Processo de criação em arte: desaceleração do fluxo e desdobramentos
Cláudia Maria França da Silva
Docente Instituto de Artes – Universidade Federal de Uberlândia
Resumo:
Reflexões sobre o processo de criação em artes visuais, a partir do cruzamento de dois vetores: a
Poïética como campo de estudo da conduta criadora, por meio de considerações de René Passeron,
especificamente no que toca a não-finalização de um trabalho artístico, muitas das vezes gerada por
uma crise no interior do processo; conceitos como compossibilidade, dobra e rizoma, de Gilles
Deleuze, são tomados de empréstimo para admitirmos a importância desses momentos estacionários
no interior do processo de criação.
Palavras-chave: processo de criação em artes; mônada; dobra; Poïética.
Partimos do estudo do processo de criação em artes e temos como veículo a Poïética como o
estudo da conduta criadora. Ao defini-la como um campo de estudo, René Passeron - artista e
pesquisador francês - afirma que a normatividade do poïein precede a normatividade da estética,
pois para o esteta, a apreciação da arte só tem sentido após ter sido feita; no entanto, a recíproca não
é verdadeira: pode-se fazer poïética sem que a obra chegue a termo (PASSERON, 1975, s.p.).
O trabalho de René Passeron no CNRS (1997) busca ampliar a Poïética de Paul Valéry
(1999) para outros âmbitos, dentre os quais, as Artes Visuais. Os elementos que definem a Poïética
são: 1) a elaboração de um objeto único pelo artista, mesmo que o objeto possa ser reproduzido
posteriormente; 2) o autor dá existência a um pseudo-sujeito (o objeto passa a ter “vida própria”,
estabelecendo-se com ele relações de diálogo); 3) a obra compromete o seu autor desde o início de
seu processo, independente de seu destino social. Mesmo que um trabalho não tenha sido bem
sucedido, ele pode fornecer sua exemplaridade no percurso poético como um todo, no que diz
respeito ao seu processo. Durante o fazer daquela obra, algo aconteceu e provocou um desvio na sua
elaboração; isso merece uma investigação. Tal responsabilidade sobre o trabalho envolve, pois, uma
questão ética no fazer. Outra questão definidora do campo poïético seria a postura fenomenológica
do fazer. Nessa, o artista captaria o que existe de criativo na conduta em si mesma, e não apenas no
objetivo que é construir um trabalho artístico. Observar criticamente os espaços possíveis para o
exercício da conduta criadora seria uma questão importante para o artista contemporâneo.
Estas afirmativas de Passeron são o estímulo para pensarmos sobre o inacabamento de certas
propostas artísticas, desvinculando-as do insucesso como juízo de valor. A depender de seu estágio,
existe a possibilidade de que, a partir daquele ponto, ocorram vários desdobramentos, no interior do
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próprio trabalho ou na realização de outros. Uma compossibilidade de desfechos reside no interior
do trabalho supostamente acabado ou por finalizar. Esta compossibilidade se impõe dialeticamente
ao artista, de modo a gerar nele a dúvida, a ansiedade, a angústia. Um estado de epoché (suspensão
do juízo) se instala. O artista pode até mesmo interromper o curso do trabalho, deixando-o
estacionado. Podemos pensar que algo em seu interior, ou mesmo algum fator externo, o fez
funcionar como uma “mônada” que, entreaberta, está para se abrir de várias maneiras.
Aqui se coloca uma primeira aproximação com considerações deleuzianas. Mônada é um
conceito leibniziano trabalhado por Deleuze (1991). A concepção leibniziana de universo segue
uma ordem racional e matemática, aliada à ideia de que o mundo obedece à lógica e à razão de
Deus, como uma “matemática divina”. Para a criação de todas as coisas, existem unidades
elementares chamadas “mônadas”, unidades mínimas de força no interior das coisas como
substâncias unas e indivisíveis. A mônada “é apenas uma substância simples que entra nos
compostos. Simples, quer dizer: sem partes. Visto que há compostos, é necessário que haja
substâncias simples, pois o composto é apenas a reunião ou aggregatum dos simples”. (LEIBNIZ,
1979, p. 105).
A mônada é a unidade mínima constitutiva do universo; se Deus ou o universo é
representado por ∞, a mônada seria então 1/∞. As mônadas possuem algumas características e
funções, dentre as quais destacamos a “apetição”, capacidade de prolongamento ou continuação de
uma unidade em outra, produzindo séries convergentes, dinâmicas, gerando uma condição de
“compossibilidade”: uma virtualidade de múltiplas séries, coisas ou mundos que possam abrigar um
ser. No entanto, pelos princípios dos “indiscerníveis” (incompossíveis) e pelo “melhor dos mundos
possíveis”, cada mônada pode conter em si o mundo inteiro, mas só se abrirá (se expressará) para
gerar uma única forma ou ser, porque não há dois sujeitos idênticos e haverá um mundo melhor
para a expressão de uma dada mônada.“O mundo está na mônada, mas a mônada é para o mundo:
o próprio Deus concebe as noções individuais somente em função do mundo que elas expressam, e
escolhe-as apenas por um cálculo do mundo”. (DELEUZE, 1991, p.80).
O princípio do “melhor dos mundos possíveis” é que, na diversidade de mundos calculados
por Deus, apenas o melhor tem a chance de se expressar. Os outros mundos não teriam chance de
expressão; desse modo, somente um deles se expressa, se desdobra no possível (LEIBNIZ,
Monadologia, 1979). No famoso exemplo de Adão, haveria a mônada para o Adão não-pecador e a
mônada para Adão pecador. O Adão existente é o da mônada do Adão pecador, pois o mundo
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existente é o mundo criado por Deus, apto a fazer Adão pecar. A mônada do Adão não-pecador não
teve chance de expressão, permanecendo dobrada na zona de sombra.
Deleuze explora esse conceito para pensar a contemporaneidade como “compossibilidade”,
mas diferentemente de Leibniz, já que vários mundos convergentes ou contíguos têm chance de
expressão simultânea. Desse modo, podemos retornar o pensamento para aquele trabalho em
processo, desacelerado de sua velocidade inicial. A partir de algo que promoveu o seu desvio ou a
velocidade de realização, encontra-se em uma encruzilhada, como mônada entreaberta, em que
vários desdobramentos são possíveis. Seu inacabamento revela a tensão ou tensões existentes entre
as possibilidades existentes. Embora se realize em alguma vertente, as outras compossibilitam
versões legítimas, em outro regime de existência. Ou podem materializar-se, a partir daquele ponto,
em outros trabalhos.
Cabe então, ao trabalho em processo, desdobrar-se. Para Deleuze, desdobrar-se não é o
contrário de dobrar. O trabalho em processo, parado na encruzilhada, está flexionado, dobrado. O
desdobramento é o processo necessário para uma dobra chegar à outra, gerando assim, a forma, pela
matéria.
A unidade da matéria, o menor elemento do labirinto é a dobra, não o ponto, que
nunca é uma parte, mas uma simples extremidade da linha. Eis por que as partes da
matéria são massas ou agregados, partes tidas como o correlato da força elástica
compressiva. A desdobra, portanto, não é o contrário da dobra, mas segue a dobra
até outra dobra. (DELEUZE, 1991, p.17-8).
Tal qual um tecido, o trabalho em processo se coloca como plano, formado por dobras e
disposto a dobrar-se cada vez mais.
A divisão do contínuo deve ser considerada não como a da areia em grãos, mas
como a de uma folha de papel ou a de uma túnica em dobras, de tal modo que
possa haver nela uma infinidade de dobras, umas menores que outras, sem que o
corpo jamais se dissolva em pontos ou mínimos. (LEIBNIZ apud DELEUZE,
1991, p.17).
Esse aspecto de se considerar um dado ponto na cadeia produtiva – ponto relativamente
estacionário, mas apto a abrir-se outra vez para o seu desdobramento em outras possibilidades de
realização, muitas delas distantes de sua origem – é relativamente silenciado nas reflexões sobre
processo de criação, pois impera ainda o desejo de que o processo se assente comodamente sobre
uma estável linha do tempo, com princípio, meio e a apresentação do fim do trabalho como ápice do
fazer. No entanto, nos momentos de epoché, a energia em fluxo se adensa e constrói uma “mônada”
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como corpo de dúvidas; essa energia em fluxo condensado se dissipa e pode se distribuir em outras
compossibilidades. Desse modo, vemos o desenho temporal, do tipo linear, abrir-se em múltiplas
direções. É possível pensar nesse espalhamento de possibilidades como algo “rizomático” nas
direções do desdobramento da mônada. Entendemos por rizoma (DELEUZE, GUATTARI, 1995,
v.1) como o desvio dos modelos representacionais que primam pela conservação de hierarquias e
tradições. O rizoma constitui-se de ligações anti-genealógicas, ligações que se fazem sem qualquer
critério, apontando sempre para as diferenças, para os encontros involuntários. É a incompletude.
Nem sempre estamos dispostos a oportunizar aberturas no processo, muitas delas, de caráter
rizomático. Insistimos no modelo árvore para o processo, silenciamos os desdobramentos
compossíveis da mônada processual. E isso, porque valoramos mais o trabalho de arte finalizado,
ocultando uma eventual “crise” processual que pode se desdobrar em outras potências. A proposta
anti-genealógica para desdobramentos, o trabalho final como incompleto (n-1) ou a simples
admissão de outro desenho temporal para o processo de criação são sinais compossíveis abertos
pelo rizoma, a partir de uma mônada entreaberta que se instaurou no meio do processo. Talvez
proveniente de uma crise, percebê-la e admiti-la abre um campo considerável para novas reflexões
sobre o processo de criação. Isso nos permitiria resgatar o sentido original do termo poïein, ou seja,
o fazer de uma obra em seus diversos âmbitos: considerando uma descontinuidade de ação e tempo,
a ação do acaso, o privilégio de se considerar como objeto de pesquisa o espaço intervalar de um
“insight” até a sua “concretude” no espaço real.
Referências:
DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “Rizoma”. In: ______. Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia. v.1. São Paulo: Ed.34,1995.
LEIBNIZ, Gottfried W. Monadologia. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
PASSERON, René. La poiéthique. Paris, Klincksieck, 1975, s.p.
_________. “Da estética `a Poïética". PORTO ARTE, Porto Alegre, IA/UFRGS,v.8, n.15,
nov.1997, p.103-116.
VALERY, Paul. “Primeira aula do curso de Poética”. In: Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999.
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