0
UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
CLAUDIA MARIA MACEDO PERLINGEIRO DOS SANTOS
OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS
DA AÇÃO COLETIVA DE IMPROBIDADE
Rio de Janeiro
2008
1
CLAUDIA MARIA MACEDO PERLINGEIRO DOS SANTOS
OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS
DA AÇÃO COLETIVA DE IMPROBIDADE
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Direito pela Universidade
Estácio de Sá.
ORIENTADOR:
PROF. DR. ALUISIO GONÇALVES DE CASTRO MENDES
Rio de Janeiro
2008
2
A dissertação
OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA AÇÃO COLETIVA DE IMPROBIDADE
elaborada por
CLAUDIA MARIA MACEDO PERLINGEIRO DOS SANTOS
e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Curso de
Mestrado em Direito como requisito parcial à obtenção do título de
MESTRE EM DIREITO
Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2008
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Dr. Aluísio Gonçalves de Castro Mendes
Presidente
Universidade Estácio de Sá
__________________________________________
Prof. Dr. Rogério José Bento Soares do Nascimento
Universidade Estácio de Sá
Prof°. Dr°. Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva
Universidade Federal Fluminense
3
DEDICATÓRIA
DEDICO
Ao meu pai, Carlos Alberto, com quem tudo começou (in
memoriam),
À minha mãe, Maria Anette, imprescindível em todos os
momentos, pelo incansável amor,
Aos meus irmãos, Carlos Alexandre, Carla Maria e Carlos
Frederico, pelo permanente apoio e confiança,
Ao meu amor Emiliano pelo apoio, pelas grandes idéias e pela
fé depositada.
4
AGRADECIMENTOS
Inicio agradecendo a Deus, por tudo.
Agradeço ao meu orientador, professor Aluisio Gonçalves de Castro
Mendes pelo conhecimento transmitido, pela confiança e, sobretudo, pela
compreensão nos momentos difíceis.
Em nome de todos os professores do Mestrado da Universidade Estácio
de Sá, agradeço à professora Maria Teresinha pelo incentivo e incansável apoio.
Agradeço ainda aos meus amigos que cooperaram de diversas maneiras
para que este trabalho pudesse ser concluído: Alexandre Schott, Claudio Henrique,
Cristiane Rocha, Eduardo Carvalho e Rogério Pacheco.
Agradeço ainda a Silvia Disitzer.
5
RESUMO
A presente dissertação, que faz parte da Área de Concentração: Direito
Público e Evolução Social e da Linha de Pesquisa: Acesso à Justiça e Efetividade do
Processo do Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá, tem o objetivo de
analisar os fundamentos conceituais e efeitos da consagração da probidade como
direito fundamental difuso no ordenamento jurídico brasileiro. Para alcançar esse
propósito, partiu-se do princípio constitucional de que o Estado tem o dever de atuar
no interesse da coletividade e promover o bem comum. Ainda com base na
Constituição da República, o direito fundamental à probidade demanda tratamento
jurídico próprio no Estado Democrático e republicano e abre espaço à proposição de
Ação Coletiva de Improbidade, em face de qualquer agente estatal, quando, entre
outras omissões e ações, descumprir obrigações prestacionais, violando o dever de
probidade. De igual forma, a compreensão do conceito de probidade deve observar o
princípio da proibição da proteção deficiente, inerente à efetividade do processo, sob
a perspectiva das demandas coletivas.
Palavras-chave: Probidade administrativa; direitos fundamentais; Estado
Democrático de Direito; Governo Republicano;
6
ABSTRACT
This paper, that is related to the area of Public Law And Social Evolution
and the research field of Access To Justice And Effectiveness Of Procedure in the
Master of Law Course at Estácio de Sá University, proposes to analyze the
conceptual foundations and the effects regarding the establishment, in Brazil’s legal
system, of the right to probity as fundamental collective right. To that effect, this paper
draws from the constitutional principle that the State is required to act on behalf of the
interests of the community and promote the common good. Still according to the
Republic’s Constitution, the fundamental right to probity demands appropriate juridical
treatment within a Democratic and Republican State, prompting the filing of Collective
Improbity Actions against any government agents, whenever, among other omissions
or actions, they do not comply with rights to social services, infringing the duty to act
with probity. Likewise, acknowledgement of the concept of probity should consider the
principle of prohibition of insufficient protection, inherent to the effectiveness of
procedure, within the perspective of collective actions.
Key words: Administrative probity. Fundamental collective rights. Democratic State of
Right. Republican government.
7
SUMÁRIO
Página
INTRODUÇÃO...........................................................................................................09
PARTE I – A EVOLUÇÃO DO ESTADO E DO GOVERNO NA PERSPECTIVA DA
PROBIDADE..............................................................................................................14
CAPÍTULO 1 O ESTADO MODERNO: DA ORIGEM AO ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO...............................................................................................................14
CAPÍTULO 2 – O MODELO REPUBLICANO E A PROBIDADE..............................35
PARTE
II
–
A
NATUREZA,
O
CONTEÚDO
E
O
CONCEITO
DE
PROBIDADE..............................................................................................................42
CAPÍTULO 3 – NATUREZA: A PROBIDADE COMO DIREITO DIFUSO.................43
CAPÍTULO 4 – O PATRIMÔNIO PÚBLICO TUTELADO PELO PRINCÍPIO DA
PROBIDADE..............................................................................................................50
CAPÍTULO 5 – PROBIDADE: CONCEITOS FUNDAMENTAIS...............................56
PARTE III – A PROBIDADE, O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E OS
DIREITOS FUNDAMENTAIS.....................................................................................82
CAPÍTULO 6 – A TUTELA DA PROBIDADE: ORIGEM E EVOLUÇÃO..................82
CAPÍTULO 7- OS DESTINATÁRIOS DO DEVER DE PROBIDADE........................97
CAPÍTULO
8
–
A
PROBIDADE
COMO
DIREITO
FUNDAMENTAL
DIFUSO....................................................................................................................112
CAPÍTULO
9
–
A
PROBIDADE
E
A
EFICÁCIA
DAS
OBRIGAÇÕES
PRESTACIONAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO............................127
8
10- CONCLUSÕES..................................................................................................137
REFERÊNCIAS........................................................................................................142
9
INTRODUÇÃO
O princípio da probidade administrativa expressamente adotado pela
Constituição de 1988 deve ser compreendido dentro do protótipo de estrutura do
Estado Democrático de Direito, especificamente sob a forma republicana.
Com base nessa premissa, pretende-se contribuir para a compreensão
dos contornos da responsabilização dos agentes estatais em face da prática de atos
que violam o dever de probidade a eles constitucionalmente imposto, levando-se em
conta a necessidade de assegurar efetiva proteção à res publica, a ser judicialmente
tutelada através das ações coletivas, especificamente da Ação de Improbidade
Administrativa.
A vida em sociedade, sob o enfoque das limitações necessárias, quer na
relação do cidadão com o Estado, quer nas relações horizontais, há muito, suscita
profundas reflexões ante a complexidade do tema.
No tocante à interação do Estado com o indivíduo, impõe-se examinar os
limites estabelecidos ao exercício do poder, concretizado pelos agentes públicos e
políticos e o correspondente modus faciendi. Nessa linha de pensamento, cumpre
analisar a evolução do dever de probidade e o seu conteúdo visando à
responsabilização dos agentes públicos e políticos.
O estudo analisa fundamentos teóricos para que se compreenda a
probidade como direito fundamental difuso, consagrado no ordenamento jurídico
pátrio e corresponde a uma das vertentes do efetivo exercício da cidadania,
indissociável do real cumprimento do regime democrático,1 em todas as suas
dimensões. Neste diapasão, confere-se destaque à concretização do princípio da
1
O regime democrático pressupõe que o povo seja o titular e detentor do poder estatal. MARTINS,
Fernando Barbalho. Do Direito à Democracia. Neoconstitucionalismo, Princípio Democrático e a Crise
no Sistema Representativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.53.
10
soberania popular, com o largo alcance abraçado pela Carta Magna ao assegurar,
como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, que “todo o poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição”.2
Nessa linha de argumentação, reitera-se, o dever de probidade por parte
dos agentes do Estado é direito fundamental – base da presente investigação – e
encontra fecundo habitat no Estado Democrático de Direito3. Essa ideologia confere
ao ente estatal a responsabilidade de atuar dentro de balizas constitucionalmente
estabelecidas, visando à promoção do bem de todos.
Pretende-se, ainda, face à relevância do tema, demonstrar a ligação
umbilical entre a imperiosa necessidade de observância do dever de probidade na
condução dos atos públicos e a implementação dos direitos sociais – objeto de
intensas discussões que se espraiam para além dos limites do campo do direito –
corolários do princípio da proteção da dignidade da pessoa humana, em sua
expressão coletiva, portanto, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
A concepção da probidade como direito fundamental reclama, pois, a
aplicação
do
tratamento
próprio
dispensado
aos
direitos
fundamentais,
principalmente no tocante à garantia de efetividade, sob a perspectiva da demanda
coletiva, sempre tendo como norte a assertiva de que a observância do dever de
probidade é condição sine qua non para que o Estado Democrático de Direito
cumpra o seu mister, em especial em relação à concretização dos reconhecidos
direitos fundamentais sociais.
2
Cf. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estado e Município
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I- a soberania;
II- a cidadania;
III- a dignidade da pessoa humana;
IV- os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V- o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos
ou diretamente, nos termos desta Constiutição.”
3
Luis Roberto Barroso ressalta ser um mau investimento de tempo especular sobre as diferenças
(sutilezas semânticas) entre os conceitos de Estado Democrático de Direito, Estado Constitucional de
Direito, Estado Constitucional Democrático. Cf artigo Neoconstitucionalismo. Site Consultor Jurídico,
2006. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br>. Acesso em: 28/03/2007.
11
Não se pode olvidar, frente à realidade vivenciada no trato da coisa
pública que, conquanto não se configure regra absoluta, a corrupção4 5 constitui uma
das mais devastadoras causas dos graves problemas sociais detectados,
primordialmente, nos países periféricos6. Representa, em verdade, sério obstáculo à
efetivação das políticas públicas, imprescindíveis ao desenvolvimento social, um dos
pressupostos7 inarredáveis à implementação do Estado Democrático de Direito,
portanto, evidentemente imbricado ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Em paralelo, cumpre admitir que a corrupção conduz ao desgaste da legitimidade,
imprescindível à constituição de um Estado Democrático de Direito.
Cabe relevar que a inobservância do dever de probidade não se restringe
ao combate à corrupção, por mais elástica que seja a conotação de tal conceito. A
despeito dessa premissa, como afirmado, a prática da corrupção está presente em
parcela expressiva das condutas enquadradas como ímprobas.
É exatamente a partir das considerações de que o dever de probidade é
direito fundamental e sua violação constitui grave problema, é que ganha relevo a
4
Sob a ótica da etimologia, deriva do latim rumpere, ou seja, romper, dividir, vindo a gerar a palavra
corrumpere, que, por sua vez, significa depravação, alteração, deterioração. Aqui é entendida de
forma a abarcar as condutas ilícitas praticadas pelos agentes políticos e públicos, assim conceituadas
de forma ampliativa, indicando “... o uso ou omissão, pelo agente público, do poder que a lei lhe
outorgou em busca da obtenção de uma vantagem indevida para si ou para terceiros, relegando a
plano secundário os legítimos fins contemplados na norma. Desvio de poder e enriquecimento ilícito
são elementos caracterizadores da corrupção.” GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco.
Improbidade Administrativa. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 5. A corrupção pode ainda
ser definida, segundo Gianfranco Pasquino, como “fenômeno pelo qual um funcionário público é
levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses
particulares em troco de recompensa. Corrupto é, portanto, o comportamento ilegal de quem
desempenha um papel na estrutura estadual.” O referido autor divide a corrupção em três espécies: o
suborno, entendido pelo autor como a prática da peita ou uso da recompensa para modificar o atuar
do agente público; o nepotismo, ou concessão de empregos ou contratos públicos, dissociados do
mérito, portanto, por razões distintas do interesse público; e o peculato, seja ele através da
apropriação ou desvio para destinação privada. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola;
PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. Carmem C. Varriale et al. 13 ed. Brasília:
Editora UNB, 2007, p. 291-292.
5
Ainda de acordo com Emerson Garcia, “A corrupção, em verdade, é um fenômeno social que surge
e se desenvolve em proporção semelhante ao aumento do meio circulante e à interpenetração de
interesses entre os componentes do grupamento. Sob esta ótica, os desvios comportamentais que
infrinjam a normatividade estatal ou os valores morais de determinado setor em troca de uma
vantagem correlata, manifestar-se-ão como formas de degradação dos padrões ético-jurídicos que
devem reger o comportamento individual nas esferas pública e privada.” Ibidem, p. 3.
6
Vide análise detalhada feita pela Transparência Internacional. Disponível em:
<http://www.transparency.org/publications/gcr/download_gcr#downloadhttp://www.transparency.org/p
ublications/gcr/download_gcr#download>. Acesso em 20/06/2008.
7
Como será relatado posteriormente, o Estado Democrático de Direito não se equipara ao Estado
Social – Wellfare state – razão pela qual a concretização das obrigações prestacionais, voltadas para
a implementação dos direitos fundamentais sociais, não constitui seu único pressuposto conformador.
12
percepção de que sua inobservância fortalece a cronicidade das dificuldades
relativas à concretização dos direitos sociais assegurados na Carta Magna. Nessa
linha de argumentação, pode-se inferir que o problema precisa ser enfrentado
através de instrumentos eficazes – acoplados à idéia de vedação da proteção
deficiente.
Nesse passo, como se abordará ao longo do estudo, o princípio da
Proibição da Proteção Deficiente deve ser compreendido sob duplo aspecto: sob um
ângulo, impede a revogação de normas cujo conteúdo seja indispensável ao
cumprimento das disposições constitucionalmente asseguradas, mormente dentro
do núcleo fundamental em relação ao qual não é permitido retrocesso. Por outra
vertente, trata de impor a atuação comissiva, com o intuito de conferir efetividade
aos deveres impostos pela Carta Magna ao Estado, a serem cumpridos pelos
agentes públicos e políticos, na qualidade de delegatários de parcela de poder
conferida pelo cidadão, quer através do sufrágio ou dos demais mecanismos
previamente legitimados pelo próprio poder constituinte originário.
Com esses fundamentos, a pesquisa se orienta para demonstrar a
importância e alcance emprestado pelo legislador originário ao combate à
improbidade,
a
ponto
de
acarretar
a
suspensão8
dos
direitos
políticos,
expressamente prevista no artigo 15, inciso IV, da Carta Magna, em dispositivo
autônomo e distinto dos efeitos decorrentes da condenação penal definitiva.
Conforme o exposto, o presente estudo pretende contribuir para a
redução da impunidade no campo da gestão da res publica, auxiliando, destarte, a
mobilização dos segmentos organizados da sociedade, com o fito de concretizar a
efetividade das normas constitucionais pertinentes à gestão pública.9
8
A despeito do caput do referido artigo admitir a perda ou suspensão, é imperiosa a sua conjugação
com o artigo 37, § 4º, da própria Constituição de 1988, no qual não houve inclusão da perda dos
direitos políticos, limitando-se, na hipótese de improbidade administrativa, à suspensão dos mesmos.
9
Cabe aqui, por oportuno, o seguinte registro: “Certamente dez anos não são suficientes para
sedimentar todas as virtualidades que vicejam desse importante instrumental normativo. Apenas uma
certeza já se obteve ao longo dessa década: recai sobre o intérprete-aplicador – advogados, juízes,
membros do Ministério Público, enfim, toda a comunidade jurídica – a indelegável missão de extrair a
máxima efetividade da matéria-pública apresentada por esse diploma legal, definindo, com
responsabilidade, a medida de sua importância na regulação compartilhada da atividade pública.”
SAMPAIO, José Adércio Leite et al. (org.). Improbidade Administrativa 10 anos da Lei n. 8.429/92.
Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.XII.
13
Do ponto de vista estrutural, a investigação está organizada em três
partes: a primeira, composta por dois capítulos, recebeu o título de A Evolução do
Estado e do Governo na perspectiva da probidade.
No Capítulo 1, aborda-se o
Estado Moderno, desde sua origem até o Estado Democrático de Direito, com o
intuito de contextualizar o objeto de investigação. Em continuidade, no capítulo 2,
trata-se do Modelo Republicano em seus nexos com a probidade.
Por sua vez, a Parte II, denominada A Natureza, o Conteúdo e o
Conceito da Probidade, está subdividida em três capítulos, os quais versam sobre a
probidade como direito difuso; o patrimônio público considerado como objeto da
tutela da probidade; e o conceito do princípio da probidade.
Já a Parte III, intitulada como A Probidade, o Estado Democrático de
Direito e os Direitos Fundamentais, está composta de quatro capítulos, com ênfase
na análise da tutela da probidade, assegurada pela Constituição da República de
1988 como direito fundamental difuso, pressuposto basilar para a eficácia das
obrigações prestacionais da entidade estatal.
Por derradeiro, apresentam-se algumas conclusões, cujos alicerces
repousam nas fontes consultadas.
14
PARTE I
A EVOLUÇÃO DO ESTADO E DO GOVERNO NA PERSPECTIVA DA PROBIDADE
CAPÍTULO 1
O ESTADO MODERNO: DA ORIGEM AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A análise do direito à exigência de um atuar probo por parte de todos os
agentes do Estado10
11
que se qualifica como republicano e coerente com os
requisitos de Estado Democrático de Direito, adotado pela Constituição da República
de 1988, remete, inicialmente, a uma breve retrospectiva à formação do próprio
Estado moderno,12 marco relevante do surgimento de um ente organizado política e
administrativamente para a construção do bem comum. Esse alicerce se configura
através da transferência do centro de poder, anteriormente sob o comando privado,
evoluindo para a dimensão participativa do exercício do poder.13
Nessa perspectiva analítica, o bem comum não é algo pronto e acabado:
eis que precisa ser conquistado mediante atuação consciente de diversos atores
sociais.
Ele resulta da adoção persistente de comportamentos destinados a
assegurar a todo indivíduo e aos diversos grupos condições para viver dentro de
parâmetros hauridos dos fundamentos do Estado Democrático de Direito,
explicitados pela Carta Magna, ao inaugurar o paradigma definido pelo texto
constitucional.
10
A denominação “Estado” (do latim status) foi difundida por Maquiavel, em sua obra “O Príncipe”,
elaborada em 1513, ao afirmar “Todos os estados, todos os domínios que imperaram e imperam
sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados”. BOBBIO, Norberto. Estado, Governo,
Sociedade – Para uma teoria geral da Política. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987, p.65-66. O uso, à época, desta expressão acabou por substituir os conceitos de civitas,
que traduzia o grego polis e res publica, através da qual os romanos denominavam o conjunto das
instituições políticas. Entretanto, o emprego deste termo indicando uma sociedade política
permanente somente foi consagrado com a crise da sociedade medieval, portanto, quando se dá o
nascimento do chamado Estado Moderno.
11
Segundo Georg Jellinek, “Un Estado es uma comunidad com própio território, propios súbditos y
própio poder supremo de gobierno.”, esclarecendo que a ausência de um desses elementos afasta o
conceito de Estado. JELLINEK, Georg. Fragmentos de Estado. Trad. Michael Forster; Miguel Herrero
de Miñón; José Carlos Estebam. Madrid: Editorial Civitas, 1981, p.59.
12
Na visão de Norberto Bobbio, o Estado Moderno surge com a dissolução da sociedade medieval”
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito. Trad. Márcio Pugliesi;
Edson Bini; Carlos E. Rodrigues, São Paulo: Ícone Editora, 2006, p. 26.
13
A passagem da Idade Média para a Modernidade marca o surgimento da idéia “de povo como
unidade e fonte de direitos e de poder”. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do
Estado. 27. ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 43.
15
Tendo em vista as diversas formulações acerca do significado de “bem
comum”, mostra-se bastante esclarecedora e de grande alcance a lição formulada
pelo Papa João XXIII,14 para quem “... consiste no conjunto de todas as condições
de vida que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade
humana”.
A concepção acima enunciada nada mais é do que o reconhecimento, na
ótica coletiva, do princípio da proteção à dignidade da pessoa humana, explicitado
no art. 1º, inciso III, da Constituição da República de 1988, como um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Alguns estudiosos referidos na seqüência do capítulo identificam o Estado
como espécie de sociedade política15
16
destinada à criação de condições para o
desenvolvimento de seus integrantes; vale afirmar, um conjunto de instituições que
atuam de forma coordenada e sistemática, sempre em função do bem coletivo.
Jorge
Miranda17
reconhece
o
Estado
como
sociedade
política,
“consistente na organização de governantes e de governados, ou comunidade dos
cidadãos.” Segundo o doutrinador mencionado, pode-se compreender o Estado
como sociedade política sob dupla vertente:
Estado-poder”.
“como Estado-comunidade e como
Todavia, o pensador lusitano alerta para que não devam ser
separadas, sob pena de se perder a unidade, necessária à compreensão política.
Conquanto se reconheça polêmica a idéia da existência de um verdadeiro
Estado, com as características próprias à sua constituição no período medieval, ou
mesmo na polis grega, merecendo realce para a existência de monopólio na
formulação do direito, como proclamado por Norberto Bobbio,18 previsão de
14
Papa João XXIII. Pacem in Terris. Carta Encíclica,2ª parte, item 58, 1963. Site oficial do Vaticano.
Disponível
em:
<HTTP://www.vatican.va/holy_father/john-xxiii/encyclicals/documents/hf_jxxiii_enc_11041963_pacem_po_html>. Acesso em: 13/04/2008.
15
Segundo definição de Dalmo de Abreu Dallari, (...) “são sociedades políticas todas aquelas que,
visando a criar condições para a consecução dos fins particulares de seus membros, ocupam-se da
totalidade das ações humanas, coordenando-as em função de um fim comum.” Ibidem, p. 48-49.
16
Jorge Miranda ressalta que alguns estudiosos tratam o conceito de Estado como equivalente ao de
sociedade política e não como espécie, numa relação de conteúdo para continente. Vide referido
autor in: Teoria Geral do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.19.
17
MIRANDA, Jorge. Teoria Geral do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.1.
18
Segundo Bobbio, “A sociedade medieval era uma sociedade pluralista, posto ser constituída por
uma pluralidade de agrupamentos sociais cada um dos quais dispondo de um ordenamento jurídico
próprio: o direito aí se apresentava como um fenômeno social, produzido não pelo Estado, mas pela
16
instrumentos coativos para a aplicação do direito, com destaque para o Exército
destinado à proteção do território e o pagamento de tributos indispensáveis à
manutenção dessas atividades, insta consignar que a presente pesquisa tem como
ponto de referência o advento da Modernidade, a partir da qual se evidencia um
modelo de organização reconhecido como Estado stricto sensu.19
Lênio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais20 identificam o momento
de transferência das relações de poder, outrora exercidas no campo exclusivamente
privado, para o âmbito público, com o rompimento do antigo modelo instalado no
período medieval para uma nova estrutura de poder, na qual as “relações de poder”
(autoridade, administração da justiça, etc.) deixam o campo privado dos senhores
feudais e passam para a esfera pública do Estado centralizado. Um dos propulsores
da referida passagem repousa na alteração do modo de produção da sociedade
civil, no qual se fizeram necessárias estruturas específicas (“comunicações, justiça,
exército, cobrança de impostos, etc.”) que lhes dessem as garantias.
Segundo os supracitados autores21, não se pode fixar data exata de
nascimento do Estado Moderno como resultado da transformação do período
medieval, já que ambos coexistiram durante alguns séculos na Europa Central e
Ocidental.
O modelo dos feudos, constituído por diversos grupos sociais,22
caracterizado pela fragmentação dos poderes (na medida em que cada feudo
possuía um ordenamento jurídico), marcado principalmente pela existência de
exército próprio e pela aplicação de justiça privada pelos senhores feudais23, esvaiuse, cedendo lugar ao nascimento de um Estado centralizado, denominado de Estado
sociedade civil. Com a formação do Estado moderno, ao contrário, a sociedade assume uma
estrutura monista, no sentido de que o Estado concentra em si todos os poderes, em primeiro lugar
aquele de criar o direito: não se contenta em concorrer para esta criação, mas quer ser o único a
estabelecer o direito, ou diretamente através da lei, ou indiretamente através do reconhecimento e
controle das normas de formação consuetudinária. Assiste-se, assim, àquilo que em outro curso
chamamos de processo de monopolização da produção jurídica por parte do Estado.” BOBBIO,
Norberto. O Positivismo Jurídico, Ibidem, p.27.
19
De acordo com Bobbio, segundo a concepção Weberiana, os elementos constitutivos do Estado
são a presença de um aparato administrativo para a execução dos serviços públicos e monopólio do
uso da força com legitimidade. BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade.Ibidem, p.69.
20
STRECK, Lênio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 5
ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 43.
21
Ibidem, p. 25.
22
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Ibidem, p.27.
23
“O direito era produzido pela sociedade civil.” Ibidem, p. 27.
17
Moderno, cujo surgimento decorre, sobremaneira, da necessidade de segurança
para a nova forma de produção, intitulada de capitalismo. A rigor, pode-se admitir
que foi o processo de instabilidade política, econômica e social do período medieval
que criou as condições que impulsionaram o nascimento do Estado Moderno.
O novo modelo de produção, que não se limitava à finalidade do próprio
consumo, marcou-se pelo início da comercialização dos produtos, situação que
acabou por induzir a unificação das regras mercantis que deveriam ser controladas,
ainda que de forma incipiente, por um poder político centralizado. Surgiram, assim,
os primeiros reinos que culminaram, posteriormente, nas monarquias absolutistas.24
Nesse momento histórico, é possível identificar, embora de forma
bastante limitada, a transferência do exercício do poder a um terceiro, visando à
fixação de regras imprescindíveis à implementação de uma mercancia, embora
ainda precária. Essa transmissão justificou-se, desde o início, para o benefício da
coletividade, embora consubstanciada, naquele período, por pequena parcela da
sociedade e voltada para o indivíduo.
A nova classe social que começou a se formar, posteriormente cunhada
de burguesia, em nome da segurança da mercantilização, reforçou a necessidade
de centralização do poder político e administrativo, na figura do monarca soberano.
A centralização e concentração do poder caracterizavam-se pelo monopólio da
prestação de serviços considerados essenciais à garantia da segurança em âmbito
interno e externo.
Nesse processo, o Estado Moderno, segundo José Antônio Giusti
Tavares25, formou-se como resultado de quatro movimentos, a saber: 01) a
centralização do poder, 02) neutralização ou fragilidade das associações,
comunidades intermediárias e das instituições de nível intermediário, dotadas de
alguma autonomia, 03) extinção das distinções sociais em estamentos, com a
24
Paulo Bonavides divide o Estado Moderno Absolutista em duas fases: a primeira fundada no poder
divino – embora sejam identificadas, à época, as obras de Maquiavel e Jean Bodin, dois intelectuais
leigos – na qual a soberania é vista como instrumento de poder e não como qualidade, idéia
defendida por Georg Jellinek; e a segunda, secularizada em bases filosóficas, principalmente através
das teorias contratualistas, com a qual se introduz novo fundamento para o poder, ou seja, a origem
transmuda-se da divindade para o homem, segundo critérios racionais. Vide referido autor in: Teoria
do Estado. 6 ed., São Paulo: Malheiros, 2007, p.35-36.
25
TAVARES, José Antonio Giusti. A estrutura do Autoritarismo Brasileiro. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1982, p. 55 e 56.
18
unificação da população (igualdade abstrata), subordinando-os a um poder direto e
04) implementação do poder centralizado, denominado Estado, distinto da
sociedade.
Conforme o citado autor26, “a organização burocrática foi o elemento
fundamental” que deu substância aos demais elementos que, por sua vez
(reunidos), deram a realidade material do Estado, configurada no monopólio dos
sistemas monetário e fiscal, no monopólio da realização da justiça e na existência de
um exército nacional.
A prestação destes serviços pelo Estado, de forma
concentrada, efetivou-se através dos agentes que o representam, configurando cada
qual o próprio Estado em atuação.27
Conquanto o Estado Moderno tenha se constituído desde a origem como
instituição autônoma, distinto da sociedade civil, em verdade, essa cisão é aparente,
eis que sua organização política e administrativa, em essência, está voltada para o
atendimento dos reclames desta mesma sociedade civil, particularmente dos
segmentos hegemônicos em cada época28.
É dentro do quadro exposto que, como se haure da doutrina de Paulo
Bonavides29 e Dalmo de Abreu Dallari,30 o aspecto teleológico, que dá relevância
aos fins a serem perseguidos pelo Estado, deve ser valorizado e considerado, a par
das costumeiras referências ao território, povo e soberania. Nessa perspectiva de
análise, não se pode esquecer, destarte, que a finalidade determina as ações
26
A estrutura do Autoritarismo Brasileiro. Ibidem, p. 55 e 56.
Ao comentar o conceito de órgão estatal Georg Jellinek esclarece que “Entendemos que órganos
de Estado son los individuos ou colégios cuya voluntad está llamada a realizar y crear
immediatamente la voluntad estatal o a participar em el processo de formación y ejecución de la
misma em el marco de las competências legales”. Vide o referido autor in: Fragmentos de Estado,
Ibidem, p. 69. Ajustada à contemporaneidade, a idéia de vontade do Estado não pode estar hoje
dissociada de sua finalidade, qual seja, o bem comum, como já salientado e aposta como imperativo
no artigo da Carta de 1988:
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
Iconstruir uma sociedade livre, justa e solidária;
II- garantir o desenvolvimento nacional;
III- erradicar a pobrezas e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,raça,sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”;
28
Não se pode olvidar, que ao longo de muitos anos, somente se ouviam os reclames de pequena
parcela da sociedade, negando-se voz a diversos grupos.
29
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 6 ed., São Paulo: Malheiros, 2007, p. 114-115.
30
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 27 ed., São Paulo: Saraiva,
2007, p. 103-104.
27
19
concretas do Estado, cabendo, aqui, sublinhar que os fins “contribuem (...) sobretudo
com o padrão valor, mediante o qual toda a atividade estatal há de aferir-se”.31
Atualmente, conforme principiologia da Carta da República vigente no
país, é clara a natureza instrumental32 do Estado, uma vez que a sua finalidade é
positivada expressamente no artigo 3º, inciso IV, da Lei Maior de 1988, ao
estabelecer que a promoção do bem de todos constitui objetivo fundamental da
República Federativa do Brasil enquanto elemento do Estado.33 34
Foi exatamente com o surgimento do Estado Moderno que se identificou a
noção de povo (posteriormente enquadrado como elemento essencial do Estado),
compreendido como unidade (ente) de direitos e poder, incorporada pelos teóricos
contratualistas.
Com efeito, o ingresso na Modernidade foi marcado pelo florescimento
das teorias contratualistas,35 para as quais tem o Estado função instrumental,
decorrente da vontade racional, dirigido à concretização de objetivos.
Nesse sentido, realçando a função instrumental, Cesar Luis Pasold36
afirma que:
31
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. Ibidem, p.115.
Dentre as funções instrumentais do Estado está a prestação jurisdicional a ser orientada pela regra
disposta no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo a qual, “Na aplicação da lei, o juiz
atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, de onde se depreende
que toda a lei visa ao bem comum, sendo este o pressuposto de todo o ordenamento jurídico e, em
útima análise, do atuar do Estado. BRASIL. Decreto-Lei 4.657, de 04.09.42. In: NEGRÃO, Theotonio;
Gouvêa, José Roberto F. Código Civil e legislação civil em vigor. 27 ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p.
23.
33
A idéia de probidade no âmbito do Estado, objeto desta pesquisa, está diretamente ligada ao
conceito de finalidade.
34
Acerca da finalidade do Estado, Vanice Lírio do Valle, valendo-se das lições de Diogo de
Figueiredo Moreira Neto, registra que “a reconfiguração do papel da constituição, seu lugar de
organização, defere igualmente ao Estado – e no plano da concretização mais direta à Administração
– um elemento finalístico, uma tarefa a cumprir, valores a alcançar, todos determinantes de sua
estruturação e atuação. São tempos de constitucionalismo axiologicamente comprometido, em que o
agir do poder não se legitima pela simples expressão desse mesmo poder, mas pela harmonia entre
as finalidades pretendidas, e aqueles propósitos comprometidos com a jusfundamentalidade dos
direitos que as Cartas de Princípios agora lhes apresentam.” Vide referida autora. “Direito
fundamental à boa administração, políticas públicas eficientes e a prevenção do desgoverno”. In:
Revista Interesse Público. Belo Horizonte, Forum, nº 48, mar/abr/2008, p. 87-109.
35
Embora se tenha ciência da existência de outras teorias voltadas para a explicação e
fundamentação da origem do Estado,trabalhou-se nesta pesquisa com as concepções
contratualistas, a despeito das especificidades de cada qual, com destaque para Thomas Hobbes,
Jonh Locke e Rousseau.
32
20
“se a condição instrumental do Estado advém do fato dele ser
criação da Sociedade, ela se consolidará somente na serventia aos
anseios sociais e justificar-se-á por uma conformação jurídica,
dinâmica e conveniente na sua origem, e coerente com a sua
utilidade para a Sociedade. Se o Estado Contemporâneo não tem
tido, em determinados momentos e territórios, comportamentos
compatíveis com tal condição, as causas devem ser identificadas e,
compete à respectiva sociedade a tarefa de (re)tomar o domínio
sobre a sua criatura. Tal fato, contudo, não invalida a postulação de
que diante da complexidade crescente da vida contemporânea, este
instrumento, disponível e estruturado (o Estado), possa e deva ser útil
à realização do Bem Comum ou ao Interesse Coletivo.”37
O pensamento contratualista38 foi inaugurado com Thomas Hobbes,39 em
sua obra “Leviatã”, da qual se pode extrair a assertiva de que o agir do Estado, por
ele identificado como o “homem artificial”, representa, na verdade, a ação de todos
os homens que, individualmente, cederam parcela da liberdade de cada qual em
favor de um pacto para todos, denominado de contrato social.40
Passa-se do estado de natureza, caracterizado pela guerra de todos
contra todos41 - no qual o medo não permitia antever a possibilidade da congregação
entre os indivíduos através da ordem e da segurança – para o estado civil – a
36
PASOLD, Cesar Luis. Função Social do Estado Contemporâneo. 3 ed., Florianópolis: Ed. OAB/SC
e Diploma Legal, 2003, p. 46-47.
37
Nessa mesma linha, Jorge Miranda sustenta que a única finalidade do Estado é “dar realização
política às aspirações de determinado grupo humano, dar-lhe a virtualidade de livremente definir e
prosseguir o interesse colectivo.” Vide referido autor in: Teoria do Estado e da Constituição”. Ibidem,
p. 186. Em igual sintonia, Vicente Ráo, afirma que “A origem do Estado coincide, como fato social e
histórico, com o momento da transformação da vontade coletiva, ou social, em vontade política, com
o momento, isto é, em que se sentiu a necessidade de submeter a disciplina da convivência social a
um Poder organizado pelo povo e por êle investido da faculdade de mando e de coerção”. Vide
referido autor in: O Direito e a Vida dos Direitos. 2º vol., São Paulo: Max Limonad, 1958, p. 98.
38
Alguns autores vislumbram remoto antecedente do contratualismo na obra de Platão, “A
República”, uma vez que a organização social por ele identificada se forma a partir do pensamento
racional.
39
A principal obra, “O Leviatã”, foi publicada no ano de 1651.
40
“A transferência mútua de direitos é aquilo a que se chama CONTRATO.” HOBBES, Thomas.
Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de uma República Eclesiástica e Civil. Trad. João Paulo Monteiro
e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2 ed., São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 115.
41
A razão do pensamento de Thomas Hobbes “O Homem é o lobo do homem”, encontrado em sua
obra O Leviatã, decorre, segundo ele, da situação de desordem própria da natureza humana, caso
não existissem as regras, por ele representado através do estado de natureza, no qual todos são
igualmente capazes de investidas contra o outro, acarretando permanente estado de tensão.
Segundo alguns, a partir de registro do próprio Hobbes, sequer houve uma ocorrência real do estado
de natureza, tratando-se de hipótese teórica. “Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em
que os indivíduos se encontrassem numa condição de guerra de todos contra todos, em todos os
tempos os reis e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência,
vivem em constante rivalidade e na condição e atitude de gladiadores...” Ibidem, p.110.
21
sociedade politicamente organizada, através do contrato social, que nada mais é do
que a corporificação do acordo fundado em bases puramente racionais (modelo de
dominação legal-racional) em substituição aos modelos orientados pela tradição e
pela religião (modelo de dominação carismática42), marcado pela recíproca
transferência de direitos.
Hobbes43 atribui ao Estado –o Leviatã – a missão de assegurar a paz aos
indivíduos, através de mecanismos designados como cadeias artificiais –
corporificadas nas leis civis – cuja obediência decorre de acordo entre as partes.
Conforme análise desse filósofo contratualista, pode-se afirmar que a existência do
Estado está voltada para a própria preservação do homem.44
A cessão de todos em direção a um terceiro (que pode ser um homem ou
uma assembléia de homens), de forma a que os ideais estejam reunidos numa só
vontade, extrapola os limites do mero consentimento, pois equivale a uma
verdadeira unidade de desígnio, na qual cada qual expresse ao outro:
“Autorizo e transfiro o meu direito de me governar a mim mesmo a
este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de
transferires para ele o teu direito, autorizando de maneira semelhante
todas as suas ações. Feito isso, à multidão assim unida numa só
pessoa chama-se REPÚBLICA,45 em latim CIVITAS. É esta a geração
daquele grande Leviatã (...). É nele que consiste a essência da
república...”46
Nesse passo, cumpre refletir sobre o conceito de Estado, tal como
formulado por Hobbes:47
42
STRECK, Lênio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 5
ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 46.
43
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de uma República Eclesiástica e Civil.
Ibidem, p.113.
44
Ibidem, p. 115.
45
Segundo nota do tradutor, a expressão original usada pelo autor é commonwealth. Embora tenha
ele usado civitas como “Estado” e “República”, a preferência por esta pode ser extraída do texto.
46
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de uma República Eclesiástica e Civil.
Ibidem, p. 147.
47
Ibidem, p. 148.
22
“uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos
recíprocos uns com os outros, foi instituída por todos como autora, de
modo que ela pode usar a força e os recursos de todos, da maneira
que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa
comuns.”
Não obstante as críticas à teoria de Hobbes, em decorrência do seu
emprego como substrato ideológico para o modelo de Estado absolutista48, no qual o
limite ao poder do soberano no cumprimento do seu mister é tão-somente a
preservação da vida, – exposta a risco no estado de natureza –, é possível inferir do
seu pensamento um esboço, ainda que bastante precário, de uma das idéias que
norteiam esta pesquisa: de que o Estado não tem um fim em si mesmo, sendo
verdadeira criação destinada à manutenção da vida em sociedade e, portanto, o seu
atuar deve estar sempre dirigido ao bem da coletividade49.
Não se olvida aqui que a incondicional transferência de poderes
defendida
por
Hobbes
justificou
diversos
equívocos
perpetrados
pelos
governantes.50 Todavia, ao menos em tese, a principal razão do governante deveria
ter como fim garantir a paz e o bem comum; em última análise, a preservação dos
indivíduos em comunidade, já que, segundo ele, um mau governo era melhor do que
o estado de natureza, caracterizado pela guerra de todos contra todos, como
registrado anteriormente.
Ainda no campo do pensamento contratualista, impõe-se trazer à baila o
pensamento de John Locke, para quem o estado de natureza não estava marcado
pela guerra de todos contra todos.
48
Em verdade, segundo Locke, o estado pré-
Segundo Danilo Marcondes, Hobbes não pregava o exato conceito de monarquia absolutista,
baseada nas teorias tradicionais do direito divino dos reis, e sim que o poder somente seria eficaz se
exercido de forma absoluta. “Este poder absoluto resulta, no entanto, da transferência dos direitos
dos indivíduos ao soberano, e é em nome desse contrato que deve ser exercido, e não para a
realização da vontade pessoal do soberano”. MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia.
10 ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p.198. Em sintonia com a assertiva ora exposta,
pode ser destacado da obra de Thomas Hobbes o seguinte registro: “Em todas as repúblicas o
legislador é unicamente o soberano, seja este um homem, como numa monarquia, ou uma
assembléia, como numa democracia ou numa aristocracia. Porque o legislador é aquele que faz a lei,
e apenas a república prescreve e ordena a observância daquelas regras a que chamamos leis.
Portanto a república é o único legislador.” HOBBES, Thomas. Ibidem, p. 226.
49
Aqui entendido a partir do pensamento anteriormente exposto do Papa João XXIII.
50
Este é o pensamento apresentado por Paulo Bonavides ao afirmar que a obra de Hobbes constitui
“o mais engenhoso tratado de justificação dos poderes extremos, servidos de uma lógica perversa,
em que a segurança sacrifica a liberdade e a lei aliena a justiça, contanto que a conservação social
de que é fiador o monarca seja mantida a qualquer preço.” Vide referido autor in: Teoria do Estado.
Ibidem, p. 36.
23
político e social surge com um grau de racionalidade, podendo afirmar-se que há
uma dose de compreensão entre os indivíduos e parcela de consciência acerca de
limite ao comportamento humano. Entretanto, o pacto social se faz necessário para
solução dos possíveis conflitos.51
Extrai-se de sua obra “Dois Tratados sobre o Governo”, a idéia de que
cada indivíduo, ao consentir com os demais para a formação de um ente político sob
um governo, impõe-se a obrigação de se submeter a este governo, na qualidade de
expressão da maioria, sob pena de se retornar ao estado de natureza.52
Insta consignar que, no dizer do referido autor, o contrato social traz
consigo o reconhecimento de direitos que se apresentam como limites para a
constituição do estado social e político. A partir da premissa de Locke, constata-se
que o Estado, como decorrência do pacto social, sob a ótica jurídica, nasce
circunscrito aos limites impostos pelos direitos pré-existentes no estado de
natureza.53 Como afirmou textualmente o referido pensador,54
“Sendo todos os homens, como já foi dito, naturalmente livres, iguais
e independentes, ninguém pode ser privado dessa condição nem
colocado sob o poder político de outrem sem o seu próprio
consentimento. A única maneira pela qual uma pessoa qualquer pode
abdicar de sua liberdade natural e revestir-se dos elos da sociedade
civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se em
uma comunidade, para viverem confortável, segura e pacificamente
uns com os outros, num gozo seguro de suas propriedades e com
maior segurança contra aqueles que dela não fazem parte”
Destarte, a natureza instrumental do Estado é reconhecida no
pensamento de Locke, uma vez que despido de fim em si mesmo. Diferentemente
51
“Através dele, os indivíduos dão seu consentimento unânime para a entrada no estado civil e,
posteriormente, para a formação do governo quando então, se assume o princípio da
maioria”.STRECK, Lênio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do
Estado. Ibidem, p.33. O princípio da Maioria será objeto de cotejo frente ao direito fundamental da
probidade assegurado pela Lei Maior, em momento oportuno.
52
LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo, Martins Fontes,
2005, p.470.
53
“Os direitos naturais são, por conseguinte, limites à ação do estado, cuja validade independe de
terem sido reconhecidos em textos juridico-positivos. Por conta disso, as normas de direito positivo,
com eles contrastantes, são consideradas inválidas”. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria
Constitucional e Democracia Deliberativa. Um estudo sobre o papel do direito na garantia das
condições para cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 25.
54
LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. Ibidem, p.468.
24
de Hobbes, o primeiro, ao publicar a sua obra-prima, em 1690, introduziu a idéia de
que o Estado, por ele representado como o estado civil, deve estabelecer leis que
assegurem o exercício dos direitos antecedentes à sua criação. “O estabelecimento
da lei civil, do juízo imparcial e da força comum tem um papel de reforço dos direitos
naturais não alienados através do contrato social.”55
Em verdade, pode-se afirmar que, ao contrário de Hobbes, visto como um
dos patronos intelectuais do modelo de poder absolutista, Locke é reconhecido na
doutrina como um dos pensadores de base do Estado liberal - que surge, desde a
origem, circunscrito à observância dos direitos fundamentais imanentes56 - e
defensor do controle do governo pelos cidadãos, como corolário da premissa de que
o consentimento legitimador do exercício do poder pressupõe a observância dos
ditos direitos fundamentais que lhe antecedem.
No estado de natureza57, visto a partir do ideário lockeano – grande
inspirador das Declarações de Direitos do Homem – os homens nascem iguais e é
exatamente esta idéia de igualdade que dá fundamento ao reconhecimento dos
direitos de liberdade (direitos negativos a serem respeitados pelo Estado e pelos
demais indivíduos), identificados como direitos do homem, posteriormente,
alargados em direção aos direitos sociais, hoje qualificados como direitos difusos.
55
STRECK, Lênio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado.
Ibidem. p.34-35.
56
À época, com alcance ainda limitado, restritos à vida e a propriedade.
57
“A hipótese do estado de natureza – enquanto estado pré-estatal e, em alguns escritos, até mesmo
pré-social – era uma tentativa de justificar racionalmente, ou de racionalizar, determinadas exigências
que se iam ampliando cada vez mais; num primeiro momento, durante as guerras de religião, surgiu a
exigência da liberdade de consciência contra toda a forma de imposição de uma crença (imposição
freqüentemente seguida de sanções não só espirituais, mas também temporais); e, num segundo
momento, na época que vai da Revolução Inglesa à Norte Americana e à Francesa, houve demanda
de liberdades civis contra toda a forma de despotismo. O estado de natureza era uma mera ficção
doutrinária, que devia servir para justificar, como direitos inerentes à própria natureza do homem (e,
como tais, invioláveis por parte dos detentores do poder público, inalienáveis pelos seus próprios
titulares e imprescritíveis por mais longa que fosse a duração de sua violação ou alienação),
exigências de liberdade provenientes dos que lutavam contra o dogmatismo das Igrejas e contra o
autoritarismo dos Estados.” BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 68-69.
25
Com efeito, encontra-se em Locke a idéia, ainda que embrionária, do
direito de controle da atividade pública,58 vale dizer, da possibilidade de fiscalização
do respeito ao dever de probidade por parte dos agentes públicos e políticos.
Igualmente enquadrado como teórico do contratualismo, Jean-Jacques
Rousseau entende o estado de natureza como registro hipotético, no qual o homem
nasce livre e degenera ao longo da história, cabendo ao contrato a função de
limitação do próprio homem, como condição de lhe restituir a liberdade, através da
consciência de todos, na qual se vê inserido o sentimento de justiça. Nessa linha de
pensamento, o direito, corporificado pelo contrato social, substitui o atuar marcado
pelo instinto.
A legitimidade do poder do Estado, de acordo com Rousseau, deriva da
vontade geral, viabilizada através do contrato social, que, como referido, decorre da
livre associação de seres humanos inteligentes que cedem parcela da liberdade
individual, conscientes do cerceamento que esta representa, com o escopo de
assegurar a todos os integrantes desta sociedade, cuja finalidade é o bem comum, a
garantia de uma liberdade decorrente do pensamento racional, caracterizado pela
defesa do interesse coletivo.
Pode-se inferir que cada qual, unindo-se a todos,
obedece a si mesmo e permanece livre.59
Em Rousseau, a renúncia à liberdade total resulta em favor da
coletividade, cabendo ao Estado o uso do poder para implementação desta vontade
geral, que não se confunde com o somatório das vontades individuais, pois alcança
o bem comum.
“Como se pode observar, a defesa do bem comum sufoca as
possibilidades individuais do cidadão”.60
O Estado, portanto, deve materializar a vontade geral, expressão do
desejo coletivo de convivência em harmonia.
58
Destarte, atribui-se, através da
Aqui empregada em sentido amplo, englobando todas as atividades desenvolvidas pelos agentes
públicos e políticos.
59
"Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os
bens de cada associado, e pela qual, cada um, unido-se a todos, não obedeça portanto senão a si
mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente. Tal é o problema fundamental cuja solução é
dada pelo contrato social.” ROUSSEAU. Jean-Jacques. O Contrato Social e outros escritos. Trad.
Rolando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix, 2007, p. 30.
60
STRECK, Lênio, Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado.
Ibidem, p.38.
26
vontade geral, conteúdo de moralidade no agir do Estado (a vontade geral faz com
que os cidadãos passem a pertencer a um corpo moral coletivo, chamado de
Estado), entendendo-se a obediência como concretização da liberdade e a
soberania como sinônima da “ação do povo que dita a vontade geral, cuja expressão
é a lei”.61 “O soberano, portanto, continua a ser o conjunto das pessoas associadas,
mesmo depois de criado o Estado, sendo a soberania inalienável e indivisível.”62
Assim definido o conceito, a enunciação do contrato social, nos moldes da
idealização de Rousseau, constitui a semente de um Estado Democrático, na
medida em que o poder pertence à coletividade e não mais a um monarca ou a uma
oligarquia.63
Dentro da linha de pensamento de Rousseau, a soberania desloca-se do
monarca para as mãos do povo, dando início ao princípio da soberania popular, hoje
largamente difundido e expressamente adotado pela Constituição da República de
1988.
Igualmente, encontra-se a presença das idéias difundidas por Rousseau
como base do pensamento democrático64 e no reconhecimento da existência de
interesses da coletividade – difusos – que nem sempre coincidem com os interesses
individuais e que necessitam, portanto, de uma releitura em que a tutela desses
direitos seja o paradigma, face à sua evidente relevância.65
Nesse diapasão, tem pertinência nos tempos atuais o alerta formulado por
José Eduardo Faria,66 ao examinar a estrutura do Poder Judiciário, concluindo que
ainda prevalece o modelo voltado, primordialmente, para solução das disputas
61
Ibidem, p.38.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Ibidem, p.17.
63
STRECK, Lênio, Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado.
Ibidem, p.38.
64
Embora ainda de alcance limitado, porquanto restrito à idéia de democracia formal, vale dizer, o
governo do povo, consubstanciado no princípio da maioria, posteriormente alargado para se incluir o
sentido substancial, qual seja, “o governo para o povo”.BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. vol.
II, Ibidem, p. 328.
65
Com efeito, não se pretende o abandono dos direitos individuais assegurados na Constituição da
República de 1988. Apenas, pretende-se chamar a atenção para a necessidade de reposicionamento
do Poder Judiciário de forma a estar aparelhado para o deslinde de demandas destinadas à proteção
dos interesses que pertencem à coletividade (real interesse público).
66
FARIA, José Eduardo. O Poder Judiciário no Brasil: paradoxos, desafios e alternativas. Série
Monografias do Centro de Estudos Judiciários, nº 3. Brasília, Conselho da Justiça Federal, 1995, p.
14.
62
27
interindividuais, a partir da idéia de que “a parte precede o todo; ou seja, de que os
direitos do indivíduo estão acima dos direitos da comunidade.”
Conquanto se reconheça expressivo avanço com o conteúdo das balizas
traçadas por Rousseau, sinônimo da prevalência do princípio da maioria, impõe-se o
seu questionamento frente à necessidade de garantia do núcleo irrestrito dos direitos
fundamentais, a ser mais à frente examinado neste estudo.
No mesmo sentido, Kant67 assinala que o ato pelo qual um povo se
constitui num Estado é o contrato original, que lhe confere legitimidade. Nos termos
do contrato original, todos os indivíduos renunciam (povo, na qualidade de elemento
do Estado) à liberdade externa para reassumi-la, em seguida, como partícipes da
coisa pública; ou seja, de um povo que passa a fazer parte de um ente intitulado de
Estado.
Em verdade, não se está diante do sacrifício de uma parte da liberdade
externa em prol de uma finalidade, mas da renúncia à liberdade irracional,
decorrente do impulso e desprovida de lei, para usufruir da liberdade, que não está
reduzida à dependência às leis, uma vez que esta dependência surge da própria
vontade legisladora.68
Tendo-se analisado a origem do Estado, sob o enfoque das teorias
contratualistas, passa-se a um breve exame acerca dos modelos identificados de
Estado, partindo-se do Estado absolutista até o Estado Democrático de Direito, locus
da análise a ser enfrentada no tocante à probidade como direito fundamental.
Como assinalado, a primeira forma de Estado Moderno, o Estado
absolutista, nasceu da idéia de concentração de todos os poderes nas mãos do
monarca, em razão da qual se notabilizou a célebre frase “L’ Etat c’ este moi”.
67
Acrescentou ainda o referido pensador, que não se pode dizer: “o ser humano num Estado
sacrificou uma parte de sua liberdade externa inata a favor de um fim, mas, ao contrário, que ele
renunciou inteiramente à sua liberdade selvagem e sem lei para se ver com sua liberdade toda não
reduzida numa dependência à leis, ou seja,numa condição jurídica, uma vez que essa dependência
surge de sua própria vontade legisladora. KANT. Immanuel. A Metafísica dos Costumes. A Doutrina
do Direito e a Doutrina da Virtude. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003, p. 158.
68
Segundo Bobbio, encontra-se na teoria de Kant a conclusão da primeira fase da história dos
direitos do homem, compreendidos como direitos de liberdade (direitos negativos). A Era dos Direitos.
Ibidem, p. 68.
28
O modelo absolutista teve papel de fundamental importância para
assegurar a unidade territorial dos reinos e o monopólio dos serviços essenciais, que
deveriam ser prestados de forma centralizada, em substituição aos diversos núcleos
de poder dos senhores feudais.
Como bem assinalam Lênio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais69, o
Estado Absolutista caracterizou-se pela mudança do modelo de dominação
carismática para o de dominação legal-racional.
A doutrina em uníssono tem esclarecido que o Estado, forma moderna de
exercício e organização do Poder político, encontra no Direito instrumento e limite
para as suas atuações.
Fala-se, in casu, de dualismo, embrião do conceito de
Estado de Direito, como instituição jurídico-política.
A relação de tensão e dialética é o pressuposto básico do modelo de
organização do poder político denominado Estado de Direito, cujos pilares são
racionalidade, secularização e governo pelo direito (legalidade), todos situados no
marco histórico-sociológico da Modernidade.
A racionalidade decorre da possibilidade do conhecimento a ser produzido
pelo homem; a secularização, por sua vez, está representada pela separação do
poder entre o Estado e a Igreja, segundo a idéia de humanidade, ao passo que o
governo pelo direito significa que há regras pré-estabelecidas para a realização dos
objetivos pactuados pela comunidade.
A partir das idéias de muitos pensadores, entre os quais merecem
destaque Locke, Rousseau, Montesquieu70, inaugurou-se nova fase no Estado
Moderno, marcado, primordialmente, pela implantação de um modelo de
organização política, com diversa fundamentação para a legitimação do exercício do
poder, que resultou no nascimento da democracia representativa.71 Historicamente,
69
STRECK, Lênio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado.
Ibidem, p.46
70
Não se pode desconsiderar a contribuição da obra “Enciclopédia” de Diderot e D’Alembert,
segundo registra Paulo Bonavides. BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 6 ed., São Paulo:
Malheiros, 2007, p. 40.
71
“A concepção moderna de representação popular advém da Revolução Francesa. Sieyès, defensor
da democracia representativa, afirmava: ‘a nação é uma associação de homens que vivem sob uma
lei comum e cuja posição é representada por uma e a mesma assembléia legislativa; a legislação
29
registra-se esse movimento transformador com as Revoluções Gloriosa (1688),
Americana (1776) e Francesa (1789).
A nova forma de gestão política, denominada de Estado Liberal,
abeberou-se da idéia do contrato social como alicerce da luta pela elaboração de
uma Constituição. Nasceu, assim, o Estado Constitucional.72
A primeira modalidade de Estado Constitucional73 iniciou a sua
construção ao redor da noção de povo,74 titular do poder e respaldado na
legislação.75 Este novo ente funcionou como embrião do percurso que se vem
trilhando para a concretização do regime democrático participativo, construído sob o
fundamento de respeito aos direitos fundamentais, dentre os quais o de se exigir a
probidade dos agentes estatais.
À
luz
do
parâmetro
constitucional,76
o
Estado
liberal
evoluiu
concretamente para o que se define como Estado mínimo; isto é, não
intervencionista. Caracteriza-se pela limitação do poder monárquico e pelo
concomitante crescimento das liberdades individuais civis e religiosas.
Foi nesse período que veio a lume a idéia de sufrágio, embora ainda
restrito a determinada parcela dos cidadãos, posteriormente estendido ao estágio
universal, como se vê nos dias atuais.
Em síntese, identifica-se o Estado Liberal pela idéia de separação de
Poderes e pela disciplina de relações entre Estado e sociedade, entre o público e o
privado, cabendo ao primeiro a preocupação com a segurança, sem que tal mister
atua pela vontade geral representativamente formada;”. FIGUEIREDO, Marcelo. Teoria Geral do
Estado. 2 ed., São Paulo: Atlas, 2007, p. 125.
72
Conquanto a primeira Constituição tenha sido a Americana, o seu surgimento se dá
concomitantemente com o nascimento do Estado Americano, portanto com fundamento distinto das
revoluções vivenciadas pela Europa ocidental, destinadas à transformação do modelo estatal.
73
Ora inaugurado através de Constituições decorrentes de Assembléias Constituintes, ora a partir de
textos constitucionais outorgados.
74
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado, ibidem, p. 38.
75
Acerca do tema, registra Luigi Ferrajoli que: “É assim que a transformação do Estado absoluto em
Estado de direito ocorre simultaneamente à transformação do súdito em cidadão, isto é, em um
sujeito titular de direitos não mais exclusivamente ‘naturais’ mas ‘constitucionais’ em relação ao
Estado, que se torna, por sua vez, vinculado àquele. O denominado contrato social, uma vez
traduzido em pacto constitucional, não é mais uma hipótese filosófico-política, mas um conjunto de
normas positivas que obrigam entre si o Estado e o cidadão, tornando-os dois sujeitos de soberania
reciprocamente limitada. Vide referido autor, in: Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. Trad.
Ana Paula Zomer Sica et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 793.
76
Inicialmente sem o alcance que hoje se lhe empresta.
30
acarrete a intervenção nas relações contratuais estabelecidas entre particulares.
Com isso, pode-se afirmar que a formalização de um documento acerca dos limites
do poder político foi de grande relevância para a garantia dos direitos
fundamentais,77 ainda restritos ao plano das liberdades individuais, bem como para o
início da fixação dos contornos das atividades estatais.
Como esclareceu Norberto Bobbio,78 “por ‘liberalismo’ entende-se uma
determinada concepção de Estado, na qual o Estado tem poderes e funções
limitadas, e como tal se contrapõe tanto ao Estado absoluto quanto ao Estado que
hoje chamamos de social”.
Não se pode ignorar que, não obstante o clássico conceito do Estado
liberal acima delineado, o papel do Estado – de liberdade negativa, circunscrito à
manutenção da paz e da segurança – aos poucos, adquiriu novo alcance, no sentido
de que a idéia de liberdade do cidadão não poderia ficar restrita a um papel
meramente absenteísta, reclamando, também, atuação positiva visando a assegurar
o efetivo gozo dos direitos de liberdade nos planos da religião, da economia, do
pensamento, de associação e de participação no poder político.79
Desta forma, alargou-se o papel do Estado, sendo-lhe atribuída a missão
de criar condições mínimas para que os indivíduos, de fato, tenham acesso aos
direitos de liberdade, os quais não se restringem ao plano formal. Teve início, então,
a ampliação do espectro de atenção, que evoluiu do plano estritamente individual
para o social.
A despeito da mudança evidenciada, a prática desenvolvida no âmbito das
relações sociais, econômicas e políticas do Estado Liberal agravou a enorme
desigualdade social, fazendo com que, no início do século XX, o Estado passasse
de absenteísta a intervencionista, em decorrência das reivindicações das parcelas
excluídas economicamente, assumindo tarefas que eram antes próprias do mercado.
No mesmo sentido, ressalta Daniel Sarmento que, diante ”(...) da desigualdade
77
STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência Política e Teoria Geral do Estado.
Ibidem, p. 59.
78
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6 ed., Brasiliense: São Paulo, 1995, p.7
79
STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência Política e Teoria Geral do Estado,
ibidem, p. 62
31
existente no campo das relações privadas, o Poder Público abandona a sua posição
de absenteísmo, e passa a nela intervir, no afã de proteger as partes mais débeis”.80
Nascia, assim, o Estado do Bem-Estar Social, também chamado de
Estado Providência81 ou Welfare state, responsável pela liderança e implementação
de políticas orientadas para o interesse coletivo, principiado com as Constituições
Mexicana (1917) e de Weimar (1919).82
Como é compreensível, diante das diferenças culturais, ideológicas e
econômicas entre países, o modelo constitucional do Welfare State não alcançou
caráter universal, nem homogêneo; ao contrário, na prática, verificam-se diferentes
níveis de concretização de seu ideário, adaptando-se a situações diversas. A
despeito disso, como ressaltou Lênio Luiz Streck
83
“(...), é correto pretender que há
um caráter que lhe dá unidade, a intervenção do Estado e a promoção de serviços.”
Nesse contexto, identifica-se um atuar do Estado visando à promover
melhores condições de vida ao indivíduo. Como ressaltou Norberto Bobbio:84
“O Estado do bem-estar (Welfare State), ou Estado assistencial, pode
ser definido, à primeira análise, como Estado que garante tipos
mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação,
assegurados a todo o cidadão, não como caridade, mas como direito
político”.
Também é muito oportuno ressaltar que a história do Estado Social de
Direito está associada, especialmente, à luta social da classe operária.
Compreende-se o fato, pois o Estado Social – como campo fecundo para a
emergência dos direitos sociais, culturais e econômicos – abriu espaço à
substituição do paradigma de percepção do Homem apenas no plano individual e
80
SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses privados na perspectiva da teoria e da
filosofia constitucional. In: Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstruindo o Princípio
da Supremacia do Interesse Público. Daniel Sarmento (org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.
40.
81
STRECK, Lênio Luiz. A Necessária Constitucionalização do Direito: o óbvio a ser desvelado.In:
Revista Direito Santa Cruz do Sul, nº 9/10, p. 53, jan./dez. 1998.
82
Idem, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 56
83
STRECK, Lenio Luis, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica.p. 56.
84
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Trad.
Carmem C. Varriale et AL. 13 ed., Brasília: Editora UNB, 2007, p. 416.
32
abstrato, passando a considerá-lo também de forma real, vale dizer, a partir das
suas necessidades concretas para uma existência digna, inclusive no âmbito da
coletividade.85
Com a evolução da sociedade e de suas demandas e exigências, as
premissas do Estado Social, dirigidas ao bem-estar coletivo, já não são admitidas
como suficientes para suprir as aspirações da sociedade, agora voltada para a
transformação do status quo.
Nesse contexto sócio-histórico e ideológico, conquista relevo o conceito de
Estado Democrático de Direito, no qual “ao mesmo tempo em que se tem a
permanência em voga da já tradicional questão social, há como que a sua
qualificação pela questão da igualdade.”86
O reconhecimento do Estado Democrático de Direito, em verdade, traz à
tona a necessidade de limitações ao exercício do Poder pelo Estado, cujo
significado, sob a ótica das limitações materiais, identifica-se com o modo de
concretização dos direitos fundamentais. Examinado a partir das limitações formais,
representa o controle dos poderes constituídos, a ser implementado através do
postulado da separação dos poderes.87
No dizer de J.J. Gomes Canotilho,88, a idéia de Estado Democrático de
Direito é “como uma ordem de domínio legitimada pelo povo”. A junção do direito e
do poder dentro do Estado Constitucional importa em exercício do poder, que
pertence ao povo, através de uma ordem estabelecida a partir de parâmetros
democráticos, com destaque para a igualdade. Conforme lição do citado pensador
lusitano89, fazendo referência a E. W. Böckenförde, “o princípio da soberania popular
é, pois, uma das traves mestras do Estado constitucional. O poder político deriva do
“poder dos cidadãos”.
85
LYRA, Bruna. “Os Direitos Metaindividuais Analisados sob a Ótica dos Direitos Fundamentais.”
LEITE, Carlos Henrique Bezerra (coord.). In: Direitos Metaindividuais. São Paulo: LTr, 2005, p. 26.
86
STRECK, Lênio Luiz, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Ibidem, p. 57.
87
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. “Improbidade Legislativa”. In: SAMPAIO, José
Adércio Leite et al. (org.). Improbidade Administrativa: 10 anos da Lei n. 8.429/92. Belo Horizonte: Del
Rey, 2002, p. 416.
88
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed.,Coimbra: Almedina,
2003, p. 98.
89
Ibidem, p. 98.
33
Vê-se, destarte, o Estado Democrático de Direito como aprimoramento do
Welfare State, no qual o centro de gravidade radica na democracia participativa, com
primazia à res publica,90 e observância dos direitos fundamentais.
Nesse sentido, o Estado Democrático de Direito extrapola a abrangência
de concretização dos aspectos materiais para se garantir uma vida digna – sem
descuidar um só minuto do aspecto social – o que requer a efetiva integração do
cidadão na efetividade das conquistas sociais, através de diversos instrumentos
assegurados pelo ordenamento jurídico, inclusive com a possibilidade de controle do
rumo que lhe é dado.
Aliás, cabe o alerta formulado por Paulo Bonavides,91 in verbis:
“não importa a qualificação ou o adjetivo que se lhe acrescente –
Liberal, Democrático ou Social. Se não garantir nem concretizar a
liberdade, se não limitar o poder dos governantes, se não fizer da
moralidade administrativa artigo de fé e fé pública, ou princípio de
governo, se não elevar os direitos fundamentais ao patamar de
conquista inviolável da cidadania, não será Estado de Direito.”
Mais do que qualquer outro modelo, em razão do projeto de participação
do cidadão, a legitimidade do Estado constituído em bases democráticas exige
reconhecimento popular92 dos valores e das aspirações que emanam do povo, real
detentor do poder.
Vê-se, assim, o Estado Democrático de Direito com a missão de
ultrapassar o modelo do Estado Liberal de Direito e, ainda, a formulação do Estado
Social de Direito, “impondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo
utópico de transformação da realidade”.93
90
Não como patrimônio do ente Estatal e sim como patrimônio do povo.
BONAVIDES, Paulo, Ibidem, p. 43.
92
Nesse sentido, CALAZANS, Paulo Murillo. “Participação e Deliberação Democrática: acomodando
diferenças e superando as dificuldades de efetivação dos princípios fundamentais.” In: Perspectivas
Atuais da Filosofia do Direito. MAIA, Antônio Cavalcanti et al. (org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2005, p. 548.
93
STRECK, Lênio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria do Estado. Ibidem,
p.99.
91
34
Percebe-se, portanto, que a introdução do conceito de democracia teve a
finalidade de conferir legitimação ao poder político que agora já se situava dentro de
balizas constitucionais.
Nesse sentido, Rogério Gesta Leal ressalta que o Estado Democrático de
Direito no Brasil reclama a adoção de instrumentos que viabilizem “(...) o surgimento
de uma ordem pública fundada na representação plural dos interesses e na garantia
dos direitos fundamentais”.94 Em abono, Gregório Assagra Almeida95 atribui ênfase a
essa garantia instrumental, ao afirmar que “(...) o direito processual coletivo é
concebido como instrumento de proteção e de efetivação do Estado Democrático de
Direito Brasileiro”. Dentro desse processo coletivo, está a Ação de Improbidade
administrativa, como garantia da defesa da probidade.
´
94
LEAL, Rogério Gesta. Direitos Humanos no Brasil. Desafios à Democracia. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1997, p. 143.
95
ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito Processual Coletivo Brasileiro. Um novo ramo do Direito
Processual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. XXIX.
35
CAPÍTULO 2
O MODELO REPUBLICANO E A PROBIDADE
A empreitada de definir traços teóricos essenciais da República como
forma de governo não constitui, evidentemente, tarefa original96. Nem se pretende,
ao caminhar em terreno consideravelmente explorado por pensadores de escol,
introduzir novas miradas no que concerne aos aspectos teóricos que são essenciais
ao conceito sob exame, ainda que não se tenha como deixar de, mesmo fazendo
referência ao muito do que já foi dito, abordar o assunto para dele extrair
fundamentos relevantes para o presente trabalho.
Destarte, pretende-se recolher, na doutrina e no pensamento que
através dos séculos delinearam o modelo republicano e lhe agregaram os valores
essenciais, os elementos que permitam inferir que a postulação da existência de um
direito fundamental à observância da probidade por parte dos agentes estatais se
coaduna inteiramente com as assim chamadas virtudes republicanas, tidas como
parte integrante do edifício conceitual, usualmente designado como modelo
republicano.
Retomando a questão concernente à busca dos traços fundamentais
da República, segundo Nicola Matteucci, 97 o sentido geral mais persistente ao longo
da história é derivado da dupla conjunção feita por Cícero (103-46 a.c.), orador
romano para quem a República se constrói em torno da articulação conseqüente das
idéias de “utilidade comum” (communis utilitatis) e “consenso do direito” (iuris
consensu).
96
A propósito da busca de elementos essências da República, confira-se, dentre outros que se
lançaram à tarefa: Edwin T Haefele, “What constitutes the American Republic?”, in Stephen L.
Elkin/Karol E. Soltan, A new Constitutionalism”, 1993, p. 207, apud CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito
Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 223.
97
MATTEUCCI, Nicola. Dicionário de Política. Ibidem, p. 1108-1109.
36
A passagem em que Cícero98, após mencionar o perigo de
desagregação advindo da ausência de concórdia entre governantes e governados,
introduz o binômio referido como sustentáculo da República está assim redigida:
“A unidade do povo (...) a do Senado, são coisas possíveis, e sua
ausência acarreta todos os perigos. Pois bem: vemos que a dupla
concórdia não existe, e sabemos que ao restabelecê-la teríamos
mais sabedoria e mais felicidade (...) É pois (...) a República coisa do
povo, considerando tal, não todos os homens de qualquer modo
congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no
conhecimento jurídico e na utilidade comum.”
O “consenso do direito” cumpre, no ideário de Cícero, absorvido e
desenvolvido no âmbito da história das idéias políticas, a função de indicar o papel
do direito para que a res publica não se esboroe pela violência e, sobretudo, pelo
arbítrio, noção retomada em Kant99, ao localizar na constituição (constitutio) a idéia
reguladora da razão prática, necessária para que se estabeleça um estado de
direito, entre uma multiplicidade de homens, em relação recíproca na República.100
Soa de todo pertinente a observação de Nicola Matteucci101 quando
ressalta que, ao construir sua noção de República a partir do consenso e da
utilidade comum, Cícero acabaria por promover uma sensível inovação em relação
ao modo como a questão era tratada pelos gregos.
Assim, se os gregos erigiam seu modelo a partir da contraposição entre
monarquia e república, isto é, a partir da contraposição entre o governo de um
homem só ou de vários, Cícero agrega à concepção romana outra clivagem, mais
coerente com a dicotomia justiça x injustiça, expressa na idéia do iuris consensu.
Tais idéias encontram, na modernidade, a Constituição, definida como
idéia-força de um “consenso de direito”, emanado de uma constituinte livre e
soberana, ungida pela legitimidade, derivada da vontade popular.
98
Extraído do Livro Primeiro, parágrafo XIX a XXV. CICERO, Marco Tulio. Da República. Trad.
Amador Cisneiros. São Paulo: Escala, 2001, p. 29-30
99
KANT, Immanuel. A Metafísica dos costumes. A Doutrina do Direito e a Doutrina da Virtude. Trad.
Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003, p.153-154 (§ 43).
100
LAFER, Celso. “O significado de República”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, n.º 4, v.
2, 1989, p. 214-224.
101
MATTEUCCI, Nicola. República. Dicionário de Política”. Ibidem, p.1108.
37
Por seu turno, o elemento “communis utilitatis”, também mencionado
por Cícero, evoca a “virtude republicana” como fator de coesão e de estabilidade da
res publica, assim entendida como a virtude política e cívica, assentada no
sentimento de respeito às leis e devoção do indivíduo à coletividade, o que, na
sensata advertência de Celso Lafer102, pressupõe um populus frugal e incorruptível.
Este aspecto da “communis utilitatis” de que fala Cícero, entendido
como a virtude cívica e política essencial à estabilidade da República, foi, mais tarde,
revisitado por Montesquieu.
De fato, segundo a aguda observação de Paulo Bonavides103, no
pensamento de Montesquieu a virtude é princípio do qual emana a ordem
republicana, apresentando-se bem explícita como “virtude moral dirigida para o bem
público (...), como sentimento de civismo (...) como sujeição do interesse privado ao
interesse social.”
Evidenciadas as bases teóricas em que se estruturou inicialmente o
modelo republicano, cumpre registrar os caracteres que atualmente individualizam
tal modelo, dando-lhe as feições essenciais.
Ao elencar os fatores que dão densificação à forma republicana de
governo, J. J. Gomes Canotilho104 propõe a conjugação dos seguintes aspectos: a)
dimensão antimonárquica, radical incompatibilidade entre o governo republicano e o
princípio
monárquico,
fundamentado
em
privilégios
hereditários
e
títulos
nobiliárquicos; b) existência de uma estrutura político-organizatória no âmbito da
qual se verifique um arranjo de competências e funções dos órgãos políticos visando
à existência de um sistema de balanceamento de freios e contrapesos; c) existência
de um “catálogo de liberdades”, em que se articulem as liberdades inerentes aos
direitos de participação política e aos direitos de defesa individuais; d) legitimação
do poder político, baseada no povo, auto-determinado e articulado com o “governo
de leis”, o que sobrepuja o “governo dos homens”; e) existência de princípios
ordenadores do acesso às funções públicas, com base em critérios de eletividade,
102
LAFER, CELSO. “O significado de República”. Ibidem, p. 214-224.
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. Ibidem, p. 259.
104
CANOTILHO, J.J. GOMES. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed., Coimbra:
Almedina, 2003, p. 229
103
38
pluralidade e temporariedade, em oposição a critérios, tais como designação,
hierarquia e vitaliciedade, estranhos a este modelo.
Adotando-se abordagem menos analítica, hodiernamente são aceitas
como características essências do modelo republicano a representatividade,
decorrente da eleição, a transitoriedade, ínsita na aceitação de que os mandatos são
exercidos por tempo certo e, a que mais interessa ao presente estudo, a
responsabilidade dos representantes.
As três características acima enunciadas são geralmente evocadas em
contraposição àquelas próprias do regime monárquico, a saber, respectivamente,
hereditariedade, vitaliciedade e irresponsabilidade, distinção esta que se encontra
bastante esmaecida desde que, como rememora Celso Lafer105, as monarquias
européias se constitucionalizaram e se parlamentarizaram.
Portanto, mais do que evocar aquelas três características descritas
linhas acima (representatividade, transitoriedade e responsabilidade) em busca de
uma pura e simples contraposição com características historicamente associadas ao
regime monárquico, o que se pretende aqui é encontrar, na essência daqueles
elementos que estão na origem e constituem o modelo republicano, o cerne do
direito que têm os cidadãos de exigir de seus governantes um atuar probo.
Buscando definição capaz de articular tais elementos, Geraldo
106
Ataliba
, autor de obra de referência nesta seara, propõe a república como o
regime “em que os exercentes de funções políticas (executivas ou legislativas)
representam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com responsabilidade,
eletivamente e mediante mandatos renováveis periodicamente”.
Anote-se que, no que concerne ao aspecto da representatividade, ou
da eletividade, o modelo republicano não se compadece com qualquer título de
legitimação metafísico, de sorte que o acesso aos cargos executivos e legislativos
investidos no poder de tomar as decisões políticas essenciais só se sustenta quando
aquela representação é alcançada de acordo com critérios previamente aceitos,
105
106
LAFER, Celso. “O significado de República”. Ibidem, p.214-224.
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 13.
39
expressando a vontade popular, isto é, quando a investidura dos representantes
reflete a deliberação democrática de cidadãos livres e iguais.
Conforme bem rememora J.J. Gomes Canotilho107, a rejeição de
legitimação metafísica “abrange não apenas as tradicionais justificações de domínio
de caráter dinástico-hereditário (...) ou divino-dinástico, mas também as experiências
modernas de ‘condução dos povos’ assentes na ‘vontade do chefe’ (Führerprinzip)
ou na ‘vontade de deus’ (fundamentalismo)”.
Da mesma forma que a representatividade se mostra estruturada em
bases nas quais o acesso aos cargos e funções públicos pressupõe critérios
previamente definidos e legitimados pela vontade popular, o exercício do poder afeto
a tais cargos também se mostra limitado pela mesma força motriz que, na origem, se
revela legitimadora da investidura.
Por outro ângulo, se é certo que somente a vontade popular legitima o
acesso dos representantes aos cargos e funções públicas, é igualmente admissível
que, por força de insuperável injunção lógica, o exercício do poder inerente a tais
cargos seja inexoravelmente pautado pela idéia de que a República constitui
organização política a serviço daquele mesmo povo, e não dos interesses e
negócios privados dos agentes públicos de um modo geral.
Debruçando-se
sobre
os
108
Portuguesa, J. J. Gomes Canotilho
aspectos
constitutivos
da
República
traz a lume observações que podem
perfeitamente aplicar-se ao ordenamento jurídico pátrio, conforme se depreende do
conteúdo da seguinte passagem:
“A República Portuguesa incorpora aquilo que sempre se considerou
um princípio republicano por excelência: a concepção de função
pública e cargos públicos estritamente vinculados à prossecução dos
interesses públicos (...) e do bem comum (res publica) e radicalmente
diferenciados dos assuntos ou negócios privados dos titulares dos
órgãos, funcionários ou agentes dos poderes públicos (res privata).
Por isso se estabelecem inelegibilidades (...), se consagram
107
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed., Coimbra:
Almedina,2003, p. 224
108
CANOTILHO, J.J. Gomes. Ibidem, p. 224.
40
incompatibilidades (...) e se prescreve a responsabilidade criminal,
civil e disciplinar dos titulares de cargos políticos”.
Não há qualquer elemento que permita questionar a aplicabilidade da
lição acima destacada ao ordenamento jurídico pátrio, no âmbito no qual se
encontram, também em sede constitucional, regras de inelegibilidade (art. 14, § 9º,
CR/88) e de responsabilização do agente público (art. 37, § 4º, CR/88), tal como as
acima evocadas em relação à Constituição Portuguesa, para sustentar a radical
vinculação –alçada pelo ilustre pensador português à condição de “princípio
Republicano por excelência” – dos representantes do povo à defesa e consecução
dos interesses públicos.
Com efeito, na República, os poderes atribuídos aos representantes do
povo estão escorados inteiramente na idéia de função, que atua como vetor
determinante, tanto das origens da investidura, quanto do modo e dos limites como
será exercido o poder, perpassando todas as fases daquilo que poderia ser
denominado como um processo de investidura e exercício do poder, aqui já
assentada a convicção de que o direito à participação política não pode ficar
insulado no puro e simples direito de escolha, sem que a ele se agregue o direito de
fiscalizar e pretender a responsabilização dos comportamentos desviantes.
Considerando-se, portanto, que a República não constitui fim em si
mesmo e que a organização política, nesse modelo, está a serviço do homem, o
acesso e exercício do poder estão condicionados à função de promover a satisfação
do bem comum, de tal maneira que o crivo da legitimação deve estar presente, tanto
no momento da investidura dos agentes públicos (representatividade), quanto no
exercício mesmo do controle da atuação desses agentes (responsabilidade), o que
pressupõe
admitir
que
a
“participação
política”
tida
como
essencial
ao
republicanismo só é verdadeira e completa se admitirmos que, ao “direito de
escolha” dos representantes, esteja associado o não menos relevante direito de
pretender sua responsabilização quando seu comportamento é desviante daquele
vetor inicial e que perpassa todas as fases do processo, a saber, a consecução do
interesse público.
41
Destarte, a representatividade está indissociavelmente conectada à
responsabilidade do governante. O modelo republicano fracassaria por completo se,
a par da investidura dos representantes com base na vontade popular, não
estivessem eles jungidos ao dever (contraposto ao direito dos cidadãos de exigir um
atuar probo) de comportamento compatível com a busca do bem comum e
satisfação dos interesses sociais que, em última análise, constituem, desde Cícero,
um dos pilares em que se assenta esta forma de organização política.
Por isso mesmo, é da essência da República, e constitui fator
indispensável à sua estabilidade, que os governados possam exigir de seus
representantes um atuar probo, consentâneo com as virtudes que inspiram o modelo
em questão.
No governo republicano, o exercício do poder, aqui entendido como
maior grau de discricionariedade para a tomada de decisões, deve ser entendido
como prerrogativa própria do cargo ou função a ser exercida em prol da coletividade,
visto que não se coaduna com o conceito de República a realização de atos visando
ao interesse próprio, ou de alguns poucos escolhidos.
42
PARTE II
A NATUREZA, O CONTEÚDO E O CONCEITO DA PROBIDADE
Apresentadas as balizas do Estado Democrático de Direito – sem a
pretensão de exaurir o tema, evidentemente complexo – é importante assinalar que
todas as atividades dos agentes estatais e governamentais, em suas diferentes
dimensões, devem ser pautadas pelo princípio da probidade.109
A análise do dever de probidade e, a fortiori, do alcance da Lei de
Improbidade Administrativa, demanda reconhecer como consectário da própria
democracia e do modelo republicano110 o fato de que a representatividade popular
esteja atrelada à efetiva possibilidade de responsabilização dos agentes, para quem,
repita-se, a probidade representa imperativo constitucional, indispensável à
concretização do bem da coletividade.
A proposição que se pretende demonstrar, segundo a qual o dever de
probidade por parte dos agentes do Estado constitui direito fundamental encontra
fecundo habitat no Estado Democrático de Direito, razão pela qual se faz mais do
que recomendável o seu exame sob o enfoque do regime democrático, mormente a
democracia representativa.
A esse respeito, não restam dúvidas sobre a ligação umbilical entre a
imperiosa necessidade de observância do dever de probidade na condução dos atos
públicos e a implementação dos direitos sociais – objeto de intensas discussões que
se espraiam para além dos limites do campo do Direito – corolário do princípio da
proteção da dignidade da pessoa humana, em sua expressão coletiva, portanto um
dos fundamentos da construção do Estado Democrático de Direito.
109
Segundo Marcelo Figueiredo, “(...)o Estado é moral somente quando cumpre suas ‘tarefas’ e
objetivos de probidade administrativa e social (...)”. Vide referido autor in: Teoria Geral do Estado. 2
ed, São Paulo: Atlas, 2007, p.159.
110
A forma de governo republicana pressupõe a representatividade popular, a temporariedade dessa
representação e a responsabilidade política do mandatário e dos demais agentes do Estado.
43
CAPÍTULO 3
NATUREZA: A PROBIDADE COMO DIREITO DIFUSO
Nesta parte do estudo, pretende-se buscar fundamentos legais e
doutrinários que auxiliam no enfrentamento da natureza do direito à probidade,
correspondente ao dever de probidade dos agentes públicos e políticos.
A partir da premissa que o atuar dos agentes estatais dirige-se à
promoção do bem comum e de que o Estado Democrático de Direito e o regime
republicano pressupõem participação popular e amplo controle da res publica,
enquadra-se o direito à probidade, titularizado por toda a sociedade, como direito
fundamental difuso.111
Inicialmente, não obstante a crítica no sentido de que as substanciais
pretensões metaindividuais, comuns a toda coletividade, não podem ser qualificadas
como direitos uma vez que não se adaptam ao tradicional conceito de direito
subjetivo,112 e devem, portanto, ser identificadas como interesses, comunga-se do
entendimento esposado por Kazuo Watanabe113 e Elton Venturi,114 para quem a
111
“Art. 81...
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais,
de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de
fato;
112
ALVIM Arruda et al. Código do Consumidor Comentado, 2 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais,
1995, p. 364.
113
“a necessidade de estar o direito subjetivo sempre referido a um titular determinado ou ao menos
determinável, impediu por muito tempo que os ‘interesses’ pertinentes, a um tempo, a toda uma
coletividade e a cada um dos membros dessa mesma coletividade, como, por exemplo, os
‘interesses’ relacionados ao meio ambiente, à saúde, à educação, à qualidade de vida etc., pudessem
ser havidos por juridicamente protegíveis. Era a estreiteza da concepção tradicional do direito
subjetivo, marcada profundamente pelo liberalismo individualista, que obstava a essa tutela jurídica.
Com o tempo, a distinção doutrinária entre ‘interesses simples’ e ‘interesses legítimos’ permitiu um
pequeno avanço, com a outorga de tutela jurídica a estes últimos. Hoje, com a concepção mais larga
do direito subjetivo, abrangente também do que outrora se tinha como mero ‘interesse’ na ótica
individualista então predominante, ampliou-se o espectro de tutela jurídica e jurisdicional.”
WATANABE, Kazuo et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do
Anteprojeto. 8 ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p.800-801.
114
“O legislador, certamente alertado sobre o possível reducionismo que poderia recair sobre a
utilização da expressão “interesses” ao invés de “direitos”, optou por uma solução conciliatória que
acabou prestigiando a ambas, tornando-as equivalentes para fins de tutela jurisdicional.” VENTURI,
44
distinção conceitual entre interesse e direito decorre de uma ótica estritamente
“liberal-individualista”, esclarecendo os autores que os interesses assumem o
mesmo status dos direitos quando recebem do ordenamento jurídico, como se dá no
Brasil, idêntico tratamento jurídico. Portanto, é despicienda qualquer diferenciação.
Aliás, como ressalta Aluísio Gonçalves de Castro Mendes,115 a igualdade
de tratamento conferido pelo legislador afasta eventual tentativa de restrição da
“dimensão de abrangência dos novos institutos.”
O não-enquadramento dos ditos “interesses” transindividuais como
direitos116 coloca em xeque, no atual sistema, a própria “legitimação do sistema
jurídico nacional”.117
Assim, para além da ausência de proveito concreto na distinção entre
interesse e direito, o direito transindividual – e aqui se inclui a observância do dever
de probidade por todo agente estatal, ou simplesmente, o direito à probidade –
passou a ser caracterizado como “direito subjetivo pertencente a todos: todos têm
direito”118; vale dizer, direito subjetivo difuso.
A partir do alargamento da teoria dos direitos do homem, iniciada após o
término da guerra119, deu-se início à teoria dos direitos sociais do homem, marcada
pelo reconhecimento – juntamente com os direitos de liberdades negativas (v.g. de
religião, expressão, imprensa) – dos direitos sociais e políticos.
Elton. Processo Civil Coletivo.A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo:
Malheiros, 2007, p. 47.
115
MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes. Ações Coletivas no direito comparado e nacional.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 201.
116
“... o reconhecimento e a proteção dos direitos subjetivos constituem condição essencial de
legitimidade de todo e qualquer sistema jurídico. O Direito é feito e existe para o homem
individualmente e socialmente considerado; feito não é, nem existe, como um fim em si artificialmente
concebido, que ao ser humano se deve ou possa impor, contrariando-lhe os destinos que de sua
natureza decorrem e Deus lhe deu. Da pessoa singularmente e socialmente considerada se há de
partir para se elaborar a norma e não da norma, erigida como dogma, para se alcançar a pessoa”.
RÀO. Vicente. O Direito e a vida dos direitos. Vol. II, São Paulo: Max Limonad, 1958, p. 95.
117
VENTURI, Elton. Ibidem, p. 49.
118
Eis o pensamento traduzido por Luciana Tessler, ao defender a caracterização do direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado como um direito subjetivo pertencente a todos. Mutatis
mutandi,o direito à probidade pode ser incluído na mesma categoria. TESSLER, Luciane Gonçalves.
Tutelas jurisdicionais do meio ambiente: tutela inibitória, tutela de remoção, tutela de ressarcimento
na forma específica. Coleção: Temas atuais de Processo Civil, vol. 9. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004, p.51-53.
119
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier,
2004, p. 62-63.
45
A teorização dos direitos sociais é decorrente da necessidade de tutela de
interesses “superindividuais”120 que, segundo Mauro Cappelletti,121 resultam do
mesmo fenômeno de massificação, a ser examinado sob as perspectivas econômica
e social.
Em idêntica sintonia, Rodolfo de Camargo Mancuso122 reconhece no
advento da Revolução Industrial e no peso do novo perfil massificador, assumido, à
época, pela sociedade, na qual os valores individuais deixaram de ser a única
referência, as causas provocadoras do surgimento dos interesses difusos.
Tratou-se de conquista relevante, já que a idéia de coletividade começou
a ganhar força e, em conseqüência, constatou-se a existência de diversos interesses
idênticos, pulverizados de forma indeterminada e identificados pelo alto grau de
“atomização”123, sem descurar dos aspectos individuais de cada ser humano.
Cabe reiterar que a relativização da ideologia individualista, própria do
Estado Liberal, com a passagem para o modelo do Welfare state, ou Estado
assistencial, propiciou o reconhecimento, num primeiro momento, dos ditos direitos
120
Expressão usada por José Carlos Barbosa Moreira na obra “A legitimação para a defesa dos
Interesses Difusos no Direito Brasileiro”. In: Revista Forense, Rio de Janeiro: Forense, nº 276, out/dez
1981, p. 1-6.
121
“Do ponto de vista econômico – olhemos a economia da sociedade industrial – tipicamente a
produção é uma produção de massa, não mais uma produção artesanal. Comércio de massa:
consumo, tipicamente, de massa. Vivemos, marcadamente, em uma economia cuja preocupação,
trabalho, comércio, consumo se caracterizam por esse aspecto massivo. A empresa, industrial ou
comercial, e toda e qualquer empresa econômica, é, cada vez mais, vasta, a tal ponto que, hoje, um
típico aspecto de nosso mundo é o das empresas multinacionais. O problema social reflete o mesmo
fenômeno. Intervenção global do Estado na economia, em direção ao Estado de welfare, o Estado
promocional, que impõe, inquire, consulta – intervenções de todo o tipo. Seja o Estado de welfare,
seja o Estado do assim chamado socialismo real. Isso significa que o ato de uma pessoa ou de uma
empresa, de um grupo, envolve efeitos, produz efeitos que atingem uma quantidade enorme de
pessoas e de categorias.” CAPPELLETTI, Mauro. “Tutela dos Interesses Difusos”. Ajuris. Porto
Alegre, Ajuris, nº 33, mar/1985, p. 169-182.
122
“O primeiro passo para a ‘revelação’ desses interesses difusos deu-se com o advento da
Revolução Industrial e a conseqüente constatação de que os valores tradicionais, individualistas, do
século XIX, não sobreviveriam muito tempo, sufocados ao peso de uma sociedade de ‘massa’(...).
Nessa sociedade de ‘massa’, não há lugar para o homem enquanto indivíduo isolado; ele é tragado
pela roda-viva dos grandes grupos de que se compõe a sociedade: não há mais a preocupação com
as situações jurídicas individuais, o respeito ao indivíduo enquanto tal, mas, ao contrario, indivíduos
são agrupados em grandes classes ou categorias, e como tais, normatizados (...). Paralelamente à
Revolução Industrial e à massificação da sociedade, também o sindicalismo contribuiu pra fazer
aflorar essa ‘ordem coletiva’: os conflitos não mais se dão entre empregados e patrão, mas
coletivamente, isto é, integrantes da força-trabalho na categoria ‘X’ versus integrantes da força-capital
na categoria ‘patronal’ correspondente”. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos:
Conceito e Legitimação para agir. 5 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 81-82.
123
CAPPELLETTI, Mauro. “Tutela dos Interesses Difusos”. In: Ajuris, Porto Alegre: Ajuris, nº 33,
mar/1985, p. 169-182.
46
metaindividuais como verdadeiros direitos subjetivos, tornando vigorosa a viabilidade
de sua tutela judicial.
Por oportuno, é pertinente o registro do pensamento de Maria Hilda
Marsiaj Pinto, para quem é de grande valia, em razão da similitude, a aplicação das
noções de direitos absolutos,124 nomeadamente direitos da personalidade e direitos
reais, à compreensão das relações difusas.125 Explica a referida autora, a partir das
lições de Hans Kelsen, que soaria incoerente negar a existência de relações
jurídicas difusas, quando direitos e deveres respectivos são previstos pelo
ordenamento”,126 como se dá no tocante à probidade dos agentes públicos lato
sensu.127
Traz-se, à baila, em complemento, o quadro elaborado por Maria Hilda
Marsiaj Pinto,128 a partir da comparação das relações difusas com as relações
jurídicas adjetivadas de absolutas, in verbis:
“a) no pólo ativo, encontra-se o Estado,129 como personalização dos
interesses da comunidade (interesse primário);
124
“Na noção de direitos absolutos – ao lado dos direitos reais e de personalidade – insere o direito
da comunidade, como se depreende da seguinte passagem: ‘Quando a conduta devida de um
indivíduo se não refere a um outro indivíduo concretamente determinado, mas apenas é prescrita
para ter lugar em face da comunidade enquanto tal, fala-se, por vezes, na verdade, de um direito da
comunidade, especialmente do Estado, a esta conduta do indivíduo obrigado.” PINTO, Maria Hilda
Marsiaj. Ação Civil Pública Fundamentos da Legitimidade Ativa do Ministério Público. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005, p. 37-39.
125
Esta relação jurídica da qual trata a autora não se confunde com o entendimento de que inexiste,
nos direitos difusos, vínculo jurídico direto entre os titulares, entendimento, aliás, por ela expressado.
Ibidem, p. 33. No mesmo sentido, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes esclarece que não há a
presença de relação jurídica entre as pessoas, existindo apenas ligação “por meras circunstâncias de
fato” Vide referido autor in: Ações Coletivas no direito comparado e nacional. Ibidem, p. 210 e 219.
126
PINTO, Maria Hilda Marsiaj. Ação Civil Pública Fundamentos da Legitimidade Ativa do Ministério
Público.Ibidem, p. 39.
127
Segundo Alcides Alberto Munhoz da Cunha, (...)”os co-titulares dos interesses difusos não
possuem vínculos jurídicos formais com a parte contrária (com aquele ou aqueles que estão lesando
ou ameaçando de lesão os interesses que se quer preservar). Vide referido autor, “A Evolução das
Ações Coletivas no Brasil”. In: Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 77, jan/mar
1985, p. 224-235.
128
PINTO, Maria Hilda Marsiaj. Ação Civil Pública Fundamentos da Legitimidade Ativa do Ministério
Público.Ibidem, p. 39.
129
Por certo, o Estado aqui não se confunde com a pessoa jurídica de direito público e sim com a
idéia de povo, como elemento que o integra, participa da sua vontade e do exercício do poder
soberano. Eis a lição de Jorge Miranda: “: “o conceito de povo compreende, na verdade, duas faces
ou dois sentidos: um sentido subjetivo e um sentido objectivo, ou, se quiser, activo e passivo. O povo
vem a ser, simultaneamente, sujeito e objecto do poder, princípio activo e princípio passivo na
47
b) no lado passivo, podemos ter duas situações: (b.1) sujeito passivo
total, englobando todos os membros da sociedade e o próprio Estado
(aqui na condição de agente-administrador/interesse secundário) e
(b.2) sujeito passivo determinado;
c) o dever correspondente ao direito pode ter por conteúdo: (c.1) uma
abstenção de todos (ou obrigação de não-fazer; ex: não poluir os
rios); (c.2) uma obrigação de fazer (ex: obrigação do Estado de
prestar assistência médica à população);
d) tal com nas relações jurídicas absolutas, nas relações jurídicas
difusas que encerram dever negativo geral, a relativização do sujeito
passivo (pessoalização) ocorre no momento do descumprimento (ou
130
ameaça de descumprimento).”
A herança ideológica liberal individualista acarretou resistências, que
constituem obstáculo a avanços mais significativos no reconhecimento dos direitos
difusos, como espécie de direitos fundamentais, de forma a inaugurar nova etapa na
sua evolução.
Não obstante a recalcitrância, a nova ótica já se mostra presente,
inclusive para aqueles que não comungam dessa idéia. Em verdade, os direitos
fundamentais constituem realidade estabelecida e, como tal, merece ser enfrentada.
É exatamente sob a ótica acima que se vislumbra o direito à observância
do princípio da probidade por parte de todos os agentes estatais como verdadeiro
direito fundamental difuso.131
Antes, porém, da análise do enquadramento sugerido, recomendam-se
algumas considerações. No Brasil, mesmo antes da entrada em vigor da Lei da
Ação de Improbidade, a defesa da probidade, como direito difuso, podia ser
manejada pela Ação Popular e ainda com a imputação referente ao crime de
responsabilidade, com as suas particularidades, conforme se descreverá a seguir.
dinâmica estatal”. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense,
2007, p.182.
130
A Ação de Improbidade Administrativa é um dos instrumentos previstos pelo ordenamento jurídico
de proteção do direito difuso à probidade quando se dá o seu descumprimento, individualizando-se o
sujeito passivo da relação difusa.
131
O enquadramento ora anunciado será examinado no item seguinte.
48
Segundo se pode extrair das diversas obras referentes à conceituação
dos direitos transindividuais,132
133
e, in casu, particularmente dos direitos difusos,134
identificam-se três características necessárias ao seu reconhecimento, a saber:135
a) a indeterminação dos titulares do direito. Parece evidente que o direito a uma
administração proba não pertence
“(...) a uma pessoa isolada, nem a um grupo nitidamente delimitado de
pessoas (ao contrário do que se dá em situações clássicas como a do
condomínio ou a da pluralidade de credores numa única obrigação), mas a
uma série indeterminada – e, ao menos para efeitos práticos, de difícil ou
impossível determinação –, cujos membros não se ligam necessariamente
136
por vínculo jurídico definido”;
b) a indivisibilidade do objeto.137 Aqui também é possível perceber-se,
com certa clareza, que a probidade administrativa é um bem indivisível, “(...) no
132
Segundo Hugo Nigro Mazzilli, “Com o fito de melhor identificar a natureza de interesses
transindividuais ou de grupos, devemos, pois, atentar para estas questões: a) o dano provocou lesões
divisíveis, individualmente variáveis e quantificáveis? Se sim, estaremos diante de interesses
individuais homogêneos; b) o grupo lesado é indeterminado e o proveito reparatório, em decorrência
das lesões é indivisível? Se sim, estaremos diante de interesses difusos; c) o proveito pretendido em
decorrência das lesões é indivisível, mas o grupo é determinável, e o que une o grupo é apenas uma
relação jurídica básica comum? Se sim, então estaremos diante de interesses coletivos.” Vide referido
autor in: A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 13 ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 52-53.
133
Segundo José Carlos Barbosa Moreira, deve-se ao direito anglo-saxônico a inspiração para
“(...)adoção, embora com forma peculiar, do tratamento coletivo para pleitos atinentes a interesses
difusos, coletivos propriamente ditos e mesmo individuais, sob determinadas condições e dentro de
certos limites” Vide referido autor in: “O Futuro da Justiça: Alguns Mitos”. In: Temas de Direito
Processual (oitava série). São Paulo: Saraiva, 2004, p. 8.
134
Segundo Aluisio Gonçalves de Castro Mendes há nos direitos difusos indeterminabilidade dos
titulares ou, ao menos, “que seja difícil ou irrazoável” a identificação, além da indivisibilidade do
interesse ou direito. Vide referido autor in: Ações Coletivas no direito comparado e nacional. Ibidem,
p.210 e 219. Para Kazuo Watanabe, os direitos difusos caracterizam-se pela “indeterminação dos
titulares” e pela ausência de “relação jurídica base, no aspecto subjetivo, e pela indivisibilidade do
bem jurídico,” no plano objetivo. Vide referido autor, in: Código Brasileiro de Defesa do Consumidor:
Comentado pelos autores do Anteprojeto.Ibidem p. 801.
135
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa, Ibidem, p. 537.
136
MOREIRA, José Carlos Barbosa. “A legitimação para a defesa dos Interesses Difusos no Direito
Brasileiro”. In: Revista Forense, Rio de Janeiro: Forense, nº 276, out/dez 1981, p. 1-6.
137
“No Brasil, o caráter essencialmente coletivo de uma demanda está relacionado com a
indivisibilidade do objeto, situação esta que, se constatada, implicará no tratamento unitário, ou seja,
não comportando soluções diversas...”. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no
direito comparado e nacional. Ibidem, p. 211.
49
sentido de insuscetível de divisão (mesmo ideal) em ‘quotas’ atribuíveis
individualmente a cada qual dos interessados”138;
c) o espraiamento das lesões. “Os efeitos danosos das lesões ao
interesses difusos apresentam-se amplos e não circunscritos, num fenômeno de
propagação altamente centrífuga”139;
O direito difuso está calcado em dois alicerces: proteção à dignidade da
pessoa humana, coletivamente compreendida e igualdade de oportunidade na
participação da formulação de políticas públicas coletivas do Estado, como forma de
organização social imanente ao Estado Democrático de Direito.
A espécie de direito difuso objeto deste estudo, o direito à probidade, visa
a
tutelar
o
patrimônio
público,
em
consonância
com
os
critérios
supramencionados.140
138
MOREIRA, José Carlos Barbosa, Ibidem. Ainda, segundo o referido autor, “Não se trata de uma
justa posição de litígios menores, que se reúnem para formar um litígio maior. Não. “Ações Coletivas
na Constituição Federal de 1988”. In: Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 61,
Jan/mar, p. 187-200.
139
BASTOS, Celso. “A tutela dos Interesses Difusos no Direito Constitucional Brasileiro”. Revista de
Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 23, jul/set 1981, p. 36-44.
140
Segundo Bruna Lyra, o direito social, “Quando relacionado à sociedade civil refere-se à idéia de
bem comum e proteção da coisa pública LYRA, Bruna. Os Direitos Metaindividuais Analisados sob a
Ótica dos Direitos Fundamentais. LEITE, Carlos Henrique Bezerra (coord.). In: Direitos
Metaindividuais. São Paulo: LTr, 2005, p. 32.
50
CAPÍTULO 4
O PATRIMÔNIO PÚBLICO TUTELADO PELO PRINCÍPIO DA PROBIDADE
Na qualidade de direito difuso141
142
a probidade tem como objeto a tutela
do patrimônio público, compreendido não mais como pertencente exclusivamente às
entidades estatais,143 autárquicas e paraestatais, mas a toda a sociedade.
Caracterizar o direito à probidade como espécie de direito difuso autoriza
a aplicação não apenas da Lei de Improbidade, mas também das normas próprias
da legislação que compõe o “microssistema” destinado à proteção dos direitos
difusos, ainda que subsidiariamente. Neste rol, podem ser incluídas a Ação Civil
Pública, a Ação Popular, o Código do Consumidor e, por óbvio, o Código de
Processo Civil.
Desde logo, espanca-se possível confusão que possa ser feita
equiparando-se os conceitos de patrimônio público e erário.
Em verdade, as
expressões patrimônio público e erário estão vinculadas, no campo jurídico, numa
relação de continente e conteúdo, de tal sorte que a idéia de erário restringe-se ao
aspecto pecuniário do patrimônio público.144
O termo patrimônio público, objeto de preocupação do constituinte
originário, ao dele cuidar em diversas normas, ainda que indiretamente, abarca o
141
Marino Pazzaglini Filho, Marcio Fernando Elias Rosa e Waldo Fazzio Junior sustentam que a
proteção da probidade é um direito difuso, reconhecido pela Constituição de 1988, no artigo 129,
inciso III. PAZZAGLINI FILHO, Marino; ROSA, Marcio Fernando Elias; FAZZIO JUNIOR, Waldo.
Improbidade Administrativa – Aspectos jurídicos da Defesa do Patrimônio público. São Paulo: Atlas,
1998, p. 145. José Antonio Lisboa Neiva enquadra a tutela da probidade como interesse difuso. Vide
referido autor in: Improbidade Administrativa: estudos sobre a demanda na ação de conhecimento e
cautelar. 2 ed., Niterói: Impetus, 2006, p. 30 e 125. No mesmo sentido, Wallace Paiva Martins Junior
afirma que “a proteção jurídica brasileira dos direitos e interesses metaindividuais abrange a tutela da
moralidade e da probidade administrativas.”. Vide referido autor in: Probidade Administrativa. São
Paulo: Saraiva, 2001, p.93.
142
Igualmente, o Superior Tribunal de Justiça, à unanimidade, reconheceu a probidade como direito
difuso, no REsp. nº 510150-MA, Relator Min. LUIZ FUX, julgado em 17/02/2004, DJ 29/03/2004.
Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 10/04/2008.
143
Aqui incluídas as pessoas jurídicas que compõem a Administração Pública indireta.
144
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública Em Defesa do Meio Ambiente, do Patrimônio
Cultural e dos Consumidores - Lei 7.347 e legislação complementar. 7 ed.,São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001, p. 60. Na mesma linha são as palavras de Marino Pazzaglini Filho, Marcio Fernando
Elias Rosa e Waldo Fazzio Junior. Ibidem, p. 67.
51
conjunto de bens145 e direitos146 de valor econômico, artístico, estético, histórico,
turístico, inclusive o componente moral,147 na medida em que este aspecto da
administração pública lato sensu (aqui incluídos todos os órgãos dos Poderes do
Estado)
constitui
valor
da coletividade, destinatária
de
sua existência e
funcionamento.
Insta ainda considerar que as obrigações prestacionais impostas ao
Estado pela Constituição, como direitos sociais assegurados aos indivíduos,148
também devem ser incluídas no conceito de patrimônio público da sociedade.149
Não bastassem as considerações supracitadas, deflui da própria leitura da
Lei 8.429/92 – Lei de Improbidade Administrativa – a conclusão de que o patrimônio
público, objeto da proteção do princípio da probidade, abarca valores imateriais,
concretizados pelos postulados orientadores do atuar dos agentes estatais,
insculpidos no artigo 37, caput, da Carta Magna,150 imanentes ao princípio
republicano e ao Estado Democrático de Direito.
145
Nos termos da definição de Celso Antônio Bandeira de Mello, “Bens públicos são todos os bens
que pertencem às pessoas jurídicas de Direito Público, isto é, União, Estados, Distrito Federal,
Municípios, respectivas autarquias designadas pela base estrutural que possuem), bem como os que,
embora pertencentes a tais pessoas, estejam afetados à prestação de um serviço público”. MELLO,
Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25 ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p.
897.
146
Os direitos correspondem ao acervo que o Poder Público detém sobre créditos, ações, posses,
etc.
147
Neste sentido, merece destaque a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no RE nº
170.768-2-SP, assim ementado: “Ação Popular. Abertura de Conta Corrente em Nome de Particular
para Movimentar Recursos Públicos. Patrimônio Material do Poder Público. Moralidade
Administrativa. Art. 5º, inc. LXXIII, da Constituição Federal. O entendimento sufragado pelo acórdão
recorrido é no sentido de que, para o cabimento da ação popular, basta a ilegalidade do ato
administrativo a invalidar, por contrariar normas específicas que regem a sua prática ou por se
desviar dos princípios que norteiam a Administração Pública, dispensável a demonstração de prejuízo
material aos cofres públicos, não é ofensivo ao inc. LXXIII do art. 5º da Constituição Federal, norma
esta que abarca não só o patrimônio material do Poder Público, como também o patrimônio moral, o
cultural e o histórico (...). Recurso não conhecido” (1ª Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 26/3/1999, DJ
13/8/1999). Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 10/04/2008.
148
Como podem ser vistos no artigo 6º da Constituição de 1988.
149
“Aqui, é ideal relembrar dos contornos do patrimônio mínimo com previsão expressa na
Constituição Federal, consoante seu art. 6º, até porque referido cânone tem por objetivo indicar os
direitos sociais que são obrigatórios ao Estado (liberdade positiva) a favor da pessoa, destacando-se
entre eles o direito sanitário, previdenciário, educacional, cultural e de moradia. (...) Daí que a esse
acervo, tanto pertencente aos órgãos estatais como à coletividade, dá-se o nome de patrimônio
público.” MARTINS, Fernando Rodrigues. Controle do Patrimônio Público. 2 ed., São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007, p. 20.
150
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência e, também, aos seguinte:” BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
52
Tal assertiva encontra esteio na lição de José Carlos Barbosa Moreira151,
ao enunciar o “bom emprego de recursos financeiros de origem pública ou particular”
como espécie de direito difuso. Trata-se, aqui, do reconhecimento do princípio da
eficiência como direito difuso tutelado constitucionalmente, razão pela qual, deve, de
fato e não apenas no plano teórico, ser protegido e controlado.
É exatamente a partir da premissa acima que o artigo 21, inciso I,152 da
Lei de Improbidade Administrativa dispensa a existência de dano para a imposição
das sanções nele previstas, cabendo depreender, por força lógica, que a expressão
patrimônio público foi empregada, embora indevidamente, como sinônimo de erário;
vale dizer, na acepção materialmente pecuniária.153
Por sua vez, a Lei da Ação Popular – Lei 4.717/65 – no artigo 1º, caput,
conceituou patrimônio público como “o conjunto de bens e direitos de valor
econômico, artístico, estético, histórico ou turístico”154.
Além da Ação Popular, a Constituição de 1988, no artigo 129, inciso III155,
conferiu legitimidade ao Ministério Público para instauração de inquérito civil e Ação
In: NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Constituição Federal Comentada e
Legislação Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 212.
151
MOREIRA, José Carlos Barbosa. “A legitimação para a defesa dos Interesses Difusos no Direito
Brasileiro”. In: Revista Forense, Rio de Janeiro: Forense, nº 276, out/dez 1981, p. 1-6.
152
“Art. 21. A aplicação das sanções previstas nesta lei independe: I- da efetiva ocorrência de dano
ao patrimônio público.” BRASIL. Lei 8.429, de 02.06.1992. In: NEGRÃO, Theotonio; Gouvêa, José
Roberto F. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 39 ed., São Paulo: Saraiva,
2007, p. 1613.
153
Juarez de Freitas expressamente reconhece que o princípio da probidade não pressupõe a
ocorrência de dano material, “vendo-o como aquele que veda a violação de qualquer um dos
princípios (...)”. Vide referido autor: “Do Princípio da Probidade Administrativa e de sua Máxima
Efetivação” In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Renovar, nº 204, abr/jun/1996, p. 6584.
154
Merece ainda o registro das elucidativas palavras de José Carlos Barbosa Moreira, ao explicitar o
alcance da Lei da Ação Popular: “Além disso, cuidou a lei – e o ponto assume especial relevo no
presente contexto – de fixar o conceito de patrimônio,com o fito de dilatar a área de atuação do
instrumento processual para fora do restrito círculo das lesões meramente pecuniárias. É talvez essa
peculiaridade que torna a ação popular mais interessante (com as ressalvas que a seu tempo virão)
na perspectiva em que nos situamos aqui, sabido como é que os denominados ‘interesses difusos’
não raro se mostram insuscetíveis de redução a valores monetariamente expressos – característica
com a qual se relaciona de maneira direta a insuficiência, a seu respeito, da ‘tutela ressarcitória’”.
Vide referido autor in: “A Ação Popular do Direito Brasileiro como Instrumento de Tutela Jurisdicional
dos Chamados Interesses Difusos.” In: Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 28,
out/dez/1982, p. 7-19.
155
“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I- (...) III- promover o inquérito civil e a
ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivo;” BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Ibidem, p. 331.
53
Civil Pública, na defesa do patrimônio público e social, reforçando, por
conseqüência, o sistema de proteção judicial do princípio da probidade.156
Sem a preocupação de explicitar o conceito do patrimônio público, objeto
a ser protegido pelo princípio da probidade, a Lei n.º
8.429/92 ampliou
significativamente o campo de incidência de suas normas, com vistas a proteger o
patrimônio público.
Inicialmente, ressalta-se, com amparo em Juarez Freitas, que a Lei de
Improbidade Administrativa deve ser aplicada à entidade cuja criação ou custeio
tenha contado ou conte com valor de origem pública, independentemente do
percentual. Esta é a leitura que se coaduna com os princípios insertos na
Constituição de 1988, mormente com o artigo 70, parágrafo único.157
Neste diapasão, encontram-se sujeitas à referida lei as entidades que
“...recebam subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão
público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja
concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por cento do patrimônio ou
da receita anual...”.158 159
Assim, ainda que limitado o alcance do ressarcimento “à repercussão do
ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos”, constata-se a possibilidade,
inclusive, de responsabilização dos dirigentes de tais entidades de direito privado.160
156
Extrai-se da estruturação da norma em comento a corroboração de que o patrimônio público e
social é um dos direitos difusos, expressamente elencado juntamente com o Meio Ambiente, sem
prejuízo de outros, a ser tutelado pelo Ministério Público.
157
“Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade,
guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda
ou que em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.” In: NERY JUNIOR, Nelson;
ANDRADE NERY, Rosa Maria. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 257.
158
Vide parágrafo único do artigo 1º, da Lei 8.429/92. BRASIL. Lei 8.429, de 02.06.1992. In: NERY
JUNIOR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Constituição Federal Comentada e Legislação
Constitucional. Ibidem, p. 758.
159
Podem ser citados como exemplos, os serviços sociais autônomos (SENAI, SENAC, SESI,
SESC.); organizações sociais sem fins lucrativos, nas atividades estabelecidas na Lei 9.537/98;
organizações da sociedade civil de interesse público – OSCIP, sem fim lucrativo, na forma dos
requisitos impostos pela Lei 9.790/99.
160
Nessa medida, este dispositivo da Lei de Improbidade representa uma mudança de paradigma no
tocante à própria regra do Direito civil que assegura a separação do patrimônio dos bens
54
Não se trata de mera ação visando ao ressarcimento dos valores
recebidos do Poder Público, ou da cobrança da importância não despendida em
decorrência dos benefícios concedidos, pois, na verdade, a legislação inclui no
espectro do conceito de patrimônio público a conduta da entidade que, desviando-se
da probidade, deixa de zelar pelo interesse público, identificado como o bem comum
desta coletividade, única razão para a cooperação estatal.161
Desta forma, impõe a legislação, uma vez comprovado o ato de
improbidade, a aplicação das sanções162 para os integrantes da entidade que a ele
deram causa, ou, de alguma forma, concorreram para a sua ocorrência.163
pertencentes aos sujeitos que integram a pessoa jurídica, ainda que sujeita à desconsideração da
personalidade (prevista no artigo 28 da Lei 8.078, de 11.09.1990) para fim de reparação, aplicada
como exceção.
161
Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu cabível a aplicação das sanções da Lei
de Improbidade Administrativa e, portanto, não somente eventual ressarcimento, em face de
administradores de hospital privado conveniado ao Sistema Único de Saúde: “ADMINISTRATIVO. LEI
DE IMPROBIDADE. CONCEITO E ABRANGÊNCIA DA EXPRESSÃO ‘AGENTES PÚBLICOS’.
HOSPITAL PARTICULAR CONVENIADO AO SUS (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE). FUNÇÃO
DELEGADA. 1. São sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa, não só os servidores
públicos, mas todos aqueles que estejam abrangidos no conceito de agente público, insculpido no art.
2º, da Lei nº 8.429/92: ‘ a Lei Federal n. 8429/92 dedicou científica atenção na atribuição da sujeição
do dever de probidade administrativa ao agente público, que se reflete internamente na relação
estabelecida entre ele e a Administração Pública, superando a noção de servidor público, com uma
visão mais dilatada do que o conceito do funcionário público contido no Código Penal (art. 327)’. 2.
Hospitais e médicos conveniados ao SUS que além de exercerem função pública delegada,
administram verba pública, são sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa. (...). REsp nº
416.329-RS. Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 13/08/2002, DJ 23/09/2002. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 10/04/2008.
162
A incidência das sanções deve levar em consideração o parágrafo único do artigo 12 da Lei de
Improbidade Administrativa, segundo o qual “na fixação das penas previstas nesta lei o juiz levará em
conta a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente.” Vale
dizer, nos termos do princípio da proporcionalidade o Julgador deve verificar as penas que se
mostram necessárias à hipótese concreta, não se impondo a aplicação integral das sanções, como se
demonstrará mais adiante.
163
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. COMPROVAÇÃO DO USO DA
VERBA PÚBLICA. SANÇÃO CIVIL. JUROS. A Lei 8.429/92 trata de disciplinar os atos que importam
em improbidade administrativa e prevê as sanções que não sujeitam somente os agentes públicos,
mas também aqueles que não o sendo, sejam responsáveis por tais atos quando praticados contra o
patrimônio de entidade que receba subvenção ou qualquer benefício do Poder Público (artigo 1º,
parágrafo único). A par do ressarcimento integral do dano, medida de cunho punitivo, a proibição de
contratar com a administração pública ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios se
impõe a todo e qualquer comportamento ímprobo. Emerge como conseqüência lógica da improbidade
e impede, ao menos temporariamente, que o agente, com igual conduta, volte a impor prejuízo ao
erário. É sanção, certamente, mas com nítida finalidade profilática. Bem dosada, não afronta o
princípio da proporcionalidade.Os juros moratórios fluem a contar do evento (art. 962, do Código Civil
e Súmula 54, do STJ) Apelo provido. APELAÇÃO CÍVEL Nº 70002021491, VIGÉSIMA PRIMEIRA
CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS. Relator Des. GENARO JOSÉ BARONI BORGES,
julgado em 05/09/2001. Disponível em: < http://www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 15/05/2008.
55
Estabelecidas as assertivas esposadas, para compreensão do alcance do
conceito de patrimônio público, subscreve-se a precisa lição de Fernando Rodrigues
Martins164 transcrita in verbis:
“De considerar, ainda, a idéia de que o patrimônio público não pode
ser compreendido apenas do ponto de vista material, econômico ou
palpável. O patrimônio público espelha todo o tipo de situação em
que a Administração Pública estiver envolvida, desde a mais módica
prestação de serviço típica até os bens que fazem parte de seu
acervo dominial. Com efeito, e como veremos adiante, a própria moral
da Administração Pública constitui patrimônio a ser resguardado por
todos os membros da sociedade, sob pena da completa submissão
dos valores rígidos de honestidade e probidade às práticas vezeiras
de corrupção, enriquecimento ilícito, concussão e prevaricação. Tudo
isso a gerar desconfiança dos administrados em face dos
administradores e, se não, o pior – difundir a ilicitude como meio
usual na multifárias relações entre os particulares, já que o mau
exemplo
dos
administradores
autorizaria,
em
tese,
o
desmantelamento dos critérios de lisura”
Sem prejuízo, a fixação do alcance do conceito de patrimônio público no
contexto do Estado Democrático de Direito não é o bastante para que se
compreenda o direito à probidade, princípio reitor das atividades estatais,
correspondente ao dever de observância por parte dos agentes públicos e privados.
Em decorrência da margem de abstração trazida pelos princípios e, como tal, a
probidade, há que se examinar as balizas necessárias à sua delimitação.
A
demonstração dos contornos do princípio da probidade é de fundamental
importância para orientar não só os aplicadores do direito, mas igualmente o
legislador infraconstitucional, de forma a impedir a elaboração de regras que colidam
com o conteúdo constitucionalmente assegurado.
164
MARTINS, Fernando Rodrigues, Controle do Patrimônio Público. Ibidem, p. 22.
56
CAPÍTULO 5
A PROBIDADE: CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Já se impõe, agora, o enfrentamento dos exatos contornos do conteúdo
do princípio165 da probidade, conquanto se tenha ciência da inexistência de
consenso no plano doutrinário.
Desde logo, insta consignar, independentemente do alcance que se
possa a ele emprestar, o reconhecimento de sua força vinculante,166 como dever de
todos os agentes estatais.
Os princípios constitucionais são normas implícitas ou explicitamente
insertas na Constituição que expressam valores da coletividade e, com isso, tal
como um leme, dão a direção aos atos produzidos pelos poderes integrantes do
Estado, concedendo ao ordenamento jurídico o caráter sistêmico, como ressalta
Cármen Lúcia Antunes Rocha.167
Consignado em diversos dispositivos da Constituição de 1988168, é
inegável o caráter normativo-imperativo do princípio da probidade169. Nesse passo,
165
A ser entendido como uma das formas de manifestação da norma, que se subdivide em “normasprincípios e em normas-regras”, no dizer de Jorge Miranda. Vide referido autor, in: Manual de Direito
Constitucional. 6. ed., Tomo II, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 263.
166
Nas palavras de Marino Pazzaglini Filho, “Os princípios constitucionais, normas jurídicas
hegemônicas em relação às demais regras do ordenamento normativo, de eficácia imediata e plena,
são imperativos, vinculantes e coercitivos para a Administração Pública e a Coletividade. Os
princípios constitucionais que podem ser expressos ou implícitos, são multifuncionais: (a) constituem
o fundamento do regramento jurídico (normogenética);(b) permitem a compreensão global e unitária
do texto constitucional, bem como a harmonia na aplicação do Direito (função sistêmica); (c) orientam
a elaboração legislativa e a aplicação das normas jurídicas (força orientadora); (d) vinculam o
significado e o conteúdo das normas jurídicas (força vinculante); (e) esclarecem o sentido, a
dimensão e o conteúdo das normas jurídicas (função interpretativa); (f) suplementam a aplicação do
Direito a situações fáticas ainda não particularmente regulamentadas (função supletiva).” Vide
referido autor in: Princípios Constitucionais Reguladores da Administração Pública. 2 ed., São Paulo:
Atlas, 2003, p.54
167
“A ordem constitucional forma-se, informa-se e conforma-se pelos princípios adotados. São eles
que a mantêm em sua dimensão sistêmica, dando-lhe fecundidade e permitindo a sua atualização
permanente. É na recriação de seu texto que se permite à Constituição renascer, adequando-se ao
sentido do Justo que o povo acolhe em cada momento histórico, legitimando-se pelo movimento
incessante, mas sem conduzir à perda da natureza harmoniosa que preside o sistema e que fica
assegurada pela integratividade que a observância dos princípios possibilita.” ROCHA, Cármen Lúcia
Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p.23.
168
Como será demonstrado no item referente à origem e evolução do princípio da probidade.
57
a atuação do Estado, dirigida à promoção do bem comum, materializa-se através de
condutas humanas sujeitas a vicissitudes que demandam, em nome da própria
coletividade, efetiva fiscalização, a ser concretizada através de mecanismos seguros
que delimitem o campo do “dever ser” dos atos estatais.
Nessa ótica, verifica-se significativo avanço da Constituição de 1988 ao
elevar à categoria máxima do ordenamento jurídico princípios que conduzem à
concreção da finalidade do Estado, já tantas vezes aqui reproduzida, de forma a
exigir que o ato esteja em sintonia com os valores que consubstanciam o modelo de
Estado adotado pelo Poder Constituinte originário.
A partir da constitucionalização dos princípios - orientadores da atuação
de todos os agentes estatais –, o princípio da legalidade, outrora visto como cânone,
cede espaço para o princípio da juridicidade170, segundo o qual as condutas dos
poderes do estado não se limitam à adequação às regras, devendo obediência aos
princípios e regras, subsumidos no conceito de Direito.
O princípio da juridicidade importa conformação dos atos sob a ótica
positiva e negativa, o que equivale a dizer que os agentes públicos e políticos não
podem contrariar os valores constantes dos princípios e as determinações impostas
pelas regras, como também não podem omitir-se no cumprimento das imposições
igualmente extraídas dos referidos princípios e regras171. Trata-se da incorporação
da legitimidade e da licitude ao restrito conceito de legalidade.172
Com isso, os atos estatais não mais se restringem à legalidade, como
ocorria no Estado Liberal, eis que a superação deste modelo, inicialmente pelo
Estado social e, em seguida, pelo Estado Democrático de Direito, inclui outros
169
Paulo Bonavides não vislumbra distinção entre princípios e normas. Estas compreendem as regras
e os princípios, igualmente dotados de normatividade. Bonavides, Paulo. Curso de Direito
Constitucional. 19 ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 271.
170
Expressão que, segundo Emerson Garcia, foi cunhada por Merkl, para quem o referido princípio
abrange todo os atos normativos do ordenamento jurídico, restringindo-se o princípio da legalidade à
lei em sentido estrito. Vide referido autor in: Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 47.
171
Eis a lição de Germana de Oliveira Moraes: “a noção de legalidade reduz-se ao seu sentido estrito
de conformidade dos atos com as leis, ou seja, com as regras – normas em sentido estrito. A noção
de juridicidade, além de abranger a conformidade dos atos com as regras jurídicas, exige que sua
produção (a desses atos) observe – não contrarie – os princípios gerais de Direito previstos explicita
ou implicitamente na Constituição” Vide referida autora in: Controle Jurisdicional da Administração
Pública. São Paulo: Dialética, 2004, p. 30.
172
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 3 ed., Rio de Janeiro:
Renovar, 2007, p. 50.
58
valores constantes da Lei Maior, como os que estão inseridos no já mencionado
artigo 37, caput, impostos como norteadores das condutas públicas.
Calcados “num sistema de valores para onde convergem, numa síntese
axiológica superior, os princípios capitulados no art. 37 da Carta Magna, relativos à
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência no desempenho da
Pública Administração”,173 conferem densidade ao princípio da probidade, pela
necessidade de sua observância simultânea, além de outros insertos, ainda que
implicitamente, no ordenamento jurídico, na condição de regentes da atividade
estatal.
O legislador constituinte de 1988 optou por nomear, de forma cristalina, os
principais postulados que devem ser observados pelos agentes públicos e políticos,
integrantes de todos os poderes da União, do Estado e do Município, através do já
referido artigo 37, caput.
Em decorrência da condição de imperativos dirigidos a todos os agentes
estatais, o descumprimento dos princípios e regras a eles dirigidos configura, ao
menos em tese, violação ao dever de probidade. Descurar-se de alguns dos
postulados enumerados na referida norma é, em verdade, desatender ao fim único
do Estado, qual seja, a promoção do bem da coletividade.
Adotando-se o raciocínio exposto por Emerson Garcia,174 conquanto a
legislação não estabeleça hierarquia entre os princípios insertos no artigo 37, caput,
da Constituição Federal, vislumbra-se nos princípios da legalidade e da moralidade
os principais pilares à sustentação da probidade administrativa, assumindo os
demais, em decorrência da especificidade, atuação complementar.
Rogério José Bento Soares Nascimento175, em artigo publicado acerca da
improbidade legislativa, conceituou probidade como gênero do qual a moralidade e a
eficiência são partes integrantes.
173
Palavras de Paulo Bonavides apostas no prefácio da obra Controle Jurisdicional da Administração
Pública. 2 ed., São Paulo: Dialética, 2004, de Germana de Oliveira Moraes.
174
GARCIA, Emerson. ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 49.
175
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. “Improbidade Legislativa”. In: SAMPAIO, José
Adércio Leite et al. (org.). Improbidade Administrativa: 10 anos da Lei n. 8.429/92. Belo Horizonte: Del
Rey, 2002, p. 420. .
59
Abraçando lógica distinta, Diogo de Figueiredo Moreira Neto,176
compreende a improbidade como espécie de imoralidade administrativa qualificada.
Com esse enfoque, a probidade estaria contida no conceito de moralidade
administrativa, já que, conforme palavras do doutrinador mencionado, improbidade
administrativa é “(...) uma imoralidade que se caracteriza pela existência de dano ao
erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a terceiro a quem pretendeu
favorecer.”177
A despeito dos argumentos do autor acima, a própria Lei de Improbidade
Administrativa, em seu artigo 21, inciso I, já citado anteriormente, estabelece que a
aplicação das sanções independe da efetiva ocorrência de dano. Aliás, o conceito
legal de improbidade sequer está vinculado à idéia de dano, conforme se vê nos
artigos 9º e 11 da Lei de Improbidade.178
Não bastasse a clareza da regra, a inclusão dos princípios reitores da
atuação dos poderes do Estado, dentre os quais a moralidade, no caput do artigo
37, da Constituição Federal de 1988, cuja inobservância configura ato de
improbidade administrativa, previsto no § 4º do mesmo artigo, somado à explicitação
do artigo 11 deste estatuto legal, para quem a simples inobservância dos princípios
caracteriza ato de improbidade, reforça o entendimento de que a probidade abarca
os demais princípios norteadores da atuação do Estado.
Eis o caminho que se adota para descerrar o conteúdo da improbidade: a
probidade é o gênero na qual estão contidos os demais princípios, especialmente
aqueles pontificados no artigo 37, caput, da Lei Maior que, analisados em conjunto,
176
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. Ibidem, p. 95. No
mesmo sentido, Marcelo Figueiredo compreende a probidade como espécie do gênero moralidade
administrativa, enunciando que “a probidade é, portanto, corolário do princípio da moralidade
administrativa. FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade Administrativa. Comentários à Lei 8.429/92 e
Legislação Complementar. 5 ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 41-42.
177
Nesse diapasão, Juarez Freitas registra que “a violação do princípio da moralidade pode e deve
ser considerada, em si mesma, apta para caracterizar a ofensa ao subprincípio da probidade
administrativa (...). Vide referido autor in: “Do Princípio da Probidade Administrativa e de sua Máxima
Efetivação”. Ibidem. Igualmente, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp. nº 510150-MA, já
anteriormente citado, conceituou a probidade administrativa como consectário da moralidade
administrativa.
178
“Art. 9º. Constitui ato de improbidade administrativa importando em enriquecimento ilícito auferir
qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função,
emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1º desta lei (...)”; “Art. 11. constitui ato de
improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública, qualquer ação
ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às
instituições (...).
60
corporificam o princípio da juridicidade, anteriormente anunciado.179 Posta a
questão, é recomendável, a fortiori, a compreensão dos ditos princípios insertos na
norma acima apontada.
Inicia-se com o princípio da legalidade, reconhecendo-o como um dos
pilares do Estado Democrático de Direito que, no entanto, como já anunciado, a ele
não se restringe.
Com o intuito de refrear os excessos do poder do soberano, que atuava
em prejuízo dos integrantes da sociedade, instituíram-se algumas regras,
verdadeiros marcos na história do princípio da legalidade, a saber: Magna Carta
Inglesa (1215), Petition of Rights 1628), Habeas Corpus Act (1679), Bill of Rights
(1689) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).180
Ditos diplomas elevaram o princípio da legalidade à categoria de
postulado de garantia dos direitos fundamentais do homem, resguardando-os das
arbitrariedades. Inicialmente, o princípio da legalidade era visto como instrumento
de proteção voltado tão-somente para o plano individual.
Coube à Constituição Francesa de 1791 assegurar, formalmente, o
princípio da legalidade ao dispor, em seu artigo 3º que “não há na França autoridade
superior à da Lei.” Com a modernidade, inaugurou-se, destarte, o movimento de
179
Não obstante a premissa fixada, não se pode deixar de registrar que, segundo José Antonio
Lisbôa Neiva, a norma constante do artigo 2º, inciso IV, da Lei 9.784, de 29/02/1999, autorizaria
concluir que a probidade é “elemento integrativo da conceituação de moralidade administrativa.” Vide
referido autor in: Improbidade Administrativa. estudo sobre a demanda na ação de conhecimento e
cautelar. Ibidem, p.9. Celso Antônio Bandeira de Mello, por seu turno, apresenta o conteúdo do
referido inciso como um princípio que merece realce ao lado dos demais apostos no caput do artigo.
Vide referido autor in: Curso de Direito Administrativo. Ibidem, p. 505. Eis o citado artigo: “Art. 2o A
Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação,
razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica,
interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados,
entre outros, os critérios de: I - atuação conforme a lei e o Direito; II - atendimento a fins de interesse
geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei; III objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou
autoridades; IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé (...);” BRASIL. Lei
9.784, de 29.02.99. In: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo
Civil e Comentado e Legislação Extravagante. 7 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 1410.
Não comungamos do entendimento esposado pelo referido autor, na medida em que a inserção da
probidade como critério constante do parágrafo único não indica ser ela elemento integrativo da
moralidade, quando há, no caput, outros princípios listados ao lado deste último. A ser adotada a
conclusão do citado autor, poderia ser afirmado que a probidade é também elemento integrativo da
eficiência ou dos demais princípios.
180
Posteriormente incorporadas à Constituição Francesa de 1791. DALLARI, Dalmo de Abreu.
Elementos de Teoria Geral do Estado. Ibidem, p. 210.
61
afirmação do princípio da legalidade, diretamente ligado à origem e evolução do
Estado de Direito e, como ressaltado, um dos pilares da Modernidade (governo
exercido através de regras pré-estabelecidas).
O princípio da legalidade constitui, sob a ótica do exercício do poder,
segundo Norberto Bobbio, o governo “mediante leis”, identificado através das
características de generalidade e abstração.181
Antonio Manuel de Pena Freire182, apoiado em Zagrebelsky, afirma que a
generalidade reduz o perigo de expressão injusta do Direito, já que não visa ao
benefício ou discriminação de determinado grupo, atendo-se ao corolário do
princípio da igualdade.
Entretanto, a igualdade deve ser considerada em sua
vertente material, eis que no Estado de Direito (aqui incluída a noção de Estado
Democrático de Direito) a vinculação à igualdade não veda os tratamentos
diferenciados, os quais podem ser necessários, em determinadas situações. Na
verdade, proíbem-se arbitrariedades ou qualquer tipo de discriminação, em respeito
a fundamentos constitucionais.
A abstração, por sua vez, tem como finalidade afastar a regulamentação
de encomenda; ou seja, procura beneficiar situações concretas e específicas. Tratase da generalidade no tempo, pois destinada a valer indefinidamente, conforme
esclarece Antonio Manuel de Pena Freire,183 mais uma vez com respaldo em
Zagrebelsky.
Aos requisitos da abstração e da generalidade há ainda que se acrescer a
legitimidade, consistente na derivação da vontade geral, que reclama o cumprimento
finalístico, consubstanciado pela promoção do bem comum.
A legitimidade
pressupõe o reconhecimento e respeito a valores e aspirações da coletividade, não
se admitindo manifestação arbitrária do legislador.184 Com isso, afasta-se a
181
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 10 ed., Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo:
Paz e Terra, p. 170.
182
FREIRE, Antonio Manuel Pena. La Garantia en el Estado Constitucional de derecho. Madrid:
Editorial Trotta. 1997, p. 49.
183
Ibidem, p.49.
184
Acertadas são as palavras de Juarez Freitas ao estabelecer que a legitimidade “(conformação com
a tábua axiológica da Constituição) pressupõe a observância dos limites finalísticos estatuídos pelo
vinculante novo papel do Estado, em termos de respeito ao direito fundamental à boa administração”.
Vide referido autor in: Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração
62
possibilidade de respaldar o estado autoritário no âmbito do Estado de Direito,
conquanto seja ele exercido a partir de leis gerais e abstratas.185
Embora no que concerne à tipificação dos atos de improbidade
decorrentes da violação do princípio da legalidade predomine a interpretação
restritiva,186 o agente estatal somente pode agir em conformidade187 com a norma
jurídica, enquanto emanação da vontade popular; em outros termos, secundum
legem.188 Note-se, pois, que o respaldo ao ato estatal não se limita à inexistência de
vedação legal, havendo necessidade de autorização/imposição conferida por norma
jurídica válida, à qual o agente está adstrito,189 devendo atuar em busca do interesse
coletivo.190 Diferentemente, como ressaltou Hans Kelsen,191 em se tratando de
conduta do particular, seu atuar não está adstrito à prévia autorização legal,
limitando-se tão-somente à inexistência de proibição no ordenamento.
Pública. São Paulo: Malheiros, 2007, p.18. Impõe-se registrar que o conceito de boa administração
será analisado junto com o princípio da eficiência.
185
FREIRE, Antonio Manuel Pena. La Garantia en el Estado Constitucional de derecho. Ibidem, p. 50.
186
Emerson Garcia sustenta que o princípio da legalidade “não deve ser estendido a ponto de
alcançar todo e qualquer ato que imponha determinado comportamento ao Poder Público, abarcando
apenas a lei em sentido material, vale dizer, produto do órgão a quem a Carta Magna conferiu a
elaboração normativa mediante requisitos específicos. Com isso, a mera violação a um regulamento
(bem entendido, ato produzido no exercício do poder regulamentar conferido, por exemplo, ao Chefe
da Administração Pública) não tem o condão, por si só, de se subsumir a um ato de improbidade.
GARCIA, Emerson. ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 61.
187
A conformidade pressupõe ato legislativo que disponha acerca do atuar do agente estatal,
ressalvadas as hipóteses por ela previamente indicadas.
188
PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada Aspectos
Constitucionais, Administrativos e de Responsabilidade Fiscal Legislação e Jurisprudência
Atualizadas. 3 ed., São Paulo: Atlas, 2007, p.30.
189
Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “O agente público está adstrito ao
princípio da legalidade, não podendo dele se afastar por razões de conveniência subjetiva da
administração”. AGRMC nº 4193-SP. Relator, Min. LAURITA VAZ, julgado em 23/10/2001, DJ
04/02/2002. Disponível em: <http;/www.stj.gov.br>. Acesso em 10/04/2008.
190
Neste aspecto, como ressaltado, por Hans Kelsen, a conduta do agente estatal distingue-se da
conduta do cidadão, cujo atuar não está adstrito à prévia autorização legal, limitando-se tão-somente
à inexistência de proibição no ordenamento. Vide referido autor in: Teoria Geral do Direito e do
Estado. Trad. Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.376.
191
De acordo com Hans Kelsen, “um indivíduo atua como órgão do Estado apenas na medida em que
atua baseado na autorização conferida por alguma norma válida. Esta é a diferença entre o indivíduo
e o Estado como pessoas atuantes, ou seja, entre o indivíduo que não atua como órgão do Estado e
o indivíduo que atua como órgão do Estado. Um indivíduo que não funciona como órgão do Estado
tem permissão para fazer qualquer coisa que a ordem jurídica não o tenha proibido de fazer, ao
passo que o Estado, isto é, um indivíduo que funciona como órgão do Estado, só pode fazer o que a
ordem jurídica o autoriza a fazer. É, portanto, supérfluo, do ponto de vista da técnica jurídica, proibir
alguma coisa a um órgão do Estado. Basta não autorizá-lo. Se um indivíduo atua sem autorização da
ordem jurídica, ele não mais o faz na condição de órgão do Estado.” Ibidem, p.376.
63
Expressamente previsto no artigo 37, caput, da Carta de 1988, o princípio
da legalidade impõe-se a todos os poderes do Estado em dupla vertente: faz-se
necessária a antecedência legal e a conformidade formal e material.192
O princípio da legalidade deve ainda ser compreendido como comando de
ação, quando se trata de deveres do Estado, principalmente no campo dos direitos
fundamentais sociais. Decorre daí que a omissão do agente, quando submetido à
imposição legal de um atuar positivo, pode configurar, em tese, ato de improbidade
administrativa.
Trata-se de descumprimento do dever da boa administração,
conforme se discutirá em momento posterior.
Não se pode olvidar, como exposto, que os atos estatais lato sensu (lei,
atos administrativos e decisões judiciais) estão submetidos aos limites fixados pela
Constituição, cabendo-lhes a obediência aos princípios materiais dela decorrentes.
O Estado não é somente de Direito, mas, principalmente, um Estado Constitucional.
Em verdade, todo o ordenamento jurídico deve encontrar na Constituição o seu
fundamento de validade.
Passa-se, agora, ao exame do postulado da moralidade administrativa, a
ser compreendido como elemento específico, situado no amplo conceito de ética,
cuja concreção, no âmbito do Direito, é traduzida pelo princípio da juridicidade.
Historicamente, a moral representou um dos desafios do Direito,
principalmente no tocante à análise da relação entre os mesmos. Segundo Kant,193
as regras morais – “doutrina das virtudes” – destinavam-se a regular o âmbito interno
das ações humanas, enquanto ao Direito cabia à regulamentação das relações
sociais.
Estreitando o caminho para o Direito, encontra-se na teoria do Abuso do
Direito, segundo a concepção de Georges Ripert194, nítida regra moral encapada
com a proteção jurídica que lhe confere o poder de coerção.195 No mesmo passo,
192
GARCIA, Emerson; ALVES Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 63.
KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. A Doutrina do Direito e a Doutrina da Virtude. Trad.
Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003, passim.
194
RIPERT, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis. Trad. Osório de Oliveira, Campinas:
Bookseller, 2000, passim.
195
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao parafrasear o referido autor, esclarece que “(...)não há
desvão teórico do direito em que não penetre a luz da moral, pois não há como separá-los
193
64
merecem relevo os princípios de vedação do enriquecimento sem causa, a teoria da
boa-fé e outros impregnados de carga axiológica própria do campo da moral.
Acerca do mesmo tema, Antonio José Brandão196 registra que a teoria do
Abuso do Direito repercutiu no campo do Direito Administrativo, dando origem à
figura do desvio de poder.
Posteriormente, ainda segundo o autor supracitado,197 coube a Maurice
Hauriou a sistematização do conceito de moralidade administrativa, a partir dos
estudos das decisões proferidas pelo Conselho de Estado da França,198 através dos
quais foi possível enfrentar, não só a legalidade formal do ato administrativo, mas,
também o exame da finalidade.199
A partir da análise do conceito de desvio de poder, Maurice Hauriou200
reconheceu a possibilidade de exame da finalidade do ato para além da legalidade
estrita, defendendo, com isso, o exame dos atos que devem observar os parâmetros
da boa administração, ou seja, da moralidade administrativa:
“O desvio de poder – é o caso de um agente da Administração que,
levando a cabo um ato de sua competência e seguindo as formas
prescritas, usa seus poder com um fim e com motivos outros diversos
daqueles em vista dos quais este poder lhe foi atribuído, isto é, por
motivos que não são aqueles da boa administração, que são
absolutamente”. Em seguida, aponta como origem da teoria do desvio do poder, ou seja, a aplicação
do abuso do direito no campo público, o aresto proferido no caso Lesbats, prolatado em 25/02/1964.
Mutações do Direito Administrativo. Ibidem, p. 55.
196
BRANDÃO, Antônio José. “Moralidade Administrativa”. In: Revista de Direito Administrativo. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, nº25, jul/set 1951, p. 454-467.
197
Ibidem, p.456..
198
Cabe aqui trazer o registro referente ao período em questão, formulado por Tomás-Ramón
Fernández, ao prefaciar a obra de Antônio Manuel Penã Freire, produto de sua tese de
doutoramento: “Los iuspublicistas franceses de La III República que vivieron a caballo entre los dos
siglos (Hauriou, Duguit, H. Berthélemy, Jeze, Bonnard, J. Barthélemy, Esmein, Michoud, etc. )
supieron comprender esto muy bien y, puesto que no podían combatir directamente la eventual
arbitrariedad del legislador “soberano”, se esforzaron em construir em el nível inferior a la ley uma
tupida red capaz de filtrar esa arbitrariedade em el momento de la aplicación del texto legal y de
asegurar, em último término, la responsabilidad patrimonial de la Administraión por los daños
singulares a los que dicha aplicación pudiera dar lugar, proporcionando así a los ciudadanos, de
consuno com el Conseil d’Etat, las únicas garantías efectivas de sus derechos frente a La accíon del
poder de las que éstos han podido disponer hasta fechas bien recientes.”. FREIRE, Antonio Manuel
Peña. La Garantia em el Estado Constitucional de Derecho” Ibidem, p. 15.
199
Ao traduzir passagem de Maurice Hauriou, escreve Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “um
controle dos atos que seja exercido em nome da moral pública, mais do que em nome do direito, e
que por conseqüência, vá mais longe do que o direito, mais longe que a legalidade (notadamente na
teoria do desvio de poder).” Vide referido autor in: Mutações do Direito Administrativo. Ibidem, p. 57.
200
HAURIOU, Maurice. Droit Administratif et de Droit Public. Paris: Recueil Sirey, 1911, p. 450.
65
reprovados pela moralidade administrativa. Observemos de fato que,
nesta proposta, o ponto de vista da legalidade estrita é ultrapassado e
que o recurso por excesso de poder, ação disciplinar, se ergue até a
sanção de uma moral jurídica”
Segundo lição de Emerson Garcia,201 desde então, iniciou-se nova
jornada que abriu lugar à confrontação do ato, a partir da identificação da real
intenção do agente e não daquela externada, a ser extraída da idéia comum de boafé prevalente no terreno jurídico, equiparando a idéia de boa administração ao
conceito de boa-fé, por ele captado do Direito Alemão.202
Interessante
delimitação
do
conceito
de
moralidade
pública
foi
apresentada por Diogo de Figueiredo Moreira Neto203, ao reunir as lições de Maurice
Hauriou à idéia Weberiana de moral administrativa, consistente esta última na
exigência de um resultado dirigido para o bem comum, isto é, voltado ao fim
institucional do Estado. Trata-se da realização da boa administração,204 na qual está
inserida
a
idéia
de
conduta
eticamente
exigível
do
administrador,
independentemente das previsões legalmente expressas.
Na mesma linha, Hely Lopes Meirelles205, valendo-se das lições de
Maurice Hauriou, esclarece que a moral administrativa impõe-se internamente aos
agentes estatais, de forma que ele busque sempre o bem comum.206
201
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 71.
Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp nº 141879-SP, encampou a boa-fé como
critério para conceituação da moralidade administrativa. “LOTEAMENTO.MUNÍCIPIO. PRETENSÃO
DE ANULAÇÃO DO CONTRATO. BOA-FÈ.ATOS PRÓPRIOS.- TENDO O MUNÍCIPIO CELEBRADO
CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE LOTE LOCALIZADO EM ÍMOVEL DE SUA
PROPRIEDADE, DESCABE O PEDIDO DE ANULAÇÃO DOS ATOS, SE POSSÍVEL A
REGULARIZAÇÃO DO LOTEAMENTO QUE ELE MESMO ESTÁ PROMOVENDO. ART. 40 DA LEI
6.766/79.- A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS IMPEDE QUE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
RETORNE SOBRE OS PRÓPRIOS PASSOS, PREJUDICANDO OS TERCEIROS QUE CONFIARAM
NA REGULARIDADE DE SEU PROCEDIMENTO.” Relator Min. RUY ROSADO DE AGUIAR. Julgado
em 17/03/1998, DJ 22/06/1998. Igualmente, no RMS 6183-MG, o referido órgão reconheceu a
necessidade de observância do princípio da boa-fé por parte da Administração Pública. Rel. Min. RUY
ROSADO DE AGUIAR. Julgado em 14/11/1995, DJ 18/12/1995. Disponível em: Disponível em:
<http;/www.stj.gov.br>. Acesso em 10/04/2008.
203
“(...)trata-se de um sistema de moral fechada, próprio da Administração Pública, que exige de seus
agentes absoluta fidelidade à produção de resultados que sejam adequados à satisfação dos
interesses públicos, assim por lei caracterizados e ao Estado cometidos”. Vide referido autor in
Mutações do Direito Administrativo. Ibidem, p. 59-60.
204
Aqui compreendida também como boa governança, cujo exame será feito juntamente com o
princípio da eficiência.
202
66
Com base nos critérios para identificação dos vícios da moralidade
administrativa207, pode-se concretizar o conceito de moralidade administrativa dos
atos estatais, relacionando o motivo e o objeto – elementos de todo o ato estatal – à
sua finalidade (isto é, o interesse da coletividade). Sob essa perspectiva de análise,
o ato estatal não atenderá ao princípio da moralidade administrativa, quando se
constatar
inexistência,
insuficiência,
inadequação,
incompatibilidade
ou
desproporcionalidade do motivo208 que ensejou a sua prática.
A inexistência de motivo para a prática do ato estatal viola a moralidade,
na medida em que não se estará buscando o interesse público. Nesse caso, há
“presunção” de desvio de poder.209 Como assinalado, o princípio da juridicidade, que
vai além da restrita legalidade, abarca a legitimidade e a licitude, fundamenta a
exigência de motivo voltado ao interesse da coletividade para a prática dos atos
estatais, independentemente da necessidade de dispêndio de recursos.
O motivo insuficiente é aquele que não justifica a prática do ato, diante da
ausência de demonstração da sua real necessidade.
A ocorrência desse vício
adquire maior importância diante de atos praticados com dispêndio de vultosas
quantias, quando é de conhecimento comezinho a desproporção entre os recursos
disponíveis e as imperiosas e justas demandas da sociedade. Em verdade, trata-se
de ausência de razoabilidade para a prática do ato, hipótese que, em tese,
representa inobservância da moralidade administrativa.
A inadequação do motivo, por sua vez, está presente quando não se
verifica nexo entre ele e os efeitos que se pretende extrair da prática do ato estatal,
205
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29 ed., São Paulo: Malheiros, 2004,
p.89.
206
Este entendimento foi expressamente adotado em decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de
São Paulo cuja parte do Acórdão, ora se transcreve: “Por considerações de direito e de moral, o ato
administrativo não terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética da própria
Instituição, porque nem tudo que é legal é honesto. A moral comum é imposta ao agente público por
sua conduta interna, segundo as exigências da instituição a que serve e a finalidade de sua atuação:
o bem comum.” Apelação. 193.482-1, Relator, Des. LEITE CINTRA, julgado em 09/12/1993.
Disponível em: <http://www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: 05/06/2008.
207
Esta metodologia foi apresentada por Manoel de Oliveira Franco Sobrinho e adotada por alguns
autores como Diogo de Figueiredo Neto. Vide aquele autor in: O controle da moralidade
administrativa. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 95-107.
208
Identificado como a situação no mundo real que autoriza ou impõe a prática do ato. Encontra-se,
portanto, externo ao ato.
209
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo, ibidem, p. 66.
67
comprometendo-se igualmente a concretização do interesse da coletividade. Não há
correspondência entre causa e efeito no plano categorial.
Já a incompatibilidade do motivo está diretamente ligada à inadequação
concreta; isto é, não há indicadores de correspondência entre causa e efeito. Não se
trata, portanto, da valoração do atuar do agente público ou político isoladamente,
mas da avaliação finalística deste, em confronto com o objeto do ato.
Por último, a desproporcionalidade do motivo deve ser avaliada em
confronto com o resultado.
Segundo esse critério, ofende a moralidade
administrativa o ato estatal cujos efeitos estejam aquém do que se compreenderia
como razoável ante a motivação declinada ou, ainda, quando os efeitos decorrentes
do ato possuam intensa densidade (reflexos) frente à debilidade do motivo. Há
evidente avaliação equivocada do motivo, quando comparado com os resultados
que se podem alcançar, deixando-se de observar o bem comum, finalidade do ato.
Igualmente,
a
moralidade
administrativa
estará
violada
quando
demonstrada a ocorrência dos vícios do ato estatal, agora sob a ótica do objeto. Três
são os vícios atrelados ao objeto210, a saber: impossibilidade, desconformidade e
ineficiência.
A impossibilidade do objeto pode ocorrer em duas situações: quando o
resultado pretendido é incompatível com o ordenamento jurídico ou com o plano
físico (da realidade dos fatos).
Nessa perspectiva analítica, não se encaixa no
conceito de moralidade administrativa a movimentação da máquina estatal, sem que
o resultado esperado seja possível no plano fático ou jurídico, independentemente
da constatação de enriquecimento ou de prejuízo concreto.
A imoralidade
administrativa está aqui diretamente ligada à idéia de boa administração.211
210
É o que o ato dispõe, conceituado por muitos doutrinadores como o conteúdo do ato. Celso
Antônio Bandeira de Mello distingue o conteúdo do objeto, registrando que este é sobre o que o ato
dispõe. Vide referido autor: In: Curso de Direito Administrativo. Ibidem, p. 386-387.
211
Há quem enquadre a presente hipótese à violação do princípio da eficiência, pois o agente público
somente pode praticar atos cujos resultados sejam conformes ao ordenamento jurídico ou possíveis
de se concretizarem no plano físico.
68
Será desconforme ou inadequado o objeto quando “ocorrer uma
incompatibilidade lógica”212 entre a escolha discricionária, no estreito campo em que
ela é permitida e o interesse do bem geral (finalidade do ato).
Finalmente, tem-se a ineficiência do objeto, quando se vislumbra fundada
ausência de proporcionalidade entre os custos e o benefício, mormente ante a
sabida escassez de recursos públicos em confronto com as demandas sociais.213
Além da previsão constante do artigo 37, caput, o dever de moralidade
encontra-se expressamente contido no artigo 5º, inciso LXXIII, ambos da
Constituição Federal de 1988. Na qualidade de princípio integrante do dever de
probidade, a moralidade administrativa está ainda inserida em outros dispositivos da
Carta Magna, conforme exposto a seguir.214
Nesse diapasão, registra Rogério José Bento Soares do Nascimento que
“a defesa em lei da moralidade na administração é também defesa da Constituição
que impôs a probidade como elemento indispensável a todos os atos praticados por
agente público”.215
A
introdução
do
requisito
da
moralidade
administrativa
como
indispensável à prática dos atos estatais impôs aos tribunais o exame para além da
adequação à legalidade, possibilitando, com isso, a análise dos fins e motivos da
atuação dos agentes públicos.
Este tem sido o caminho trilhado pelo Poder Judiciário, ao reconhecer
plenamente a sindicância da moralidade administrativa e dos demais princípios.
Assim é que os Tribunais Superiores, por diversas vezes, examinaram a
compatibilidade de condutas de agentes estatais com o princípio da moralidade
administrativa, ainda que em conjunto com os demais postulados reguladores do
212
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. Ibidem, p.70.
Igualmente, como registrado em nota anterior, há quem vislumbre aqui uma violação ao princípio
da eficiência. Em verdade, os postulados da legalidade e moralidade atuam como alicerces em
conjunto com os outros princípios. Assim, não é de se estranhar que um ato de improbidade
configure, a um só tempo, violação a dois ou mais princípios. A utilização de outro princípio
juntamente com a moralidade administrativa como fundamentação de eventual ato de improbidade
não retira desta a possibilidade de, por si só, configurar a causa de um ilícito. Marcelo de Figueiredo,
em sua obra acerca da moralidade posicionou-se neste sentido. Vide referido autor. O Controle da
Moralidade na Constituição. Ibidem, p. 138.
214
Optou-se por não inserir os dispositivos neste momento visando a não cansar o leitor.
215
NASCIMENTO. Rogério José Bento Soares do. “Improbidade Legislativa”. Ibidem, p. 412-413.
213
69
atuar estatal, independentemente de demonstração de dano concreto. Desta forma,
ao avaliarem a moralidade administrativa e o respeito aos demais princípios, a
fortiori, levaram a efeito o controle judicial da probidade.
Deflui-se dos julgados analisados, o reconhecimento dos princípios
insculpidos no artigo 37, caput, da Carta Magna – e, destarte, a probidade – como
imperativos a serem fielmente observados.216
Em resumo, o ato estatal, não obstante sua adequação à legalidade,217
deixará de cumprir o requisito de moralidade administrativa, quando não guardar
perfeita coerência com a situação fática, a intenção do agente e a promoção do bem
comum, imposto no já referido artigo 3º, inciso IV, da Constituição de 1988.
A esse respeito, cabe relevar que a consagração da moralidade
administrativa pela Lei Maior revigorou o princípio da legalidade formal, revisitado
216
Merecem destaque, a nosso sentir, os seguintes julgados:
01- Contratação direta de hospital privado, sem observância do prévio procedimento licitatório. REAgR nº 262134-MA. Relator Min. CELSO DE MELLO, julgado em 12/12/2006, DJ 02/02/2007.
Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 19/05/2008;
02- Incompatibilidade entre o número de servidores efetivos e em cargos em comissão. RE-AgR nº
365368-SC. Relator Min. RICARDO LEWANDOWSKI, julgado em 22/05/2007, DJ 29/06/2007.
Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 19/05/2008;
03- Instituição de subsídio mensal e vitalício aos ex-governadores de Estado, de natureza idêntica ao
percebido pelo atual Chefe do Poder Executivo Estadual. Garantia de pensão ao cônjuge supérstite,
na metade do valor percebido em vida pelo titular. ADI nº 3853-MS. Relatora Min. CÁRMEM LÚCIA,
julgado em 12/09/2007, DJ 26/10/2007. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em
19/05/2008;
04-Regras para nomeação para cargo em comissão e função de confiança estabelecidas pelo
Conselho Nacional de Justiça que decorrem da observância do princípio da moralidade, entre outros.
ADC-MC nº 12-DF. Relator, Min. CARLOS BRITTO. Julgado em 16/02/2006, DJ 01/09/2006.
Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 19/05/2008;
05-Despesas com viagem ao exterior do Prefeito e do cônjuge, apenas em companhia deste, sem
qualquer benefício ao Município. REsp nº 37275-SP. Relator Min. GARCIA VIEIRA, julgado em
15/09/1993, DJ 11/10/1993. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em 19/05/2008;
06-Participação de empresa em licitação, cujo responsável pelo certame junto à entidade pública
integra o quadro de pessoal da concorrente. REsp. nº 254115-SP. Relator Min. GARCIA VIEIRA,
julgado em 20/06/2000, DJ 14/08/2000. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em
19/05/2008;
217
Deve ser reforçada a idéia de que legalidade e moralidade, embora configurem postulados
impostos pela legislação em defesa da probidade, guardam autonomia. Neste sentido, Maria Sylvia
Zanella di Pietro esclarece que a regra moral possui autonomia no ordenamento jurídico, podendo ser
aplicada ainda que não se vislumbre ilegalidade. PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito
Administrativo. 14 ed., São Paulo: Atlas, 2002, p. 78. Em igual sintonia, Diogo de Figueiredo Moreira
Neto pontifica que “ a partir da Constituição Política de 1988, já atribuiu à moralidade administrativa
uma relevância jurídica autônoma, visando a protegê-la, tutelá-la e defendê-la desvinculadamente da
ilegalidade em sentido estrito (...)”. Vide referido autor in: Mutações do Direito Administrativo. Ibidem,
p. 74.
70
pelos imperativos categóricos advindos da ética e, de modo mais amplo, as práticas
socialmente aceitas como justas e razoáveis.
Do que foi exposto, decorre que o princípio da moralidade administrativa
deve ser analisado juntamente com o postulado da proporcionalidade, na medida em
que sua aplicação estende-se aos demais princípios e requer concretização, com
vistas a enquadramento e conseqüente sanção.
Já o princípio constitucional da impessoalidade pressupõe, de início, o
reconhecimento de que os atos estatais são perpetrados pelo órgão ou entidade,
sem registros pessoais do agente, evitando-se, com isso, a personalização do ato,
através da inclusão dos valores particulares de seu autor.
Ademais, o ato estatal deve ser praticado na busca do interesse da
coletividade, observando-se a imparcialidade e, desta forma, afastando-se a
intenção de conceder benefício ou mesmo discriminação a pessoas ou grupos
determinados.218 Este ponto de vista encontra alicerce na doutrina de Cármen Lúcia
Antunes da Rocha, quando sustenta que a impessoalidade “tem como objeto a
neutralidade da atividade administrativa, fixando como única diretriz jurídica válida
para os comportamentos estatais o interesse público”,
219
sendo ele requisito para
qualquer ato administrativo (a ser estendido a todos os atos estatais).220
218
Merecem registro, face à pertinência, as palavras de Cícero: “Quem quiser governar deve analisar
estas duas regras de Platão: uma, ter em vista apenas o bem público, sem se preocupar com a sua
situação pessoal; outra, estender suas preocupações do mesmo modo a todo o Estado, não
negligenciando uma parte para atender à outra. Porque quem governa a República é tutor que deve
zelar pelo bem de seu pupilo e não o seu: aquele que protege só uma parte dos cidadãos, sem se
preocupar com os outros, introduz no Estado o mais maléfico dos flagelos, a desavença e a revolta.
Isso faz com que uns passem por amigos do povo, outros por defensores da aristocracia, poucos por
benfeitores de todo o Estado”. CICERO. Dos Deveres. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret,
2007, p. 56 (livro I, XXV).
219
Segundo referida autora, o princípio da impessoalidade, nos ordenamentos jurídicos italiano e
português, é apresentado sob o rótulo de imparcialidade da Administração Pública. ROCHA, Cármen
Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p.
147.
220
No mesmo sentido são as palavras de Marcio Barbosa Maia e Ronaldo Pinheiro de Queiroz, in
verbis: “Realmente, o dever de imparcialidade configura condição indeclinável para a realização do
escopo do processo administrativo, mormente o de natureza competitiva como o concurso público,
cuja quebra esvaziaria, por completo, o núcleo essencial dos princípios da isonomia, impessoalidade
e da moralidade. Em razão disso, o ordenamento jurídico comina sanção extremamente grave aos
agentes públicos que violarem o seu dever de imparcialidade, qualificando tal conduta como ato de
improbidade administrativa, nos termos do art. 11, caput, da Lei n. 8429/92.” MAIA, Marcio Barbosa;
QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. O Regime Jurídico do Concurso Público e o seu Controle
Jurisdicional. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 85. Confira-se ainda, especificamente em relação à
exigência de imparcialidade no âmbito do processo administrativo, a obra de Sérgio Ferraz e Adilson
71
Em verdade, o princípio da impessoalidade tem como meta o
cumprimento do fundamental postulado da igualdade ou isonomia, compreendido
segundo conotação proposta por Rui Barbosa221. Amplamente difundido é também
conhecido como igualdade material, na qual se exige tratamento idêntico para as
situações semelhantes e desigual para as hipóteses díspares, na medida da
desigualdade.
Deflui do princípio da impessoalidade a norma inserta no próprio artigo 37,
222
inciso II,
da Constituição Federal, ao exigir prévio concurso público como forma de
investidura nos cargos públicos, salvo na hipótese de nomeação para cargo em
comissão.223
O princípio da publicidade, por sua vez, deflui do direito de a sociedade
fiscalizar e controlar os atos estatais, instrumentos próprios do modelo republicano.
Trata-se de medida de transparência, destinada a garantir o acesso difuso
dos atos praticados, com o fim de evitar a prática de irregularidades, propiciadas
pela ausência de “claridade”.224
de Abreu Dallari. Vide referidos autores in Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002, p.
106.
221
Vale lembrar a máxima de Rui Barbosa, de que “A regra da igualdade não consiste senão em
quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. (...) Tratar com
desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade
real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a
cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem”.
BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003, p. 39.
222
“Art. 37(...) II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em
concurso público de provas ou provas e títulos, de acordo a natureza e a complexidade do cargo ou
emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado
em lei de livre nomeação e exoneração;” BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Ibidem, p. 212.
223
A partir da vigência da Constituição de 1988, restou incontroverso que toda e qualquer investidura
originária no cargo inicial de uma carreira ou para o cargo isolado, excetuados o cargo em comissão e
a contratação temporária (para as hipóteses excepcionais), importa necessariamente a prévia
aprovação em concurso público, ou seja, competição aberta a todos os que preencham os requisitos
imprescindíveis para os exercícios das atividades próprias do cargo, em observância ao princípio da
Isonomia. Com isso, o preceito constitucional supracitado extinguiu as formas de provimento derivado
vertical que impliquem mudança de carreira, como se vê na ascensão, reenquadramento,
transferência e acesso. Neste sentido “Todas as formas internas de investiduras de servidores em
outro cargo de carreira, diferente daquele para o qual fora aprovado por concurso, são proibidas pela
atual Carta Magna. Inclusive, os denominados concursos internos restaram defesos, já que cargo,
emprego ou função vagos devem ser preenchidos por concurso aberto a todos os brasileiros que
preencham os requisitos previsto em lei” SOUZA, Eder. Concurso Público Doutrina & Jurisprudência.
Belo Horizonte: Del Rey. 2000, p. 51.
224
A publicidade “confere certeza às condutas estatais e segurança aos direitos individuais e políticos
dos cidadãos. Sem ela, a ambigüidade diante das práticas administrativas conduz à insegurança
72
Além de configurar princípio destinado a regular os atos estatais, a
publicidade encontra-se prevista no artigo 5º, inciso LX, da Carta Magna,225
excepcionada pelo interesse social, defesa da intimidade e, quando se mostrar
imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (artigo 5º, inciso XXXIII).
Inserido através da Emenda Constitucional nº 19/98, o princípio da
Eficiência226 consiste no dever de busca do melhor resultado concretamente227
possível, direcionado à satisfação do interesse coletivo.228
Nesse sentido, o atuar do agente deverá ser norteado pela análise do
custo-benefício, da otimização dos recursos públicos e da celeridade. Nesta quadra,
a legalidade adquire conotação material e não apenas formal.
Por sua vez, o princípio da eficiência deve ser entendido a partir da idéia
de “boa governança”,229 ou administração proba,230 consistente no bom uso dos
jurídica e à ruptura do elemento de confiança que o cidadão tem que depositar no Estado.” ROCHA,
Carmem Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Ibidem, p.240.
225
“Art. 5º(...) XXXIII- todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse
particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de
responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do
Estado; (...) LX- a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da
intimidade ou o interesse social o exigirem;” BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Ibidem, p. 126126.
226
Segundo Antonio Fonseca, eficiência aplicada à administração constitui “o dever imposto ao
administrador de acomodar a gestão pública a um aproveitamento racional dos meios humanos e
materiais de que o Estado dispõe, buscando a maneira mais efetiva de utilizar recursos escassos e
minimizando os gastos públicos, de modo a se poder responder na maior escala possível às
demandas sociais que o Estado propõe satisfazer. Visa a criar condições para que a eficácia das
políticas públicas seja possível.” “O Princípio da Eficiência: Impacto no Direito Público e Improbidade”.
In: SAMPAIO, José Adércio Leite et al (org.). Improbidade Administrativa 10 anos da Lei n. 8.429/92.
Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 41.
227
O conceito de eficiência deve ser analisado dentro do contexto em que o ato estatal é praticado.
228
Vanice Lírio do Valle assinala que a inserção do princípio da eficiência no texto constitucional
configura o reconhecimento de um “direito difuso à cidadania”, refletindo de forma inequívoca no
atuar do Estado. Vide referida autora in: “Direito fundamental à boa administração, políticas públicas
eficientes e a prevenção do desgoverno”. Ibidem.
229
Esta foi a tradução adotada pelo Brasil da expressão “Good governance” empregada no
preâmbulo da Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em
Transações Comerciais, elaborada em 1997, através da Organização de Cooperação e
Desenvolvimento Econômico – OCDE. A Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários
Públicos Estrangeiros foi ratificada pelo Brasil em 14 de junho de 2000 (Decrecto Legislativo 125/200)
e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 3.678, de 30 de novembro de 2000. A finalidade da
Convenção é implementar mecanismos que impeçam a corrupção de funcionários públicos visando à
obtenção de vantagens em transações comerciais internacionais. A garantia da eficácia da
Convenção no plano real pressupõe acompanhamento sistemático, realizado por um Grupo de
Trabalho que monitora a implementação do acordo. A Controladoria-Geral da União (por intermédio
da Secretaria de Prevenção da Corrupção e Informações Estratégicas), é o órgão interno incumbido
da coordenação e acompanhamento da implementação dos mecanismos propostos pela Convenção.
O citado processo de monitoramento é composto por duas fases. A primeira fase ( realizada nos dias
73
escassos recursos públicos de forma a concretizar os direitos fundamentais do
cidadão, com a maior amplitude possível,231 orientados pela proteção da dignidade
da pessoa humana, espectro no qual não há espaço para a alegação infundada da
reserva do possível.232 O distanciamento dessa finalidade implica o distanciamento
da própria razão de existência do Estado, tal como consignada no texto
constitucional.
Boa governança (administração proba, ou bom governo) é aquela
realizada de forma adequada, sopesando-se as condições concretas disponíveis ou
que deveriam estar à disposição233 e o resultado específico (finalidade do ato) a ser
alcançado, segundo os valores que integram a Constituição e que dão norte às
atividades estatais e se resumem na concretização do interesse público.
Adota-se aqui o conceito de interesse público apresentado por Rogério
Pacheco Alves,234 com fundamento nas noções formuladas por Marçal Justen Filho,
coerentes com os “valores sociais fundamentais, de uma moral comum, sobretudo a
partir do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana” que deve ser considerada,
17 a 20 de junho de 2003, em Paris) teve como finalidade o exame da conformação normativa da
legislação dos Estados signatários. Segundo informações da Controladoria-Geral da União, boa parte
da legislação brasileira encontra-se em sintonia com o conteúdo da Convenção. A segunda fase do
monitoramento da Convenção teve como finalidade checar o cumprimento das recomendações
estabelecidas na primeira fase, cujo escopo é assegurar efetividade à própria Convenção. Convenção
sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais.
Site
da
Corregedoria-Geral
da
União.
Disponível
em:
<http://www.cgu.gov.br/ocde/publicações/arquivos/texto%20convenção.pdf.>. Acesso em: 29/05/08.
230
Expressão empregada por André de Carvalho Ramos que ora se adota. RAMOS, André de
Carvalho. O Combate Internacional à Corrupção e a Lei da Improbidade. In: SAMPAIO, José Adércio
Leite et al. (org.). Improbidade Administrativa 10 anos da Lei n. 8.429/92. Belo Horizonte: Del Rey,
2002, p. 17.
231
Acerca do conteúdo do princípio da Eficiência, concluiu Antônio Fonseca: “Presente o fato de que
os recursos da sociedade administrados pelo Estado são sempre escassos, o princípio da eficiência
fortalece a sua função na justa aplicação ou no uso comedido desses recursos”. Vide referido autor
in: “O Princípio da Eficiência: Impacto no Direito Público e Improbidade”. Ibidem, p. 64.
232
Segundo a idéia de reserva do possível, cuja origem encontra-se no Direito Alemão, a
concretização dos direitos sociais a prestações guarda dependência da disponibilidade do
destinatário da obrigação sob dupla dimensão: disponibilidade financeira (existência de recursos
capazes do custeio dos direitos em questão) e jurídica (capacidade de execução nos termos do
ordenamento jurídico pátrio). Ingo W. Sarlet insere ainda na órbita do conceito de reserva do possível
o exame da proporcionalidade a ser considerada a partir das condições do titular do direito
fundamental pleiteado. SARLET. Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 6 ed., Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 300-301.
233
Eventual ação ou omissão do agente estatal que deu causa à ausência de condições não o pode
beneficiar. Vale aqui a máxima de que “ninguém pode se beneficiar da própria torpeza.”
234
ALVES, Rogério Pacheco. Prerrogativas da Administração Pública nas Ações Coletivas. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 50.
74
preferencialmente, à luz dos direitos transindividuais e não mais nos termos
propostos pelo defasado modelo de Estado Liberal.
Assim, fulcrado no conceito de boa governança (ou administração proba),
ofende o princípio da eficiência e, portanto, o dever de probidade, a realização de
despesas supérfluas e desnecessárias, ante a notória constatação (fatos notórios
independem de prova, nos termos do artigo 334, I, do Código de Processo Civil) da
ausência ou precariedade na prestação dos serviços essenciais, principalmente a
observância do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, no sentido atribuído por
Cármen Lúcia Antunes da Rocha, quando esclarece que corresponde ao “coração
do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana.”235
A inserção da eficiência como princípio expresso a ser observado por
todos os agentes dos poderes do Estado, compreendido dentro da idéia de boa
governança, ou boa administração, afasta qualquer dúvida quanto à possibilidade de
controle judicial do conteúdo do ato, inclusive na seara da discricionariedade. Vale
dizer, não obstante a existência de certa margem de liberdade de ação do agente, a
sua escolha deve ser avaliada e controlada, inclusive no plano judicial,236 a partir do
princípio da eficiência do resultado.237
Nessa linha de reflexão, Juarez Freitas238 afirma que não há
discricionariedade que possa estar imune ao controle do Poder Judiciário, na medida
em que todos os atos estatais estão vinculados aos princípios e direitos
fundamentais, ao menos no que tange aos “vícios decorrentes de excessos, desvios
e insuficiências no exercício das competências administrativas”.
235
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. “O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Exclusão
Social.” In: Revista Interesse Público. São Paulo: Notadez, nº 4. out/dez 1999, p. 23-48.
236
A admissão da sindicância (judicialização) do princípio da eficiência significa inferir que a sua
violação pode configurar fundamento para a deflagração da Ação de Improbidade, nos termos dos
artigos 37, caput da Constituição de 1988 e 11, caput, da Lei 8.429/92.
237
“A inserção na Constituição Federal da eficiência como princípio constitucional da Administração
Pública, fundamental e expresso, não deixa margem a qualquer dúvida: de um lado, de que é
legítima, e mesmo necessária, a investigação ampla da eficiência de quaisquer ações administrativas
pelo Poder Judiciário; de outro, de que a atuação denominada discricionária do administrador é
sempre relativa e especialmente limitada por esse princípio.” PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de
Improbidade Administrativa Comentada Aspectos Constitucionais, Administrativos e de
Responsabilidade Fiscal Legislação e Jurisprudência Atualizadas. 3 ed., São Paulo: Atlas, 2007, p.35.
238
FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração
Pública. Ibidem, p. 123.
75
A possibilidade de avaliação judicial a partir do padrão da boa
administração, segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto,239 decorre da conjunção
do princípio da moralidade administrativa, constante da Carta Magna e da previsão
da sanção de nulidade imposta pelo artigo 5º, LXXIII, igualmente do texto
constitucional. Cabe acrescentar que a sindicância pode estender-se ao plano da
responsabilidade pessoal do agente, através da Lei de Improbidade Administrativa,
cuja aplicação é perfeitamente cabível, ao menos em tese.240
Na mesma mirada, Rogério Pacheco Alves241 aponta que o princípio da
eficiência já estava consagrado no texto constitucional, mesmo antes do advento da
Emenda Constitucional 19/98, responsável pela sua consagração como “imperativo
jurídico e moral da boa administração”
Na senda dos subsídios doutrinários acima destacados, os princípios da
legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência formam, assim, o
substrato inafastável de todo e qualquer ato estatal, cuja violação conduz ao ato de
improbidade, ao menos no plano formal, cuja concretização material pressupõe
ainda a análise sob a ótica da proporcionalidade.
A partir do que foi exposto e, ainda sob orientação de Cármen Lucia
Antunes da Rocha242, constata-se que o conceito de corrupção liga-se à
improbidade, numa relação de conteúdo para continente. Entretanto, para aqueles
239
Ibidem, p. 72.
Neste sentido, A Vigésima Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
reconheceu a prática de ato de improbidade por parte de um Prefeito Municipal, ao afirmar que:
“Pratica ato de improbidade administrativa o prefeito que consente se desenvolva a atividade
administrativa de aquisição e utilização de bens sem qualquer controle interno. Conquanto ausente
prova cabal de dano ao erário, a ausência total de controle interno, constitui ato de improbidade
administrativa que viola os princípios que dominam a atividade administrativa pública por revelar a
consciente desorganização na gestação da coisa pública. Hipótese em que houve o pagamento pela
aquisição de mais de cinqüenta mil metros cúbicos de areia sem qualquer registro de entrega nem da
destinação à satisfação do interesse público.” Processo n 70005943253. Relator Des. MARIA
ISABEL DE AZEVEDO SOUZA. Julgado em 30/09/2003. Disponível em <http://www.tj.rj.gov.br>.
Acesso em: 15/05/2008.
241
ALVES, Rogério Pacheco. As prerrogativas da Administração Pública nas Ações Coletivas.
Ibidem, p. 81-82.
242
Segundo a referida autora, “a receita de corrupção administrativa poderia ser preparada pela
definição dos seguintes ingredientes: a) uma dose grande de poder decisório (competência
administrativa para decisões superiores) em mãos de um único agente; b) grande número de órgãos
competentes à execução da decisão sem o esquadrinhamento perfeito e exclusivo das atribuições de
cada qual; c) ausência de mecanismos de controle efetivo, permanente, transparente e rigoroso na
atuação dos agentes e órgãos públicos; d) apenas uma pitada de publicidade administrativa precária
e restrita; e) impunidade para todos, inclusive para os corruptores. Vide referida autora in: Princípios
Constitucionais da Administração Pública. Ibidem, p. 200-201.
240
76
que a compreendem em sentido amplo, conforme ensinamento de Norberto
Bobbio,243 já esboçado anteriormente, verifica-se identidade com o conceito de
improbidade administrativa, que extrapola a corrupção restrita (na qual há
enriquecimento ilícito do corruptor), abrangendo atos atentatórios aos princípios que
regem os atos estatais, portanto independente da demonstração de efetivo dano ao
erário, mas de dano ao patrimônio público, em seu mais amplo sentido.
Com a explanação do conteúdo do princípio da probidade, cuja matriz
originária é o interesse da coletividade, a ser efetivado através da observância dos
princípios reitores das atividades estatais que lhe dão conteúdo e, orientado em
primeiro plano pela proteção da dignidade da pessoa humana, igualmente, constatase que, em nome da concretização do próprio interesse público,244 se faz necessário
o exame desses princípios que lhe conferem densidade à luz do princípio da
proporcionalidade.
Diz-se, com isso, que é também o próprio interesse público que, presente
em todas as atividades estatais, inclusive na identificação da ocorrência de ato de
improbidade administrativa com a conseqüente sanção dele decorrente, deve servir
de parâmetro para disparar a garantia para efetivação do direito, através do
mecanismo de repressão, qual seja, a ação coletiva de Improbidade, ou dos demais
instrumentos que protegem a probidade, como a Ação Popular.
A prática de atos que extrapolam a razoabilidade mostra-se evidentemente
inadequada e, portanto, desproporcional com o fim objetivado. Foi exatamente em
busca do equilíbrio na prática dos atos estatais que se deu início a utilização do
conceito de proporcionalidade como limitador da atividade do Poder Público.
O princípio da proporcionalidade desempenhou importante papel no
Direito Penal e no Direito Administrativo, como instrumento necessário a aparar os
excessos cometidos em detrimento dos particulares. Estendido ao campo do Direito
Constitucional, através do Direito Alemão, o princípio foi aplicado pelo Tribunal
Constitucional, para conter excessos decorrentes de normas elaboradas durante o
regime nacional-socialista, ainda que as mesmas não estivessem formalmente
contrárias à Constituição.
243
244
Ver nota de rodapé nº 4.
Segundo os paradigmas apontados por Rogério Pacheco Alves, trazidos à baila anteriormente.
77
Segundo Robert Alexy,245 o princípio em tela decompõe-se em três
subprincípios, quais sejam: adequação (aptidão para alcançar o fim almejado),
necessidade (inexistência de meio menos gravoso que seja igualmente eficaz) e
proporcionalidade em sentido estrito (ponderação entre os custos e os benefícios da
medida).
Fala-se em adequação, quando a medida mostra-se capaz de fomentar o
objetivo por ela perseguido – interesse público, o bem comum da coletividade.
Trata-se de sopesar a relação entre o meio utilizado e o fim pretendido. Nesta
etapa, a avaliação restringe-se à norma jurídica, sem adentrar na detecção da real
necessidade do objeto sopesado: “Não há avaliação da eficácia do meio escolhido
ou o grau de restrição aos direitos dos cidadãos”.246
O subprincípio da necessidade configura-se quando a medida objeto da
análise mostra-se como a única capaz de produzir os resultados almejados, sem que
se pratiquem excessos indesejáveis.
Nesse sentido, havendo possibilidade de
escolha, deve ela sempre recair na opção menos gravosa aos direitos fundamentais.
O emprego do princípio da proporcionalidade visa à busca do equilíbrio entre os
meios e os fins, de forma a resguardar o núcleo essencial dos direitos fundamentais.
O terceiro subprincípio, denominado de proporcionalidade em sentido
estrito, tem como escopo a ponderação concreta entre a medida visada e as
restrições que, a fortiori, dela decorrerão. Nessa linha de pensamento, hão de ser
sopesados o grau de realização com o ato estatal pretendido e o grau de limitação
que a sua prática não pode afastar. Nesse diapasão, a opção pelo ato estatal em
análise deve propiciar conseqüências mais vantajosas, em confronto com as
restrições que dele impreterivelmente advirão no âmbito concreto, sob pena de se
configurar desproporcional. Infere-se da lição de Robert Alexy247 que a satisfação
do direito (por ele denominado de princípio) ao final escolhido necessita ser tanto
mais relevante, quanto for o grau de afetação (restrição) do direito (do princípio)
sobre o qual recairá a limitação.
245
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid:
Centro de Estudos Constitucionales, 1997, p. 111-112.
246
GARCIA, Emerson. ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 86.
247
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales Ibidem, p. 94-96
78
Conquanto não configure princípio expressamente previsto na Carta
Magna, o princípio da proporcionalidade encontra-se implicitamente consagrado já
em seu Preâmbulo,
248
ao estabelecer que o Estado Democrático destina-se, dentre
outras missões, a assegurar ”a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna(...). Outrossim, constitui corolário do Estado Democrático de
Direito, instrumento necessário à construção de uma sociedade livre, justa e
solidária (artigo 3º, I), destinada à redução das desigualdades sociais e
regionais(artigo 3º, III), voltada para a concretização do interesse público,
consubstanciado na promoção do bem de todos (artigo 3º, IV). Não se pode deixar
de registrar que a proporcionalidade decorre, ainda, dos princípios da legalidade
(artigo 5º, II) e da igualdade (artigo 5. caput), tal como concebida por Rui Barbosa249
Há ainda diversos dispositivos constitucionais que abrigam a idéia de
proporcionalidade, dentre os quais podem ser apresentados;250 os artigos 5º, V
(direito de resposta deve ser proporcional ao agravo); 7º, V (piso salarial
proporcional à extensão e à complexidade do trabalho); 36, § 3º (na hipótese de
intervenção de um ente da Federação em outro, será apenas suspensa a execução
do ato impugnado quando esta providência mostrar ser suficiente para o
restabelecimento da normalidade); 71, VIII (a multa a ser aplicada pelo Tribunal de
Contas deverá ser proporcional ao dano causado ao erário); 145, § 1º (os impostos
devem observar a capacidade contributiva do contribuinte);251
Adentrando no campo da proteção da probidade, o constituinte originário,
no artigo 37, § 4º,252 incumbiu o legislador da elaboração de normas destinadas à
proteção da probidade. Assim é que a Lei 8.429/92 estabeleceu as condutas que, a
priori, em decorrência da inobservância do dever de probidade, configuram ato de
improbidade.
248
Ver preâmbulo e demais artigos da Constituição da República de 1988. BRASIL. CONSTITUIÇÃO
FEDERAL, In: NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Constituição Federal
Comentada e Legislação Constitucional. Ibidem, p. 115; 122; 126.
249
Conforme citação anteriormente apresentada.
250
BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. In: NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria.
Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006, p. 126; 178; 212; 258; 341.
251
Essa conclusão encontra-se amparada no registro apresentado por Emerson Garcia. Vide referido
autor in: Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 97.
252
“Art. 37(...) § 4º. Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos
políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na
forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.” BRASIL. CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. Ibidem, p. 212.
79
O exame perfunctório da lei permite constatar que as condutas insertas no
estatuto legal em exame, particularmente nos artigos 9º e 10
253
, configuram
hipóteses exemplificativas de violação aos princípios reguladores dos atos estatais.
Por sua vez, a amplitude dos termos do art. 11 da Lei nº 8.429/92, ao
tipificar como ato de improbidade administrativa “qualquer ação ou omissão que viole
os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições” –
afigura imprescindível a aplicação do princípio da proporcionalidade (em especial, no
que diz respeito aos critérios da “necessidade” e da “proporcionalidade em sentido
estrito”) no âmbito da improbidade administrativa. Se não houver esse cuidado,
corre-se o risco de supor que os co-legitimados estariam obrigados a promover a
respectiva ação, em face de toda e qualquer falta funcional, praticada por todo e
qualquer agente estatal, mesmo que de pouca ou nenhuma significância, o que seria
manifestamente absurdo. Este exame decorre também da óbvia constatação de que
as sanções previstas no artigo 12 da Lei 8.429/92 importam em restrições a direitos
fundamentais do agente a quem se atribui o ato de improbidade.
Portanto, quer no momento da deflagração da Ação de Improbidade pelos
co-legitimados, quer no momento da fixação da correspondente pena pelo
magistrado,254
253
255
deve ser seriamente examinada a conduta do agente estatal, à
Ver artigo 9º já transcrito anteriormente. “Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa, que
causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial,
desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no
art. 1º desta lei, e notadamente:(...).
254
Ratifica-se aqui o entendimento esposado em nota anterior, no sentido de que a incidência das
sanções deve levar em consideração o parágrafo único do artigo 12 da Lei de Improbidade
Administrativa, segundo o qual “na fixação das penas previstas nesta lei o juiz levará em conta a
extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente.” Juarez Freitas
defende que as sanções previstas no artigo 12 da Lei 8.429/92 não necessitam, em regra, de
aplicação conjunta. Contudo, “em se comprovando a improbidade administrativa que acarreta
enriquecimento ilícito (art. 9º), por sua nota de irretorquível e gravíssima hostilidade ao interesse
público, deve o julgador aplicar, na íntegra, as sanções cabíveis, assim como elencadas no art. 12, I.”
Vide referido autor: “Do Princípio da Probidade Administrativa e de sua Máxima Efetivação”. Ibidem.
255
Calcados no princípio da proporcionalidade, acertadamente, há diversos julgados no sentido de
que a condenação pela prática de ato de improbidade não impõe ao Magistrado a aplicação de todas
as sanções legalmente admitidas, ex vi do artigo 12, incisos I, II, III, do Diploma Legal referido. Eis
decisão do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: RECURSO ESPECIAL - ALÍNEAS "A" E "C" ADMINISTRATIVO - AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - PAGAMENTO INDEVIDO DE
HORAS EXTRAS A OCUPANTES DE CARGO EM COMISSÃO - ACÓRDÃO QUE AFASTOU A
APLICAÇÃO DA SANÇÃO DE SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS POR TRÊS ANOS
DETERMINADA PELA SENTENÇA - ALEGAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL DE QUE
NÃO HÁ POSSIBILIDADE DE EXCLUIR A SANÇÃO - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE - POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA NÃO CUMULATIVA DAS SANÇÕES
80
luz da proporcionalidade, sem descurar um só minuto da natureza difusa do direito
protegido pela Lei de Improbidade Administrativa e a sua relevância para o real
cumprimento do modelo de Estado Democrático de Direito e da forma republicana.
A partir da constatação supra, Emerson Garcia sustenta que a mera
subsunção do ato à norma (vale dizer, violação dos princípios impostos aos agentes
estatais), sem o crivo do princípio da proporcionalidade, configura ato de
improbidade apenas no plano formal e não deve, destarte, desencadear a punição
do agente. Em verdade, o cabimento da Ação de Improbidade e a aplicação das
correspondentes sanções encontram-se reservados tão-somente aos atos de
improbidade materialmente considerados.
Essa aferição deve nortear-se pelo
interesse público (no sentido já apresentado anteriormente), tomando-se por base as
condições concretamente postas.
O princípio da proporcionalidade acarreta para os órgãos legitimados à
deflagração da Ação de Improbidade o dever de análise da violação ao princípio da
probidade, no sentido que se lhe empresta a Carta de 1988, mormente as normas
insertas nos artigos 15, V, e 37 (integralmente). Diz-se com isso que se devem
afastar as aplicações das sanções previstas no artigo 12 da Lei 8.429/92, quando a
imposição destas puder representar, no plano concreto e no âmbito da coletividade,
reprovação ainda maior, vale dizer, possibilidade de lesão de maior gravidade aos
DO ART. 12, INCISO III, DA LEI N. 8.429/92 - DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO
CONFIGURADA.
A aplicação das sanções da Lei n. 8.429/92 deve ocorrer à luz do princípio da proporcionalidade, de
modo a evitar sanções desarrazoadas em relação ao ato ilícito praticado sem, contudo, privilegiar a
impunidade. Para decidir pela cominação isolada ou conjunta das penas previstas no artigo 12 e
incisos da Lei de Improbidade Administrativa, deve o magistrado atentar para as circunstâncias
peculiares do caso concreto, avaliando a gravidade da conduta, a medida da lesão ao erário, o
histórico funcional do agente público etc. No particular, foram os ocupantes de cargo em comissão
condenados pelo r. Juízo sentenciante pela percepção de verbas pagas indevidamente por trabalhos
extraordinários, bem como o ex-prefeito do município por deferir o pagamento de forma irregular. Nos
termos da legislação municipal de regência, tais serviços somente seriam permitidos em hipóteses
excepcionais e temporárias, condicionadas à autorização por escrito do superior imediato, que deverá
justificar o fato, o que, in casu, não se deu. A sentença ordenou o ressarcimento dos valores
indevidamente recebidos pelos agentes públicos, respondendo pelo total do débito, solidariamente, o
ex-prefeito, bem como a suspensão dos direitos políticos. O Tribunal, por sua vez, deu provimento em
parte à apelação para afastar a condenação referente à suspensão dos direitos políticos. A imposição
dessa última, efetivamente, seria medida desarrazoada, visto que, como ressaltou a Corte de origem,
as provas dos autos demonstram a real prestação do serviço pelos réus, e que a vantagem
pecuniária obtida equivale apenas a R$ 4.023,72 (quatro mil e vinte e três reais e setenta e dois
centavos) para cada um dos servidores, segundo cálculo realizado em novembro de 2000, a
desautorizar a aplicação de sanção mais gravosa.Ausência de similitude fática ente os acórdãos
confrontados.Recurso especial não conhecido pela alínea "c" e conhecido, mas não provido pela
alínea "a". REsp 300.184-SP, Relator Min. FRANCIULLI NETTO, julgado em 04/09/2003, DJ
03/11/2003. Disponivel em:<http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 10/05/2008.
81
direitos também fundamentais do agente estatal diante do reduzido malefício
acarretado ao bem comum, finalidade de todo atuar do Estado.256
Nesses casos, como sugere Emerson Garcia,257 recomenda-se a
aplicação de outra sanção que se mostre mais compatível com a reprovabilidade da
ação ou omissão do agente, uma vez considerados os valores afetados
concretamente.
Não se pode deixar de registrar, entretanto, que o exame da
proporcionalidade no contexto do Estado Democrático de Direito e na República
deve ter em vista não apenas a proteção dos direitos fundamentais individuais do
agente estatal, pois deve pautar-se pela primazia dos direitos fundamentais
coletivos, em caso de colisão.
Emerson
Garcia258,
referindo-se
à
aplicação
do
princípio
da
proporcionalidade no exame do ato de improbidade administrativa, afirma que:
“Em linhas gerais, o princípio da proporcionalidade será observado
com a verificação dos seguintes fatores: a) adequação entre os
preceitos da Lei nº 8.429/92 e o fim de preservação da probidade
administrativa, salvaguardando o interesse público e punindo o
ímprobo; b) necessidade dos preceitos da Lei nº 8.429/92, os quais
devem ser indispensáveis à garantia da probidade administrativa; c)
proporcionalidade em sentido estrito, o que será constatado a partir
da proporção entre o objeto perseguido e o ônus imposto ao atingido,
vale dizer, entre a preservação da probidade administrativa, incluindo
as punições impostas ao ímprobo, e a restrição aos direitos
fundamentais (livre exercício da profissão, liberdade de contratar,
direito de propriedade, etc.)”.
256
Aplica-se aos co-legitimados à propositura da Ação de Improbidade, por analogia, a regra disposta
no artigo 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil (já citado anteriormente), segundo a qual “Na
aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
BRASIL. Decreto-Lei 4.657, de 04.09.42. Ibidem, p. 23.
257
GARCIA, Emerson; ALVES; Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 103.
258
Ibidem, p. 102.
82
PARTE III
A PROBIDADE, O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E OS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
CAPÍTULO 6
A TUTELA DA PROBIDADE: ORIGEM E EVOLUÇÃO
Uma vez estabelecido o alcance do direito/dever de probidade, impõe-se
breve exame da evolução da proteção que lhe foi conferida no âmbito nacional.
A proteção da probidade dos atos estatais passou por marcante evolução,
devido ao reconhecimento que lhe empresta a Carta Magna, ao erigi-la à condição
de direito fundamental difuso.
Historicamente, o ordenamento jurídico brasileiro dedicou, de forma
tímida, alguns dispositivos à proteção da probidade, embora sem o expresso
reconhecimento desta como dever de todo agente estatal, mas, inserto como objeto
tutelado, ao rechaçar a prática da corrupção. No passado, a tutela da probidade dos
atos estatais no Brasil restringia-se a coibir as condutas que acarretavam dano ao
erário e, principalmente, o recebimento indevido de vantagem.259
Retroagindo às Ordenações Filipinas,260 vigentes no Brasil juntamente
com leis extravagantes, de 1603 até 1916 encontra-se a proibição de recebimento
de vantagens pelos Julgadores e Oficiais da Justiça e da Fazenda para si, para os
filhos, ou quaisquer outras pessoas que estivessem sob sua dependência,
estabelecendo-se, como punição, a perda do ofício e, ainda, a condenação ao
pagamento de vinte vezes o valor recebido indevidamente, cabendo a metade ao
acusador e a outra parte ao próprio Estado.
259
Em verdade, a grande preocupação limitava-se a sancionar a corrupção, entendida como
obtenção de benesse incabível para a prática de ato ou abstenção quando era devida à ação, em
razão das atividades estatais exercidas.
260
Ordenações
Filipinas,
Título
LXXI,
do
Livro
V.
Disponível
em:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1218.htm>. Acesso em: 20/05/2008.
83
No âmbito da Constituição de 1824, embora ainda bastante incipiente, é
possível detectar, no artigo 133,261 a previsão de responsabilização dos Ministros de
Estado por atos que evidentemente representavam violação ao dever de probidade.
Nos termos do artigo 134 da referida Constituição262, coube à Lei
ordinária, publicada em 15 de outubro de 1827263, a disciplina do procedimento
visando à aplicação de sanções, uma vez identificada a ocorrência de uma das
condutas elencadas no citado artigo 133. A imputação iniciava-se na Câmara dos
Deputados e, uma vez considerada sua viabilidade, a mesma era remetida ao
Senado, para julgamento. Merece registro a previsão de indenização ao lesado, a
ser pleiteada na justiça comum.
Ainda
durante
o
período
imperial,
a
Constituição
estabeleceu
responsabilização de todos os Juízes de Direito e “Officiais de Justiça”, ex vi do
artigo 156,264 sem dúvida, visando a resguardar a probidade. A observância dos
deveres impostos aos agentes era reconhecida, desde aquela época, como direito
de todo o cidadão a buscar a reprimenda, através da “acção popular” (artigo 157),265
uma vez constatado o descumprimento.
A responsabilidade estendia-se aos empregados públicos na medida em
que eram
261
“Art. 133. Os Ministros de Estado serão responsaveis
I. Por traição.
II. Por peita, suborno, ou concussão.
III. Por abuso do Poder.
IV. Pela falta de observancia da Lei.
V. Pelo que obrarem contra a Liberdade, segurança, ou propriedade dos Cidadãos.
VI.
Por
qualquer
dissipação
dos
bens
publicos.” Disponível
em:
<http://www.presidência.gov.br/legislação>. Acesso em: 20/05/2008.
262
“Art. 134. Uma Lei particular especificará a natureza destes delictos, e a maneira de proceder
contra elles”. Ibidem.
“Art. 135. Não salva aos Ministros da responsabilidade a ordem do Imperador vocal, ou por
escripto.” Ibidem.
263
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 3 ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris Editora, 2006, p. 174.
264
“Art. 156. Todos os Juizes de Direito, e os Officiaes de Justiça são responsaveis pelos abusos de
poder, e prevaricações, que commetterem no exercicio de seus Empregos; esta responsabilidade se
fará effectiva por Lei regulamentar.” Ibidem.
265
Art. 157. Por suborno, peita, peculato, e concussão haverá contra elles acção popular, que poderá
ser intentada dentro de anno, e dia pelo proprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a
ordem do Processo estabelecida na Lei.” Ibidem.
84
“...strictamente responsaveis pelos abusos, e omissões praticadas no
exercicio das suas funcções, e por não fazerem effectivamente responsaveis
aos seus subalternos.”266, sendo facultado a todo o cidadão “...apresentar
por escripto ao Poder Legislativo, e ao Executivo reclamações, queixas, ou
petições, e até expôr qualquer infracção da Constituição, requerendo perante
267
a competente Auctoridade a effectiva responsabilidade dos infractores.”
No primeiro texto constitucional do período Republicano – 1891 – previase como crime de responsabilidade do Chefe do Estado a inobservância do dever de
probidade da administração.268. No tocante aos demais agentes estatais, a norma
referente à responsabilização, inserta na constituição anterior, restou praticamente
reproduzida no artigo 82 da referida Carta.269
Durante a vigência da Constituição de 1934, o descumprimento do dever
de probidade igualmente configurava crime de responsabilidade do Presidente da
República, nos termos do artigo 57, f, e dos Ministros de Estado, da Corte Suprema
e dos Juízes federais, por força da extensão constante, respectivamente, dos artigos
61, 75 e 76, c, do referido texto.
A proteção da probidade não se restringia ao dispositivo referido. Extraise de algumas normas constantes da Carta de 1934 a certeza de que o dever de
probidade era princípio encampado pela Lei Maior, a ser observado por todos os
agentes estatais e um direito do cidadão, embora através de instrumentos ainda
insuficientes. A esse respeito, cumpre assinalar a permissão contida no artigo 113,
10, destinada a qualquer do povo para representar com o fim de noticiar abusos das
autoridades e promover-lhes a responsabilidade; o direito do cidadão de obter
esclarecimento referente às atividades públicas, salvo na hipótese de sigilo (art. 113,
35); e, a fortiori, a possibilidade de pleitear a declaração de nulidade ou anulação
266
Cf.
artigo
179,
inciso
XXIX,
da
Constituição
de
1824.
Disponível
em:
<http://www.presidência.gov.br/legislação>. Acesso em: 20/05/2008.
267
Cf. artigo 179, inciso XXX, da Constituição de 1824. Ibidem.
268
Cf.
artigo
54,
6º,
da
Constituição
de
1891.
Disponível
em:
<http://www.presidência.gov.br/legislação>. Acesso em: 20/05/2008.
269
“Art 82 - Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que
incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não
responsabilizarem efetivamente os seus subalternos. Parágrafo único - O funcionário público obrigarse-á por compromisso formal, no ato da posse, ao desempenho dos seus deveres legais.”
85
dos atos lesivos ao patrimônio público (atual Ação Popular), inserta no mesmo artigo
no item 38).270
Havia ainda, no artigo 170, 9º271, a possibilidade de perda do cargo pelo
funcionário público que atuasse com abuso, mediante pressão aos subordinados,
com fim político. Vislumbra-se aqui também hipótese concreta de responsabilização
pela inobservância do dever de probidade, sem prejuízo do dever de ressarcimento
ao lesado, pelos prejuízos causados, de forma solidária com o ente público (artigo
171)272.
Sob a égide da Constituição de 1937, a probidade administrativa
permaneceu tutelada, acrescida da guarda e emprego dos recursos públicos, como
objeto de crimes de responsabilidade, constantes do artigo 85, d. Por analogia,
embora não explicitado, a probidade encontrava-se protegida através da
responsabilização dos funcionários públicos em geral, disciplinada no artigo 158.273
Outrossim, como corolário do princípio republicano, que exige a fiscalização, era
270
“Art.113- ...
10)- É permitido a quem quer que seja representar, mediante petição, aos Poderes Públicos,
denunciar abusos das autoridades e promover-lhes a responsabilidade.
...
35) A lei assegurará o rápido andamento dos processos nas repartições públicas, a comunicação
aos interessados dos despachos proferidos, assim como das informações a que estes se refiram, e a
expedição das certidões requeridas para a defesa de direitos individuais, ou para esclarecimento dos
cidadãos acerca dos negócios públicos, ressalvados, quanto às últimas, os casos em que o interesse
público imponha segredo, ou reserva. (...) 38) Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a
declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos
Municípios.” Disponível em: <http://www.presidência.gov.br/legislação>. Acesso em: 20/05/2008.
271
“Art 170 - O Poder Legislativo votará o Estatuto dos Funcionários Públicos, obedecendo às
seguintes normas, desde já em vigor: (...) 9º) o funcionário que se valer da sua autoridade em favor
de Partido Político, ou exercer pressão partidária sobre os seus subordinados, será punido com a
perda do cargo, quando provado o abuso, em processo judiciário;” Ibidem.
272
“Art 171 - Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional,
estadual ou municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no
exercício dos seus cargos.
§ 1º - Na ação proposta contra a Fazenda pública, e fundada em lesão praticada por funcionário,
este será sempre citado como litisconsorte.
§ 2º - Executada a sentença contra a Fazenda, esta promoverá execução contra o funcionário
culpado.” Ibidem.
273
“Art 158 - Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional,
estadual ou municipal por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no
exercício dos seu cargos.” Ibidem.
86
assegurado a todo o cidadão, por força da norma contida no artigo 122, 7),274 o
direito de representação em defesa dos interesses da coletividade.275
A Constituição de 1946 deu continuidade à proteção da probidade, sob
pena de incidência do crime de responsabilidade (artigo 89, V) e inovou ao
introduzir, no artigo 141, § 31, “...o seqüestro e o perdimento de bens, no caso de
enriquecimento ilícito, por influência ou com abuso de cargo ou função pública, ou
de emprego em entidade autárquica”.
No entanto, na ótica de Pontes de Miranda,276 a falta da lei para
regulamentar o procedimento para implementação da inovação e a ausência da
“actio popularis”, como instrumento para concretização do perdimento, “com
percentagem de prêmio ao denunciante e julgamento pelo júri” seria (...)”difícil fazer
o país voltar àquela nascente tradição.”277
A despeito da acertada crítica, o texto de 1946 manteve, no artigo 141, §
36, o direito de informações em relação às atividades administrativas, com ressalva
para as questões sigilosas; o direito de representação contra abuso das autoridades
e a conseqüente promoção da responsabilidade (141, § 37) e a possibilidade do
274
“Art. 122-(. ..) 7º) o direito de representação ou petição perante as autoridades, em defesa de
direitos ou do interesse geral;” Disponível em: <http://www.presidência.gov.br/legislação>. Acesso
em: 20/05/2008.
275
Embora no campo penal, sob a égide da Constituição de 1937, entrou em vigor o D.L. 3240/41,
com o fim de regulamentar o seqüestro dos bens de pessoa indiciada por crime no qual houvesse
dano ao erário ou na hipótese de enriquecimento ilícito pela prática dos crimes previstos no livro II
(crimes em espécie), Títulos V, VI e VII, da Consolidação das Leis Penais, a saber: Título V — Dos
crimes contra a boa ordem e administração pública — Capítulo único — Das malversações, abusos e
omissões de funcionários públicos, distribuído em sete seções: prevaricação, falta de exação no
cumprimento do dever, peita ou suborno, concussão, peculato, excesso ou abuso de autoridade e
usurpação de funções públicas e irregularidade de comportamento; Título VI — Dos crimes contra a
fé pública, com dois capítulos, o primeiro sobre moeda falsa e o segundo tratando das falsidades em
quatro seções (da falsidade dos títulos e papéis de crédito dos governos federal e estaduais e dos
bancos, falsidade de certificados, documentos e atos públicos, falsidade de documentos e papéis
particulares e de testemunho falso, das declarações, das queixas e denúncias falsas em juízo); Título
VII — Dos crimes contra a fazenda pública, aliás, dispondo sobre um só — o contrabando, em um
capítulo único. Ibidem.
276
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. vol. V, Rio de
Janeiro: Borsoi, 1960, p. 360.
277
O Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos elaborado em conjunto nos programas
de pós-graduação stricto sensu da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da
Universidade Estácio de Sá (UNESA) tem previsão similar em seu artigo 13 § 3º, quando estabelece
que: § 3o. Se o legitimado for pessoa física, sindicato ou associação, o juiz poderá fixar gratificação
financeira quando sua atuação tiver sido relevante na condução e êxito da ação coletiva. In:
GRINOVER, Ada Pelegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (Coord).
Direito Processual Coletivo e o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007, p. 440.
87
pleito, por qualquer cidadão, da anulação ou declaração de nulidade dos atos lesivos
ao patrimônio público dos entes da administração direta e indireta (artigo 141, §
38).278
Tais instrumentos, ainda que pouco suficientes, constituem embriões da
proteção à probidade imposta pela Carta atual e regulamentada pela Lei de
Improbidade Administrativa.
Cumpre acrescentar que, durante a vigência da Constituição de 1946, foi
editada a lei 3.164/57, denominada Lei Pitombo-Godói Ilha, que determinava o
seqüestro de bens ilicitamente auferidos por agentes públicos, em decorrência de
abuso no exercício do cargo ou função pública. Essa disciplina foi introduzida pelo
citado artigo 141, § 31 da Lei Maior – cuja legitimidade para deflagração incumbia ao
Ministério Público ou a qualquer do povo, segundo o artigo 1º, § 2º (“O processo
será promovido por iniciativa do Ministério Público ou de qualquer pessoa do
povo”).279
A partir do diploma legal em comento, foi instituído o registro público
obrigatório dos bens que integravam o patrimônio dos ocupantes dos cargos ou
funções públicas, eletivas ou não, a ser atualizado bienalmente, abrangendo
também os bens do cônjuge.
Como assevera Emerson Garcia280, a Lei 3.164/57 não alcançou a
efetividade esperada e necessária, diante da complexidade da demonstração do
nexo de causalidade entre a aquisição do bem e a influência ou abuso do cargo ou
função.
Decorrido pouco mais de um ano, entrou em vigor a Lei 3.502/1958,
conhecida como Lei Bilac Pinto, com o mesmo propósito de regulamentar o “o
seqüestro e o perdimento de bens nos casos de enriquecimento ilícito, por influência
ou abuso do cargo ou função”, explicitando os sujeitos ativos por ela abarcados.
278
“Art. 141- (...) § 36- A lei assegurará: I. ( ...) IV- a expedição das certidões requeridas para
esclarecimento de negócios administrativos, salvo se o interesse público impuser sigilo.
§ 37 - É assegurado a quem quer que seja o direito de representar, mediante petição dirigida aos
Poderes Públicos, contra abusos de autoridades e promover a responsabilidade delas.
§ 38 - Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de
atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados, dos Municípios, das entidades autárquicas e das
sociedades de economia mista.” Disponível em: <http://www.presidência.gov.br/legislação>. Acesso
em: 20/05/2008.
279
G ARCI A, Em erson; ALVES, Rogéri o Pach ec o. Improb id ade Adm inist rat iva.
I bi dem , p. 176.
280
Ibidem, p. 176.
88
De acordo com a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, no
REsp. 255.861/SP,281 emprestou-se à referida legislação o papel de instrumento de
proteção à moralidade (na qualidade de aspecto da probidade).
A Lei Bilac Pinto apresentou, exemplificativamente, as condutas que se
enquadravam no conceito de enriquecimento ilícito (artigo 2º) e autorizavam o
seqüestro e perda dos bens.
Conquanto este estatuto legal não explicitasse a
legitimidade do Ministério Público para a propositura da ação, somente apontando a
possibilidade de sua intervenção durante a tramitação, sempre se considerou o
Parquet legitimado à ação civil de seqüestro e perda de bens, em face do servidor
público e demais sujeitos definidos nos artigos 1º, 3º e 4º, parágrafo único).282
A esse respeito, não se pode deixar de registrar a previsão da reparação
de eventuais danos causados à pessoa jurídica lesada (artigo. 5º, § 5º) e a
equiparação das condutas caracterizadoras do enriquecimento ilícito aos crimes
contra a Administração Pública (artigo 4, caput).
Embora, à época a limitação à perda de bens representasse um avanço,
na prática, não foram observados significativos resultados.
Já na Constituição da República de 1967 e posterior redação introduzida
pelo Ato Institucional nº 14, de 1969, além da previsão do crime de responsabilidade
(artigo 84, v), a conduta contra a probidade administrativa foi incluída entre causas
de inelegibilidade, cabendo à lei explicitar as hipóteses aí contidas (artigo 148, inciso
II).283
281
Eis a ementa: “Administrativo. Ações Civis Públicas Conexas. Ação Cautelar de Sequestro.
Improcedência do Pedido e Extinção do Processo. Julgamento do Mérito. ELETROPAULO. Conceito
Ampliado de Servidor Público. C.F., art. 37. CPC, Artigos 269, I, 515 e §§ 1º e 2º - Lei 3502/58 (art.
1º, § 2º). 1. O Tribunal, apreciando apelação, com o sinete revisional, pode julgar procedente o
pedido inicial (art. 515, §§ 1º e 2º, CPC). Não ocorrência de contrariedade ou negativa de vigência ao
artigo 269, I, CPC (ART. 105, III, a, C.F.). 2. Os empregados ou dirigentes de concessionária de
serviço público também estão sob as ordenanças do "princípio de moralidade", escudo protetor dos
interesses coletivos contra a lesividade. As leis surgem de fatos reais que não podem ser ignorados
na interpretação e aplicação do texto legal editado com aquela finalidade. 3. Recurso sem
provimento.” Rel. Min. MILTON LUIZ PEREIRA, julgado em 26/06/2001, DJ 22/10/2001. Disponível
em: <http://stj.gov.br>. Acesso em 10/05/2008.
282
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa Ibidem, p. 177.
283
“ Art 148 - A lei complementar poderá estabelecer outros casos de inelegibilidade visando à
preservação:
I - do regime democrático;
II - da probidade administrativa;
89
Ora, a inserção da proteção da probidade no mesmo patamar da defesa
intransigente do regime democrático, como causa de inelegibilidade, denota a
relevância do princípio em tela, uma vez que esse é o conteúdo do padrão de
conduta imposta a todos, mas, primordialmente àqueles que pretendessem ocupar
cargo eletivo, no exercício da representação do Poder popular.
A probidade também se encontrava resguardada através da manutenção
da perda dos bens, diante do enriquecimento ilícito do servidor, estendida, ainda, à
ocorrência de dano ao erário, ex vi do artigo 150, § 11,284 bem como pelo direito de
fiscalização popular direta, através da Ação Popular, expressamente inserida no §
31 do mesmo artigo.
Insta consignar que, independentemente do crime de responsabilidade,
ou dos demais escudos jurídicos da probidade administrativa, a Carta Política
estabeleceu, no artigo 151285, severa punição a quem atentasse contra a ordem
democrática ou praticasse corrupção, a ser imposta pelo Supremo Tribunal Federal,
mediante provocação do Procurador-Geral da República, inclusive para os
detentores de mandato eletivo.
Nesta seara, a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, a despeito de
algumas alterações redacionais, manteve o sistema de proteção do princípio da
probidade: crime de responsabilidade (artigo 82, V); causa de inelegibilidade (artigo
III - da normalidade e legitimidade das eleições, contra o abuso do poder econômico e do exercício
dos cargos ou funções públicas. “Disponível em: <http://www.presidência.gov.br/legislação>. Acesso
em: 20/05/2008.
284
“Art. 150-...
§ 11 - Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco, salvo nos casos
de guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei
determinar. Esta disporá também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao Erário, ou no
caso de enriquecimento ilícito no exercício de cargo, função ou emprego na Administração Pública,
Direta ou Indireta.”.
...
§ 30 - É assegurado a qualquer pessoa o direito de representação e de petição aos Poderes
Públicos, em defesa de direitos ou contra abusos de autoridade.
§ 31 - Qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise a anular atos
lesivos ao patrimônio de entidades públicas.” Ibidem.
285
“Art 151 - Aquele que abusar dos direitos individuais previstos nos §§ 8º, 23. 27 e 28 do artigo
anterior e dos direitos políticos, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção,
incorrerá na suspensão destes últimos direitos pelo prazo de dois a dez anos, declarada pelo
Supremo Tribunal Federal, mediante representação do Procurador-Geral da República, sem prejuízo
da ação civil ou penal cabível, assegurada ao paciente a mais ampla defesa.
Parágrafo único - Quando se tratar de titular de mandato eletivo federal, o processo dependerá de
licença da respectiva Câmara, nos termos do art. 34, § 3º.” Disponível em:
<http://www.presidência.gov.br/legislação>. Acesso em: 20/05/2008.
90
151, II); o perdimento dos bens, para as hipóteses de enriquecimento ilícito e dano
ao erário (artigo 153, § 11); direito de representação e petição contra abusos de
autoridades (artigo 153, § 30); Ação Popular para anulação dos atos lesivos ao
patrimônio público (artigo 153, § 31) e suspensão dos direitos políticos,
independentemente das sanções nos demais planos (artigo 154 e parágrafo
único).286
A Constituição da República de 1988 representou significativa guinada no
cenário nacional, no sentido de reforçar os pilares da República e do Estado
Democrático de Direito – já implementados em vários países – instituindo novos
instrumentos e reclamando releitura de outros, a partir do novo fundamento calcado
nos valores explicitados de imediato na abertura do texto, de forma a assegurar
efetividade ao modelo adotado e aos valores a ele imanentes, como novo paradigma
a orientar as relações dos indivíduos entre si e com o Estado.
Exatamente a partir desta novel perspectiva, conferiu-se à probidade
administrativa um olhar mais vigilante, de forma a que não pairassem dúvidas
quanto à sua relevância como núcleo fundamental a ser resguardado, através da
instrumentalização
desses
valores
constitucionais
que
exigem
não
só
a
conformidade das demais produções legislativas infraconstitucionais como também a
de todos os atos administrativos e judiciais, no contexto do Estado Democrático de
Direito.
286
“Art. 151. Lei complementar estabelecerá os casos de inelegibilidade e os prazos nos quais
cessará esta, com vistas a preservar, considerada a vida pregressa do candidato:
I - o regime democrático;
II - a probidade administrativa;” Disponível em: <http://www.presidência.gov.br/legislação>. Acesso
em: 20/05/2008.
“Art. 153, § 11 - ... A lei disporá sobre o perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso
de enriquecimento no exercício de função pública.
§ 30. É assegurado a qualquer pessoa o direito de representação e de petição aos Podêres Públicos,
em defesa de direito ou contra abusos de autoridade.
§ 31. Qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivos
ao patrimônio de entidades públicas.”
“Art. 154. O abuso de direito individual ou político, com o propósito de subversão do regime
democrático ou de corrupção, importará a suspensão daqueles direitos de dois a dez anos, a qual
será declarada pelo Supremo Tribunal Federal, mediante representação do Procurador Geral da
República, sem prejuízo da ação cível ou penal que couber, assegurada ao paciente ampla defesa.
Parágrafo único. Quando se tratar de titular de mandato eletivo, o processo não dependerá de
licença da Câmara a que pertencer.” Ibidem.
91
Em face do exposto, a proteção da probidade encontra-se direta e
indiretamente ordenada sistematicamente em distintos dispositivos constitucionais, a
saber:
a) diretamente:
a.1) como critério balizador para fixação das causas de inelegibilidade,
ex vi do artigo 14, § 9º, na medida em que, atuando como um dos alicerces da
democracia, é conditio sine qua non para o exercício do Poder pelos delegatórios,
originalmente titularizado pelo povo; 287
a.2) Como conseqüência lógica, encontra-se disciplinada no mesmo
artigo, § 10, a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, inclusive contra a escolha
da maioria;288
a.3) como hipótese para a suspensão dos direitos políticos, inserta no
artigo 15, inciso V.289 No caso, o Poder Constituinte originário não se limitou a exigir
a probidade para preenchimento de cargos eletivos, como previsto no item anterior.
Em verdade, foi além. O agente ímprobo não poderá participar de um dos direitos
mais relevantes do regime democrático, consubstanciado no sufrágio universal,
sendo forçosamente excluído do processo de escolha, tamanha a grandeza
atribuída ao dever de probidade;
287
“Art 14, § 9º. Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua
cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato
considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a
influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na
administração direta ou indireta. § 10 - O mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça
Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso do
poder econômico, corrupção ou fraude. BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA. In: NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Constituição Federal
Comentada e Legislação Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.190.
288
A observância do princípio da probidade é, pois, uma das hipóteses em que o princípio da maioria
cede em favor da observância do regime democrático, substancialmente considerado.
289
“Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos
casos de:
I - cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado;
II - incapacidade civil absoluta;
III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;
IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º,
VIII;
V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.” Ibidem, p. 191.
92
a.4) ao prever, no artigo 37, § 4º, as sanções decorrentes do ato de
improbidade, cuja gravidade permite também identificar a relevância do direito
protegido, inclusive com o afastamento da prescrição para a reparação dos danos
causados ao erário, vale dizer, à coletividade (artigo 37, § 5);290
a.5) ao possibilitar a qualquer cidadão, partido político, associação ou
sindicato a formulação de representação ao Tribunal de Contas, noticiando
irregularidade referente ao patrimônio público (artigo 74, § 2º).291
b) indiretamente:
b.1) o direito ao recebimento de informações dos órgãos públicos de
interesse coletivo ou geral, ressalvado o sigilo, constitui uma das formas de
fiscalização direta por qualquer do povo da probidade, previsto no artigo 5º, inciso
XXXIII;
b.2) No mesmo sentido, no artigo 5º, inciso XXXIV, letra a), o direito de
petição contra ilegalidades ou abuso de poder que podem configurar violação ao
dever de probidade;
b.3) o instrumento do Mandado de Segurança Coletivo, constante
também do mesmo artigo, inciso LXIX, é, sem dúvida, outro instrumento de reforço
à defesa da probidade;
b.4) igualmente, a Ação Popular, inserta no inciso LXXIII, é um
evidente mecanismo de exercício do direito fundamental a uma administração
proba;292
290
“Art. 37- (...) § 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos
políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na
forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
§ 5º - A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor
ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.” Ibidem,
p213.
291
“Art. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de
controle interno com a finalidade de:
...
§ 2º Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para , na forma da
lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União” Ibidem, p. 260.
292
“Art. 5º...
93
b.5) os princípios insculpidos no artigo 37, caput, impostos a quaisquer
poderes da União, Estado e Município;
b.6) o direito a informações referentes ao serviços públicos e a
conseqüente possibilidade de reclamação face à inobservância do dever de
eficiência no exercício dos atos estatais (artigo 37, § 3º, incisos I e II);
b.7) a possibilidade de representação “contra o exercício negligente ou
abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública” (artigo 37, § 3º,
inciso III);293
Como corolário do sistema de proteção à probidade, acima apontado,
entrou em vigor a Lei 8.429, de 02 de junho de 1992.
A probidade administrativa, à qual todo o agente público e político está
adstrito, consiste no dever de atuar com honestidade, lealdade e moralidade perante
a administração e, primordialmente, frente à coletividade, detentora originária do
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular,
ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade,
ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso
de poder;
...
LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado
por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for
autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;
LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
a) partido político com representação no Congresso Nacional;
b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em
funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;
...
LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo
ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio
ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de
custas judiciais e do ônus da sucumbência;” . Ibidem, p. 126-128.
293
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e
indireta, regulando especialmente:
I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a
manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da
qualidade dos serviços;
II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo,
observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII;
III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou
função na administração pública.” Ibidem, p. 212-213.
94
Poder que a ele é legalmente concedido, no exercício das atividades próprias do
cargo ou função. A violação desse postulado configura ato de improbidade, posto
que atentatório à moralidade pública.
Como não se ignora, a Lei nº 8.429/92, que dispõe sobre as sanções
aplicáveis aos agentes públicos lato sensu, no exercício de mandato, cargo,
emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional foi
editada para dar efetividade ao preceito do art. 37, § 4º, da Constituição Federal,
segundo o qual “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos
direitos políticos, da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento
ao erário na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.
Referido diploma legal, marco no combate à corrupção em nosso país,
cuidou de tipificar, de forma exemplificativa, atos que ferem a probidade na
condução dos atos estatais, dividindo-os em três grandes grupos, a saber: a) os atos
de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito (art. 9º); b) os
atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário (art. 10); e c) os
atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da
administração pública (art. 11).
Justifica-se a posição do legislador ao tipificar a violação aos princípios
que regem a administração pública, erigindo aquela à categoria de ato de
improbidade administrativa (art. 11), na medida em que referidos princípios
apresentam-se na condição de mandamentos normativos nucleares e superiores do
sistema jurídico, os quais orientam e direcionam a elaboração das regras
jurídicas.294
Coube ao estatuto legal em comento definir os sujeitos passivos e ativos,
bem como as regras referentes à deflagração e tramitação da Ação de Improbidade.
Foi ainda estabelecido, no artigo 13, o dever de apresentação da declaração de
294
Celso Antônio Bandeira de Mello ressalta a importância basilar dos princípios ao asseverar que
”violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao
princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema
de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do
princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores
fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto
porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura neles esforçada”.
Vide referido autor in: Curso de Direito Administrativo. 25 ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 943.
95
bens e valores que integram o patrimônio do agente estatal, do cônjuge ou
companheiro, filhos e das demais pessoas que dele sejam economicamente
dependentes, a ser atualizada anualmente. A exigência em questão encontra-se
também prevista na Lei 8.730, de 10.11.93, cujo conteúdo “estabelece a
obrigatoriedade da declaração de bens e rendas para o exercício de cargos,
empregos e funções nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário(...)”.295 Apesar
de se tratar de ato normativo dirigido aos agentes públicos da União, o conteúdo do
mesmo deve ser estendido aos demais agentes estatais, vale dizer, do Estado e do
Município.296
Essa
imposição
constitui
instrumento
para
fiscalizar
eventual
enriquecimento ilícito, um dos sinais mais corriqueiros da prática do ato de
improbidade, através da modalidade comumente identificada como corrupção.
Destina-se, pois, a dar efetividade ao direito de fiscalização da observância do dever
de probidade.
Não obstante a seriedade do dever em questão e a gravidade da sanção
imposta ante eventual descumprimento, qual seja, a pena de demissão, a realidade
vem demonstrando que grande número de servidores limitam-se a apresentar a
declaração no momento da investidura no cargo, deixando de atualizá-la
anualmente. Além disso, em geral, os órgãos que devem receber as informações
patrimoniais dos agentes não estão, por ora, suficientemente aparelhados para a
realização de real acompanhamento e, com isso, concretizar a fiscalização
desejada.
No plano internacional, a corrupção – uma das formas de violação à
probidade administrativa – tem merecido atenção através de sucessivas edições
normativas que disciplinam a matéria. Neste sentido, merecem destaque: a
Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional
(dezembro de 1999);297 a Convenção Internamericana contra a Corrupção (março de
295
BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. Lei 8.730, de 10.11.93. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8730.htm>. Acesso em 05/.06/2008.
296
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 124.
297
Assinada pelo Brasil e aprovada pelo Decreto Legislativo, nº 231, de 29/05/2003, e promulgada
pelo Decreto 5.015, de 12/03/2004.
96
1996);298 a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos
Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (dezembro de 1997)299 e
Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (dezembro de 2003, também
conhecida como “convenção de Mérida”).300
298
Assinada pelo Brasil e aprovada pelo Decreto Legislativo, nº 152, de 25/06/2002, e promulgada
pelo Decreto nº 4.410, de 07/10/2002.
299
Assinada pelo Brasil e aprovada pelo Decreto Legislativo nº 125, de 14/06/2000, e promulgada
pelo Decreto nº 3678, de 30/11/2000.
300
Assinada pelo Brasil e aprovada pelo Decreto Legislativo nº 348, de 18/05/2005, Decreto 5.687, de
31/01/2006.
Disponível
em:
<http://www.cgu.gov.br/AreaPrevencaoCorrupcao/ConvencoesInternacionais>.
Acesso
em
26/06/2008.
97
CAPÍTULO 7
OS DESTINATÁRIOS DO DEVER DE PROBIDADE
Com o intuito de assegurar efetividade à democracia em sentido
material301é que se reconhece o cabimento do exame judicial de todas as condutas
dos agentes públicos lato sensu, sem que esta assertiva importe, no tocante à
parcela destes agentes, em um confronto com o princípio da maioria. Como bem
assinalou Rogério José Bento Soares do Nascimento302, esse constitui a roupagem
moderna do clássico postulado da separação dos poderes.
Nesse passo, a observância do dever de probidade abrange os agentes
públicos lato sensu303 e as demais pessoas incluídas por força do conceito
estabelecido nos artigos 1º e 2º da Lei de Improbidade Administrativa – Lei
8.429/92.304
No tocante ao agente público stricto sensu, a doutrina e a jurisprudência
em uníssono admitem a integral aplicação da Lei de Improbidade, na medida em
que não o reconhecem como parcela do Poder Estatal, razão pela qual não haveria,
nem mesmo em tese, o possível risco de conflito com o postulado da separação dos
poderes.305
301
Também denominada de democracia substancial que, segundo Norberto Bobbio, está ligada ao
ideário da igualdade. Vide o referido autor in: Dicionário de Política, vol. II, p. 328.
302
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. “Improbidade Legislativa”. In: SAMPAIO, José
Adércio Leite et al (org.). Improbidade Administrativa: 10 anos da Lei n. 8.429/92. Ibidem, p.413.
303
Os agentes públicos abarcam os agentes políticos; servidores estatais (inclusive das pessoas
jurídicas de direito privado da Administração Indireta); particulares que exerçam atividades em
colaboração com o Poder Público; MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito
Administrativo. Ibidem, p. 245.
304
Ao julgar o Recurso Especial – Resp nº 416329-RS, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu
que “são sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa, não só os servidores públicos, mas
todos aqueles que estejam abrangidos no conceito de agente público, insculpido o art. 2º, da Lei nº
8.429/92(...)”. Relator Min. LUIZ FUX, Julgado em 13/08/2002, DJ 23/09/2002.
305
Não se inclui dentro dos objetivos deste Estudo o exame minucioso da Lei de Improbidade e, sim,
a identificação de alguns efeitos a partir do reconhecimento de que o direito de exigir que o exercício
dos atos dos agentes públicos devem observar o princípio da probidade constitui direito fundamental
difuso. Por esta razão, não avançaremos no exame do sujeito passivo dos atos de improbidade.
98
Contudo, não parece tão simples acatar a idéia de que o alcance da Lei
de Improbidade limita-se aos agentes públicos em sentido estrito, apenas porque
não se vislumbra conteúdo político306 nos atos praticados por estes agentes.
A Lei de Improbidade Administrativa, ao conceituar – no artigo 2º307 – os
agentes alcançados pelo dever de probidade, expressamente, incluiu o “titular de
mandato”, possibilitando, com isso, a responsabilização do detentor de cargo eletivo
(nos Poderes Executivo e Legislativo), não obstante a sua condição de agente
político.308
306
309
Agente políticos, segundo Celso Antonio Bandeira de Mello “são os titulares dos cargos estruturais
à organização política do País, ou seja, ocupantes dos que integram o arcabouço constitucional do
Estado, o esquema fundamental do Poder. Vide referido autor in: Curso de Direito Administrativo.
Ibidem, p. 245.
307
“Art. 2º. Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que
transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer
outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades
mencionadas no artigo anterior.” BRASIL. Lei 8.429, de 02.06.1992. In: NERY JUNIOR, Nelson;
ANDRADE NERY, Rosa Maria. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. Ibidem,
p. 759.
308
Acerca do tema, Juarez Freitas admite a aplicação da Lei de Improbidade Administrativa aos
agentes políticos em geral, “consoante a dicção elástica do art. 2º(...)”. Vide referido autor in: ”Do
Princípio da Probidade Administrativa e de sua Máxima Efetivação”. Ibidem. No mesmo diapasão,
Adilson de Abreu Dallari manifestou-se favoravelmente ao cabimento da ação (embora negue a
possibilidade de afastamento temporário do cargo no curso da Ação de Improbidade). Vide referido
autor in: “Limitações à Atuação do Ministério Público na Ação Civil Pública”. In: Improbidade
Administrativa: questões polêmicas e atuais. BUENO, Cassio Scarpinella; PORTO FILHO, Pedro
Paulo de Rezende (coord.). São Paulo: Malheiros, 2001, p.39. Este é também o entendimento de
Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo e Augusto Neves Dal Pozzo. “Afastamento de Prefeito Municipal no
Curso de Processo Instaurado por Prática de Ato de Improbidade Administrativa”. In: Improbidade
Administrativa: questões polêmicas e atuais. BUENO, Cassio Scarpinella; PORTO FILHO, Pedro
Paulo de Rezende (coord.). São Paulo: Malheiros, 2001, p.78.
309
O Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, reconheceu que “o sistema constitucional
brasileiro distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos dos demais agentes públicos.
A Constituição não admite a concorrência entre dois regimes de responsabilidade políticoadministrativa para os agentes políticos: o previsto no artigo 37, § 4º (regulado pela Lei 8.429/1992) e
o regime fixado no art. 101, I, “c”,(disciplinado pela Lei 1.079/1950)”. No mérito ficaram vencidos os
Ministros Marco Aurélio, Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.
Relator, Min. NELSON JOBIM, julgado em 13/06/2007, publicada no DJ em 18/04/2008. Merece ser
registrado que o referido “Tribunal, por maioria, resolvendo questão de ordem suscitada em petição,
firmou sua competência para julgar ação por ato de improbidade administrativa ajuizada contra atual
Ministro do STF, à época Advogado-Geral da União, e outros, na qual se lhe imputam a suposta
prática dos crimes previstos nos artigos 11, I e II, e 12, III, da Lei 8.429/92. Reportando-se à
orientação fixada pela Corte na Rcl 2138/DF (pendente de publicação), entendeu-se que distribuir
competência para juiz de 1º grau para julgamento de ministro da Corte quebraria o sistema judiciário
como um todo. Os Ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello fizeram ressalvas.
Vencido, no ponto, o Min. Marco Aurélio, relator, que, na linha de seu voto na citada reclamação, e
salientando estar definida a competência do Supremo de forma exaustiva na Constituição (art. 102),
considerava ser do juízo da 9ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal a competência para o
processamento e julgamento da ação. Em seguida, o Tribunal, por maioria, determinou o
arquivamento da petição, em relação ao referido Ministro desta Corte, haja vista o fato de ele não
mais ocupar o cargo de Advogado-Geral da União, e a descida dos autos ao mencionado juízo de 1ª
instância, relativamente aos demais acusados. Vencido, também nessa parte, o Min. Marco Aurélio
99
Aliás, com propriedade, Celso Antônio Bandeira de Mello310, ao conceituar
as expressões “função política” ou de “governo” é categórico ao incluir os atos delas
decorrentes como objeto do controle jurisdicional, sob pena de violação dos
princípios imanentes ao Estado de Direito.
E, nesse diapasão, inclui-se a
possibilidade de sindicância dos referidos atos a ser manejada através da Ação de
Improbidade.
Em
Nascimento
verdade,
como
assevera
Rogério
José
Bento
Soares
do
311
, ambos - agentes públicos e políticos – realizam funções políticas e o
maior grau de intensidade e de discricionariedade não os afasta da submissão à
observância da moralidade e, portanto, da probidade.312
A independência entre as instâncias não autoriza a absorção da
responsabilização através da Lei de Improbidade Administrativa pelo campo políticopenal dos crimes de responsabilidade.313
Por certo, o reconhecimento da observância da probidade como direito
fundamental,314associado
ao
princípio
da
proibição
deficiente,
reforça
o
entendimento de que a Lei de Improbidade deve também ser aplicada aos agentes
políticos.
Ademais, as sanções da Lei de Improbidade são evidentemente mais
amplas do que a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de função pública,
previstas na esfera do crime de responsabilidade. 315
que, asseverando tratar-se de ação de natureza cível, tendo em conta a ressalva contida no art. 37, §
4º, da CF, e reconhecendo a independência das esferas cível, penal e administrativa, não extinguia o
feito quanto ao Ministro do STF” Vide Questão de Ordem na Petição nº 3211-DF. Tendo em vista que
o Acórdão ainda não foi publicado, não se pode concluir, com segurança, que o Supremo Tribunal
Federal tenha deliberado expressamente acerca do cabimento da Ação de Improbidade em face dos
seus integrantes, que são agentes políticos. Vide Informativo nº 498. Disponível em
<http://www.gov.br>. Acesso em 07/07/2008.
310
MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. Ibidem, p. 37.
311
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. “Improbidade Legislativa”. Ibidem, p.419.
312
Nessa linha, Jorge Miranda ressalta que “(...) a separação entre governantes e governados deve
ser compreendida não como uma abissal separação de pessoas, mas como uma necessária
separação de funções. Não se trata de qualidades inatas às pessoas, trata-se de funções voltadas
para a prossecução dos fins do Estado”, que, segundo o próprio autor, deve atender às aspirações da
coletividade. Vide o referido autor in: Teoria Geral do Estado e da Constituição. Ibidem, p. 187
313
Rita Tourinho manifesta-se no sentido de que a Lei de Improbidade aplica-se os agentes políticos.
Vide referida autora in: “Os golpes aplicados contra a eficácia da Lei de Improbidade Administrativa e
a proposta de criação do Tribunal Superior da Probidade Administrativa.” In: Revista Interesse
Público”. Nº 47, Belo Horizonte, Fórum, jan/fev/2008, p. 101-118.
314
Essa idéia será examinada em seguida.
315
NEIVA, José Antonio Lisboa. Improbidade Administrativa: estudo sobre a demanda na ação de
conhecimento e cautelar. Ibidem, p. 22.
100
A admissão da harmonia entre a possibilidade do controle jurisdicional de
todos os atos estatais, inclusive dos integrantes do Poder Legislativo, e o respeito à
separação dos poderes requer, em primeiro lugar, a compreensão do exato sentido
do princípio da maioria, no contexto do Estado Democrático de Direito, que lhe
confere especial significado.
Nessa esteira, deve-se esclarecer que o princípio da maioria não se
confunde com o modelo democrático, eis que este é continente, no qual a regra da
maioria está contida, como caminho (técnica de realização)316 para a composição da
representação, apoiada no princípio da igualdade entre os cidadãos.317
Com fundamento nesse princípio, veio a lume o critério da maioria, para
materializar a transferência do exercício de parcela do poder, da mesma forma como
o concurso público o é, em regra,318 para a legitimação do Poder a ser exercido pelo
Judiciário,
Ministério
Público,
Defensoria
e
outras
funções
igualmente
relevantíssimas.
Igualmente em nome da igualdade, adota-se a regra da maioria para a
formação do arcabouço jurídico, em princípio, legitimamente chancelado como
produto, ainda que indireto, da vontade popular.
No entanto, não se empresta à regra da maioria – tão-somente caminho
para concretização da democracia – a função de obstáculo absoluto à judicialização
de eventual ato de improbidade administrativa, decorrente do desvio de finalidade na
prática de atos pelos agentes eleitos. Nesse contexto, a Constituição adquire
relevantíssima função no ordenamento jurídico, atuando, simultaneamente, como
objetivo e limite das normas infraconstitucionais, sujeitas essas ao balizamento
constitucional, como marco de validade.
No modelo democrático, a supremacia da Constituição passa a ocupar o
espaço da soberania do Poder Legislativo.319 Nessa linha de raciocínio, mesmo as
produções legislativas, que emanam de uma das vertentes do atuar estatal, estão
316
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Improbidade Legislativa. Ibidem, p. 414.
Ibidem, p. 414
318
Salvo em algumas hipóteses estabelecidas como para a formação de parte dos Tribunais de
Justiça, Tribunais Superiores, Tribunais de Contas, cujos critérios estão previamente estabelecidos.
319
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Improbidade Legislativa.Ibidem, p. 414.
317
101
vinculadas ao cumprimento do princípio da probidade, cujas normas devem, em
última análise, buscar a promoção do bem de todos.320
Segundo Emerson Garcia,321 “o principal parâmetro de verificação da
adequação da lei ao padrão de probidade que deve reger os atos dos legisladores
consiste na observância do princípio da moralidade (...)”, que deve orientar a
conduta do todos os agentes estatais, inclusive daqueles que participam do
procedimento legislativo”.322
A densidade desse princípio encontra-se encampada em diversas normas
insertas no texto constitucional, podendo ser identificados, além da previsão
expressa no artigo 37, caput,323 os seguintes exemplos: a previsão da Ação Popular
como instrumento para anulação dos atos lesivos à moralidade; a possibilidade de
controle da constitucionalidade concentrado e difuso; a perda do mandato do
Parlamentar em razão da falta de decoro.
Dessa forma, vislumbra-se como perfeitamente viável a sindicabilidade da
real finalidade do ato normativo, de maneira a possibilitar a demonstração de que
sua edição visou a um fim evidentemente imoral e impessoal e, portanto, ímprobo,
320
A partir da premissa fixada, podemos citar como exemplos: a produção da Lei 8.985, de 7 de
fevereiro de 1995, cujo conteúdo, embora tenha formalmente se dirigido aos candidatos com registros
cassados no pleito de 1994, em decorrência das particularidades incluídas, acabou por se restringir
tão-somente a um determinado político, condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (RO 12.244, rel.
Min. Marco Aurélio, RJTSE vol. 7, nº 1, p. 251. Disponível em: <http://www.tse.gov.br>. Acesso em:
10/04/2008) e confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (RE. 186.088/DF, rel, Min. Neri da Silveira,
julgado em 30/11/1994), pela prática de abuso de autoridade. Assim, a nosso sentir, a produção
deste ato legislativo, uma vez perquirido o elemento volitivo que o deflagrou, na qualidade de espécie
de ato estatal, poderia, em tese, configurar ato de improbidade, caso restasse demonstrado, estreme
de dúvidas, que a finalidade, ao contrário de buscar o interesse público, pretendeu, unicamente,
inviabilizar a execução da sanção imposta, sendo, portanto, desprovido aquele de razoabilidade, sem
prejuízo do reconhecimento de sua inconstitucionalidade. Igualmente, a nosso sentir, podemos trazer
ao estudo, para reflexão, as circunstâncias e fins que constituíram a causa determinante da edição da
Lei 9.996, de 14 de agosto de 2000, através da qual se concedeu anistia às multas aplicadas pela
Justiça Eleitoral nos pleitos de 1996 e 1998. Esta lei foi submetida ao controle abstrato de
constitucionalidade, através da ADIn nº 2.306-3,onde foi inicialmente, em sede de liminar, suspensa a
eficácia parcial da mesma, em julgamento ocorrido no dia 27/09/2000. Entretanto, quando do
julgamento do mérito, a Corte Maior concluiu pela total constitucionalidade do diploma em referência.
Rel. Min. ELLEN GRACIE, julgado em 21/03/2002, constante do Informativo nº 261 do Supremo
Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 27/05/2008.
321
GARCIA, Emerson; ALVES Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 3 ed., Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006, p. 323.
322
Ibidem, p. 329.
323
Já transcrito em nota anterior.
102
porquanto em flagrante descompasso com as regras e princípios esculpidos na
Carta Magna e na legislação infraconstitucional.324
O entendimento ora esposado encontra suporte teórico nas idéias de
Emerson Garcia325, ao reconhecer que a conduta dos legisladores, quando imoral ao
extremo – consistente na utilização das suas funções para auferir benefícios
pessoais ou em favor de terceiros – poderia ser considerada como ato de
improbidade.
Todavia, diante da imunidade parlamentar326 concedida aos
legisladores, conclui o referido autor, não é possível a responsabilização pessoal
dos membros do Poder Legislativo em decorrência da produção legislativa.
Em que pese a argumentação de Emerson Garcia, não parece admissível
que o instituto da imunidade parlamentar, por si só, e em qualquer situação, tenha o
condão de “imunizar” eventual prática ímproba durante a produção legislativa,
vedando, sequer, a abertura da pertinente investigação, a ser conduzida pelo órgão
com atribuição.
A imunidade parlamentar, instituto criado com o intuito de assegurar
independência no desempenho do munus do legislador, portanto em benefício da
soberania popular e não particularmente do próprio parlamentar, como prerrogativa
subjetiva ou fim em si mesma, não pode servir de subterfúgio para a prática de atos
ímprobos.
Como assinalado, a democracia e o modelo republicano exigem efetiva
possibilidade de controle dos atos estatais, cuja finalidade deve sempre estar
dirigida à promoção do bem de todos.327
324
Conquanto se reconheça possível, aliás, louvável, a possibilidade do controle judicial, não se
desconhece a enorme dificuldade para a produção da prova indispensável à deflagração da ação,
que não se pretende seja usada como instrumento de abalo da própria democracia, ao contrário de
fortalecê-la. Não se vislumbra, em tese, risco ao princípio da liberdade de conformação legislativa.
325
GARCIA, Emerson. ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 324.
326
Prevista no art. 53 da Constituição da República, segundo a qual “os Deputados e Senadores são
invioláveis, civil e penalmente, por suas opiniões, palavras e votos”, a imunidade também aplicada
aos Deputados Estaduais e Vereadores, por força dos arts. 27, § 1º e 29, inciso VIII, ambos da
Constituição da República. Vide referido artigo in: : NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa
Maria. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. Ibidem, p. 241-242.
327
Segundo Marcelo Figueiredo, o parâmetro de atuação dos representantes deve ser o bem comum
e não o interesse de determinados grupos ou instituição. Vide referido autor in: Teoria Geral do
Estado. Ibidem, p.126. A partir desta premissa é que se deve analisar a conduta dos agentes
103
Ademais, a partir da premissa encampada nesta pesquisa – a de que o
direito a um efetivo controle do dever de probidade, dentro do modelo de Estado
Democrático de Direito, constitui direito fundamental assegurado pela Constituição –,
impõe-se, concretamente, a ponderação dos referidos valores em jogo, sem
descurar da aplicação do princípio da proporcionalidade como caminho necessário
ao encontro da solução adequada.
O direito fundamental a um eficaz controle não pode ser cerceado ou
mitigado sob o pretexto de que a fiscalização poderia coarctar o exercício do
mandato, que deve ser exercido em favor do próprio outorgante, o verdadeiro titular
do poder.
Portanto, é insuficiente e incompatível com a idéia de Estado Democrático
de Direito, aqui agasalhada, e com os princípios que compõem o núcleo mínimo
constitucional de conformação de todos os demais atos estatais (legislativos,
administrativos e judiciais), dentre os quais se insere a probidade, a exclusão, a
priori, do cabimento, em tese, do controle repressivo da violação da probidade por
integrantes do legislativo, quando da produção dos atos que lhes são próprios, por
força constitucional.328
Nessa vertente de argumentação, é pertinente recorrer ao pensamento de
Fábio Medina Osório, ao ressaltar que “Combater imunidades irrazoáveis, irracionais
ou absolutas do Poder é tarefa que integra a cidadania.”329
políticos, evitando, com isso, que eventuais imunidades convertam-se em privilégios pessoais.
MIRANDA, Jorge. Teoria Geral do Estado. Ibidem, p. 188.
328
Eis, sobre o tema, o pensamento de Clemerson Cleve:“Da atenta leitura da Constituição, é
possível deduzir uma série de princípios indicativos do conteúdo mínimo da dinâmica de conformação
legislativa. Referido conteúdo expressa-se mediante regras ou princípios recepcionados pela
Constituição (princípio da constitucionalidade, princípio democrático, princípio republicano, princípio
da legalidade, princípio dos direitos fundamentais, princípio da proteção da confiança, princípio da
justiça social, princípio da igualdade, entre outros) que, agrupados, produzem o núcleo substantivo da
ordem jurídica brasileira. O conteúdo de justiça condensado na Constituição vincula todos os órgãos
constitucionais, inclusive o Congresso Nacional e o Executivo” CLEVE, Clemerson Merlin. A atividade
Legislativa do Poder Executivo. 2 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.147.
329
OSÓRIO, Fabio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p.22. No mesmo sentido são as palavras de Adilson de Abreu Dallari, para quem a “moralidade
pública não pode ser alcançada por meio de violação dos princípios fundamentais da ordem
constitucional, que não comporta poderes absolutos ou ilimitados, nem irresponsabilidade na atuação
dos agentes públicos.”. Vide referido autor: “Limitações à Atuação do Ministério Público na Ação Civil
Pública”. Ibidem, p.19.
104
Ainda como reforço à idéia acima, não se pode perder de vista a
insuficiência da previsão de controle dos atos ímprobos, perpetrados pelos
parlamentares no processo de elaboração das leis, visando a efeitos escusos,
apenas pelos próprios pares (através do mecanismo de cassação, por ausência de
decoro).
Com efeito, compreende-se como necessária e própria do sistema
democrático a possibilidade de fiscalização externa dos atos de todos aqueles que
se encontram em exercício de funções vinculadas aos Poderes do Estado. A Carta
Magna previu controle externo em relação a todos os poderes, não sendo razoável
que apenas o Legislativo esteja blindado contra tal garantia, decorrente da própria
soberania popular. Ainda mais quando se tem em mente o sistema dos checks and
balances.330 Nesta medida, de acordo com Luiz Werneck Vianna,331 a “judicialização
da política” exerce verdadeiro papel de checks and balances.
Nesse diapasão, não se poderia deixar de trazer a lume as palavras de
Ferrajoli,332 ao examinar a dupla face da legitimação de qualquer poder, isto é, a
legitimação formal, decorrente do princípio da legalidade, segundo o qual todos os
Poderes legislativo, administrativo e judiciário estão subordinados às leis, e a
legitimação substancial, cujo sentido pressupõe a “funcionalização de todos os
Poderes do Estado à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos”, através das
limitações a eles impostas – deveres públicos – no plano constitucional. Eis sua
lição, expressa nos seguintes termos:333
“...não existem, no Estado de direito, poderes desregulados e atos de
poder sem controle: todos os poderes são assim limitados por
deveres jurídicos, relativos não somente à forma mas também aos
conteúdos de seu exercício, cuja violação é causa de invalidez
330
Segundo Marcelo Figueiredo, no sistema em questão “os poderes encontram-se repartidos,
equilibrados, ajustados o quanto possível, de tal forma a impedir que nenhum deles ultrapasse os
limites da Constituição, sempre com vistas à contenção do poder, a melhor governabilidade, à
limitação da autoridade (que sempre tende ao arbítrio se não controlada) e, finalmente, preocupada
(a teoria do sistema) em garantir as liberdades individuais”. Vide referido autor, in: Teoria Geral do
Estado. 2 ed., São Paulo: Atlas, 2007, p.19.
331
VIANNA, Luiz Werneck et al. A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil. Rio de
Janeiro: Revan, 1999, p.81.
332
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão Teoria do Garantismo Penal. 2 ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2006, p.790.
333
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão Teoria do Garantismo Penal. Ibidem, p.790.
105
judicial dos atos e, ao menos em teoria, de responsabilidade de seus
autores.”
A admissão da propositura de ação destinada à aplicação de sanções, em
decorrência da inobservância do dever de probidade nos atos legislativos, mas
comumente materializados através da violação ao princípio da moralidade, não se
confunde com o exame da inconstitucionalidade da norma, a ser realizado de forma
difusa ou concentrada, ou ainda através do Mandado de Segurança para as normas
de efeitos concretos.
Note-se que se trata de searas distintas, com diferentes
conseqüências.
Ademais, não se pode falar em usurpação da competência do Tribunal
Constitucional na ação coletiva destinada à aplicação de sanções decorrentes da
inobservância do dever de probidade. A incompatibilidade entre o ato normativo
ímprobo e a Constituição da República será, no máximo, apreciada incidentalmente,
não constituindo, portanto, objeto do processo.
Afora isto, o cabimento do controle pelo cidadão não pode estar restrito
apenas à possibilidade de não-renovação do mandato em pleito futuro, até porque o
autor do ato, considerado em tese como ímprobo, tem a faculdade de não se
oferecer, novamente, ao exercício da representação, hipótese em que a conduta
terminaria impune.
Em relação ao controle interno, feito pelo próprio Legislativo, não se pode
perder de vista que na hipótese em que a maioria necessária à aprovação de uma lei
usufruísse dos benefícios imorais pretendidos pelo ato normativo, dificilmente se
puniria aqueles que participaram do ato viciado.
Acerca do tema, são elucidativas as palavras de Marcelo Figueiredo334
quando, ao tratar do tema moralidade administrativa, destacou ser cabível, inclusive,
a constatação de violação do princípio da moralidade administrativa e, portanto, da
probidade, pela autoridade legislativa:
334
FIGUEIREDO, Marcelo. O Controle da Moralidade na Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003, p.
138.
106
“constata-se que a violação ao princípio da moralidade surge,
essencialmente, quando a autoridade (administrativa, legislativa ou
judiciária) desvia-se dos comandos expressos ou implícitos contidos
no ordenamento jurídico, notadamente nos princípios constitucionais.
Essa a razão por que a constatação da violação ao princípio da
moralidade normalmente vem associada à violação a outros
princípios constitucionais, como, v.g., a legalidade, a isonomia, a
publicidade, a impessoalidade etc. Isso não significa que o princípio
da moralidade não possa por si só ser a causa do vício impugnado”
É bem verdade que os autores que cuidam do tema, como Emerson
Garcia, admitem que a responsabilização do legislador por fatores externos que
concorrem para a formação do elemento anímico do agente não está acobertada
pela inviolabilidade prevista no texto constitucional.
Em respaldo ao seu
posicionamento, o referido autor apresenta os seguintes exemplos: o recebimento
de vantagem patrimonial, sob qualquer forma, de setores da sociedade diretamente
interessados em matéria submetida à apreciação do Poder Legislativo, ou mesmo a
negociação do voto que proferirá; aquisição, no período de exercício do mandato, de
bens cujo valor seja desproporcional à renda do agente e o recebimento de
vantagem para postergar a votação de projeto de lei, quer seja na condição de
relator, Presidente de Comissão quer na de Presidente da própria Casa
Legislativa.335
É indubitável que tais exemplos, ao configurarem modalidade específica
de ato de improbidade, por certo trazem imanente a violação ao princípio da
moralidade, posto que todo ato de improbidade é, antes de tudo, inobservância
deste princípio.
Admite-se a subsunção desses exemplos à Lei de Improbidade.
Na
verdade, a idéia que se procura trazer à baila diz respeito à violação ao princípio da
moralidade – aqui atuante como verdadeiro soldado de reserva – por força de desvio
de finalidade na confecção legislativa, sem que se possa ser demonstrado o
enquadramento numa das modalidades autônomas expostas na Lei 8.429/92.
335
Poderia ser cogitada, inclusive, a possibilidade de responsabilização do legislador por desvio de
finalidade que tenha gerado prejuízo individual ou coletivo, desde que evidenciado o dolo.
107
Assim entendido o dilema, os possíveis “fatores externos” eventualmente
detectados, quando não configuradores de hipótese autônoma de improbidade
prevista na Lei 8.429/90, não constituem fatores externos e deslocados da produção
legislativa.
São, em verdade, caso demonstráveis, elementos de prova que dá
suporte à deflagração da Ação de Improbidade Administrativa, fundada na violação
do princípio da moralidade, como corolário do desvio de finalidade.
Não obstante a ponderação apresentada por Emerson Garcia em relação
à imunidade, admite o próprio autor336 que a desídia do parlamentar, demonstrada
através de reiterada e injustificada ausência às sessões legislativas, amolda-se ao
ato de improbidade administrativa, previsto no artigo 11, inciso II, da Lei 8.429/92,
configurando a conduta do agente, além de enriquecimento ilícito – recebimento dos
subsídios sem cumprimento das funções de ofício, próprias do cargo – violação ao
princípio da moralidade.
Ora, mutatis mutandi, o desvio de finalidade, consistente na participação
de processo legislativo visando a fim contrário aos princípios e normas
constitucionais e ao Estado Democrático de Direito, bem como objetivando fins
flagrantemente imorais em benefício próprio ou de outrem, enquadra-se no ato de
improbidade, especificado no artigo 11, inciso I, da lei acima mencionada337 como
corolário da inobservância do princípio da moralidade.338
Não se pode olvidar que agentes públicos e políticos têm o dever de
orientar seu trabalho ao interesse da coletividade, buscando a promoção do bem
comum. Além disso, o sistema constitucional republicano conduz à admissão da
responsabilidade por improbidade administrativa de todo agente público lato sensu.
336
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 328-329.
“Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da
administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade,
imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
I- praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso
daquele previsto, na regra de competência.
338
Rogério José Bento Soares do Nascimento registra que “o Supremo Tribunal Federal vem
mantendo o entendimento de que a imunidade material do parlamentar não se refere apenas à
responsabilidade criminal, mas também à civil e à administrativa. Contudo, esta orientação extensiva
do instituto da imunidade talvez já não expresse com fidelidade o anseio social por maior controle
sobre o exercício do mandato popular.” Vide referido autor in “Improbidade Legislativa”. Ibidem, p.
421.
337
108
A despeito da assertiva acima, é forçoso concluir, nos termos do artigo 55,
§ 3º,
339
da Constituição da República de 1988, que a declaração da perda do
mandato do Parlamentar somente ocorrerá por ato da Casa Legislativa a qual ele
integre, o que não impede, contudo, a aplicação das demais sanções previstas na
Lei de Improbidade.
Note-se que, embora a perda dos direitos políticos seja uma das sanções
cominadas na Lei 8.429/93 (artigo 12), por violação ao dever de probidade, segundo
se extrai da norma constitucional supracitada, a perda do mandato depende da
declaração a ser proferida pelo Poder Legislativo.340
Assim sendo, a concretização da perda do mandato, como conseqüência
da improbidade, constitui ato complexo341, cujos efeitos, não obstante o trânsito em
julgado da decisão, depende da respectiva Casa Legislativa.
A imputação pela prática do ato de improbidade será deduzida perante o
órgão do Poder Judiciário competente que, frise-se, é do juízo monocrático.342
Igualmente, como destacado, os integrantes do Poder Judiciário estão jungidos à
observância do dever de probidade em todos os atos praticados nessa condição,
tenham eles materialmente conteúdo jurisdicional ou não.
Questão particularmente delicada diz respeito à imperiosa necessidade de
observância do princípio da independência, sem o qual, no Estado Democrático de
Direito, não se pode sequer pensar, verdadeiramente, na idéia de justiça.
No
entanto, o respeito à independência funcional do Magistrado não constitui, a priori,
339
“Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
I - ...
IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
§ 3º - Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva,
de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado
no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.” In: NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE NERY,
Rosa Maria. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. Ibidem, p. 242.
340
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. “Improbidade Legislativa.” Ibidem, p. 424.
341
É aquele que decorre da “conjugação de vontade de órgãos diferentes”. MELLO, Celso Antônio
Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Ibidem, p. 419.
342
Nos termos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na ADI 2797/DF, Rel. Min.
SEPÚLVEDA PERTENCE, julgada em 15/09/2005, publicada no DJ em 19/12/2006, a norma
constante da Lei 10.628/01 que estendia o foro por prerrogativa de função às ações de improbidade
administrativa foi declarada inconstitucional. Disponível em: <http://stf.gov.br>. Acesso em:
27/05/2005.
109
obstáculo intransponível que o exclua do alcance das sanções pela prática de atos
violadores da probidade.
Decorre do exposto que o conteúdo das decisões deve ser resguardado
em nome da independência funcional, um dos pilares para que se possa, em
concreto, vivenciar a democracia, desde que não se vislumbre evidente desvio de
finalidade, a ser demonstrado através de elementos carreados pelo órgão com
atribuição legal para deflagrar a investigação.
A inobservância do princípio da moralidade – presente quando se buscam
benesses pessoais e/ou para terceiros, com evidente desvio de finalidade –
subsume-se, por si, às normas constantes do artigo 11, caput e inciso I, da Lei de
Improbidade Administrativa, sem prejuízo de outras violações a serem comprovadas,
como o enriquecimento ilícito, esculpido no artigo 9º, inciso VII, do mesmo diploma
legal.343
Não se pode olvidar que o descumprimento do dever de julgar,
consubstanciado na omissão intencional, a ser concretamente sopesada a partir dos
critérios de razoabilidade (ponderação stricto sensu), também pode configurar ato de
improbidade, previsto no artigo 11, inciso II, da Lei 8.429/92.
Aplica-se ao Magistrado, igualmente, o entendimento acima aduzido no
tocante ao cabimento da responsabilização do Estado,344 por força da norma contida
no artigo 37, § 6º, da Constituição da República, bem como a possibilidade de
regresso nela contemplada em relação ao agente que deu causa, a título de dolo. A
343
“Art. 9º Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir
qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função,
emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1º desta lei, e notadamente:
I - ...
VII – adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública,
bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução patrimonial ou à renda do
agente público;”
344
Cabe aqui trazer-se à colação a lição do Desembargador Sergio Cavalieri Filho, acerca da
responsabilização do Estado na hipótese de prestação do serviço judiciário defeituoso: “Com efeito,
danos graves e de difícil reparação podem resultar para as partes em razão da negligência do juiz no
cumprimento do seu dever (...). Por seu turno, o serviço judiciário defeituoso, mal-organizadoizado,
sem os instrumentos materiais e humanos adequados, pode, igualmente, tornar inútil a prestação
jurisdicional e acarretar graves prejuízos aos jurisdicionados pela excessiva morosidade da
tramitação do processo. Os bens das partes se deterioram, o devedor desaparece, o patrimônio do
litigante se esvai etc”. Vide referido autor, in: Programa de Responsabilidade Civil. 8 ed., São Paulo:
Atlas, 2008, p.263.
110
responsabilização dos juízes encontra-se ainda regulada nos artigos 133, incisos I e
II, do Código de Processo Civil e 49 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional.345
Aliás, a conclusão acima, por óbvio, aplica-se integralmente aos membros
do Ministério Público e a todos os agentes públicos incumbidos da prolação de
decisões em procedimentos administrativos (e.g. integrantes de comissões
disciplinares).346
Como assinalado anteriormente, o modelo republicano constituído por um
Estado Democrático de Direito, expressamente adotado pela Lei Maior, implica a
existência de sistemas próprios de controle dos atos públicos, dentre os quais a
responsabilização do agente pela prática de ato de improbidade.
Cumpre acrescentar o alerta de Emerson Garcia347, para quem,
relativamente à responsabilização dos Juízes, o trânsito em julgado não constitui
óbice à deflagração da Ação de Improbidade “já que a pretensão a ser deduzida na
ação civil não pressupõe o revolver da lide originaria, mas, sim, a análise dos fatores
externos que comprometeram sua idoneidade”.
Essas reflexões não pretendem esvaziar o conteúdo da imunidade
parlamentar e da independência funcional, instrumentos necessários ao regime
democrático, porém, apenas, contribuir para a delimitação de seu alcance,
exatamente por força do ambiente na qual se encontram inseridas, qual seja, o
Estado Democrático de Direito, no qual a soberania deve ser formal e materialmente
345
“Art. 133. Responderá por perdas e danos o juiz, quando:
I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;
II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a
requerimento da parte.
Parágrafo único. Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no no II só depois que a parte,
por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a providência e este não Ihe atender o
pedido dentro de 10 (dez) dias.” In: NEGRÃO, Theotonio; Gouvêa, José Roberto F. Código de
Processo Civil e legislação processual em vigor. 39 ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 268.
“Art. 49 - Responderá por perdas e danos o magistrado, quando:
I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;
Il - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar o ofício, ou a
requerimento das partes.
Parágrafo único - Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no inciso II somente depois que a
parte, por intermédio do Escrivão, requerer ao magistrado que determine a providência, e este não
lhe atender o pedido dentro de dez dias.” In: NEGRÃO, Theotonio; Gouvêa, José Roberto F. Código
de Processo Civil e legislação processual em vigor. 39 ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 1790.
346
Em verdade, todo agente público que deliberadamente deixa de cumprir os deveres próprios do
cargo ou da função exercida, ao menos em tese, pode ser responsabilizado nos termos da Lei de
Improbidade.
347
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 332.
111
titulada pelos cidadãos, no qual a responsabilização dos agentes é consectário
lógico da forma republicana.
É indispensável que a imunidade parlamentar e a
independência funcional sejam examinados sem que se perca de vista o “conteúdo
mínimo da conformação” que atua como balizamento constitucional. Dito de outra
forma, não se pode emprestar aos instrumentos destinados a assegurar a
democracia um fim em si mesmo, capaz de comprometer a sua própria efetividade,
subjugando-a a mero preceito abstrato, dissociado do mundo dos fatos, no qual a
mesma deve ser diuturnamente reafirmada.
Ademais, além de divorciada do texto constitucional, soa anti-democrática
a idéia de exclusão de parcela dos agentes estatais – algumas autoridades da
República – da subsunção às normas esculpidas na Lei de Improbidade, em razão
da prática de atos desviados da finalidade estatal, na medida em que igualmente
vinculados ao cumprimento dos princípios e normas imprescindíveis ao correto
funcionamento do Estado; vale dizer, ao dever de agir em conformidade com o
princípio da probidade.348
348
Acerca do tema merece ser noticiada a assertiva constante do voto proferido pelo Min. LUIZ FUX,
no REsp. nº 416.329-RS, no qual se restou patenteado que podem figurar como sujeitos ativos da Lei
de Improbidade os agentes políticos, administrativos, honoríficos e delegados e não apenas os
servidores públicos em sentido estrito, visto que a denominação ‘agentes públicos’ foi empregada
neste diploma legal como gênero a englobar as demais espécies, in verbis: “É assente na doutrina
que a denominação ‘agentes públicos’ refere-se genérica e indistintamente a todos os sujeitos que
servem ao Poder Público, que desempenham funções estatais, considerando-se um ‘gênero’ do qual
são espécies os agentes políticos, administrativos, honoríficos e delegados.”
112
CAPÍTULO 8
A PROBIDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL DIFUSO
A noção de direitos fundamentais iniciou-se a partir de uma visão filosófica,
sem configurar, de imediato, um instituto inserido no ordenamento jurídico.
Na
verdade, a evolução do próprio Estado permite constatar que os direitos
fundamentais são realidades históricas349 que sofreram e continuam em processo de
alterações em função das mudanças que se operam na sociedade.
Para melhor compreensão, José Carlos Vieira de Andrade350 apresenta
formas distintas de análise dos direitos fundamentais, a saber: a) pela perspectiva
filosófica ou jusnaturalista; b) perspectiva universalista ou internacionalista e c)
perspectiva estadual ou constitucional.
Segundo a perspectiva filosófica ou jusnaturalista, tal como definida pelo
referido autor351, os direitos fundamentais decorrem das concepções de dignidade e
igualdade inerentes aos seres humanos352 e, por isso, constituem direitos absolutos
(não
podem
sofrer
restrições)
imperecíveis
(são
eternos,
impermeabilizados (não são suscetíveis a modificações).
perenes)
e
Dessa maneira, a
existência dos direitos fundamentais independe do lugar ou da época, sendo
inerente a todos os homens.
A partir dessa interpretação, os direitos fundamentais não estão atrelados
à existência do Estado, como forma de organização e sua importância não se
349
Norberto Bobbio pontifica “que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são
direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de
novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem
de uma vez por todas”. BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004, p. 5.
350
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
Coimbra: Livraria Almedina, 1987, p. 11.
351
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Ibidem, p. 11-16.
352
Nos termos do registro apresentado no capítulo I, coube inicialmente a Locke a idéia de direitos
inerentes ao ser humano, mesmo no estado de natureza, portanto inafastáveis até mesmo pelo
contrato social, ainda que sinônimo da manifestação da vontade dos indivíduos. GOMES, Rosângela,
Maria de Azevedo. “O Direito à moradia como Valor Integrante do Direito à Vida Digna”. In: Direitos
Fundamentais e Novos Direitos. KLEVENHUSEN, Renata Braga (coord.). Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 146.
113
restringe à história, já que dela se lança mão, algumas vezes, para justificar direitos
individuais como corolários da dignidade humana353
354
.
A vertente universalista355 decorre também do reconhecimento de que os
direitos fundamentais abrangem todos os seres humanos e devem ser protegidos de
forma universal, eis que representam as aspirações indispensáveis do homem no
espectro universal.
A partir desse entendimento, surgiram os tratados, cartas e convenções
internacionais, visando à vinculação de todos os Estados no sentido de promover,
inicialmente no plano interno, o reconhecimento dos direitos considerados à época,
como imprescindíveis aos indivíduos.356. Nessa perspectiva, o reconhecimento dos
direitos fundamentais não importava em afirmações absolutas que deveriam ser
aceitas em qualquer tempo, mas implicava o reconhecimento “de princípios inscritos
na consciência jurídica universal, hoje comum aos povos de todos os continentes”.357
O transcorrer do tempo demonstrou que a positivação dos direitos
fundamentais nos documentos internacionais não foi suficiente, tendo em vista que a
proteção deveria ser efetivada internamente pelos Estados. A atuação, além dos
limites territoriais de cada país, resumia-se às relações diplomáticas (aqui incluída a
celebração dos tratados, convenções e acordos).
353
Segundo José Carlos Vieira de Andrade, trata-se de uma dimensão dos direitos individuais, “a qual
sob a veste de direito natural, que foi o seu figurino histórico ou sob outra veste jurídica equivalente –
a de ‘consciência axiológica-jurídica’ ou a de ‘princípios jurídicos fundamentais’, anteriores e
superiores ao próprio legislador constituinte – legitima, da caráter e contribui para iluminar o conteúdo
de sentido dos preceitos constitucionais (ou de direito internacional)”. Ibidem, p. 15.
354
José Carlos Vieira de Andrade registra o costume de se apontar a origem dos direitos
fundamentais nos estóicos, seguidos de Cícero, em razão da existência de pensamentos voltados
para proteção da dignidade dos homens, esclarecendo, no entanto, que a instituição da escravatura
conduz à negação da existência de direitos do homem naquele momento histórico. Ibidem, p. 12.
355
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Ibidem, p. 17-25.
356
Os malefícios registrados na II Guerra Mundial, principalmente no tocante às arbitrariedades
perpetradas sem limites, fizeram surgir a necessidade de reconhecimento, no plano internacional, de
um núcleo mínimo de direitos a serem observados pelos Estados. Este reconhecimento iniciou-se
com a Carta das Nações Unidas (1945), logo após com a Declaração de Direitos Americana
(promulgada em 1948, somente em 1959 tornou-se a Convenção Americana dos Direitos do Homem)
e com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), seguidas de diversos tratados e
convenções (Convenção Européia em 1959, posteriormente complementada pela Carta Social
Européia e Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos). Ibidem, p. 17-18.
357
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Ibidem, p. 19.
114
A constatação acima trouxe à tona a necessidade de criação do Tribunal
Internacional de Justiça, que impõe aos Estados o dever de observância aos
princípios e regras que formam o conjunto dos direitos fundamentais.
A análise desses direitos sob a perspectiva constitucional358 fixa limites ao
poder do Estado, permitindo que a Lei Maior passe a reger os valores que subjazem
aos direitos fundamentais, através dos princípios e regras, protegidos pelo manto
constitucional. É nesse sentido que os direitos fundamentais devem ser vistos à luz
da unidade da Constituição. Conclui-se, portanto, que a concepção apresentada
pelo referido autor tem como núcleo a proteção do homem, inicialmente apenas no
plano individual, posteriormente ampliada para abranger também o espectro coletivo.
Sob a ótica da constitucionalização, os direitos fundamentais têm a
“capacidade de irradiação pelo ordenamento jurídico”,359 através das políticas
públicas decorrentes de uma “hermenêutica progressista”,360 e, com isso, ficam
imunizados em relação ao processo político majoritário, transferindo a proteção dos
mesmos ao Poder Judiciário,361 dentro do que se passou a designar como
“judicialização da política”. Segundo Luiz Werneck Vianna,362 a positivação dos
direitos fundamentais, impregnados de conteúdo axiológico-normativo, acabou por
demandar a participação do Poder Judiciário “no espaço da política”, reformulando
as relações entre os Poderes, na qual “prevalece a lógica dos princípios”, com
intensa presença “do ético e do justo”. Esta assertiva pode ser constatada através do
crescimento das ações coletivas, em grande parte deflagradas pelo Ministério
Público, dentre as quais a Ação de Improbidade Administrativa.
Reitera-se, portanto, que a percepção dos direitos fundamentais está
diretamente ligada à evolução histórica do Estado, em direção ao processo de
democratização, caminhando dos direitos de defesa do liberalismo para os direitos
políticos de participação.
358
Como assinalou José Carlos Vieira de Andrade “a
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Ibidem, p. 25-30.
MAIA, Antônio Cavalcanti. “Considerações acerca do papel civilizatório do Direito”. In:
Perspectivas Atuais da Filosofia do Direito. MAIA, Antônio Cavalcanti et al. (org.). Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2005, p. XIX.
360
MAIA, Antônio Cavalcanti. Ibidem, p. XIX.
361
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo. Site Consultor Jurídico, 2006. Disponível em:
<http://conjur.estadao.com.br>. Acesso em 20/07/2007
362
VIANNA, Luiz Werneck et al. A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil. Ibidem,
p.22.
359
115
democracia torna-se, nesse contexto, numa condição e numa garantia dos direitos
fundamentais e, em geral, da própria liberdade do homem”. 363
Ingo Wolfgang Sarlet364 distingue as expressões a)“direitos do homem”
(referentes aos direitos naturais não positivados ou que ainda não foram
positivados); b)“direitos humanos” (correspondem aos direitos já inseridos de forma
positiva no espectro internacional; c)“direitos fundamentais” (considerados como os
direitos “reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno
de cada Estado)”. Esses conceitos, associados à lição de Jorge Reis Novais365,
permitem inferir que os direitos fundamentais configuram imposição ao Estado, às
entidades públicas e aos particulares (“eficácia horizontal desses direitos”366) de
“deveres jurídicos de fazer, não fazer ou suportar”, nascendo simultaneamente para
os particulares, na condição de titulares de direitos fundamentais, situações de
vantagens relacionadas com a possibilidade de usufruir do bem que é tutelado pela
norma, ainda que direta ou indiretamente imediatamente ou em momento posterior.
Visto como um bloco, o direito fundamental corresponde ao conjunto
heterogêneo de posições juridicamente tuteladas, tendo como contrapartida a
imposição ao Estado e também aos particulares (na já citada “eficácia horizontal”) do
cumprimento de deveres e obrigações necessárias à criação e manutenção das
citadas posições de vantagem.
Portanto, como ressaltado, segundo idéia reitora de Robert Alexy,367 os
direitos fundamentais são entendidos como posições tão importantes que sua
outorga não pode estar à mercê da simples maioria parlamentar. Nesse sentido, os
direitos fundamentais funcionam como bússola a orientar o legislador ordinário na
produção dos atos normativos, impedindo a introdução, no ordenamento jurídico, de
363
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais. Ibidem, p. 47.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 6 ed., Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006, p. 36.
365
NOVAIS, Jorge Reis. A s Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas
pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 53-54.
366
Segundo Daniel Sarmento, “a eficácia horizontal dos direitos fundamentais de 2ª geração parece
uma saída atraente. Com ela, recupera-se a noção de solidariedade, revestindo-a de juridicidade.
Sob esta ótica, os poderes econômicos privados têm não apenas o dever moral de garantir certas
prestações sociais para as pessoas carentes com que se relacionarem, mas também, em certas
situações, a obrigação jurídica de fazê-lo.” SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações
Privadas. 2 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.35.
367
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid:
Centro de Estudos Constitucionales, 1997, p. 432.
364
116
normas que afrontem esse alicerce à sustentação do modelo axiológico-normativo
estabelecido pelo Poder Constituinte originário. Ademais, representa um norte de
atuação complementar, visando à regulamentação desses direitos dentro dos
princípios da proibição do excesso, bem como da proibição da proteção deficiente.
Em face do exposto, pode-se inferir que as citadas situações de
vantagens, em razão da consagração na Constituição,368 são excluídas da
possibilidade de alteração pela maioria que venha a se formar após o Poder
Constituinte (tanto para o legislador ordinário, como para o legislador constitucional
que se seguiu).
Em outra vertente, as mencionadas posições jurídicas estão atreladas a
pretensões instrumentais de garantia que, uma vez abstraídas das relações, podem
também representar, de maneira autônoma, situação de vantagem relativa a um
bem juridicamente protegido, caracterizando-se como direito fundamental.369
Na mesma sintonia, ao tratar do caráter duplo dos direitos fundamentais,
Konrad Hesse370 esclarece que são eles subjetivos “direitos do particular, e
precisamente, não só nos direitos do homem e do cidadão no sentido restrito (...)” e,
ao mesmo tempo, garantidores de “um instituto jurídico ou a liberdade de um âmbito
de vida”. Igualmente, também são direitos fundamentais de garantia, pois são
“elementos fundamentais da ordem objetiva da coletividade.”
Tais direitos fundamentais operam como garantias para a sociedade,
ainda que não confiram direito individual a determinada pessoa, especificamente. Na
verdade, esses direitos estão incorporados e impregnados no corpo originário da
Constituição, essa na qualidade de ente dotado de supremacia para governar os
atos estatais.
368
Jorge Reis Novais registra a admissibilidade do reconhecimento de direitos fundamentais “sem
assento constitucional”. Vide referido autor in: As Restrições aos Direitos Fundamentais Não
Expressamente Autorizadas Pela Constituição. Ibidem, p. 47-48. Tais hipóteses resultam de leis
ordinárias ou regras de direito internacional aplicáveis em decorrência da consagração de cláusula
aberta de direito fundamental. Como já demonstrado, esses direitos não recebem o nome de direitos
fundamentais em sentido estrito, segundo Ingo Sarlet.
369
NOVAIS, Jorge Reis. As Restrições aos Direitos Fundamentais Não Expressamente Autorizadas
Pela Constituição. Ibidem, p. 54-55.
370
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federativa da Alemanha. Trad.
de Luis Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 228-229.
117
Exatamente a partir desse conjunto heterogêneo de posições, formados
por direitos e deveres, pode-se entender que o direito à probidade constitui uma
espécie de direito fundamental difuso, como emanação, em última análise, da
proteção à dignidade da pessoa humana, sob a ótica transindividual. Nesta mesma
linha de pensamento, Rita Tourinho vislumbra a probidade como um “direito público
subjetivo” de toda a sociedade371.
O Estado Democrático de Direito, fortalecido pelo modelo republicano,
não se coaduna com atuações estatais desprovidas de controle. Ao contrário, é
preciso dispor de instrumentos que assegurem o direito de a sociedade obter do
Estado e de seus agentes as condutas legítimas e eficientes, decorrentes de
escolhas finalisticamente dirigidas, a partir dos valores que subjazem à Lei Maior.
Assim, não há espaço para ações ou omissões puramente discricionárias,
impondo-se como direito da coletividade a efetiva fiscalização – e eventual
repressão, caso se faça necessária – para além de um exame estritamente formal,
com o fim de afastar desvios ou omissões ímprobas.
Calcado nessas premissas, Juarez Freitas372 registra que, mesmo diante
das hipóteses em que se abrem opções para atuação do agente estatal, sua
conduta encontra-se vinculada à estrita observância dos princípios insertos na Carta
Fundamental, acrescentando que a inteira liberdade para o administrador (e aqui se
aplica para todo o agente estatal) caracteriza arbitrariedade: “Quer dizer, a liberdade
apenas
se
legitima
ao
fazer
aquilo
que
os
princípios
constitucionais,
entrelaçadamente, determinam.”
Nessa linha de pensamento, impõe-se o registro do conceito do direito
fundamental à boa administração, formulado por Juarez Freitas,373 consagrado e
concretizado no ordenamento pátrio, a ser igualmente compreendido como direito
fundamental ao cumprimento do dever de probidade, in verbis:
371
TOURINHO, Rita. “Os golpes aplicados contra a eficácia da Lei de Improbidade Administrativa e a
proposta de criação do Tribunal Superior da Probidade Administrativa.” In: Revista Interesse Público”.
Nº 47, Belo Horizonte, Fórum, jan/fev/2008, p. 101-118.
372
FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração
Pública. Ibidem, p. 8.
373
Ibidem, p. 20.
118
“(...)o direito fundamental à boa administração pública, que pode ser
assim compreendido: trata-se do direito fundamental à administração
pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres,
com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à
moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas
condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever
de a administração pública observar, nas relações administrativas, a
cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem.”
Esclarece o citado autor374 que o direito fundamental à boa administração
decorre de um conjunto reunido de direitos, vale dizer, o somatório de direitos
subjetivos públicos, dentre os quais “o direito à administração pública proba”,
consistente na proibição de comportamentos (ações e omissões) que violem o
interesse público no sentido dos interesses dos indivíduos na sociedade, tomados
coletivamente.
Esse direito à observância do dever de probidade encontra sustentáculo
no plano nacional e no direito estrangeiro, principalmente no continente europeu, na
medida em que a própria Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia,
embora ainda sem força vinculante,375 reconhece expressamente, em seu artigo 41,
o direito a uma boa administração; vale dizer, a um bom governo.376 Ademais, os
tratados
internacionais
de
combate
à
corrupção
decorrem
também
do
reconhecimento da necessidade de proteção, extra muros, da probidade, como
condição sine qua non da preservação do Estado Democrático de Direito e,
374
FREITAS, Juarez, Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração
Pública. Ibidem, p. 20.
375
Em decorrência dos vetos de alguns países como a França e Holanda.
376
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia assim dispõe no artigo 41:”Direito a uma
boa administração. 1. Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas
Instituições e órgãos da União de forma imparcial, eqüitativa e num prazo razoável. 2. Este direito
compreende, nomeadamente: – o direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser
tomada medida individual que a afecte desfavoravelmente; - o direito de qualquer pessoa a ter
acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito dos legítimos interesses da confidencialidade e
do segredo profissional e comercial; - a obrigação, por parte da administração , de fundamentar as
suas decisões. 3. Todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da Comunidade, dos danos
causados pelas suas Instituições ou pelos seus agentes no exercício das respectivas funções, de
acordo com os princípios gerais comuns às legislações dos Estados-Membros. 4. Todas as pessoas
têm a possibilidade de se dirigir às Instituições da União numa das línguas oficiais dos Tratados,
devendo obter uma resposta na mesma língua.” SOARES, Antônio Goucha. A Carta dos Direitos
Fundamentais da União Européia. A Proteção dos Direitos Fundamentais no Ordenamento
Comunitário. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p.105.
119
especificamente, dos direitos sociais fundamentais imanentes a esse modelo de
organização, ainda que através de outras nomenclaturas.377
Nessa ordem de idéias, o conceito de direito fundamental à boa
administração, segundo Juarez Freitas,378 é norma de direta e imediata eficácia em
nosso sistema constitucional, de forma a impor um controle efetivo dos atos estatais.
No âmbito nacional, deflui expressa ou implicitamente dos dispositivos
constitucionais já apontados, a constatação da existência de um conjunto de direitos
e deveres que protegem a probidade. Inicia-se aqui o reconhecimento de liame
direto entre os princípios insertos no artigo 37, caput, da Constituição de 1988 – que
integram o conceito de direito fundamental à boa administração - e os dispositivos
previstos pela Lei de Improbidade, ao conceituar como ato de improbidade a
violação dos ditos princípios.
A compreensão desse conjunto conduz à constatação de que a probidade
foi erigida como alicerce fundamental à existência e efetividade do Estado
Democrático de Direito.379 Ratifica-se que o reconhecimento expresso e implícito na
legislação já citada dão claros sinais textuais que autorizam afirmar que deflui dos
valores abraçados pela Constituição Federal a proteção à probidade dos atos
estatais, que visam, na verdade, à promoção do bem comum. Dizendo de outra
forma: quando a Carta Constitucional impõe a probidade na prática dos atos dos
agentes públicos e políticos, escolhe claramente o único caminho possível para a
promoção do bem de todos.
Neste sentido, desde o Preâmbulo, a Carta de 1988 estabeleceu que o
Estado Democrático de Direito destina-se a “(...)assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais”, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social(...).
377
Segundo Vanice Lírio do Valle, no direito brasileiro, o elenco constitucional dos princípios
regedores da Administração Pública possibilita a “extração de um direito fundamental à boa
administração” que vai além da literalidade do art. 41 da Carta de Direitos Fundamentais da União
Européia, anteriormente citado. Vide referida autora in: “Direito fundamental à boa administração,
políticas públicas eficientes e a prevenção do desgoverno”. Ibidem.
378
FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração
Pública. Ibidem, p. 7.
379
A efetivação da democracia e o Estado mínimo são inconciliáveis.
120
Deflui desse mandamento que a proteção da dignidade da pessoa
humana, erigida como “prioridade das prioridades”, não pode ser alcançada, se não
através da efetivação de outros direitos, igualmente conceituados como direitos
fundamentais.
Ultrapassado o Preâmbulo, constata-se que o direito fundamental à
probidade administrativa como gênero, da qual são espécies os princípios que
regem o atuar dos agentes de todos os poderes, ocorreu de forma sistêmica. Notese que o texto constitucional interliga o dever de probidade de todo agente público
(lato sensu), previsto no capítulo próprio da Administração Pública, aos Direitos e
Garantias Fundamentais, quando estabelece a condenação em decorrência da
prática de ato de improbidade administrativa como uma das hipóteses excepcionais
de suspensão dos direitos políticos (artigo 15, inciso V, da Constituição da
República).
A partir dessa constatação, é possível dimensionar a importância
conferida pelo legislador constitucional à probidade na Administração Pública, eis
que a sua ofensa espraia efeitos até mesmo nos direitos e garantias fundamentais
do cidadão, o qual venha a praticar atos ligados à Administração Pública ou
concorra para a prática de eventual irregularidade na gestão da coisa pública. É,
portanto, a probidade administrativa um direito fundamental decorrente do também
direito fundamental à cidadania, na medida em que a prática de ato de improbidade
administrativa afeta diretamente o exercício dos direitos políticos, como insculpido no
artigo constitucional citado.
Nas palavras de Rogério José Bento Soares do
Nascimento,380 o exercício dos direitos políticos constitui um direito fundamental, isto
é:
“...Direito fundamental de participação na vontade do Estado” (na
auto-legislação – o Povo como autor do Direito tem vínculos com a
noção democrática de liberdade como autonomia – é livre quem só
esta obrigado por normas que cria ou adere voluntariamente).
380
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. “Improbidade Legislativa”. Ibidem, p. 414.
121
Ora, na medida em que se reconhece como direito fundamental a
participação na vontade do Estado, o controle do resultado dessa exteriorização
constitui extensão do direito fundamental difuso.
Alias, não é por outra razão que a Ação Popular é reconhecidamente um
direito fundamental, instrumento de fiscalização do ato lesivo ao patrimônio público e
à moralidade administrativa.381
Aluisio Gonçalves de Castro Mendes382, por sua vez, reforça a tese de
que as ações coletivas (não se podendo excluir do rol a Ação de Improbidade),
notadamente a ação popular, representam direito fundamental do cidadão e
instrumento de fiscalização do Estado.
Embora a ação popular seja meio processual adequado para a proteção
da probidade (como direito fundamental), não esgota o reconhecimento da
improbidade administrativa, uma vez que a lei 4.717/65 limita-se à anulação do ato
lesivo e condenação a perdas e danos (v. art. 5º., LXXIII da Constituição Federal e
artigos 1º. e 11 da Lei 4.7.7/65), sem reflexos sancionatórios, inclusive no que
concerne aos direitos políticos.
Em verdade, o cidadão restou excluído do rol dos legitimados para a
propositura da Ação de Improbidade, prevista no artigo 17 da Lei 8.429/92.383 Aliás,
381
Nesse sentido, segundo Emerson Garcia, “A normatização expressa e a densificação dos
princípios extraídos da Constituição da República erigem-se como alicerce adequado à sustentação
da necessária adequação dos atos legislativos ao princípio da moralidade. Senão vejamos: a) o
amplo acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) e a utilização da ação popular para anular ato lesivo à
moralidade administrativa (art. 5º, LXXIII) são direitos fundamentais(...)” GARCIA, Emerson; ALVES,
Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Ibidem, 323.
382
Mendes, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no direito comparado e nacional. Ibidem, p.
207.
383
“Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela
pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar.
§ 1º É vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata o caput.
§ 2º A Fazenda Pública, quando for o caso, promoverá as ações necessárias à complementação do
ressarcimento do patrimônio público.
§ 3o No caso de a ação principal ter sido proposta pelo Ministério Público, aplica-se, no que couber, o
disposto no § 3o do art. 6o da Lei no 4.717, de 29 de junho de 1965. (Redação dada pela Lei nº 9.366,
de 1996)
§ 4º O Ministério Público, se não intervir no processo como parte, atuará obrigatoriamente, como
fiscal da lei, sob pena de nulidade.
§ 5o A propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente
intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto. (Incluído pela Medida
provisória nº 2.180-35, de 2001)
o
§ 6 A ação será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da
existência do ato de improbidade ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação
122
o cidadão também restou excluído do rol dos legitimados para a Ação Civil Pública;
entretanto, pode fazê-lo a partir do momento em que se organiza em associação
própria.
Por outro turno, o reconhecimento da crise de efetividade do Estado
Democrático de Direito que, por sua vez, atinge também os direitos fundamentais
sociais e individuais,384 fortalece e justifica o direito fundamental à probidade. Tratase, em verdade, da constatação de crise de identidade e confiança no próprio
Estado,385 definido como modelo de organização capaz de promover, de forma
proba, o bem comum, assegurando ao povo condições dignas de vida em seu
sentido mais amplo.386
Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet387 sustenta que a referida crise da
ausência de confiança na efetividade dos direitos fundamentais é também
de qualquer dessas provas, observada a legislação vigente, inclusive as disposições inscritas nos
arts. 16 a 18 do Código de Processo Civil. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 2001)
§ 7o Estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do
requerido, para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos e
justificações, dentro do prazo de quinze dias. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 2001)
§ 8o Recebida a manifestação, o juiz, no prazo de trinta dias, em decisão fundamentada, rejeitará a
ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da
inadequação da via eleita. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 2001)
§ 9o Recebida a petição inicial, será o réu citado para apresentar contestação. (Incluído pela Medida
Provisória nº 2.225-45, de 2001)
§ 10. Da decisão que receber a petição inicial, caberá agravo de instrumento. (Incluído pela Medida
Provisória nº 2.225-45, de 2001)
§ 11. Em qualquer fase do processo, reconhecida a inadequação da ação de improbidade, o juiz
extinguirá o processo sem julgamento do mérito. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.225-45, de
2001)
§ 12. Aplica-se aos depoimentos ou inquirições realizadas nos processos regidos por esta Lei o
disposto no art. 221, caput e § 1o, do Código de Processo Penal. (Incluído pela Medida Provisória nº
2.225-45, de 2001)” BRASIL. Lei 8.429, de 02.06.1992. In: NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE
NERY, Rosa Maria. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. Ibidem, p. 764.
384
SARLET, Ingo Wolfgang. “Constituição e Proporcionalidade: O Direito Penal e os Direitos
Fundamentais entre Proibição de Excesso e de Insuficiência.” In: Revista de Estudos Criminais. Porto
Alegre: Notadez, nº 12, 2003, p. 86-120.
385
Ingo Wolfgang reconhece “uma crise de identidade e confiança na Constituição e nos direitos
fundamentais”, como um dos efeitos da globalização sobre o Estado democrático (necessariamente
social) de Direito. Vide referido autor in: SARLET, Ingo Wolfgang. “Constituição e Proporcionalidade:
O Direito Penal e os Direitos Fundamentais entre Proibição de Excesso e de Insuficiência”. Ibidem.
386
Outra não é a assertiva posta por Norberto Bobbio acerca da crise dos direitos fundamentais ao
sustentar que o problema não mais diz respeito à necessidade de fundamentá-los, já que se
encontram difundidos em larga escala. Agora, a questão que se põe diz respeito à proteção desses
direitos. “Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num
sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua
natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim
qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles
sejam continuamente violados”. BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Ibidem, p. 25.
387
Em complemento, acrescenta o referido autor que, no campo dos direitos fundamentais sociais, a
“reserva do possível” - como óbice ao reconhecimento e a imposição dos mesmos através do Poder
123
fundamento político, social e filosófico a robustecer o reconhecimento do direito à
probidade como direito fundamental.
Em verdade, no âmbito do Estado Democrático de Direito, a probidade na
prática dos atos estatais deve ser compreendida, simultaneamente, como direito e
garantia fundamental, funcionando como instrumento para efetiva observância dos
princípios e regras próprias deste modelo político-jurídico que, sem dúvida, está
consagrado no Brasil.
Aliás, hoje, mesmo aqueles que entendem a Constituição sob a
concepção procedimentalista388 admitem que não há como assegurar efetiva
deliberação majoritária consciente, sem o mínimo respeito aos direitos fundamentais,
o que equivale a reconhecer a imprescindibilidade da existência de condições
materiais – fáticas – para a participação no processo democrático. Nesta esteira, a
probidade é conditio sine qua non para que o processo deliberativo não seja
contaminado, mormente pelo vício da moralidade,389 de forma a macular o exercício
da cidadania em sua essência, bem como para a concretização das obrigações
prestacionais, decorrentes dos direitos essenciais à própria vida.390
Por óbvio, o princípio da probidade está incluído no núcleo mínimo
imposto pela Constituição e, a fortiori, excluído do espaço de discricionariedade da
Judiciário (judicialização dos direitos sociais) - é, em regra, mais alegada quanto maior é a corrupção
e os desvios de recursos, ou seja, a inobservância dos deveres de probidade. SARLET. Ingo
Wolfgang. “O Direito à Probidade Administrativa na Constituição Federal”. Palestra proferida no
seminário Improbidade Administrativa, realizado no Ministério Público Federal. Porto Alegre,
23/06/2006.
388
O procedimentalismo constitui uma linha de pensamento acerca da forma de se compreender o
papel da Constituição, cabendo ao texto constitucional “garantir o funcionamento adequado do
sistema de participação democrático, ficando a cargo da maioria, em cada momento histórico, a
definição de seus valores e de suas opções políticas. Nenhuma geração poderia impor à seguinte
suas próprias convicções materiais. BARCELLOS, Ana Paula de. “Neoconstitucionalismo, Direitos
fundamentais e controle de políticas públicas”. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (org.)
Direitos Fundamentais: Estudos em Homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p.37.
389
A violação à moralidade ( e, a fortiori, à probidade) no processo de captação da manifestação
popular para escolha dos seus representantes abala a legitimidade da representação, afetando a
estrutura do próprio regime democrático.
390
No dizer de Ana Paula de Barcellos, substancialistas e procedimentalistas “concordam, por razões
diversas, que os direitos fundamentais formam um consenso mínimo oponível a qualquer grupo
político, seja porque constituem elementos valorativos essenciais, seja porque descrevem exigências
indispensáveis para o funcionamento adequado de um procedimento de deliberação democrática. Em
suma: a Constituição é norma jurídica central no sistema e vincula a todos dentro do Estado,
sobretudo os Poderes Públicos. E, de todas as normas constitucionais, os direitos fundamentais
integram um núcleo normativo que, por variadas razões, deve ser especificadamente prestigiado.”
Ibidem, p. 39.
124
maioria parlamentar que de algum modo possa esvaziar sua imprescindível
efetividade. Eis o real sentido a ser conferido ao regime democrático.
Na mesma sintonia, mutatis mutandi, J. J. Gomes Canotilho assegura que
os direitos sociais devem ser focalizados como verdadeiros direitos subjetivos, pois
“Nem o Estado, nem terceiros podem agredir posições jurídicas reentrantes no
âmbito de procteção destes direitos (ex. saúde) – cfr. ACS TC nº 39/84 e 101/92.”391
A implantação da afirmação ora posta, no mundo real, está intimamente ligada ao
controle dos atos estatais destinados à concretização dos direitos fundamentais
sociais, mormente por parte do Estado392.
Essa fiscalização abarca não só o
mecanismo destinado à implementação dos direitos como também a aplicação do
instrumento sancionatório.
A admissão da premissa acima não significa que, para a prática dos atos
estatais, deve retirar-se o poder de eleição do administrador quanto à escolha do
mecanismo para cumprimento da prestação dos serviços que lhe são impostos pelo
ordenamento jurídico. Apenas a omissão ou a induvidosa má prestação do dever
autoriza a intervenção do Poder Judiciário, não somente com o fim de assegurar sua
efetivação, sob pena de se transformarem as normas pertinentes em mera
recomendação, mas também com o fim de aplicar as sanções próprias à violação
dos princípios que regem a administração (o que tem expressa previsão na Lei de
Improbidade Administrativa – art. 12 da Lei 8.429/92)393.
A conceituação como direito fundamental impõe ainda o enfrentamento
de questões diretamente ligadas ao regime dos direitos fundamentais, mormente no
391
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed., Lisboa: Editora
Almedina, 2003, p. 476.
392
Como já afirmado, não se ignora o reconhecimento da eficácia dos direitos fundamentais no plano
horizontal.
393
Acerca do tema, cabem as idéias já expostas por Juarez Freitas, a saber: “a crença na
discricionariedade ilimitada ou na existência de zona juridicamente irrelevante, interditada à
sindicabilidade, com a falha grave de permitir, no seio do Estado Constitucional, a permanência de
esfera exclusivamente política e – o que é pior – imune ao controle negativo, não obstante crivada de
vícios de fisiologismo ou de improbidade. Certo, o Poder Judiciário não deve, no geral das vezes,
determinar o conteúdo das escolhas públicas. Seria invasivo. Contudo, há situações excepcionais,
nas quais pode ordenar, por exemplo, a indenização dos danos injustos causados pela omissão ou
pela inércia no exercício de competência discricionária. É que , em pleno século XXI, apresenta-se
condenável a impune desvinculação das políticas públicas, isto é, a inércia leniente do controlador
perante decisões tomadas com manifesto excesso, desvio ou insuficiência. Não se trata – gize-sebem – de realizar um controle direto ou substitutivo das políticas públicas, porém de sindicar,
assumidamente, a juridicidade da implantação ou não, do direito fundamental à boa administração
pública”. FREITAS, Juarez. Ibidem, p. 11
125
tocante à sua proteção jurídica. Começa-se por admitir que o direito à probidade e
seu correspondente dever não pode estar restrito ao plano formal. Na verdade, nos
termos da assertiva acima esposada, a probidade atua igualmente como garantia
institucional e fundamental ao cumprimento do dever da boa administração.
Sendo assim, nasce a obrigação de legislar para assegurar a efetivação
desse direito fundamental à probidade; vale dizer, impõe-se ao legislador a adoção
de posições positivas, consistentes na criação de condições para que as instituições
incumbidas de tutela pela Constituição estejam efetivamente aparelhadas a dar
resposta a esse direito.
Além
disso,
incumbe
ao
Judiciário
controlar
a
legislação
infraconstitucional, de forma a impedir eventual desvio que afronte o direito à
probidade, ou torne ineficaz o seu exercício.
Mais importante, decorre do dever de proteção a obrigação de sanção
adequada e efetiva dos atos violadores da probidade, através da observância do
princípio da proibição de proteção deficiente.
Ao retirar do cidadão a possibilidade de utilizar o instrumento para defesa
do direito fundamental à probidade administrativa, através da Ação de Improbidade,
transferindo-a para outros legitimados, principalmente o Ministério Público, deve o
legislador viabilizar mecanismos suficientes e eficientes à efetiva proteção do direito
em comento, sob pena de se configurar a proibição da proteção deficiente.
Através de diversos dispositivos, a Constituição impôs ao legislador
infraconstitucional o dever de proteção da probidade administrativa.
Assim, a
produção da legislação infraconstitucional e a sua conseqüente interpretação e
aplicação não podem estar dissociadas deste cânone, sob pena de violação ao
citado princípio, também chamado de “proibição de insuficiência”394.
394
Infere-se,
Ainda acerca do tema, impõe-se registrar o pensamento de Lênio Luiz Streck, para quem os atos
do Poder Legislativo não podem ser discricionários. Ao contrário, devem observar o dever de
proteção de determinados bens fundamentais estabelecidos na Carta Magna, emprestando-lhes
eficácia. No dizer deste autor, voltado para o direito penal, mutatis mutandi aqui aplicado em perfeita
sintonia, “Não há, pois, qualquer blindagem que “proteja” a norma penal do controle de
constitucionalidade (entendido em sua profundidade, que engloba as modernas técnicas ligadas à
hermenêutica, como a interpretação conforme, a nulidade parcial sem redução de texto, o apelo ao
legislado, etc). STRECK, Lênio Luiz. “Do Garantismo Negativo ao Garantismo Positivo: a dupla face
126
nessa linha, que as normas infraconstitucionais não podem dificultar ou, em alguns
casos, inviabilizar a tutela do direito fundamental à probidade administrativa, através,
por exemplo, de proibições de acesso a elementos imprescindíveis à persecução
investigativa pelo Ministério Público.
Luis Virgílio Afonso da Silva395, ao abordar o tema, afirmou que:
“conquanto
a
regra
da
proporcionalidade
ainda
seja
predominantemente entendida como instrumento de controle contra
o excesso dos poderes estatais, cada vez mais vem ganhando
importância a discussão sobre a sua utilização na finalidade oposta,
isto é, como instrumento contra a omissão ou contra a ação
insuficiente dos poderes estatais. Antes se falava apenas em
übermasverbot, ou seja, proibição de excesso. Já há algum tempo
fala-se também em untermasverbot, que poderia ser traduzido por
proibição de insuficiência.” (grifo do autor).
Igualmente, Ingo Wolfgang Sarlet sustenta que a proibição de
insuficiência396 caracteriza-se, em regra, por uma omissão do Poder Público no
tocante ao cumprimento de uma imposição decorrente da Constituição –
“imperativo de tutela ou dever de proteção” – podendo também configurar-se na
hipótese de ação estatal destinada a afastar ou revogar legislação que assegure a
proteção de direito fundamental constitucionalmente consagrado.
A discricionariedade do agente estatal deve amoldar-se à impossibilidade
de violação do princípio da proibição da proteção deficiente ou por excesso, cujos
limites são traçados pelos princípios constitucionais. A margem na qual o agente
pode transitar constitui o campo da probidade administrativa, direito fundamental da
coletividade.
do princípio da proporcionalidade”. In: Júris Poiesis, Revista do Curso de Direito da Universidade
Estácio de Sá, Rio de Janeiro, n.7, jan 2005, p. 225-256.
395
SILVA, Luis Virgílio Afonso da. “O Proporcional e o Razoável”. In: Revista dos Tribunais, São
Paulo: Revista dos Tribunais, n. 798, abril de 2002, p. 23-50.
396
Nas palavras de Ingo Wolfang Sarlet: “O legislador, ao implementar um dever de prestação que
lhe foi imposto pela Constituição (especialmente no âmbito dos deveres de proteção) encontra-se
vinculado pela proibição de insuficiência, de tal sorte que os níveis de proteção (portanto, as
medidas estabelecidas pelo legislador) deveriam ser suficientes para assegurar um padrão mínimo
(adequado e eficaz) de proteção constitucionalmente exigido. A violação da proibição de
insuficiência, portanto, encontra-se habitualmente representada por uma omissão (ainda que parcial)
do Poder Público, no que diz com o cumprimento de um imperativo constitucional, no caso, um
imperativo de tutela ou dever de proteção, mas não se esgota nesta dimensão (o que bem
demonstra o exemplo da descriminalização de condutas já tipificadas na legislação penal e que não
se trata duma omissão no sentido pelo menos habitual do termo). In: SARLET, Ingo Wolfgang.
Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de
excesso e de insuficiência. In: Revista de Estudos Criminais, n. 12, ano 3, Sapucaia do Sul, Editora
Nota Dez, 2003, p. 86.
127
CAPÍTULO 9
A PROBIDADE E A EFICÁCIA DAS OBRIGAÇÕES PRESTACIONAIS DO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O dever de probidade possui estreita relação com a implementação dos
direitos fundamentais sociais, também identificados como direitos positivos a serem
assegurados pelo Estado, uma vez que tanto quanto a ação como a omissão podem
configurar conduta violadora do dever de probidade, com profundos e graves
reflexos nos referidos direitos fundamentais.
A constatação de que a corrupção e a ineficiência na gestão da verba
pública397 produzem nefastas conseqüências no campo dos direitos fundamentais
sociais, cuja prestação é dever do Estado, parece algo notório e, portanto,
perceptível a partir de uma simples e perfunctória análise do contexto social.398
Esta relação, sob uma perspectiva negativa – descumprimento do dever
de probidade em geral, visto a partir do conceito de boa administração –, pode se
manifestar sob dois aspectos distintos: diminuição da disponibilidade de verba para
397
No mês de abril de 2008, foi divulgado pela Controladoria-Geral da União o resultado de
fiscalização nos Municípios sorteados. Somente cinco dos 60 municípios contemplados na 24ª edição
do Programa de Fiscalização não apresentaram indícios de irregularidades em processos licitatórios.
Há Município em que foram constatadas irregularidades em todas as licitações realizadas no período
objeto
de
exame
dos
técnicos.
Controladoria-Geral
da
União.
Disponível
em:
<http://www.cgu.gov.br/Imprensa/Notícias/2008/03508.asp.> Acesso em: 05/06/2008.
398
Acerca do tema, em razão da pertinência, cabe aqui o registro (como forma de alerta e
contestação) de Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz: “As reações ao inquérito civil surgiram
quando ele passou a ser utilizado para apuração de grandes (às vezes gigantescos) danos aos
interesses sociais e difusos! Idêntica reação com certeza existiria contra o inquérito policial, caso este
fosse mais freqüentemente utilizado para investigar pessoas de projeção. Refiro-me aqui a grandes
empreendimentos imobiliários que aos poucos desfiguram todo o nosso litoral, suprimindo o que resta
de mata Atlântica... refiro-me ainda ao desperdício de quantias vultosas de dinheiro por
administrações negligentes, ou mesmo à ignominiosa e rotineira prática de atos deliberados de
malversação de recursos públicos, que tem feito a fortuna de políticos, administradores e
empresários. Quem se animará a negar que fatos dessa natureza ocorrem diariamente em nosso
País? Esses fatos, ao contrário daqueles inicialmente considerados, de menor significado, alcançam
diretamente toda a sociedade, e em maior profundidade a população carente. Explico: o dinheiro
público desviado de seu destino natural significa (de imediato) escolas que não serão construídas,
hospitais que são desativados ou funcionam em péssimas condições , moradias populares que
deixam de ser edificadas e empregos que não são gerados – e, por conseqüência, o péssimo nível
educacional, a evasão escolar, as precárias condições de saúde, alimentação e mesmo a morte, as
favelas e o desemprego – dos quais a população mais pobre não tem como escapar...” FERRAZ,
Antônio Augusto Mello de Camargo. “Inquérito Civil: Dez Anos de um Instrumento de Cidadania”. In:
Ação Civil Pública: Lei 7347/85 – reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. Milaré, Edis
(coord.) São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.65-66.
128
execução das obrigações prestacionais sociais e restrição ao recebimento de auxílio
estrangeiro.
Sob a óptica do cumprimento dos direitos fundamentais, como já referido,
eventual omissão do Estado, ou falta de razoabilidade na escolha dos atos a serem
executados, deve ser enquadrada como descumprimento do dever de probidade.
Considerando-se a primeira perspectiva, pode-se dizer que se trata de
relação inversamente proporcional, à medida em que o aumento dos atos de
improbidade, especialmente os atos de corrupção399 – a mais expressiva
materialização do descumprimento do dever de probidade –, resulta no
empobrecimento das execuções voltadas a garantir ao cidadão os mais elementares
direitos fundamentais assegurados no texto constitucional como saúde, educação,
moradia e segurança.400
Conforme conclusões de estudo do Banco Mundial, eventual diminuição
do nível de corrupção à metade resultaria em significativas mudanças no campo dos
direitos sociais, a saber: redução da mortalidade infantil; diminuição da desigualdade
na distribuição de renda e decréscimo do número de pessoas que sobrevivem com
menos de dois dólares por dia.
Foi ainda ventilado no referido estudo que a
relevante diferença entre os países não estava no nível de corrupção e sim na
efetividade de sua punição401.
399
Emerson Garcia, a partir da idéia de Agostin Gordillo, registra que há” (...) uma relação simbiótica
entre corrupção e comprometimento dos direitos fundamentais do indivíduo. Quanto maiores os
índices de corrupção, menores serão as políticas públicas de implementação dos direitos sociais.”.
Vide referido autor in: Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 19.
400
Em recentíssima fiscalização realizada pela Controladoria-Geral da União e pelo Departamento
Nacional de Auditoria do Ministério da Saúde – Denasus foram analisados mil convênios, do total de
1.452 que compõem o Plano de Fiscalização desencadeado a partir da Operação Sanguessuga.
Esses convênios foram celebrados com cerca de 600 municípios, visando à aquisição de unidades
móveis de saúde. Após o exame dos referidos mil convênios, que totalizaram R$ 99 milhões, foi
detectado um prejuízo total estimado em R$ 15,5 milhões. No tocante aos 1.452 convênios, a CGU
estimou um prejuízo em R$ 25 milhões. Os auditores da CGU concluíram que houve
superfaturamento em 70% dos convênios analisados; em 23% dos convênios, as ambulâncias
adquiridas e entregues não estavam sendo utilizadas; em 27% dos casos, os processos licitatórios
não apresentaram pesquisa de preços, como prescreve a Lei 8.666; e, em grande parte dos casos, as
licitações apresentaram evidências de conluio entre os participantes. Controladoria-Geral da União.
Disponível em: <http://www.cgu.gov.br/imprensa/notícias/2008/notícia 04808.asp>. Acesso em:
05/06/2008.
401
“A diferença básica entre países não é a existência da corrupção, mas a forma de puni-la. Há,
nesse particular, diferenças culturais. No Japão, país opaco, políticos e empresários que são
flagrados recebendo regalos em troca de benefícios se matam de vergonha. Na Itália, perdem o
poder. Na Arábia Saudita, perdem a mão. Em Cingapura, paraíso da transparência, são condenados
129
No mesmo sentido, a Organização das Nações Unidas, após a celebração
da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, registrou que entre as
conseqüências da corrupção estão o desvio do dinheiro público, a redução de
investimentos e o enfraquecimento do Estado de Direito. Foi ainda assinalado que a
corrupção “viabiliza práticas antidemocráticas que aumentam as tensões sociais,
diminuem as ofertas de serviços essenciais, facilitam a atuação do crime organizado
e comprometem o desenvolvimento”.402
Igualmente merece destaque a pesquisa realizada pelo professor Marcos
Gonçalves da Silva,403 junto à Faculdade Getúlio Vargas de São Paulo. Segundo o
referido estudioso, “se a conta da corrupção for dividida igualmente por todos os
brasileiros, num exercício estatístico, o custo, para cada um, corresponderia a 6658
reais por ano. Se não houvesse maracutaia, a produtividade do país aumentaria, e
como resultado a renda per capta dos brasileiros poderia subir para 9800 reais nas
próximas décadas.”
Outro aspecto a ser destacado no tocante aos reflexos da inobservância
do dever de probidade frente aos demais direitos sociais a serem assegurados
através de obrigações positivas consiste em que a corrupção, em determinadas
situações, dificulta o acesso ao auxílio de organismos internacionais.404 A projeção
de
uma
imagem
de
corrupção
onera
substancialmente
os
empréstimos
internacionais pleiteados pelos países. Em comparação com a Finlândia, há anos
apontada pela Transparência Internacional como uma das três primeiras colocadas
no Corruption Perception Index (CPI),405 o Brasil suporta um custo 6,5% maior na
obtenção de empréstimos.406 407
à
morte.”
In:
Revista
Veja
nº
1691,
Abril,
de
14/03/2001,
disponível
em:
<http://veja.abril.com.br/140301/p_048.html>. Acesso em 26/02/2008.
402
Disponível em: https://www.unodc.org/pdf/brazil/folder_corrupcao.pdf. Acesso em: 20/06/2008.
403
In:
Revista
Veja
nº
1691,
Abril,
de
14/03/2001,
disponível
em:
<http://veja.abril.com.br/140301/p_048.html>. Acesso em 26/02/2008.
404
A Organização dos Estados Americanos editou, em agosto de 1998, “Modelo de Legislação sobre
enriquecimento ilícito e suborno transnacional, que, dentre outras sanções, previa a impossibilidade
de obtenção de benefícios fiscais ou subvenções de origem pública”. GARCIA, Emerson; ALVES,
Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 27. O presidente do Banco Interamericano
de Desenvolvimento – BID – Luiz Alberto Moreno, anunciou que a gestão da entidade condicionará
os créditos do banco ao combate à corrupção”. In: CARVALHIDO, Eunice Pereira Amorim. Ética do
Agente Público: dever absoluto em face do Direito Brasileiro e do Direito Internacional. Dissertação de
Mestrado em Direito. Brasília, 2006, p. 111.
405
A Transparência Internacional apresenta anualmente, desde 1995, a ferramenta de pesquisa
denominada Corruption Perception Index – CPI - na qual são analisados e ranqueados 180 países de
130
Segundo registro da Transparência Internacional, nas Américas a luta
contra a corrupção remanesce longe de ser vitoriosa. Um terço dos países obtiveram
pontuação inferior a 3, segundo o índice CPI, indicando que a corrupção é percebida
como um problema endêmico. Pouco mais de dois quintos dos países pontuaram
entre 3 e 5 (de acordo com o já citado índice do CPI), demonstrando, portanto, que
os níveis de corrupção entre agentes públicos e políticos são percebidos como algo
grave pelos especialistas e homens de negócios. Somente 8 dos 32 países
avaliados na América estão acima da pontuação média, qual seja, 5. Isto é
evidentemente alarmante, considerando as óbvias ligações entre a corrupção e os
altos níveis de pobreza, desigualdade e violência na região.408
A Transparência Internacional avalia ainda, através do denominado Bribe
Payers Index (BPI), a propensão das empresas dos países industrializados em
pagar propinas. Trata-se de avaliação a partir do lado de quem alimenta a corrupção
e, com isso, viola o princípio da probidade. Dos Trinta países analisados, as
empresas brasileiras, russas, chinesas e indianas estão entre as piores colocadas,
ocupando, respectivamente, 23ª, 28ª, 29 e 30ª posições.409
Entre 10 de novembro de 2006 e 26 de janeiro de 2007, o Banco Mundial
conduziu uma consulta em larga escala visando à definição do seu papel estratégico
com intuito de fortalecer o engajamento da instituição em governança e anticorrupção. As consultas foram realizadas junto a representantes dos governos, da
sociedade civil, setor privado e área acadêmica, abrangendo, entre outros, 37 países
em desenvolvimento. A partir dos dados recolhidos, concluiu-se que o principal
trabalho da entidade consiste em fortalecer a habilidade dos países em
desenvolvimento no combate à pobreza. Para tanto, cinco linhas de ação foram
extraídas, merecendo destaque àquela que informa “ser importante contar com
acordo
com
os
níveis
de
corrupção.
Disponível
em:
<http://www.transparency.org/policy_research/surveys_indices/cpi.> Acesso em: 20/06/2008.
406
Revista
Veja
nº
1691,
Abril,
de
14/03/2001,
disponível
em:
<http://veja.abril.com.br/140301/p_048.html>. Acesso em 26/02/2008.
407
O Brasil, no ano de 2007, recebeu a pontuação de 3,4, obtendo a 72ª colocação no CPI. Na
América do Sul, o Chile é um dos poucos países que obteve pontuação acima da média 5, estando
em 22º lugar, com o escore de 7.
408
Disponível em:
<http://www.transparency.org/policy_research/surveys_indices/cpi/2007/regional_highlights_factsheet
s>. Acesso em: 20/06/2008.
409
Disponível
em:
<http://www.transparency.org/policy_research/surveys_indices/bpi/bpi_2006>.
Acesso em: 20/06/2008.
131
claros e transparentes padrões para definir e avaliar o compromisso dos governos
com a boa governança e o combate à corrupção, bem como o monitoramento do
progresso.410
As constatações acima apontadas reforçam a assertiva de que a
observância ao princípio da probidade administrativa está umbilicalmente ligada ao
cumprimento dos mais elementares direitos fundamentais.
A segunda perspectiva acima anunciada diz respeito não exatamente às
conseqüências de outros atos de improbidade frente aos direitos sociais, mas às
escolhas desarrazoadas que, por si só, configuram violação ao dever de
probidade,411 no momento em que se afastam dos fins constitucionalmente
estabelecidos como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, ex vi
dos artigos 6º e 7º, da Carta Magna.412
Reitera-se aqui, por oportuna, a assertiva esposada anteriormente (ao se
tratar do princípio da eficiência) no sentido de que o uso adequado dos recursos
financeiros pelos agentes estatais constitui exigência da administração eficiente e
eficaz, vale dizer, do cumprimento do direito fundamental à boa administração, a
depender da observância do princípio da probidade, como espécie de direito
difuso.413
410
Disponível
em:
<http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/TOPICS/EXTGOVANTICORR/0,,contentMDK:210960
79~menuPK:3065285~pagePK:210058~piPK:210062~theSitePK:3035864,00.html>.
Acesso
em
20/06/2008.
411
Como já relatado anteriormente, o emprego eficiente dos recursos públicos pertencentes à
coletividade, constitui direito difuso inserto dentro do conceito de probidade, portanto judicialmente
tutelado através do Ministério Público ou dos demais co-legitimiados.
412
“Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais daRepública Federativa do Brasil: I-construir uma
sociedade livre, justa e solidária; II-garantir o desenvolvimento nacional; III-erradicar a pobrezas e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”;
413
Estudo do Banco Mundial, realizado em 7.400 hospitais públicos e privados do Brasil, divulgado
em junho de 2008, mostra que “o sistema brasileiro é perdulário e ineficiente. Numa escala que vai
de 0 a 1, a rede de saúde foi reprovada com a nota 0,3. De acordo com o Banco Mundial, os hospitais
brasileiros também são caros e funcionam mal. Cerca de 60% dos leitos hospitalares estão ociosos,
mas o Brasil ainda é o país onde pacientes morrem à espera de atendimento. O custo de uma
internação em um hospital público é 50% superior ao de um hospital privado ou administrado por
associações não-governamentais. Três em cada dez internações são desnecessárias, causando um
desperdício de 10 bilhões de reais a cada ano, a mesma quantia que se pretende arrecadar com o
novo imposto. Não adianta apenas ter recursos a mais. É preciso gastar bem o dinheiro, disse o
pesquisador Bernard Couttolenc, um dos autores do estudo.” In: Revista Veja nº 2065, de 18/06/2008,
disponível em: <http://veja.abril.com.br/180608/p_074.shtml>, acesso em 24/06/2008. A pesquisa
132
Alias, segundo Norberto Bobbio,414, num Estado de Direito, “além do juízo
sobre a eficiência e do juízo moral ou de moral política”, a atividade política dos
órgãos superiores do Estado deve observar também “as normas fundamentais da
Constituição.”
Não se pretende aqui, ingenuamente, imaginar que as ditas escolhas
desarrazoadas415, evidentes nas diversas esferas dos poderes do Estado, serão
corrigidas como passe de mágica, fruto das Ações de Improbidade Administrativa.
Nessa perspectiva analítica, pari passu com o fortalecimento dos mecanismos de
fiscalização, é fundamental a mudança de paradigma no que diz respeito à
participação da sociedade nas escolhas que afetam o mínimo essencial.
É indubitável a existência de diversas formas de participação popular no
caminho a ser trilhado pelo Estado, definido como ente organizado para a
consecução do bem da coletividade.416
No que tange aos direitos sociais, o reconhecimento do direito
fundamental à boa administração reclama a possibilidade de utilização da Ação de
Improbidade como mecanismo de sanção, quando constatada relevante omissão
pelos agentes estatais na prática dos atos que deveriam e poderiam ter sido
concretizados.
Sob essa perspectiva de análise, eventuais omissões ou desvios
comportamentais relevantes (cujo exame pressupõe o crivo do postulado da
proporcionalidade) na execução das medidas necessárias para implementação das
obrigações prestacionais, como corolário dos direitos fundamentais, sempre tendo
realizada após cinco anos de estudo demonstrou ainda que há pouca informação sobre gastos e
desempenhos nos hospitais. “São serviços muito caros e que nem sempre contribuem para a boa
saúde da população, informou Gerard La Forgia, principal especialista em saúde do BIRD” In: Jornal
“O Globo”, 13/06/2008.
414
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos. Trad.
Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Elsevier/Campus, 2000, p.203.
415
O campo de discricionariedade do agente estatal não lhe permite o investimento de expressivo
numerário no campo da publicidade sem um fim relevante, ainda que formalmente enquadrado às
exigências do artigo 37, § 1º, da Constituição de 1998 (“a publicidade dos atos, programas, obras,
serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação
social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal
de autoridades ou servidores públicos”), quando faticamente se constata a ausência , v.g. de leitos e
remédios para pacientes relegados a tratamentos desumanos que, muitas vezes, culminariam em
mortes que poderiam ser evitadas.
416
O presente trabalho não tem, entretanto, o condão de examinar a participação social na
implementação das políticas estatais, razão pela qual não se adentrará nesta seara.
133
como paradigma o fim do Estado,417 constitui ato de improbidade a ser atacado via
Ação de Improbidade.
Assim posta a questão, deixando-se de lado a antiga perspectiva de
subordinação dos direitos de cidadania418 – aqui compreendidos os direitos
fundamentais sociais, dentre os quais o de influência no rumo das políticas públicas
– à vontade do Estado, ampliam-se os mecanismos igualitários capazes de
assegurá-los de forma real, a partir dos verdadeiros anseios do povo.419 Diz-se, com
isso, que a atuação do Estado deve observar uma funcionalidade na qual a
participação da coletividade na fixação dos interesses coletivos encontre-se
contemplada.420
Exatamente neste sentido orientam-se as palavras de Emerson Garcia421
ao esclarecer que “o administrador, tal qual mandatário, não é o senhor dos bens
que administra, cabendo-lhe tão-somente praticar atos de gestão que beneficiem o
verdadeiro titular: o povo”, através do plano de governo insculpido na Lei Maior.422
Esta assertiva deve ser entendida respeitando-se os direitos fundamentais e a idéia
de que Democracia não significa necessariamente Direito da Maioria423 (Democracia
substancial ou material, em contraposição ao conceito de Democracia formal), já que
417
Art. 3º, inciso IV, já transcrito anteriormente.
“povo ignorante não se insurge contra o agente corrupto, o agente corrupto desvia recursos
públicos e os afasta das políticas de concreção da cidadania, o povo fica mais ignorante e
dependente daquele que o lesou, sendo incapaz de romper o ciclo – quando muito, altera os
personagens.” GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Ibidem,
p.17.
419
“em tudo, democracia é, segundo seu princípio fundamental, um assunto de cidadãos
emancipados, informados, não de uma massa ignorante, apática, dirigida apenas por emoções e
desejos irracionais que, por governantes bem-intencionados ou mal-intencionados, sobre a questão
do próprio destino, é deixada na obscuridade”. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional
da República Federativa da Alemanha. Trad. de Luis Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 1998, p.133.
420
NEIVA, José Antônio Lisbôa. Improbidade Administrativa. estudo sobre a demanda na ação de
conhecimento e cautelar. Niterói: Impetus, 2006, p.5.
421
GARCIA, Emerson e ALVES PACHECO, Rogério. Improbidade Administrativa. Ibidem, p. 3.
Igualmente, Dalmo de Abreu Dallari sustenta que “os próprios componentes da sociedade é que
devem orientar suas ações, no sentido do que consideram o bem comum.” Vide referido autor in:
Elementos de Teoria Geral do Estado. Ibidem, p. 31.
422
A partir da assertiva de que “quem governa é a Constituição”, cunhada do Direito Norte-Americano
(nos termos da explanação de Ingo Wolfgang Sarlet na palestra “O Direito à Probidade Administrativa
na Constituição Federal”), cabe à Constituição da República de 1988, na qualidade de instrumento
normativo, dotado de legitimação popular, cravado por valores que lhe dão o norte, governar os atos
perpetrados por todos os agentes estatais.
423
José Eduardo Faria ressalta que os valores devem prevalecer a despeito do critério da maioria.
Vide referido autor in: A definição do Interesse Público, in Processo Civil de Interesse Público: O
Processo como Instrumento de Defesa Social. São Paulo: Revista dos Tribunais e Associação do
Ministério Público, 2003, p. 79.
418
134
esta não pode dispor acerca do núcleo fundamental dos direitos fundamentais, no
qual se insere o princípio da probidade, em relação ao qual não se admite restrição.
Além disso, diante das considerações expressas anteriormente, deflui
como conseqüência perfeitamente compatível com o Estado Democrático de Direito
a possibilidade de controle, pelo Poder Judiciário, de eventual desproporção do
numerário público empregado pelos gestores e o efetivo benefício auferido pela
coletividade e não apenas por uma parcela intencionalmente beneficiada de forma
desarrazoada.424
Desde a implantação da República, não há mais espaço para o uso da
res publica como terra de ninguém, situação que tem origem no período colonial,
marcada inclusive pela corrupção. Essa nefasta prática necessita ser abolida ou, ao
menos, minimizada de forma considerável.
Nesse sentido, merece destaque a
análise de Juarez Freitas425.
Assim, pode-se dizer que, ao transferir a parcela de poder que lhe é
imanente, cada cidadão, em contrapartida, adquire o direito a que esse exercício
que se faz em seu nome (a ser compreendido pelo Estado no plano coletivo) o seja
de forma proba, com estrita obediência aos ditames estabelecidos pela ordem
constitucional que, como afirmado, impõe limites aos poderes públicos. A propósito,
considera-se igualmente oportuna a interpretação de Ingo Wolfgang Sarlet426.
424
Segundo Germana de Oliveira Moraes, “a moderna compreensão filosófica do Direito, marcada
pela normatividade e constitucionalização dos princípios gerais do Direito e pela hegemonia
normativa e axiológica dos princípios, com a conseqüente substituição, no Direito Administrativo, do
princípio da legalidade pelo princípio da juridicidade, demanda, por um lado, uma redefinição da
discricionariedade, e por outro lado, conduz a uma redelimitação dos confins do controle jurisdicional
da Administração Pública”. Vide referida autora in: Controle Jurisdicional da Administração Pública.
Ibidem, p.30.
425
Nas palavras textuais de Juarez Freitas: “(...) em ambiente maculado, desde o período colonial,
pela maciça exposição a métodos fisiológicos e até de sistêmica corrupção, a sindicabilidade erguida
ao plano dos princípios fundamentais merece uma afirmação mais incisiva, afastados os paralisantes
temores no tocante ao protagonismo dos controladores. Discrição não significa, no Estado
Constitucional, liberdade para o erro teratológico ou para vantagens indevidas e voluntarismos de
matizes irracionais, ainda que dissimulados em ideologia.” Vide referido autor in: Discricionariedade
Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. Ibidem, p. 8.
426
Conforme palavras de Ingo Wolfgang Sarlet: “verifica-se que os direitos fundamentais podem ser
considerados simultaneamente pressupostos, garantia e instrumento do princípio democrático de
autodeterminação do povo por intermédio de cada indivíduo, mediante o reconhecimento do direito de
igualdade (perante a lei e de oportunidades), de um espaço de liberdade real, bem como por meio de
outorga do direito à participação (com liberdade e igualdade), na conformação da comunidade e do
processo político, de tal sorte que a positivação e a garantia do efetivo exercício de direitos políticos
(no sentido de direitos de participação e conformação do status político) podem ser consideradas o
135
A simples previsão constitucional nem sempre é suficiente para assegurar
a efetividade dos direitos fundamentais, principalmente os sociais, num contexto em
que predominavam as ações individuais.
Para que se assegure o direito
fundamental à probidade, correspondente ao dever a ser observado por todos os
agentes estatais, o atuar do Ministério Público,427 dos demais co-legitimados nas
ações coletivas e do Poder Judiciário, no campo dos direitos sociais, deve estar
atento a essa advertência, estreitamente identificado com um papel transformador.
É imanente ao conceito de democracia – principalmente quando se trata
de democracia representativa na qual se está diante da defesa de interesses da
coletividade –, e à fórmula republicana que procura alargar o espectro de controle, a
viabilidade de responsabilização de todos os agentes que exercem atividades
fundamento funcional da ordem democrática.” SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos
Fundamentais. 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
427
Registre-se, por oportuno, o entendimento do STJ, através do voto do Ministro Luiz Fux, ao
reconhecer a importância da cidadania no controle dos atos da Administração, através das ações
coletivas: “AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE. MINISTÉRIO PÚBLICO. DANO AO ERÁRIO
PÚBLICO.(...)3. O Ministério Público é parte legítima para promover Ação Civil Pública.visando ao
ressarcimento de dano ao erário público.4. O Ministério público, por força do art. 129, III, da CF/88, é
legitimado a promover qualquer espécie de ação na defesa do patrimônio público social, não se
limitando à ação de reparação de danos. Destarte, nas hipóteses em que não atua na condição de
autor, deve intervir como custos legis (LACP, art. 5º, § 1º; CDC, art. 92; ECA, art. 202 e LAP, art. 9º).
5. A carta de 1988, ao evidenciar a importância da cidadania no controle dos atos da administração,
com a eleição dos valores imateriais do art. 37, da CF como tuteláveis judicialmente, coadjuvados por
uma série de instrumentos processuais de defesa dos interesses transindividuais, criou um
microsistema de tutela de interesses difusos referentes à probidade da administração pública, nele
encartando-se a Ação Popular, a Ação Civil Pública e o Mandado de Segurança Coletivo, como
instrumentos concorrentes na defesa desses direitos eclipsados por cláusulas pétreas. 6. Em
conseqüência, legitima-se o Ministério Público a toda e qualquer demanda que vise à defesa do
patrimônio público sob o ângulo material (perdas e danos) ou imaterial (lesão à moralidade). 7. A
nova ordem constitucional erigiu um autêntico 'concurso de ações' entre os instrumentos de tutela dos
interesses transindividuais e, a fortiori , legitimou o Ministério Público para o manejo dos mesmos. 8.
A lógica jurídica sugere que legitimar-se o Ministério Público como o mais perfeito órgão intermediário
entre o Estado e a sociedade para todas as demandas transindividuais e interditar-lhe a iniciativa da
Ação Popular, revela contraditio in terminis . 9. Interpretação histórica justifica a posição do MP como
legitimado subsidiário do autor na Ação Popular quando desistente o cidadão, porquanto à época de
sua edição, valorizava-se o parquet como guardião da lei, entrevendo-se conflitante a posição de
parte e de custos legis.10. Hodiernamente, após a constatação da importância e dos inconvenientes
da legitimação isolada do cidadão, não há mais lugar para o veto da legitimatio ad causam do MP
para a Ação Popular, a Ação Civil Pública ou o Mandado de Segurança coletivo.11. Os interesses
mencionados na LACP acaso se encontrem sob iminência de lesão por ato abusivo da autoridade
podem ser tutelados pelo mandamuscoletivo. 12. No mesmo sentido, se a lesividade ou a ilegalidade
do ato administrativo atingem o interesse difuso, passível é a propositura da Ação Civil Pública
fazendo as vezes de uma Ação Popular multilegitimária.13. As modernas leis de tutela dos interesses
difusos completam a definiçãodos interesses que protegem. Assim é que a LAP define o patrimônio e
a LACP dilargou-o, abarcando áreas antes deixadas ao desabrigo, como o patrimônio histórico,
estético, moral, etc. 14. A moralidade administrativa e seus desvios, com conseqüências patrimoniais
para o erário público enquadram-se na categoria dos interesses difusos, habilitando o Ministério
Público a demandar em juízo acerca dos mesmos. (...). REsp. 401964/RO. Rel. Min. LUIZ FUX,
julgado em 22/10/2002, publicado DJ em 11/11/2002. Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso
em: 27/05/2008.
136
estatais, que visam a atender o interesse público dessa coletividade,428 como
conseqüência lógica do dever de observância do princípio da probidade,
reconhecido como corolário de um direito fundamental difuso, pela Lei Maior.
O diagnóstico acima foi evidenciado por Lênio Luiz Streck429 em registro
lançado no artigo “A Necessária Constitucionalização do Direito: o óbvio a ser
desvelado”.
Com fundamento nesses postulados, deve-se analisar as normas voltadas
à proteção do direito fundamental à probidade administrativa, concluindo-se que a
eficácia das normas constitucionais de proteção do referido direito reclama
redefinição do papel dos atores envolvidos na prestação jurisdicional.
Com isso, todo o sistema instituído para proteção da probidade merece
releitura, calcada na premissa de que se trata de defesa de um direito fundamental
difuso.
O Estado Democrático de Direito reclama permanente debate acerca do
atuar de todos os agentes políticos e públicos, cujo trabalho deve sempre estar
voltado ao bem-estar coletivo, razão da existência do Estado.
Somente dessa
forma, haverá plena sintonia com os anseios constitucionais, representados, in casu,
pela fiel obediência aos princípios esculpidos na Carta Magna, em que a
compreensão do dever de probidade pressupõe dirigir o olhar em favor do genuíno
interesse da sociedade, pautado a partir dos direitos fundamentais de titularidade
transindividual.
428
A representação da qual se faz menção aqui não se restringe à representação decorrente do voto
e sim de todo agente que realiza atividade em nome do Estado, instituído para a promoção do bem
da coletividade.
429
Lenio Luiz Streck elucida que “Em nosso país, não há dúvida de que, sob a ótica do Estado
Democrático de Direito – em que o Direito deve ser visto como instrumento de transformação social –,
ocorre uma desfuncionalidade do Direito e das Instituições encarregadas de aplicar a lei. O Direito
brasileiro e a dogmática jurídica que o instrumentaliza está assentado em um paradigma liberalindividualista que sustenta essa desfuncionalidade, que, paradoxalmente, vem a ser a sua própria
funcionalidade! Ou seja, não houve ainda, no plano hermenêutico, a devida filtragem – em face da
emergência de um novo modelo de Direito representado pelo Estado Democrático de Direito – desse
(velho/defasado) Direito, produto de um modelo liberal-individualista-normativista de direito.” Vide
referido autor in: A Necessária Constitucionalização do Direito: o óbvio a ser desvelado.In: Revista
Direito Santa Cruz do Sul, nº 9/10, jan./dez. 1998, p. 55/56
137
10 - CONCLUSÃO
Como anunciado na introdução, procurou-se examinar os fundamentos
teóricos da tutela do princípio da probidade, a partir das fontes consultadas, cabendo
neste momento a apresentação de algumas considerações finais, particularmente
orientadas para a garantia do controle e da fiscalização do atuar dos agentes
estatais na gestão pública.
De início, é premente ressaltar que o Estado contemporâneo deve ser
capaz de responder aos anseios de uma sociedade pluralista, sem descurar-se dos
valores mínimos que dão suporte aos direitos fundamentais, não mais considerados
apenas sob a ótica individual, eis que estão focados, sobretudo, nos reclamos,
expectativas e necessidades da coletividade.
Sob essa diretriz, o cumprimento do dever de probidade estabelece os
contornos e direciona as atividades dos agentes estatais, de forma a assegurar aos
indivíduos que compõem a sociedade a observância dos direitos fundamentais que
lhes são inerentes, propiciando o respeito à dignidade da pessoa humana, que se vê
refletido nas mais variadas dimensões (saúde, educação, moradia, alimentação, e
similares).
Nesse diapasão, uma sociedade caracterizada por marcantes diferenças
sociais, como é o caso da brasileira, clama ainda mais por submissão dos atos
estatais ao conceito de probidade, cuja compreensão necessita ser expandida para
além da idéia de corrupção stricto sensu, como verdadeiro direito difuso
fundamental, dessarte, pertencente à coletividade.
O enquadramento da observância da probidade como direito fundamental
é uma decorrência da expressão da cidadania, uma vez que a participação dos
cidadãos na vontade do Estado também configura um direito fundamental. Nesta
medida, o controle do resultado dessa exteriorização, seja diretamente ou por
intermédio do Ministério Público, via ação coletiva de Improbidade Administrativa,
constitui uma extensão do referido direito fundamental difuso.
138
O conceito de probidade deve abarcar a idéia de boa governança, a ser
traduzida pela justa e moral aplicação dos recursos da sociedade. Nesse passo, o
parâmetro precisa ser a redução da espessa desigualdade social, notoriamente
presente no espectro nacional.
É inelutável que a idéia de boa governança
pressupõe o reconhecimento e a fiel observância dos princípios basilares que regem
as condutas dos agentes públicos e políticos, nomeadamente, a legalidade, a
impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência.
Todavia, contemplando o que se passa na realidade pátria, é notório que
um número considerável de agentes públicos e políticos desvia-se de suas
finalidades, visando a interesses que vão de encontro às expectativas e reclamos da
coletividade, fixados desde a origem do Estado Moderno e hoje expressamente
consagrados no texto constitucional no artigo 3º.
Tal desvio de conduta ocorre a despeito de o país estar formalmente
dotado de uma estrutura político-jurídica organizada para a promoção do bem
comum – o Estado - devendo, destarte, pautar sua conduta unicamente por essa
premissa. Compreende-se o Estado, portanto, como instituição instrumental,
finalisticamente dirigido à realização dos direitos assegurados constitucionalmente.
Sendo assim, mostra-se evidente a necessidade de que o controle sobre
os atos dos agentes públicos lato sensu seja realizado de forma rígida e
permanente, subsidiando a solidificação de uma cultura baseada nos valores
imanentes ao Estado Democrático de Direito, em que a concretização do bem geral
é condição basilar.
Dessa forma, vislumbra-se a ação coletiva de Improbidade Administrativa
como instrumento adequado para a proteção do patrimônio público, cujo conceito
não se restringe à idéia de erário. Em verdade, o patrimônio público merece ser
compreendido não mais como pertencente exclusivamente às entidades estatais,
autárquicas e paraestatais, mas a toda a sociedade. O termo patrimônio público
compreende o conjunto de bens e direitos de valor econômico, artístico, estético,
histórico, turístico, incluindo-se o aspecto moral, como valor da coletividade, e os
direitos sociais constitucionalmente assegurados aos indivíduos.
139
Assim, a Ação coletiva de Improbidade Administrativa não deve se
restringir apenas à reparação de efetivo dano na sua acepção monetária. A
deflagração desta ação coletiva necessita ser empregada como uma das vias para a
proteção dos princípios constitucionais da administração pública que, como
demonstrado, densificam o princípio da probidade, qualificado como direito
fundamental difuso.
O direito à observância do princípio da probidade é o continente no qual
estão contidos os princípios que orientam a atuação dos agentes estatais,
especialmente aqueles elencados no artigo 37, caput, da Lei Maior.
Conquanto seja dever de todos a adoção de condutas pautadas pela
probidade, de forma a contribuir para sua disseminação, as prerrogativas
estabelecidas aos agentes políticos devem merecer nova abordagem em que a
tutela da probidade, na qualidade de direito fundamental, principalmente através do
processo judicial, seja o paradigma. O modelo republicano não se coaduna com a
irresponsabilidade de quem exerce prerrogativa pública. Nesta linha de pensamento,
a ação coletiva de Improbidade Administrativa deve estender-se a todos os agentes
estatais, independentemente da função por cada qual desempenhada.
Após os esclarecimentos apresentados, pode-se concluir que o direito
não pode ser um mecanismo para justificar os governos autoritários, embora
exercidos com base na legislação. Na verdade, no escopo do modelo de Estado
Democrático de Direito, o Poder é disciplinado e limitado pelo Direito que, por sua
vez, pressupõe que as normas jurídicas não devem contemplar apenas os requisitos
formais que condicionam sua vigência ou existência. Acima de tudo, essas deverão
ser congruentes com os princípios e valores constitucionais que condicionam sua
validade.
Nessa medida, é possível evidenciar que o cumprimento do dever de
probidade encontra-se diretamente ligado à observância dos direitos sociais
fundamentais
assegurados
aos
cidadãos,
cuja
implementação
se
mostra
imprescindível como condição para o respeito ao princípio da dignidade da pessoa
humana.
A
efetividade
dos
direitos
sociais
fundamentais
pressupõe,
140
imperiosamente, a observância do princípio da probidade por parte dos agentes
estatais.
É indispensável, portanto, a implementação de instrumentos eficazes que
possibilitem ao Ministério Público (cabe registrar que há necessidade de
estruturação do Ministério Público para enfrentar o combate à improbidade com
eficiência, aparelhando os órgãos de execução com estrutura técnica suficiente
capaz de subsidiar o titular da investigação, principalmente através de profissionais
detentores de conhecimentos necessários à interpretação de informações em
diversas áreas, mormente nos campos da auditoria, saúde, educação e do meio
ambiente, onde se verificam os mais expressivos atos de improbidade) o
cumprimento do dever de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis”, fixado pela Carta Magna, no artigo
127, caput430, através da ação coletiva de Improbidade Administrativa.431
A mencionada implementação não reclama profundas mudanças
normativas432 no âmbito do ordenamento jurídico pátrio; demanda apenas a releitura
das normas insertas no arcabouço jurídico, cotejando-as com os princípios e regras
insculpidos na Carta Magna, por meio da utilização dos mecanismos de controle da
constitucionalidade.
Na mesma linha de desdobramento acima apontada, extrai-se como
consectário lógico que eventuais mudanças legislativas, editadas para restringir ou
mesmo inviabilizar o cabimento da ação coletiva de Improbidade Administrativa,
ferem o núcleo mínimo de balizamento do ordenamento jurídico – inferido dos
430
“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis.” BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. In: NERY JUNIOR, Nelson;
ANDRADE NERY, Rosa Maria. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 122.
431
Segundo Luiz Werneck Vianna, “o novo desenho institucional concedido ao Ministério Público pela
Carta de 1988 é revelador da intenção construtivista do constituinte em produzir uma reordenação
democrática da sociedade brasileira. Foi elaborado a partir da compreensão de que o autoritarismo
político não residiria apenas na ação excludente dos interesses da maioria da população, originandose também da natureza fragmentária do tecido social, pouco dotado da capacidade de estimular a
associação e a participação em favor do bem comum.” Vide referido autor in: A Judicialização da
Política e das Relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p.83.
432
A despeito dessa assertiva, não se pode olvidar que a produção normativa deve tomar como base,
sempre, a realidade brasileira, em que se faz imperioso severo combate aos atos de improbidade,
sob pena da ausência de efetividade desde o nascedouro, obviamente balizado pelos valores
próprios do Estado Democrático de Direito.
141
princípios e regras insertos na Constituição – do qual a proteção da probidade é
parte integrante e a fortiori, violam o princípio da proibição de proteção deficiente.
142
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FRANCIULLI NETTO. Julgado em 04/09/2003, DJ 03/11/2003. Disponível em:
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______.______. Recurso Especial nº 401964. Recorrente: Valla Construtora
Comércio e Representação e Assessoria Ltda. Recorrido: Ministério Público do
Estado de Rondônia. Rel. Min. LUIZ FUX. Julgado em 22/10/2002. DJ 11/11/2002.
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______.______. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 6183.
Recorrente: Roberto Shitiro Sato. Recorrido: Banco do Brasil S.A. Rel. Min. RUY
ROSADO DE AGUIAR. Julgado em 14/11/1995, DJ 18/12/1995. Disponível em:
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______.
SUPREMO
TRIBUNAL
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Magistrados Brasileiros – AMB. Requerido: Conselho Nacional de Justiça. Rel. Min.
CARLOS BRITTO. Julgado em 16/02/2006, DJ 01/09/2006. Disponível em:
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______.______. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3853. Requerente:
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Requerido: Assembléia
Legislativa do Estado de Mato Grosso do Sul. Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA. Julgado
em 12/09/2007, DJ 26/10/2007. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em:
10/04/2008.
______.______. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2306. Requerente:
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Requerido: Congresso
Nacional. Rel. Min. ELLEN GRACIE. Julgado em 21/03/2002, DJ 31/10/2002.
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______.______. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2797. Requerente:
Associação Nacional do Ministério Público. Requerido: Congresso Nacional. Rel.
Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. Julgado em 15/09/2005, DJ 19/12/2006. Disponível
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______. ______. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 262134.
Agravante: Estado do Maranhão. Agravado: Ministério Público Federal. Rel. Min.
CELSO DE MELLO. Julgado em 12/12/2006, DJ 02/02/2007. Disponível em:
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______.______. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 365368.
Agravante: Município de Blumenau e outro. Agravado: Ministério Público do Estado
de Santa Catarina. Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI. Julgado em 22/05/2007,
DJ 29/06/2007. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 19/05/2008.
______.______. Reclamação nº 2138. Reclamante. União. Reclamado: Juiz Federal
Substituto da 14ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal. Rel. Min. NELSON
JOBIM. Rel. para Acórdão, Min. GILMAR MENDES. Julgado em 13/06/2007. DJ
18/04/2008. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 27/05/2008.
______. ______. Recurso Extraordinário nº 170768. Recorrente: Wady Mucare e
outros. Recorrido: Carlos Eduardo Mendonça Melluso. Rel. Min. Ilmar Galvão.
Julgado em 26/3/1999, DJ 13/8/1999. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>.
Acesso em: 10/04/2008.
______.______. Recurso Extraordinário nº 186088. Recorrente: Humberto Coutinho
de Lucena. Recorrido. Ministério Público Eleitoral. Rel. Min. Néri da Silveira. Julgado
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claudia maria macedo perlingeiro dos santos