imagem do corpo, parece estar regulando as relações entre os jovens, de forma a qualificar, ordenar e excluir aqueles que não seguem o padrão vigente de perfeição e beleza. Desta maneira a prevalência da imagem tende a excluir a singularidade do sujeito, determinando relações totalizantes o que aponta para um caminho oposto a qualquer renúncia ao gozo pleno. Assim, acreditamos que o adolescente aprisionado à teia narcísica gerada 8 pela cultura do corpo, tem sua construção de ideais sublimados severamente prejudicada. Este trabalho está fundamentado no corpo teórico da psicanálise, priorizando os conceitos de pulsão e narcisismo, Ideal do eu e sublimação. Também lançamos mão de autores que analisam, criticamente, a cultura contemporânea como Lasch, Debord e Freire, dentre outros. Palavras-chave: adolescente; corpo; psicanálise; contemporaneidade. 9 ABSTRACT GARRITANO, Eliana Julia de Barros. The teenager and the Body Culture. Supervisor: Maria da Glória Schwab Sadala. Rio de Janeiro: UVA, 2008. Dissertation (Master) – Post Graduation Program – Master in Psychoanalysis, Health and Society. Universidade Veiga de Almeida, UVA, Rio de Janeiro. This research has the purpose of presenting an analysis of the individual adolescent and the cult promoted in modern times. From the importance that the body of youngsters takes as an ideal in contemporary culture, we aim at correlating, in view of the psychoanalysis, the interferences of the excessive consumption and the impregnation in the world of images directed at the body as a source of a possible narcissistic inflation of the individual adolescent. Adolescence is a psychic work and we may consider it as a logical time, where ethical values and personal and social aspirations are consolidated in the core of the culture. The impact of new technologies for visualization of the body, together with the morale of the show, can be understood in a speculation context, where the teenager and the body are taken as a paradigm and turned into objects to bring profit and economic power. Nowadays, we verify a significant difficulty in finding a stable symbolic support, an essential place to the formation of the individual. The appeal strongly idealized to the image of the body seems to be controlling the relationships among youngsters, by qualifying, commanding and excluding those who do no follow the current standard of perfection and beauty. Therefore, the prevalence of the image tends to set aside the uniqueness of the individual, establishing totalizing relationships which points to the opposite path to any waiver to full enjoyment. Therefore, we believe the adolescent, imprisoned to the narcissistic net created by the body culture, has the construction of sublimed ideals seriously damaged. 10 This research is grounded in the psychoanalysis theoretical corpus, having as a priority the concepts of drive and narcissism, Ideal self and sublimation. We have also made use of authors who critically analyze the contemporary culture, such as Lasch, Debord and Freire, among others. Key - words: adolescent; body; psychoanalysis; modernity. 11 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1. Esquema da dialética subjetiva – Esquema L de Lacan ____ 35 Figura 2. A pulsão parcial e seu circuito ________________________ 38 12 SUMÁRIO Introdução ______________________________________________________ 13 Capítulo 1 – Da Medicina à Psicanálise _______________________________ 16 1.1 Um pouco de história _______________________________ 16 1.2 O corpo na psicanálise ______________________________ 21 1.3 A pulsão uma força constante: 25 1.3.1 Desde Freud _________________________________ 25 1.3.2 Com Lacan __________________________________ 33 Capítulo 2 – Psicanálise e adolescência ______________________________ 41 2.1 A descoberta da adolescência ________________________ 41 2.2 Adolescência, um despertar _________________________ 43 2.3 Édipo e adolescência _______________________________ 49 2.4 Na travessia da imagem, a busca de novos objetos _______ 53 2.5 Adolescência: o refluir pulsional _______________________ 60 Capítulo 3 – O Espelho que não se quebra ___________________________ 66 3.1 O Estádio do espelho _______________________________ 67 3.2 O conceito de narcisismo ____________________________ 79 3.2.1 O eu ideal e o Ideal do eu ______________________ 91 3.2.2 A sublimação ________________________________ 100 Capítulo 4 – Adolescência e contemporaneidade: O corpo, o consumo e o espetáculo _____________________________________________________ 113 4.1 A cultura do corpo _________________________________ 113 4.2 A sociedade de consumo e do espetáculo ______________ 126 4.3 O adolescente e a cultura do corpo ____________________ 133 Considerações Finais _____________________________________________ 146 Referências bibliográficas _________________________________________ 149 Apêndice 1______________________________________________________ 159 13 INTRODUÇÃO A origem desta pesquisa partiu do convívio diário com adolescentes através do Magistério. Para além das consideradas dificuldades de comportamento e de aprendizagem, a adolescência falava de um tempo diferenciado com questões específicas. A leitura especializada da época, balizada no saber médico, reportava a questões de desenvolvimento e, portanto, às mudanças orgânicas e hormonais referentes à puberdade. A visão desenvolvimentista desta abordagem não satisfazia. A graduação em Fonoaudiologia também não ofereceu os subsídios teóricos que procurava, embora nela tenha nascido o estudo sobre o corpo e sua relação com o mundo através da fala e da linguagem. Foi na graduação em Psicologia e, mais especificamente, na formação psicanalítica onde foram encontrados os alicerces necessários para o estudo do corpo e suas articulações com a adolescência. Consideramos também fundamental para esta pesquisa, a experiência adquirida na prática clínica e institucional com adolescentes. Finalmente, mas não por último, todo o trajeto na busca de um entendimento do sujeito adolescente advém de minha história pessoal e, fundamentalmente de meu desejo que, embora metonímico e não todo se fez presente, sempre, em meu caminho. A presente pesquisa tem como objetivo analisar a cultura do corpo na adolescência, e suas articulações com os fenômenos do mundo contemporâneo. Partimos da hipótese segundo a qual, nossos jovens, pela cultura excessiva do corpo, muitas vezes, transformam seus corpos em um investimento narcísico quase exclusivo. O desenvolvimento do eu, na adolescência, implica em um redirecionamento do narcisismo, onde a realização deste se torna fonte de prazer. Em lugar da busca de ideais e do acesso à vida em coletividade, alguns jovens tendem a se fixar em seus próprios corpos. Na busca da imagem narcísica perdida, identificam-se com imagens produzidas pela indústria do consumo, o que é reforçado na cultura contemporânea. O mundo contemporâneo caracteriza-se pelo discurso da ciência, pela tecnologia e pela inundação virtual. A prevalência da imagem e da identificação exclui a singularidade do sujeito condenando-o ao exílio. 14 Há, assim, um repúdio à falta e ao vazio, articulado à promessa da eterna felicidade e do viver sem dor. O brilho dos objetos de consumo imanta o adolescente transformando seu corpo em objeto ouro, de valor intercambiável no mundo do capital. Na atualidade, são vários os artigos, revistas e programas veiculados pela mídia, referindo-se à exploração do corpo adolescente. Poderíamos supor, então, que o adolescente por sua própria necessidade estrutural de reeditar o narcisismo pode ser cooptado pelo consumo como um bem supremo e salvação econômica? Segundo Sadala: No mundo contemporâneo, o desejo é construído pelas imagens veiculadas através dos meios de comun(ic)ação: jornais, revista, internet. As pessoas são, de um modo geral, definidas apenas superficialmente, pela sua imagem. (SADALA, 2001, p.253). A partir desta citação podemos inferir que abrir um espaço para que o sujeito adolescente possa advir, é favorecer-lhe encontros saudáveis através da palavra e da crítica, pois ser adolescente é reencontrar-se num mundo de novos objetos. A pesquisa em psicanálise sobre adolescência é recente, e somente nas últimas décadas surgiram trabalhos e livros sobre o assunto. Justificamos a escolha deste tema pela necessidade de buscar espaços, onde possam ser aprofundados os estudos sobre a cultura do corpo na adolescência, por considerá-los relevantes para todos os profissionais que direta ou indiretamente pretendem conhecer e estudar o sujeito adolescente. Na qualidade de professora de psicomotricidade percebo a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre o corpo na adolescência, para além de um instrumento da motricidade humana. O estudo da psicomotricidade tem como uma de suas características a transdisciplinaridade uma vez que, seu campo aponta para a interseção de diversos saberes, tanto na saúde como na educação. Consideramos esta pesquisa um vetor que traz a possibilidade de um olhar, olhar que ultrapasse as questões orgânicas do corpo na adolescência. Nesta vertente foi pensado como produto desta pesquisa um curso para psicólogos, fonoaudiólogos, pedagogos, fisioterapeutas, médicos, psicanalistas enfim, profissionais que consideram em sua prática o corpo adolescente, procurando seguir a própria inserção interdisciplinar deste Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Acreditamos que 15 embora nos dias atuais o corpo e a adolescência ocupem um lugar de transdisciplinaridade nos múltiplos campos do saber, a bibliografia em relação a estes temas é recente e escassa. Dentre as diferentes abordagens sobre a adolescência escolhemos a psicanálise como fio condutor, pois foi em seu corpo teórico, onde encontramos subsídios para as articulações propostas por esta pesquisa. No primeiro capítulo abordaremos o corpo e seu significado, da medicina à psicanálise. O segundo capítulo será dedicado ao conceito de adolescência, no campo da psicanálise. Também discutiremos o corpo na adolescência e suas articulações com o conceito de pulsão. O terceiro capítulo pretende privilegiar os estudos referentes aos conceitos de estádio do espelho, narcisismo, eu ideal / Ideal do eu e sublimação, por considerarmos o seu entendimento fundamental para as questões do sujeito adolescente. Consideramos a adolescência um momento de consolidação de sentimentos de respeito, fidelidade e valores éticos. É neste período que se edificam as aspirações pessoais e sociais, através da busca de novos pares e construção de ideais, onde os laços sociais são estabelecidos pelo compartilhar com o grupo social de determinada cultura. O quarto capítulo será dedicado, especificamente, às interferências da sociedade contemporânea na cultura do corpo e suas conseqüências na adolescência. Para tal vimos a necessidade de enfocar a cultura do narcisismo segundo Lasch, a sociedade de consumo e a sociedade do espetáculo segundo Debord, como possíveis propulsoras do culto hedônico do corpo, gerando no adolescente uma inflação narcísica. A metodologia utilizada para o desenvolvimento desta dissertação foi a pesquisa bibliográfica. Cabe ressaltar que a abordagem deste trabalho faz ponderações baseadas no adolescente do mundo ocidental, embora na atualidade seja nítido o caminho que aponta para a globalização. 16 CAPÍTULO 1. DA MEDICINA À PSICANÁLISE 1.1 Um pouco de história E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente. E disse o Senhor Deus: não é bom que o homem esteja só, far-lhe-ei uma adjuntora... . Fez cair um sono pesado sobre Adão e este adormeceu; e tomou uma de suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar; e da costela que tomou do homem, formou a mulher. E Adão disse: esta é agora osso de meus ossos, carne de minha carne... E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher, e não se envergonhavam. (GÊNESIS 2: 7, 18, 22, 25) Das escrituras sagradas ao mundo contemporâneo da tecnociência, o corpo sempre ocupou lugar privilegiado para as mais diversas reflexões. O primeiro livro de Moisés, ao descrever a criação do homem, nos remete a uma impressão de clonagem. Embora um longo tempo tenha se passado, vemos o homem da ciência contemporânea não só chegar à clonagem de animais, mas também mergulhado na tentativa de chegar ao clone humano. Estaria o homem através de seus avanços científicos tentando realizar o grande sonho de detentor da vida e da morte, e para isso acreditando ter poderes divinos? Seria o clone humano o apogeu do cientista, criando um corpo à sua imagem e semelhança? Das telas da ficção aos grandes laboratórios, encontramos as paixões e inquietações em relação ao significado do corpo. O percurso histórico da humanidade desemboca num grande delta civilizatório, marcado por diferentes concepções que o homem constrói acerca de seu corpo. Nesta história, que se confunde com a própria história do homem, o corpo deixa de ser pura estrutura de carne e ossos para transformar-se num corpo falante, falado e desejante. A palavra corpo pode ser encontrada em diferentes raízes. Para o sânscrito é garbhas, que significa embrião; em grego, Karpós, encerra a idéia de envoltura, fruto ou semente. Em sua origem latina, corpos, quer dizer envoltura da alma, tecido membranoso, embrião do espírito. 17 Quando nos referimos ao corpo dizemos que temos um corpo, idéia que carreia a noção de posse e, portanto de aquisição e recebimento. O corpo representa algo que, embora seja nosso, advém do Outro em sua posse simbólica. Por sua complexidade vários foram aqueles que se ocuparam em defini-lo. Poetas, filósofos, cientistas e estudiosos de uma forma geral, se dedicam a desvelar a origem de seus mistérios. É instigante saber que corpos são universais, todos os animais os possuem como uma entidade orgânica que os caracterizam. Porém, a interpretação do que seja um corpo é individual, com respostas localizadas culturalmente, nas diferentes ciências que se ocupam de seu estudo. A medicina se ocupou, inicialmente, do corpo físico como estrutura de cada homem ou animal. Predominantemente anatômica e neurofisiológica, buscava o binômio saúde / doença. Embora a medicina contemporânea esteja muito além da anatomia, ainda se ocupa do corpo orgânico e biológico, seus sistemas e órgãos. O dualismo corpo-alma marca o pensamento filosófico. Entre união e separação, ao longo da filosofia nasceram questionamentos sobre o corpo e sobre a alma. O corpo na religião é o corpo puro, pleno e feliz, que ao subverter a ordem vigente, torna-se pecador por excelência, sendo expulso do paraíso para errância por todo sempre. É o corpo do pecado, queimando vivo na Idade Média. Os poetas declinam sobre as dores, amores, encontros e desencontros, no corpo da paixão. Na atualidade temos o corpo objeto, aprisionado pela mídia, pela moda, pelo capital. Foco de esplendor e deleite o corpo toma a cena como protagonista no palco contemporâneo. Lugar de todas as atenções desde que possa gerar lucro e poder econômico. É o corpo vestido e investido pelo consumo e pelo hedonismo. O corpo na psicanálise é o corpo sujeito, corpo linguagem, pulsional por excelência. Nascido da pena de Freud é o corpo sintoma, imagem e representação. Assim, podemos afirmar que nos dias atuais o corpo ocupa um lugar de destaque e ao mesmo tempo de transdisciplinaridade nos múltiplos campos do saber. A visão prismática do corpo, em cada uma de suas faces, vem subverter os limites até então delineados, transformando a questão corporal num território de relações intercambiáveis. Frente à constatação deste território, quase sem fronteiras, julgamos importante eleger um lugar teórico para falar do corpo na adolescência e este lugar é o da psicanálise. 18 Neste capítulo faremos uma breve abordagem do corpo na medicina para chegarmos ao corpo na psicanálise. Para fundamentar a noção de corpo, em psicanálise, privilegiamos o conceito de pulsão, e nesta abordagem caminharemos de Freud até Lacan. Desde a antiguidade, a fragilidade da vida e a certeza da finitude do corpo marcam o pensamento humano. A curiosidade pelos mistérios que cercam o corpo pode ser evidenciada muito antes do advento da medicina enquanto uma ciência. Achados arqueológicos de trepanações cranianas apontam para uma possível probabilidade de que os predecessores da medicina procuravam encontrar explicações para as doenças do corpo. Os pesquisadores de outrora, representados pelas figuras de faraós, bruxos e xamãs tentavam remover os “maus espíritos”, que eram considerados responsáveis pelo adoecimento corporal. Assim, a figura que ostentasse o poder de salvar a vida ou aliviar a dor estava próxima dos poderes divinos. Os primeiros “médicos” eram, portanto, sacerdotes credenciados pelos deuses que praticavam a arte de curar. A medicina era uma arte divina e o corpo, fonte de possessões. A medicina pré-helênica era impregnada de concepções mágicas e anímicas. Acreditava-se em influências sobrenaturais agindo sobre o corpo e, nos Templos de Esculápio, os doentes mentais eram expulsos a pedradas. É na Grécia antiga que as primeiras práticas médicas surgem. Os gregos já se voltavam para observações e experimentações no corpo. Segundo Mello Filho (1988), Alcemon parece ter sido o primeiro homem a dissecar um cadáver com cunho científico, por supor que o cérebro era o centro da razão e da alma. Os filósofos pré-socráticos também buscavam explicações para a alma e o corpo. Empédocles buscou a importância das emoções definindo o amor e o ódio como fontes da vida. Hipócrates (460-377 a.C.) viveu entre os maiores pensadores do apogeu helênico. Homem de grande cultura e inteligência se voltou para o sofrimento humano, sendo consagrado o pai da medicina. Seu interesse pelo homem iniciou a prática de conversar e escutar seus pacientes sobre queixas, hábitos e condições de vida, preocupando-se com o físico e o mental. Considerava o cérebro o órgão do pensamento e delegava causas físicas às doenças, desmistificando o poder sagrado. Descreveu quadros melancólicos, distúrbios da memória e estados confusionais relacionados com hemorragias agudas. Hipócrates articulou aspectos 19 psíquicos à medicina de sua época. Cícero, após a invasão da Grécia, descreve distúrbios corporais relacionados ao trauma. Areteo foi quem pela primeira vez associou a mania à depressão, admitindo que doenças físicas pudessem ter causas psicológicas e, alterações emocionais poderiam causar transtornos motores como paralisia. O pensamento médico de Hipócrates vai marcar o fim da medicina sacerdotal. A escola de Cós modifica as antigas crenças imprimindo à medicina o espírito précientífico. Próximo às idéias de Platão (427–347 a.C.) dos quatro elementos: a água, o fogo, o ar e a terra, Hipócrates postula a existência de quatro humores fluidos no corpo: a bile amarela, a bile negra, a fleuma e o sangue. O corpo saudável representava o equilíbrio destes elementos. Hipócrates via o homem como uma unidade organizada, e a degradação do corpo era vinculada à desorganização desta unidade. Como última figura médica do período grego, Galeno (201-131) revisou a teoria humoral, ressaltando que a causa da doença era endógena e que alguns hábitos do viver levavam ao desequilíbrio físico do corpo. Assinalava que o alcoolismo, os excessos da juventude e os fracassos poderiam causar doenças mentais. O pensamento de Galeno vai prevalecer durante séculos. Com a devastação dos bárbaros a medicina é ignorada. A Igreja assume o saber supremo sobre o corpo. A arte de curar é dom da oração e do exorcismo. A pesquisa sobre os fenômenos corporais é delegada ao âmbito da demologia. O corpo torna-se lugar dos defeitos e pecados e a alma o lugar dos valores supremos como a espiritualidade. A institucionalização do castigo é editada através do Martelo das Bruxas (Malleus Maleficarum de 1487), livro que a inquisição toma como manual oficial. Na época de sua publicação proliferavam inúmeras pestes e endemias, que dizimaram um terço da população européia. Alguns fenômenos corporais, que muito mais tarde serão designados como histeria, faziam dos corpos “bodes expiatórios” sendo tomados como veículo da peste e queimados na fogueira. É Paracelsus (1493-1541) quem afirma que o corpo adoecia por agentes externos ao organismo. Propôs a cura pelos semelhantes, baseado no princípio de que os processos corporais eram químicos e os remédios para sua cura também deveriam ser. Passa, então, a administrar para o corpo doses de minerais e metais. 20 O pensamento moderno do séc. XVI inaugura com Galileu e Descartes a ciência. O homem, órfão das escrituras sagradas, sai em busca de novas amarrações para explicar sua existência. A ciência moderna se converte em uma pré-condição para o pensar médico e nele uma nova concepção do corpo. O corpo é identificado com a res extensa e o pensamento com a res cogitans. Descartes (1596-1650) libera a pesquisa dos rígidos dogmas teológicos. O pensamento cartesiano, inserido na filosofia mecanicista, faz do relógio uma perfeita metáfora para explicar o corpo separado da mente. O corpo tem vida objetiva e é regido por leis da física, e a alma é o que distingue o homem do animal. Sem dúvida a obra de Descartes tem extrema importância para o desenvolvimento científico e dos saberes em geral. A ciência dá um salto qualitativo sem precedentes. A postura dualista vai influenciar também o pensar do médico. A medicina vai balizar seus saberes no mais rigoroso empirismo. Assim, nasce o corpo anatômico fisiológico, dissecado em diferentes partes. A anatomia e a fisiologia tornam-se alicerces para decifrar o corpo. Surgem a partir do séc. XIX os primeiros instrumentos de visualização: o oftalmoscópio e o laringoscópio e os outros instrumentos que permitiam visualizar as desordens internas, sem recorrer à cirurgia, inaugurando a era das imagens. A medicina do séc. XX testemunhou um corpo através de imagens, com a hegemonia absoluta da dimensão visual. A relação médico-paciente torna-se mediada por aparelhos sofisticados. O corpo, como unidade que se relaciona com o mundo, desaparece na imagem estática do tomógrafo pela cultura da fragmentação contemporânea. A eficácia das sofisticadas tecnologias é importante para o desvendamento e cura de inúmeras doenças. Negar sua importância seria absurdo e anticientífico. Porém, a questão do reducionismo metodológico leva à fragmentação, não reconhecendo a experiência subjetiva do corpo. O crescimento biotecnológico gerou uma rápida expansão do mercado de partes do corpo. O transplante de órgãos, as tecnologias reprodutivas e a manipulação genética transformam o corpo num bem extremamente valioso comercialmente. O retorno de uma postura médica mais integrada dá origem à medicina psicossomática. A expressão psicossomática, cunhada por Heinroth (1908), consolida-se com Alexander (1962) na criação da escola de Chicago (Mello Filho 1992). Esta corrente formula a hipótese segundo a qual haveria uma articulação entre as questões emocionais e a fisiologia. 21 A medicina psicossomática observou uma significativa dificuldade de alguns pacientes ao descrever sentimentos, nomeando este fenômeno como alexitímia. Zimermann (1999) cita que a doença resulta de uma falha na organização do indivíduo por impossibilidade da “leitura” das próprias emoções. É também, da medicina, através das manifestações corporais das histéricas, que Freud vai revolucionar a noção de corpo com o nascimento da psicanálise, conforme veremos a seguir. 1. 2 O corpo na psicanálise Quais seriam, então, os destinos para o corpo com o advento da psicanálise? Sem dúvida os destinos do desejo. Freud forjou novos conceitos para tratar das questões corporais e pensar no estatuto do corpo em psicanálise, fazendo referência ao corpo erógeno, à pulsão e à linguagem. Na trajetória do pensamento freudiano, o corpo, até então biológico, transforma-se em pulsional. O corpo da sexualidade auto-erótico e fragmentado, unificado pelo narcisismo, marcado pelos representantes da pulsão, é o corpo que nasce com as histéricas e se afirma pela pulsão. É Freud quem vai articular o corpo à palavra, sintoma e associação livre unindo a teoria à prática clínica. O saber psicanalítico nascido desta articulação, para além da natureza e do inatismo, vai construir o corpo nato por sua estreita ligação ao inconsciente. Embora Freud, no início de sua obra, nunca tenha negado a questão biológica, não é dela que vai tratar a sua teoria, mas sim do corpo que esvaziado de sua carne torna-se representação quando submetido ao simbólico. Para falarmos do corpo em psicanálise, e mais especificamente de seu nascimento, se faz necessário um breve retorno a Charcot, médico que faz da histeria uma grande questão para as últimas décadas do séc. XIX. Com Charcot a histeria sai de sua sede cerebral e passa a ser não somente a expressão das paixões, mas sua reprodução. O ressurgimento da corrente hipnótica constrói um inventário clínico onde a histeria é vista como uma doença qualquer. É considerada como traumática e, finalmente, separada da epilepsia, da neurastenia, 22 da hipocondria. Charcot, em Salpetrière, dá cunho científico à doença e, embora não buscasse sua etiologia, buscava uma comprovação. Considerava a histeria uma doença por representação. Para Charcot, a histeria traumática implicava em: · Uma doença produzida pela ação de uma idéia ou representação psíquica carregada de afeto. · Quando a representação é intensa e excessiva se transpõe abruptamente para o corpo sob forma de sintoma somático. · Quando pela hipnose uma idéia penetra na mente e assume alto valor afetivo, o corpo executa o conteúdo da idéia. · A histeria pode ser provocada pelo alargamento da consciência sob hipnose. · O sofrimento corporal do histérico é uma encarnação plástica de uma idéia. É a tradução em uma linguagem do corpo de forma a afirmar ou negar os sintomas. · Considerava a representação patogênica como uma conseqüência de um incidente traumático causado por agente externo. Na mesma época de Charcot e junto às controvérsias da época, surge Pierre Janet, filósofo e psicólogo, dando à histeria a primeira abordagem de psicologia científica. Janet busca entender nos fenômenos conversivos e na hipnose leis psicológicas distanciando-se da neurologia, introduzindo em Salpetrière um laboratório de psicologia. A teoria de Janet concebe a histeria como uma divisão de consciência, acompanhada por uma formação de grupos psíquicos separados. Este splitting é articulado a uma fraqueza inata da capacidade de operar sínteses psíquicas, resultando no estreitamento do campo da consciência, evidenciando uma degeneração. Para Janet os fenômenos histéricos são de natureza psíquica e devem ser tratados no âmbito psicológico. Nesta mesma época surge Breuer, estudando a histeria no âmbito da hipnose, da catarse e dos fenômenos conversivos. Breuer era visto por seus contemporâneos como médico de grande cultura, brilhante conhecedor de literatura e filosofia, sendo um profissional conceituado em Viena. Breuer é chamado para tratar de uma jovem histérica (1880–1882), dotada de grande imaginação, inteligência e educada num meio puritano e rigoroso. Esta jovem se tornará a celebre Anna O. e, graças à sua doença, irá fundar um novo lugar da histeria. Bertha 23 Pappenhein (1859–1936) forjará sua memória no nascimento da Psicanálise. Breuer considera como base da histeria a ocorrência de estados da consciência, ao que chamou de estados hipnóides. Diferente de Janet, a divisão da consciência era secundária e adquirida, originária de uma situação traumática. Na divisão, as idéias emergem nos estados hipnóides, estando excluídas do conteúdo da consciência. Nos estados de hipnose, Anna O. fazia o que chamava de “cura pela palavra” ou “limpeza de chaminé”. Desta forma, para cada sintoma, era estabelecida uma cadeia associativa que findava por encontrar a primeira aparição do sintoma. Coube a Breuer constatar que chegando à situação originária o sintoma desaparecia. O método catártico estava inventado e segundo Breuer: O sintoma histérico desapareceria imediatamente e sem retorno, quando conseguíamos evocar nitidamente a lembrança do fato que provocou a emoção que acompanhava e quando o paciente havia descrito aquele fato com os maiores detalhes possíveis e trazia a emoção em palavras. (BREUER e FREUD (1893), 1969, p.47). Breuer vê no jovem Freud um futuro promissor, adotando-o como sucessor e discípulo. Breuer passa a compartilhar com Freud o caso Anna O., que fascina a Freud. Em sua estada em Paris, Freud leva a Charcot a paciente de Breuer, mas Charcot não se interessa pela história. Breuer e Freud publicam juntos dois trabalhos que servirão de base para qualquer estudo da histeria à luz da psicanálise: Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos. Comunicação Preliminar (1893) e Estudos Sobre Histeria (1895). Influenciado por Charcot e Breuer, Freud inicia as primeiras considerações teóricas que se transformarão nas bases da psicanálise: · O conteúdo do ataque histérico é o retorno de uma lembrança. · A lembrança é o retorno de um trauma psíquico que se torna determinante (histeria traumática de Charcot). · A lembrança pertence a uma segunda consciência (inconsciente), que ao retornar à consciência faz desaparecer o sintoma. · É a cisão que produz os efeitos permanentes. · A histeria representa uma impossibilidade de descarregar por vias normais uma excitação psíquica. · Todas as operações de descarga ocorrem fora da consciência. 24 Para Freud o importante era aquilo que o acontecimento representava para o psiquismo. A histeria era uma doença de representação. Embora Breuer aceitasse a sexualidade como determinante na histeria, não aceitava a sobredeterminação da sexualidade infantil, se opondo radicalmente às concepções de Freud. É, finalmente, o fenômeno da transferência que afasta Breuer de Freud e da psicanálise. Freud abandona a hipnose e descobre a associação livre como acesso ao inconsciente nascendo, então, a psicanálise. Um dos principais estudos de Freud sobre as manifestações corporais na histeria é o conhecido caso Dora, publicado em 1905. Dora, ao apresentar seu primeiro sintoma era, então, uma adolescente de 14 anos. O sintoma corporal está presente desde o início nos escritos de Freud, causando já nesta época uma questão. Emmy (1889), Lucy (1892), Elizabeth (1892), Katcharina (1893) eram suas pacientes, e em todas podia observar uma multiplicidade de manifestações corporais: afasia, tiques, amnésia, convulsões, desmaios, anorexia, paralisias, perturbações visuais, episódios de tosse e cefaléias, entre outros. Através de tais sintomas, logo pode perceber que os mesmos tinham um sentido e falavam tal qual metáforas pela via corporal. Mas, do que falavam? Falavam de um desejo de ordem sexual, que quando recalcados encontravam como via de expressão o próprio corpo. Eram formações do inconsciente se fazendo representar. Assim, o corpo era esvaziado de órgãos e preenchido de significantes conversivos. Ao inaugurar a associação livre, método que vai privilegiar a palavra, Freud desvela o encadeamento entre passado e presente que, de modo associativo, formava uma cadeia com sentido. Nascia então o corpo em sua face simbólica, que de palavra em palavra falava de um outro sofrimento, de uma outra cena, na tentativa de produzir uma mensagem. O corpo, então, não expressava apenas um sofrimento físico, mas algo de um impulso da ordem sexual como uma força constante. O corpo é aquele que impõe, permanentemente ao psíquico, o trabalho de se fazer representar. Se o corpo fala, ele fala do lugar do desejo, pela via da pulsão, conceito fundamental da psicanálise que passaremos a examinar tanto em Freud como em Lacan. 25 1.3 A pulsão, uma força constante O conceito de pulsão é considerado um conceito fundamental para a psicanálise. Na relação com o corpo é a força constante que determinará seu destino. A ligação entre o corpo, a pulsão e a linguagem expressa uma reciprocidade descrita por Garcia Rosa: A psicanálise nos coloca, desde o início, no lugar da linguagem e é por referência a este lugar que ela nos fala, mesmo quando está se referindo aos corpos e ao mundo dos objetos. Referida à linguagem, a pulsão ocupa uma região do silêncio. Situa-se num além. Refere-se ao corpo, mas não é corpo: está além da linguagem, mas a pressupõe. Conceito-limite a pulsão nos ameaça com o seu silêncio teórico. (GARCIA-ROSA, 1986, p.9) Podemos inferir por esta citação ser o conceito de pulsão um dos mais ambíguos e discutidos na construção freudiana. Talvez, por isso, seja um conceito que sempre desempenhou grande relevância, tendo alçado o estatuto dogmático. Tal conceito é presente em toda a obra de Freud, num caminho que vai da representação à compulsão à repetição, chegando à pulsão de morte. Em relação ao conceito metapsicológico de pulsão é imperioso considerá-lo para que a psicanálise possa existir. Só há saber psicanalítico para aqueles que aceitam como válidos e imprescindíveis a existência conceitual da pulsão, do inconsciente e do recalque. 1.3.1 Desde Freud Em relação à teoria pulsional Freud adverte para três características peculiares: o caráter mitológico, o caráter de sua complexidade e o caráter de doutrina. Sobre o caráter mitológico Freud (1933), em sua conferência XXXII, Angústia e Vida Pulsional, afirma: A teoria da pulsão é, por assim dizer, nossa mitologia. As pulsões são entidades míticas, magníficas em sua imprecisão. Em nosso trabalho não podemos desprezá-las, nem por um só momento, de ver que nunca estamos seguros de as estarmos vendo claramente. (FREUD (1933), 1969, p.119) 26 Ao falar da pulsão, Freud (1933) a descreve como mitológica em sua essência. O mito sempre acompanhou a obra de Freud. Seu interesse por mitologia e antiguidades se estendeu até o final de sua vida. A construção de seus conceitos e reflexões teóricas aponta sua fascinação histórico-mitológica. Édipo, Narciso, Psiquê, dentre muitos outros, foram usados como referências. Freud (1913), em seu mito científico Totem e Tabu, revela a instância interditora, o assassinato do pai da horda, e a relação inevitável entre o desejo e a lei, raízes da cultura e da instauração dos laços sociais. Ao alçar o conceito de pulsão à ordem mitológica, Freud (1933) nos fala das raízes do mito. Podemos considerar o mito como uma narrativa da criação. Conta-nos a maneira pela qual algo começa a ser. Representação coletiva e transmitida por gerações, tenta revelar a origem do mundo e do homem. Pela complexidade do real, o mito não pode ser lógico mas perpassado pelo simbólico. Portanto, decifrar um mito é entender um conceito, uma idéia e seu significado. Expresso na herança da humanidade, seja qual for sua época ou lugar, o mito é atemporal. Através do mito e sua estrutura o homem tece sua história perene, de episódios eternos, porque se repetem. O mito é uma força constante que fala de nascimento, amor, ódio, desejo, sexualidade, vida e morte. Projeção de paixões, traições, vinganças e esperanças, através do mito, o homem compensou a sua enorme angústia frente ao real. É este abismo que o simbólico do mito tenta preencher. Vemos, assim, alguns pontos comuns entre o mito, a pulsão e o inconsciente. A mitologia nos conta a história de Ariadne-Teseu e o Minotauro da seguinte forma: Pasifae, esposa do rei Minos, se apaixona por um touro que Poseidon fizera nascer no mar. Desta união, símbolo da traição ao rei, Pasifae concebeu o Minotauro, um monstro horrendo, meio homem, meio touro. O rei Minos, ferido pela traição, encarregou a Dédalo de construir, no palácio de Cnossos, o famoso labirinto onde encerrou o Minotauro. O monstro era alimentado com carne humana e, anualmente, a ele eram ofertados sete rapazes e sete moças de forma a saciar sua fome. Em uma destas levas de jovens, Teseu, jovem ateniense, se ofereceu a seguir junto com outros rapazes para a ilha de Creta. Lá chegando encontra Ariadne, filha 27 mais bela do rei Minos que se apaixona por Teseu. Para que o herói pudesse, uma vez perdido no labirinto, encontrar o caminho de volta, ofereceu-lhe um novelo de fios, para que desenrolasse à medida que adentrasse no covil e matasse o terrível monstro. Assim, Teseu conseguiu matar o monstro antropofágico e escapar das trevas, levando consigo Ariadne. A partir desta narrativa, poderíamos perguntar: Seria a pulsão a origem de tudo, o Minotauro de todos nós do qual só sabemos de sua força constante? Seria o labirinto a complexa rede de significantes, único acesso possível das representações e, por conseguinte produzindo sentido? Seria o fio de Ariadne a força de Eros, única capaz de adentrar no labirinto? O relato mitológico evidencia diferentes aspectos acerca da construção do conceito de pulsão: a força que impulsiona uma busca constante, a pulsão de morte que, quando desamalgamada, consome corpos. A pulsão de vida representando a união, através de Eros. Para aquém do recalque e do inconsciente, fora do alcance da linguagem e da trama de significantes, lá está a pulsão em sua mudez, só podendo se fazer representar. O conceito de pulsão acompanha os escritos de Freud em diferentes momentos, já sendo esboçado em um de seus principais textos, Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, de 1905. Examina questões referentes à pulsão, descrevendo a primeira formulação de seu conceito a partir de um minucioso exame que realiza da sexualidade humana, usando pela primeira vez o termo pulsão sexual. Embora nesta época o conceito ainda não estivesse bem delimitado, podemos observar em suas primeiras formulações, as fontes corporais da pulsão, ou seja, as zonas erógenas e os desvios em relação aos seus objetos. Em relação aos componentes já os apresentava, embora só viesse a sistematizá-los em 1915, no texto As pulsões e suas vicissitudes. No texto de 1905, ao lançar algumas hipóteses sobre a pulsão, diz que em si mesmas não possuem qualidade alguma, além de serem uma medida de trabalho para a vida psíquica. A relação com a fonte somática e suas metas é o que vai imprimir sua distinção. Esta afirmação, mais do que qualquer outra, define que sem o corpo a pulsão não existiria. Em outra hipótese, a qual nomeia como provisória, diz serem os órgãos do corpo aqueles que brindam excitações de duas classes de 28 diferentes naturezas químicas e toma uma dessas classes especificamente como sexual. O texto Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, em sua edição de 1905, se constrói em torno das pulsões parciais, das zonas erógenas, do auto-erotismo e das perversões, como manifestações da sexualidade. Ao nomear as pulsões como parciais, Freud postula uma base sexual, organizada entre pulsão parcial e zonas erógenas. Ao conceituar a pulsão sexual diferencia o sexual, caracterizando-o por um caleidoscópio, e suas múltiplas combinações parciais originadas no corpo, nas zonas erógenas, chegando ao psiquismo através de seus representantes. Em nota de rodapé, acrescida em 1915, aos Três Ensaios, Freud escreve: Podemos distinguir (as pulsões parciais) além de uma pulsão que não é em si mesma sexual, e que tem sua origem em impulsos motores de uma contribuição de um órgão capaz de receber estímulos (p.ex.; a pele, a membrana mucosa ou órgão sensorial). Um órgão desta espécie será descrito neste sentido como uma zona erógena – como sendo órgão cuja excitação empresta à pulsão um caráter sexual. (FREUD (1905), 1969, p.170) O conceito de zona erógena delega ao corpo o lugar de excitação. Embora relacionado a algumas partes específicas (boca, ânus), Freud considera qualquer parte do corpo erógena e, portanto, fonte pulsional. Nas primeiras formulações explica a pulsão através do conceito de apoio, tomando como exemplo a amamentação, noção que posteriormente vai abandonar. A noção de fonte, ainda que impregnada pela biologia, aparece de forma incipiente no Projeto para uma Psicologia Científica (1895). Freud estabelece uma ligação de sistemas (Neurônio Phi, neurônio Psi, neurônio Psi nuclear, Pallium e Omega), onde o organismo, quando entra em carência biológica (fome, sede, sexo), produz uma intensificação da bioquímica nas células corporais, um aumento de energia somática, resultando no afastamento de seu estado de equilíbrio, com isso surgindo uma tensão somática produzindo uma força propulsora que tende a restaurar o equilíbrio perdido, sendo este circuito constante. Toma a experiência da satisfação e da dor para exemplificar o sistema. Embora no Projeto não tenha usado o termo pulsão, sua semente já existia. Ao longo de sua obra, Freud lança várias idéias sobre o conceito de pulsão, a saber: 29 Uma pulsão nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam à mente. (FREUD (1915), 1969, p.142) Consideramos a pulsão como sendo o conceito situado na fronteira entre o somático e o mental e vemos nele o representante psíquico de forças orgânicas. (FREUD (1911), 1969, p.99) Por pulsão deve-se entender provisoriamente o representante psíquico de uma fonte endossomática, (FREUD, (1905)1969, p. 99). Uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da consciência, só a idéia (Vorstellung) que a representa (...) Mesmo no inconsciente, uma pulsão não pode ser representada de outra forma a não ser por uma idéia. (FREUD, (1915), 1969 p.203) Nas três primeiras citações a pulsão fica identificada com o representante psíquico. Porém, no artigo O Inconsciente (1915) fica evidente a necessidade de distinguir a pulsão do que a representa. Aqui se nota o valor da linguagem e seus significantes. Ao assinalar que a pulsão é um conceito limite entre o somático e o psíquico, faz referência ao somático enquanto fonte e ao psíquico como representação. A pulsão em si não ingressa no inconsciente e para que tal aconteça se faz necessária sua articulação a um representante da representação. Estes representantes são mediados pelo recalcamento operando como barreira. Desta forma os representantes da pulsão, através de significantes, vão formar cadeias associativas, marca do inconsciente estruturado como linguagem. As palavras de Freud em seu artigo O Inconsciente (1915) dizem que uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da consciência e que mesmo no inconsciente ela só pode ser representada. À pulsão só temos acesso pelos seus significantes, pela palavra, pelas suas formações operadas pelas leis do inconsciente, deslocamento e condensação e pelas leis da linguagem metonímica e metafórica. Esta noção de limite marca uma fronteira, um ponto de ruptura de uma unidade psicofísica para a noção de inconsciente e de sujeito, o corpo não é somático nem psíquico, devendo situar-se no campo pulsional. Em função da abrangência conceitual da pulsão, achamos necessário enfocar: seus componentes, seus destinos e seus dualismos. No texto de 1915, A pulsão e seus destinos, vamos encontrar um minucioso exame de seus componentes. Ao descrever o movimento pulsional como um 30 trabalho, estabelece quatro componentes: a força ou a pressão, a fonte, o objeto e o alvo ou meta. A força (Drang) se compreende como pressão, fator motor constituinte de sua essência, de exigência constante imposta ao psiquismo. Representa, portanto, o fator dinâmico da pulsão. A fonte (Quelle) é o processo de excitação somático originado em um órgão ou parte dele, representado psiquicamente. Sendo assim, a pulsão tem origem somática e não psíquica. O alvo ou meta (Ziel) diz respeito sempre à satisfação, sendo obtida removendo-se o estado de estimulação da fonte. Embora invariável, pode haver diferentes caminhos para alcançá-lo, sendo possível, também, alvos intermediários, possíveis de combinação e substituição entre si. Pode ocorrer que o alvo último seja inibido, e somente alvos parciais sejam alcançados. A esse respeito Freud (1905) esclarece que a pulsão sexual luta com barreiras que atuam como verdadeiros diques de resistência, causando uma ruptura no fluir pulsional. Cita como barreiras o asco, a vergonha, a moral e as exigências estéticas. Finalmente o objeto (Objekt) é considerado o elo possibilitador da satisfação, sendo o que há de mais variável. É suscetível de ser substituído nos caminhos que a pulsão escolhe. A não articulação da pulsão com o objeto deixa clara a diferença entre pulsão e instinto. Somos assim alertados a afrouxar o laço que, em nossos pensamentos, estabelecemos entre pulsão e o objeto. Parece provável que a pulsão sexual seja, em primeiro lugar, independente de seu objeto; nem é provável que sua origem seja determinada pelos atrativos do seu objeto. (FREUD (1915), 1969, p.149) Ainda no texto de 1915 A pulsão e seus destinos, Freud delega quatro possíveis destinos para a pulsão: a transformação em seu contrário, o retorno ao eu, o recalque e a sublimação. O primeiro e o segundo destinos são intrínsecos ao próprio movimento pulsional, onde a transformação em seu contrário retorna ao próprio eu. A gramática pulsional ao se conjugar nas vozes ativa, reflexiva e passiva implica em seu retorno. Estes destinos da pulsão são claramente percebidos na organização narcisista do eu. Os pares antagônicos e o dualismo pulsional marcam de forma 31 crucial o entendimento do conceito narcisismo, que será mais especificamente abordado no terceiro capítulo. O terceiro destino fala do recalque, configurando o destino da pulsão na neurose. O recalque funda o Inconsciente, ao qual só temos evidência através das suas formações, como o sonho, o sintoma, os atos falhos e os chistes. O quarto destino da pulsão, a sublimação é o menos sistematizado. Sobre ele Freud pouco escreveu. A sublimação ao operar com a mudança no trajeto pulsional reafirma o caráter enigmático da pulsão. Como exemplo de sublimação temos as obras de arte e os processos criativos. Embora Freud tenha escrito pouco sobre a sublimação, marca sua importância no texto do Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914). O conceito de sublimação é de fundamental importância para a construção de ideais na adolescência. O conceito de sublimação também será estudado, mais detalhadamente, no terceiro capítulo. A dificuldade concernente à definição única de pulsão, conceito ao mesmo tempo fundamental e mitológico, leva Freud a lançar mão da noção de dualidade, estruturando dois modelos. Freud vai assinalar que além de sua referência às pulsões sexuais existe outro grupo que vai nomear de pulsões do eu ou de autoconservação. Assim, no primeiro dualismo as pulsões sexuais são relacionadas com a conservação da espécie, e as pulsões do eu com a autoconservação, noção que será abandonada posteriormente. No texto de 1910, A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão aponta este primeiro momento de sua concepção: (...) uma parte extremamente importante é desempenhada pela inegável oposição entre as pulsões que favorecem à sexualidade a consecução da satisfação sexual, e as demais pulsões tem por objetivo a auto preservação do indivíduo: as pulsões do ego. (FREUD, (1910), 1969 p. 199). O primeiro dualismo marca sobremaneira o tipo de satisfação a ser alcançada. Para o eu a satisfação aponta para um objeto real, para a autoconservação e para a defesa. As pulsões sexuais se ligariam a objetos fantasmáticos e não fixos, estando voltadas à conservação da espécie. O eu passa a ter funções vitalistas funcionando como pólo defensivo. 32 Esta formulação não satisfaz a Freud, visto que ele mesmo declara, em 1915, não ter status de postulado, não passando de uma hipótese de trabalho a ser conservada enquanto fosse útil. O primeiro dualismo não mais se sustenta, visto a oposição do eu à sexualidade, sendo esta uma noção estruturante para a psicanálise. Freud vai distinguir uma energia de investimento pulsional, de origem sexual denominada libido. É no texto de 1914 “Sobre o narcisismo: uma introdução” onde Freud vai construir uma nova concepção para investimento pulsional. Esclarece a relação entre o auto-erotismo e a concepção do eu, e a este respeito escreve: (...) posso ressaltar que estamos destinados a supor que uma unidade comparável ao eu não exista no indivíduo desde o começo: o eu tem que ser desenvolvido. As pulsões auto-eróticas, contudo ali se encontram desde o início, sendo, portanto necessário que algo seja adicionado ao autoerotismo – uma nova ação psíquica a fim de provocar o narcisismo. (FREUD (1914), 1969, p. 93) A nova ação psíquica, pela concepção do narcisismo, é a ação que vai libidinizar as antigas pulsões de autoconservação. O eu passa a ser para além de um pólo defensivo, um lugar de investimento da libido, energia da pulsão sexual. Freud passa a distinguir a libido narcísica da libido objetal, marcando uma referência ao objeto de investimento. Cria um sistema de comunicação, onde ora a libido flui para o eu como objeto, ora para um objeto exterior ao eu. Com o conceito de narcisismo, o eu passa a ser um objeto privilegiado de investimento da libido, o que permite sua integração. Assim, com o conceito de narcisismo, a nova concepção do eu e a teoria da libido, a pulsão torna-se sexual, ora investida no eu, ora investida no objeto. Freud em sua clínica começa a se deparar com o fenômeno da repetição. Constata o poder da repetição na transferência, nas brincadeiras infantis e na neurose. Alguma coisa retorna, através da repetição, que, para além do prazer, faz com que sejam vividas situações dolorosas de desprazer. A noção de compulsão à repetição faz surgir um novo questionamento: Se o psiquismo tende a um equilíbrio, porque então a persistência de um desprazer? Ao se voltar para o fenômeno da repetição vai constatar o que há de mais fundamental na pulsão, ou seja, a sua força constante propulsora da repetição. 33 Percebe que algo escapa à dimensão do simbólico, que algo escapa à palavra e que diz respeito ao silêncio. Assim concebe a pulsão de morte como algo que se define para além da sexualidade, do principio do prazer e que é repetido pela impossibilidade estrutural de simbolização. O segundo dualismo pulsional é descrito por Freud (1920) em “Além do principio de prazer” como pulsão de vida e pulsão de morte. As pulsões sexuais e de autoconservação são unificadas pela pulsão de vida, contraposta à pulsão de morte. Neste texto, de sete capítulos, pouco a pouco são desvelados uma série de fenômenos: os sonhos das neuroses traumáticas, a brincadeira infantil do “Fort-Da” até concluir que algo sempre escapa ao prazer, sendo da dimensão da repetição, pela falta de representação. A pulsão de vida, Eros, refere-se a tudo que pode ser construído, amalgamado, refere-se aos ideais. A pulsão de morte, Tanatos, ocupa o lugar do silêncio, É exatamente pelo caráter da repetição e da força constante que nasce a possibilidade do impulso a novos objetos, inaugurando o processo criativo. Pulsão de vida e pulsão de morte, geralmente caminham juntas. 1.3.2 Com Lacan Lacan, no texto de 1953 Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, refere-se ao inconsciente como um capítulo assinalado por um branco, ocupado pelo logro e censurado, mas que a sua verdade pode ser reencontrada no corpo, o núcleo histérico da neurose, onde o sintoma mostra a sua linguagem a ser decifrada como uma inscrição. Lacan se refere ao corpo como um lugar onde o inconsciente pode ser resgatado, inconsciente estruturado como linguagem, que povoa o corpo de significantes. Os significantes são matéria simbólica que, se apoderando do corpo, desnaturalizam o humano. Se Freud dizia que o humano ao nascer não comportava uma unidade comparável ao eu e que esta unidade só poderia ser apreendida a partir da organização de um sistema mental, Lacan vai afirmar que este esquema não é inato 34 e sim antecipado pelo Outro, mesmo antes da aquisição da capacidade motora de expressão. O Outro se reporta ao lugar do simbólico, configurando “a lei, a linguagem, o inconsciente ou ainda Deus – que determina o sujeito.” (ROUDINESCO, 1998, p.558). Se a criança ao nascer é banhada pela linguagem, o advento do corpo também se opera pela entrada na linguagem. É o Outro da linguagem que, trazendo suas marcas, significantes, sexualiza o corpo até então biológico e natural. É do desejo do Outro que advém o sujeito como uma resposta sexualizada. Em relação a esta afirmação, segundo Lacan, a criança não aprende a falar, mas sim a responder ao Outro primordial. Jacques Lacan concebe o corpo no sentido de três registros: o simbólico, o imaginário e o real. Sabemos que ao corpo só temos acesso pela ordem simbólica, sendo aquele mediatizado como nosso pela experiência narcísica, nos conduzindo então a afirmar que o corpo também tem sua inscrição no campo do imaginário. É bem verdade que do corpo só temos noticia através de alguma dor, prazer ou ambos e podemos dizer que quando temos saúde, nossos órgãos emudecem. A consciência de ser não é sentida como tal, mas sim em relação a não termos doença ou dor. O corpo quando fala provoca certo sentimento de estranheza, como algo pertencente a um outro. A psicanálise nos ensina que este corpo, por vezes estranho, começa no Outro como objeto de gozo, incluindo necessariamente a alteridade. Alteridade enquanto Outro imaginário e especular, e Outro do universo simbólico. 35 O esquema L de Lacan bem exemplifica esta construção: (sujeito do inconsciente) (Eu) a S Re R la a el çã çã o o im a n gi in ár co ia ns cie nt e A a’ (Objetos) (Outro - universo simbólico) Figura 1- Esquema da dialética subjetiva (Esquema L) Fonte: ESCRITOS,1998,p.55 e 919 O esquema da constituição do sujeito, na dialética da intersubjetividade, determina uma relação dinâmica e quaternária, composto por quatro termos tomados em diferentes articulações, a saber: S, A, a e a’. A diagonal S/A, respectivamente sujeito e o Outro, corresponde à relação inconsciente e a determinação simbólica do sujeito, a partir do Outro. A diagonal a/a’, respectivamente eu e outro, corresponde à relação imaginária, narcísica, que o eu estabelece com seus objetos ou semelhantes. Lacan marca a articulação das duas diagonais, indicando ser o processo de constituição do sujeito uma dialética de quatro termos, a partir da relação simbólica e o campo das identificações. Para o autor o esquema L é uma estrutura quadripartida mínima e “sempre exigível” para a constituição do sujeito e, a este respeito afirma: Neste discurso, como o sujeito seria implicado, se ele não fosse parte integrante? Ele o é, com efeito, enquanto atirado nos quatro cantos do esquema: a saber, S na sua inefável e estúpida existência, a, seus objetos a’, seu eu, a saber, o que se reflete de sua forma em seus objetos, e A o lugar de onde pode se colocar para ele a questão de sua existência. (LACAN (1955-56), 1998, p. 555) Desta forma, de acordo com Lacan, o sujeito se constitui a partir de sua condição inefável e anterior às determinações simbólicas, seu eu e o reflexo de seus objetos e seu inconsciente, a partir do qual se coloca a questão de sua existência, o que lhe faculta advir como sujeito do inconsciente, perdendo sua condição inefável inicial. 36 O corpo para a Psicanálise se constrói no interjogo da subjetividade, pelo nó do simbólico, imaginário e real. Bruce Fink (1998) diz que deste interjogo nasce o sujeito do inconsciente, entre o gozo pulsional e a linguagem. Correlato ao conceito de narcisismo em Freud, onde o corpo imaginário é construído, Lacan formula a teoria do estádio do espelho, estádio que vai designar o momento no qual a criança, por volta de doze meses, apreende uma representação de si, como unidade corporal através da imagem do Outro. Este momento é caracterizado pela experiência da criança ao perceber o reflexo de sua própria imagem no espelho, experiência fundadora dos rudimentos do eu, enquanto uma imagem unificada. O estágio do espelho só é possível na relação com o outro enquanto semelhante. A visão gestáltica da fase do espelho se transforma numa vivência estruturante, que caracteriza o campo do imaginário. A partir da apreensão da própria imagem fornecida pelo exterior, o corpo passa de sua fragmentação inicial a uma unificação. Se o corpo do simbólico é o corpo da linguagem e o corpo do imaginário é o corpo do eu; e quanto ao corpo do real? Este diz respeito àquilo que no corpo não pode ser significado, escapando à ordem simbólica. Do corpo aprisionado pela malha da linguagem, resta algo para além dos significantes e da imagem. Neste sentido, toda palavra significante vai revelar somente parte da verdade do sujeito, porém não toda, pois a linguagem não é coextensiva ao campo do real. O real, neste sentido, não se refere a uma realidade objetiva, mas sim ao termo usado por Lacan para designar o que é impossível de simbolizar. Roudinesco (1998) define o real como “a realidade da psicose, na medida em que é composta por significantes forcluídos do simbólico”. Segundo Coutinho Jorge (2005), Lacan apresenta o real como “a parte dos sujeitos que nos escapa na análise” e aquilo que “constitui o limite de nossa experiência”. Pela impossibilidade de aderir ao simbólico, o real é o que retorna sempre ao mesmo lugar, remetendo à falta originária que, segundo Lacan, se refere à hiância constituinte do inconsciente. Coutinho Jorge (2005) afirma ser o objeto a aquele que vai dar ao real o seu estatuto. Por ser o objeto faltoso por excelência, mantém relação direta com a falta, sendo considerado o objeto causa de desejo. O objeto a é um conceito lacaniano, 37 referente ao lugar da falta e do desejo, constituindo um resíduo. É o objeto de puro gozo, que faz a pulsão circular. Ao fazer referência ao inconsciente estruturado como uma linguagem, Lacan nos diz que o mesmo pode ser decifrado, mas que também o seu núcleo faz parte do real, na medida em que a ele não temos acesso. Assim, o real do inconsciente é representado uma falta estrutural constituída pelo objeto a, objeto para sempre perdido. É em torno desta falta que o inconsciente vai estruturar-se, pelo simbólico através da linguagem. Em função da falta, da repetição e da pulsão de morte Lacan organiza um circuito para demonstrar como a pulsão circula através de seus componentes. Lacan (1964) no artigo A desmontagem da pulsão enfatiza a especificidade dada ao termo pulsão. Delega à pulsão o caráter do que é irreprimível, da ordem de uma força constante. Esta força constante do impulso não faz referência a uma força cinética, organizadora do movimento, distanciando-se desta forma de qualquer ligação a uma função biológica. Assim Lacan escreve: “... se posso me exprimir assim, que ela não tem dia nem noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem nem subida nem descida. É força constante.” (LACAN (1964), 1985 p.157). O objeto da pulsão está articulado à primeira experiência de satisfação, no registro da marca mnêmica. Ao ser reativada a marca, este primeiro registro é evocado. Mas o objeto já não mais está lá, é apenas evocado, o que marca a ausência do objeto a para sempre perdido. A este objeto que a pulsão apenas contorna, objeto com o qual a pulsão irá tentar se satisfazer é um simulacro, um substituto do objeto perdido. É exatamente em torno do objeto mítico que a pulsão estabelece seu circuito, a compulsão à repetição. Em relação ao objeto, Lacan diz: “Para o que é do objeto da pulsão, que bem se saiba que ele não tem, falando propriamente, nenhuma importância.” (LACAN (1964), 1985 p.159). Lacan (1964), em seu artigo A pulsão parcial e seu circuito, ilustra a montagem dos quatro elementos: 38 Objeto (objekt) A (Aim) Impulso (Drang) Goal Borda (Quelle) Ziel(alvo) Figura 2- A pulsão parcial e seu circuito Fonte: O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais em psicanálise, 1964, 1998, p. 169. Neste circuito é presente o movimento de repetição que, na busca de um objeto de satisfação, apenas contorna o objeto a, o objeto perdido da primeira experiência de satisfação. Se de um lado temos o impulso, do outro temos a satisfação, o alvo, o objetivo. Lacan aponta para o paradoxo da satisfação pulsional. Por ser uma força constante, sem trégua ou interrupção, caracteriza a ordem de uma impossível satisfação. A pulsão em seu circuito, na busca de um objeto para satisfação, opera no jogo do logro, pois é exatamente aí, no objeto de sua busca, que nunca se satisfaz. A montagem é algo surreal que busca juntar objetos díspares. Saindo da borda, zona erógena, o impulso contorna o objeto e, por se satisfazer vicariamente, retorna à sua fonte. Eis aí o vai e vem pulsional. Em relação ao alvo da pulsão, Lacan (1964) utiliza dois significantes: aim e goal. Aim – como o trajeto pelo qual deve passar, objetivo enquanto aspiração, contorna o objeto. Goal – como o “tiro certo” que atinge o alvo, o retorno à origem, a impossível meta de atingir o objeto a. 39 Tomando o exemplo de Freud para o auto-erotismo, como uma boca que beijaria a si mesma, Lacan (1964) nos diz da pulsão como uma “boca flechada”, cozida, apontando para o silêncio, “fechando-se sobre sua satisfação’”. Se não há objeto possível de realizar a satisfação pulsional, o que determina então o novo na repetição? A compulsão à repetição confere o gozo, pela pura repetição do circuito. Assim, para além do prazer está o gozo, na sua dimensão de repetição. Frente ao caráter repetitivo da pulsão, Lacan recorre a Aristóteles para uma possível explicação. Aristóteles, no livro I da Metafísica, descreve a teoria das quatro causas; a causa formal (distinção de uma coisa das demais), a causa material (referente à matéria em si da qual a coisa é feita), a causa eficiente (princípio de movimento), a causa final (finalidade da existência). Na causa eficiente descreve a causa acidental dividida em dois tipos: Tycké e Automaton, ambas referidas a uma excepcionalidade. Tycké referese à causa oculta que não possui um caráter puramente casual. Automaton é o que acontece sem nenhuma deliberação, movendo-se por si mesmo. Frente a estas duas referências Lacan interpreta em Automaton a rede de significantes, articulada ao simbólico. Em Tycké vai designar o encontro com o real, marcado pelo vazio, portanto sempre faltoso. O real que se repete é em Freud apontado como a manifestação da pulsão de morte. Em Lacan se expressa no conceito de gozo. Retornando ao corpo e à pulsão, temas eleitos para sustentar este capítulo, podemos então concluir parcialmente que, frente aos três registros real, simbólico e imaginário, o corpo, para a psicanálise, pode ser analisado em três vertentes articuladas. No registro do simbólico o corpo é marcado pelos representantes pulsionais encarnados pelos significantes. Aqui temos o corpo representação. No registro do imaginário é o corpo da imagem, da constituição do eu narcísico, impresso pelo desejo do Outro. Quanto ao real diz respeito àquilo que no corpo não pode ser significado e que, escapando ao simbólico e à imagem torna-se pura carne, revelando um desnudamento da ordem do insuportável. É o que de traumático há no pulsional, pois, não há um só significante para representá-lo. É o corpo desabitado que nos fala da repetição, da pulsão de morte e do gozo. 40 Na afirmação lacaniana de que “o gozo é o que não serve para nada” nos parece haver certa ironia. Embora relacionado com a satisfação, mas não coincidente a ela, é o gozo não representável que possibilita todo circuito pulsional, abrindo caminho para que o novo possa advir. Desta forma é o corpo, que em sua errância, vai possibilitar a emergência do sujeito do inconsciente. O próximo capítulo será dedicado à adolescência, seu conceito e suas especificidades enquanto um tempo, que possui uma lógica própria. Analisaremos, também, o despertar pulsional na adolescência. É com o corpo pulsional, que o adolescente vai despertar para a busca de novos objetos, requisitando o simbólico em função da retomada de uma nova imagem corporal que lhe forneça sustentação. 41 CAPÍTULO 2. Psicanálise e Adolescência 2.1 A descoberta da adolescência A palavra Adolescens é encontrada pela primeira vez nas comédias de Plauto, em torno de 193 d.C. (POLLO, 2003), e localizada como fenômeno na cultura Sumeriana por volta de 400 a.C. (Lewis, 1993). Rousseau (1762), em Emile, comenta que “Nós nascemos por assim dizer, duas vezes: nascemos um ser humano e nascemos um homem”. É na segunda metade do século XIX que passa a integrar os dicionários. É reconhecida como um período de desenvolvimento por Stanley Hall em 1909. A palavra adolescência vem do latim adolescere, que significa fazer-se homem/ mulher ou crescer na maturidade. (MUUSS, 1976) Embora o conceito sofra modificações em relação à idade e ao sexo, a maioria dos autores lhe atribui o critério de passagem entre a infância e a vida adulta. É considerado por alguns autores um período transitório, onde rupturas e paradoxos exercem influências no comportamento; um tempo de mudanças e pode ser entendido como uma transição, entrecortada por muita turbulência e pouca calmaria. Em algumas culturas, é um período marcado por ritos de passagem, variando sua duração de cultura para cultura. O nascimento da adolescência, como um período etário, é uma decorrência do surgimento da moderna noção de família e de infância. Philippe Ariès (1981) descreve este surgimento a partir do século XVIII. Na Idade Média o espaço comunitário e o espaço familiar não eram bem delimitados. O período medieval não reconhecia a infância e a vida adulta como mundos diferentes, não necessitando, portanto, uma passagem entre eles. A separação do espaço público e privado marca a constituição da família, enquanto uma célula constituída de casal e filhos. O trabalho comunitário e o convívio familiar se separam, e a família passa a formar uma unidade com vínculos, lugares e papéis diferenciados entre seus membros. Com o distanciamento entre a infância e a idade adulta surge um novo período etário: a adolescência. A partir do século XIX surge o 42 adolescente na cultura ocidental, sem que haja ritos de passagem definidos. O nascimento da adolescência, enquanto uma idade diferenciada, surge concomitante com o individualismo, um dos valores básicos da nossa sociedade. Firma-se entre as duas guerras juntamente com a ascensão da mídia e do consumismo, na segunda metade do século XX. Do ponto de vista sociológico, caracteriza-se por um período da vida em que a sociedade deixa de perceber o indivíduo como criança, mas não lhe confere plenamente o lugar de adulto. No campo da psicologia abrange um período da vida em que ocorre uma extensa reorganização psíquica, que resulta de mudanças biopsicossociais. Na adolescência são consolidados os sentimentos de respeito, fidelidade, valores éticos e morais. Edificam-se aspirações pessoais e sociais, com a busca de novos pares e novos ideais. As relações sociais são estabelecidas pelo trocar, compartilhar com o grupo social de determinada cultura. Nesta busca são vários os lutos que a adolescente precisa viver: o luto pelo próprio corpo que se transforma e lhe é desconhecido, o luto pelos pais da infância. A busca e apropriação de um novo status são imanentes aos lutos que precisa viver. Kusnetzoff (1982) descreve o período da adolescência como um tempo onde o amadurecimento físico produz em ambos os sexos profundas alterações críticas no aparelho psíquico e suas vinculações econômico-dinâmicas. Embora o conceito de adolescência seja recente, encontramos na antiguidade referências a jovens e ao culto de seus corpos. Na Grécia Clássica o efebo era tomado como a imagem ideal de erotismo e modelo para a educação dos jovens. Os efebos eram rapazes que ao atingirem a puberdade eram submetidos à educação especial. Jovens de infinita beleza tinham seus corpos cobiçados. Eram incentivados a práticas sexuais que simbolizavam ritos de passagem. Na mitologia, a imagem de Eros foi simbolizada pela figura de um jovem mancebo, de corpo atlético e viril. Laio, pai de Édipo, foi amaldiçoado por seqüestrar e apaixonar-se por Crísipo, jovem efebo de rara beleza. Jacinto era amante de Apolo e Zagoas era o eunuco favorito de Alexandre Magno. Paul Veyne (apud. André 1995) descreveu a família do nobre romano com esposa, filhos, escravos e um jovem adolescente ao qual o nobre “apadrinhava”. 43 Para o ideal viril da época o jovem efebo ocupava o lugar de favorito, só abandonando este lugar quando criava pêlos no corpo. A virilidade era um tornar-se, marcando o fim da efebia. O efebo descrevia um adolescente de beleza física semelhante a de uma jovem mulher, tendo um comportamento ao mesmo tempo feminino e viril. Nas pinturas do Renascimento podemos encontrar retratados modelos de corpos viris e fisionomias andrógenas. Os jovens da época eram requeridos pelos pintores para imortalizar dotes físicos. Nas pinturas sacras, dificilmente diferenciamos o homem da mulher, com exceção das madonas. Na própria obra mestra de Da Vinci, A Última Ceia, chega-se a confundir a figura de João com a de uma mulher. Os anjos Rafael, Miguel e Gabriel são representados com corpos adolescentes viris, que irradiam força e potência e rostos lindos de traços femininos com cabelos longos e cacheados. Desta forma, a adolescência é retratada com faces que inspiram ternura e docilidade em contraste com corpos guerreiros. Desde a Grécia Antiga, as figuras de jovens são enaltecidas, trazendo em seus corpos uma mensagem erótica implícita. O uso do corpo na adolescência não é, pois, uma criação do mundo contemporâneo. A adolescência não é um conceito clássico em psicanálise. As descobertas de Freud relativas à primeira infância vão estabelecer com a adolescência uma relação casual e direta, interrompida pela latência, sendo o construto psicanalítico sobre a infância concebido a partir da análise de jovens adultos. Para a psicanálise a sexualidade é bifásica. Os fenômenos da adolescência, embora manifestados com a chegada da puberdade, são edificados sobre os antecedentes da primeira infância. 2.2 Adolescência, um despertar Freud (1905), nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, determina que o despertar da adolescência é laborioso, por resgatar as primeiras manifestações da sexualidade, pelas transformações corporais, pela explosão endócrina e por todos 44 os lutos que o adolescente precisa viver. Este despertar implica em dois trabalhos básicos: o encontro com o real do sexo e o desligamento dos pais da infância. Aqui é importante apresentar a diferença que se encontra em alguns autores entre puberdade e adolescência. A puberdade se constitui com modificações de caráter orgânico e fisiológico, podendo ser determinada como um período de desenvolvimento. O dispositivo biológico é disparado no cérebro, provocando crescimento, aumento de massa corporal e aquisição da função reprodutora. No plano fisiológico manifesta-se nas meninas pelo desenvolvimento dos seios, pêlos pubianos e a menarca como início do ciclo menstrual. Nos meninos o alargamento do tórax modifica a silhueta, crescem os pêlos pubianos, aumenta o volume dos genitais e dos testículos, ocorrendo a primeira ejaculação. O cérebro passa por diversas transformações nesta fase. A Organização Mundial de Saúde estabelece o período da puberdade entre 10 e 19 anos; o Estatuto da Criança e do Adolescente determina para o púbere brasileiro a fase que vai dos 12 aos 18 anos. Freud nomeia a adolescência de puberdade, marca responsável por múltiplas mudanças tanto físicas como psíquicas, influenciando diretamente o comportamento adolescente. A chegada da puberdade irá refletir na vida afetiva, nos interesses, na interação social e nas futuras escolhas. Tomemos aqui uma passagem dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Ao mesmo tempo em que as fantasias claramente incestuosas são superadas e repudiadas, consuma-se uma das mais significativas e, também, uma das mais dolorosas realizações psíquicas do período puberal: o desligamento da autoridade dos pais, um processo que sozinho, torna possível a oposição, tão importante para o progresso da civilização, entre a nova geração e a velha. (FREUD (1905), 1969, p.234). Esta passagem não nos deixa dúvidas que o árduo trabalho da adolescência implica em um desligamento psíquico da autoridade paterna, para que sejam elaboradas novas escolhas tanto sexuais como profissionais. Este trabalho de desligamento é importante, não só para o adolescente em si mesmo, mas também para o caminhar da civilização. Ao referir-se à superação das fantasias incestuosas, Freud marca a adolescência como uma nova elaboração do complexo de Édipo. Desta forma, 45 pensar a adolescência do ponto de vista psicanalítico impõe uma articulação teórica na qual se possa encontrar uma referência. Para falarmos em um sujeito adolescente, esta referência é determinada pelo Édipo enquanto um conceito estruturante, pois adolescência em psicanálise só fará sentido se referenciada ao inconsciente. Os fundamentos da psicanálise tomam como base a sexualidade, e é em torno de seu eixo que Freud constrói um saber. Ao propor a sexualidade como infantil, define que esta é constitutiva do sujeito como uma disposição psíquica universal, pois é a partir dela que o sujeito advém. A possibilidade orgânica da genitalização coloca em questão o despertar das fantasias edípicas e o reordenamento da pulsão, metamorfoseando o corpo e o psiquismo. Tais transformações geram flutuações, onde o mais familiar dos objetos ou mesmo o próprio corpo perdem sua evidência, para ressurgirem como absolutamente estranhos. Este apagamento provoca no adolescente uma vacilação tanto narcísica quanto objetal. O posicionamento frente à partilha dos sexos marca uma condição neurótica para o adolescente, onde o próprio período da adolescência pode ser concebido como um sintoma enquanto tal. Frente à castração e ao impossível da relação sexual, o adolescente se depara com o seu desamparo, pois o Outro já não mais o sustenta. Para que haja o desligamento dos pais da infância, é necessário que o adolescente vacile, aparecendo sua precariedade, como falha no real. Para desligarse é necessário certo distanciamento, onde a aparente rebeldia pode muito mais estar a serviço do apelo aos pais que manifestem de alguma forma sua autoridade, na restrição de seu gozo. É Ícaro quem bem nos pode exemplificar. Dédalo, famoso arquiteto e pai de Ícaro, constrói asas de cera para escapar de Minos. Ícaro, embora advertido de perigos de voar tão alto, é embriagado pela liberdade e fascinado por seu novo poder. Alça vôo em direção ao sol, que consome suas asas e o faz mergulhar para a morte. Ícaro aposta na certeza de que a construção de seu pai não irá falhar, torna-se poderoso e voa para o Outro que não lhe sustenta, pois também é barrado. Sem um pai que o sustente, explode seu corpo nos rochedos. 46 A passagem ao ato retira o sujeito do registro simbólico e, ao perder a cadeia significante, escapa à simbolização; identificado com o objeto, entrega-se ao gozo incondicional. Em nosso cotidiano temos também nossos Ícaros, não mais com asas de cera, mas com suas motos, carros velozes, bebidas e drogas. Desafiando ou temendo a liberdade, explodem seus corpos, rompendo com o simbólico, saindo de cena, na passagem ao ato. A questão do Pai como função simbólica é suporte para o apelo adolescente em relação ao gozo que o invade. O pai embora também barrado, é por vezes impotente quanto a responder as questões da adolescência, mas é suporte imprescindível por suas referências primárias. Alberti (2004) enfatiza a necessidade do adolescente em relação à sustentação dos pais, e embora pareça paradoxal, a presença paterna é fundamental para que possam separar-se. A adolescência é um período mestre, de escolhas para a vida futura, e a primeira escolha é exercida na própria separação dos pais. Com as modificações na organização da família nos dias de hoje, também o lugar da sustentação paterna é abalado. Se outrora, embora paternalista, havia no pai o desejo de sustentação da vida de seu filho, atualmente pode se constatar, por vezes, a ausência desta sustentação. Para além das questões da genitalidade relativas à puberdade, a função paterna é de crucial importância nas questões relativas à alteridade. Ao abandonar determinadas identificações imaginárias, o adolescente poderá projetar diante de si algo que substituirá o narcisismo perdido de sua infância, tornando-se a construção de ideais e valores éticos fundamental para a adolescência. A passagem edípica sedimenta o Ideal do eu, como instância principal que irá assumir o papel de orientador dos projetos de vida, escolhas e metas. Essa passagem é citada no artigo Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), onde Freud escreve: “O que ele projeta diante de si como sendo o seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual era seu ideal.” (FREUD (1914), 1969, p.111). Assim, podemos inferir que é fundamental considerar a formação do Ideal do eu na adolescência. A construção de novos valores ocupa lugar de referência para a saída do narcisismo infantil. O adolescente fixado na cultura de seu próprio corpo 47 tem a vida psíquica prejudicada, acarretando um empobrecimento em suas trocas relacionais, e segundo Freud: “Onde não se forma tal ideal a tendência sexual aparece alterada na personalidade sob a forma de uma perversão.” (FREUD (1914), 1969, p.118). Freud (1905), em seus Três Ensaios, afirma que o comportamento sexual normal se desenvolve a partir de inibições psíquicas que funcionam como barreiras. As exigências dos ideais sublimados e morais vão reorientar a vida pulsional. Desta forma a realização de um ideal torna-se também fonte de prazer, promovendo o laço social e a inscrição no mundo profissional. Alberti (1999) aponta duas saídas para o sujeito adolescente: a própria neurose pela não constatação do desamparo fundamental e o árduo trabalho para elaborar as perdas necessárias e a construção de novas realizações. Freud, em seu artigo de (1913), Algumas reflexões sobre a psicologia escolar enfatiza o importante papel das figuras simbólicas como substitutas, na adolescência, da figura paterna. O mestre ocupa um lugar privilegiado na árdua construção da adolescência. Este belo e profundo texto é escrito por Freud para comemorar o 50º aniversário de fundação do colégio onde estudou dos nove aos dezessete anos, em Viena. O Sperlgymnasium e seus mestres foram referências na adolescência de Freud. De certa forma seu discurso pode ser considerado como autobiográfico na medida em que fala do adolescente Sigmund e da sua relação com os mestres. “É difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas ou pela personalidade de nossos mestres.” (FREUD (1913), 1969, p. 286). Freud fala da sua emoção após 41 anos ao encontrar seu “velho mestreescola”, e da importância do professor, não tanto pela função do magistério, mas pela sua função de suporte para o jovem. Ao afirmar que o caminho das ciências passava através dos mestres, assegura que não há aquisição de saber sem o Outro e que uma falha deste pode bloquear o acesso à construção de um saber. É nessa fase do desenvolvimento de um jovem que ele entra em contato com os professores de maneira que agora podemos entender a nossa relação com eles. Estes homens, nem todos pais na realidade, tornaram-se nossos pais substitutos. (FREUD (1913), 1969, p. 288) 48 Podemos inferir pelas palavras de Freud, que seu brilhantismo estudantil e sua vida dedicada à construção do saber, têm uma forte ligação com seus mestres como substitutos paternos. A degradação da autoridade paterna e a impossibilidade de encontrar substitutos na sociedade contemporânea geram não somente perturbações no adolescente, mas também conseqüências na própria sociedade. Lacan indica que o social pode assumir a função do pai. Frente à afirmação de que o sujeito se constitui no seio da cultura e da linguagem, é necessário questionar que amarras de ancoragem, como substitutos paternos, são oferecidas ao sujeito adolescente no mundo contemporâneo? Não cremos que a adolescência seja caracterizada por uma crise, pois isto nos levaria a pensar em uma abordagem bastante reducionista. Os fenômenos da adolescência que se escondem atrás das ditas “crises adolescentes” apontam para questões edípicas revividas no período da adolescência. A questão edípica intervém na determinação do tipo de escolha de objeto, nas identificações, na constituição do desejo. Tais questões estruturais são de crucial importância na constituição do sujeito adolescente. Algumas características do adolescente, tais como: padrões de relacionamentos interpessoais intensos, idealização, impulsividade, instabilidade afetiva, agressividade, isolamento, bem como a internalização de limites, são padrões também encontrados no conflito edípico e na vivência da castração. O interdito, a ordem e a lei necessários à entrada na cultura, conferem ao Édipo uma estrutura, uma organização central do sujeito e estão intimamente articulados com as questões da adolescência, à construção de ideais e ao acesso à vida em coletividade. Para maior compreensão do adolescente em uma visão orientada pela psicanálise, algumas referências teóricas clássicas se fazem necessárias. Serão abordados aqui o complexo de Édipo e a latência. Freud, em 1898, já dizia ser um engano pensar que a vida sexual se iniciava com a puberdade. A psicanálise vai apontar para a adolescência como um retorno à pré-genitalidade adormecida na latência. A adolescência vai direcionar para um reordenamento pulsional, e a uma nova imagem do eu. 49 Freud (1905) nos Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, apresenta o primeiro conceito psicanalítico da puberdade. Com a chegada da puberdade, operam-se mudanças destinadas a dar à vida sexual infantil a sua forma final normal. A pulsão sexual fora até então predominantemente auto-erótica; encontra agora um objeto sexual. Sua atividade até então se originara de diversas pulsões e zonas erógenas distintas, que, independentemente umas das outras haviam buscado determinada espécie de prazer como seu único objetivo sexual. Agora, contudo, aparece um novo objetivo sexual e todas as pulsões parciais se combinam para atingi-lo, ao passo que as zonas erógenas ficam subordinadas ao primado da zona genital. (FREUD (1905), 1969, p. 213). O desenvolvimento da sexualidade é situado em dois períodos importantes: a primeira infância e a adolescência. Em ambas as fases pode-se perceber, na concepção freudiana, a importância das funções fisiológicas e do corpo nos processos psíquicos, porém o corpo, para a psicanálise, toma o lugar de inscrição do desejo. 2.3 Édipo e adolescência Freud, em seu trabalho O mal estar na Civilização (1930), aponta para três fontes de sofrimento humano: a natureza como um poder superior, a fragilidade de nossos corpos e a inadequação das regras necessárias aos relacionamentos humanos quer na família, quer no Estado, quer na sociedade. A vida em coletividade implica em frustrações impostas pela sociedade, estando a redução das exigências pulsionais a serviço dos ideais culturais. O poder comunitário em oposição ao poder individual torna-se fundamental ao processo civilizatório. A justiça, a lei e a ordem, uma vez criadas, não podem ser violadas em favor do individual. A constituição da família e do trabalho forma a base da vida comunitária, onde a cultura totêmica dá lugar ao processo civilizatório. Desta forma, segundo a psicanálise, a civilização é incompatível com a ordem do desejo. As vicissitudes pulsionais são transformadas em grande parte pela sublimação, idealização, fraternidade e altruísmo. O viver em coletividade é possibilitado pela vivência edípica, pelo interdito, pelo acesso à ordem simbólica. 50 A adolescência muito nos parece falar deste mal estar, que tem sua origem no abdicar dos desejos edípicos incestuosos e hostis, em prol do viver em coletividade e da busca de ideais. Para maior entendimento da adolescência propriamente dita, faremos uma breve abordagem sobre o complexo de Édipo e a latência. A descoberta da diferença anatômica dos sexos irá delinear uma nova fase, a fase fálica. As pulsões agora são direcionadas para os órgãos genitais, embora não se tratando de uma genitalidade definida. O valor passa a ser o órgão anatômico masculino, tanto para o menino, como para a menina. O pênis passa a ser vivenciado como potência, instituído na ordem fálica. O binômio caracteriza-se pela posição castrado / não castrado. Assim o complexo de Édipo tem a marca de um dinamismo onde pai, mãe, criança e falo são peças fundamentais altamente investidas. O complexo de Édipo é considerado como um conjunto de desejos amorosos e hostis, que a criança vivencia em relação aos pais. Em sua forma positiva, os desejos hostis são direcionados ao progenitor do mesmo sexo e os desejos amorosos ao progenitor do sexo oposto. Em sua forma negativa apresenta-se inversamente. Muito raramente são apresentadas formas puras. As duas formas se mesclam em diversos graus, na forma completa do complexo. Segundo Freud, é vivido na fase fálica, declina no período da latência, sendo revivido na adolescência. A concepção do complexo de Édipo, em Freud, remete a três diferentes momentos de formulação no decorrer de sua obra. A primeira conceituação em relação ao Édipo é encontrada na Interpretação dos Sonhos (1900), no artigo Sonhos sobre a morte de pessoas queridas. Aqui, Freud ao analisar os sonhos sobre a morte dos pais, fala do desejo amoroso pelo progenitor do sexo oposto e do desejo hostil em relação ao progenitor do mesmo sexo. Desta forma, considera o complexo de Édipo como um conjunto de sentimentos, desejos e emoções da criança, que a orienta em relação aos pais, onde a característica principal está centrada na sexualidade infantil. A vivência edípica ainda é vivida subjetivamente, não caracterizando uma estrutura. A segunda conceituação surge no texto A psicologia de grupos e a análise do ego (1921), onde o complexo de Édipo possui um caráter mais dinâmico, com um conjunto de elementos que se constituem como interdependentes. Neste trabalho 51 surge o sentimento ambivalente de amor e ódio em relação a ambos os pais e, a saída do Édipo, com a transformação das catexias objetais em identificações. A terceira acepção aparece quando Freud, no texto Organização genital infantil (1923), fala da diferença entre o Édipo feminino e masculino, convertendo a castração no centro do Complexo. Os desejos incestuosos e hostis farão emergir o medo da castração. O menino teme a castração como realização de uma ameaça paterna, na menina a castração é vivida como um dano sofrido, ao qual procura reparar. Pela angústia da castração, o menino abandona o desejo incestuoso, e a interdição promoverá a entrada na cultura. Por estar vedado o acesso aos objetos primários, há uma regressão libidinal ao eu, onde este se identifica com os objetos proibidos. Neste processo, decorrente de uma perda, o eu torna-se semelhante e se apresenta a ele mesmo, como objeto de amor. São abandonados os vínculos primários, surgindo um reinvestimento libidinal a novos objetos. Consideramos o complexo de castração, vivido no conflito edípico, a referência principal para as questões em relação ao adolescente. O complexo de castração é marcado pelo símbolo de uma falta e pelo preenchimento de um vazio através do falo. A função paterna, a interdição, e o não acesso ao gozo, instituem a ordem simbólica, onde o falo irá preencher o vazio e organizar as relações. Com o acesso à linguagem, o desejo passa a ser nomeado, surgindo o símbolo em seu lugar. A castração simbólica permite a interiorização da lei, onde a criança se constitui como sujeito. Com o declínio do complexo de Édipo, o pai deixa de ser a lei, passando a ser o representante dela. Desta forma, o falo assim como a lei estarão fora da criança, da mãe ou do pai, mas no código e na cultura. A rigor, o complexo de Édipo, só terá sua resolução na adolescência, quando a possibilidade efetiva da genitalidade, permite o acesso a novos objetos, orientando as escolhas do adolescente. Segundo Lacan (1957-58) para que haja a compreensão do complexo de Édipo se faz necessário considerar três tempos, não cronológicos, onde o complexo de castração funciona como móbil. A partir da estrutura da metáfora, descreve a metáfora paterna como uma colocação substitutiva entre a mãe e a criança, um 52 significante que substitui o lugar da mãe. Este lugar constitui o ponto motor e essencial representado pelo complexo de Édipo. Descreve o primeiro tempo como uma relação onde a criança busca poder satisfazer o desejo da mãe, sendo o objeto de seu desejo. O sujeito passa a identificar-se, especularmente, com o que é objeto do desejo mãe e, para agradar a mãe é necessário e suficiente ser o falo. Para Lacan, “a relação da criança não é com a mãe, mas sim com o seu desejo, sendo um desejo de desejo”. (LACAN (1957/58), 1999, p. 205) O segundo tempo é marcado pelo momento em que o pai é pressentido como proibidor, sendo mediado no discurso da mãe. O pai intervém como privador não do filho, mas sim da mãe através do endereçamento de “Não integrarás o teu produto.” (idem, p. 209). Neste nível, o que retorna à criança é a lei do pai, concebida como privadora da mãe, ligando a criança ao primeiro aparecimento da lei, a lei do Outro, através da palavra do pai. O segundo tempo é caracterizado pelo pai onipotente, aquele que exerce a privação da mãe. É do terceiro tempo que irá depender à saída do complexo de Édipo. O pai intervém como real e potente, portador do falo que pode dar ou recusar. Assim passa a não mais ser o falo, mas a ter o falo, favorecendo a identificação com o pai, internalizado no sujeito como Ideal do eu. Este momento marca o declínio do complexo de Édipo. Desta forma, a metáfora paterna leva à instituição de algo que é da ordem do significante, internalizado como uma insígnia e será guardado, retornando na adolescência. Com a saída do Édipo, se instala a latência, período de grande importância para a adolescência. A latência já descortina um desligar-se, pois busca um saber que não está mais nos pais. Embora para Freud: “o encontro de um objeto é, na realidade, um reencontro dele” ((1905), 1969, p.229), este novo encontro é redimensionado pelo simbólico. A passagem pela latência opera uma mudança radical no direcionamento da libido e este redirecionamento aponta para a construção do saber. Como o acesso à genitalidade efetiva é impedido pela imaturidade orgânica, a satisfação pulsional estará redirecionada à construção intelectual. Aqui, o mecanismo da sublimação ocupa um papel fundamental. Observa-se uma dessexualização dos relacionamentos objetais e a predominância dos sentimentos de ternura, pudor, amizade como substitutos dos sentimentos eróticos. A aquisição 53 cultural e a conquista do mundo exterior passam a orientar um tipo de incorporação intelectual. É o tempo do esporte, do lúdico, das aquisições escolares, da iniciação artística. As reações hostis reduzem-se sensivelmente, sendo crescente a idealização dos vínculos. A latência pode ser considerada como uma moratória, que propicia um equipamento necessário às pulsões na adolescência. Possibilita um redirecionamento da energia pulsional para múltiplas atividades, impedindo a precocidade sexual, que seria devastadora para o aparelho psíquico ainda imaturo. A variedade de atividades de natureza sublimatória, descrita no parágrafo acima, permite que as fantasias edípicas sejam substituídas por outros investimentos. As realizações do período da latência representam uma pré-condição essencial para a chegada da adolescência. Pelo emprego do julgamento, da capacidade de abstração, dos sentimentos altruístas e da formação de novos vínculos sociais, o pensamento se estrutura com novos contornos. A chegada da adolescência indica o final da latência, com o despertar da sexualidade adormecida. 2.4 – Na travessia da imagem, a busca de novos objetos A adolescência é um momento determinante na estruturação psíquica, um tempo mestre que possui uma lógica própria. Envolve, como já dito anteriormente, um extenso trabalho de escolhas, pelo desligamento dos pais da infância, pelo encontro com o real do sexo e pela elaboração da falta no Outro. O corpo como imigrante em sua própria casa encontra-se no centro da maior parte dos conflitos do adolescente. As transformações da puberdade em pouco mais de três anos, transformam o corpo não somente pelo acesso à genitalidade, mas também pelo acréscimo de massa corporal em altura e peso. O adolescente não está frente a uma versão aumentada do corpo infantil, mas, diante a um corpo imaginário e desproporcional, que não mais corresponde a sua antiga imagem. A irrupção da sexualidade, interrompida pela latência, recoloca a questão da imagem até então construída. O trabalho de luto para aquisição de novos objetos 54 põe em jogo as moções pulsionais, levando o adolescente à utilização do corpo como suporte do discurso do Outro. A imagem corporal é, então, ultrapassada pelas intensas transformações da puberdade. A adolescência pelo refluir da libido narcísica, torna-se modelo de narcisismo por excelência. A psicanálise sempre se ocupou do campo narcisista, o que se faz claro na própria conceitualização do Édipo ao descrever o sujeito sobre uma organização que implica, segundo Bleichmar (1982), em uma lógica de preferência ou menosprezo, o desejo de ocupar o lugar privilegiado do outro e os atributos que deve possuir como meios para realizar tal desejo, o que se costuma denominar falo. Freud (1914), no artigo Sobre o narcisismo: uma introdução, mostra a importância do eu e sua relação com a pulsão. Propõe a libido como única e sexual onde o dualismo é marcado pelo investimento pulsional. O eu é tomado como objeto privilegiado de investimento. O amor pelo eu passa a organizar as pulsões autoeróticas. A adolescência é uma fase onde o eu, por se tratar de uma instância organizadora sofre pressão dos momentos maturacionais. O conceito de narcisismo, para a psicanálise, descreve uma condição psíquica, necessária e estruturante. No contexto metapsicológico é considerado pontos nodais, que entrelaça em si diversos conceitos. É no texto Sobre Narcisismo: uma Introdução que Freud (1914) formaliza sua construção. Descreve-o como uma condição psíquica caracterizada pelo investimento exagerado na própria imagem do corpo. Com o narcisismo, tudo estará no campo da significação do olhar daquele que pode outorgar reconhecimento com sua admiração. O narcisismo, enquanto um conceito psicanalítico, veio de certa maneira preencher uma lacuna no pensamento freudiano em relação à constituição do eu. Segundo Freud, o eu não existe no nascimento e sua constituição necessita de uma nova ação psíquica. Qual seria então esta nova ação que possibilita sua constituição? O processo pelo qual o sujeito assume a imagem de seu corpo como sua e se identifica com ela, Freud vai chamar de narcisismo. Entre o primeiro e o segundo dualismo pulsional, Freud elabora a noção de narcisismo, delegando ao eu um novo lugar. O narcisismo resultará da libidinização do eu, e podemos considerá-lo como uma marca teórica decisiva para levar a sexualidade ao seio do eu. Com o advento do narcisismo, o eu passa a ocupar um lugar privilegiado em relação à libido, que ora flui para os objetos e ora retorna ao 55 eu. O nascimento do conceito de narcisismo na psicanálise, deriva da inacessibilidade de Freud a certos pacientes, pela impossibilidade de transferência. Já nos trabalhos de 1910, A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão e Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, Freud, através das observações sobre o olhar, nos remete às questões do narcisismo e da erotização do corpo. Mas, é somente no texto de 1914, que descreve o seu conceito. Com o conceito de narcisismo, o eu vai desempenhar ao mesmo tempo o papel de fonte e objeto pulsional. O corpo passa então a ser matriz mediadora das relações afetivas, onde as trocas relacionais são marcadas por mediações simbólicas. O corpo torna-se imagem sexualizada e representação desta imagem. A adolescência, em função das modificações da imagem do corpo, torna o sujeito narcísico por excelência. A imagem ideal, até então sustentada pelos pais da infância, torna-se altamente ameaçada frente ao olhar do Outro. O distanciamento do universo infantil requer a elaboração de um luto, para que um novo estatuto corporal seja construído. A retração da libido narcisista torna-se então necessária, para que o adolescente não naufrague. Com o fim da infância, a antiga ilusão infantil é transformada em radical demanda de reconhecimento. Saindo da posição de amado, incondicionalmente, o adolescente tem a sua frente a difícil tarefa de amar, mas amar de uma nova maneira quase fantasmática, ou seja, amar o desconhecido. O corpo, na travessia da imagem, passa a ocupar um lugar de investimento onde o eu, sem dúvida, vai vacilar. Para Freud, a formação de ideais irá aumentar as exigências do eu, tornando-se o fator mais poderoso a favor do recalque e toma a sublimação, como saída para que estas exigências possam ser atendidas. Identificações anteriores são substituídas pela identificação com objetos abstratos tais como: valores, atitudes, ética. Os anseios do Ideal do eu, buscam diferentes formas de elaboração por um processo interrelacional com a realidade. O direcionamento da satisfação pulsional, por meio de objetos substitutos é, segundo Freud, o caminho para a pulsão desviar-se da perversão. Desta forma, podemos inferir que a formação do Ideal do eu promove o refluir da libido narcísica na busca de novos objetos, necessários à adolescência. A construção de ideais, a sublimação, e a busca do Outro são fatores preponderantes para o fortalecimento do eu. Ideais, valores éticos e morais ocupam lugares necessários ao refluir da libido narcísica. A busca da perfeição narcísica tão comum na adolescência, demonstra a dificuldade de transpor o eixo eu ideal / Ideal 56 do eu. A identificação com a imagem narcísica, reforçada pela sociedade contemporânea, mantém o adolescente em uma falsa imagem de perfeição. A castração simbólica não efetuada perpetua o falo no próprio corpo. A escolha de objetos na adolescência encontra-se intimamente relacionada com o processo de novas identificações. Assim, na busca de seus pares, temos as formações das “tribos”, onde a imagem é reafirmada. Na fidelidade aos pares o jovem busca o entendimento de si mesmo, formulando valores no seio de seu grupo. A fidelidade é a base na qual o adolescente busca verdades, na afirmação de seus companheiros. A transição da infância para a idade adulta possui dois pólos; por um lado o social solicita do adolescente uma série de comportamentos e assunção de papéis, por outro é necessária uma construção destes mesmos papéis. Na formação das gangues de adolescentes pode ser observado o quanto o corpo é importante. A musculação, a tatuagem, o uso do piercing são marcas identificatórias. Pela identificação corporal, são comuns os preconceitos, a discriminação de grupos opostos na formação das tribos. Góticos, clubbers, ravers, punks, hip-hop, skatistas, emos são alguns, dentre muitos agrupamentos que apresentam tendências identitárias. Geralmente, as tribos assumem um mesmo estilo em relação aos seus corpos, buscando uma aparência através de roupas, cabelo e uma série de acessórios que passam a fazer parte da estética grupal. A ritualização e o fanatismo são comuns nesta fase. Nestes fenômenos, vemos o corpo ocupando lugar de destaque. É na sua representação simbólica, que os grupos se identificam. Magreza, corte de cabelo, “armadura” de músculos, cabeça raspada, são características de identificação. As relações grupais geralmente, são modeladas por líderes, como substitutos de figuras parentais primevas, com os quais os membros se identificam pela aparência corporal. A questão da identificação, para a psicanálise, remete à falta, à incompletude, e à discordância do sujeito consigo mesmo. A necessidade de reordenamento das identificações infantis, na passagem de criança a adulto, leva o adolescente a rupturas de modelos infantis, fragilizando sua imagem. Lacan (1953-54) assinala a importância do Ideal do eu, entendido como uma introjeção simbólica, marcando o aprisionamento ao Outro. Outro como fundante, interiorizado por um signo, uma referência, medida da futura satisfação. 57 A identificação simbólica é de grande importância para a compreensão das questões na adolescência, pois aponta para o Outro, uma posição externa, como possibilidade de articulação do universo de identificações. As questões referentes ao narcisismo, no sujeito adolescente, se vinculam às oscilações do Ideal do eu, onde ao mesmo tempo em que confere sustentação, sofre imposições advindas do contexto social. O conflito adolescente liga-se, em parte à incapacidade de, a partir da identificação fundante, gerar respostas às solicitações sociais. A necessidade de remanejar antigas identificações gera respostas confusas e antagônicas. A adolescência pode ser considerada como paradigma dos impasses do sujeito, frente à confrontação com a incompletude. A sustentação, até então suposta pela criança no Outro, se desvanece. Ao constatar a inconsistência do Outro, ou seja, que o Outro também é faltoso o adolescente então, inicia um longo e árduo caminho de elaboração. O apelo ao Outro vai esbarrar na falta, falta esta que propicia o desligamento da autoridade paterna. A constatação do vazio torna-se o principal vetor para o seu desligamento. Consideramos a adolescência um ato de coragem, visto que, viver a adolescência implica em uma travessia árdua para novas realizações, até então desconhecidas. Os questionamentos adolescentes direcionam-se não só ao âmbito familiar, mas também a qualquer ordem institucional estabelecida (escola, sociedade, religião). As repetidas tentativas de separação dos objetos primários de amor, os pais, levam a busca de amizades íntimas e idealizadas geralmente do mesmo sexo, estabelecendo laços fraternos. A fraternidade e a amizade tornam-se a principal forma de vinculação, independente do sexo. A escolha de objetos na adolescência pode ser caracterizada por um lado pelo abandono e por outro o seu reencontro, sendo marcada por profunda incongruência. As escolhas são marcadas geralmente pela ambivalência. São momentos que oscilam entre sujeição-rebelião; delicadezagrosseria; espírito gregário-isolamento social; otimismo-desesperança; idealismomaterialismo; apego-infidelidade; aceitação-rejeição. Pela oscilação e ambivalência os afetos adolescentes são intensos, porém passageiros. São amizades profundas, exclusivas ou amores apaixonados. A paixão direcionada a pessoas mais velhas representa substituto paterno/ materno. 58 Os objetos na adolescência, raramente são definitivos, operando na realidade como fixações identificatórias do modelo narcísico, como forma de reeditar o passado no presente, articulando uma passagem necessária ao universo social. A necessidade de apreensão do mundo, numa dimensão extra familiar, leva o adolescente a identificações múltiplas onde o grupo ocupa lugar de destaque. O grupo oferece uma ancoragem, promovendo a adaptação a determinadas regras num consenso de aceitação mútua. Os impulsos de rebelião, oposição, resistência, a prática de excessos e a experimentação são condutas comuns em grupos jovens. As atuações em grupo, em nossa sociedade ocidental, podem representar ritos de passagem tão necessários na adolescência. O culto ao corpo pode ser considerado como forma simbólica de inscrição em uma cultura tão narcísica, quanto violenta. São comuns os grupos adolescentes voltados para a prática de lutas, artes marciais, onde o corpo ultra “malhado”, presentifica a chamada geração pit bull. Podemos considerar que as sociedades fundadas na transmissão oral, preservavam nos ritos de iniciação um lugar da adolescência. Aí eram encenados a morte da infância e o renascimento para a vida adulta. Estas sociedades possuíam rituais que marcavam simbolicamente a passagem da fase púbere, garantindo um lugar no universo adulto. Ritualizada, a passagem não implicava, nas sociedades tradicionais, os conflitos de nosso cotidiano. Segundo Saggesse (1995), na moderna civilização ocidental as freqüentes questões existenciais, aparecem ao sujeito como um conflito entre o individuo e a sociedade, marcados por bruscas rupturas que representam verdadeiros abismos para o acesso a um novo lugar no universo social. Os ritos de passagem, nas sociedades tribais, fundam-se na sincronia, não ocorrendo um longo hiato temporal ao qual o adolescente ocidental é obrigado a viver. As mutilações, máscaras, pinturas corporais são marcas que diferenciam simbolicamente os ritos e ainda vemos resquícios em diferentes culturas e religiões neste sentido. O cortar o prepúcio, o perfurar lóbulo da orelha e o septo nasal são marcas corporais que indicam inscrições simbólicas. Desta forma a marca corporal aponta para uma diferenciação e automaticamente para a agregação a um outro grupamento definitivo. Pela ritualização o sujeito é inscrito no grupo ao qual vai pertencer por toda a vida adulta, onde são ensinados códigos facilitadores de integração. 59 Em nossa sociedade existe um fosso que separa o comportamento infantil e as exigências do mundo adulto. Neste fosso, o adolescente busca seus próprios ritos de passagem. O adolescente na relação com o grupo, cria o lugar dos ritos de passagem. A cultura do corpo, tatuagens, piercings, a moda irreverente e bizarra são marcas de inscrição e diferenciação. O grupo, movido pelas relações entre o sujeito e objeto, é ponto de referência e iniciação, estabelecendo normas, costumes e códigos. É em torno do significante, enquanto certo número de palavras, jargão ou gírias que o grupo existe e se organiza, em uma linguagem intercambiável. Freud (1921), em seu artigo Psicologia de Grupo e análise do ego, compara o estado de hipnose e a formação de grupo, estabelecendo semelhanças. Este fenômeno é comum nas identificações grupais na adolescência. As aquisições individuais desaparecem temporariamente no grupo. O adolescente abandona seu ideal substituindo-o pelo ideal do grupo. Muitas vezes, o grupo é corporificado na figura de um líder messiânico. No espírito de grupo ocorre uma super identificação em massa, onde as regras são imperiosas. As atuações grupais, bem como as de seus integrantes, representam uma oposição às figuras parentais, apontando para enlaces fora do seio familiar. A dependência dos pais se transfere ao grupo, constituindo a transição necessária para o mundo externo. Estas condutas podem operar como mecanismo defensivo, frente à culpa inconsciente e ao luto pela infância não elaborado. A emergência de crises religiosas também é comum nas manifestações grupais. O adolescente vacila entre momentos de fanatismo místico ou ateísmo absoluto. Determinadas seitas religiosas cooptam adolescentes como seguidores de um líder salvador. São freqüentes os discursos sobre diferentes seitas, crenças, religiões, pela necessidade de identificação com imagens idealizadas e líderes religiosos. Em seu oposto encontramos atitudes materialistas, niilistas, desembocando num total ateísmo como forma compensatória e defensiva. Através de múltiplas experiências o adolescente busca uma nova imagem para si. Todas as formas de aproximação e afastamento são experimentos dos quais o adolescente lança mão, como objetos investidos pulsionalmente. O novo, ao mesmo tempo temido e desejado, imanta o olhar do adolescente. Na construção de uma nova imagem, ressitua objetos infantis, atualizados pela genitalidade. Neste caminho de transição, a retração da libido narcísica pode ser 60 compreendida como forma de eregir um novo estatuto que representa não só a sexualidade, mas também a possibilidade de inserção no social. 2.5 Adolescência: o refluir pulsional Na adolescência a sexualidade desperta e se transforma. Este despertar, nem sempre tranqüilo, necessita de novos engajamentos. Os jovens estabelecem códigos de comportamento, que lhes permitam uma sustentação simbólica. Nesta nova codificação o poder do olhar torna-se imperioso. Lacan (1964) no Seminário, livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, afirma no que se refere à dimensão escópica, na medida em que a pulsão dela se ocupa, o olhar tem função de objeto a. Afirma que a relação do olhar com o que se quer ver é como logro e sobre esta afirmação escreve: “O sujeito se apresenta como o que ele não é e o que se dá para ver não é o que ele quer ver. É por isso que o olho pode funcionar como objeto a, no nível da falta” (LACAN, (1964), 1985, p.102). Lacan delega ao olhar a dimensão de objeto a, objeto que a pulsão contorna em seu circuito. Toma o olhar como objeto da pulsão escópica, como um objeto ambíguo, pois ao mesmo tempo em que é perdido é reencontrado pela introdução do Outro. Para Lacan, o que o sujeito procura ver é o objeto enquanto ausência, e o que é visado no exibicionismo é a realização no outro. A descrição de Freud (1915), em seu artigo A pulsão e seus destinos, revela o erotismo do olhar onde o duplo olhar e ser olhado produz a erupção pulsional. Na obra de Freud são inúmeras as referências à importância do olhar na organização do aparelho psíquico. Dentre elas, podem ser citadas desde as técnicas iniciais de hipnose que colocavam em intercâmbio o olho e o olhar, as lembranças das imagens que inundam as elaborações oníricas, as histéricas da clínica de Charcot que pela encenação revelavam o oculto pelo recalque, ou seja, o desejo de serem olhadas. 61 O olhar se faz presente na sintomatologia. Na paranóia há o olhar persecutório, no exibicionista a espreita no olhar do outro, à cumplicidade de seu eu. O voyeur interroga pelo olhar, o que falta no Outro. René Spitz (1963) considera o olhar como um dos organizadores do eu. É através do olhar que o bebê começa a perceber, registrar e organizar o eu, muito antes de adquirir possibilidades motoras que permitam mobilizações e deslocamentos físicos. O olhar é considerado como um dos primeiros aparelhos de controle, conexão e contato com o mundo exterior. Este aparelho registra um momento fundamental na organização do eu, designado por Lacan como estádio do espelho. Ao ser inundado pelo olhar do outro, o prazer que transborda esta experiência, transforma o olhar num intercâmbio erógeno. Se o olho é o órgão de apreensão da realidade, é o olhar o primeiro objeto de desejo, podendo ser concebido como objeto primordial que transiciona entre o bebê e a mãe. O ver é função fisiológica, mas o olhar é objeto pulsional. O olhar, considerado como objeto a, longe de assegurar a visão é o que não deixa ver o objeto, produzindo o engano. O olhar, exterior ao sujeito, é o que advém do Outro. Freud em sua carta 75, de 14 de novembro de 1897, endereçada a Fliess, escreve a respeito de uma suspeita em relação a algo orgânico que poderia desempenhar importância no recalcamento. Articula a idéia de recalque à modificação do papel desempenhado pelo olfato nos animais. Segundo Freud, a aquisição da postura ereta no homem, operou um deslocamento de sensações, que antes eram normais em animais, e tornaram-se repulsivas para os homens. Atribui à bipedia, a substituição efetuada do olfato para a visão. Sua hipótese ressalta que zonas sexuais como a boca, o ânus e a garganta, ativas em animais, perdem a função para o homem. Desta mudança vão surgir os processos intelectuais tais como “a moral, a vergonha e coisas similares”. Freud vai estabelecer uma articulação entre o recalque e o declínio do uso do olfato nos homens. Ao adquirir a posição ereta, o homem, substituiu o olfato pela visão. Ao descrever o recalcamento nesta carta, Freud escreve: Dito em termos grosseiros, a lembrança atual cheira mal, assim como o objeto real cheira mal; e assim como afastamos nosso órgão sensorial (cabeça e nariz) com repugnância, também nossa pré-consciência e nosso sentido consciente se afastam da lembrança. Isso é o recalcamento. (FREUD (1897), 1969, p. 289) 62 Freud (1912) afirma em seu artigo Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor que a pulsão sexual desenvolve-se de múltiplos componentes e que alguns foram suprimidos, em função de sua incompatibilidade com os padrões estéticos culturais em função da aquisição da bipedia. A passagem do olfato para a visão vai estabelecer uma nítida distinção entre o instinto e a pulsão. O olfato passa a desempenhar um papel no funcionamento instintual, na cópula, para fins reprodutivos, no comportamento animal. A visão torna-se objeto primordial nas trocas afetivas entre os indivíduos, transformando a atividade sexual e, segundo Coutinho Jorge: Pode-se dizer que, da passagem do predomínio do olfato ao da visão, não é outra coisa que se produz senão a passagem do funcionamento instintivo ao pulsional, tão fundamental e muitas vezes mal compreendida na teoria psicanalítica. Falar de passagem, aqui, pode dar margem a mal-entendidos que devem ser evitados, sobretudo porque, antes dessa passagem não havia o humano enquanto tal. Esta passagem, na verdade, é o que funda o humano, ou melhor dizendo a possibilidade do humano advir. (COUTINHO JORGE, 2005, p.40) Podemos então supor que, nos primórdios dos escritos freudianos, a noção de pulsão sempre existiu com o evidente destaque atribuído à visão. Tanto Freud como Lacan, delegaram ao olhar um lugar de objeto privilegiado, ocupando o estatuto de objeto a para Lacan. Para Quinet (2002), o olhar é causa e objeto da pulsão escópica. É este objeto que separado do sujeito é o objeto perdido, objeto a, um dos suportes do desejo do Outro. O olhar é objeto pulsional por excelência, por mostrar a inconsistência e a evanescência do objeto a. Quinet (2002) fala do olhar como personagem do universo narcísico e aponta sua articulação com a sociedade contemporânea. Uma sociedade escópica, baseada no ver e ser visto, é o que hoje se apresenta. No lugar do cogito cartesiano penso logo existo, propõe o cogito da sociedade escópica sou visto, logo existo. A pulsão escópica confere ao olho a dimensão do tocar, do despir e do acariciar. Segundo o autor "o campo visual é ótico, certo, mas a pulsão sexual o torna háptico”. (QUINET, 2002, p.11) 63 A sedução articulada ao olhar na adolescência, além do prazer erógeno que a experiência desperta, é também uma "lembrança esquecida" de um outro olhar com o qual um dia o sujeito se identificou. A experiência do olhar se transforma num complexo interjogo onde o desejo está implícito. O olhar do outro significativo embute todo um conjunto de mensagens, valores, apreciações e discriminação que erotizam o corpo, satisfazendo o desejo narcisista na essência de sentir-se único e desejado, através de um olhar que assim o ateste, pois outrora o olhar organizador da mãe se tornou repleto de significantes primordiais com o qual a criança se identificou. Na adolescência, como réplica do estádio do espelho, o sujeito vai se reapropriar da imagem corporal sob o olhar do Outro. A sexualidade interrompida pela latência, tem agora possibilidades concretas de efetivação e o corpo erógeno passa a ter status de primeira grandeza. A imagem corporal é afetada de múltiplas formas, tanto em relação aos seus atributos como em relação ao seu funcionamento. A semelhança com o corpo adulto marca a importância do sexo oposto. O corpo que ao mesmo tempo se torna desejante e desejado, sujeito e objeto, reafirma seu estatuto de valor simbólico. Navegando entre o semelhante e o diferente, o familiar e o estranho, o adolescente busca ancoragem na figura ideal do Outro, figura que não mais o sustenta. É sob este olhar, que seu próprio olhar não mais se reconhece. O corpo, pelo pulsional na adolescência, se engaja no olhar do Outro e tudo no âmbito do olhar e ser olhado é de crucial importância. O olhar se dirige a objetos bizarros. A forma dark ou colorida de roupas, a mini saia curtíssima, os piercings, a coloração exótica dos cabelos, o rosto pálido ou excessivamente maquiado buscam seus pares. A tatuagem, cuja dor é suplantada pelo prazer de ser admirado, é objeto de desejo. Todo um arsenal de acessórios corporais torna-se possibilitador de imantar o olhar do Outro. Os jogos de sedução do "ficar" privilegiam da exibição de corpos musculosos à magreza bulímica ou anoréxica, extrapolando o padrão convencional. A estruturação da imagem corporal é posta à prova para além do olhar dos pais que até então a sustentaram. Na especularidade a exibição encontra seu fundamento. O adolescente frente ao olhar do outro se faz aparecer como desejável, permitindo o exercício fálico. O corpo a ser esculpido e modelado, busca uma 64 possível saída para a demanda do Outro. As salas de musculação espelhadas, lotadas de jovens, muito bem podem falar da pulsão escópica. "Espelho, espelho meu, existe alguém mais lindo, mais sarado do que eu?" A recente pesquisa realizada pela Latin Panel e publicada no jornal “O Globo” de 17 de novembro de 2007, mapeou o crescimento do consumo efetuado por adolescentes brasileiros. Sob o título Jovens em casa, gastos em alta, a pesquisa concluiu que as despesas de famílias com filhos adolescentes são maiores do que a própria renda mensal.Os eletrônicos de última geração, as roupas de grife, os tratamentos para o embelezamento corporal e as mensalidades com academias de ginástica, segundo a pesquisa promovem um endividamento em famílias com jovens entre 13 e 18 anos.As famílias têm registrado, atualmente, maiores gastos com tratamentos de beleza em seus filhos.Segundo vários depoimentos o número é cada vez maior de adolescentes que procuram tratamentos estéticos tais como: celulites, estrias, gorduras localizadas. A clientela em clínicas de estética é composta em mais da metade por adolescentes. As lojas de roupas para jovens, proliferam a cada dia, tendo no jovem o principal consumidor. Lojas chegam a criar promoções denominadas de Festa Teen. O resultado da pesquisa aponta para um consumo de 38% em roupas, 28% em artefatos corporais de higiene pessoal, em comparação com os gastos em educação que apontam para apenas 22%. Estes percentuais sugerem claramente uma prevalência em nossa cultura do embelezamento corporal em detrimento da educação de nossos jovens em suas famílias. O adolescente é, na atualidade, considerado como uma considerável fatia na economia de mercado, gerador de lucro e poder econômico. O apelo ao consumo, com campanhas direcionadas ao corpo adolescente, incentiva a inflação narcísica, tão prejudicial quanto perversa para nossos adolescentes. A pesquisa foi realizada através de um mapeamento mensal de 44 milhões de lares em todo o Brasil durante o período de um ano. (junho / 2006 a maio / 2007). Vivemos predominantemente em uma cultura narcísica, onde a beleza e a perfeição corporal são instauradas, juntamente a uma precariedade simbólica que atinge a todos. Se o adolescente vai requisitar o simbólico como em nenhum outro momento, conseqüentemente será mais atingido por esta precariedade. Ao lhe faltar o simbólico, é no imaginário que vai buscar sua sustentação, tornando-se o ponto 65 nevrálgico de uma cultura predominantemente narcísica, por sua necessidade de retomada da construção de uma imagem corporal e de um simbólico que lhe permita tal reconstrução. Desta forma para melhor articularmos as questões da adolescência e a cultura do corpo, dedicaremos o terceiro capítulo deste trabalho ao aprofundamento dos conceitos do estádio do espelho e do narcisismo. 66 CAPÍTULO 3. O espelho que não se quebra Freud ao se referir à adolescência nos traz a expressão reforço pulsional. Após a dissolução do complexo de Édipo, fenômeno central da sexualidade na primeira infância, em função do recalcamento, o sujeito entra na latência. Podemos chamar a latência, conforme já citado no capítulo 2, um tempo de calmaria pulsional, com o advento da pulsão epistemofílica. A sexualidade, por seu caráter bifásico, faz da adolescência um recomeço do que foi interrompido pela moratória da latência, através do reforço das pulsões. Lacan ,em 1964, escreveu o prefácio da peça sobre adolescentes O despertar da primavera, do dramaturgo alemão Wedekind quando encenada em Paris. Fazendo referência à peça, cria a expressão “o despertar dos sonhos”, correspondendo ao despertar edípico na adolescência. Nominé (2001) no artigo A queda do anjo lança mão da tradução grega para o termo adolescente, evocando a adolescência como uma questão de algazarra e tagarelice e, portanto de significante. Se unirmos as expressões de Freud, Lacan e Nominé podemos dizer que a adolescência é um tempo lógico caracterizado por um despertar de sonhos, ocasionado por um reforço pulsional que causa, sem dúvida, muita algazarra. Quando falamos de um despertar barulhento, falamos também de sexualidade, pois esta tem presença ruidosa. Onde há Eros, há barulho. A adolescência é um tempo de retomada do narcisismo e do estádio do espelho, em função do abalo sofrido pela perda da imagem corporal infantil. O adolescente necessita readquirir o júbilo narcísico que lhe dê uma nova unidade, em seu reencontro com a sexualidade. Embora a retomada do narcisismo e do estádio do espelho não seja exclusiva da adolescência, é o sujeito adolescente aquele que ocupa, de forma privilegiada, este lugar de passagem. A estabilidade até então conferida pelos pais da infância é rompida, ficando as demandas adolescentes incondicionalmente referidas às questões da imagem corporal. O investimento que vinha sendo exclusivo ao narcisismo infantil, agora tem novas possibilidades já que, o real do corpo passa não só a permitir, mas também a pedir uma relação com o outro, onde a sexualidade e a libido clamam por um novo objeto. 67 O texto freudiano de 1914, Sobre o narcisismo: uma introdução, marca sobremaneira um tempo na construção de Freud, oferecendo ao eu um novo estatuto: o seu caráter sexual através da teoria da libido. Desta forma, para falarmos da adolescência e sua algazarra, se faz necessário buscar um suporte teórico que possa fundamentar este despertar. Quanto à pulsão, dela já fizemos abordagem no primeiro capítulo. Assim, neste capítulo aprofundaremos os conceitos de estádio do espelho em Lacan, o narcisismo em Freud e a sublimação tanto em Freud como em Lacan. 3.1 O estádio do espelho O espelho fascina, quanto a isto não temos dúvida de seu irresistível poder. Objeto de atração, o espelho perdurou através dos tempos até os nossos dias. O belo livro de Dany-Robert Dufour (1999), Lacan e o espelho sofiânico de Boehme além de abordar a influência da filosofia de Jacob Boehme na construção lacaniana do estádio do espelho, também narra a origem do espelho, enquanto um objeto. Segundo Dufour, o espelho surge no século XVI, passando a ser um precioso objeto de desejo que, ocupava lugar de destaque e moda na nobreza. É Catarina de Médicis quem vai construir o famoso Gabinete dos espelhos após a morte de Henrique II. O espelho nos séculos XVI e XVII passa a ser usado em objetos de valor tais como: jóias, vestimentas e adornos. A partir do século XVII a burguesia a ele tem acesso como representação de status e poder. Sua presença em residências denotava uma aproximação à corte, passando a caracterizar um estilo de vida da burguesia abastada. Com o decorrer dos anos, o espelho se torna um objeto de uso cotidiano, o que não lhe subtraiu o aspecto de fascínio. A palavra estádio tem sua origem no grego stádion, que significa uma medida itinerária de comprimento na Grécia antiga, equivalente a 41,25 m. Também de stádion eram chamados os campos de jogos esportivos da antiguidade. Nesta época, os estádios eram pistas onde se disputavam corridas e, por este motivo, o termo passou a nomear o que circundava a pista. 68 O vocábulo espelho vem do latim speculum, gesso branco e lustroso. Pode também ser compreendido em diferentes significações: objeto que reflete pessoas e coisas e, num sentido figurado pode ser tomado como modelo, imagem, representação e reflexo. Se unirmos os dois vocábulos, podemos supor que a expressão estádio do espelho faz referência a algo que demarca uma área, delimitando-a, a partir do reflexo de uma imagem ou modelo exterior. A teoria do estádio do espelho marca, pontualmente, o trajeto da construção lacaniana, no que diz respeito ao campo do imaginário. Em psicanálise o caráter estruturante de estádio começa a ser descrito por Freud no conceito da teoria da libido. Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), introduz a noção através dos estádios pré-genitais e genital, em função de uma modalidade de relação com o objeto e suas zonas erógenas. A cada zona correspondia um tipo de atividade erótica. Após algumas reformulações, vai definir quatro modalidades de relação: o estádio oral, o anal, o fálico e o genital, sendo este último marcado pela puberdade e entrada na vida adulta. A teoria dos estádios vai repercutir em diversas escolas da psicanálise. Por esta razão, produz certa deformação de seu conceito, levando alguns teóricos a associá-la à noção de desenvolvimento, com idades demarcadas, o que nunca foi a proposta freudiana. É Lacan que, em seu retorno a Freud, vai dar o estatuto de estrutura à concepção de estádio, através da teoria do estádio do espelho, acentuando que não se trata de uma fase transitória a ser superada por outra posterior, mas sim uma operação psíquica com marca ontológica e, portanto, comum a todos e a cada um em particular. O estádio do espelho marca a passagem do sujeito por uma operação onde a primitiva formação do eu é elaborada. Com este conceito, Lacan buscava diferenciar o eu da psicologia evolucionista, baseado na percepção-consciência, posicionando a questão do eu e o corpo na vertente imaginária. 69 Segundo Roudinesco: A partir de então, o estádio do espelho, nada tem a ver com um verdadeiro estádio ou com um verdadeiro espelho, nem sequer com uma experiência concreta qualquer. Torna-se uma operação psíquica ou mesmo ontológica, pela qual se constitui o ser humano na identificação com o seu semelhante,quando percebe em criança sua própria imagem no espelho (ROUDINESCO,1994, p.126). Roudinesco (2006) refere-se no capítulo 2 do livro A análise e o arquivo, à gênese da noção do espelho em Lacan, como o poder do arquivo apagado, um arquivo que marca o percurso trilhado na construção e evolução do conceito lacaniano. Este percurso inicia na conferência pronunciada, em parte, por ocasião do XIV Congresso da IPA, em Marienbad, da qual não existe versão original. Em relação ao poder do arquivo, a autora nos diz que este é tanto mais forte quanto mais ausente for. Refere-se a uma conferência inacessível, cujo conteúdo desapareceu. Assim a teoria do estádio do espelho é reescrita como algo que não possui arquivo. Este apagamento lhe conferiu status e poder, em função de seu acesso ter sido deixado por Lacan no conjunto de sua obra. O estádio do espelho tornou-se então, quase um sinônimo de Jacques Lacan. Onde quer que se fale em estádio do espelho, lembraremos de Lacan. Lacan (1953) em Função e campo da fala e da linguagem se refere ao Inconsciente, como “um capítulo apagado que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira” (LACAN (1953), 1998, p.260). Mas este apagamento pode ser resgatado nos “documentos de arquivo” que ficaram na infância. Podemos então inferir que, o conceito do estádio do espelho nos remete ao próprio arquivo apagado do sujeito, o seu inconsciente, que quanto mais recalcado e ausente, mais forte se presentifica na formação do sintoma. O conceito de espelho surge para Lacan a partir de 1933, com o estudo da filosofia. Lacan freqüentava os seminários de Alexandre Kojève, iniciando-se na filosofia de Hegel. Kojève propunha uma passagem do eu penso cartesiano para o eu desejo. Os estudos de Kojève também continham reflexões elaboradas a partir da tese de Koyré (1929), sobre a filosofia de Jacob Boehme. As reflexões filosóficas sobre a consciência de si, levam ao aprofundamento da leitura da segunda tópica freudiana, em relação à constituição do eu. As formulações de Freud sobre a constituição do eu apontavam para duas vertentes. Na primeira, o eu se eregia como 70 uma diferenciação progressiva do Isso, que em contato com a realidade, era responsável pela defesa. A segunda apontava para um sentido oposto, ou seja, pretendia estudar não um eu dotado de autonomia, mas centrado na gênese da identificação. A primeira descrevia um eu, instrumento capaz de adaptar o indivíduo à realidade, a segunda mostrava um eu estruturado por imagos retiradas do Outro. O psicólogo Henry Wallon cunhou a expressão prova do espelho para denominar a experiência pela qual a criança frente ao espelho passa a distinguir seu próprio corpo da imagem refletida. Para Wallon, esta operação ocorria em uma etapa de desenvolvimento indispensável no que se referia à apreensão do espaço sensorial infantil. O estudo walloniano foi publicado no artigo de 1931 sob o título, Como se desenvolve na criança a noção de corpo próprio. Embora Lacan tenha recorrido, em parte, a Wallon para elaborar a expressão título, sua concepção em muito se diferenciava deste. Em relação à omissão do nome de Wallon, nas conferências proferidas por Lacan, Roudinesco (1998) esclarece que esta atitude, estaria ligada à desarticulação da terminologia de qualquer dialética natural, para transformar-se em uma operação psíquica, estando desta forma mais próxima do conceito de narcisismo em Freud. O afastamento de Wallon torna-se nítido à medida que Lacan vai descrever o estádio do espelho pela via do inconsciente, onde o mundo especular se exprimia pela identidade primordial do eu, através de imagos, ou seja, de representações inconscientes estruturadas na relação primeva da criança com o Outro. O estádio do espelho é considerado um marco na construção de Lacan, pois ele mesmo afirma nos Escritos que, o espelho foi o primeiro pivô de sua intervenção na psicanálise, apresentando sua elaboração como a vassourinha graças a qual, entrara no reduto psicanalítico. Em 1936, na conferência da Sociedade Psicanalítica de Paris, apresenta o conceito do estádio do espelho. Aborda o momento estrutural onde a criança, entre os seis e dezoito meses de vida, se reconhece na imagem do outro. A identificação com esta imagem vai propiciar uma ilusão de completude contrastada com sua imaturidade orgânica, vivenciada no despedaçamento do corpo morcélè do autoerotismo. A esta imagem ilusória, Lacan faz corresponder a vertente imaginária, matriz constitutiva do eu. Nesta mesma época, retoma o tema na conferência do XIV Congresso Internacional da IPA, em Marienbad. Em sua apresentação após falar por alguns minutos, é interrompido por Ernest Jones sob a alegação de tempo esgotado 71 para sua fala. Embora já fosse reconhecido na França como um pensador de destaque, aos olhos da IPA, segundo Roudinesco “Lacan ainda não era Lacan“ (2006, p.32). Não suportando o tratamento recebido no referido congresso, não entrega o seu texto para a publicação nas atas. Ao que se supõe, o artigo foi perdido, restando apenas as anotações feitas por Françoise Dolto, por ocasião da primeira conferência. Em 1938, Lacan retoma a importância do imaginário na estruturação do sujeito, em um artigo para a Encyclopédie francaise, abordando as relações familiares, texto que foi editado no livro Complexos familiares, de 1985. A versão definitiva é apresentada no XVI Congresso Internacional de Psicanálise em Zurique sob o título de O estádio do espelho como formador da função do eu – tal como nos é revelada a experiência psicanalítica (1949). Este texto passa a fazer parte dos Escritos em 1966. Em Formulações sobre a causalidade psíquica (1946), Lacan afirma que o fenômeno psíquico tem uma causalidade também psíquica e que, aquilo que chamamos de corpo é uma causalidade provinda da imago, a partir do estádio do espelho. Assim, vai descentrar o eu de qualquer consciência em relação a um corpo organismo, afastando-o da concepção que o identifica com uma síntese de funções orgânicas. O eu passa a ser concebido a partir de uma síntese subjetiva e em relação a esta construção escreve: A história do sujeito desenvolve-se numa série mais ou menos típica de identificações ideais que representam os mais puros dentre os fenômenos psíquicos por eles desenvolverem essencialmente a função da imago. E não concebemos o eu senão, como um sistema central dessas formações, sistema que é preciso compreender à semelhança delas, na estrutura imaginária. (LACAN (1946), 1998, p.179). O corpo, no domínio da imago, torna-se sempre ficcional, não estruturado a nenhuma materialidade. No corpo correlato à imago, há o predomínio do campo imaginário por sua pregnância visual. A imago, ao romper com o orgânico, permite à criança em sua incoordenação e precariedade maturacional dos primeiros meses de vida, antecipar uma imagem do eu. Lacan considera que a teoria da Gestalt ocupa um papel importante na construção da imagem. O termo alemão gestalt tem o significado de forma, aparência ou conformação. A forma gestáltica assumida pelo eu, na identificação no 72 estádio do espelho, remete a uma aparência, marcando o caráter de alienação e desconhecimento do eu. Frente à experiência especular, a criança toma como sua a forma do outro que a sustenta. Não se trata apenas de uma unidade corporal que passa a ocupar um espaço, mas também de uma identificação onde o corpo passa a ser correlato a uma imago inconsciente. Em relação à gestalt e à imagem do corpo Lacan comenta: Pois a forma total do corpo, pela qual o sujeito antecipa numa miragem a maturação de sua potência, só lhe é dada como Gestalt, isto é uma exterioridade em que decerto essa forma é mais constituinte que constituída, mas em que acima de tudo, ela lhe aparece num relevo de estátua que a congela e numa simetria que a inverte, em oposição à turbulência de movimentos com que ele experimenta animá-la. (LACAN (1946), 1998, p.98) A gestalt referida por Lacan simboliza a permanência mental do eu, em seu aspecto ortopédico e alienante da construção imaginária. A antecipação da imagem pelo outro provoca na criança um engessamento frente à sua própria incoordenação. Várias são as fontes em que Lacan vai beber na construção do estádio do espelho. Os estudos da etologia comprovavam através de experiências com animais, a reação desencadeada frente a uma imagem, como o exemplo da fêmea do pombo e do gafanhoto gregário. Nestas pesquisas o que chama a atenção de Lacan é a predominância visual nas modificações operadas nas espécies. Os estudos de Louis Bolk sobre embriologia, comprovando a pré-maturação do nascimento em seu caráter de imaturidade motora, as experiências observadas por Charlotte Bühler, na especularidade do transitivismo infantil, também contribuíram para o pensar lacaniano na construção da teoria do estádio do espelho. Acoplando a estes estudos, a segunda tópica e o conceito de narcisismo em Freud, sem dúvida, formaram um solo fértil onde Lacan formula sua teoria. Quando Freud elabora a segunda tópica, tinha como meta apontar para a excentricidade do sujeito em relação ao eu. Lacan se preocupa com a leitura inadequada feita dos escritos freudianos, enfatizando um eu autônomo. Desta forma, vai distinguir dois termos relacionados ao eu: je e moi. Para uma maior compreensão da teoria do estádio do espelho se faz necessário comentar esta diferença. 73 Lacan no Seminário, livro 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise escreve: “[Eu] não é o eu, o sujeito não é o indivíduo.” (1954/55, 1987, p.9). O [Eu] é descentrado, porque dividido pela incidência do significante, referindo-se ao que é da ordem do inconsciente, escapando às certezas do eu. O [Eu], então, passa a se expressar por je, sujeito do inconsciente. Moi vai designar o eu enquanto uma síntese especular pelo somatório das identificações imaginárias, a partir da imagem especular. Ao moi, Lacan se refere como “mestre dos erros” e sede das ilusões, lugar que se funda no desconhecido e ao mesmo tempo ligado às certezas nas quais o sujeito se reconhece como eu. A distinção dos significantes je e moi, afirma a não coalescência entre os dois termos. Em relação ao moi, Lacan observa que “Ele é uma outra coisa – um objeto particular dentro da experiência do sujeito. Literalmente, o eu é um objeto que preenche uma certa função que chamamos de função imaginária.” (LACAN (1954/55), 1987, p.62). A teoria do estádio do espelho vai referir-se à constituição do eu (moi), como a raiz do imaginário. Caracteriza-se pela operação psíquica na qual o eu se constitui a partir da identificação primordial da criança com o outro semelhante. Esta identificação vai suprir a prematuração vivenciada na incoordenação motora dos primeiros meses. Ao se ver refletida no outro,a criança percebe neste reflexo uma completude até então desconhecida. Até o momento especular, a vivência corporal é marcada pelo despedaçamento do corpo “morcélè”. A imagem do outro gera na criança uma identificação com o que vê, o que lhe confere uma referência de si mesma, referência constitutiva do imaginário. Aqui se faz importante ressaltar não existir a necessidade de um espelho concreto, na medida em que a visada do outro semelhante, exerce o efeito especular constituinte. Todo comportamento do outro que ofereça uma resposta desempenha o papel de espelho. A imagem totalizante do outro, outro de si mesmo, produz duas reações: o júbilo e a agressividade. O júbilo corresponde ao controle motor a partir da unificação produzida pela imagem e, é assim descrito por Lacan: Este acontecimento pode produzir-se, (...) a partir da idade de seis meses, e sua repetição muitas vezes deteve nossa meditação ante ao espetáculo cativante de um bebê que, diante do espelho, ainda sem ter o controle da marcha ou sequer a postura ereta, mas totalmente espreitado por algum suporte humano ou artificial, supera numa azáfama jubilatória os entraves 74 deste apoio, para sustentar sua postura numa posição mais ou menos inclinada e resgata, para fixá-lo, um aspecto instantâneo da imagem. (LACAN, (1949), 1998, p. 97) Lacan usa a interessante expressão Aha – Erlebnis para designar a mímica expressada pela vivência de gozo, experimentada pelo bebê no momento de apreensão de sua própria imagem. É um momento de atividade intensa, pleno de contentamento, onde a criança testemunha a sua primeira conquista, que embora imaginária, é o que lhe oferece suporte a novos investimentos. A despeito da imaturidade, é o olhar que sinaliza o júbilo da percepção integrada do corpo. A integração antecipa no bebê uma unidade fundamental às pulsões, até então autoeróticas. O júbilo operado pela imagem totalizante traz certa calmaria pulsional pelo tamponamento da falta. Lacan afirma que a jubilação é a cobertura da falta propiciada pela imagem. O júbilo, pelo tamponamento da falta, aponta para o que é da ordem do engodo, no momento da assunção da imagem. Se a unificação promove o júbilo, também vai promover outra reação na qual se formará a raiz da agressividade. Lacan nos diz que o corpo do auto-erotismo, despedaçado, se mostra regularmente nos sonhos, quando o movimento da análise “toca num certo nível de desintegração agressiva do sujeito.” (LACAN (1949), 1998, p.100). Freud, em seu trabalho sobre o narcisismo, chama a atenção para o fato de que, por ocasião do nascimento só existiam as pulsões auto-eróticas e aponta para a necessidade de uma ação unificadora para que o eu possa existir. Tanto para Freud como para Lacan, o início da vida é marcado pelo caos pulsional, caos formador da matriz revelada na angústia e na constante ameaça ao homem. É a este caos, que o narcisismo e a imagem especular vão contornar. Porém a imagem unificada terá sempre como pano de fundo, a ameaça do despedaçamento. O texto freudiano de 1914, Sobre o Narcisismo: uma Introdução, é considerado como um dos mais frutíferos, pois vai sedimentar a futura segunda tópica e o segundo dualismo pulsional. A concepção do artigo sobre o narcisismo se deu no período da primeira Guerra Mundial o que nos faz supor que Freud além de ter tempo disponível também pensava nas raízes da agressividade entre os homens. O estádio do espelho em seu momento inaugural é constituído pelo júbilo da apreensão da imagem unificada. Porém, a mesma imagem tomada pela pulsão como objeto de amor se faz ameaçadora, pois o eu após a apreensão de sua imagem passa a rivalizar com ele próprio. O transitivismo especular estabelecido 75 entre o eu e seu duplo torna-se mortífero pela própria necessidade inerente à separação. Freud (1905) já afirmava que o sadismo era o componente agressivo da pulsão sexual que se havia tornado independente e era desviado para o mundo externo como agressividade, passando a indicar a exteriorização da pulsão de morte. A dialética especular, ao implicar na separação do objeto e na exteriorização da agressividade, será mediada pela estrutura do significante, permitindo o estabelecimento dos laços sociais e a constituição de alteridade. A agressividade é, portanto, correlata à identificação narcísica e sendo uma determinante estrutural, a torna presente em qualquer relação com o outro, marcado por uma tensão subjetiva originada da deflexão da pulsão de morte. Lacan aponta para uma oposição dinâmica entre a libido narcísica e a libido objetal e a sua relação com a agressividade. A este respeito escreve: Mas a doutrina estabelece também a oposição dinâmica que eles procuram definir entre essa libido e a libido sexual, quando invocaram instintos de destruição, ou até mesmo de morte, para explicar a evidente relação da libido narcísica com a função alienante do [eu], com a agressividade que dela se destaca em qualquer relação com o outro, nem que seja da mais samaritana ajuda. (LACAN (1949), 1998, p. 102) A agressividade em sua relação com o narcisismo é considerada a manifestação da experiência subjetiva por sua própria constituição presentificada nas relações entre os sujeitos como “intenção de agressão” e “como imagem de um desmembramento corporal”. A intenção agressiva, segundo Lacan, pode ser exemplificada em manifestações da experiência analítica, nas relações familiares e na brincadeira infantil. Lacan (1948) no texto A agressividade em Psicanálise explica a noção de agressividade como uma tensão correlata ao narcisismo, circunscrita ao devir do sujeito, pela via do complexo de Édipo, permitindo ao sujeito transcender a agressividade instaurando a lei, com sentimentos de ordem e respeito realizadores de uma assunção afetiva ao próximo. Este movimento já fora descrito por Freud (1913) em Totem e Tabu, na dimensão subjetiva do assassinato do pai da horda que, de forma mítica neutraliza o conflito através da instauração dos laços entre irmãos. Desta forma, a entrada na cultura, cujo passe advém do declínio do complexo de Édipo, tende a reduzir no eu sua característica agressiva. Este ultrapassamento em prol da espécie tem em si os efeitos sublimados do Édipo, 76 formando a origem do processo de subordinação do homem pela cultura, em sua articulação com a linguagem. Porém, a estrutura narcísica, irredutível, mantém a tensão agressiva em toda vida que comporte exigências culturais. A transformação do eu narcísico, em sua inserção na cultura, sempre implicará em um quantum de agressividade oriunda das complexas relações de rivalidade recalcadas pelo complexo de Édipo. De acordo com Lacan: É em todas as fases genéticas do indivíduo, em todos os graus de realização humana em sua pessoa, que encontramos esse momento narcísico no sujeito, num antes em que ele deve assumir uma frustração libidinal e num depois em que ele transcende a si mesmo numa sublimação normativa. (LACAN, (1948), 1998, p.121) Em relação aos períodos descritos nesta citação, o autor considera a puberdade como uma das fases em que a agressividade se faz presente. Neste momento de metamorfose da libido, o eu ameaçado regride ao narcisismo, promovendo o retorno da libido objetal ao próprio eu. Temos, então, a adolescência como um tempo de transformação, em função do conflito que emerge pelo retorno dos conflitos edípicos, predispondo a manifestações da agressividade. A agressividade como uma manifestação subjetiva na adolescência parte da função formadora das imagens do sujeito onde, as imagos passam a representar as intenções agressivas. São imagens ameaçadoras relativas à castração, à mutilação e a devoração, imagens que Lacan agrupa como correlatas ao corpo despedaçado. A agressividade em relação ao próprio corpo vai se manifestar na futura relação com práticas sociais tais como: a circuncisão, as modificações e alterações corporais efetuadas pela via de práticas cirúrgicas estéticas, a tatuagem e, até a moda. Embora as tatuagens, historicamente possam ser consideradas como ritos de passagem em algumas culturas, hoje é uma prática difundida entre os jovens. Assim, podemos pensar que as tatuagens feitas nas bordas corporais, são marcas pulsionais com as quais o sujeito adolescente busca representar a própria agressividade originária. As tatuagens, ao recobrirem certas partes do corpo com novos significantes, apontam para uma ressignificação do imaginário corporal na busca da unificação narcísica articulada ao simbólico. O corpo para a psicanálise é correlato à imago e, portanto possuidor de uma anatomia imaginária. Ao torna-se unificado, pela especularidade, torna-se um duplo, ganhando uma conformação anatômica, independente de sua estrutura objetiva. 77 Freud (1923) em seu texto O ego e o id, afirma que o eu é corporal, não como uma entidade de superfície, mas para além, ele próprio é a projeção desta superfície. Embora derivado de sensações corporais, nascidas na superfície, é efeito de representações e identificações, o que nos permite afirmar o seu lugar de ilusão e errância pulsional. A imagem de si mesmo vista no outro, marca a vertente mortífera, pois, o sujeito tendo sua imagem vista no outro rivaliza com aquela, dando origem à agressividade. Lacan, em relação à agressividade e ao corpo do auto-erotismo, faz referências às pinturas de Hieronymus Bosch, pintor flamengo do século XIV, considerado mestre do simbolismo em sua época. Em seu famoso tríptico O jardim das delícias terrenas, exposto no museu do Prado, em Madri, Bosch retrata as danações humanas como a morte, o medo e agressividade, através de órgãos e membros disjuntos, objetos parciais que ganham vida própria, expressando o pavor da desintegração do auto-erotismo. Assim como nos quadros de Bosch, o terror do despedaçamento surge quando o sujeito é ameaçado em seu narcisismo, voltandose para a agressividade. É importante frisar que, para a psicanálise, a agressividade é estruturante e articulada ao imaginário faz parte da estrutura narcísica. Pela identificação alienante, a estrutura narcísica ao mesmo tempo em que inclui o Outro, o exclui, visto haver entre o corpo e a imagem, uma discordância. Embora o momento inicial do espelho constitua um triunfo jubilatório, também vai corresponder a um eu rivalizando consigo mesmo. A tomada da imagem pela pulsão, como objeto de amor, implica em um estranhamento de ser tomado por ela como objeto. Esta tensão da apreensão da própria imagem no outro, ou seja, entre o eu e o duplo, é descrita por Freud no texto de 1919 O estranho, também podendo ser observada nos quadros clínicos de paranóia. Para que a separação do Outro ocorra é necessária à estrutura significante, possibilitadora do estabelecimento de laços, operando a articulação entre o imaginário e o simbólico. Desta maneira o estádio do espelho além de ser uma operação estruturante do eu, funda um lugar para o engate do simbólico. Para além de ser apenas uma experiência onde o eu se precipita, só se torna possível porque há um suporte simbólico, No jogo especular entre a criança e o outro, é o Outro que a sustenta, aquele que confere significado para o que é visto. Segundo Lacan o estádio do espelho é um drama. Um episódio fundante aproximado do patético, onde o trágico se faz presente. Este drama se desenrola 78 entre a vacilação da insuficiência (imaturidade motora), para a antecipação (imagem unificada pelo contorno ortopédico), gerando a marca ilusória que acompanhará o sujeito em sua estrutura. A este respeito Lacan, escreve: “Assim o rompimento do círculo do Innenwelt (mundo interno) para o Unwelt (mundo externo) gera a quadratura inesgotável dos arrolamentos do eu.” (LACAN, (1949), 1998, p.100). A passagem do mundo interno para o externo é vivida como uma dialética temporal. O tempo da apreensão da imagem torna-se atípico porque, devido ao drama da insuficiência para a antecipação, o eu se constitui quase como num “túnel do tempo”, ou seja, num futuro anterior. Para Lacan esta dimensão espaço-temporal é impar no estádio do espelho. A operação psíquica do espelho também comporta um dinamismo libidinal, onde a identificação à imagem produz uma transformação ativa no sujeito. A libido, até então investida auto-eroticamente é dirigida para o exterior. Freud, já em 1914, afirmava que a teoria da libido se estruturava na via da economia visto que, quando o investimento da libido no eu excedia a uma determinada quantidade,se fazia necessário uma nova direção. O excesso pulsional é direcionado para o mundo externo. A libido, então, se torna objetal para depois retornar ao eu. Lacan vai comentar este dinamismo como presente no estádio do espelho e no narcisismo, no texto de 1946, Formulações sobre a causalidade psíquica: As possibilidades de identificação com essa forma, se assim posso dizer, recebem uma contribuição decisiva, que irá constituir no homem o nó imaginário e absolutamente essencial que, obscuramente e através de inextricáveis contradições doutrinais, a psicanálise designou admiravelmente, no entanto, pelo nome de narcisismo. (LACAN (1946), 1998, p.187) O estádio do espelho na teoria lacaniana vem reafirmar a importância dada por Freud ao narcisismo para fundamentar o campo do imaginário e a constituição do eu. No espelho, o sujeito se funda na vertente imaginária, solo a partir do qual o simbólico vai operar através da linguagem. 79 3.2 O conceito de narcisismo Podemos afirmar, tomando os escritos de Freud, que a ação do narcisismo inaugura o nascimento de eu, enquanto um objeto privilegiado pelo investimento da libido. Este momento inaugural configura uma etapa intermediária localizada entre o auto-erotismo e o amor objetal. O investimento da libido, em que o eu é captado como objeto, vai ser denominado por Freud de narcisismo. O conceito de narcisismo foi, sem dúvida, o salto decisivo no pensamento freudiano trazendo ora modificações, ora acréscimos à metapsicologia. Sabemos que a sexualidade sempre foi a “viga mestra” na obra de Freud e, o conceito de narcisismo veio de certa forma preencher uma lacuna em relação à constituição do eu. Até a sistematização conceitual do narcisismo o eu, conforme já dito, era considerado um pólo de defesa e autoconservação, não sendo abarcado pela sexualidade. É o narcisismo que vai alçar o eu ao estatuto da sexualidade. Freud, em seu texto de 1914 Sobre o narcisismo: uma introdução, nos afirma que o eu não existe no nascimento. Até então o que existia eram as pulsões autoeróticas em sua essência fragmentadas e dispersas que, caracterizavam o autoerotismo como um estado original de sexualidade em que a pulsão se satisfaz, parcialmente, sem recorrer a um objeto externo. A esta satisfação Freud se referia como prazer no órgão e considerava o “extrato sexual mais primitivo”. Como já dito anteriormente, no capítulo 1, frente à dispersão do autoerotismo, o eu necessita de uma ação psíquica para constituir-se. Qual seria, então, esta nova ação possibilitadora de sua constituição? Ao processo pelo qual o sujeito assume a imagem de seu corpo como sua e com ela se identifica, Freud vai chamar de narcisismo. Entre o primeiro e o segundo dualismo pulsional, a noção de narcisismo é elaborada, delegando ao eu um novo lugar. O narcisismo resultará então na libidinização do eu e podemos considerá-lo como marca teórica decisiva para levar a sexualidade ao seio do eu. 80 A partir de sua experiência clínica, Freud chega a impasses e a questão conceitual do narcisismo se impõe como uma subversão do significado do eu até então. A construção do conceito de narcisismo derivou de uma inacessibilidade de Freud a certos pacientes pela impossibilidade da transferência. Freud, até então, orientava o seu pensar em torno da neurose e não da psicose. Na época também lhe causava preocupação as construções de Jung sobre a libido. Jung abordava as doenças mentais a partir de uma ótica diferente de Freud, centrando sua pesquisa nas esquizofrenias. A pesquisa de Freud se dirigia à neurose, à sexualidade e também à noção de libido. Sua descoberta do inconsciente foi fundada nos sintomas neuróticos que, revelavam uma forma desviada de satisfação sexual. A partir da análise e estudo das psicoses denominadas por Freud de parafrenias, surge um novo desafio que era articular a estrutura das psicoses à teoria da libido. Jung postulava a idéia de uma libido única, não sexual e generalizada, defendendo o conceito de introversão. Desta forma a transformação da realidade característica nas psicoses, era resultado de uma metamorfose no mundo interior do sujeito, noção que segundo Lacan: (...) vê a teoria analítica se transformar, em Jung, num vasto panteísmo psíquico, série de esferas imaginárias que se envolvem umas nas outras que conduz a uma classificação geral dos conteúdos, (…) enfim do que Jung chama os arquétipos. (LACAN (1953/54), 1983, p.141) Freud sempre pautou o seu saber, na experiência empírica a partir de sua clínica e desta forma não poderia acolher esta via generalizada como uma explicação plausível. Para ele, a explicação de Jung, ainda não diferenciava as neuroses das psicoses visto que, em ambas se operava uma retração da libido. Para Freud a retração da libido no eu, no adulto, poderia ser encontrada em qualquer indivíduo e, para que isto acontecesse bastaria uma dor, frustração ou doença. No caso da psicose havia também uma retração, mas principal diferença era que no caso da neurose a realidade era substituída pela fantasia, enquanto na psicose havia uma perda da realidade sem que a fantasia, atuasse como substituição. Na psicose o sujeito criava uma nova realidade. Assim, foi no caminho da construção da teoria da libido e no estudo da psicose que Freud chega ao conceito de narcisismo. 81 Ao estudarmos o conceito de narcisismo, concluímos que antes do texto de 1914, Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud já percorria suas trilhas. Por considerarmos este conceito de extrema importância para o tema desta pesquisa, resolvemos rastreá-lo na obra de Freud. Este rastreamento nos levou a perceber seu valor, pois o conceito de narcisismo já se descortina em 1905, é sistematizado em 1914 e a partir deste ano perdura nos textos freudianos até o final de sua obra. No texto de 1905, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud em diferentes momentos, se refere ao narcisismo. No primeiro ensaio intitulado As aberrações sexuais analisando o objeto sexual dos invertidos, afirma que este é uma espécie de reflexo da natureza bissexual do indivíduo. Em nota de rodapé acrescida em 1910, observa que os invertidos, nos primeiros anos da infância, atravessavam uma fase que, embora curta, era de intensa fixação. Quando ultrapassada esta fase identificam-se com uma mulher, geralmente a mãe, tomando a si mesmos como objeto sexual. Partindo de uma base narcísica, procuravam um objeto para amar tal como eram amados por suas mães na infância, definindo suas escolhas de objeto como narcísica. Ao discorrer sobre a teoria da libido, no terceiro ensaio As Transformações da Puberdade contrasta à libido de objeto à libido do eu ou narcísica, afirmando ser o eu um “estado de coisas original” da primeira infância. Deste estado original surgem manifestações posteriores da libido, embora persistam os investimentos libidinais no eu “em seus elementos essenciais”. Assim, Freud deixa claro que o narcisismo é um estado que não se apaga no sujeito por sua força de origem. Na adolescência, em função de alterações provocadas por sua chegada, podemos destacar a primazia das zonas genitais e o processo de escolha de objeto como mudanças específicas. Em relação à escolha objetal, esta é influenciada e recebe sua direção de acordo com a infância revivida na adolescência. A escolha pode ser feita por um desvio dos pais para outros objetos de amor de forma anaclítica, ou tomando a si mesmo como objeto de amor e encontrando-o em outra pessoa, de forma narcísica. No artigo de 1910, A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão, Freud vai descrever a cegueira histérica como uma forma de perturbação psicogênica do campo visual. Ainda que, na vertente do primeiro dualismo pulsional, o eu não estava alçado ao campo da sexualidade, porém Freud já supunha que o 82 eu, ao perder o seu domínio para o órgão da visão, ficava totalmente à disposição da pulsão sexual, visto que “(…) o eu se recusa em ver qualquer outra coisa, agora que o interesse sexual em ver se tornou tão predominante”. (FREUD (1910), 1969, p. 202) Freud descobre que um órgão direcionado a fins perceptivos, pode se comportar como um genital na medida em que através de alterações passa a exercer um papel erógeno. Suas observações sobre o olhar apontam para a questão da erotização do corpo e, portanto do narcisismo. Neste mesmo ano através do estudo Leonardo da Vinci e uma lembrança da infância (1910), aborda as raízes do homossexualismo masculino e evoca o mito do Narciso ao se apaixonar pela própria imagem. Freud fala de um tipo de identificação ante a perda de um objeto, quando o eu se transforma à imagem e semelhança daquele. Neste estudo ainda não estabelecia uma nítida distinção entre o auto-erotismo e o narcisismo, embora já destacasse uma modalidade de escolha objetal em que o eu e o outro não se diferenciam. Afirma que o amor pela mãe, chega a um tempo em que não mais pode ser consciente, sucumbindo ao destino do recalque, fazendo referência ao declínio do complexo de Édipo. Desta forma, o menino coloca-se no lugar da mãe, através da identificação, tomando a si mesmo como um modelo a partir do qual efetuará a escolha dos novos objetos de seu amor. Vai definir homossexualidade como uma forma de amor segundo o modelo do narcisismo, onde o homem vai amar figuras substitutas de si próprio, na infância, amando-os da maneira que a mãe o amou. Embora Freud já pontuasse em seus textos referências ao narcisismo, é o caminho do fundamento sexual da psicose que o faz mergulhar nas questões narcísicas. Assim vai elaborar um minucioso estudo do livro autobiográfico As memórias de Schreber, publicado em 1903. Somente sete anos após a sua publicação, o livro atrai a atenção de Freud, tomando-o como base para o estudo de 1911 Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia, vindo a se transformar em um de seus mais famosos trabalhos sobre a paranóia: o conhecido Caso Schreber. Schreber era um famoso magistrado em sua época sendo considerado um jurista de renome. O delírio paranóico do Presidente Schreber testemunhava a regressão narcísica da libido em direção ao eu. Sua megalomania continha uma forma 83 delirante de imortalidade. Neste delírio a sua transformação em mulher e o seu acasalamento com Deus, davam início a uma nova raça de homens realizando a sua missão redentora da humanidade. A importância do estudo de Schreber, embora tenha contribuído em muito para o estudo da paranóia, tornou-se imprescindível para que Freud chegasse a formalizar o conceito de narcisismo, três anos depois. O próprio Freud passa a admitir que já possuía uma compreensão do papel desempenhado pelo desejo homossexual na paranóia e declara que a pesquisa passou a dirigir a sua atenção para: “(…) um estádio do desenvolvimento da libido entre o auto-erotismo e o amor objetal. Este estádio recebeu o nome de narcisismo”. (FREUD (1911), 1969, p. 82) Passa então a propor o narcisismo como uma passagem onde o sujeito começa a tomar a si e ao seu próprio corpo como objeto de amor, para então se dirigir a uma escolha objetal que não ele mesmo como objeto. Segundo Freud, algumas pessoas se fixam por um longo tempo no narcisismo e, por esta demora transportam para estádios posteriores suas características. Desta maneira, os sujeitos homossexuais nunca conseguiram se emancipar totalmente deste estádio e suas escolhas objetais são feitas de acordo com a sua semelhança. Aqui o narcisismo vai apontar para um ponto de fixação das chamadas neuroses narcísicas. A paranóia vai carrear uma fixação no estádio do narcisismo e Freud assevera que: “(…) o retrocesso do homossexualismo sublimado para o narcisismo constitui medida da quantidade de regressão característica da paranóia”. (Freud (1911), 1969, p. 96-7) Cabe aqui ressaltar a interessante construção de Quinet (2002) sobre o caso Schreber: Diante do espelho o sujeito Schreber, vestido com seu adorno feminino, abandona-se a uma atividade erótica confessadamente satisfatória, malgrado obrigatória, ao oferecer-se em espetáculo para fazer gozar o Outro divino. Nessa experiência transexualista, ele produz a situação do estádio do espelho em que constitui um eu ideal com sua imagem travestida para captar o olhar do Outro. Feminilizado no espelho, ele tenta se fazer objeto de seu gozo. (QUINET, 2002, p. 133-4) O estudo autobiográfico de Schreber traz grande contribuição ao conceito de narcisismo, pois além de demarcar a distinção entre auto-erotismo e narcisismo e 84 sua intermediação entre libido erótica e amor objetal, não nos deixa dúvidas de que o narcisismo é uma dimensão fundamental sem a qual estaríamos na esquizofrenia. O narcisismo se faz necessário como a ação que dará ao corpo sua unidade primordial, Urbild. O que Freud nos deixa como legado, em seu estudo de Schreber, é que se o narcisismo é estruturante e necessário, não é suficiente, pois, caso contrário, estacionaríamos na paranóia. Tal qual Narciso, Schreber faz júbilo e êxtase do reflexo de sua imagem especular e, portanto alienante. Frente ao imaginário se faz necessário adicionar o campo do simbólico para que aquele possa organizar-se e ter sentido. Schreber carece de uma estrutura simbólica, possibilitadora da ordenação do real e do imaginário. O fracasso constitutivo na formulação simbólica se reflete na emergência de suas crises delirantes, aparecendo, preponderantemente, em seus diálogos com Deus. Segundo Freud, a formação delirante é uma tentativa de restabelecer a realidade, como um processo de reconstrução. Na análise que faz de Schreber nos diz que, o desligamento da libido não é, em si próprio, o fator preponderante da paranóia, tendo a mesma, um desligamento peculiar e característico. Na maioria das vezes, após o desligamento, a libido liberada procura imediatamente uma ligação substituta e, até que esta seja encontrada, a libido represada torna-se origem de tensão e alterações de humor. Ao afirmar que, a maioria dos casos de paranóia exibe traços de megalomania, conclui que a libido liberada vai vincular-se ao eu, sendo utilizada para o seu engrandecimento. Em relação à paranóia escreve: Disto pode-se concluir que, na paranóia, a libido liberada vincula-se ao ego e é utilizada para o engrandecimento deste. Faz-se assim um retorno ao estádio do narcisismo (que reconhecemos como estádio do desenvolvimento da libido), no qual o único objeto sexual de uma pessoa é seu próprio ego. Com base nesta evidência clínica, podemos supor que os paranóicos trouxeram consigo uma fixação no estádio do narcisismo, e podemos asseverar que a extensão do retrocesso do homossexualismo sublimado para o narcisismo constitui medida da quantidade de regressão característica da paranóia. (FREUD (1911), 1969, p.96-97) Lacan (1957-58), no Seminário livro 5: As formações do inconsciente, tece considerações em relação ao caso Schreber , o Nome-do-Pai enquanto uma função simbólica e a sua forclusão. Pela falta de uma sustentação da lei, o que se materializa é a intervenção maciça do real, o que segundo o autor é a marca de sua psicose. Em relação aos seus delírios descreve dois pontos. Inicialmente existem 85 vozes que falam na língua fundamental, cuja característica é a de ensinar o código ao sujeito. Em Schreber, estas mensagens são feitas de palavras que, em suas alucinações, são articuladas sobre um neocódigo proveniente do Outro. Por outro lado, as mensagens recebidas são mensagens interrompidas, começos de ordens tipificadas por frases que não terminam, dissociando a mensagem do código. Segundo Lacan a dissociação ocorre pela abolição do discurso paterno em sua origem, quando este não é integrado à vida do sujeito. A intervenção do discurso paterno é o que do simbólico produz coerência, a auto-sanção que retorna ao sujeito na forma de uma lei. Desprovido da intervenção, Schreber se mantém preso ao real e ao imaginário, desvinculado da necessária articulação simbólica. A este respeito Lacan escreve: É nisso que se resume a intervenção do discurso paterno quando é abolido desde a origem, quando nunca é integrado na vida do sujeito, aquilo que produz a coerência do discurso, a saber, a auto-sanção mediante a qual, havendo concluído seu discurso, o pai retorna a ele e o sanciona como lei. (LACAN (1957-58), 1999, p. 212) No texto de 1914, Sobre o narcisismo: uma introdução, o conceito de narcisismo vai ser sistematizado no conjunto da obra freudiana. Freud introduz o conceito, retomando a questão das psicoses e esquizofrenias, passando a construir um novo ponto de vista para a teoria da libido. Mantendo o caráter dualista através das noções de libido do eu e libido de objeto, eleva o eu à categoria da sexualidade estabelecendo o equilíbrio necessário entre o eu e o objeto em função da economia libidinal. A leitura do texto nos indicou quatro eixos que se mesclam: a constituição do eu, a teoria da libido, o amor e a forma pela qual o narcisismo se atrela às pulsões. A teoria da libido vai sustentar a crítica a Jung, já abordada anteriormente. Freud nos traz um impasse em relação à teoria das pulsões ao discutir a libido. Com o surgimento do narcisismo o eu passa a ser investido pela libido. Assim surge um novo questionamento: qual seria o destino da libido quando é retirada dos objetos? Tomando como base a megalomania, concluiu que a libido objetal, defletida, se dirige a um eu. Esta regressão dá a Freud o exato modelo do narcisismo primário e a base para o narcisismo secundário. 86 A fim de ilustração, toma o corpo de uma ameba e seus pseudópodes em seu mecanismo de alimentação. Tal qual a ameba através de seus prolongamentos, a libido se dirige aos objetos (libido objetal) para se retrair ao eu (libido narcísica). Com o conceito de narcisismo o primeiro dualismo pulsional deixa de ter sentido. Aliás, Freud já assinalara que o mesmo não passava de uma hipótese especulativa de construção a ser abandonada. Desta forma as pulsões do eu e as pulsões sexuais perdem sua classificação. A partir do narcisismo o que toma a cena é a libido, que em seu dinamismo eu e objeto vai indicar a forma pela qual a pulsão se presentifica no psiquismo. É, portanto, na dialética da libido que o eu se torna o objeto primordial oferecido à pulsão. O eu, sexualizado pela pulsão, torna-se aquele que vai durante toda a vida investir nos caminhos do amor. Talvez por este motivo Freud em seu texto de 1908 Escritores criativos e devaneios, ao comentar que na fantasia de alguns escritores o aspecto do herói sempre se faz presente, já apontasse um sinal revelador da vulnerabilidade do eu com a seguinte frase: “Sua majestade o Ego, o herói de todo devaneio e de todas as histórias.” (FREUD (1908), 1969, p. 155). Ao final do segundo capítulo do texto do narcisismo, Freud vai referir-se à atitude afetuosa dos pais para com seus filhos como uma revivescência ao seu próprio narcisismo abandonado. Os pais se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições a seus filhos, oferecem à criança todos os privilégios que não tiveram. Na fantasia dos pais, a morte, a doença e os infortúnios da vida nunca atingirão seus filhos. A criança será como outrora os pais se imaginavam, “(…) centro e o âmago da criação – ‘Sua majestade o bebê’.” (FREUD, (1914), 1969, p. 108). Através dos filhos os pais tentam concretizar seus sonhos dourados, ao que Freud vai comentar: No ponto mais sensível do sistema narcisista a imortalidade do eu, tão oprimida pela realidade, a segurança é alcançada por meio do refúgio na criança. O amor dos pais, tão comovedor, e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior. (FREUD (1914), 1969, p. 108) A idéia de um narcisismo relacionado à formação do eu, sugere o narcisismo primário. À medida que, posteriormente o investimento passa a incidir nas representações de objeto, transforma a libido narcísica em objetal. O retorno da 87 libido ao eu, após ter investido nos objetos externos vai caracterizar o narcisismo secundário. Freud passa a distinguir dois tipos de escolha objetal: o tipo anaclítico e o tipo narcísico. Nestas duas escolhas são apontados dois caminhos, apresentados como formas de amor. O tipo anaclítico descreve a escolha do objeto sexual na forma de relação com a pessoa que um dia foi encarregada da proteção, alimentação e dos cuidados iniciais. Geralmente esta pessoa é a mãe ou um substituto. No tipo anaclítico, amase a mulher que alimenta e o homem que protege. O tipo narcísico descreve uma escolha que toma a si mesmo como objeto de amor. Neste tipo ama-se “o que se é, o que se foi, o que se queria ser ou alguém que foi parte do seu próprio eu”. (FREUD (1914), 1969, p. 107) Ao relacionar o narcisismo à constituição do eu e ao amor, Freud reorganiza a principal questão defendida em toda a sua construção: a teoria da sexualidade infantil. No texto Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914) são introduzidos os conceitos de eu ideal e Ideal do eu, pontuando a necessária articulação do campo imaginário ao campo simbólico, abordando a constituição do sujeito em seu ingresso na cultura. Freud neste mesmo artigo faz referência ao conceito de sublimação distinguindo-o da idealização. Estes conceitos serão abordados mais especificamente nos itens 3.1.1 e 3.1.2. do terceiro capítulo. Freud (1913-1914), em seu texto Totem e Tabu, escreve sobre o significado do totemismo e sua estreita relação com os tabus, abordando o tema do narcisismo. Descreve-o como um processo de retração da libido no eu e sua manifestação através de atitudes e crenças oriundas da onipotência de pensamento. Neste mesmo texto descreve formas pelas quais o homem tende a visualizar o universo através de três fases: a animista, a religiosa e a científica. Em relação à primeira, o homem atribui a si mesmo a onipotência e na segunda a Deus. Considera o caminho da ciência capaz de desligar o homem de sua onipotência. Mesmo assim, embora com diferentes intensidades, resta ao homem um núcleo de crença onipotente e este resto se faz às expensas do narcisismo. Embora afirme que ainda não possa descrever totalmente a fase narcisista, suspeita que este tipo de organização nunca será totalmente abandonada. O investimento libidinal em objetos 88 exteriores não abole o núcleo narcisista que perdura por toda a vida. Na abordagem feita em Totem e Tabu, tanto a onipotência do pensamento infantil como a dos povos primitivos, são consideradas como “provas em favor do narcisismo”. O tipo de pensamento da fase animista corresponde à narcisista, onde os atos psíquicos tornam-se supervalorizados e elevados a um grau extraordinário. Na conferência XXVI (1916/17) A teoria da libido e o narcisismo, Freud se reporta a Karl Abraham em seus estudos sobre a demência precoce, levantando o questionamento sobre o destino da libido quando retirada dos objetos. A resposta aponta para um retorno da libido ao eu como fonte da megalomania. A partir desta conclusão passa a compreender um traço da psicose relacionado com a vida erótica normal, nomeando esta forma de retorno da libido ao eu como narcisismo, na qual “um adulto trata seu próprio corpo com todos os mimos que usualmente são dedicados a um objeto sexual externo” (Freud (1916/17), 1969, p.485). Afirma que o retorno da libido ao eu não constitui um evento excepcional e que o narcisismo constitui uma situação universal e originária de onde o amor objetal se desenvolve, o que não implica em seu desaparecimento. O texto freudiano de 1916 não nos deixa dúvidas quanto a permanência do narcisismo em toda a vida do sujeito e, em especial na adolescência, tempo em que a libido retorna ao eu. Em Contribuições à Psicologia do Amor III, O Tabu da Virgindade (1912), Freud escreve sobre o narcisismo das pequenas diferenças como um tipo de hostilidade presente nas relações humanas de forma a sobrepujar o mandamento de amor ao próximo o que nos faz deduzir um grau de agressividade que é decorrente no narcisismo. Sendo o narcisismo um momento de identificação à imagem do Outro, onde a noção de duplo comporta a indiferenciação, tudo aquilo que toca como diferente o sujeito em seu núcleo narcísico, vai conseqüentemente gerar agressividade. O próprio mito de Narciso nos fala desta indiferenciação, quando Narciso ao apaixonar-se pelo seu duplo, nega Eco e todos os outros a seu redor. Neste mesmo artigo cita que a rejeição narcísica das mulheres pelos homens encontra sua raiz na castração e que a fase masculina da menina, manifestada pela inveja do pênis, está muito mais próxima do “narcisismo original do que o objeto de amor” (Freud (1912), 1969, p.190), marcando mais uma vez a questão da diferença em relação ao narcisismo. Assim, tomando o poema de Caetano Veloso, podemos afirmar que “Narciso achava feio o que não é espelho”. 89 Esta abordagem de certa maneira, volta a aparecer no texto de 1927 O futuro de uma ilusão. Não restam dúvidas que a civilização foi o caminho encontrado pelo homem para se perpetuar. Mas nesta escolha o homem necessitou “pagar um preço”, e a civilização custou caro ao narcisismo. Segundo Freud o processo civilizatório impõe ao homem privações que lhe causam sofrimento sendo “a vida difícil de suportar”. Tais restrições geram um estado permanente de ansiedade causando grave prejuízo ao “narcisismo natural”. Acreditamos que a expressão “narcisismo natural” não faça referência a nenhum inatismo, mas sim a uma estrutura comum a todos os homens que perdura por toda a vida. O prejuízo imposto pela civilização ao narcisismo provoca uma reação de forma que, quando a autoestima é ameaçada ela exige “consolação” para que o homem possa lidar com os horrores do desamparo. Assim a “crueldade do destino”, nas palavras de Freud, será de certa forma apaziguada pelo anseio de um pai ou um Deus. Frente às ameaças, o eu vai requisitar ao externo algo que possa lhe restituir a imagem ilusória da perfeição para sempre perdida. Aqui podemos localizar todo o desamparo sofrido pelo adolescente em função de sua auto-estima ameaçada no não reconhecimento da própria imagem que se transforma, tornando-se necessário a demanda de algo externo que lhe restitua a imagem, o que torna o sujeito adolescente uma presa fácil da cultura do corpo. Ainda em 1927, Freud escreve um interessante texto sobre o humor, voltando a abordar o narcisismo estabelecendo uma distinção entre o chiste, o cômico e o humor. Credita ao humor um caráter de libertação, pois o humor afirma a invulnerabilidade do eu. Frente às provações da realidade, para amenizar o sofrimento, o eu opera a transformação do sofrimento em ocasião de obtenção de prazer, fazendo humor. Desta forma, podemos entender como alguns adolescentes se tornam tão críticos e irônicos em relação às exigências culturais. Podemos considerar que o texto Futuro de uma ilusão (1927) tenha sido a semente do escrito de 1930 O mal estar na Civilização. Aqui Freud volta a afirmar a sua descoberta de que o eu se acha investido de libido, transformando-se em seu “quartel-general”. Reafirma ser a teoria da libido e o conceito de narcisismo os desencadeadores para a compreensão das “afecções fronteiriças e da psicose”. No capítulo VI, ao abordar o sadismo, faz uma preciosa articulação entre o narcisismo e a pulsão de morte. 90 Quando a pulsão de morte em sua face furiosa e destrutiva se desliga de Eros, encontra uma forma de satisfação acompanhada de um alto grau de fruição narcísica ao presentear o eu com a realização de remotos desejos de onipotência, o que nos faz asseverar a disposição na adolescência para múltiplas experiências corporais, sendo uma delas o consumo de drogas. Desta forma é Eros, pulsão de vida, que ao tomar o eu como objeto de amor vai fazer anteparo à pulsão de destruição. A pulsão de destruição “quando moderada e domada, é, por assim dizer, inibida em sua finalidade, deve, quando dirigida para objetos proporcionar ao eu satisfação (…)” (FREUD (1930), 1969, p. 144), permitindo o ato criador como um desdobramento da pulsão de morte. Desta forma o que Freud nos diz é que o poder de Eros, na libidinização do eu e, portanto no narcisismo, tem a importante função de fazer anteparo à pulsão de morte. Ao abordar a vida pulsional na conferência XXXII (1933) Angústia e vida pulsional afirma ter chegado à concepção do narcisismo através da observação de que o eu, tal qual o mito grego de Narciso toma a si mesmo como objeto de amor comportando-se como se estivesse apaixonado por si próprio. Neste sentido Freud opera uma passagem de um eu responsável pela defesa e autoconservação, para um eu alçado à sexualidade. Ao acompanharmos o conceito de narcisismo na obra freudiana, de 1905 a 1933, constatamos que Freud o percorreu durante 20 anos. Esta trajetória já nos indica a sua importância e a relevância de seu estudo para a psicanálise e mais especificamente para o estudo da adolescência. Havendo na adolescência a demanda primordial de uma nova unificação, em função da imagem corporal que se modifica, torna-se imprescindível que a libido retorne ao eu, o que faz de seu corpo um lugar narcísico ideal para efetuar novas experimentações. Assim, o retorno ao narcisismo na adolescência torna-se não só necessário, mas também fundamental. 91 3.2.1 O eu ideal e o Ideal do eu No texto de 1914 Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud introduz pela primeira vez os termos eu ideal e Ideal do eu, marcando a distinção existente entre ambos. A propósito do conceito de narcisismo, aborda a constituição do eu como uma unidade, e a sua relação com a imagem corporal através das noções de eu ideal e Ideal do eu. Tais noções serão relidas por Jacques Lacan sob a vertente dos registros imaginário e simbólico. O eu é constituído, inicialmente, por uma Urbild, construção primeira, operada por identificação à imagem do outro. Sua representação, como unidade, vai reunir as representações dispersas do auto-erotismo, não caracterizando uma unidade definitiva e, uma vez sendo estruturada será renovada e acrescentada. Assim a imagem embora sendo a forma primeira, não é definitiva. O eu também vai ser constituído por enunciações que qualificam e criticam, estabelecendo juízos de valor. O eu terá origem, então, em duas vertentes: o eu ideal e o Ideal do eu, sendo a primeira imaginária e a segunda simbólica. A constituição egóica tem como fundamento o eixo ideal, entendido aqui como a articulação indissolúvel do eu ideal e do Ideal do eu. Cabe ressaltar que estas instâncias não operam segundo uma ordem classificatória onde uma irá anular a outra. O eu ideal não é uma forma a ser superada ou substituída pelo Ideal do eu. Segundo Quinet, “A instância do Ideal do eu é o suporte simbólico da identificação especular.” (2002, p. 118). Em ambas as noções se fazem presentificar o outro especular e o Outro da cultura, o que nos remete de imediato à noção de alteridade. Alteridade que se desmembra em duas funções, visto que o sujeito ao adquirir uma consistência imaginária, passa a depender do significante em seu lugar simbólico. Trata-se, portanto, de uma estrutura do sujeito, onde o Ideal do eu se constitui um herdeiro do eu ideal. A perfeição narcísica perdida é retomada pelos ideais os quais, o sujeito adolescente tentará alcançar no seio de sua cultura. O sujeito adolescente, aprisionado em uma cultura que privilegia o corpo em detrimento de ideais sublimados, parece ficar aquém desta temporalidade não favorecendo a necessária passagem do eu ideal para o Ideal do eu. O texto freudiano aponta, em diferentes 92 momentos, para um eu ideal que permanece sendo transformado, adquirindo uma nova forma, a do Ideal do eu. Em relação a isto, Freud escreve: Como tudo o que ocorre no âmbito da libido, aqui também o homem mostra-se incapaz de renunciar à satisfação de que gozou uma vez. Não quer privar-se da perfeição narcísica de sua infância e se quando ao crescer não pode mantê-la por sentir-se perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio juízo, procura recuperá-la na nova forma do eu. (FREUD (1914), 1969, p. 112) Assim o Ideal do eu tenta recuperar o narcisismo perdido, quando a imagem ideal reinava absoluta. Há no funcionamento psíquico um movimento perene para alçar o retorno ao júbilo do eu ideal. O Ideal do eu, enquanto uma insígnia herdada no declínio do complexo de Édipo, também vai buscar algo da perfeição. A adolescência é um tempo onde o eu necessita de novos suportes culturais. A cultura contemporânea ao se voltar para ideais narcísicos não oferece ao adolescente uma saída favorável. A cultura do corpo tomando o corpo jovem como um objeto privilegiado de suporte econômico, dificulta ao sujeito adolescente transpor as raízes do narcisismo e também não lhe oferece um campo simbólico saudável à realização de ideais sublimados. Quando Freud acrescenta a idéia de Ideal do eu ao eu ideal, nos fala sobre uma nova forma dada ao eu ideal, redimensionada pelo acesso ao simbólico. O que ele afirma é que o homem projeta diante de si como sendo seu ideal é a substituição de um tempo perdido onde o próprio homem era o seu ideal. Freud apresenta o eu ideal como uma imagem perfeita de si mesmo, possuída de toda perfeição de valor. O eu como tal tem a face da imagem de completude originária, construída pela projeção dos pais por uma necessidade de fazer ressurgir o seu próprio narcisismo no amor ao filho. O eu ideal erigi-se então, como referência perene no psiquismo, referência ilusória de amor e perfeição a qual o sujeito sempre buscará retornar. Desta forma a imagem é construída de forma alienante, pelo desejo do Outro, sendo “Sua majestade o bebê” o fruto de um discurso alienante e apaixonado, desvinculado de qualquer crítica, produzindo uma imagem idealizada. O Ideal do eu, já nos dizia Freud, toma uma nova forma, atravessada pelos valores éticos, culturais e críticos, e sua formação é fator condicionante do recalque. 93 O Ideal do eu vai situar a libido narcísica no externo, marcando as exigências que o sujeito buscará para satisfazer-se, no lugar da lei. Lacan considera o Ideal do eu como um modelo a ser alcançado de forma a resgatar o eu ideal enquanto uma aspiração. Segundo Leclaire, no Seminário, livro1, o eu ideal está no plano imaginário e o Ideal do eu no plano simbólico, pois o Ideal do eu “toma lugar no conjunto das exigências da lei.” (1953/54), (1986, p.157). A constituição do Ideal do eu permitirá o afastamento necessário do eu ideal, afastamento este que se faz pelo deslocamento libidinal a um ideal imposto pelo exterior, onde o eu na realização de um ideal encontra, parcialmente, uma satisfação. A teoria do eu se apresenta como uma articulação indissolúvel entre as instâncias do eu ideal e do Ideal do eu, que se faz presente em toda a vida do sujeito, não supondo uma hierarquia ou etapas a serem seguidas. Diferente do animal, onde as relações se estabelecem no campo imaginário, pela percepção gestáltica, o homem em função da sexualidade não possui padrões estáveis. Embora marcado pelo imaginário, este campo exige uma regulamentação, uma nova forma de articulação ao exterior pela ligação simbólica. É a palavra significante o que vai valorizar o imaginário. O eu ideal e o Ideal do eu são representações, complexos imagéticos, mas também são efeitos de discurso. No eu ideal há um discurso totalizante, idealizado e incondicional, o Ideal do eu implica em um discurso provido de crítica, juízo de valor e, portanto condicionado à cultura, que abarca normas e leis exteriores. Lacan descreve o Ideal do eu como: “O outro falante, o outro enquanto tem comigo uma relação simbólica.” ((1953/54), 1986, p.166) Embora o Ideal do eu traga a marca do simbólico e o eu ideal a do imaginário, estas demarcações não são rígidas. Lacan nos diz que existe fluidez nestes dois campos e toma o exemplo do amor para explicá-la. O amor por sua marca imaginária pode perturbar a função do ideal enquanto crítica, favorecendo a idealização do objeto amado. No eclipsamento do Ideal do eu a regulação simbólica é alterada. O caráter narcisista do amor faz confundir o objeto amado com o ideal. A noção de Ideal do eu, inicialmente, foi utilizada para designar conforme já citado, uma instância substituta do narcisismo infantil então perdido. Esta instância é 94 fruto de identificações de figuras parentais e seus correlatos sociais. Porém esta noção vai sofrer uma evolução das formulações de 1914 até a segunda tópica. No texto de 1914 sua descrição é relacionada à renúncia da onipotência do eu e situada na vertente do recalque pelo declínio do complexo de Édipo. Na conferência XXVI, A Teoria da libido e o Narcisismo de 1917, a concepção do Ideal do eu se converte em uma instância com funções de consciência moral, tendo também influência na vida onírica por sua função de censura. As noções de eu ideal e Ideal do eu se tornam mais evidentes a partir do texto de 1921, Psicologia de grupo e análise do eu. Neste trabalho, Freud destaca o Ideal do eu como uma instância diferenciada a qual atribui às funções de autoobservação, censura e consciência moral, exercendo influência no recalque. Referese ao Ideal do eu como herdeiro do narcisismo e analisa a instância como um lugar em que o sujeito pode preencher com o objeto da paixão, pelo hipnotizador ou por um líder. Sinaliza também para a vertente dos fenômenos coletivos, onde o eu ideal abre mão de seu narcisismo em prol da identificação a um líder ou com pessoas que compartilhem de um objeto comum no lugar do ideal, propondo um exame sobre as formações grupais. Descreve a constituição dos grupos como sendo regida por duas espécies de laços. Os laços horizontais são estabelecidos entre os membros do grupo e os laços verticais na relação com um líder, laço vital para que o grupo aconteça. Nas palavras de Freud, o grupo se constitui por “… certo número de indivíduos que colocam um só ideal e o mesmo objeto no lugar do seu ideal do eu e, consequentemente se identificaram uns com os outros em seu eu.” (FREUD (1921), 1969, p. 147). A partir desta citação, podemos observar na cultura atual um movimento de homogeneização narcísico e hedônico, que toma o corpo jovem e perfeito, como um só ideal para todos e principalmente para o adolescente. A formação de grupos na adolescência é um movimento comum e necessário. O afastamento das figuras parentais cria uma demanda de novos modelos com os quais o adolescente possa se apoiar, e consolidar novas identificações A conquista de uma parcela de autonomia passa pela transição do espaço privado familiar à apropriação de espaços públicos. Este movimento implica na formação de grupos, onde novos vínculos vão se constituir através de práticas sociais comuns, que visam a integração na cultura. Desta forma nas famosas formações de tribos urbanas, os 95 adolescentes fazem do grupo o seu Ideal do eu ao se identificarem com seus pares. São criados códigos de comunicação facilitadores de trocas identificatórias. Na cultura do corpo a identificação se faz pelo viés corporal. As tribos passam a se identificar por um traço comum, seja na forma de vestir, nas tatuagens, no corte de cabelo, no tipo de maquiagem. O estilo identificatório do grupo passa pela imagem corporal. Além dos laços horizontais entre os membros, há, também, um laço vertical Na formação das tribos existe a figura do líder que dita um modelo a ser seguido. Na maioria dos grupos adolescentes os membros se comportam como personagens criados por um enredo imaginário e, o papel que desempenham é marcado por uma construção subjetiva sem referências simbólicas consistentes. A ilusão de coerência e continuidade torna estes vínculos efêmeros. Os agrupamentos juvenis são caracterizados por uma conduta padrão baseada em uma imagem especular homogeneizada e, na maioria dos grupos adolescentes, são abolidas as singularidades tendendo à unificação. Observa-se uma estreita relação entre as práticas de grupos adolescentes e a cultura contemporânea. Em ambas podemos constatar a falta de referências simbólicas consistentes, o que propicia a um “mergulho” no campo do imaginário. Neste contexto as diferenças se apagam, dificultando, sobremaneira, a busca de referências na alteridade. Os grupos passam a viver experiências indiferenciadas o que acirra a agressividade frente ao outro. A égide de um ideal único de supremacia faz nascer a intolerância a qualquer alteridade mais próxima, em função de resguardar o narcisismo. O diferente ao produzir um estranhamento fomenta impulsos hostis contra aqueles que ameaçam o espelho. O apagamento da diferença eu / outro, sob a bandeira da imagem idealizada parece, em nossa cultura, estar se transformando em um ideal de normatização social. É nesta cultura que nega a alteridade e empobrecida simbolicamente, que o adolescente necessita buscar as referências que lhe permitam um suporte à construção de seus ideais. Desta forma, podemos afirmar que, uma cultura que toma o corpo como ideal máximo de perfeição, leva o adolescente à busca de um corpo idealizado o que não lhe permite transpor os muros do narcisismo. A função do Ideal do eu aponta para um ir além da economia narcísica, onde há que se diferenciar a função simbólica, no Ideal do eu localizamos a noção do Outro. 96 O Ideal do eu, a partir do texto freudiano de 1921 passa a ser descrito como responsável em amenizar os laços agressivos do duplo imaginário, conferindo-lhes uma possível unificação. No texto de 1923, O ego e o id, Freud vai correlacionar o Ideal do eu como supereu. Em 1933, na Conferência XXXI, A Dissecção da Personalidade Psíquica sustenta o texto de 1923, pormenorizando a gênese e a função do supereu descrevendo o Ideal do eu com aquilo que o eu compara e aspira esforçando-se por satisfazê-lo. Embora com distintas concepções sobre o Ideal do eu, em seu percurso de quase vinte anos uma característica nunca deixou de existir nos textos de Freud, a afirmação de que o Ideal do eu é o precipitado de representações de uma remota perfeição atribuída à criança pela admiração dos pais, deixando claro o vínculo existente entre o eu ideal e o Ideal do eu. Lacan (1953-54) no Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud, estabelece comparações entre as funções do eu ideal e o Ideal do eu. Descreve o eu ideal como essencialmente narcísico, especular, decorrente do imaginário e construído na dinâmica do estádio do espelho. O Ideal do eu é decorrente da vinculação do simbólico, campo ordenador do imaginário. Ao conceber o Ideal do eu como o outro falante e estabelecedor da relação simbólica e sublimada, Lacan estabelece entre as duas instâncias o ponto de mediação da linguagem ao afirmar que a troca simbólica é o que liga os seres humanos entre si, onde a palavra identifica o sujeito. No texto de 1960 Observações sobre o relatório de Daniel Lagache, Lacan vai marcar uma distinção entre as duas instâncias através dos significantes aspiração e modelo. O Ideal do eu é definido então, como um modelo simbólico a ser seguido em função de uma aspiração imaginária, especular e narcísica. Assim, Lacan distingue: “… ideal do eu como um modelo e o eu ideal como aspiração – e como! – para não dizer, antes, como sonho.” (LACAN (1960), 1998, p. 678). Lacan em seu retorno a Freud nos oferece referências em relação ao imaginário e à primazia do simbólico, marcando o descentramento do sujeito em relação ao seu eu. Coloca como necessária, a noção de alteridade e o lugar que esta vai ocupar na constituição do sujeito, estabelecendo dois eixos: o outro semelhante da relação especular, e o Outro, tesouro de significante lugar simbólico a partir do qual o sujeito se constitui mediante a operação de identificação ao traço 97 unário. A operação do traço unário é a marca inaugural da relação como o significante, onde o sujeito se constitui ao se representar por um significante que é dado pelo Outro. Esta identificação é marcada por uma falta, pois não há um só significante que venha abarcar o sujeito em sua totalidade. A identificação do traço unário vai designar o lugar do sujeito que, para além da identificação especular do eu, se constitui sujeito do inconsciente. Sendo a identificação do traço unário, marcada pela falta, é esta falta que vai ensejar a inscrição do Ideal do eu. O Ideal do eu, segundo Lacan, é um significante que não faz cadeia, o que faz dele uma insígnia. O Ideal do eu como uma nova forma de ideal é atravessado por valores críticos, morais e culturais. É a insígnia com a qual o sujeito adolescente vai recuperar a perfeição narcísica, projetada como sendo seu ideal. Freud (1923) afirma que aquilo que une os sujeitos além do amor é a identificação. A identificação se dá no campo do imaginário e do simbólico. Sob a condição simbólica é marcada por um traço e referida à função do Ideal do eu, como uma referência a ser alcançada. Além dos laços regidos pela economia narcísica do eu ideal, o Ideal do eu implica em uma referência simbólica possibilitadora da identificação entre sujeitos, o que nos permite localizar o Outro na formação do Ideal do eu. Lacan (1958) no Seminário 5, As formações do inconsciente, nos remete às insígnias do ideal. Tomando como exemplo a saída do complexo de Édipo diz que, após a operação do recalque do desejo edipiano, o sujeito se renova. Nesta renovação sai provido de um Ideal do eu, mesclado de desejo, rivalidade, agressão e hostilidade. O Ideal do eu implicará em uma transformação subjetiva ao final do complexo de Édipo e em relação ao Ideal do eu escreve: O que é adquirido como Ideal do eu permanece, no sujeito, exatamente como a pátria que o exilado carrega na sola dos sapatos – seu Ideal do eu lhe pertence, é para ele algo adquirido. Não se trata de um objeto, mas de uma coisa que, no sujeito é a mais. (LACAN (1958), 1999, p.301) O Ideal do eu é algo que fazendo parte do sujeito, nele conserva uma relação inter e intra-subjetiva, do externo com o interno. É no seio desta dinâmica que desempenha uma função tipificadora no desejo. Segundo Lacan a identificação que permite conceber o Ideal do eu, está intimamente relacionada a um momento de privação. Tomando como exemplo o 98 Édipo, explica que a criança, ao esperar do pai algo que não lhe é dado, torna-se o pai enquanto Ideal do eu. Nesta identificação estarão sinais, traços e elementos significantes. Traços que são insígnias do pai, que tomadas pelo sujeito, se apresentam enquanto ideal. Mas, na assunção de tais insígnias o desejo também se transforma. O desejo apaixonado endereçado ao pai, sofre uma transformação erigindo um Ideal do eu, através das reinvidicações que o sujeito estabelecerá nas suas relações com o objeto. Desta forma, as futuras relações do sujeito adolescente serão marcadas pelas identificações que revestidas dos emblemas daqueles com quem se identificou, vão desempenhar nele a função do Ideal do eu. Lacan estabelece uma dialética entre o eu ideal e o Ideal do eu através do imaginário e o simbólico. Aborda este jogo dialético em seu Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud, partindo do texto freudiano do narcisismo. Assim, afirma que, “... o eu humano se constitui sobre o fundamento da relação imaginária.” (Lacan (1953-4), 1975, p.137), sendo a identificação ao Ideal do eu aquilo que: (…) permite ao homem situar com precisão a sua relação imaginária e libidinal ao mundo em geral. Está aí o que lhe permite ver no seu lugar e estruturar, em função deste lugar e do mundo o seu ser. (…) o sujeito vê o seu ser numa reflexão em relação ao outro, isto é em relação ao ideal do eu. (idem, p. 148) Esta citação nos oferece o ponto chave onde eu ideal e Ideal do eu se articulam, na relação entre o corpo, o ser e o Outro. Ao distinguir as duas instâncias revela que se por um lado representam um papel na estruturação da realidade por outro, passam pela alienação fundamental do espelho. Para Lacan, a regulação do campo imaginário depende de algo situado como transcendente, sendo este modo transcendental, exatamente, a ligação simbólica entre os sujeitos. Em relação à posição do sujeito na estrutura imaginária vai afirmar: “Esta posição não é concebível a não ser que um guia se encontre para além do imaginário, ao nível do plano simbólico, da troca verbal entre os seres humanos. Esse guia que comanda o sujeito é o ideal do eu.” (idem, p. 166) No Seminário livro 8, A transferência (1960-1), Lacan questiona sobre as conseqüências no que se refere à economia libidinal do eu ideal e do Ideal do eu e a relação de ambos com a preservação do narcisismo. Para responder a tal questão traz o exemplo de dois jovens: “(…) o filhinho de papai ao volante de seu carrinho 99 esporte e Marie-Chantel que se inscreve no partido comunista para chatear o pai.” (LACAN (1960/61), 1992, p. 329). Lacan vai apontar a forma pela qual cada um vai requisitar à sua maneira o reconhecimento de suas aspirações no plano do eu ideal e como, esta requisição se faz através de um modelo, na dependência do Ideal do eu. Ambos os jovens organizam-se subjetivamente de forma a tomar o pai sob a forma de Ideal do eu, seja do dirigir velozmente e correndo riscos, seja como uma militante, o que realmente não era, do partido Comunista. A roupagem de playboy e de ativista é característica do eu ideal. Porém nestas escolhas há um endereçamento ao pai, onde no plano ideal trazem uma marca como inscrição simbólica, não se tratando portanto, nem do rapaz investir em uma carreira de piloto nem da moça adentrar em uma atividade política mas sim, de fazer endereçamento ao pai, o que os satisfazia narcisicamente. Lacan assevera que o Ideal do eu tem uma estrita relação com o desempenho e a função do eu ideal, relação que se estabelece da seguinte forma: O ideal do eu (…), é simplesmente constituído pelo fato de que, de saída, se ele tem seu carrinho esporte, é porque ele é o filho de boa família, o filhinho de papai, e que, para mudar de registro, se Marie-Chantel, como vocês sabem, se inscreve no partido Comunista é para chatear o pai. (LACAN (1960-61), 1992, p. 330) Assim, podemos concluir que o corpo biológico, real, pela alteridade torna-se representado pulsionalmente. O eu irá se constituir em função da operação psíquica denominada por Freud de narcisismo, através da libido narcísica e pelo estádio do espelho, no campo do imaginário. Aqui nasce o eu ideal. A libido narcísica ao investir nos objetos e retornar ao eu, marca a relação com o mundo externo na vertente simbólica constitutiva do Ideal do eu. Desta forma é o mundo da linguagem, mundo externo, através da palavra significante aquele que produzirá afastamentos e aproximações entre o eu ideal e o Ideal do eu, produzindo sentidos. O eu ideal captado pelo campo do imaginário necessita de uma nova forma, a troca simbólica para constituir um Ideal do eu, permitindo o nascimento do sujeito. 100 3.2.2 O conceito de sublimação O termo sublimação, segundo Roudinesco (1998), deriva de três vertentes: das Belas-Artes, fazendo referência ao sublime, para designar uma elevação do senso estético, da química, onde sublimar refere-se a uma passagem do estado sólido ao gasoso e da psicologia que se refere ao sublimar como um lugar além da consciência. Freud (1905) introduz o termo sublimação para descrever um tipo especial de atividade humana, sem relação aparente com a sexualidade. Embora encontre sua propulsão na força da pulsão, visa um alvo não sexual, desde que este seja valorizado socialmente. Coutinho Jorge (2005) através de um estudo terminológico refere-se à sublimação como “aquilo que vai se elevando, que se mantém no ar.” (2005,p.150) Segundo o autor o termo pode significar: exaltar, glorificar ou designar algo suspenso no ar, elevado à maior perfeição. Em todas as acepções nota-se que seu significado remete à ascensão, à verticalidade e à transcendência, o que nos permite pensar em uma mudança de direção ou desvio. O texto freudiano, O ego e o id de 1923, vai definir a sublimação como transformação libidinal onde a libido objetal ao se transformar em libido narcísica sugere um caminho à sublimação efetuado pela mediação do eu. Mais uma vez Freud vai delegar ao eu este caráter de promotor de movimentos de desligamento dos investimentos objetais para novos encontros de catexias narcísicas. Nesta época o conceito de pulsão de morte já havia sido elaborado na obra freudiana. Assim podemos supor que a força disjuntiva da pulsão de morte ao articular-se com o narcisismo e a sublimação promove um renovar constante de sentidos a partir do não sentido. Pela sublimação, o que se desdobra da pulsão de morte é o ato criador fazendo anteparo à pulsão destrutiva. Freud não sistematizou o conceito de sublimação através de um texto único, o que nos leva a pensar que, alçá-lo no texto freudiano requer pesquisa e cotejamento. Porém a sua importância conceitual nos aponta para esta busca, visto ser a sublimação um dos caminhos da pulsão na adolescência. 101 Ernest Jones, um dos principais biógrafos de Freud, escreve que a sublimação teria sido um dos temas de doze artigos escritos por Freud que receberiam o título de Preliminares a uma metapsicologia. Porém se um dia chegou a ser escrito, passou a fazer parte dos textos freudianos que foram perdidos. No texto de 1915, Os instintos e suas vicissitudes, Freud nos fala dos destinos da pulsão, enumerando-os em quatro, sendo um deles a sublimação. Embora fale de quatro destinos, o texto de 1915 só aborda os dois primeiros: a reversão ao seu oposto e o retorno em direção ao eu (conforme já abordados no primeiro capítulo). Freud escreve que naquele momento não pretendia tratar dos outros dois destinos: o recalque e a sublimação. Para o recalque dedica um artigo único, também em 1915, sendo a sublimação citada em diferentes textos da obra freudiana. O não detalhamento e sistematização do conceito propiciaram inúmeras interpretações, sendo a sublimação tomada, por alguns autores, como uma normatização da sexualidade. A este respeito, Coutinho Jorge, ao se referir à grande importância do conceito, nos alerta: “A teoria freudiana, no entanto, não autoriza esse reducionismo psicologizante e o conceito de sublimação requer ser apreciado em sua sutil complexidade.” (COUTINHO JORGE, 2005, p. 150). Assim sendo, se faz necessário retroceder no caminho e buscar nos textos anteriores a 1915, as elaborações freudianas a respeito da sublimação. No rascunho L, carta datada de 2 de maio da 1897 e endereçada a Fliess, Freud tece comentários sobre as fantasias histéricas, afirmando que estas têm a finalidade de impedir recordações penosas, e a este respeito escreve: “As fantasias histéricas servem, simultaneamente, à tendência a aperfeiçoar lembranças e à tendência a sublimá-las.” (FREUD (1897), 1969, p. 268) Afirma desta forma que a sublimação permite que algo intolerável seja transformado em uma fantasia suportável. Tomemos o exemplo de Santa Tereza D’Ávila. Seus escritos não deixam a menor dúvida em relação à natureza erótica sublimada de sua espiritualidade. Tereza D’Ávila declara o êxtase sublime alcançando em orações no seu re-ligare com Cristo. A referida santa é apontada por Freud como padroeira da histeria e a ela se refere como “uma mulher de gênio com grande capacidade prática.” (FREUD (1893)1969, p. 288) As primeiras concepções freudianas de sublimação referem-se então, à defesa histérica. 102 Em 1901, nos escritos sobre o caso Dora, caso publicado quatro anos mais tarde, ao abordar as perversões, Freud comenta: As perversões não são bestiais nem degeneradas no sentido emocional da palavra. São desenvolvimentos de genes os quais se contêm, todos, na disposição sexual indiferenciada da criança e que, suprimidos ou desviados para objetos assexuais mais elevados – ‘sublimes’ – destinam-se a fornecer energia para um grande número de nossas realizações culturais. (FREUD (1901/1905), 1969, p.47) Neste comentário de 1901, já estabelecia uma diferença entre a libido suprimida pelo recalcamento e a libido desviada para objetos não sexuais, apontando para a sublimação como uma contribuição cultural. Destaca de certa forma, o caráter da plasticidade pulsional. Aqui, já se descortina o desvio operado da perversão polimorfa, para objetos valorizados culturalmente. No resumo final de seu trabalho sobre o caso Dora, ao escrever sobre o caráter da transferência, aborda a função defensiva da sublimação quando descreve a transferência como nova edição de fantasias primevas que substituem uma figura do passado pela figura do psicanalista, tal qual uma metáfora. Porém, Freud diz que alguns pacientes conseguem uma maior engenhosidade, pois o conteúdo das fantasias sofre influências da sublimação. Neste sentido deixam de ser novas edições e passam a ser edições revistas o que favorece a transferência, de forma a facilitar a relação analítica. Em seu primeiro ensaio sobre a teoria da sexualidade sob o título As aberrações sexuais, retorna a abordar a sublimação em relação ao corpo, o olhar e a arte. Aqui a noção de desvio vai marcar novamente o conceito: A progressiva ocultação do corpo, advinda com a civilização, mantém desperta a curiosidade sexual, que ambiciona completar o objeto sexual através da revelação das partes ocultas, mas que pode ser desviada (sublimada) para a arte, caso consiga afastar o interesse dos genitais e voltá-los para a forma do corpo como um todo. (FREUD (1905), 1969, p. 158) Em nota de rodapé acrescida em 1915 aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud comenta não ter mais dúvidas quanto ao desvio operado na sublimação em relação à arte, quando afirma ser o belo de hoje, algo que outrora foi sexualmente excitante. O destino pulsional pela sublimação vai implicar então, em 103 uma ultrapassagem que diferente ao recalque, desvia-se do objeto sexual. O desvio operado na sublimação fala de um ir além, um prosseguir na busca de uma localização fora da satisfação genital direta. Cabe aqui ressaltar que a sublimação não descaracteriza o caráter sexual da pulsão. O sexual é preservado sendo apenas modificada a forma de relação estabelecida pelo sujeito. Embora o pensamento freudiano já descortinasse considerações a respeito da arte e da criação, como formas de sublimação, é somente a partir de 1908 que esta relação aparece com maior nitidez. Em Escritores criativos e devaneios, de 1908, propõe a sublimação unida ao erotismo, como possibilitadora da criação de novos objetos pulsionais que possam levar à satisfação. Nesta vertente, aborda a brincadeira infantil e a criação literária, afirmando que a criação floresce tanto no brincar infantil como nas atividades sublimatórias, lançando a seguinte pergunta: “Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma forma que lhe agrade?” (FREUD (1908), 1969, p. 149). Ao equiparar o artista com a criança que brinca, Freud nos diz que o adulto apenas aparentemente renuncia ao prazer contido no brincar. Afirma também que o homem não abdica do prazer desfrutado outrora e em vez de brincar, só abdica dos objetos reais, permitindo-os pela fantasia. A dimensão do criar implica necessariamente na fantasia e podemos dizer que criar é dar uma forma à realidade psíquica. Os estreitos laços da criação à brincadeira infantil nos remetem à latência, descrita por Freud como um tempo paradigma da sublimação. A latência transformase num campo fértil onde florescem o potencial criativo através de inúmeras brincadeiras sempre envolvendo um saber a ser descoberto. Os cadernos de perguntas e respostas, as charadas, a brincadeira de “adedanha”, a forca, são alguns exemplos de advinhas comuns nos grupos infantis. A pulsão de saber busca novos espaços que possam atender às demandas sexuais. Na moratória operada pela latência, a pulsão em sua força constante, propõe um desvio para a criação de novos objetos, desvios fundamentais para que na adolescência a possibilidade de criar perdure. Neste mesmo ano, Freud (1908) em Moral sexual “civilizada” e doença moderna, busca um interlocutor para cotejar seu conceito. Inicia o texto com as idéias de Von Ehrenfs, professor de filosofia, sobre as diferenças entre a moral 104 sexual natural e a civilizada. Após discorrer sobre o livro do filósofo, Freud vai buscar novas razões para a etiologia das doenças nervosas, saindo em busca de novos argumentos. Aponta para as raízes do mal estar nos homens causado pela civilização, preocupando-se com as doenças psíquicas originárias das restrições pulsionais provenientes das organizações civilizatórias e nos diz: “Nossa civilização repousa, de um modo geral, sobre a supressão das pulsões.” (FREUD (1908), 1969, p.192). Neste texto podemos encontrar a raiz de seu futuro texto de 1930, O Mal estar na civilização. Quando Freud aborda a etiologia de algumas doenças psíquicas, estabelece a relação da força pulsional e sua plasticidade, pontuando o que através da sublimação, pode estar disponível para a civilização. Esta pulsão coloca à disposição da atividade civilizada uma extraordinária quantidade de energia em virtude de uma singular e marcante característica: sua capacidade de deslocar seus objetos sem restringir consideravelmente a sua intensidade. A esta capacidade de trocar o seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas psiquicamente relacionado com o primeiro, chama-se capacidade de sublimação. (FREUD (1908), 1969, p. 193) Freud imprime ao conceito uma capacidade de deslocamento na qual, o desvio para novos objetos não implica na restrição da sexualidade, pois a plasticidade sublimatória da pulsão não extingue sua origem sexual. Porém também chama a atenção para um aspecto importante do conceito, quando marca um ponto limite para a sublimação. Partindo da suposição de que a força pulsional, embora constante, é variável, considera ser a constituição de cada sujeito o que vai decidir o quantum da energia pulsional é passível de sublimação. O caminho da sublimação não é acessível a todos igualmente, em função dos limites simbólicos, pois: “não é possível ampliar indefinidamente este processo de deslocamento, da mesma forma que em nossas máquinas, não é possível transformar todo calor em energia.” (Idem, ibdem). Em 1910, Freud elabora o estudo sobre Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância retomando o tema da sublimação como a presença da força pulsional de forma intensa e criativa, como um movimento de pleno erotismo, cujas raízes são localizadas na infância. Em Leonardo, considerado como o modelo maior da pulsão sexual sublimada, o movimento pulsional encontra nas pulsões de saber e de ver o seu caminho. O 105 impulso investigador vai caracterizar o “apetite voraz” de Leonardo em relação à criação. É comum à criança, em determinada idade, um incansável questionamento através de seus “porquês”. Com o seu perguntar constante, na verdade, apenas escamoteia uma única pergunta: De onde vêm os bebês? Freud supõe que esta fase investigatória ao declinar sofre recalcamento podendo surgir três caminhos: o primeiro, com a investigação inibida limita a atividade intelectual. No segundo, embora seja mantido o desenvolvimento intelectual, este é transformado em compulsão neurótica. Por último, o terceiro caminho é o da sublimação. Freud o considera o mais raro e perfeito, pois consegue driblar tanto o recalcamento quanto a compulsão. Para Freud, Leonardo não era insensível à paixão e, o que o mesmo conseguia era convertê-la em conhecimento e desta forma seu amor poderia transbordar livremente em saber. Freud ao referir-se à criação aponta para algo do irrepresentável. Este impossível de representar revela que há sempre um resto, não passível de simbolização, o que indica seus limites. Desta forma, frente à criação surge o furo, o vazio do real inerente aos objetos. É a sua criação que vai propiciar uma dimensão aberta passível de sublimação. Nesta dimensão se faz presentificar o nascimento do novo que, escapando ao recalque substitui o objeto sexual por outro na forma sublimada da pulsão. Coutinho Jorge (2005) faz referência ao conceito de sublimação como imprescindível, visto ser a própria sublimação aquilo que evidencia a dimensão do impossível, inerente à satisfação pulsional. Segundo o autor, a exigência da pulsão tem seu vetor na satisfação, onde a renúncia é impossível, só permitindo uma substituição. A renúncia vai requisitar à economia libidinal um escoamento distinto do recalque, pois, “no recalque o sujeito lida com o impossível rebaixando-o ao nível do proibido.” (COUTINHO JORGE, 2005, p. 154). É a sublimação que permite evidenciar o impossível implícito na satisfação pulsional. “Isto quer dizer que a sublimação é vicissitude da pulsão, que dá a esta o seu verdadeiro estatuto.” (Idem, ibdem). O autor pontua uma diferença entre o recalque e a sublimação. Se no primeiro o sujeito permanece “cativo do sexual”, no segundo opera um desvio da satisfação sexual direta permitindo lidar com esta na “dimensão do impossível”. 106 Assim a impossibilidade perene da satisfação pulsional encontra na sublimação uma saída diferente ao recalque. Em relação ao que toca ao impossível apontando para algo irrepresentável, o autor faz uma bela análise da obra de Leonardo, ao exemplificar na criação uma construção simbólico-imaginária apontada para o real dizendo que “o campo do representável aponta para o irrepresentável” (COUTINHO JORGE, 2005, p. 157), ao fazer referência à tela de da Vinci, São João Batista, na qual a figura aponta o indicador para o alto, comenta: “… está como que aludindo a algo que não sabemos o que é, mas implica em verticalidade e transcendência.” (Idem, ibdem). São várias as telas de Leonardo onde as figuras aparecem apontando para cima: Baco, A última ceia, A virgem e o menino Jesus com Sant’Ana e São João menino. Em todas podemos encontrar uma referência à transcendência. Entre a satisfação erótica direta e a satisfação sublimada, se faz imprescindível a mediação do narcisismo. O eu é o elo mediador que permitirá o desvio do sexual para o não sexual na escolha de um novo objeto. É importante frisar que para que o objeto seja passível de sublimação, ele deverá ser valorizado socialmente. Aqui fica patente o alvo desta pesquisa, pois uma cultura que valoriza socialmente o corpo jovem como um objeto exaltado e engrandecido pela sua idealização, supervaloriza este mesmo corpo, não oferecendo ao adolescente as referências necessárias para a construção de ideais sublimados. Freud estabelece distinção entre a idealização e a sublimação. Na sublimação a tônica recai na deflexão da sexualidade, pois a pulsão se dirige a um objeto não sexual, sendo um processo relacionado com a libido objetal. Já a idealização é um processo que diz respeito ao objeto sem qualquer alteração de sua natureza. Na idealização o objeto é engrandecido e exaltado, sendo supervalorizado sexualmente. A sublimação prescinde do recalcamento e embora receba um impulso do Ideal do eu nele não se extingue ultrapassando a idealização. O ideal do eu vai funcionar como um vetor que desencadeia o processo sublimatório pelos ideais simbólicos que oferece. Porém, uma vez iniciado este processo, o impulso desligase do ideal e retorna ao próprio eu. Ao contrário da idealização que “esvazia” o eu pelo amor ao objeto, a sublimação propicia novas saídas onde a satisfação possa ser atendida. 107 A este respeito Freud escreve: É verdade que o ideal do eu exige tal sublimação, mas não pode fortalecêla: a sublimação continua a ser um processo especial que pode ser estimulado pelo ideal, mas cuja execução é inteiramente independente de tal estímulo. (…) a formação de um ideal aumenta as exigências do eu, constituindo o fator mais poderoso a favor do recalque; a sublimação é uma saída, maneira pela qual essas exigências podem ser atendidas sem envolver o recalque. (FREUD (1914), 1969, p. 112) Pelo processo de recalcamento a pulsão tende a buscar a sua satisfação através de diferentes formações substitutas, sendo uma delas a formação do sintoma. A idealização, desta forma, está mais predisposta à causação da neurose. A sublimação, como um destino da pulsão, prescinde do recalque e busca satisfazêla permitindo ao componente sexual impulsionar a novos caminhos. Na conferência XXIII, de 1917, Os caminhos da formação do sintoma, Freud aborda a fantasia, estabelecendo uma equivalência entre a sublimação e a criação. Descreve a equivalência pelo caminho da arte, que conduz o artista da fantasia à realidade. Embora o artista tenha uma vida plena de fantasia, o que poderia conduzilo à neurose, possui também uma grande capacidade de sublimação. Esta capacidade dá forma aos devaneios pelo compartilhamento do prazer obtido na criação. O artista compartilha no objeto sublimado o que era apenas a sua fantasia. Conforme já abordado no início deste sub-capítulo, o conceito de sublimação não foi sistematizado na obra freudiana e, neste sentido, Lacan retoma o conceito no Seminário, livro 7, A ética da psicanálise (1959-1960). Lacan mantém os pressupostos de Freud e apresenta novas contribuições. Consideramos que a principal contribuição lacaniana ao conceito de sublimação é a sua articulação à coisa freudiana, ou seja, das Ding. No Projeto de 1895, Freud faz referências à das Ding através da idéia de que no nível das representações, algo permanece não assimilável em torno do qual o psiquismo se organiza. Desta forma, das Ding é o buraco, o vazio externo ao campo das representações, lugar que o objeto tenta ocupar. O objeto, antes de qualquer coisa, é o que vai representar a sua própria falta, vindo tamponar imaginariamente a falta e o vazio de das Ding. Freud quando nos fala da pulsão afirma que de seus quatro componentes, é o objeto o mais indiferente. Em qualquer objeto que a pulsão busca para satisfazer-se, 108 o que encontra é exatamente a sua falta. Lacan passa a nomear esta falta de objeto a e segundo o autor é “apenas a presença de um cavo, de um vazio, ocupável, e cuja instância só reconhecemos na forma de objeto perdido, a minúsculo.” (LACAN (1964), 1998, p. 170) Coutinho Jorge diz que a principal dimensão do objeto a é o seu estatuto real em sua ex-sistência “que designa o que está fora do registro do simbólico.” (COUTINHO JORGE, 2005, p. 140) O objeto a lacaniano, em sua relação com o real, sem nome e sem imagem, recebeu de Freud a designação de das Ding, a coisa, e neste sentido Lacan escreve: “essa coisa, o que do real primordial, padece do significante.” (LACAN (1959-60), 1988, p. 149). Lacan vai distinguir, no texto freudiano, aquilo que é da ordem de das Ding e da ordem de die Sache. Die Sache é descrito como um produto do agir humano governado pela linguagem enquanto das Ding é algo diverso “verdadeiro segredo”. O que da pulsão busca das Ding apenas encontra die Sache. A noção de das Ding remete ao âmbito do irrepresentável e impossível, do furo do real, pois segundo Freud há algo do pulsional fadado à insatisfação. A sublimação é, entre os quatro destinos pulsionais, aquela que permite criar e, portanto operar um constante movimento, o que já nos revela a ordem da impossibilidade de total recobrimento. Lacan faz uma interessante comparação entre o vazio da Coisa e a definição de coisa em Heidegger, tomando o seu exemplo sobre o jarro. Heidegger vai definir a coisa como um jarro feito pelo oleiro. Segundo o filósofo, o que faz do jarro um jarro, não é a peça em si, mas a sua qualidade de continente expressa em seu vazio. O que faz do jarro uma coisa não é a sua matéria, mas sim o vazio que contém. É em torno do vazio que o barro, vai tomar forma, mas não é a forma que lhe confere uso, mas sim vazio interior. A fabricação do jarro é o que dá forma ao vazio. Embora Lacan faça uma aproximação à coisa em Heidegger, a coisa lacaniana é concebida como inefável, estabelecendo entre a sublimação e a Coisa uma função mediadora. As criações humanas, no registro da sublimação, representam o vazio e é por esta razão que define a sublimação em sua celebre frase: “A sublimação eleva um objeto à dignidade da Coisa.” (LACAN (1959-60), 1988, p. 140) 109 A articulação da sublimação com a Coisa vai ressaltar a sua vertente ética. Neste sentido, representa uma perspectiva ética, pois a sublimação é o destino pulsional que permite lidar com algo fora do campo das representações. O movimento sublimatório permite, para além do recalque e do sintoma, elaborar novas soluções de forma a manter uma possível aproximação de das Ding, permitindo ao sujeito um contato com o impossível. Em relação à célebre frase lacaniana Garcia-R osa escreve:” Corresponde, na sublimação, conferir ao objeto narcísico e imaginário o poder de engodo com relação à das Ding, fazer com que as formações imaginárias, tenham o poder de se apresentar como ocupando o lugar da coisa.” ( GARCIA-ROZA,2000, p. 155) Aquilo que é visado no objeto sublimado, não é o objeto em si, mas sim a Coisa que nele subexiste. A lata de refrigerante pintada por Andy Warhol, exposta no Museu de Arte Moderna de Nova York, não se torna arte por ser lata, mas sim pelo impacto que causa, ou seja, aquilo que o objeto capta. Lacan traz como exemplo de sublimação a coleção de caixas de fósforos vazias de um amigo. O arranjo dado a estas caixas causa impacto, pois simples objetos quando transformados são elevados à outra dimensão. O efeito da nova forma provoca surpresa, elevando o objeto a uma dignidade a qual não possuía anteriormente. É o momento de êxtase frente ao objeto, que aponta para a ordem do inalcançável e fugidio da Coisa. É este o poder sublimatório que desvia do alvo sexual para atingir uma nova dimensão. Em relação à sublimação e o seu poder de ultrapassagem e transcendência, Coutinho Jorge escreve: “Pois a sublimação é um ato em vias de produção, daí poder ser causa da criação, e não um estatuto do que está criado, um estatuto definitivo e estático: ela possui uma dimensão de transformação e de advento do novo.” (COUTINHO JORGE, 2005, p. 156). O autor nos diz que se há uma saída para o recalque, esta saída é a sublimação, pois é ela que confere à pulsão o seu “verdadeiro estatuto”. Neste sentido se o recalque diz não à pulsão, “a sublimação é uma forma de dizer sim à pulsão em sua estrutura intimamente ligada ao impossível.” (idem, p. 155). A sublimação torna-se então, imprescindível ao adolescente na medida em que propicia o alcançar de novos objetos, permitindo a articulação necessária ao pulsional. 110 Conforme já ressaltado no segundo capítulo, a adolescência é um tempo onde o eu retoma o palco. A imagem de perfeição até então construída é profundamente abalada. Sendo a adolescência um momento de construção de ideais simbólicos, o Ideal do eu é a instância de papel capital por sua articulação ao campo do simbólico. A premência do reconhecimento da própria imagem implica no trabalho de conjugar o familiar e o diferente. Ao buscar reencontrar o objeto primordial das Ding, testemunha uma infinita gama de objetos que demarcam a sua separação, pois o Outro não mais lhe sustenta. Viver a adolescência é elaborar a falta, o vazio do Outro e esta elaboração só se torna possível através da concordância com referências simbólicas estáveis, fora de seu próprio corpo. Para tal se faz necessário tomar a sublimação como um dos caminhos da pulsão A aspiração do eu ideal converte-se em um modelo a ser seguido pelo Ideal do eu, onde a matriz simbólica lhe serve de ancoragem. Nesta passagem, é a sublimação, como destino pulsional, o que vai permitir certa libertação do engessamento narcísico. A busca de novos caminhos requer um afastamento da idealização, pois este sempre confirma o recalque. A via criacionista da sublimação permite ao adolescente buscar uma direção própria no campo dos ideais. Em relação a novas construções Lacan nos diz que o “homem é o artesão de seus suportes”. (LACAN (1959-60), 1988, p.150). E, o que é a adolescência senão um período de construção artesanal? Alberti (1999) aponta dois caminhos para o sujeito adolescente: a neurose, por sua incapacidade de lidar com a castração e o vazio fundamental, e o longo trabalho de elaboração necessário na travessia para novas construções. Podemos considerar que a sublimação é um suporte nesta trajetória de reforço pulsional. Freud, ao referir-se à sublimação no texto de 1930 O Mal estar na civilização, analisa a felicidade em seu sentido pleno como inviável, visto que aquilo que o prazer nos impõe não permite uma total realização. Mas também afirma que não podemos abandonar os esforços para uma possível aproximação da felicidade. Afirma que podemos buscar caminhos diferentes, embora não haja nenhum único que nos traga tudo o que desejamos. Desta forma, a felicidade é colocada como uma questão de economia, economia encontrada na dinâmica libidinal, e nos afirma: 111 Não existe regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem que descobrir por si mesmo de que modo específico, ele pode ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É uma questão de quanta satisfação real, ele pode obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele e finalmente de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo aos seus desejos. (FREUD (1930), 1969, p. 103) Esta afirmação nos permite supor que é na adolescência onde esta descoberta se opera, de forma singular, na direção de novas escolhas. A pulsão quando desloca a sua satisfação na condução de novos caminhos para além do corpo, na maioria das vezes coincide com a sublimação. Freud considera o caminho da sublimação da pulsão um aspecto particularmente evidente no desenvolvimento cultural, sendo o mesmo responsável pelas atividades psíquicas superiores, científicas artísticas e ideológicas. Sabemos que para Freud, não podemos sublimar tudo, pois a total renúncia ocasionaria “sérios distúrbios”. Aconselha-nos a seguir a sabedoria popular que adverte “a não buscar totalidade de nossa satisfação em uma só aspiração”. (FREUD (1905), 1969, p.103) Conforme já citado, Lacan nos diz que o eu ideal é uma aspiração e se compararmos as duas afirmações, há que se buscar algo que transforme e, ao mesmo tempo, atenda de certa forma, ao eu. Este é o árduo trabalho do sujeito adolescente. A adolescência, não somente por sua contribuição à cultura, mas também pela entrada no mundo adulto, deverá buscar suportes culturais que possam ultrapassar o narcisismo. Estes suportes serão encontrados no campo do simbólico, que virá organizar o imaginário fraturado. O adolescente ocupa então este lugar de passagem de um investimento que vinha sendo exclusivamente narcísico, para novos investimentos no objeto. É a vertente simbólica que vai permitir a dialética do imaginário com a falta de sentido. O simbólico na medida em que opera neste duplo sentido oferece uma condição privilegiada à adolescência. Assim, a via da linguagem, a palavra significante, é o que vai alicerçar o processo sublimatório, onde o adolescente possa efetivar suas metas ideais. Neste sentido a sublimação, como algo continuamente renovado, oferece suporte para que o adolescente possa recriar-se, através do reordenamento de suas vivências reais e imaginárias. 112 Visto que o campo do simbólico se organiza nas trocas com o Outro da cultura, abordaremos no próximo capítulo as questões que permeiam a adolescência em sua relação com a cultura contemporânea. 113 CAPÍTULO 4. Adolescência e contemporaneidade: o corpo, o consumo e o espetáculo 4.1 A cultura do corpo O poeta Carlos Drummond de Andrade (1904-1987) dedicou em sua obra, uma especial atenção ao amor, à dor e ao corpo. Sentimos em seus últimos poemas o cunho erótico dado ao corpo, nas paixões que descreve. Assim, em “As contradições do corpo” (1984), escreve: “Quero romper com meu corpo, quero enfrentá-lo, acusá-lo, por abolir minha essência, mas ele sequer me escuta e vai pelo rumo oposto”. O poeta, em meio às contradições do corpo, tematiza o confronto entre o interior e exterior, desejo e necessidade, ser e parecer, vida e morte. Seu poema aponta para a fragilidade, para o real do corpo, impossível de ser significado. É o corpo que, pela via pulsional, vai em busca de um sentido para se fazer representar. Romper com o corpo, isso seria possível? Drummond acusa o corpo como lugar da traição, da mentira e da ilusão que aprisionando sua essência, ruma para a morte. Talvez o poeta quisesse alertar para o que há de pulsional no corpo, em seu eterno circuito. Freud já nos dizia que a anatomia era o destino e que o destino estava nas vicissitudes da pulsão. Assim, a tentativa de romper com o corpo tornase vã e impossível, em função da força constante do aprisionamento pulsional. O poema nos faz refletir no dualismo vida e morte, mas também, nos conflitos do homem contemporâneo que, mergulhado em um mundo narcísico, tem horror de envelhecer. O eu incapaz de abrir mão de sua perfeição, faz do corpo um lugar tanto de fascinação como de mortificação. Entre a imagem sacralizada e o real da pura carne, o eu aprisiona o corpo como o seu mais precioso refém. É certo que para viver há que se ter um quantum de narcisismo, pois sem ele seríamos engolfados pela pulsão de morte que, pela demanda de gozo absoluto consumiria o corpo em sua voracidade. 114 Parece que Drummond quis apontar para o que há de mais genuíno no ser, sua essência e seu desejo, em contraponto ao atual mundo midiático e mercantilizado que promete a ilusão da eternidade. Seu poema confirma o espelho que não se quebra, onde o eu vagueia aprisionado na imagem e ilusão. O que vemos atualmente em relação a corpos? Vemos mulheres e homens, buscando fazer de seu corpo um corpo idealizado, narcisicamente imaginado, buscando um sentido para o seu ser. Foco do ideal de completude, beleza e perfeição, o corpo na atualidade retoma a cena com intensidade e glamour. Tomado como objeto ouro de primeira grandeza, funciona como indexador econômico, regulador de uma multiplicidade de investimentos. A exaltação corporal, através da eternização da juventude, conclama a beleza como aparência de felicidade, sucesso e imortalidade. Assim, é produzida a imagem do belo corpo que traduz o anseio atual. O corpo cortado, recortado e aspirado nas intervenções cirúrgicas, malhado e suado nas academias, adornado pelo consumo, é o corpo ideal, transformado em signo cultural e fonte de capital. O interesse midiático pelas questões que envolvem o corpo é expresso na quantidade de reportagens veiculadas abordando saúde, estética e rejuvenescimento. Saindo do espaço privado, o corpo, pela imagem, toma a cena social, ocupando uma grande fatia do espaço público. As demandas sociais relacionadas ao hedonismo fortalecem os apelos ao corpo, como um objeto de investimento e, portanto de valor econômico. Temos a ressacralização do corpo como objeto, vinculado ao suporte econômico e ao controle social. Proliferam lojas de roupas, clínicas de estética, academias de ginástica e intervenções médicas, onde o adolescente representa uma grande fatia do mercado de consumo. A higiene corporal deixa de ser algo em prol da saúde, passando a ser um ritual narcísico. Do couro cabeludo aos pés, existem cremes, loções, numa gama de especialidades cada vez maior. Jovens buscam recursos artificiais em prol de retardar um envelhecimento que ainda não chegou. São criados para o consumo cremes que firmam, alisam, acetinam e emagrecem. Encontramos nas lojas, uma infinidade de produtos que prometem beleza e juventude, 115 A alimentação com a geração diet light, produz uma gama de alimentos que emagrecem, desentopem, fazem fluir, definem a silhueta, promovendo uma geração de jovens anoréxicas e bulímicas. As prateleiras dos mercados são estrategicamente organizadas e voltadas para a voracidade do consumidor desatento. As farmácias, laboratórios, algumas especialidades médicas, prometem produtos miraculosos que podem transformar corpos mortais em imortais, recursos para buscar a eterna juventude. Se não há lugar para envelhecer, não há lugar para viver, pois viver implica em envelhecimento. É estabelecido como dogma o mandamento do seja jovem, seja belo, seja livre e para ser desta forma, CONSUMA! Assim Baudrillard escreve: A evidência material do corpo liberado não deve enganar-nos, traduz apenas uma substituição ideológica já caducada da alma, inadequada para um sistema produtivista evoluído e doravante incapaz de assegurar a integração ideológica de uma ideologia moderna mais funcional que, quanto ao essencial, preserva o sistema de valores individualista e as estruturas sociais que lhe estão conexas. (BAUDRILLARD, 1970, p.144) Temos, então, uma ética de consumo que centra na cultura do corpo e no individualismo a salvação econômica. Lasch (1983) em seu livro A Cultura do Narcisismo faz uma crítica à sociedade contemporânea através do viés do narcisismo. Aborda os dias atuais como norteados pela superficialidade, como um tempo que é produto do declínio da sociedade burguesa. Tempo caracterizado pela emancipação de antigos tabus, pela inundação das imagens produzidas pela mídia e pelo capitalismo, pelo pansexualismo e seu horror à velhice e a morte. Tais condições, segundo o autor, levaram ao rompimento da continuidade histórica. A abolição do passado e a não certeza do futuro, ocasiona um congelamento no presente dando origem à “personalidade narcísica” de nossos dias. Frente a algumas evidências de um futuro sem esperanças, a civilização ocidental busca novos recursos para transcender à desesperança. Lasch aponta para um mal-estar que tem suas raízes na perda de recursos internos, para o confrontamento às dificuldades inerentes do viver. A nosso ver, o que torna a crítica do autor extremamente consistente, além da pesquisa feita sobre perfil da sociedade americana é a sua abordagem sobre o narcisismo. Para o autor não é o narcisismo, enquanto uma operação fundante do eu, o “vilão” da história, mas sim o relevo que a sociedade contemporânea dá ao 116 conceito. O corte do processo histórico, pela desarticulação do passado, presente e futuro, promove uma espécie de “desordem narcísica”. Neste contexto, o enfraquecimento das instituições estado e família, instâncias simbólicas por excelência, permite um mergulho no imaginário. O culto à imagem gera um turvamento do campo simbólico na construção subjetiva do adolescente. As estratégias narcisistas de sobrevivência apresentam-se como libertadoras das condições repressoras do passado, originando uma “revolução cultural”, revolução esta que, com novas roupagens repetem os aspectos de aprisionamento, frutos de sua própria crítica. Na busca de um sentido para a vida, o sujeito adolescente constituído na cultura narcísica torna-se ferozmente competitivo por sua necessidade de reconhecimento e aprovação. Em seu imediatismo nega o passado, não se vinculando ao futuro. A esse respeito Lasch escreve: “Uma negação do passado, superficialmente progressista e otimista, mostra a uma análise mais cuidadosa, o desespero de uma sociedade que não consegue enfrentar o futuro.” (LASCH, 1983, p.17). Para o autor as questões referentes à ameaça nuclear, o esgotamento da natureza, as desordens ecológicas e o holocausto, abalam o sujeito com um sentido de fim dos tempos. Neste sentido, o eu torna-se ameaçado, quase sitiado, reduzindo sua capacidade crítica de reflexão. Temos na atualidade o surgimento de um cuidado terapêutico como solução para o desamparo. Multiplicam-se os livros de auto-ajuda, artigos e revistas, rituais corporais alternativos e a automedicação, sem contar com a infinidade de crenças em relação ao corpo e as consultas psicológicas via Internet. Chegamos ao século XXI com soluções muito próximas, talvez, das fórmulas mágicas de alquimistas da antiguidade, na busca da eterna juventude. Estes múltiplos recursos, nada mais são do que uma busca frente ao desencantamento do mundo, tendo em todos um denominador comum na afirmação narcísica do eu, fazendo crer na sua soberania e completude. A negação da castração gera uma desilusão frente ao outro e, sobretudo, uma incapacidade de aceitação da alteridade. Roudinesco (2006) usa a expressão “culto a si”, para designar a cultura narcísica. Segundo a autora, a figura de Narciso vem substituir um Édipo soberano e ressentido. Com o declínio da autoridade das figuras parentais, é o mito de Narciso 117 que passa a caracterizar uma sociedade sem interdito, sob o fascínio ilimitado do eu. Se o Édipo é o herói emblemático que traduziu o poder patriarcal, condenando-se para que outras gerações pudessem advir, Narciso põe fim à vida por não aceitar perder o que os outros depois dele pudessem receber. Roudinesco a este respeito afirma: (...) pelo culto do narcisismo, a obsessão de si mesmo é sempre portadora de uma rejeição ao outro, transformada em ódio de si e, portanto, em ódio pela presença do outro em si, (...) Narciso é o drama de um Eu que se subtrai progressivamente a qualquer encontro com a verdade ao substituir o peso das tradições pelo deleite a si. (ROUDINESCO, 2006, p.52) Desta forma, no mundo unificado pela economia de mercado, crescem as ilusões narcísicas em relação a um eu soberano e individualista, que empobrece os vínculos sociais. A cultura do narcisismo promove a dialética inconsciente do estádio do espelho: o júbilo e a agressividade, pois para que o eu triunfe em seu gozo soberano, o outro não pode existir. “O culto de si é transformado em ódio de si e em desejo de destruição do outro.” (ROUDINESCO, 2006, p. 53). Na verdade, uma cultura narcísica, com a ilusão de plenitude, mostra a sua outra face de profundo desamparo. Frente às incertezas do devir, a falsa liberdade nada mais traduz do que o rígido engessamento especular. Lasch (1986) em O mínimo eu descreve o minimalismo do eu como derivado do mundo contemporâneo, a este respeito escreve: A vida do dia-a-dia teria assumido muitas características de uma luta pela sobrevivência na qual a melhor saída para homens e mulheres sitiados é centrar-se naqueles segmentos que possam ser “tratados” atingindo um grau de insensibilidade e resignação psíquicas diante de condições inevitáveis. (LASCH, 1986, p. 115) O autor para descrever o minimalismo do eu faz uso da metáfora do holocausto, onde as vítimas pela proximidade da morte se prendiam a propostas momentâneas e possibilitadoras do prolongamento da vida. Assim, o eu torna-se mínimo, restrito ao real do corpo e ao imaginário que perdendo sua articulação simbólica, perde sua condição de reflexão e crítica. O minimalismo do eu vai se 118 caracterizar pelo uso obsedante da repetição, com a criação reduzida de padrões a serem seguidos. Em uma sociedade que privilegia a cultura do corpo, a lógica do simulacro pela repetição da imagem centra no corpo reduzidos padrões a serem seguidos, garantindo, ilusoriamente, a fantasia da juventude e a perpetuação do eu. Tal qual no holocausto, a banalização do corpo transforma-o num objeto disponível à prática de todos os horrores. A partir da Segunda Guerra Mundial, o viver o momento tornou-se a paixão predominante, transbordando em um enfraquecimento do sentido de continuidade histórica. Uma sociedade que só cultua a juventude, não crê no futuro. Voltada para desempenhos particulares e momentâneos, a sobrevivência torna-se o bem maior. Esta aparente liberdade do “viva o presente intensamente”, escamoteia a insegurança e a dependência narcísica do outro, dando origem a posturas defensivas, permissivas e agressivas. Na medida em que as instâncias simbólicas empobrecem, o eu perde o equilíbrio psíquico necessário para a aceitação de regras referentes às relações sociais, o que muito pode nos reaproximar da barbárie. Costa (2004) nomeia a atual obsessão pelo corpo como a marca do hedonismo na cultura contemporânea. No livro O vestígio e a aura apresenta os conceitos de cultura somática e moral das sensações, como um tempo de prontidão afetiva expressado através de sensações corporais. O caráter evanescente, efêmero e fugaz destas sensações são fontes de angústia pelo vazio que provocam. A busca constante de sensações imediatas funciona como muletas insustentáveis, na tentativa de escapar ao desamparo que o próprio viver nos impõe. Segundo o autor, a cultura das sensações vem, nos últimos anos, substituindo a cultura dos sentimentos. Ao contrário da valorização do sentir, o novo estilo de vida passa a valorizar as sensações e a corpolatria, onde a imagem produzida artificialmente torna-se um modelo identificatório a ser seguido. A aparência supera o sentimento. A cultura das sensações gera angústia pela constante ameaça que opera sob o temor de se perder o que se tem, pois o sujeito pode ser ultrapassado por outro imaginariamente perseguidor. A idéia de que há liberdade para tudo experimentar leva o jovem a entrar em um mundo selvagem e competitivo. Este estado de prontidão não abre espaço para o afeto, privando o sujeito do encontro com seu desejo. Costa (2004) nos apresenta uma nova forma de relacionamento do sujeito com ele mesmo e com o outro, a partir do enfraquecimento e declínio das instâncias 119 identificatórias, restando ao adulto em geral e ao adolescente em particular, basearse em escolhas narcísicas e hedonistas. A este respeito, a cultura somática imprime um assédio sobre o sujeito, ao fazer de seu corpo um modelo ideal de perfeição onde, “o corpo se tornou a vitrine compulsória de nossos vícios e virtudes, permanentemente devassado pelo olhar do Outro anônimo”. (COSTA, 2004, p.198) No lugar da busca do Outro como parceiro de ideais compartilhados, este se torna um observador que invade e incomoda e, a este comenta: Desenvolvemos uma espécie de hipersensibilidade a qualquer problema no domínio da aparência corporal. Nos sentimos, com freqüência, melindrados por qualquer observação sobre a nossa aparência física, pois estamos entregues, sem defesas, ao escrutínio moral do Outro. (COSTA, 2004, p. 1999) Cria-se a submissão a extensas forças controladoras que limitam e determinam a construção subjetiva. Paralela à submissão, nasce a punição a todo aquele que foge do padrão estabelecido. Pela lógica da exclusão, o “gordo”, o “baixinho”, dentre muitos outros rótulos, segundo uma moral estética e globalizada, é excluído da felicidade. Na corrida pelo bem estar a todo custo, quanto mais se fala em minimizar a dor e otimizar o prazer, mais se priva do prazer singular, criando um aprisionamento a necessidades forjadas. A inflação do desempenho sensorial do corpo em suas inúmeras manifestações afeta os sujeitos na busca de ideais sublimados. O enclausuramento na própria imagem fratura as trocas simbólicas necessárias à cultura. A moral das sensações, em relação à cultura, promove um sujeito que ao abandonar a posição de narrador de suas experiências, torna-se um mero expectador que reproduz, sem saber, as experiências que lhe são impostas. A concepção de corpo durante a história do pensamento ocidental foi construída através de múltiplos paradigmas, conforme já descrita no primeiro capítulo. Embora não fosse simples nomeá-lo, o significante corpo se fazia acoplado do pronome meu. O dizer meu corpo ecoava, de certa forma, como estabilidade, casa, propriedade. Esta referência se construía inicialmente por um corpo real e fragmentado, tornando-se unificado pela operação do narcisismo, sendo então representado pela linguagem articulando-se ao simbólico. Construído no Outro, o corpo tornava-se próprio. Nos dias atuais o corpo perde algo de sua propriedade, abalando suas referências. Perdido em múltiplas condições de mutação, oferecidas pela tecnociência, o corpo, tal qual um barco à deriva, oscila entre o monitoramento 120 de imagens, os ideais máximos de controle e perfeição estética e o consumo promovido pelo imediatismo e descartabilidade. Na via da negação da castração e da falta, o sujeito da contemporaneidade, paradoxalmente, denuncia os mecanismos de controle sociais através da cultura narcísica de seu próprio corpo. Presentifica em sua própria angústia o consumo de múltiplos objetos, mas em nenhum deles podendo encontrar a pretensa plenitude prometida. Assim, muda-se o corpo quase como se muda de roupa. Botox, silicones, cirurgias estéticas são alguns dos recursos oferecidos para a construção de um Deus de prótese. Uma sociedade que valoriza ao extremo a cultura do corpo estabelece ao contrário da pluralidade, o dogma da perfeição única que, com base na exclusão cria um modelo ideal, uma quase raça pura, tal qual o ideal hegemônico nazista. A demanda do perfeccionismo faz surgir grupos extremamente violentos onde a discriminação e o preconceito tornam-se soberanos. O poder da imagem ideal, ao delimitar um campo de referência narcísica torna-se um poder normatizador em relação aos corpos. O que foge ao padrão ideal é considerado anormal, desviante, ou mais sutilmente chamado de alternativo. A imagem tomada como padrão passa a ser classificatória, produzindo novas formas de relacionamento e construções subjetivas. O sujeito contemporâneo passa a se constituir em uma ditadura estética que, atravessando os tempos, apresenta-se hoje mais poderosa do que em qualquer época. O fenômeno da globalização torna-se possível pelo poder da imagem, pois se há um século atrás o fato era mediatizado em seu tempo, hoje ele é imediato. O que quer que ocorra no reduto mais distante, se dilui no instante pela aproximação permitida pela imagem. O corpo/sujeito passa a pendular entre os ideais de máximo monitoramento e uma estética produzida pelo espetáculo. A mídia, em sua vertente disciplinadora, propõe uma religião onde os mandamentos devem não só ser cumpridos, mas, também, vencidos pela competitividade. O envelhecimento, decorrência do viver, deve ser combatido através de toda uma pletora farmacológica, cosmética e protética. Na cultura do corpo o sujeito abandona referências corporais estáveis, passando a identificar-se com uma mutação constante e performática. Scliar (1997) assevera que as aparentes diferenças buscadas na autoprodução corporal, na verdade funcionam de forma contraditória, pois por trás das mensagens publicitárias que enfatizam a criatividade e o novo, há uma espécie 121 de slogan esquizofrênico: seja diferente e ao mesmo tempo seja igual. De acordo com o autor o consumo globalizado passa a homogeneizar padrões não só estéticos mas também, de comportamento. Estes padrões articulados à censura, ao aprisionamento e à exclusão, são geradores de violência. A ditadura corporal atribui ao sujeito a responsabilidade pela estética perfeita como forma de atingir a aparência ideal. Desta forma cria-se o mito do só é gordo, só é feio quem quer. Mas afinal, em que consiste o ideal de perfeição que o sujeito, através de seu corpo e de seu tempo, quer alcançar? Como podemos contar sua história? Sabemos que qualquer construção sempre foi determinada e circunscrita a sua própria cultura, desta forma, o corpo ideal não estaria fora desta afirmação. Se, na Idade Média os leprosos e as “bruxas” eram segregados e condenados à fogueira, na Idade Moderna, a ciência vai aprisionar os corpos loucos e doentes. Embora o mundo contemporâneo tenha “derrubado muros”, foram criados outros, mais virtuais, midiáticos e não tão concretos. Entre a peste, o louco e o diferente pouco foi modificado em relação à busca da perfeição narcísica. Os valores historicamente atribuídos ao corpo belo são derivados da cultura grega. Mas, cabe aqui ressaltar que, para os gregos o corpo belo era pensado pela via da ética e da estética, e nos dias atuais ele é pensado pela via da mercadoria, do consumo e do capital. O corpo da cultura grega é de certa forma, remodelado na Renascença Italiana. A Igreja enquanto poder dominante, permitia que corpos musculosos fizessem parte da convenção artística, desde que parcialmente vestidos. A figura de Deus, na expulsão de Adão e Eva do paraíso, retratada na capela Sistina e em toda a iconografia da época, não nos deixa dúvidas quanto a isto. O homem, por sua inerente necessidade do espelho, vai caminhar da pintura à fotografia. A era da ciência permite o advento da fotografia tornando-se a grande semente para o mundo atual das imagens, a partir do século XIX. A partir da fotografia nasce o corpo como objeto de exposição acessível à cultura de massa. As estratégias que passam a qualificar o corpo como ideal de beleza organizam então, códigos padronizados esteticamente. O corpo passa a ocupar um lugar privilegiado para o espetáculo, para a mídia e para o consumo. O body building nasce e ganha espaço no período pós-industrial, combinando disciplina, controle, hedonismo e narcisismo. O corpo liberto da submissão e do temor a Deus, passa a ser glorificado pelo desenvolvimento da ciência, tornando-se 122 símbolo de um poder emergente. As modificações corporais, possibilitadas por novas tecnologias, marcam o nascimento do corpo construído a partir de ideais de perfeição, transformando sua singularidade em objeto público. A cultura do corpo, com o advento da fotografia, chega ao imaginário americano, de certa forma, para aplacar um tempo de depressão econômica e greves. Com a necessidade de buscar novas referências que pudessem fortalecer a economia, paralelo ao fenômeno da construção corporal, explode o conceito de moda para vestir e despir o corpo. Surgem os primeiros núcleos para trabalhar o corpo com a finalidade de exercitá-lo com alteres, nascendo as futuras academias de malhação. De acordo com Villaça & Góes (1998) um novo estilo de vida se descortina. Have fun, enjoy yourself, torna-se a máxima na América, entre guerras, com o sentido que possui hoje. A iconografia esportiva do período mostra atletas felizes e tranqüilos refletindo o hedonismo do espetáculo esportivo. “Surge o que se chamou de body language, para designar um modo de comunicação não verbal.” (VILLAÇA & GÓES, 1998, p. 61). O corpo rapidamente ganha status de consumo, transformando levantadores de peso em modelos fotográficos. Surgem os concursos de beleza masculina de Mister Universo e Mister América. Este movimento também repercute na indústria cinematográfica com os épicos de gladiadores, chega a “Era Schwarzenegger”. O body building marca a escalada da cultura do corpo e junto com ela os ideais de beleza e perfeição. A generalização desta cultura cumpre seu papel na explosão de mercado que promove. Academias, centros estéticos, clínicas de embelezamento e spas, são criados em nome do capital. O have fun do início do séc.XX, passa a não mais apontar para um estilo de vida descontraído, transformando-se em uma rígida estratégia de controle do corpo. A cultura contemporânea inaugura uma era de horrores, onde o corpo pode ser metamorfoseado através de múltiplas intervenções. Como um aprimoramento do body building o corpo toma a cena com o body modification, tendo como seu paradigma a figura andrógina de Michael Jackson. O conceito de body modification passa a representar não mais uma construção, mas uma modificação corporal. Sua prática é baseada em novas tecnologias da cirurgia plástica com fins puramente voltados à estética, lipoaspiração, próteses e a química de esteróides chegando à clonagem de animais. 123 Frente ao avanço da tecnociência e aos interesses do mundo do capital, o corpo pode ser modificado de acordo com os ditames da moda. Criador e criatura reinventam-se, na expressão máxima do narcisismo que invade a cultura contemporânea. O poder de criar novos corpos, cada vez mais, próximo à fragmentação, retalha o corpo em múltiplos territórios a serem embelezados. Assim o corpo retorna ao auto-erotismo onde o prazer se faz circunscrito a uma zona específica erotizada. O corpo passa a ser um “nariz reformado”, um “seio siliconado”, uma “barriguinha de tanque”. O corpo fragmentado, para aquém do narcisismo, gera um cenário de angústia, liberador da pulsão de morte, marcado pela sobrecarga sensorial. Segundo Lázaro, (apud, VILLAÇA & GÓES 1998), existe uma associação entre a modificação corporal e a prática da flagelação da época medieval. Se outrora se flagelava o corpo para obter purificação, na atualidade há uma estimulação do viver pela via da dor corporal, muito próxima à pulsão destrutiva. Tal prática, nos dias de hoje, se torna cada vez mais violenta feita de retalhos corporais onde, a propósito da beleza e perfeição a dor é associada ao prazer. Podemos afirmar que a pulsão destrutiva cada vez mais desamalgamada de Eros, torna-se voraz permitindo o consumir de corpos. O corpo entregue a um destino quase artificial, gera sua própria estetização, perdendo o sentido histórico. A fragmentação do tempo em uma série de “presentes imediatos” desfaz sua continuidade. A estetização da cultura do corpo transforma o viver e o corpo em uma obra de arte a ser modificada, de acordo com os ditames promovidos pelo fluxo contínuo de imagens que saturam o cotidiano do mundo contemporâneo. Este cenário configura um tempo onde, o corpo tomado como o mais precioso dos objetos pode ser mutante, rompendo qualquer ordem de origem ou filiação. Villaça & Góes (1998) citam o exemplo de Orlan, professora de Bellas Artes em Dijon. A artista toma seu corpo como escultura, já o tendo submetido a inúmeras cirurgias plásticas e a todos os tipos de modificações. Em seus depoimentos declara a intenção de modificar o corpo como forma de transformá-lo em objeto para debate contemporâneo. Revela que seu trabalho é uma luta contra a natureza, o DNA e Deus, oferecendo seu corpo à arte como uma empresa de sedução, sendo o 124 mesmo, a sua Harly-Davidson. A artista é o exemplo vivo do body modification associado à prática da flagelação. Nossa sociedade privilegia de forma contundente os rituais estéticos para aprisionar o corpo. Até poucas décadas o comprar e o vender produtos, eram restritos a uma materialidade externa e, só quando voltados à química de medicamentos necessários à saúde e a alimentação, os produtos penetravam no corpo. Hoje, a lógica do mercado oferece a possibilidade ilusória e, portanto mágica de construção de novos corpos. É criado um universo de objetos possibilitadores de atingir a utopia da eterna juventude. Na luta para vencer a adversidade temporal, tão bem descrita por Freud, é criada uma pletora de objetos oferecidos para o consumo. São suportes artificiais que, tal qual latusas, em sua função de causar desejo, prometem a perfeição sonhada. Os ícones de nossa cultura, muito se distanciaram das figuras de outrora, sendo produzidos e formatados pela mídia através da divulgação de imagens. Qualquer figura pública que tenha algum prestígio, e aí podemos incluir não só artistas, mas políticos e governantes, passa a necessitar de um profissional que cuide não de sua saúde física ou mental, mas de sua imagem. Surgem novas categorias profissionais: o personal trainer e o marqueteiro. Profissionais regiamente remunerados para produzir ilusões. A produção de aparências e simulacros visa o jogo especular na identificação com a imagem produzida. Além de funcionar como captação imaginária, também opera como mediador simbólico, pois valores éticos e morais em sua falta de substância se esfumaçam na imagem midiática produzia artificialmente. Neste tipo de colagem os significantes beleza e juventude passam a representar sucesso, honestidade, dignidade e poder. Desta forma, alimenta-se o eu instaurando um novo tipo de relação, caracterizado pelo empobrecimento do simbólico. O corpo para a psicanálise se constitui pulsionalmente pela articulação do real, simbólico e imaginário. O real do corpo é representado pela operação simbólica da linguagem quando articulado à imagem unificada do narcisismo. Esta concepção articula a noção de corpo à constituição do eu e à cultura na qual o sujeito está inserido. Desta forma o corpo privado de uma ancoragem simbólica sustentável para se fazer representar psiquicamente, empobrece o sujeito em sua vida relacional. Podemos citar o exemplo do filme de Werner Herzog, O enigma de Kaspar Hauser. Considerado pelos críticos como obra prima do cineasta alemão, o filme 125 narra, baseado em registros históricos, a estranha história de um jovem. A narrativa enfoca a possibilidade de inserção na sociedade de uma pessoa mantida no claustro desde seu nascimento até o final da adolescência, sem ter mantido nenhum contato humano. O jovem Kaspar é encontrado em uma praça na cidade de Nuremberg em 1828. Não falava, e mal podia alçar à bipedia. Ignorava a existência do mundo externo e de pessoas. O alimento que recebia em seu cativeiro, o que lhe permitiu sobreviver, era colocado à noite, enquanto dormia. Jovem adulto é inserido na cultura da cidade onde foi encontrado. Embora tenha aprendido a andar, falar e até escrever, não conseguia entender o mundo que o rodeava e os padrões éticos e morais vigentes impostos pela sociedade. Kaspar não consegue sobreviver à angústia que tudo lhe causava, optando pela morte como forma de libertação. Segundo o filme, o mistério de sua origem nunca foi totalmente esclarecido. Após este breve comentário sobre um filme que tão bem explicita a relação com a cultura, voltemos à questão das novas modificações do corpo em nossa cultura. Estaríamos caminhando para um possível tempo de meta corpo, sob o signo da mutação? Villaça & Góes, a este respeito citam Baudrillard: A espécie humana como a conhecemos está com os dias contados porque, acaba a seleção natural. Está em jogo uma transformação da espécie em si. E, junto a ela, o fantasma da perfeição que vai reinar e também a obsessão pela perpetuação e pela vida eterna. Uma seleção biogenética rigorosa vai levar a uma discriminação terrível. (…) isso significará, simbolicamente, um grau zero de identidade, diferença e de sexualidade. (VILLAÇA & GÓES, 1998, p. 186) Se Freud nos falou do mal estar, Baudrillard tem uma visão mais radical, pois, fala de um novo holocausto. Sabemos que o mal estar na cultura sempre existirá, visto relacionar-se com o objeto para sempre perdido. Mas também acreditamos que o principal legado de Freud foi a palavra. Assim, a Psicanálise através dos caminhos do discurso nos oferece uma possível recolocação do desejo. A palavra como libertadora das ilusões permite que novos significantes venham restituir ao sujeito a propriedade de seu corpo, articulando as pulsões de vida e morte, possibilitando a sublimação de ideais. 126 4.2 A Sociedade de consumo e do espetáculo A expressão sociedade de consumo é usada em referência à sociedade contemporânea como um tempo excessivo, que engloba o capitalismo, a globalização, o imediatismo e a descartabilidade, como um modo de relação entre pessoas, objetos e o mundo, em forma de atividade sistemática, geradora de respostas unificadas a serviço do suporte econômico cultural. Embora o consumo excessivo seja visto como fruto do capitalismo é importante não generalizar seu conceito. Consumir para fins de satisfazer necessidades básicas é uma atividade presente em qualquer sociedade humana. Todas as sociedades consomem para se reproduzirem. O uso de objetos específicos sempre fez parte do arcabouço cultural para fins simbólicos de diferenciação e atribuição de status. Se o consumo sempre existiu, o que fez dele uma principal viga mestra das relações humanas? Poderíamos perguntar quando surge uma sociedade de consumo, e que determinantes fizeram de seu uso a base de sustentação econômica? Embora existam diferentes abordagens sobre uma possível resposta, abordagens estas que não iremos nos aprofundar, existe um consenso sobre o seu nascimento: a expansão territorial e comercial criando um novo fluxo, através do surgimento da burguesia. A partir do século XVI registra-se um conjunto de mercadorias que dificilmente poderiam ser caracterizadas como básicas. Eram rendas, tecidos finos, botões, fivelas, louças, bebidas e produtos de beleza, que favoreciam novas modalidades de consumo e práticas de comercialização e mercado. O consumo familiar, até então era alimentado pela própria família que produzia em grande parte o que necessitava. A nova modalidade de comércio transforma o consumo familiar em individual. O consumo de pátina, caracterizado pelo uso de objetos que passavam de geração em geração, conferia ao objeto uma certa tradição familiar é, então, transformado em consumo de moda. Nas sociedades tradicionais, o estilo de vida se fazia previamente definido, o que condicionava suas escolhas. O estilo era subordinado em parte às leis suntuárias. Nos séculos XVII e XVIII, a corte determinava um modo de consumo pela posição social, independente 127 da renda ou desejo pessoal. A nobreza dependia de favores reais através de rendas vitalícias. O declínio do Absolutismo marca a falência para alguns nobres, falência evitada no casamento com a burguesia, classe então emergente e produtiva. Se, por parte da nobreza o consumo de certos bens era vetado à burguesia, é a burguesia a classe possuidora dos bens necessários à manutenção da nobreza. Assim se fazia o casamento ideal, perfeita união entre estilo de vida e status. A burguesia surge como a classe que rompe com a dependência e juntamente com a revolução industrial, favoreceu sobremaneira o surgimento na sociedade contemporânea do individualismo, do consumismo de mercadorias e da lógica do capital. Desta revolução surge a moda que por sua curta duração, temporalidade e descartabilidade, favorece ao consumo, pois ao valorizar o efêmero, rejeita a tradição. Os sujeitos passam demandar novos estilos de vida, gerados pelo Outro da mídia e da propaganda. Com seus múltiplos objetos, cria-se a geração dos “compradores compulsivos” com a promessa vã de que, a felicidade e plenitude podem ser compradas com cartão de crédito nos shoppings centers. O consumo articulado à lógica da imagem fugaz cria um princípio regulador, que não possui conteúdo próprio e nenhuma ligação com o objeto em sua especificidade. A finalidade maior da aquisição é o tamponamento da falta, impulsionado pelo desejo de reencontrar o objeto perdido. A velocidade dos estilos que se alternam e a redução da vida útil dos objetos facilitam a disseminação de tendências que, alimentam a economia através do consumo. Desta forma a economia descobre o seu mais precioso veio: a fantasia e o aprisionamento do desejo do sujeito. No dizer de Lipovetsky (2005) a moda é o império do efêmero, ao rejeitar toda e qualquer tradição em favor da celebração do espetáculo. Aponta para o efêmero como revelador de uma mutação histórica ainda em processo, onde o consumo de massa e o individualismo rompem com os valores instituídos fazendo emergir novos excessos, marcando a Era do vazio. Para o autor, se as conquistas da ciência e da tecnologia na sociedade moderna romperam com as hierarquias de sangue e a soberania sagrada, na sociedade contemporânea rompem-se as amarras da confiança e da fé juntamente com os ideais revolucionários. Neste sentido, o vazio vai significar o devir, um tempo para que o novo possa emergir. 128 A este respeito Lipovetsky escreve: Os grandes eixos modernos, a revolução, as disciplinas, e a vanguarda foram modificados à força da personalização hedonista; o otimismo tecnológico e científico caiu, as inumeráveis descobertas foram acompanhadas pelo super armamento dos blocos, pela degradação do ambiente e o desmantelamento crescente dos indivíduos; já nenhuma ideologia é capaz de inflamar multidões (…) hoje em dia é o vazio que nos domina. (LIPOVETSKY, 2005, p. 19) Lipovetsky não concebe o nítido retorno ao narcisismo como trágico, mas sim como um recurso libertador da ordem disciplinar vigente. Embora não negue a lógica social hedonista como sustentação econômica, afirma ser esta lógica produtora do impulso narcísico, adaptando o eu ao próprio mundo criado pela sociedade de consumo e, quanto mais investido o eu, mais se faz dele objeto de incerteza. Deste modo o eu não mais se encontra frente a uma imagem fixa, mas desdobra-se em múltiplas imagens gerando todo tipo de flutuações narcísicas e suas conseqüentes desestabilizações. O eu se torna um espelho vazio, em razão das múltiplas informações que por serem fugazes e imprecisas, permitem a erosão de referências e a dissolução dos papéis sociais cristalizados, produzindo novas categorias. Desta forma, a Era do vazio possibilita uma deserção das igualdades na busca de novas autenticidades. Baudrillard (1970) em Sociedade de Consumo faz uma análise crítica da sociedade contemporânea a respeito do consumo e suas implicações com a cultura. Enfoca o deslizamento operado pela lógica dos signos, onde os objetos em si desarticulam-se de sua função e necessidade, passando a representar status e poder. Segundo o autor, a mercadoria se transforma num signo. A psicanálise nos ensina que o sujeito é produto do Outro da cultura, por se constituir em seu seio. O campo simbólico orienta desta forma, a construção subjetiva dentro de uma função avaliativa, o que nos permite afirmar que o conteúdo axiológico de qualquer construção subjetiva, tem raízes em um processo sóciohistórico e político-econômico. O valor econômico torna-se um dos pilares da cultura ocidental que, orientada pelo modelo capitalista, adota o objeto mercadoria como sua sustentação. O valor de um objeto não é propriedade do objeto em si, mas sim pelo que lhe é atribuído simbolicamente, assim não existem objetos em si, mas sim objetos mediados por construções simbólicas determinadas culturalmente. 129 Baudrillard (1970) critica o consumo excessivo como uma modalidade de relação específica da cultura contemporânea, estabelecendo uma íntima relação entre o consumo, o estilo de vida, a estetização e a imagem. Delega à mercadoria um lugar de signo e o seu poder de superficialidade. O poder de efetuar escolhas não mais se baseia em uma real liberdade, mas na submissão a interesses econômicos, manipulados pela massmídia. A valorização dos bens depende mais do status cultural que lhe é atribuído, ou seja, de seu signo, do que de seu valor de uso ou troca. As mercadorias ao assumirem formas de representações simbólicas, transformam a relação do consumidor com a mercadoria, em uma exaltação da imagem. A propaganda opera uma espécie de colagem da mercadoria no signo. Desta forma, a compra de uma geladeira traz junto com o eletrodoméstico a beleza, a felicidade, a sensualidade. Ao comprar um desodorante o homem torna-se esportivo, bem sucedido, atlético e viril, satisfazendo ao narcisismo do consumidor, através da imagem da ilusão. O poder da imagem passa a transformar em divas e deuses, o dócil e alienado espectador, pois este não percebe que está apenas sentado em sua poltrona. O signo ao qual Baudrillard faz referência é aquele que opera uma distorção no consumo, pela obliteração do valor de uso dos produtos quando estes passam a estar a serviço do hedonismo e poder, pela lógica do capital. Assim são criadas demandas inexistentes, alterando a capacidade crítica frente a real necessidade. A pseudoliberdade de consumir revela muito mais uma prisão, pelo engendramento operado nas representações das mercadorias, transformando o sonho de consumo em um verdadeiro pesadelo. O consumo de mercadorias, por sua efemeridade, provoca um constante estado de insatisfação, não havendo nenhum objeto mais estável ao qual a pulsão possa temporariamente se fixar. Embora saibamos que o objeto é mais variável no circuito pulsional, visto ser objeto perdido para sempre, há certa necessidade de que os objetos tenham alguma estabilidade mesmo que seja para “enganar” a pulsão. Caso contrário o viver transforma-se num constante e perigoso mundo de maravilhas, tal qual o de Alice em seu país de sonhos. Segundo Sadala: “A vida torna-se um mundo de fantasias constituído de valores estranhos ao campo do desejo do sujeito. Há um consumo de sua própria subjetividade.” (SADALA, 2002, p. 68). 130 O estado de insatisfação torna-se o motor da incessante busca, pois a abundância é a própria geradora do consumismo. A pluralidade de mercadorias tem como fundamento o pleno estado de insatisfação. A compulsão ao consumo e sua articulação com o capitalismo pode ser analisada na reportagem da revista veja Rio de 23 de abril de 2008 cuja chamada da capa se faz com a seguinte manchete: O mundo dos shoppings: destino de um milhão de cariocas por dia, os 31 centros comerciais da cidade estimam faturar oito bilhões de reais neste ano. Os especialistas garantem: o mercado, em expansão, tem lugar para novos empreendimentos. (REVISTA VEJA RIO, nº16, ano 41, 2008). A reportagem Rumo às compras declara literalmente que, para cativar um milhão de consumidores que circulam diariamente nas seis mil lojas, a vitrine tornase o lugar para os melhores investimentos, pois estas têm um grande retorno lucrativo. O mundo dos shoppings passa a ser projetado como um verdadeiro paraíso, onde nada pode faltar. Jardins floridos, espaços climatizados de padrão cinco estrelas, com todo o tipo de diversão e entretenimento, incluindo restaurantes, cinemas, teatros, internet e lounge para o descanso e o cafezinho do consumidor. Segundo a pesquisa feita pela revista temos atualmente 367 “shoppingsparaísos”, que são montados estrategicamente visando o consumo e o fortalecimento econômico. Embora não possamos negar que estes espaços geram empregos, também neles vemos a promessa paradisíaca do espetáculo. De acordo com Sodré (2006) a retórica da propaganda aperfeiçoada pelo marketing atual, tem como objetivo central o persuadir e emocionar o sujeito em seu apelo à banalidade. Diferente do passado, hoje a mídia não é mais um instrumento de registro da realidade, mas um dispositivo de produção de realidade especializada para produzir a excitação e o gozo dos sentidos. Desta forma, Sodré afirma: O artifício da publicidade e da mídia, com todas as suas ambigüidades no plano dos valores, converte-se numa espécie de “terceira natureza” do homem, progressivamente aceita como plenamente social e em estreita ligação com a estética. (SODRÉ, 2006, p. 79) O autor declara que o esforço de teorizar o espetáculo como a própria realidade, englobando a emoção, a cultura e a construção subjetiva é um mérito de Debord, primeiro teórico a apresentar a visão do espetáculo como uma nova conjuntura histórica. 131 Debord (2002) descreve a sociedade contemporânea através de seu conceito sociedade do espetáculo, onde o espetáculo converte-se na própria sociedade, como instrumento de unificação, tornando-se o resultado e o projeto de um modo de relação e produção. Transforma-se em um conceito unificador por articular uma gama de fenômenos sob a égide da tecnologia, capitalismo e globalização. A sociedade do espetáculo passa a ser um momento histórico em que o consumo atinge totalmente a vida social associada à exploração psíquica do sujeito pelo capital, na exploração do valor-afeto. Configura-se, desta forma, o espetáculo como a verdadeira relação social, graças a imagens orquestradas pela mídia. O espetáculo vai resultar como uma espécie de forma final da mercadoria que, de modo generalizado e difuso, estabelece relações sociais reorientando toda construção subjetiva, capturando o desejo de forma a condicionar o consumo como um ideal. A magia que o Outro do espetáculo promove na construção de ideais, traz consigo a beleza, o poder e a perfeição como formas de homogeneização. Negando desta forma a castração com a promessa do UM totalizador, regulador de um gozo unificado, onde lógica do espetáculo passa a colonizar a massa pela unificação produzida na imagem com a qual o sujeito se identifica. O sujeito expropriado de sua singularidade é empobrecido do potencial criativo, o que causa prejuízos à partilha simbólica. A ilusão do consumo isola o sujeito contemporâneo sob a cúpula gratificante da completude, o que para Sodré caracteriza o “avatar do extremismo individualista do Ocidente”. (SODRÉ, 2006, p. 123) Para Debord a sociedade do espetáculo não é apenas um conjunto de imagens, mas uma relação social mediada por imagens. O espetáculo para além da invasão do mundo pela imagem, materializou-se em uma Weltanschauung contemporânea, transformando-se na principal produção da sociedade atual. O mundo real se transforma em imagem tal qual é descrito no filme de Peter Weir (1998) O Show de Truman. Truman Burbank é adotado ao nascer por uma rede de comunicação. Para ele, é criado um mundo artificial, onde as pessoas com as quais convive são atores. A vida de Truman se passa numa cidade cinematográfica e seu cotidiano é um espetáculo televisivo para milhões de espectadores, sem que o protagonista disto tenha conhecimento. O filme retrata de forma contundente o modelo de panóptico disciplinar de Bentham, conforme descrito por Foucault (1977) em seu livro Vigiar e Punir. 132 Quinet (2002) descreve a sociedade escópica como o jogo do dar-a-ver ao Outro, situado como Ideal do eu, o jogo é comandado pelo imperativo do Mostre-se! Neste jogo o olhar do Outro se faz lei, transformando o exibicionismo próprio do sujeito num imperativo da mídia. Para Debord a vida se degrada no espetáculo especular que, aprisiona a sociedade em desejo eterno de dormir, onde o espetáculo é o verdadeiro guardião deste sono. O autor aponta para um deslizamento do ser para o ter e do ter para o parecer, apagando todo do tipo de singularidade. Na sociedade do espetáculo a exibição do poder econômico se faz sob o princípio da mercadoria fetiche, transformando o consumidor real em consumidor de ilusões, o que marca o seu aprisionamento pela lógica da privação. As demandas são magistralmente criadas, pelo apagamento do desejo, onde as falsas escolhas na abundância especular são então destinadas à banalidade quantitativa. É interessante sinalizar que em um tempo onde há um discurso hegemônico sobre a inclusão, vemos como produtos de maior audiência os programas do tipo reality show. A rede Globo veicula, com grande sensacionalismo, o Big Brother Brasil. Este produto organiza de forma novelesca vários participantes, criando um conjunto de falsas emoções, desafios e conquistas explorando o voyerismo e a sensualidade. O próprio apresentador do programa declara que, sua finalidade é a de premiar aquele que consegue através de um jogo de mentiras e falsas máscaras, excluir um a um os participantes. Ao contrário do discurso da inclusão, o ganhador é aquele que tem o poder de excluir, tornando-se “herói”, que conquista fama e celebridade. O Outro do espetáculo, por mais hediondo que seja, comanda a sociedade não pela ética do desejo, mas pela ética de Sade, do gozo a qualquer preço. Talvez por isto Debord em sua crítica a sociedade contemporânea tenha escrito: A partir de então, é evidente que a imagem será a sustentação de tudo, pois dentro de uma imagem é possível justapor sem contradição qualquer coisa. O fluxo de imagens carrega tudo: outra pessoa comanda a seu bel prazer esse resumo simplificado do mundo sensível, escolhe aonde irá esse fluxo e também o ritmo do que deve aí manifestar-se, como perpétua surpresa arbitrária que não deixa nenhum tempo para reflexão. O discurso espetacular faz calar, além do que é propriamente secreto, tudo o que não lhe convém. (DEBORD, 2002, p. 188) 133 4.3 O adolescente e a cultura do corpo Segundo a psicanálise, qualquer referência ao sujeito é atravessada pela singularidade, em função do descentramento operado pelo desejo inconsciente. Em se tratando do sujeito adolescente não é diferente. Incorrer em sua generalização possivelmente levará a conclusões apressadas e enganosas. Embora saibamos que há tantas adolescências quanto adolescentes, podemos encontrar alguns significantes que se repetem em seu discurso. Um dos significantes mais relevantes é o próprio corpo que se transforma. Conforme já descrito no segundo capítulo, a principal característica da sexualidade humana é a sua divisão em dois períodos, com um período intermediário. Freud assinalava que a chegada da puberdade trazia consigo os investimentos objetais de épocas precoces, que eram reanimados na puberdade. A corrente terna da infância deveria então, convergir para a corrente sensual, sendo este encontro um dos trabalhos da adolescência. O sujeito adolescente é obrigado a se confrontar não só com as mudanças corporais relativas à puberdade, mas, também, com a pulsão que desperta. O corpo torna-se desconhecido e fonte de angústia, na medida em que é remetido à sexuação, à sexualidade e à história libidinal e edípica da primeira infância. Na infância, o humano, sem exceção, pela própria verdade que o constitui, é objeto de gozo para o Outro. Objeto narcísico dos pais da infância, a criança passa a amar aqueles de quem é objeto, instalando-se desta forma a corrente de ternura que a liga ao Outro. Junto à ternura resta algo do gozo, a sexualidade, que com o declínio do complexo de Édipo é inibida pela latência. Entre a corrente terna e a sensual existe uma descontinuidade, um corte no saber. A criança que goza não sabe para que serve o seu gozo e, o adulto embora saiba para que serve já esqueceu que gozou na infância. O período da latência representa, então, a moratória necessária entre o gozo infantil e o saber trazido pela vida adulta. Assim, o adolescente desperta com um pé na latência e o outro na busca de um saber, tal qual um equilibrista no fio de arame. Nesta passagem desvela algo escondido, o fato de ter sido objeto de gozo do narcisismo de seus pais. O desvelar desta verdade vai impulsioná-lo a abandonar sua posição infantil, 134 em direção à posição subjetiva de adulto. Assim o adolescente certamente caminha, com tropeços, tentando se manter em um espaço entre dois mundos. Um mundo que conhece e não quer mais, e um mundo que quer, mas não conhece. A corrente terna da relação de amor aos pais torna-se mesclada pela sensual, o que lhe obriga a desenvestir dos objetos parentais, pois o saber adquirido sobre sua posição de gozo do Outro, faz com que o adolescente abandone este lugar. No desenvestimento dos objetos edípicos, a libido retorna ao eu. Ao perder o valor da imagem corporal no narcisismo dos pais, o adolescente passa a investir em seu narcisismo tomando seu próprio corpo como principal objeto de amor. Nesta economia, necessária ao desligamento, passa a se opor radicalmente à imagem referenciada na infância. Intensificam-se as questões em relação ao corpo, pelas metamorfoses que a adolescência experimenta e tais mudanças fazem com que o sujeito adolescente retorne de certa forma ao narcisismo. Podemos afirmar que a adolescência reedita algo do narcisismo, e algo do estádio do espelho. Frente à perda da imagem corporal infantil e da criança ideal de outrora, o adolescente necessita readquirir o júbilo que lhe permita uma nova unidade, para ressituar-se como sujeito da linguagem. É deste lugar que poderá reordenar suas vivências tanto reais como imaginárias. Pela ruptura com o vínculo infantil e transformação da imagem corporal, a adolescência torna-se um momento crucial em relação às referências simbólicas da cultura na qual está inserido. O adolescente sabe que é deixado cair pelo Outro idealizado na infância, e que este não mais pode sustentá-lo, pois também é castrado. Neste momento de queda necessita como nunca do Outro da cultura, que lhe devolva um olhar. O corpo na adolescência, ao contrário do corpo silencioso da latência, é o corpo que grita. Grito que é endereçado ao olhar do Outro que lhe dê suporte, suporte capaz de ofertar um campo simbólico para suas realizações ideais, tanto sexuais como sociais, realizações que permitirão a emergência do Ideal do eu. Lacan nos diz que o sujeito sai do Édipo como detentor de títulos de propriedade no bolso. Estes títulos são guardados na latência como uma reserva, para serem usados com a chegada da adolescência. É, então, na adolescência que o sujeito irá “investir” seus títulos através da busca de seus ideais. Desta forma, o Ideal do eu torna-se uma instância de extrema importância para o adolescente, posto que transmitido na infância, transforma-se na adolescência em metas ideais. 135 A cultura do corpo encontra-se altamente impregnada de ideais narcísicos, não sublimados, onde o corpo jovem é tomado como paradigma ideal. Desta forma podemos considerar que a cultura na qual o sujeito adolescente irá consolidar seus ideais está marcada pelo hedonismo e pelo culto ao corpo. Cabe aqui ressaltar que o conceito da adolescência se afirma no pós-guerra, um tempo de destruição, horrores, feiúra e morte. É curioso lembrar que o advento da adolescência, enquanto conceito esteja referenciado a períodos bélicos, onde a dor e a morte tornavam-se vizinhos vorazes. A juventude passa a ser, pela própria necessidade cultural, uma idealização coletiva. Como imagem ideal de perfeição, o adolescente torna-se depositário de atributos como força física, vigor, felicidade, beleza e poder. Podemos então inferir que a adolescência nasce com a responsabilidade de fazer renascer uma sociedade em crise, ameaçada pelos terrores da guerra. Temos então o adolescente mergulhado em uma cultura que faz dele e de seu corpo o próprio ideal. Usando as palavras de Lacan, o adolescente ao resgatar seus “títulos”, encontra em sua cultura suportes que o mantém cativo, não conseguindo ir muito além do espelho. O jovem passa da submissão passiva do gozo criança-objeto do narcisismo dos pais, para ser objeto de gozo de uma cultura narcísica. Lacan faz referência à constituição do imaginário, responsável pela formação do eu, como “nó da servidão imaginária”. “Tu és isso” é o nó formador do sujeito no desejo do Outro. A saída deste nó, só se torna possível com a separação operada pela via do significante, tomando a linguagem como mediadora. Esta mediação é o que vai permitir a interdição e, portanto a falta, para que se faça a chegada de Eros entre o sujeito e o outro, possibilitador do desejo e dos laços sociais. Se a prisão no imaginário provoca uma estagnação mortífera, é pela via da palavra que o sujeito adolescente pode, pela presença do simbólico sair da posição de objeto de gozo do Outro. Nominé ao observar este tipo de submissão construída pelo Outro da cultura, alerta: Nesse momento de abandono, o sujeito adolescente está pronto para tudo, principalmente para oferecer-se como o pior dos escravos, visando reviver o Outro sob a figura do mestre impiedoso que quer tudo. É nisso que o período da adolescência se presta de bom grado ao misticismo. No entanto, isso pode dar lugar a exércitos de todos os tipos, dos quais a 136 história oferece alguns exemplos surpreendentes: os camisa marrom, a juventude hitleriana, os guardas vermelhos. (NOMINÉ, 2001, p. 43) No seminário livro 17, O avesso da Psicanálise, Lacan (1969/70) nos fala de objetos produzidos para causar o desejo nomeando estes objetos de latusas. A cultura do corpo que faz do adolescente o seu ideal, não cessa de produzir latusas capturando o desejo do adolescente. Se antes os adolescentes foram capturados como salvação em nome de ideais patrióticos, na contemporaneidade, o desejo do sujeito adolescente é capturado em nome do consumo e do capital. É comum em nossos dias o uso da imagem do adolescente na propaganda. À mídia é conveniente e lucrativo usar o corpo jovem para vender seus produtos e idéias. A imagem do adolescente é utilizada para diversos fins lucrativos, pois com ela vende-se a moda, o saber, o lazer chegando ao seu extremo mais perverso da exploração sexual. Se atribuirmos ao consumo o estatuto de parceria na construção subjetiva da adolescência, podemos então situá-lo na dimensão do gozo. A busca de “objetos latusas”, que perpetua a juventude, nega ao adolescente a castração necessária à instauração da lei. A cultura do corpo veicula a promessa de que nela poderá ser encontrada a completude, abolindo a falta que impulsiona o desejo. Lacan (1960) no texto Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano, nos diz que é preciso que o gozo seja recusado para que possa ser atingido, na escala invertida da lei do desejo, pois só atravessado pela castração o sujeito pode implicar-se em seu próprio desejo. Com tantas latusas torna-se muito difícil a saída da adolescência visto que, tudo o que é bom, interessante e grandioso está circunscrito a este tempo, transformando a maturidade num fardo a ser carregado e, portanto postergado. O corpo jovem tomado como idealização máxima faz com que o adolescente, muitas vezes, se ofereça ao gozo mortífero da pulsão de morte. Freud (1914), conforme já dissemos, marca a diferença entre a idealização e a sublimação. A sublimação é considerada um processo que diz respeito à libido objetal, oferecendo à pulsão um objeto de satisfação não sexual. A idealização, dizendo respeito ao objeto, não alterando sua natureza sexual, sendo o objeto engrandecido e exaltado. Para Freud a idealização aumenta as exigências do eu, constituindo um fator poderoso a favor do recalque. 137 Considerando a adolescência como um tempo de construção de ideais e, para que tal construção aconteça é necessário um lugar cultural que ofereça possibilidades simbólicas de sublimação, onde a libido vai buscar novos objetos, que objetos nossa cultura oferece? Uma cultura onde o corpo é tomado como principal objeto, faz com que o adolescente continue aprisionado à teia do imaginário e às forças do recalque, não oferecendo as condições necessárias para que ideais sublimados possam ser atingidos. Neste sentido, alguns adolescentes continuam alienados, não mais como objeto de gozo do narcisismo dos pais, mas como objeto de gozo de uma cultura narcísica que toma seus corpos como o próprio ideal. Desta forma, a cultura contemporânea, no que diz respeito ao centramento no corpo jovem, toma-o como ideal de salvação na tentativa de escapar de seu próprio vazio e desamparo. No consumo do corpo adolescente “há um ‘consumo do sujeito’, entendido como devastação do campo de seu desejo. Consumir assume aqui o significado inicial de seu uso: destruir, esgotar.” (SADALA, 2002, p. 67). Embora nos dias atuais, haja uma aparente liberdade de escolhas, paradoxalmente, a vida sem compromissos do prazer ocasional centrada no corpo, não permite o engajamento na cultura, não organiza a existência e não oferece a base simbólica necessária à construção de ideais. A existência passa a ser construída de uma sucessão de momentos, sem projeção futura e continuidade. A cultura do corpo, mergulhada na produção de imagens virtuais, oferece uma forma lúdica de relação com o outro semelhante, onde é possível viver “vidas sucessivas” sem nenhum compromisso. A abolição dos limites da realidade promove uma vida de ilusões. O enaltecimento da eterna juventude opera um tempo infinito para a adolescência. Esta se torna a cada dia mais extensa, com o encurtamento da infância e uma maturidade que deve custar a chegar. A adolescência, tomada como modelo ideal a que todos devem seguir passa a constituir um imperativo social: Seja jovem! Tenha sucesso e seja feliz! Acreditamos que a constituição do sujeito contemporâneo esteja mais determinada pela via da identificação imaginária, materializada pelo repertório midiático de latusas, do que por identificações operadas por instâncias simbólicas. Com a criação da estética jovem para todos, é possível afirmar a existência de um ideal cultural com o qual os adultos passam a se identificar. Constatamos em 138 algumas famílias contemporâneas um movimento de abolição de diferenças. A partir das últimas décadas do século XX, foi criada a famosa “geração pais e filhos”. Revistas promoviam o apagamento de diferenças onde os pais deviam ser colegas de seus filhos. Pais passam a freqüentar os mesmos espaços, a usar a mesma linguagem, as mesmas roupas e a ter os mesmo hábitos. Pais deixam de ser pais para se tornarem apenas amigos. Apagada a diferença de gerações todos se tornam adolescentes. Embora o adolescente necessite separar-se de seus pais, condição preponderante para conquistar seu desejo, é exatamente na adolescência o tempo em que o sujeito necessita mais de seus pais como figuras primeiras de identificação e referência. O afrouxamento da autoridade paterna gera angústia no adolescente, pela falta de sustentação que promove, pois a presença dos pais junto aos filhos é o principal fundamento para que ele, o jovem, possa deles se separar. A cultura contemporânea oferece ao adolescente um espelho totalizante, uma imagem sem furo, tal qual o espelho de Dorian Gray que, frente ao horror daquilo que não pode ser visto, nega a castração. A questão que aqui se coloca é saber de que lugar simbólico o sujeito adolescente vai adquirir consistência imaginária, ou melhor dizendo, que lugar a cultura oferece como sustentação necessária para que a adolescência não naufrague. Dentro de uma perspectiva que articula o real e o imaginário ao simbólico, podemos asseverar que o corpo conjuga não só a imagem, mas também o significante. Coutinho Jorge (2005) a partir da definição dos registros lacanianos do imaginário e do real, nos diz que o imaginário é o sentido, e o real como seu avesso é o não sentido ou a ausência de sentido. É o simbólico como sendo da ordem do duplo sentido, aquele que marca o campo da linguagem pela incidência da lógica do significante, tornando-se o “verdadeiro articulador do sentido com o não sentido”, localizando no campo da linguagem, o lugar de constituição do sujeito. Em uma cultura onde o Outro toma a beleza e a juventude como prioritários, torna-se extremamente tortuoso ao adolescente construir ideais sublimados. Para Lacan (1957-58) o desejo ao cruzar o significante encontra o Outro como sede do código, produzindo a refração do desejo pelo significante. A partir da entrada no código da cultura, no encontro com o Outro, o sujeito já é submetido à dialética do desejo. Assim qualquer satisfação possível do desejo vai depender do 139 sistema significante articulado na fala do sujeito. Lacan destaca o significante Tu como a “fala fundadora da história do sujeito”. O Tu é o significante do apelo ao Outro. É aquele que invocamos como marca da construção subjetiva. Desta forma toda a satisfação da demanda, na medida em que depende do Outro, é autenticada pelo “Tu és”. Mas do que o Outro faz apelo ao jovem? Tu és adolescente, és belo e teu corpo é promessa de eterna felicidade! Transformando, assim, o corpo adolescente no mais belo ideal a ser seguido e consumido, tomando-o como objeto de poder normatizador. Quinet (2004) descreve a possessão do significante como a propriedade concedida pela linguagem ao corpo, enquanto qualificado de ser. O corpo simbólico, tal qual um orixá da umbanda, é aquele que é possuído pelo Outro da linguagem, determinando o seu desejo. A cultura do corpo se apossa do sujeito adolescente, de seu corpo e de seu desejo em nome da salvação e do capital. Quando o Outro da cultura delega ao jovem o poder de sua salvação, de certa forma promove um desejo de cristalização e isolamento, pois em uma sociedade que teme o envelhecimento, a juventude, cada vez mais idealizada, se eterniza. De certa forma, Freud (1914) em seu texto Sobre o narcisismo: uma introdução já preconizava este fenômeno, quando afirmava que o amor dos pais tão tocante e infantil, apesar de sua metamorfose em amor objetal, no fundo era o amor por si mesmo renascido. No narcisismo dos pais eram atualizadas suas próprias demandas de apagamento das leis da natureza, negando o envelhecimento, a doença e a morte. A afirmação freudiana nos permite entender como cada sociedade vai produzir sua adolescência, de acordo com cada época. Seria ingênuo pensar que em algum tempo o fenômeno da adolescência não tenha existido. As mudanças corporais e as exigências pulsionais sempre afetaram a subjetividade com suas especificidades, em relação à fase púbere. Mas, em outras épocas, os rituais de ordem simbólica marcavam o tempo da puberdade, tendo a função de sustentação para a apropriação do ser adulto. Embora o corpo também fosse objeto nos rituais de passagem, ele não era explorado em função do consumo e do capital. O corpo adolescente era tomado como o lugar de inscrição de novas marcas, insígnias de pertencimento, que delimitavam a morte da infância e o nascimento do adulto. Os rituais eram facilitadores desta passagem, e visavam à perpetuação da tradição e ancestralidade. Na atualidade, a cultura contemporânea nega qualquer tradição, ao apostar no efêmero e imediato como marcas do individualismo. O sujeito 140 adolescente se encontra mergulhado em um tempo desprovido de valores fixos, sendo obrigado a buscar valores em uma sociedade de múltiplas possibilidades, rápidas transformações e ameaças sucessivas, o que não lhe confere um conjunto ordenado onde possa fixar-se. Freud (1905) afirmava ser a puberdade um dos principais momentos de recrudescimento pulsional, onde a exigência da pulsão faz apelo a uma inscrição simbólica a partir do campo do Outro. Nos dias atuais acelera-se a precariedade da maioria dos modelos nos quais o sujeito adolescente possa encontrar suporte. Esta precariedade aponta para uma redução no horizonte dos ideais, horizonte imprescindível para que a adolescência existir. Os pontos de suporte significantes que sustentam a adolescência contemporânea estão em número cada vez mais reduzidos ao narcisismo e ao hedonismo. O declínio da autoridade paterna pelas novas configurações familiares é, também, uma questão que atinge aos adolescentes. Hoje, com este declínio, os jovens têm mais dificuldades de estabelecer seus ideais. Freud (1923), em O Ego e o id, correlaciona a gênese do Ideal do eu com um tipo de identificação “primeira e de maior valência” a identificação ao pai. Lacan (1960-61), no Seminário livro 8, A Transferência, descreve este momento como uma “referência original ao Outro na relação narcísica” (LACAN, (1960-61),1992,p. 344) interiorizada por um termo simbólico primordial: o traço unário. Este tipo de identificação, fundamental no complexo de Édipo em seu declínio, toma o pai como Ideal. No mundo contemporâneo os ideais são flutuantes, pois a figura paterna não mais cristaliza tantas tradições. O filme Aos Treze aborda de forma contundente o declínio da autoridade paterna através da história de Tracy, uma jovem de treze anos que tem a vida assolada pela droga e pelo comércio de seu corpo. O filme tematiza os desdobramentos da cultura narcísica e seus efeitos quanto à diferenciação e reconhecimento dos jovens. A mãe de Tracy, assim como os adultos cuidadores presentes na narrativa, são mostrados como adolescentes velhos, saudosos de um viço que não mais possuem, sendo tipificados de forma muito semelhante aos jovens: consomem drogas, bebem em excesso, tatuam seus corpos, enfim, parecem tão imersos na dimensão imaginária do gozo ilimitado quanto os próprios filhos. O filme mostra que, quando o adolescente não encontra 141 no tecido social, meios de se fazer representar, acaba, na maioria das vezes, buscando vias extremas de acesso ao reconhecimento. Em relação a este contexto de indiferenciação entre adultos e jovens, Kehl (2004) argumenta que o ideal de perfeição de nossa época reside no índice de juventude corporal e emocional que o sujeito porta. Tal valor acaba por produzir, no adolescente, um estado de desamparo, já que este ideal aponta para um excesso no presente, não balizando uma perspectiva futura. Desta forma os jovens sofrem maior pressão para preencher os ideais de beleza, felicidade e bem-estar que a cultura neles projeta. O estilo de vida jovem paralelo à exibição de aparências e a imediatização dos eventos pela intensidade de informações que neles comporta, aponta para significativas formas de mutação na cultura contemporânea. O Outro tal qual concebeu a acepção lacaniana é o lugar que nos permite pensar o sujeito em sua dependência originária, não havendo, portanto, sujeito sem o Outro. Desta forma, o Outro marca a origem do sujeito e neste sentido podemos afirmar que no Outro há uma questão do Pai. Dufour (1999) cita o ensino lacaniano como o operador da conecção conceitual entre o Outro, o Nome-do-Pai como agente do significante mestre e a linguagem como tesouro de significantes, assegurando a função simbólica. É o Outro que funda o sujeito tanto em sua singularidade como também no coletivo. A cultura de nosso tempo, em seu lugar de referência simbólica, tornou-se um lugar que não cessa de mudar, fazendo do espaço simbólico um solo movediço. Assim, para o autor, são construídos muitos Outros e muitas figuras do Pai. Em relação a esta multiplicidade escreve: Haver renunciado à ficção do Outro certamente nos liberou dos velhos ídolos tirânicos, mas nos confronta com o dever de suportar diretamente a loucura das formas auto-referenciais. É por isso que não posso pensar no advento da pós-modernidade de outra maneira se não como a entrada na era da loucura que, não sendo mais contida, só pode agora derramar diretamente na história. (DUFOUR, 1999, p. 22) 142 O adolescente precisa encontrar na cultura que vive figuras possíveis que possam confirmar seus ideais. Embora estas figuras ainda existam, parecem carecer de prestígio. Com o declínio das figuras da autoridade começa a delinear-se um sujeito que, pelo empobrecimento de uma heteroreferência, se define pelas lentes do individualismo e do narcisismo. O tempo da adolescência não se define por uma temporalidade universal, mas sim lógica. Seu tempo implica em luto e renascimento. Luto pela criança que naufragou ao Édipo, e que necessita afastar-se do suporte narcísico do eu ideal para trilhar um caminho com suas insígnias, referências herdadas ao final do complexo de Édipo, que lhe permitam eregir o Ideal do eu. Freud, em Luto e Melancolia, descreve o luto como “a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido (…)” (FREUD, (1915) 1969, v.14, p.275), e, por este motivo, o mundo “torna-se pobre e vazio”. Faz referência à operação de luto necessária à adolescência no texto Romances familiares, afirmando ser este luto um dos mais dolorosos para o sujeito adolescente. E segundo Freud: Ao crescer o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o que constitui um dos mais necessários, ainda que mais dolorosos, resultados do curso de seu desenvolvimento. Tal liberação é primordial e presume-se que todos os que atingiram a normalidade logram-na pelo menos uma parte. Na verdade todo progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre gerações sucessivas. (FREUD (1909), 1969, v.9, p. 243) O trabalho de luto realizado na adolescência necessita como em nenhum outro momento do suporte dos pais, pois libertar-se da autoridade dos pais, de modo algum implica em abolir as referências simbólicas do significante paterno que constitui o sujeito em sua relação com a linguagem, marcando de forma singular o seu desejo. É justamente o traço transmitido na identificação ao pai, o Ideal do Eu, aquele que vai garantir o luto, dando suporte a novos investimentos objetais. É esta marca que permite ao adolescente retirar-se da alienação de seu próprio corpo, abandonando o lugar cativo de objeto de gozo do Outro, para lançar-se no caminho singular de seu desejo. Juntamente como luto dos pais da infância resta ainda a ultrapassagem da imagem do eu ideal, que se desmorona frente ao espelho do Outro. É com seu corpo que o adolescente vai buscar novas formas de inscrição, articulando toda a 143 experiência corporal, com a marca de sua cultura. Tomar o corpo como um registro cultural é dotá-lo de registros que permitam afirmar a sua singularidade e diferença e, ao mesmo tempo, permitir o reconhecimento de laços com o coletivo. É nesta articulação entre a singularidade e a alteridade, no reconhecimento da diferença que encontramos uma dimensão ética para a experiência corporal do sujeito adolescente. Se a adolescência oscila entre o narcisismo e a alteridade, é nesta oscilação estrutural que o Outro oferece novas possibilidades de inscrição pulsional para que o sujeito adolescente possa abandonar a utilização voraz e predatória de seu próprio corpo operada pela pulsão de morte. Caso contrário o corpo adolescente torna-se um cenário apenas carnal de descarga pulsional do sujeito, que o devora como a um canibal. O trabalho de luto ao qual Freud se refere nada mais é do que o abandono do lugar que o sujeito ocupava para o Outro, na ilusão de sustentação narcísica. Mas o luto também é instaurador de uma nova posição subjetiva e nova busca de objetos que permitam à pulsão circular. O defrontamento com o engodo da promessa narcísica é o que permite ao adolescente autorizar-se na busca de seu desejo, mas para tal busca é necessária a constatação da falta e, conseqüentemente da incompletude. Freud (1915), em seu breve e belíssimo texto Sobre a Transitoriedade nos fala da beleza e da finitude. Aborda a questão do trágico inerente à beleza e nos adverte sobre o valor do belo, para além dos limites da facilidade e do imediatismo e de forma poética afirma: A beleza da forma e da face humana desaparecem para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhe empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. (FREUD (1915), 1969, p.346) Neste texto, Freud aponta para a dificuldade dos homens poderem entender a beleza como fadada à transitoriedade, ao comentar a fala de um poeta que não podia apreciar o belo da natureza expresso na paisagem do verão pelo fato de que, a beleza do cenário findaria com a chegada do inverno. Ao contrário do poeta, defende a idéia de que a transitoriedade da beleza deveria implicar no aumento de sua exaltação e não na sua perda de valor, declarando que: O valor da transitoriedade é o valor da escassez do tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era, 144 incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. (idem, p.345) Privilegiando o sentido dado por Freud à transitoriedade do belo, podemos relacionar a dificuldade do poeta frente ao efêmero e a cultura contemporânea. Em ambas podemos sentir a dificuldade de lidar com a finitude, a falta e a castração e conseqüentemente com o desamparo fundamental. O reconhecimento da falta estará sempre ligado à forma singular como cada sujeito sai em busca da procura de sua existência, e como cada um constrói sua teia de significações no encontro com o Outro. No Outro contemporâneo podemos perceber a dificuldade da aceitação e limitação do gozo através da busca incessante pela beleza e juventude, tomando o corpo do adolescente como paradigma. Porém, a mitologia nos diz que Narciso deve morrer jovem, porque belo, pois se continuar vivo seu destino é envelhecer. Assim a juventude é inevitavelmente marcada pelo passageiro e assujeitada à temporalidade. A beleza de Narciso, embora perfeita, era efêmera e a paixão por si, antecipa sua morte. Os ideais de beleza contemporâneos mortificam o sujeito adolescente mesmo antes que seu fim se aproxime. Os jovens que não conseguem reconhecer em seus corpos os padrões ideais ditados pela cultura do corpo, não conseguem valorizar seus corpos como singulares, belos e mortais, o que os condena à exclusão. A criação da “feiúra” que invade a cultura do corpo desvela, em última instância, a sua própria dificuldade de elaborar o luto necessário para a castração, pois toca em sua ferida essencial, ou seja, a sua condição de desamparo. Desta forma, a transitoriedade da juventude fica minimizada pela possibilidade de produzi-la, e a finitude ilusoriamente neutralizada pelo controle corpo. Se o mundo do capital, do consumo e das imagens afirma ser possível produzir beleza e juventude, negando a perda e a falta, de certa forma delega ao sujeito o controle ilusório da própria morte. Em relação ao luto, à interdição e à herança, Goethe (1749-1832), em o Fausto (1808), nos alerta: “O que hás herdado de teus pais, Adquire para que o possuas O que não se usa, um fardo é, nada mais. Pode o momento usar tão só criações suas.” Pensamos que a herança paterna é, para a psicanálise, a herança que diz respeito à castração e à falta, como marcas estruturais onde a adolescência pode 145 ser configurada como um momento fundante de acesso ao desejo, para a construção de seus ideais. A partir de então, é através da palavra que o desejo do sujeito adolescente poderá ser sustentado. 146 CONSIDERAÇÕES FINAIS Não há dúvidas que a cultura contemporânea trouxe progressos. Não se pode negar os benefícios alcançados pela ciência e tecnologia, caso contrário estaríamos incorrendo, no mínimo, em um ingênuo retrocesso. No entanto é crucial pensarmos em seus efeitos sobre o sujeito adolescente, pois como nos diz Costa “o carro da história não tem marcha à ré”. (COSTA, 2004, p.240) Querendo ou não, somos sujeitos contemporâneos e este é o mundo em que vivemos. É exatamente esta constatação que nos leva a refletir sobre o lugar que ocupamos junto aos adolescentes. Se a Psicanálise se depara, nos dias atuais, com situações inquietantes, segundo Sadala “paradoxalmente são essas mesmas situações que garantem sua presença” (SADALA, 2001, p.254). Se o mundo contemporâneo tenta velar a presença do desejo, mais do que nunca é na palavra que podemos encontrar o seu desvelamento. A contemporaneidade toma como um dos principais pilares de seu discurso a cultura do corpo e para tal se apodera do corpo adolescente como ideal de perfeição. Embora o discurso do corpo jovem, como salvação econômica, seja dominante nos dias atuais, não acreditamos que seja hegemônico. Cremos em outros discursos e um deles é a psicanálise. Retornamos aqui à constituição do corpo para a psicanálise e ao conceito de pulsão, pontos dos quais partimos para a elaboração deste trabalho. A pulsão toma o corpo como objeto privilegiado e busca se fazer representar no psíquico. A partir das bordas corporais busca caminhos possíveis de representação, mapeando a sexualidade. Na troca com o Outro, o corpo se unifica no narcisismo e na identificação operada pelo estádio do espelho, o que lhe confere a unidade essencial a sua sobrevivência. As trocas iniciais com o Outro materno favorecerão a ilusão completude que será rompida pelo complexo Édipo, instaurando a lei da castração e a entrada no mundo da linguagem. Na passagem do eu ideal para o Ideal do eu, algo se perde, revelando-se como motor do desejo. Diante da incompletude, e da impossibilidade de todo, fica um resto que faz a pulsão circular, pois da falta, a 147 pulsão não quer saber. Em sua força constante, frente ao objeto para sempre perdido, estabelece seu circuito na busca de novos objetos que lhe ofereçam satisfação. Neste percurso o corpo revela sua história erógena que, de braços dados com a pulsão pelo vazio da falta, funda o sujeito e a perenidade de seu desejo. Desta forma a pulsão vem ocupar o lugar de conceito fundamental, que toma o corpo como o primeiro motor do psiquismo. O tempo da adolescência retoma a força pulsional e junto com ela o corpo que se transforma. Mas a pulsão tem seus caminhos e o retorno ao próprio eu é um deles. É na adolescência que a pulsão retorna ao eu, o que nos permite afirmar que a adolescência repete um tempo de narcisismo, necessitando de um novo espelho que forneça unidade ao corpo. A cultura contemporânea ao transformar o corpo adolescente em um corpo idealizado, não permite que o jovem saia em busca de novos objetos, aprisionandoo em seu corpo. Freud já nos afirmava que era imprescindível que a pulsão buscasse objetos para além do corpo. Coutinho Jorge (2005) nos afirma que a pulsão exige satisfação a “qualquer preço” sendo absolutamente necessário para a economia libidinal, encontrar uma saída diferente do recalque. A idealização do corpo reforça o recalmento, escamoteando o enlace do desejo com a lei. O autor aponta para a sublimação como a vicissitude que permite escapar ao recalcamento, dando à pulsão o seu verdadeiro estatuto, ao “dizer sim à pulsão”. (COUTINHO JORGE, 2005, p. 155) Afirmamos a nossa concordância com o autor, pois ao retirar do objeto o seu caráter sexual, a pulsão pode fluir para além do recalcamento. É necessário então, que o sujeito adolescente possa abandonar a morada do corpo idealizado que a cultura lhe oferece e, para tal, trilhar os caminhos da sublimação. Já em 1901, Freud em um dos significados que confere ao conceito de sublimação, descreve o seu sentido como sinônimo de verbalização ou de experiências verbalizadas, considerando-o uma forma sublime de contribuição cultural por permitir o desvio para objetos não sexuais. Desta forma toma a palavra como um caminho da sublimação da pulsão. Lacan ressalta a vertente ética da sublimação, posto ser o caminho pulsional que permite lidar com algo para além da representação, possibilitando alguma aproximação de das Ding. Se a sublimação eleva um objeto à dignidade da coisa não representada, podemos afirmar que a palavra como objeto sublimado oferece à 148 pulsão novas formas de satisfação. Dar a palavra ao sujeito adolescente é oferecerlhe uma possibilidade de criação. Neste sentido cabe a todos aqueles que ocupam, de alguma forma, o lugar de instância simbólica oferecer ao adolescente o campo fértil da palavra como ato criador, permitindo a articulação do desejo com a lei. Se o discurso contemporâneo centra seu fundamento no corpo jovem é neste ponto que a psicanálise pode oferecer um novo enlace. Que o corpo possa ser esculpido em palavras, transformando o sujeito adolescente num escritor criativo que, com seus poemas possa contribuir para novos horizontes culturais. A este respeito cito Sadala: É preciso, então, recuperar o poder da palavra, para se contrapor a saturação de imagens, o que pode ser feito com a reinvenção do sujeito e consequentemente recolocação de seu desejo; com a abertura de um espaço para crítica e com a possibilidade de um retorno da delicadeza em seus encontros. (SADALA, 2001, p. 254) Entendemos que o reconhecimento de mudanças e padrões sociais implica em buscar transformações que possam dar lugar a novas construções subjetivas. Ao contrário de assumir uma visão apocalíptica para nossos tempos, preferimos acompanhar o legado freudiano que assinalou o lugar da psicanálise como desarticulador das ilusões do homem. Freud ao descentrar o sujeito, retirou do eu a condição de senhor de seus desejos. Acreditamos que, mesmo em um tempo onde a cultura do corpo aponta para uma unificação que amordaça o sujeito adolescente, é possível que ele possa agir e transformar o lugar que lhe oferecem. A psicanálise nos aponta o lugar da singularidade, do devir e do não todo, assim podemos afirmar que uma pesquisa sobre O adolescente e a Cultura do corpo pode contribuir, de alguma forma, para que surjam novos discursos sobre o sujeito adolescente. 149 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A Bíblia Sagrada. Imprensa Bíblica Brasileira 1948. ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ABERASTURY, A. e outros. Adolescência, 6ª ed, Porto Alegre: Artes Médicas. 1990. ABERASTURY, A., KNOBEL, M. Adolescência Normal, um Enfoque Psicanalítico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1981. ALBERTI, S. Esse sujeito Adolescente. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1999. ______. O adolescente e o Outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. ALBERTI, S. e CARNEIRO RIBEIRO, M.A. (org). Retorno do exílio - o corpo entre a Psicanálise e a ciência. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004. ANDRADE, C. D. “As contradições do corpo”. In: Corpo: novos poemas. São Paulo: Record, 1984. ANDRÉ, S. A Impostura perversa. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. ______. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. 2.ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981. ASSOUN, P. O Olhar e a voz: lições psicanalíticas sobre o olhar e voz: fundamentos da clínica à teoria. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999. BARBOSA, L. Sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. BAUDRILLARD, J. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70 Ltda, 1970. BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. BLEICHMAR, H. O narcisismo – estudo sobre a enunciação e a gramática inconsciente. Porto Alegre: Artes Médicas. 1985. BLOS, P. Adolescência uma interpretação psicanalítica. São Paulo: Martins Fontes, 1985. BRANDÃO, J. Dicionário Mítico-Etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes,1991 150 CAHN, R. O adolescente na psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999. CARNEIRO RIBEIRO, M.A. (Org). Os destinos da pulsão: sintoma e sublimação. Kalimeros Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa livraria, 1997. COBRA, G. Corpo, identidade e adolescência; uma análise reichiana. São Paulo: Annablume, 2007. CONGRESSO INTERNACINAL DE PSICANÁLISE E SUAS CONEXÕES 1999: Rio de Janeiro, RJ. O adolescente e a modernidade V.3. Rio de Janeiro; Cia de Freud, 2000. COSTA, A. Tatuagens e marcas corporais: atualizações do sagrado. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. COSTA, J. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. DEBORD, G. A Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002. DUFOUR, D-R. Lacan e o espelho sofiânico de Boehme. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999. DUFOUR, D-R. “A modernidade e a questão do Outro” In: O adolescente e a modernidade/ Congresso Internacional de Psicanálise e suas conexões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000. ELIA, L. Corpo e sexualidade em Freud e Lacan. Rio de Janeiro: UAPÊ, 1995. ______. O conceito de Sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. Enciclopédia Mirador Internacional, Encyclopédia Britânica do Brasil Publicações Ltda, São Paulo: 1982. ENRIQUEZ, E. Da horda ao estado: psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. FELDSTEIN, R.; FINK, B.; JAANUS, M.(orgs). Para ler o seminário 11 de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. FERREIRA, A. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. FINK, B. O sujeito lacaniano; entre o gozo e a linguagem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. FREUD, S. A dissolução do Complexo de Édipo (1924). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.19, 1969. 151 ______. A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão (1910). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.11, 1969. ______. A dinâmica da transferência (1912) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.12, 1969. ______. A História do movimento psicanalítico (1914) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.14, 1969. ______. A Interpretação dos sonhos (1900). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.4 e 5, 1969. ______. A Negativa (1925) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.19, 1969. ______. Algumas reflexões sobre a psicologia escolar (1914) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.13, 1969. ______. A perda da realidade na neurose e na psicose (1924) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.19, 1969. ______. Os instintos e suas vicissitudes (1915). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.14, 1969. ______. Além do princípio de prazer (1920). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 18, 1969. ______. Angústia e vida pulsional (1933) Conferência XXXII. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 22, 1969. ______. Atos obsessivos e práticas religiosas (1907). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 9, 1969. ______. Conferências introdutórias sobre psicanálise (1915/17). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 15 e 16, 1969. ______. Esboço de psicanálise (1938). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 23, 1969. ______. Escritores criativos e devaneio (1908). In:Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.9 1969. ______. Estudos sobre a histeria (1895). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.2, 1969. ______. Fragmento da análise de um caso de histeria (1901/05) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 7, 1969. 152 ______. Inibição, sintoma e ansiedade (1926) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 20, 1969. ______. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.11, 1969. ______. Luto e melancolia (1915). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.14, 1969. ______. Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna (1908). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.9, 1969. ______. Neurose e psicose (1924). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.19, 1969. ______. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (1911). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.12, 1969. ______. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1932). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.23, 1969. ______. O ego e o id (1919). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 17, 1969. ______. O estranho (1923). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 19, 1969. ______. Observações sobre o amor transferencial (1941) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 12, 1969. ______. O humor (1927) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.21,1969. ______. Fetichismo (1927) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.20,1969. ______. O futuro de uma ilusão (1927) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.21, 1969. ______. O Inconsciente (1915). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 14, 1969. ______. O Mal-estar na civilização (1930). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 21, 1969. ______. O Problema econômico do masoquismo (1924). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 19, 1969. 153 ______. Organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade (1923). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 19, 1969. ______. Os chistes e sua relação com o Inconsciente (1905). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 8, 1969. ______. Por que a guerra? (1933). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.22, 1969. ______. Projeto para uma psicologia científica (1895). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.1, 1969. ______. Psicologia de grupo e a análise do ego (1921). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 18, 1969. ______. Psicopatologia da vida cotidiana (1901) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 6, 1969. ______. Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos (1886-1899) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 1, 1969. ______. Repressão (1915). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.14, 1969. ______. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.12, 1969. ______. Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.14, 1969. ______. Romances familiares (1909). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.9, 1969. ______. Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amorContribuições à psicologia do amor II (1912). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 11, 1969. ______. Sobre a transitoriedade (1915). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 14, 1969. ______. Sobre as teorias sexuais das crianças (1908) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 9, 1969. ______. Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: Comunicação Preliminar (1893). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 2, 1969. 154 ______. Sobre o narcisismo: uma Introdução (1914). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 14, 1969. ______. O Tabu da virgindade (1912) Contribuição à Psicologia do Amor III. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 11, 1969. ______. Tipos libidinais (1931). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 21, 1969. ______. Totem e Tabu (1913-1914), In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 13, 1969. ______. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 7, 1969. ______. Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens. Contribuições à psicologia do amor I (1910). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 11, 1969. ______. Uma nota sobre o bloco lógico (1925). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.19, 1969. FUKS, B. Freud e a cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. GARCIA-ROSA, L.A. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. ______. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ______. O Mal radical em Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. GOETHE, J W. Fausto. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. HALL e LYNDZEY. Teorias da Personalidade. São Paulo: Herder, 1972. JONES, E. Vida e obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1992. JORGE, M.A.C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. v.1: as bases conceituais. Rio de Janeiro: Jorge ZAHAR, 2005. ______. “As quatro dimensões do despertar- sonho, fantasia, delírio, ilusão.” Ágora, Estudos em Teoria Psicanalítica. Rio de Janeiro: Contra Capa IP/UFRJ. V.III, n.2, jul/dez 2005. KATZ. C., KUPERMANN, D., MOSÉ, V. (org). Beleza, Feiúra e Psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa / Formação Freudiana, 2004. 155 KUSNETZOFF, J.C. Introdução à Psicopatologia Psicanalítica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ______. ”A ciência e a verdade” (1966). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ______. ”De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (195556). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ______. ”A agressividade em psicanálise” (1948). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ______. “Observações sobre o relatório de Daniel Lagache” (1960). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ______. “O estádio do espelho como formador da função do eu” (1949). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ______. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1953), In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ______. “Formulações sobre a causalidade psíquica” (1946). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ______. “Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1960). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ______. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953/54). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. ______. O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954/55). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. ______. O Seminário, livro 4: A relação de objeto (1956/1957). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. ______. O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente (1957/58). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. ______. O Seminário, livro 7: A Ética da psicanálise (1959/60). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. ______. O Seminário, livro 8: A transferência (1960/61) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. ______. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. ______. O Seminário, livro 17: O Avesso da psicanálise. (1969/70) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. 156 LAPLANCHE, J. e PONTALIS, JB. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1986. LASCH, C. A cultura do Narcisismo: A Vida americana numa era de esperança em declínio. Tradução Ernani Pavaneli, Rio de Janeiro: Imago, 1983. LIPOVETSKY, G. A Era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. São Paulo: Manole Ltda. 2005. MAFFESOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. MARCELLI, D. e BRACONNIER, A. Manual de psicopatologia do adolescente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. MARCUSE, H. Eros e a civilização. 8ª ed, Rio de Janeiro: Guanabara, 1984. MELLO FILHO, J. Concepção Psicossomática: visão atual. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1988. MELLO FILHO, J.e col. Psicossomática hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. MELVIN, L. Aspectos clínicos do desenvolvimento na infância e adolescência, Porto Alegre: Artes Médicas 1993. MEZAN, R. Freud pensador da cultura. São Paulo: Companhia de Letras 2006. MIELLI, P. Sobre as manipulações irreversíveis do corpo e outros textos psicanalíticos. Rio de Janeiro: Contra Capa/ Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, 2002. MUUSS, R. Teorias da adolescência. Entrelivros, Belo Horizonte: 1976. NOMINÉ, B. A adolescência ou A queda do anjo. Revista Marraio: da infância à adolescência. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos/ Formações clínicas do Campo Lacaniano, 2001. OUTERAL, J. O Adolescente borderline. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. POLLO, V. Mulheres histéricas. Rio de Janeiro: Contra capa. 2003. QUINET, A. A lição de Charcot, Rio de Janeiro: Zahar, 2005. ______. A descoberta do inconsciente do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003. ______. As 4 + 1 condições da análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. ______. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. 157 ______. Um olhar a mais: ver e ser visto em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. RASSIAL, J. O Adolescente e o psicanalista. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999. RIBEIRO, H.; POLLO, V. (orgs). Adolescência: o despertar. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1996. ROSA, B. Jovens em casa, gastos em alta. Rio de Janeiro, 17 nov. 2007. Jornal O Globo p.29. ROUANET, P. Mal estar na modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. ______. Jacques Lacan. Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Cia. Das Cetras, 1994. SADALA, M. No avesso da comum(ic)ação para uma ética do dizer. Tese de doutorado, Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Rio de Janeiro: 2001. ______. Consumo: parceiro nos sintomas contemporâneos. Revista de Psicologia 1 – Universidade Veiga de Almeida. nº1, ano 1, Rio de janeiro: UVA, jan/ dez 2002. SAGESSE, E. Adolescência e Psicose. Tese de Doutorado, Curso de PósGraduação em Psiquiatria, Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, 1995. SAGESSE, E.“Adolescência e modernidade”. In: O adolescente e a modernidade/ Congresso Internacional de Psicanálise e suas conexões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,2000. SANTOS FILHO, L. História geral da medicina. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1991. SFEZ, S. Crítica da comunicação. São Paulo: Loyola Ed., 2002. SODRÉ, M. As estratégias Sensíveis. Petrópolis: Vozes, 2006. SPITZ, R, O primeiro ano de Vida. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1963. 158 TAQUETTE, S. (org) Violência contra a mulher adolescente jovem. Rio de Janeiro: UERJ, 2007. TRILLAT, E. História da histeria. São Paulo: Escuta, 1991. VILLAÇA, N. & GÓES, F. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. VILLAÇA, N. e CASTILHO K. (org) Plugados na moda. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2006. WEINBERG, C. (org). Geração Delivery: Adolescer no mundo atual. São Paulo: Sá Editora, 2001. WINNICOTT, D. W. Privação e delinqüência. São Paulo: Martins Fontes, 1995. ZIMERMAN, D. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica - uma abordagem didática. Porto Alegre: Artmed, 1999. 159 APÊNDICE 1 - Projeto de curso Título do curso O adolescente e a cultura do corpo Autora Eliana Julia de Barros Garritano Psicóloga, psicanalista, psicomotricista, fonoaudióloga. Mestranda em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida – UVA 1- Justificativa Esta proposta pretende desenvolver um curso que prioriza a formação de multiplicadores em promoção da saúde e prevenção na adolescência, visando oferecer subsídios a profissionais que trabalham com o sujeito adolescente. A escuta, o olhar e a compreensão psicanalíticas serão ferramentas utilizadas para acompanhar a dinâmica do estudo em relação às temáticas propostas. O estudo será baseado na própria pesquisa efetuada para a construção da dissertação de mestrado efetuada pela autora, desenvolvida nos últimos dois anos. O diferencial do referido curso, está no fato de o mesmo reunir conteúdos, extraídos de uma grande pesquisa bibliográfica de forma a articular o adolescente, o corpo, a psicanálise e a contemporaneidade, que permitiram estudar e compreender a adolescência como um tempo lógico que contém especificidades para além do enfoque orgânico e desenvolvimentista. Mais do que oferecer uma passagem de conteúdos, este curso propõe integrar seus participantes no processo de construção do conhecimento, formando uma cultura de pesquisa na área da adolescência. A pesquisa em psicanálise sobre a adolescência é recente e somente nas últimas décadas foram publicados estudos sobre o assunto, não sendo encontrado pela autora nenhuma publicação que articulasse os temas abordados. Acreditamos que a presente proposta irá contribuir para dar visibilidade aos fatores de risco e ao impacto da violência que se constata nos dias atuais em relação ao corpo dos jovens. Por fim, 160 este curso se configura como uma estratégia de transdisciplinaridade nos múltiplos campos de saber sobre o corpo e o adolescente, onde diferentes profissionais atuam (psicólogos, psicanalistas, pedagogos, fonoaudiólogos, psicomotricistas, médicos, fisioterapeutas), seguindo a própria inserção interdisciplinar do Mestrado profissional em psicanálise, saúde e sociedade, da Universidade Veiga de Almeida - UVA, espaço onde foi desenvolvida a pesquisa da autora. 2- Objetivo geral Desenvolver um curso sobre o adolescente e a cultura do corpo, a partir de quatro eixos temáticos, num processo que propõe integrar conceitos da psicanálise com a adolescência e a contemporaneidade, visando uma abordagem transdisciplinar para profissionais da saúde e educação. 3- Objetivos específicos • Desenvolver a compreensão das múltiplas dimensões que o corpo ocupa na atualidade em sua visão prismática. • Estabelecer relações entre o corpo, a adolescência e a contemporaneidade. • Identificar alguns dos principais conceitos da psicanálise e sua relação com o corpo do adolescente. • Promover um espaço de reflexão e troca dimensionando as questões relativas à adolescência. • Fundamentar teoricamente o profissional participante em relação à psicanálise. • Sensibilizar os profissionais que trabalham com jovens, para as especificidades da adolescência, visando uma escuta mais sensível. • Discutir o lugar da psicanálise no âmbito da saúde e da educação. • Fornecer subsídios de pesquisa a profissionais interessados na temática do curso. 161 4- Público alvo Profissionais da saúde e educação interessados em estudar a adolescência para além de uma perspectiva desenvolvimentista e orgânica. 5- Carga horária Um semestre composto por 120hs, dividido em quatro unidades, com um encontro semanal de 5hs. 6- Metodologia empregada • Exposição dialogada • Leitura, análise e discussão de textos. • Debates sobre filmes 7- Recursos utilizados • Quadro pilot • Retroprojetor • Power-point 8- Avaliação • Elaboração de síntese integrada • Seminários 162 30hs UNIDADE 1 Da medicina à psicanálise Ementa: O lugar do corpo na história O corpo na psicanálise O conceito de pulsão em Freud O conceito de pulsão em Lacan Bibliografia Básica: COUTINHO JORGE, M.A. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. v. 1: as bases conceituais. Rio de Janeiro: Jorge ZAHAR, 2005. ELIA, L. Corpo e sexualidade em Freud e Lacan. Rio de Janeiro: UAPÊ, 1995. FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.7,1969. ______. Os instintos e suas vicissitudes (1915) In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.14,1969. LACAN, J. O seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 163 30hs UNIDADE 2 Psicanálise e adolescência Ementa: O conceito de adolescência segundo diferentes autores A adolescência e a psicanálise O complexo de Édipo na adolescência O adolescente e o refluir pulsional Bibliografia Básica: ABERASTURY, A., KNOBEL, M. Adolescência Normal, um Enfoque Psicanalítico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1981. ALBERTI, S. O adolescente e o Outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.7, 1969. ______. A dissolução do complexo de Édipo (1924) In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.19, 1969. ______. Algumas reflexões sobre a psicologia escolar (1914). In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.13, 1969. ______. Organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade (1923) In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.19, 1969. KUSNETZOFF, J.C. Introdução à Psicopatologia Psicanalítica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 164 30hs UNIDADE 3 O corpo e os caminhos do eu Ementa: O estádio do espelho O conceito de narcisismo Eu ideal e Ideal do eu A importância da sublimação Bibliografia Básica: FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914) In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.14, 1969. ______. Psicologia de grupo e a análise do ego (1921) In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.18,1969. FREUD, S. Conferência XXVI, A teoria da libido e o narcisismo (1916) In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.15, 1969. ______. O ego e o id (1923) In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.19, 1969. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ______.O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953/54). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. ______.O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954/55). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. ______.O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959/60). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. 165 30hs UNIDADE 4 Adolescência e Contemporaneidade Ementa: A cultura do corpo A sociedade de consumo A sociedade do espetáculo O adolescente e a cultura do corpo Bibliografia Básica: FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.21,1969. BAUDRILLARD, J. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70 Ltda, 1970. COSTA, J. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002. LASCH. C. A cultura do Narcisismo: A Vida Americana numa Era de Esperança em Declínio. Tradução Ernani Pavaneli, Rio de Janeiro: Imago, 1983. LIPOVETSKY, G. A Era do Vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. 1 ed. São Paulo: Manole Ltda. 2005. VILLAÇA, N. & GÓES, F. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.