De como se deve buscar ir adiante do senso comum quando se fala de escola, de educação a distância e das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) aplicadas a educação escolar. Fernando José de Almeida A nossa conversa, de educadores, sobre os impactos das TIC na educação vem de longe. É tão longa e cotidiana que não tomamos dela a distância necessária. Por isso, a tendência de cairmos no senso comum é enorme, e em geral aí ficamos, com nossas posições, ora inocentes ora preconceituosas. O senso-comum é mais comum do que senso. Já disse alguém, que o senso comum nos tira a curiosidade e a dúvida, pois ele é confortável e aligeirado. Essa é sua essência, estatelar-se diante daquilo que lhe parece “óbvio”. Vamos pontuar neste ensaio, questões que pretendem abrir fissuras em nossas posições do dia-a-dia para alargar horizontes, trazer algumas inquietações e abrir alguns caminhos. As questões estão feitas em formas de idéias esparsas; o todo lógico que as une estará colocado no fim do texto e necessitará da contribuição do leitor para articulá-las. Este material é escrito a partir da prática e é inspirado em teorias que alargam o olhar para as práticas se tornarem mais seguras e eficazes. Além disso, acho que nada é tão prático como uma boa teoria. 1 Por isso tudo, o artigo precisa de quatro mãos para ser escrito e quatro olhos para ser lido. Os do leitor, que é um educador, e os do articulista que é seu companheiro de viagem. ALGUNS PRESSUPOSTOS A educação escolar vem sendo uma terra de ninguém entre nós. “Todos são educadores”. Afirma-se isso naturalmente, pois todos gostam de criança ou já se utilizaram do giz em quadros negros ou de uma certa retórica, em algum momento de seus jogos infantis. Os jogos mais emblemáticos de nossa infância são ricos, mas não nos profissionalizamos por causa deles. O aviador, o maestro, o médico, o músico, o missionário ou o artista de teatro ou de balé também nos encheram a fantasia. Mas não foram suficientes para que deles nós vivêssemos ou fôssemos profissionais reconhecidos nessas áreas. O mesmo não se dá com a educação. Ter uma certa facilidade de dar aulas em universidades ou de elaborar softwares educacionais, de escrever livros ou artigos de jornal sobre escolas, educação e aprendizagem, costuma fazer com que algumas pessoas se sintam capazes de falar como educadores, mesmo que não tenham tido qualquer preocupação em fazer uma faculdade ou entrado em uma escola especializada em formação de educadores. Não trago isso para expulsar as pessoas bem intencionadas que querem entrar no âmbito da educação profissional e escolar, e contribuem com ela, mas para que atentemos à nossa identidade e ao nosso profissionalismo. A educação é um campo de disputas de poder da sociedade, que tem recursos a médio e a longo prazos. Afinal, qual é nossa real e profissional contribuição à educação neste momento em que o seu espaço social é disputado pelas TIC, por suas forças de mercado e pelas forças políticas? 2 A resposta firme e competente a essa questão só pode ser dada pela clareza e competência com a qual entramos nesse espaço de luta. Primeira idéia A coisa que mais me espanta é o descabimento e o pouco caso com que se usa a palavra educação. Junta-se a ela qualquer situação corriqueira — “esta ação tem um caráter educativo” ou a “educação é nosso maior valor”, ela é empregada descuidadamente para safar as pessoas da explicitação de outras intenções menos nobres: — “este é um jogo educacional” ou “minha plataforma política é a educação” e assim por diante. Que isso tudo sirva de alerta a nós educadores: uso qualquer de um recurso não pode ser adjetivado de educacional ou receber o nome de educação! Para que algum ato possa receber o nome de educativo há que passar pelo crivo de nossa análise qualitativa como educadores. Juntar um monte de conteúdos e de informações num recurso “modernoso” e atirá-los pelo ar afora, não o faz merecer a denominação de educação. É quase como se propuséssemos que os produtos das TIC que se aplicam à educação tivessem que ter um selo de qualidade. Não no sentido de termos reservas de mercado, mas de divulgarmos junto à população de usuários o senso crítico de saber distinguir o bem daquilo que não é; do que é qualidade rica de conteúdos pedagógicos, do que é enganação. Antonio Gramsci (1891-1937), afirmava que “todo o homem é filósofo”. A frase de Gramsci abre um enorme espaço à democracia, pois valoriza a todos quando lhe atribuem a tarefa cidadã de pensar a realidade e de comprometer-se com ela. Mas ele defende também que alguns são “filósofos profissionais”. Pessoas que pensam 3 com rigor, que articulam com amplitude, que se dedicam profissionalmente a organizar, a aprofundar e a viabilizar a difusão das idéias filosóficas. Esses profissionais, chamados de “orgânicos” por Gramsci, são objeto de cooptação das diferentes classes sociais. As classes sociais organizadas disputam seu trabalho, para que lhes prestem seus competentes serviços. Nós, educadores, somos profissionais de uma área do conhecimento e de suas práticas sociais e assim sendo, quanto mais profissionais formos, mais seremos importantes nessas disputas pela apropriação de nossos trabalhos para a implementação de um projeto social. Qualquer manutenção de modelo social, político ou econômico não será feita por nós, mas também, ela não se fará sem nossa contribuição. Um trabalho de formação de nossos quadros educativos é o fundamento de nossa abertura de espaços para que os educadores ocupem seu lugar como profissionais (não corporativos) na área. É dentro desse espaço que esse curso se insere. Segunda idéia Não se deve confundir os recursos com as suas finalidades. O recurso, no nosso caso, é a telemática (conjunto de serviços informáticos fornecidos através de uma rede de telecomunicações). Trata-se de um recurso a mais de comunicação humana que não tem embutido em si mesmo uma intencionalidade educativa. Assim, o uso da telemática poderia nos dar ensejo a fazer “opressão a distância”, “imbecilização a distância” ou ainda “enganação a distância”. Embora seu nome formal possa ser “Educação a distância”. 4 Quando se fala de informática educativa, incorre-se no equívoco de pensar que existe uma informática educativa e uma outra que não o é. Na verdade a informática não é educativa! Ela é só informática. Nós é que, pela nossa prática, intencionalmente planejada, a tornamos educativa. E a todo o momento, ela volta a seu estado original de “indisponibilidade educativa”. Como a água em nossas mãos, ela está sempre a nos escapar e nós sempre temos que buscar uma forma de guardar seu caráter educacional. Trata-se de uma tarefa contínua e cheia de surpresas e desafios. Terceira idéia Uma qualidade latente e muito chamativa no uso dos recursos tecnológicos da telemática é o seu potencial de democratização. É potencial porque apenas anuncia aquilo que pode vir a ser. As coisas e as ações humanas não são eficazes ou revolucionárias apenas pela intenção de sê-lo. É necessário que sejam fecundadas pela prática educacional e política. Transformar esse instrumental em democratizante supõe cuidadoso e intencional trabalho de educálo ou mesmo domesticá-lo para a democracia. Não se trata de um apanágio natural seu. Esse pensamento nos traz uma preocupação e uma razão para tranqüilidade. A preocupação: Vamos ter que nos tornar competentes para isso. Tarefa que exige de nossa geração o enfrentamento de alguns desafios e sobrecargas, pois além de tudo o que já fazíamos, agora teremos mais essa tarefa. Trabalhar mais é o resultado. A tranqüilidade: 5 Temos algo sob nosso campo de responsabilidade, cuja finalidade e operação podem ser resolvidas por nós, educadores. Ou seja, compete a nós descobrir caminhos, invenções, métodos, novos apoios das ciências, estudos que nos dêem solidez para encontrarmos novas respostas. Quarta idéia O que faz desse conjunto sofisticado de recursos poder ser chamado de educacional? É o projeto que o sustenta. Um projeto de educação a distância pode ser minimamente chamado de educacional quando: - nasce da necessidade autêntica de responder a questões da comunidade que o usa; - leva em consideração a possibilidade de ser reprogramado pelo próprio usuário, inserindo-lhe suas conquistas, procedimentos, novas respostas e alternativas, imprevisíveis; - absorve a riqueza da construção dos grupos de usuários, permitindo-lhes fazer novos contatos, novas parcerias e trocas; - as qualidades tecnológicas estão a serviço dos objetivos educacionais, e não o contrário; - permite o registro do percurso do grupo que com ele trabalha, seja do ponto de vista da história de seus procedimentos epistemológicos, seja de seus valores e conquistas; 6 - dá estímulo à autonomia do aluno para continuar a aprender sempre, para desenvolver habilidades de trabalhar em grupo, com curiosidade científica e por meio de outros e mais variados recursos. Mas como operar essas habilidades educacionais nos ambientes telemáticos? Paulo Freire pode ser nosso inspirador nesse caminho. Sua obra e suas práticas apontam metodologicamente o modo de ir desenhando as soluções para enfrentar os desafios. 1. O levantamento cuidadoso da realidade. Conversas, diálogos com a comunidade educacional, antes de trazer soluções. Mesmo que nós, dirigentes, tenhamos propostas de solução (e é lógico e saudável que as tenhamos), nosso método de trabalho deve sondar de modo sensível a problemática da escola, analisá-la e diagnosticá-la, antes de saber qual deve ser a solução. 2. Ouvidos os interessados, feito o diagnóstico, em sínteses sucessivas, o desenho da solução se esboça. Mas esse esboço é feito com os parceiros interessados e que, no fundo, realizarão as tarefas: os professores e os educadores. Esse desenho se constrói a partir de atividades em grupo e em sínteses provisórias que culminam em plenárias, nas quais objetivos, regras, processos, horizontes são traçados coletivamente. 3. É educacional o ambiente telemático ou das TIC que é aberto a futuras colaborações de usuários que entrem no ambiente e a eles seja dada a oportunidade de sugerir, acrescer, colocar novas questões e desafios. Os 7 OBJETOS DE APRENDIZAGEM são uma modalidade do espaço de contínua construção coletiva de conhecimento em ambientes virtuais. 4. Cabe aos educadores estarem sempre atentos ao fascínio embutido nas novas “traquitanas” tecnológicas que, pelo seu modernismo, brilho e malabarismo visuais, enganam a qualidade em nome da velocidade ou do encantamento. 5. A escola ganha com esses materiais um excelente recurso que serve de documentação e registro do trabalho de alunos e professores. Eventos, projetos, modelos, histórias, crescimento dos grupos e indivíduos, datas, conquistas da escola ou das disciplinas ficam registradas com muita clareza e pouco espaço. Nesse sentido, a mente humana e em especial a memória — equivocadamente muito desprezada pelos usuários dos primeiros sistemas computacionais — ganham, na verdade, enorme contribuição das tecnologias digitais. Não que essas últimas possam substituí-las, mas para que nossa mente possa melhor se reconhecer em um mundo tão complexo e mutante. Isto é só para começar a conversa. Este texto faz parte da Biblioteca do curso Gestão Escolar e Tecnologias. ALMEIDA, F. De como se deve buscar ir adiante do senso comum quando se fala de escola, de educação à distância e das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) aplicadas à educação escolar, PUC-SP, 2004. 8