Papéis Legislativos | n.6, out. 2007 | Observatório Político Sul-Americano http://observatorio.iuperj.br Núcleo de Estudos sobre o Congresso http://necon.iuperj.br/ Política Externa da Venezuela e Relações com o Brasil Papéis Legislativos (n.6, out. 2007) Maria Regina Soares de Lima Coordenadora do OPSA/IUPERJ Regina Kfuri Pesquisadora do OPSA/IUPERJ Introdução A ampliação do Mercosul é um passo importante na direção de uma modalidade de integração mais multidimensional, modelo em construção na atualidade, em vista do diagnóstico dos limites de uma integração apenas comercialista. Como é sabido, esta última era o núcleo do regionalismo aberto que predominou na década passada baseada na exploração das vantagens comparativas comerciais. Adesões plenas ao Mercosul, para além de seus quatro países membros originais – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – devem ser consideradas da perspectiva da contribuição dos novos membros ao processo de integração e, portanto, avaliadas em função de que são os Estados que aderem àquele arranjo, já que as instituições de integração devem transcender no tempo os governos que eventualmente estejam no comando de seus respectivos Estados no momento da sua adesão. Desta perspectiva, este estudo apresenta alguns subsídios políticos para a avaliação da adesão do Estado venezuelano ao Mercosul, examinando as fases da política externa da Venezuela a partir de meados do século passado e particularizando as relações com o Brasil. Na última seção, são analisados os alcances e os limites desta adesão para a viabilidade de uma nova modalidade de integração regional no futuro próximo. Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 Política Externa da Venezuela A partir do final da década de 1950, a Venezuela viveu uma realidade política bastante diversa da de seus vizinhos. O ano de 1958 marca não apenas a derrubada da ditadura de Marcos Peres Jiménez, como também o início da vigência de um pacto de governabilidade que garantiu estabilidade política à nascente democracia. O regime venezuelano caracterizou-se, pelos quarenta anos seguintes, pelo bipartidarismo e pelo uso dos recursos financeiros advindos do petróleo para a manutenção do regime. No que tange às relações externas do país, a história da política externa da Venezuela entre 1958 e 1999 pode ser dividida em quatro fases distintas (Romero, 2003). Entre 1958 e 1967, a política externa venezuelana estava preocupada com a consolidação democrática no país e na região. Esta se traduzia na defesa da institucionalidade democrática pela chamada doutrina Betancourt, acordo com a qual a Venezuela não reconhecia nenhum governo cuja origem fosse uma ruptura institucional causada por um golpe de estado (idem). Essa doutrina, aliada à preocupação com a segurança nacional e regional diante da ingerência soviética, levou o governo de Rômulo Betancourt a romper relações com Cuba. Foi com base na mesma doutrina Betancourt que o país também suspendeu relações com Brasil, Bolívia, Argentina, Colômbia e Peru (Sanjuán, 2007). O isolacionismo venezuelano nessa fase não se observava apenas nas relações políticodiplomáticas. A Venezuela não estava disposta a participar de esquemas regionais de integração ou de defesa de ideologias terceiro-mundistas. Suas preocupações econômicas a levavam a valer-se do protecionismo econômico e das restrições às importações como meios para defender seu mercado interno, em nome da necessidade de industrialização, e agir para preservar o mercado norte-americano para seu principal produto de exportação, o petróleo (Cervo, 2001). Foi também nessa fase que a Venezuela promoveu e tornou-se sócio-fundadora da OPEP, com o objetivo de buscar melhores preços para o petróleo, embora sem perder a relação especial com os EUA. Entre 1967 e 1980, a política externa venezuelana buscou reverter a postura isolacionista do período anterior, ampliar a agenda e, embora sem abrir mão da defesa da estabilidade democrática, retomar relações regionais e participar de esquemas de integração (Romero, 2003). Nessa segunda fase, a Venezuela associou-se à Alalc e ao Pacto Andino. A partir do governo de Rafael Caldera, observou-se um relaxamento dos princípios doutrinários que regiam a política exterior e a Venezuela não apenas se reaproximou de Cuba, como também 2 Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 restabeleceu relações com China, Hungria e Alemanha Oriental (RDA). O governo de Carlos Andrés Pérez promoveu na OEA a idéia de uma frente latino-americana norte-sul e incentivou o Sistema Econômico Latino-Americano (SELA) como um organismo de cooperação e coordenação dos países da região, com a exclusão dos EUA. Pérez também viajou a Arábia Saudita, Iraque, Irã, Kwait, Emirados Árabes e Qatar, além de assinar o Tratado de Cooperação Amazônica (Sanjuán, 2007). Uma terceira fase é identificada durante a década de 1980, entre 1980 e 1988, na qual a política externa venezuelana esteve limitada pela crise econômica e social decorrente da queda dos preços do petróleo, levando o país a concentrar seus esforços nas relações regionais. O alinhamento com os EUA formalizou-se em uma série de acordos bilaterais, de cooperação tecnológica em matérias de energia, de saúde e agricultura. Em 1980, a Venezuela firmou um acordo com o México com o objetivo de facilitar petróleo a um menor custo aos países da América Central e Caribe. Nessa fase, também expressou o apoio à Argentina na questão das Malvinas e enfrentou uma grave crise com a Colômbia por conta de questões de fronteira. A partir de 1989, a quarta fase da política externa venezuelana caracterizou-se por uma opção menos terceiro-mundista e mais orientada para a cooperação norte-sul, com a adoção das políticas impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial como saída para a crise econômica. No âmbito regional, a Venezuela adotou uma postura mais ativista e criou, juntamente com Colômbia e México, o Grupo dos Três, com o objetivo de ampliar a integração econômica e favorecer as democracias e a segurança continental. Além disso, também incentivou o fortalecimento de um papel mais ativo para a OEA em temas como guerrilhas, narcotráfico e regimes não democráticos. A Venezuela foi uma das principais promotoras da Resolução 1.080 da OEA, que instruía o Secretário-Geral da organização a convocar o Conselho Permanente e tomar medidas cabíveis em caso de interrupção irregular do processo democrático em algum Estado-membro. Apesar de uma reaproximação com a Colômbia nesse período, com o segundo mandato de Rafael Caldera, a partir de 1994, observou-se uma nova mudança estratégica na política externa venezuelana, conferindo uma primazia às relações com o Brasil. O período foi marcado também pela abertura petroleira, com a assinatura de acordos e convênios, principalmente relativos à exploração da Faixa do Orinoco. 3 Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 A ascensão à presidência de Hugo Chávez marcou o começo de uma quinta fase na política externa venezuelana. Chávez elegeu-se como a visão alternativa a um esquema bipartidário que era visto como responsável pelas mazelas venezuelanas a partir da década de 1980. A crise econômica que atingira o regime de Punto Fijo transformara a polarização social existente na Venezuela em polarização e insatisfação política, principalmente a partir do episódio do Caracazo. A tentativa frustrada de golpe comandada pelo tenente-coronel Hugo Chávez em 1992 apresentou ao país uma nova liderança e projetou sua figura em nível nacional. Ao ser eleito e assumir a presidência em 1999, como marco da reestruturação da política venezuelana, Chávez convocou uma Assembléia Constituinte para a elaboração de uma nova Carta Magna, que inauguraria uma nova relação entre governo e sociedade. O novo documento constituiu as bases para a chamada Revolução Bolivariana, que marca a construção de um Estado socialista na Venezuela. Em matéria de política externa, dois são os eixos fundamentais da inserção venezuelana a partir de então: o uso dos recursos energéticos como base para projetos de integração regional e um discurso alinhado a um projeto socialista. Em nome desses dois eixos principais, a política externa busca ampliar as relações do país na região e fora dela, buscando novos parceiros e apostando na diversificação e multipolarização das relações internacionais. A Venezuela busca a intensificação das relações não apenas com os países sul-americanos, mas também com a América Central. O uso dos recursos financeiros provenientes do petróleo serve para costurar alianças e diversificar relações, mas é destinado também a promover um modelo de integração hemisférica diverso do modelo liberal defendido pelos Estados Unidos. À promoção de modelos alternativos, como a Alba e o Banco do Sul, soma-se a intensificação das relações comerciais através das empresas estatais. No centro desse novo modelo está a questão da integração energética, materializada em acordos firmados entre a estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA) e as demais estatais petroleiras da região. Relações com Brasil Durante a década de 1960, com o golpe de Estado que instaurou o regime militar no Brasil e a adoção pela Venezuela da doutrina Betancourt, houve um distanciamento entre os dois países. Após o golpe militar de 1964, o governo de Raul Leoni suspendeu relações diplomáticas com o novo governo brasileiro. As 4 Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 relações seriam retomadas através de uma troca de notas dois anos mais tarde. No entanto, uma aproximação mais efetiva só foi possível após a vitória de Rafael Caldera, em 1969, cuja preocupação com o isolamento da Venezuela no âmbito externo o levou a suspender a aplicação da doutrina. A primeira reunião presidencial entre Venezuela e Brasil aconteceu em 20 de fevereiro de 1973, quando Rafael Caldera e o General Emílio Garrastazu Médici se encontraram em Santa Elena de Uairén, próximo à fronteira com o Brasil. Na ocasião, foram encerradas negociações sobre questões de fronteira, que haviam ficado pendentes desde a década de 1950. No entanto, apesar do entendimento entre os presidentes, Zurita (1995) destaca que a aproximação com o Brasil não era consenso na sociedade venezuelana, e grupos econômicos venezuelanos se manifestaram contra a participação de empresas brasileiras na construção de uma represa em Guayana. Ainda assim, o processo de redemocratização em curso no Brasil contribuiu para que essa aproximação se consolidasse e, em 1978, Brasil e Venezuela assinaram, juntamente com outros 6 países, o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) 1 . O tratado distinguia-se dos esquemas de integração regional, como Alalc ou o Pacto Andino, por tratar de questões não comerciais. Seu propósito era a cooperação dos países amazônicos em questões científicas relativas aos recursos da região e questões de transportes e comunicações (Cervo, 2001). O TCA, nascido de uma iniciativa brasileira, foi assinado em Brasília por Carlos Andrés Perez, em uma ocasião que marcou também a primeira visita oficial de um presidente venezuelano ao país. No ano seguinte, o presidente brasileiro João Batista Figueiredo visitou a Venezuela. Em agosto de 1981, o presidente Luiz Herrera Campins visitou o Brasil. Ainda no âmbito das visitas presidenciais, Jaime Lusinchi visitou o Brasil em abril de 1986, e José Sarney retribuiu a visita em setembro do mesmo ano. Todo esse intercâmbio de visitas presidenciais era acompanhado de repetidas declarações destacando a importância do fortalecimento das relações bilaterais e da cooperação entre os dois países. Durante o processo de abertura do regime militar, alguns políticos brasileiros visitaram a Venezuela em busca de lições a serem extraídas do Pacto de Punto Fijo, considerado modelo bemsucedido de estabilidade política e democrática (Zurita, 1995). No final da década de 1980, a incursão de garimpeiros ilegais de ouro em território venezuelano foi considerada violação da soberania nacional. O problema foi solucionado mediante a criação de uma Comissão Binacional e da colaboração 1 O TCA foi assinado por Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. 5 Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 entre as forças armadas e outras instituições. Após o incidente na fronteira, uma Declaração Conjunta entre Carlos Andrés Pérez e Fernando Collor, em julho de 1990, destacou a renovação das disposições de boa vontade entre os dois países. O presidente Pérez ainda faria uma visita de cinco dias ao Brasil em 1992, “mas nessa oportunidade a importância da mesma se viu diminuída pela baixa popularidade dos dois governantes e pelos graves distúrbios estudantis produzidos na Venezuela em razão do alto custo de vida” (Zurita, 1995:127). Depois da eleição de Rafael Caldera, a política externa venezuelana passa a enfatizar a construção de uma relação estratégica com o Brasil. Em março de 1994, o presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) e o presidente Rafael Caldera assinaram o Protocolo de La Guzmania 2 , que estabelecia a criação de uma Comissão Binacional de Alto Nível. Essa Comissão seria formada pelos Ministros das Relações Exteriores de ambos os países e de ministros responsáveis pelos assuntos tratados. O documento reconhecia a vontade de trabalhar pela cooperação bilateral e enfatizava a conveniência de realizar encontros presidenciais freqüentes e o compromisso de atribuir alta prioridade às relações bilaterais. No ano seguinte, FHC realizou uma visita de três dias à Venezuela e dois anos depois firmou com Caldera o primeiro contrato para a construção de uma linha de transmissão energética entre Brasil e Venezuela, que seria inaugurada em 2001. Na ocasião da inauguração, em um comunicado conjunto dos dois países, FHC e Hugo Chávez destacaram mais uma vez a importância de fortalecer as relações bilaterais. A chegada de Hugo Chávez à presidência marcou um estreitamento ainda maior das relações bilaterais. Em abril de 2000, durante uma viagem de três dias a Caracas, o presidente Cardoso assinou com o presidente Chávez a Declaração Presidencial de Caracas. O documento assinala o propósito de dar novo impulso às relações bilaterais e de integração em âmbito regional e destaca a necessidade de atualizar o Protocolo de La Guzmania. A Declaração também enfatiza a importância de projetos relacionados a infra-estrutura regional, como a interconexão fluvial Orinico-Amazonas e a interconexão elétrica Macagua II - Boa Vista. Como resultado da VI Reunião de Ministérios de Relações Exteriores do Tratado de Cooperação Amazônica, realizada em Caracas, na mesma data, decidiu-se criar a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, com sede em Brasília. 2 Disponível em www.gobiernoenlinea.gob.ve, acessado em julho de 2007. 6 Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 Desde que assumiu o cargo, em 1999, o Brasil foi o país mais visitado pelo presidente Chávez, em 16 ocasiões. Esta relação intensificou-se ainda mais a partir de 2003, já durante a presidência de Lula e depois da iniciativa brasileira de apoiar a estabilização da situação doméstica venezuelana com a criação de um Grupo de Amigos da Venezuela. Chávez, que havia visitado o Brasil por duas ocasiões em 1999, contabilizou mais 14 visitas a partir de 2003. De um modo geral, as viagens de Chávez ao exterior tornaram-se mais freqüentes a partir de 2004, depois que a situação doméstica da Venezuela se estabilizou. A Venezuela passou por uma crise interna de duração bastante prolongada, durante os anos de 2002 e 2003. Além de uma tentativa de golpe de Estado, o país enfrentou repetidas paralisações e greves gerais incentivadas pela oposição com o objetivo de afastar Chávez do governo. Durante o período de crise no país vizinho, o Brasil posicionou-se favoravelmente à busca por uma solução dentro do quadro institucional vigente no país. Em dezembro de 2002, quando a oposição venezuelana exigiu a renúncia do presidente e convocou uma greve geral que parou o país e atingiu o setor petrolífero, o Brasil enviou gasolina, atendendo a um pedido de Chávez. Em janeiro de 2003, já durante o mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por iniciativa brasileira, foi criado o Grupo de Amigos da Venezuela, com participação de Chile, Espanha, EUA, México e Portugal. O objetivo do Grupo era auxiliar as negociações a cargo do secretário-geral da OEA, César Gaviria, para ajudar a resolver a crise venezuelana, mediante reuniões entre os chanceleres dos países para discutir um acordo entre a oposição e o governo. Mesmo antes do desfecho da crise venezuelana, o presidente Lula e o presidente Chávez reuniram-se em Pernambuco, em 25 de abril de 2003, e assinaram a Ata do Recife 3 , reforçando mais uma vez a importância das relações bilaterais. A Ata do Recife prevê a ajuda brasileira ao país vizinho, através de mecanismos para a garantia de financiamentos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); registra o entendimento entre Petrobras e PDVSA por ocasião de recente encontro empresarial em Caracas e destaca a necessidade de fortalecimento do ambiente multilateral de cooperação no âmbito da ONU, com a mútua afirmação da necessidade de reforma no Conselho de Segurança e o apoio expresso da Venezuela à aspiração brasileira de um assento como membro permanente daquele organismo. 3 Disponível em www.gobiernoenlinea.gob.ve, acessado em julho de 2007. 7 Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 As relações da Venezuela com os demais países da região se orientam, com Chávez, cada vez mais por meio da matriz energética. Com o Brasil, apesar de divergências no que tange ao etanol, essa postura venezuelana em favor da integração energética do continente se traduz em convênios entre a Petrobras e a PDVSA para projetos como a exploração conjunta de petróleo na Faixa do Orinoco. Em fevereiro de 2005, Lula e Chávez concretizaram o que foi chamado de uma aliança estratégica, com a assinatura de 26 acordos de cooperação em matérias de energia, petroquímica, gás, mineração, tributo e aduana, financiamento de indústria e comércio, agricultura, pesca, turismo, cooperação técnica, ciência e tecnologia, comunicação e aviação militar. Em maio do mesmo ano, juntamente com o presidente argentino Nestor Kirchner, Lula e Chávez concordaram em formar uma empresa petroleira comum, a Petrosul, que exploraria gás na Argentina e seria responsável por operações conjuntas na Faixa do Orinoco. Em dezembro, Lula e Chávez, ainda como um dos projetos definidos no memorando que criou a Petrosul, lançaram a pedra fundamental da Refinaria Binacional de Abreu e Lima, em Porto Suape, Pernambuco 4 . Durante o encontro de Cúpula do Mercosul no mês seguinte, Chávez declarou sua intenção de compor um anel energético, que unisse o Cone Sul com a região setentrional da América do Sul, incluindo a Venezuela 5 . Entre os projetos na área energética impulsionados por Chávez também está o de um Gasoduto do Sul, ligando o continente sul-americano, da Venezuela à Argentina, com participação de Brasil e Bolívia. Além da questão energética, a aproximação entre os dois países também se faz notar em questões políticas, tanto em âmbito regional, quanto mundial. Regionalmente, merece destaque o apoio de Brasil e Venezuela à candidatura de Jose Miguel Insulza, ministro do interior chileno, para o cargo de secretário-geral da OEA, em 2005. O chileno conquistou a vaga após um consenso costurado durante uma visita da secretária de Estado americana, Condoleezza Rice à América Latina. Insulza não tinha o apoio dos EUA, que preferiam o salvadorenho Francisco Flores ou o mexicano Luis Ernesto Derbez. No entanto, o candidato chileno era apoiado por diversos governos de esquerda na região, inclusive por Chávez e Lula e acabou por ser efetivado no cargo. Na ONU, a articulação entre Brasil e Venezuela também tem sido significativa. Em junho 2006, o Brasil apoiou a candidatura da Venezuela em uma disputa com a 4 5 Banco de eventos OPSA. Banco de eventos OPSA. 8 Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 Guatemala por uma vaga rotativa no Conselho de Segurança 6 . Por sua vez, a Venezuela apóia o Brasil em sua reivindicação por um lugar permanente do órgão, e esse apoio já foi reafirmado em diversas ocasiões. Além disso, Brasil e Venezuela têm um histórico de posturas coincidentes diante dos assuntos discutidos na Assembléia Geral da ONU. Como indicam a tabela 1 e os gráficos 1 e 2 em anexo, o percentual de votos coincidentes nas votações anuais da Assembléia indica uma coincidência de posições bastante expressiva, ficando sempre acima dos 80% 7 . Como parâmetro de comparação, as posições coincidentes dos quatro países que formam o Mercosul – Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – tiveram, durante o mesmo período, índices bem inferiores. Os quatro países, durante todo o período de vigência do Mercosul, não alcançaram um índice superior a 75% de votos coincidentes, patamar atingido em 2002, aos 11 anos de existência do bloco (Coutinho et al., 2007, p. 29). Adesão da Venezuela e Integração Multidimensional O histórico das relações da Venezuela com o Brasil sugere um padrão bastante cooperativo entre os dois países, com exceção do período em que a Venezuela adotou uma política de isolamento da região, com base em considerações de natureza político-ideológica. Caberia nesta última seção avaliar a contribuição da adesão venezuelana à consolidação de um modelo de integração multidimensional cuja característica é incorporar outras dimensões – produtiva, energética, social e cultural – além da especificamente comercial. Sugerimos a seguir algumas das características gerais de um modelo de integração multidimensional, apontando a contribuição específica da ampliação do Mercosul, a partir da entrada da Venezuela, para o fortalecimento desta opção de regionalismo. Entre as características distintivas da integração multidimensional, podem ser mencionadas as seguintes: concepção de região com base na territorialidade e na contigüidade; padrão de coordenação econômica baseado em economias de escala e com coordenação ativa do Estado; visão da região enquanto ator internacional; e projeto de cooperação a partir de interesses e aversões comuns e não necessariamente de instituições semelhantes. 6 Diante de um impasse causado pela disputa para a vaga destinada à região, Venezuela e Guatemala acabaram por abrir mão de suas candidaturas, deixando espaço para a eleição do Panamá. 7 Como não coincidentes, foram contabilizadas as votações em que um dos dois países se absteve, além daquelas votações que tiveram votos contrários de Brasil e Venezuela. 9 Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 A região concebida como integração física, produtiva e social supõe um conceito de espaço de lugares nacionais, na concepção convencional de espaço geográfico . Como na maioria das regiões periféricas onde o legado colonial é 8 marcante, na América do Sul todos os eixos de relacionamento e interação estão voltados para fora, para as antigas metrópoles e para os mercados desenvolvidos. A idéia de região embutida no conceito estrutural supõe a mudança da direção destes vetores de modo a fazê-los convergentes entre si, voltados para dentro da região. É por esta razão que esta modalidade de integração exige esforço de coordenação e capacidade infra-estrutural do Estado, ao contrário do padrão de exploração das complementaridades comerciais que por si só não é suficiente para modificar os eixos históricos de relacionamento e interação. Ademais, a coordenação estatal é necessária para a criação dos instrumentos de financiamento e de garantias, bem como para a implementação de políticas industriais ativas que possam reverter o padrão herdado do passado. Nesta concepção de regionalismo, a incorporação da Venezuela traria vantagens não apenas de escala e mudança da direção dos vetores da integração, no âmbito regional, mas propiciaria também a vinculação logística e geográfica, dentro do país, dos estados do Norte e Nordeste da federação brasileira, distantes do eixo original do Mercosul, que passariam a compor uma densa região de relacionamento econômico, energético, social e cultural. Por outro lado, são coincidentes as agendas de desenvolvimento do Brasil, Argentina e Venezuela na ênfase comum à necessidade da criação de agências de financiamento e instrumentos de garantia regionais, para fazer face às necessidades dos projetos de infra-estrutura, transporte e energia. Restaria obter o consenso entre os parceiros com respeito à modelagem específica das instituições de fomento a serem criadas no âmbito regional. As demais características do modelo de regionalismo estrutural são políticas. A adesão da Venezuela aumentaria o peso da região na política mundial por agregar recursos geo-econômicos, em especial energéticos, que estão se tornando escassos no mercado mundial. Por outro lado, agrega valor ao pólo regional, em um contexto de concentração do poder mundial, permitindo quer a consideração dos interesses regionais na elaboração das normas e regras multilaterais, quer o exercício de um equilíbrio suave para impedir que ações e normas indesejáveis sejam 8 aplicadas à região 9 . Neste sentido, a modalidade de integração O conceito de integração estrutural foi desenvolvido inicialmente por Lima e Coutinho (2006). 9 “Equilíbrio suave” é a tradução do conceito de “soft balance” que tem sido amplamente utilizado para diferenciar do exercício do equilíbrio por via do poder militar. 10 Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 multidimensional ambiciona a construção de um sistema na região que seja capaz de formular suas próprias normas e regras de forma autônoma. A coincidência de posições entre Venezuela e Brasil no âmbito da OEA e das Nações Unidas, conforme já se argumentou e os dados a seguir confirmam, sugere expectativa positiva para a cooperação multilateral futura entre os dois países. Em oposição aos anos 1990, quando prevaleciam os regimes de democracia de mercado, o padrão multidimensional de regionalismo parece ser bastante mais compatível com a emergente heterogeneidade política e ideológica que caracteriza os regimes da América do Sul. Esta diferenciação é visível quando se leva em conta que nos países do Cone Sul a estruturação do conflito político se faz majoritariamente por via dos partidos e com uma agenda reformista. Ao contrário, na região andina, os partidos tradicionais se dissolveram, e a coordenação política é praticada por movimentos sociais e lideranças reformadoras. Por outro lado, no Chile as escolhas se encaminharam para um modelo de democracia representativa e regionalismo aberto, e a Colômbia está dividida entre um segmento em que prevalece o estado de direito, ainda que com forte componente de segurança nacional e uma outra região em guerra civil. Esta diversidade de regimes e escolhas políticas e econômicas indica que qualquer possibilidade de cooperação teria que ser baseada em interesses e aversões comuns e não propriamente em instituições semelhantes. Neste contexto, prevalece o princípio da autodeterminação e da não-intervenção. Cabe lembrar que a tradição diplomática brasileira tem sido enfatizar o princípio da não intervenção em detrimento do da promoção da democracia, tese que como se sabe encontrou seu limite de legitimidade com a tragédia da intervenção no Iraque (Santiso, 2003). Para terminar, um retorno ao passado, ao período da Guerra Fria, quando estavam em jogo decisões críticas de exclusão de países da comunidade latinoamericana. Era início de 1962, ocasião da realização da VII Reunião de Consulta da OEA, em Punta del Leste, quando se discutia a proposta, de origem norteamericana, de expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos e de todo o hemisfério. O Brasil, representado por seu chanceler, San Tiago Dantas, não apenas argumentou favoravelmente pela intangibilidade da norma jurídica da não-intervenção, como sugeriu a criação de um estatuto especial para Cuba que, simultaneamente, preservaria o princípio da não-intervenção como garantiria a coexistência de um país socialista no âmbito hemisférico. Os interesses imediatos dos EUA e miopia política de boa parte dos países latino-americanos à época recusaram este mecanismo. Instrumento 11 que hoje integraria o rol dos Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 mecanismos de garantias mútuas tão amplamente aceitos em situações de instabilidade regional. A partir de um raciocínio contrafactual, poder-se-ia argumentar que a instituição daquele mecanismo poderia ter evitado a instalação dos mísseis russos em Cuba e a sovietização daquele país. Ainda que este exercício contrafactual não tivesse sido previsto por San Tiago Dantas, ele claramente anteviu que a expulsão e o isolamento imposto à Cuba levaria ao estreitamento das suas relações com a União Soviética e, conseqüentemente, à regionalização da Guerra Fria, com todas as implicações negativas que daí decorreram para a América Latina, destacando-se entre elas o desencadeamento do ciclo autoritário que se abateu na região a partir de 1964, iniciando-se com o Brasil. Referências Bibliográficas CERVO, A. Relações Internacionais Paradigmas. 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Brasília, IPRI, 1995. 12 Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 Anexos Tabela 1: Votos de Brasil e Venezuela na Assembléia Geral da ONU Total de votações 86 75 75 65 68 81 76 69 61 68 67 67 73 74 72 74 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 Votos coincidentes 80 93,02% 72 96,00% 71 94,67% 56 86,15% 58 85,29% 75 92,59% 70 92,11% 66 95,65% 54 88,52% 62 91,18% 59 88,06% 56 83,58% 64 87,67% 66 89,19% 60 83,33% 64 86,49% Votos não coincidentes 6 6,98% 3 4,00% 4 5,33% 9 13,85% 10 14,71% 6 7,41% 6 7,89% 3 4,35% 7 11,48% 6 8,82% 8 11,94% 11 16,42% 9 12,33% 8 10,81% 12 16,67% 10 13,51% Tabela 1: Elaborada com dados disponíveis em http://ucdata.berkeley.edu:7101/new_web/VoteWorld/voteworld/index.html e http://home.gwu.edu/~voeten/ Gráfico 1: Votos coincidentes de Brasil e Venezuela na Assembléia Geral da ONU 19 90 19 91 19 92 19 93 19 94 19 95 19 96 19 97 19 98 19 99 20 00 20 01 20 02 20 03 20 04 20 05 98,00% 96,00% 94,00% 92,00% 90,00% 88,00% 86,00% 84,00% 82,00% 80,00% 78,00% 76,00% 13 Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 Gráfico 2: Comparativo entre votos coincidentes e não-coincidentes de Brasil e Venezuela na Assembléia Geral da ONU 90 80 70 60 50 40 30 20 10 19 90 19 91 19 92 19 93 19 94 19 95 19 96 19 97 19 98 19 99 20 00 20 01 20 02 20 03 20 04 20 05 0 Votos Não-Coincidentes 14 Votos Coincidentes Papéis Legislativos | n.6 | out. 2007 Publicações Anteriores Papéis Legislativos (n.5, set. 2007) Avaliação do Potencial Econômico da Relação Brasil-Venezuela Ricardo Sennes e Alexandre de Freitas Barbosa Papéis Legislativos (n.4, ago. 2007) Adesão da Venezuela ao Mercosul: Des-ideologizar como forma de atingir o Interesse Nacional Fabiano Santos e Márcio Vilarouca Papéis Legislativos (n.3, jul. 2007) Processo de integração energética: rumos e percalços Luiz Salomão e José Malhães Papéis Legislativos (n.2, jun. 2007) O tema financiamento, seguro e garantias ao crédito para exportações: comentários sobre regulamentação no Brasil Ricardo Sennes Papéis Legislativos (n.1, mai. 2007) Assimetrias, Interesses e Representação – os Desafios da Institucionalização do Mercosul Carlos Henrique Santana e Yuri Kasahara 15