1 Rodrigo Octávio d’Azevedo Carreiro Era uma vez no spaghetti western: Estilo e narrativa na obra de Sergio Leone Recife 2011 14 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO Rodrigo Octávio d’Azevedo Carreiro Era uma Vez no Spaghetti Western: Estilo e Narrativa na Obra de Sergio Leone Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação da Prof. Dr. Paulo Carneiro da Cunha Filho. Recife 2011 Catalogação na fonte Bibliotecária Gláucia Cândida da Silva, CRB4-1662 C314e Carreiro, Rodrigo Octávio d’Azevedo. Era uma Vez no Spaghetti Western: estilo e narrativa na obra de Sergio Leone / Rodrigo Octávio d’Azevedo Carreiro. – Recife: O autor, 2011. 332 p. : il. Orientador: Paulo Carneiro da Cunha Filho. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Pernambuco, CAC. Comunicação, 2011. Inclui bibliografia, anexos e apêndices. de 1. Comunicação. 2. Cinema - Estética. 3. Cinema – História. I. Cunha Filho, Paulo Carneiro da. (Orientador). II. Titulo. 302.23 CDD (22.ed.) (CAC2011-22) UFPE Todas essas histórias são sobre o quê? Apenas sobre um punhado de dólares? Ou existe algo mais por trás? Alberto Moravia Nada existe realmente a que se possa dar o nome Arte. Existem somente artistas. E.H. Gombrich Para Nina e Helena, que fazem tudo valer a pena. Agradecimentos Agradeço aos professores e alunos do PPGCOM-UFPE pelas contribuições oferecidas nas diversas vezes em que apresentei ou discuti, em seminários, aspectos desta tese. Pelo mesmo motivo, agradeço aos participantes do GT Fotografia, Cinema e Vídeo do encontro de 2010 da Compos 2010, realizado na PUC-RJ. Comentários, críticas e sugestões, nascidos dentro desses fóruns, forneceram saídas para impasses teóricos ou metodológicos que se desenharam ao longo da trajetória. Muito obrigado aos colegas da disciplina Seminário de Tese, que tiveram a paciência de ler e comentar dois capítulos do original. Agradeço em especial à professora Nina Velasco, cuja análise acurada antecipou muitos dos comentários da banca de qualificação e apontou para mudanças importantes no relatório final. Agradeço aos professores e alunos do Bacharelado em Cinema, pela troca de informações e pelas sugestões de leitura e pelo incentivo. Devo mencionar o apoio pessoal dos professores Angela Prysthon e Felipe Trotta, e não apenas pela crítica construtiva realizada durante a banca de qualificação, mas também pelo apoio recebido nos momentos difíceis que enfrentei, ao longo do processo de pesquisa e redação. A Celly de Brito Lima, pela ajuda com a ABNT e pela torcida incondicional. A meus pais, Raimundo e Célia, pelo ombro providencial e pelas palavras de incentivo. A Nise, Daniela e Santana, pelo amor, atenção e carinho que sempre dedicaram a Nina e Helena (e também a mim, com certeza). Às minhas duas filhas, por serem um motivo concreto para que o pai procure sempre ir um pouco mais longe. A Adriana, pelo apoio e pelo exemplo de disciplina e rigor acadêmico. Aos amigos que acompanharam o processo: sintam-se abraçados, todos. Agradecimentos especiais a Erika Pires Ramos, Osvaldo Neto, Andrea Mello Rego e Roberta Rego, pelas dicas eventuais, pela torcida e pela energia positiva. Obrigado aos leitores do Cine Repórter, muitos dos quais acompanharam o processo de redação da tese (via e-mail, Twitter e Facebook) e escreveram de volta, incentivando, dando dicas ou pedindo para ler a tese depois de defendida. Um obrigado especial ao meu irmão Diego, pela revisão cuidadosa, pelas sugestões e pelas dicas bibliográficas. Finalmente, obrigado a Paulo Cunha, pela orientação tranqüila, pela assistência precisa e pela ajuda com os textos em francês. E obrigado a todos aqueles que porventura eu tenha esquecido de mencionar aqui. Lista de figuras Fig. 1.1-2: Frames de Por um Punhado de Dólares e Por uns Dólares a Mais .................................. 38 Fig. 1.3-8: Frames de Por um Punhado de Dólares ............................................................................. 42 Fig. 1.9-10: Frames de Django ............................................................................................................ 44 Fig. 1.11-12: Frames de Por uns Dólares a Mais e Joe, o Pistoleiro Implacável ............................... 50 Fig. 1.13-18: Frames de Por uns Dólares a Mais ................................................................................ 52 Fig. 1.19-24: Frames de Django, o Bastardo; A Morte Anda a Cavalo; O Dia da Desforra; Sabata; Tempo de Massacre; Cemitério sem Cruzes .......................................... 54 Fig. 1.25-30: Frames de Três Homens em Conflito .............................................................................. 56 Fig. 1.31-32: Frames de Meu Ódio Será Sua Herança ........................................................................ 58 Fig. 1.33-38: Frames de Era uma Vez no Oeste ................................................................................... 69 Fig. 1.39-42: Frames de Era uma Vez no Oeste ................................................................................... 60 Fig. 1.43-44: Frames de Sabata e Meu Nome é Trinity ........................................................................ 62 Fig. 1.45-48: Frames de Quando Explode a Vingança ........................................................................ 65 Fig. 1.49-52: Frames de Meu Nome é Ninguém ................................................................................... 66 Fig. 1.53-60: Frames de Era uma Vez na América .............................................................................. 68 Fig. 1.61-66: Fotografia de Nova York nos anos 1930 (1.61) e frames de Era uma Vez na América ...................................................................................................................... 71 Fig. 2.1-12: Frames de Por um Punhado de Dólares ................................................................. 124-125 Fig. 2.13-14: Frames de Por um Punhado de Dólares ....................................................................... 126 Fig. 2.15-26: Frames de Por um Punhado de Dólares ....................................................................... 128 Fig. 2.27-32: Frames de Por um Punhado de Dólares ....................................................................... 131 Fig. 2.33-36: Frames de Por um Punhado de Dólares ....................................................................... 132 Fig. 2.37-42: Frames de Por um Punhado de Dólares ....................................................................... 133 Fig. 2.43-46: Frames de Por uns Dólares a Mais .............................................................................. 135 Fig. 2.47-50: Frames de Por uns Dólares a Mais .............................................................................. 137 Fig. 2.51-54: Frames de Por uns Dólares a Mais .............................................................................. 138 Fig. 2.55-56: Frames de Por uns Dólares a Mais .............................................................................. 139 Fig. 2.57-70: Frames de Por uns Dólares a Mais ....................................................................... 143-144 Fig. 2.71-78: Frames de Por uns Dólares a Mais .............................................................................. 147 Fig. 2.79-80: Frames de Vera Cruz .................................................................................................... 149 Fig. 2.81-84: Frames de Os Brutos Também Amam; Paixão dos Fortes; Minha Vontade é Lei; O Homem que Matou o Facínora ................................................................... 150 Fig. 2.85-86: Frames de Estigma da Crueldade e Por uns Dólares a Mais ...................................... 151 Fig. 2.87-90: Frames de Três Homens em Conflito, Por um Punhado de Dólares e Por uns Dólares a Mais ...................................................................................................................... 153 Fig. 2.91-94: Frames de Três Homens em Conflito ............................................................................ 154 Fig. 2.95-102: Frames de Monsieur Verdoux; Três Homens em Conflito; O General; O Homem que Luta Só; E o Vento Levou ........................................................................ 157 Fig. 2.103-106: Frames de Três Homens em Conflito ........................................................................ 159 Fig. 2.107-116: Frames de Era uma Vez no Oeste ............................................................................. 161 Fig. 2.117-128: Frames de Era uma Vez no Oeste; Matar ou Morrer; Os Brutos Também Amam; O Cavalo de Ferro; Johnny Guitar; O Retorno de Frank James; Rastros de Ódio ................................................................................................................................. 165166 Fig. 2.129-140: Frames de Quando Explode a Vingança ........................................................... 167-168 Fig. 2.141-144: Frames de Meu Nome é Ninguém; Dragões da Violência; Paixão dos Fortes ............................................................................................................................... 170 Fig. 2.145-146: Frames de Meu Nome é Ninguém ............................................................................. 171 Fig. 2.147-150: Frames de Meu Nome é Ninguém ............................................................................. 172 Fig. 2.151-154: Frames de Meu Nome é Ninguém ............................................................................. 173 Fig. 2.155-174: Frames de Era uma Vez na América ................................................................. 175-176 Fig. 2.165-174: Frames de Era uma Vez na América ................................................................. 178-179 Fig. 3.1-44: Frames de Três Homens em Conflito ...................................................................... 185-189 Fig. 3.45-46: Frames de Vera Cruz e O Homem que Luta Só ............................................................ 194 Fig. 3.47-48: Frame de Três Homens em Conflito e fotografia de Matthew Brady ........................... 195 Fig. 3.49-52: Frames de Era uma Vez na América ............................................................................ 203 Fig. 3.53-54: Frames de O Encouraçado Potemkin e A Paixão de Joana D’Arc .............................. 205 Fig. 3.55-60: Reproduções de esboços desenhados por Sergei Eisenstein em 1933; frames de Ivan, o Terrível; Elegia de Osaka; A Regra do Jogo (2) ................................................... 211 Fig. 3.61-68: Frames de No Tempo das Diligências; Rastros de Ódios; Cidadão Kane (2); Por uns Dólares a Mais; Três Homens em Conflito; Era uma Vez no Oeste; Três Homens em Conflito .............................................................................. 213 Fig. 3.69-76: Reprodução da pintura La Classe de Danse (Edgar Degas) e frame de Era uma Vez no Oeste; frame de Por um Punhado de Dólares e reprodução de El Tres de Mayo de 1808 en Madrid (Francisco Goya); reprodução de Las Meninas (Diego Velásquez) e frame de Três Homens em Conflito; frame de Por uns Dólares a Mais e reprodução de Andromache (Giorgio De Chirico) ....................................................... 216-217 Fig. 3.77-78: Frames de Céu Amarelo e Os Brutos Também Amam .................................................. 218 Fig. 3.79-80: Reproduções de desenhos da película do sistema anamórfico Cinemascope e da película do sistema não-anamórfico Techniscope ................................................ 220 Fig. 3.81-90: Frames de Era uma Vez na América ..................................................................... 222-223 Fig. 3.91-92: Frames de Três Homens em Conflito ............................................................................ 224 Fig. 93-96: Frames de Três Homens em Conflito ............................................................................... 225 Fig. 3.97-128: Frames de Era uma Vez no Oeste ........................................................................ 227-230 Fig. 3.129-132: Frames de Por uns Dólares a Mais e desenho do figurino de Por uns Dólares a Mais (Carlo Simi) ................................................................................................. 233 Fig. 3.133-136: Frames de Por uns Dólares a Mais .......................................................................... 234 Fig. 137-144: Frames de Três Homens em Conflito ........................................................................... 236 Fig. 3.145-150: Frames de Três Homens em Conflito e fotografias de Matthew Brady .................... 237 Fig. 3.151-158: Frames de Três Homens em Conflito e Era uma Vez no Oeste; desenho de cenário de Três Homens em Conflito; fotografia de Matthew Brady .............................. 239 Fig. 3.159-160: Frames de Era uma Vez na América ........................................................................ 240 Fig. 3.161-178: Frames de Três Homens em Conflito ................................................................ 249-250 Fig. 3.179-182: Frames de Era uma Vez no Oeste ............................................................................. 252 Fig. 183-212: Frames de Era uma Vez no Oeste ......................................................................... 254-256 Fig. 3.213-236: Frames de Por uns Dólares a Mais ................................................................... 263-265 Fig. 3.237-254: Frames de Três Homens em Conflito ................................................................ 260-270 Fig. 4.1-8: Frames de Assalto à 13ª DP ............................................................................................. 276 Fig. 4.9-20: Frames de Taxi Driver ............................................................................................. 279-280 Fig. 4.21-30: Frames de Síndrome de Caim ................................................................................ 281-282 Fig. 4.31-46: Frames de O Poderoso Chefão; Touro Indomável; Sem Destino; Lua de Papel; O Exorcista; Um Dia de Cão; Barry Lyndon; Laranja Mecânica; A Fúria; Tubarão; O Império Contra-Ataca; ET – O Extraterrestre ......................................... 283-284 Fig. 4.47-60: Frames de Operação França ................................................................................. 288-289 Fig. 4.61-64: Frames de Três Homens em Conflito e Bastardos Inglórios ........................................ 292 Fig. 4.65-84: Frames de Cães de Aluguel ................................................................................... 293-294 Fig. 4.85-106: Frames de Matrix ................................................................................................ 299-301 Fig. 4.107-114: Frames de Um Plano Simples ................................................................................... 302 Fig. 4.115-120: Frames de Shrek ........................................................................................................ 304 Fig. 4.121-124: Frames de Toy Story 2 e Bolt .................................................................................... 305 Fig. 4.125-140: Frames de Onde os Fracos Não Têm Vez; Desejo e Reparação; O Senhor dos Anéis; Vício Frenético; Irreversível; Um Olhar do Paraíso; Fogo Contra Fogo ....................................................................................................................... 306-307 Fig. 4.141-144: Frames de Titanic ..................................................................................................... 309 Resumo O objetivo desta pesquisa é realizar uma análise estilística e narrativa minuciosa da obra de Sergio Leone, a fim de desvelar a real contribuição dos filmes dele ao repertório de esquemas circulantes no cinema contemporâneo. Partimos do princípio de que Leone ajudou a desenvolver recursos importantes para o processo de intensificação da poética cinematográfica clássica, que muitos pesquisadores afirmam ter ocorrido a partir dos anos 1960, tendo feito isso a partir de revisões sistemáticas dos esquemas dominantes de construção narrativa disponíveis na época. Para alcançar nosso objetivo, tentaremos identificar a recorrência de padrões estilísticos e narrativos nos filmes assinados por Leone, sempre procurando elencar e analisar os contextos sócio-culturais, tecnológicos, econômicos e ideológicos que o levaram a adotar e desenvolver esses padrões, além de mostrar como cada recurso abriu caminho dentro do repertório de técnicas utilizadas por cineastas contemporâneos. Tentaremos investigar, ainda, a conexão entre o relativo apagamento dessa contribuição estilística de Leone ao fato de ele ter trabalhado, durante toda a carreira, com o cinema de gênero, cuja filmografia tem recebido pouca atenção de historiadores do estilo cinematográfico. Palavras-chave: Spaghetti western – Poética do cinema – História do Cinema – Estética do Cinema – Análise Fílmica. Abstract The main goal of this thesis is to make a thorough stylistic and narrative analysis of the films directed by Italian filmmaker Sergio Leone, trying to identify his real contribution to the repertory of schemata that circulate in contemporary filmmaking. The starting hypothesis is that Leone helped to develop several techniques that became important to the process of intensification of the classical continuity poetics, which some film researchers affirm that occurred from the 1960s onwards; he has done it through revisions of narrative and stylistics schemata available at the time he was working. To reach our goal, we will research all his films and list every recurrent stylistic and narrative patter, always seeking to explain how social, cultural, technological, economical and ideological contexts helped Leone to choose and develop those patters, not forgetting to show how these techniques became popular in contemporary filmmaking. We will investigate also the connection between this relatively unnoticed stylistic contribution and the association between Leone and popular cinema genres, whose films has received little attention by style film historians. Keywords: Spaghetti western – Film Poetics – Film History – Film Aesthetics – Film Analysis. Sumário Introdução .............................................................................................................................. 12 1. Estilo e modo de produção ............................................................................................... 31 1.1 Cinecittà: uma história em ciclos ................................................................................... 31 1.2 Apogeu e queda .............................................................................................................. 48 1.3 O impacto do gênero e do autorismo na fortuna crítica ................................................. 72 1.4 A análise da fortuna crítica ............................................................................................ 83 1.5 Cineastas, intelectuais e os Cahiers du Cinéma ............................................................. 97 2. Práticas narrativas de Sergio Leone .............................................................................. 115 2.1 A narração na poética do cinema ................................................................................. 115 2.2 Dupla de anti-heróis ..................................................................................................... 133 2.3 Heróis ou anti-heróis? .................................................................................................. 151 2.4 Fim da linha ................................................................................................................. 166 3. Práticas estilísticas de Sergio Leone .............................................................................. 180 3.1 Construindo um repertório audiovisual ........................................................................ 180 3.2 Composição e enquadramento ..................................................................................... 203 3.3 Cenários, figurinos e objetos cênicos ........................................................................... 231 3.4 O som: voz, ruídos, silêncios e música ........................................................................ 240 4. O legado de Leone ........................................................................................................... 273 4.1 Continuidade intensificada e Geração New Hollywood .............................................. 273 4.2 Sergio Leone e os filmes contemporâneos ................................................................... 290 Conclusão ............................................................................................................................. 310 Referências ........................................................................................................................... 313 Filmografia .......................................................................................................................... 318 Anexos .................................................................................................................................. 327 Apêndices ............................................................................................................................. 329 12 Introdução O episódio narrado a seguir ocorreu em 1966 (FRAYLING, 2000, p. 247-248). Era sexta-feira, 23 de dezembro, data da estréia de Três Homens em Conflito (Il Buono, il Brutto, il Cattivo, Sergio Leone, 1966) em Roma. O diretor Bernardo Bertolucci, então autor de dois longas-metragens elogiados pela crítica, cumpria um velho hábito cinéfilo: assistir aos filmes que mais aguardava na primeira sessão do primeiro dia em cartaz. Bertolucci chegou ao cinema às 15 horas e viu que Sergio Leone, acompanhado do então crítico (e futuro cineasta) Dario Argento, circulava pela ante-sala. Argento conhecia Bertolucci, e apresentou-o a Leone. Os três trocaram amabilidades e entraram na sala. Leone e Argento ficaram na cabine, onde o cineasta dava instruções ao projecionista. Bertolucci sentou no meio da platéia. Não se encontraram na saída. No dia seguinte, véspera de Natal, Bertolucci recebeu um telefonema. Do outro lado da linha, Leone queria saber o que ele havia achado de Três Homens em Conflito. Uma resposta lacônica e positiva não bastou. Leone estava preocupado com a longa duração do filme. Queria saber por que Bertolucci tinha gostado. A opinião de um colega respeitado pela crítica era importante. Bertolucci achou que não tinha condições de dar uma opinião técnica e ponderada. A resposta saiu intuitiva, de supetão: Eu disse que havia gostado da maneira como ele filmava bundas de cavalos. De modo geral, tanto nos faroestes italianos quanto norte-americanos, os cavalos eram filmados de frente ou de perfil. “Mas quando você filma os animais”, eu disse, “freqüentemente os focaliza de costas; um coral de bundas de animais. Bem poucos diretores filmam bundas de cavalos, cuja visão na tela é menos romântica e retórica. Um deles é John Ford. Outro é você”. (BERTOLUCCI apud FRAYLING, 2000, p. 248) 1. Do outro lado do telefone, silêncio. Bertolucci pensou que havia soado grosseiro. Então Leone o surpreendeu com uma oferta: escrever o roteiro do seu próximo filme. E começou a contar algumas idéias que andava ruminando sobre mais um western, um longametragem que funcionaria como uma homenagem a todos os westerns, uma síntese de momentos icônicos do gênero. Junto com Dario Argento, os dois começaram a trabalhar na semana seguinte. Em dois meses, tinham escrito o primeiro tratamento de Era uma Vez no Oeste (C’era una volta il West, Sergio Leone, 1968). 1 Tradução nossa. Todas as citações de textos em língua estrangeira incluídas nesta tese foram vertidas pelo autor para o português. Quando necessário, para dirimir alguma possível distorção na tradução, o texto na língua original será acrescentado em nota. 13 Embora eu nunca tenha prestado atenção em bundas de cavalos – muito menos na maneira como Leone as filmava –, minha paixão cinéfila surgiu por causa do impacto que os spaghetti westerns exerceram em mim durante a adolescência. O impulso que disparou em mim o interesse em estudar história e teoria do cinema, e que me levou gradualmente até esta tese, foi concretizado pela mesma razão que levou Bertolucci a perceber que Leone filmava de maneira diferente que a maioria dos diretores de westerns: o estilo. Cabe aqui um breve parêntese de foro íntimo. Meu interesse por cinema foi despertado durante os anos 1980, pelos filmes exibidos em um espaço semanal dedicado pela TV Record a filmes pertencentes ao ciclo de spaghetti westerns. Esse espaço semanal televisivo se chamava Bangue-Bangue à Italiana. Todas as quartas-feiras, a partir das 21h, a Record exibia algum das cinco centenas de longas-metragens realizados por produtores independentes atuando em Cinecittà, nos anos 1960 e 1970. Os exemplares desse ciclo de filmes populares eram filmados nos desertos da Espanha, com orçamentos baixíssimos. Minha família demorou alguns anos para comprar um videocassete, de forma que as sessões na TV consistiam da minha dieta cinematográfica básica. E aquele dia da semana era especial porque todos se sentavam na sala para acompanhar as aventuras daqueles heróis cínicos, mendigos de mira infalível que circulavam pelas estradas poeirentas do Velho Oeste. Depois de 1997, quando comecei a atuar como crítico de cinema em um jornal do Recife, retornei aos poucos ao spaghetti western. Inicialmente, por mera curiosidade, e munido apenas de um punhado de fragmentos de memórias. Aos poucos, enquanto revia filmes do ciclo, comecei a constatar – não sem surpresa – que grande parte dos fragmentos guardados na memória pertencia aos filmes de um único diretor. Esse diretor era Sergio Leone. Essa constatação me deixou intrigado. Foi ela que me levou, indiretamente, até esta pesquisa. A questão que estava no centro de minha curiosidade pode ser resumida na seguinte frase: como é possível que uma criança de 11 anos, sem nenhum conhecimento sobre história, crítica ou teoria de cinema, havia percebido intuitivamente que um cineasta solucionava seus problemas de representação de maneira mais destacada do que outros, cujos filmes eram semelhantes (mas, obviamente, não iguais)? A resposta nos remete ao episódio das bundas de cavalo. Eu havia percebido que Leone filmava de maneira distinta de outros diretores, mesmo que essa diferença fosse mínima aos olhos de um leigo. Havia uma centelha aí esperando para ser transformada numa fogueira. Algo nebuloso que merecia reflexão. Depois de assistir a um quinto de toda a produção de spaghetti westerns (ao todo, 117 títulos pertencentes ao ciclo foram vistos ou revistos, no decorrer desta pesquisa, entre 2009 e 2010), posso afirmar com segurança que a maior parte dos cerca de 550 spaghetti westerns 14 produzidos entre 1962 e 1978 conta variações do mesmo enredo, possui personagens parecidos, foi filmada nas mesmas cidades cenográficas, com os mesmos atores e técnicos. Dezenas de diretores que trabalhavam no gênero utilizavam os mesmos recursos estilísticos. Quanto mais filmes eu via, mais ficava intrigado: por que razão Leone se destacou, especialmente aos olhos de uma criança que nada sabia sobre os contextos de produção em que ele e os colegas trabalhavam? Historicamente, é possível alegar que Leone foi um pioneiro. A primeira grande pesquisa sobre o spaghetti western (realizada nos anos 1980 por Christopher Frayling) confirma Leone como o primeiro cineasta do ciclo a propor certas revisões dos esquemas estilísticos e narrativos disponíveis para problemas de representação do western. Consistentemente, ele revisava esquemas dominantes que haviam sido estabelecidos dentro do gênero norte-americano. Algumas dessas soluções foram copiadas por outros diretores, dentro e fora do ciclo; elas extrapolaram a obra de Leone e, ainda hoje, podem ser identificadas em filmes contemporâneos que nada têm a ver com o gênero western. Tudo isso pode ser comprovado através da análise estilística rigorosa que esperamos realizar ao longo desta tese; mas esse raciocínio ainda não explica um ponto central da argumentação: por que momentos dos filmes assinados por Leone ficaram retidos, daquela experiência na infância, enquanto tantos outros momentos similares, oriundos de filmes de outros diretores, se perderam? Uma lição importante deixada por esta questão ilustra uma parte do problema de pesquisa com o qual estamos lidando: aquilo que faz um filme ser diferente, interessante ou original (não necessariamente melhor ou pior, categorias subjetivas que dependem da ressonância provocada em cada espectador para operar), nem sempre está na história contada. Pode estar na maneira de contá-la; ou seja, no estilo: O estilo é a textura tangível do filme, a superfície perceptual com a qual nos deparamos ao escutar e olhar: é a porta de entrada para penetrarmos e nos movermos na trama, no tema, no sentimento – e tudo mais que é importante para nós. (BORDWELL, 2009, p. 58). Um filme conta uma história. Mas uma história criada com luz, sons, cores e movimento. Muitas vezes, não é o que o diretor filmou que faz um filme emocionar as pessoas. É a maneira como ele filmou; são os recursos estilísticos e narrativos acionados pelo cineasta para narrar a história. O conceito de estilo, nos termos definidos por Bordwell 2, funciona como ponto de partida desta tese. 2 Uma circunscrição mais precisa do termo estilo será efetuada no início do capítulo 1. 15 Ressalte-se: não se pretende defender aqui que Leone foi o melhor diretor de spaghetti westerns. Tal afirmação aciona forças que vão muito além da análise estilística, horizonte teórico no qual esta pesquisa pretende se mover. Poderíamos desfiar um rosário de argumentos para explicar a preferência pela obra de Leone, em termos de gosto e juízo de valor, evocando a subjetividade dos conceitos. Robert Stam questiona: “Por que alguns espectadores adoram e outros odeiam os mesmos filmes?” (STAM, 2004, p. 267). A teoria do cinema não oferece uma resposta absoluta para essa pergunta. Lidar com aspectos subjetivos como gosto e valor não é a proposta principal desta pesquisa. Acreditamos que uma análise estilística rigorosa pode esclarecer, com bastante precisão, a amplitude da contribuição exercida por Leone nos processos de revisão e síntese dos esquemas narrativos dominantes do período clássico do cinema (1930-1960), levados a cabo por vários cineastas atuantes nos anos 1960; e achamos, também, que essa análise pode ajudar a formular uma explicação coerente para as questões que levaram a esta pesquisa. A importância do estilo dentro da obra de Leone é inquestionável. Peça a qualquer pessoa que explique porque gosta ou não dos filmes de Leone e verá que todos citam aspectos estilísticos – os close-ups extremos de olhos, a ironia, o tratamento particular do tempo diegético, etc. – antes mesmo de mencionar aspectos do enredo. Em depoimentos a Laurent Tirard, Jean-Pierre Jeunet cita o tratamento “lúdico” (TIRARD, 2006, p. 58) dado por Leone ao estilo como razão primeira para se tornar um cineasta; e Pedro Almodóvar usa os close-ups extremos de Leone como exemplo de um recurso “completamente falso” (TIRARD, 2006, p. 40). Opiniões profundamente divergentes sobre um mesmo tópico: o estilo. No entanto, como Bordwell adverte, a estilística permanece uma disciplina menos importante dentro do campo dos estudos cinematográficos. Esta afirmação explica, em parte, o fato de Leone ser visto como um diretor mais famoso do que influente. Os filmes dele alcançaram enorme popularidade desde os anos 1960, e essa popularidade foi acompanhada por um processo gradual de revalorização crítica. Mesmo assim, Leone continua a não ser considerado seriamente como um diretor historicamente importante. Para a maioria das pessoas, inclusive estudiosos e pesquisadores do cinema, ele não está à altura de Godard, Bergman, Fellini e Antonioni – a geração de cineastas europeus contemporânea dele, consagrada como fundamental para o desenvolvimento da tradição cinematográfica. Como um todo, o spaghetti western não passa de nota de rodapé em livros de História do Cinema. Existem muitas razões que contribuem para explicar esse relativo apagamento, e várias delas serão analisadas ao longo desta tese, mas a principal delas, que antecipamos aqui, está resumida na constatação de Bordwell (2008, p. 58): a maior parte dos historiadores do 16 cinema narra o desenvolvimento da arte cinematográfica tendo como eixo condutor relações estabelecidas entre filmes e práticas sociais; entre obras e contextos sócio-culturais, políticos e econômicos que marcaram o século XX. Nesses relatos, a análise das práticas estilísticas de diretores tem sido colocada em segundo plano. E como a contribuição de Leone se deu principalmente no terreno da estilística, ele permanece em segundo plano. Enfatizando como a análise do estilo tem ocupado maior destaque em disciplinas mais consolidadas, como a História da Arte, Bordwell tem sido um dos poucos pesquisadores do cinema a investir nesse caminho. As pesquisas realizadas por ele (sozinho ou em parceria com outros estudiosos, como Kristin Thompson e Janet Steiger) são, junto com as investigações de Barry Salt (2009), as tentativas mais significativas de estudar o desenvolvimento da arte cinematográfica através da análise do estilo. O débito desta tese para com a teoria cognitivista de Bordwell é incontornável; esse débito pode ser constatado através das muitas citações a livros dele que encontraremos nas próximas seções. A abordagem de Bordwell destaca maneiras como a mente humana percebe as representações cinematográficas. Por um momento, ela deixa de lado as conexões entre filmes e práticas sociais para se concentrar no modo como os diretores constroem a narrativa, e como o resultado das escolhas operadas nesse processo de construção é percebido pelo espectador; ou seja, a análise fílmica resultante deste método olha mais para dentro do filme do que para fora dele. A abordagem resgata elementos da semiologia do cinema de Christian Metz, disciplina com a qual o cognitivismo compartilha semelhanças. É dentro desta moldura teórica, situada entre o cognitivismo e a semiologia, que se situa esta tese. No entanto, apesar de predominante, a abordagem cognitivista não foi adotada de forma estanque ao longo deste estudo. O próprio Bordwell não o faz; ele diz preferir uma metodologia transdisciplinar, pois admite que os diversos contextos em que o diretor realiza filmes, e nos quais os espectadores consomem esses mesmos filmes, atravessam obrigatoriamente as decisões criativas que constituem o estilo. Assim, para realizar uma análise estilística minuciosa, deve-se sempre ter em conta o papel exercido pelos contextos nas escolhas operadas pelo artista, como nos ensina Gombrich: (...) o que interessa aqui, do ponto de vista do método, é que um ato de escolha tem apenas significação sintomática, e só é expressivo de alguma coisa se podemos reconstruir a situação em que se deu a escolha (GOMBRICH, 2007, p. 18). Gombrich é um autor central para Bordwell, cujo trabalho tem consistido, em grande medida, em aplicar à arte cinematográfica o método desenvolvido por Gombrich para estudar 17 as artes pictóricas – pintura, arquitetura, desenho, etc. Ambos estudam (ou estudaram) a evolução do estilo. Nossa pesquisa pretende fazer o mesmo, circunscrevendo a prática da análise estilística ao trabalho de um único artista; por isso, procuramos seguir a mesma trajetória metodológica. Esta consiste em partir da reconstituição dos contextos históricos, sócio-culturais, econômicos, tecnológicos e políticos dentro dos quais Sergio Leone trabalhava para, num segundo momento, dar conta de uma análise estilística mais minuciosa. Ao longo deste percurso, a abordagem utilizada é transdisciplinar. Tomamos emprestados conceitos de várias disciplinas (por exemplo, a narratologia estruturalista de Will Wright, a historiografia influenciada pelos estudos culturais de Christopher Frayling, a sociologia de Edward C. Banfield, a fusão entre semiologia da música e psicanálise lacaniana de Michel Chion, o estudo dos gêneros fílmicos de Edward Buscombe, e outros), sempre tendo no horizonte o objetivo de investigar as relações entre o objeto-filme e os seus contextos de produção, circulação e consumo. Três conceitos formam o alicerce conceitual em que se fundamenta esta tese. A seção de abertura do primeiro capítulo tratará de circunscrevê-los com maior precisão, mas iremos adiantá-los aqui, propondo conexões entre eles. Um deles, já vimos, é o de estilo. A forma como Bordwell definiu esse termo deve a E. H. Gombrich, que providenciou o segundo conceito essencial: o de esquema. Os esquemas são conjuntos de normas de estilo disponíveis aos artistas de determinada época para resolver problemas de representação (GOMBRICH, 2007). Essas técnicas se firmam aos poucos, no repertório dos artistas, quando se mostram bem-sucedidas. Elas podem ser replicadas, revisadas, sintetizadas ou rejeitadas pelos artistas. Os esquemas funcionam mais ou menos como sistemas de códigos (ou seja, regras narrativas e estilísticas) que produzem significados a partir da manipulação de significantes. Esquemas são flexíveis o suficiente para que cada artista, dentro dos contextos de produção em que opera, os modifique ou adapte em variados graus de ênfase. Demonstrar como Sergio Leone trabalhou com os esquemas disponíveis, muitas vezes revisando-os (em alguns casos de modo crítico), é um dos objetivos centrais desta tese. Leone pertenceu a uma geração de diretores europeus apontada por historiadores do cinema como renovadora dos esquemas clássicos da tradição cinematográfica. Esta geração deu partida a um processo estético de intensificação desses esquemas, instituindo o que Bordwell chamou de poética da continuidade intensificada (BORDWELL, 2006, p. 119). Ele defendeu que a poética do cinema está passando, desde os anos 1960, por um processo gradual de intensificação dos recursos estilísticos utilizados para narrar histórias audiovisuais. 18 Bordwell rejeita a idéia de que o cinema irreverente e auto-reflexivo, praticado pelos movimentos cinematográficos que emergiram naquela década na Europa (em especial a Nouvelle Vague francesa), propunha uma ruptura com a linguagem cinematográfica clássica. Ele substitui a idéia de ruptura pela de intensificação. No entanto, concorda com o senso comum sobre quem foram os diretores que revisaram, sintetizaram e adaptaram os esquemas que constituíam essa poética da intensificação: a geração anteriormente citada de contemporâneos de Leone, incluindo diretores como Bertolucci (o mesmo das bundas de cavalos) e Resnais. São os cineastas que se convencionou chamar de diretores modernistas europeus (AUMONT, 2008; LAURENT; JULIER, 2009; MANEVY, 2006). A teoria de Bordwell abre espaço nesse grupo de renovadores para alguns nomes de gerações anteriores, como Orson Welles, Robert Bresson, Akira Kurosawa e Alfred Hitchcock. De modo geral, Bordwell aponta para o mesmo grupo de realizadores consagrados. O ponto de maior originalidade (e também de discórdia) de sua teoria é mesmo a negação da idéia de ruptura, em prol da noção da intensificação. Mas a percepção do fenômeno é a mesma – nos anos 1960, os cineastas começaram a alterar suas práticas narrativas e estilísticas – e seus protagonistas, também. Ao rever os westerns de Leone, me parece evidente que há uma conexão entre esses filmes e a poética da continuidade intensificada, notável especialmente no cinema de gênero contemporâneo. Desde meados dos anos 1960, Leone já utilizava certos recursos estilísticos e narrativos em apontavam em direção a essa intensificação, revisando (sem romper com) os esquemas narrativos e estilísticos que compunham a tradição a partir da qual ele trabalhava. Mais: algumas das práticas estilísticas e narrativas que sinalizam essa operação, e que por vezes assinalam também uma assinatura autoral, são em alguns casos substancialmente diferentes daquelas adotadas pelos diretores modernistas, muito mais respeitados. Os filmes de Leone apontavam para o mesmo rumo, mas o modo como ele filmava era diferente de Godard, Bergman e companhia. Ele não estava simplesmente replicando os novos recursos de estilo e narrativa introduzidos nos esquemas dominantes da prática cinematográfica pelos demais cineastas dos anos 1960. Ele produzia algo particular. Closeups (sobretudo extremos 3) em grande quantidade; realismo 4 grotesco (combinado com um 3 Como serão mencionados diversas vezes ao longo desta tese, é importante ressaltar a diferença entre close-ups e close-ups extremos (em inglês, big close-ups). No primeiro caso, o close-up tradicional mostra o rosto e os ombros do personagem, deixando algum “ar” sobre sua cabeça. No segundo, menos comum, o rosto é enquadrado por inteiro, do queixo à testa. Planos que cortam a ponta do queixo e o topo da testa, bem como aqueles que focalizam apenas partes do rosto (olhos, boca, nariz), também são considerados close-ups extremos. 19 tom paródico e irreverente) de cenários e figurinos; perfil amoral e violento do herói individualista; tratamento distendido do tempo fílmico dado aos momentos de tensão (sobretudo os duelos); representação gráfica da violência; estrutura narrativa cronologicamente fragmentada, privilegiando momentos de ação física; inclusão de elementos diegéticos nas composições musicais; uso dramático de ruídos e silêncios. Essas e outras ferramentas são alguns dos recursos narrativos e estilísticos que marcaram presença nos filmes dele de modo recorrente, buscando a intensificação da experiência fílmica. Todas consistem de revisões ou sínteses estilísticas, que se juntaram ao repertório de técnicas introduzidas pelos diretores modernistas europeus, para compor os esquemas que constituem, desde então, a poética da continuidade intensificada. Várias das características elaboradas por Leone podem ser percebidas – muitas vezes submetidas a novos processos de atualização, revisão e adaptação – em filmes contemporâneos, os quais continuam ainda hoje a exacerbar gradualmente essa noção de intensificação (BORDWELL, 2006, p. 119). O uso de close-ups extremos de rostos, por exemplo, aumentou exponencialmente desde meados dos anos 1960, quando nenhum outro cineasta além de Leone usava o recurso de maneira tão ostensiva e abundante; os heróis se tornaram cada vez mais falhos e de moral duvidosa; e assim por diante. A associação entre os filmes de Leone e a poética da continuidade intensificada parece ter sido percebida intuitivamente pelos cinéfilos. É significativo que o já citado Três Homens em Conflito ocupe, atualmente, o quarto lugar entre os melhores filmes de todos os tempos, na votação popular dos 17 milhões de internautas cadastrados no Internet Movie Database (IMDb) 5. Assim como parece significativo que um diretor como Quentin Tarantino, apontado por críticos e estudiosos como um dos principais renovadores do cinema nos anos 1990, escolha o mesmo filme como seu predileto 6. Portanto, nos parece que, operando dentro do mesmo contexto sócio-histórico em que os diretores modernistas europeus trabalharam, Sergio Leone ajudou a desenvolver muitos recursos da continuidade intensificada. No entanto, seus filmes nunca mereceram uma análise 4 O termo “realismo” é usado nesta tese como sinônimo de “verossimilhança”, evocando uma forma de representação do Velho Oeste mais próxima da realidade da época do que os filmes norte-americanos que retrataram o mesmo período histórico. 5 O maior banco de dados de cinema da Internet possui 17 milhões de visitantes registrados com direito a voto. Para ser incluído na lista dos 250 melhores, destacada na home page, um filme precisa obedecer aos seguintes critérios: (1) ter mais de 45 minutos; (2) receber pelo menos 1.300 votos; e (3) ser uma obra de ficção, o que exclui da lista os documentários. 6 Tarantino votou em Três Homens em Conflito como melhor filme da história do cinema na votação promovida pela publicação britânica Sight & Sound, em 2002. A revista inglesa publica listas de melhores filmes, compiladas entre centenas de diretores e críticos de todo o mundo, a cada dez anos, desde 1952. 20 detalhada do ponto de vista estilístico; sua contribuição à poética do cinema contemporâneo permanece obscura. Mesmo a pesquisa de Bordwell, autor que defende a ampliação das pesquisas do estilo cinematográfico, reflete esse problema. No livro em que desenvolve o conceito de continuidade intensificada, ele cita Sergio Leone cinco vezes (BORDWELL, 2006). Em três delas, menciona o uso abundante de close-ups extremos; em duas, faz o mesmo em relação ao uso constante de lentes grande-angulares. No entanto, em nenhum momento ele aponta Leone como um cineasta importante para o desenvolvimento desses dois recursos. Bordwell minimiza o papel que os filmes de Leone parecem ter exercido no processo contínuo de revisão e exacerbação de muitas das características de narrativa e estilo que integram os esquemas da continuidade intensificada. Mais sintomático ainda é a ausência de qualquer citação ao trabalho de Leone no livro em que Bordwell (1997) se propõe a narrar a história do estilo no cinema do século XX. O outro historiador crucial do estilo cinematográfico, Barry Salt, cuja pesquisa mapeia as principais tendências estilísticas e narrativas do cinema desde os irmãos Lumière, faz uma única menção a Leone (SALT, 2009, p. 297), citando-o como um dos poucos diretores a explorar a composição em profundidade de campo nos anos 1960. Além disso, a tentativa de Bordwell e Thompson (2009) em reconstituir a história do cinema, relacionando-a não aos grandes fatos históricos do século XX, mas aos avanços tecnológicos e estilísticos, dedica quatro parágrafos ao diretor, mencionando como características dele os close-ups extremos, o realismo de cenários e figurinos, e a música irreverente. O trecho é encerrado com uma frase curta, mas importante, que ajuda a expor com clareza o problema a que nos referimos: Embora Leone tenha trabalhado num gênero popular, sua reinterpretação extravagante e altamente pessoal das convenções desse gênero foi tão significativa quanto os esforços dos diretores de cinema de arte que revisaram e desafiaram a tradição neo-realista. (BORDWELL; THOMPSON, 2009, p. 418) 7. A passagem contém um paradoxo revelador. Bordwell e Thompson afirmam que as práticas estilísticas e narrativas de Leone foram tão importantes quanto aquelas operadas pelos diretores modernistas europeus. Nesse caso, é difícil compreender porque todos eles – Godard, Truffaut, Antonioni, Bergman e Fellini, entre outros – têm trechos de filmes 7 “Although Leone worked in a popular genre, his florid, highly personal reinterpretation of its conventions proved as significant as the efforts of those art-cinema directors who revised and challenged the Neorealist tradition”. A tradução é minha; o texto original foi transcrito para minimizar possíveis distorções do pensamento dos autores, sobretudo com minha ênfase interpretativa na palavra “embora”. 21 analisados em Boxes graficamente destacados, enquanto Leone fica restrito a uma menção circunstancial. De fato, a frase traz duas expressões que ajudam a esclarecer o paradoxo: (1) Leone trabalhou num ciclo de cinema feito para consumo popular, que por sua vez estava incluído num gênero fílmico também de caráter popular (a palavra “embora” explicita o preconceito dos autores); (2) os grandes diretores modernistas merecem mais respeito porque fazem ou faziam cinema “de arte”. Em síntese, parte de nosso problema de pesquisa está ligada ao relativo apagamento a que os filmes de Leone foram submetidos, tanto na crítica quanto no âmbito dos estudos cinematográficos. Parece-nos claro que Leone efetivamente teve um papel, ao longo dos anos 1960 e 1970, no processo de desenvolvimento e consolidação de alguns dos esquemas que compõem a continuidade intensificada. Entretanto, esse papel nunca foi analisado a fundo. Tudo isso nos leva a formular duas questões que pretendemos responder nas próximas páginas: qual foi, afinal, a efetiva contribuição oferecida por Sergio Leone a essa nova poética da intensificação? E por que razões essas contribuição tem sido minimizada pelos estudiosos? O objetivo central desta tese consiste em responder a essas duas perguntas. O percurso que seguiremos ao longo da pesquisa, portanto, contém duas trajetórias sobrepostas. Na primeira, tentaremos circunscrever a contribuição de Leone à continuidade intensificada com o máximo possível de exatidão. Na segunda, partiremos da hipótese de que o fato de Leone ter trabalho exclusivamente com o cinema de gênero – e, ainda mais significativamente, num ciclo popular e estrangeiro de um gênero visto como intrinsecamente norte-americano, por lidar com um período central da formação da identidade cultural dos Estados Unidos – está na raiz do apagamento. Tentaremos mostrar que esse processo de desvalorização teve origem na recepção negativa reservada a Leone pelos críticos dos anos 1960. Naquela época, os filmes dele (como todas as obras ligadas ao spaghetti western) provocavam uma tendência ao juízo depreciativo de valor, por emergirem de um sistema de produção que trabalhava com ciclos sucessivos de gêneros populares feitos para consumo de massa – um consumo não-segmentado, nãoespecializado. A trajetória da recepção crítica aos filmes de Leone vai demonstrar como a obra dele, inicialmente ignorada ou desprezada antes mesmo de ser vista com atenção, vai ser submetida a um processo gradual de revalorização, ao longo dos anos 1960 e 1970; mas essa revalorização passava menos pela análise estilística e mais por uma leitura político-ideológica calcada no suposto potencial de resistência cultural contido nesses filmes. Ou seja, mesmo os críticos que devotaram atenção a Leone não enxergaram suas intenções criativas. 22 Como evoluirá em dois trajetos paralelos, a pesquisa percorrerá dois movimentos sobrepostos. O primeiro consiste em realizar uma análise fílmica minuciosa da obra de Leone, com a finalidade de identificar com a maior precisão possível os padrões de estilo e narrativa recorrentes nos filmes dele, e também avaliando de que forma esses padrões estabeleceram revisões dos esquemas tradicionais em direção à continuidade intensificada. Nesse momento, tentaremos conectar as práticas de Leone a uma rede de influências, limites e pré-condições que ajudou a moldar esses recursos. O segundo movimento, por sua vez, extrapola os filmes em direção aos contextos em que eles foram produzidos, circulados e consumidos, de forma a mostrar como se deu o processo de apagamento da contribuição à poética da continuidade intensificada. Os dois trajetos serão levados a cabo através da análise textual, tanto dos filmes quanto da fortuna crítica de Leone. Para pôr em prática essas trajetórias paralelas, optamos – como já foi dito – por uma abordagem interdisciplinar. Este procedimento metodológico será aplicado, ao longo da tese, ao corpus da pesquisa, que é formado por seis filmes dirigidos oficialmente por ele, acrescidos de um sétimo título: Meu Nome é Ninguém (Il Mio Nome è Nessuno, Tonino Valerii, 1973). Neste último, Leone está creditado como produtor e argumentista, embora vários pesquisadores do spaghetti western afirmem que ele dirigiu parcialmente, de forma não-oficial. De todo modo, como Leone esteve ligado à concepção criativa do projeto desde o princípio, decidimos incluí-lo no corpus. O filme de estréia de Leone, O Colosso de Rhodes (Il Colosso di Rodi, Sergio Leone, 1961), foi excluído do corpus por consistir basicamente de um exercício de aprendizado formal em que o diretor não teve chance de supervisionar qualquer aspecto criativo da préprodução (direção de arte, cenários, figurinos), da produção (fotografia, cores) ou da pósprodução (montagem, sonorização), limitando-se a colaborar no roteiro e a dirigir os atores nos sets (FRAYLING, 2000, p. 117). A tese está dividida em quatro capítulos. O primeiro reconstitui o contexto histórico em que se desenvolveu a carreira de Leone. Para isso, percorremos cronologicamente os filmes que ele dirigiu, analisando em seguida sua fortuna crítica. Mais do que identificar os primeiros padrões narrativos e estilísticos recorrentes – o que fazemos –, nosso objetivo maior nesse capítulo é apresentar e analisar os contextos sócio-culturais em que Leone trabalhou, sobretudo o rígido sistema de produção de Cinecittà, erigido sob a sombra (direta e indireta) do movimento neo-realista italiano. Esses contextos, como veremos, funcionavam tanto como limites quanto como pré-condições que interferiam nas práticas estilísticas de Leone. 23 Na abertura do capítulo, procuramos desenvolver quatro eixos conceituais da tese, propondo definições para termos que aparecem repetidamente nas seções seguintes: estilo, esquema, poética do cinema e continuidade intensificada. Já no final do capítulo, procuramos analisar a polarização entre o autorismo e os estudos do cinema de gênero, mostrando como esse debate – central para a teoria do cinema desenvolvida à época, e determinante para o discurso dos críticos em atividade no momento – foi influente na recepção crítica oferecida ao spaghetti western e, em particular, a Leone. Consideramos, ainda, que o conceito de gênero fílmico também atua como pré-condição das práticas narrativas e estilísticas, interferindo nas decisões criativas que constituem o estilo de todos os diretores. É importante mencionar, nesse ponto, a importância, para esta tese, da pesquisa realizada por Christopher Frayling, nos anos 1980. Nossa pesquisa divide com Frayling objetivos em comum e resgata informações compiladas por ele, ampliando-as consideravelmente e propondo novas leituras para esses dados. Há, ainda, uma diferença crucial: ao optar por uma abordagem que mistura pesquisa etnográfica e estudos culturais, Frayling nunca se debruçou sobre os filmes, concentrando-se nos contextos de produção e nos aspectos valorativos do debate acerca do spaghetti western. Essa abordagem continuou a mesma quando ele escreveu a biografia de Leone, em 2000. Por causa disso, Frayling não percebeu, por exemplo, as mudanças sutis e graduais nos padrões de recepção que a crítica cinematográfica reservou para os trabalhos de Leone. Os dois capítulos seguintes constituem a etapa mais encorpada da tese: a análise fílmica propriamente dita, em que trechos selecionados de cada filme de Leone serão examinados minuciosamente, como se colocados em um microscópio, para um estudo detalhado da recorrência dos padrões estilísticos e narrativos. Tentamos rastrear as origens de cada recurso, ligando-as a contextos sócio-históricos, econômicos, culturais ou tecnológicos que possam ter levado Leone a adotá-los, através de um processo de revisão dos esquemas dominantes de construção fílmica. No segundo capítulo, procuramos enfatizar a análise dos recursos narrativos; a seção lida, pois, com as duas primeiras vertentes da poética (chamadas de temática e construção narrativa em larga escala). O terceiro capítulo faz o mesmo com a prática estilística (terceira vertente da poética). Juntos, esses dois capítulos constituem o trecho mais extenso da tese. Por fim, o quarto capítulo conclui a pesquisa propondo um salto historiográfico que concretiza uma série de análises de trechos de filmes contemporâneos, realizados em diferentes países e circunstâncias de produção, dos anos 1970 até hoje. Nosso objetivo, aqui, é 24 traçar conexões entre os padrões de estilo e narrativa recorrentes na obra de Leone e algumas ferramentas características da continuidade intensificada. Esta última seção tenciona deixar claras as impressões digitais deixadas pela obra de Leone no cinema contemporâneo, mostrando como algumas das revisões dos esquemas levadas a cabo por ele, nos anos 1960 e 1970, foram reapropriadas, revisadas e sintetizadas por diretores posteriores, entre os quais Brian De Palma, John Carpenter, Quentin Tarantino e os irmãos Larry e Andy Wachowski. Conclui-se, assim, que mesmo após as bundas de cavalos praticamente desaparecerem da paisagem visual do cinema contemporâneo, assim como aconteceu como o próprio gênero western, seremos capazes de confirmar a contribuição que ele ofereceu à poética da continuidade intensificada. Antes de chegar até lá, contudo, tentaremos circunscrever rapidamente quatro conceitos fundamentais que serão utilizados a todo momento, ao longo da tese: poética, estilo, esquema e continuidade intensificada. O sentido original da palavra poética remonta, como se sabe, a Aristóteles. Em sua Poética, Aristóteles procurou examinar as estruturas dos gêneros literários, com o objetivo de mostrar que eles provocavam emoções diferentes. Ao longo do tempo, a expressão passou a ser aplicada a todas as artes e mídias: A poética de qualquer mídia artística estuda o trabalho concluso como resultado de um processo de construção, um processo que inclui um componente artesanal (tais como regras gerais), os princípios mais amplos segundo os quais um trabalho é composto, suas funções, efeitos e usos. Qualquer investigação dos princípios fundamentais pelos quais artefatos de qualquer representação midiática são construídos, e os efeitos gerados a partir desses princípios, podem cair dentro do reino da poética. (BORDWELL, 2008, p. 12). No campo dos estudos narrativos e estilísticos, a poética consiste numa espécie de engenharia reversa. O trabalho de um engenheiro reverso consiste em desconstruir um artefato físico (televisão, computador, etc.) ou matemático (um software, por exemplo), para descobrir como ele funciona. Desta forma, o engenheiro reverso é capaz de desvendar as estruturas internas que fazem aquele artefato funcionar, e então copiá-las em outros artefatos. Nos estudos cinematográficos, o pesquisador da poética parte de determinados objetos-filme para, investigando sua estrutura interna, identificar os princípios que governam a construção narrativa, de forma a tornar possível a aplicação desses princípios a outras obras. David Bordwell (2008, p. 17) propõe uma poética do cinema dividida em três vertentes: a temática, a construção narrativa em larga escala e a prática estilística. As três se 25 interpenetram em vários níveis, de modo que é difícil estudá-las separadamente. Questões temáticas interferem no uso de recursos de estilo, que por sua vez influenciam ou são determinados pela construção em larga escala, e assim por diante. A vertente temática, como o nome indica, destaca elementos narrativos mais imediatos. Temas, relações causais entre os eventos que compõem a trama, perfil psicológico de personagens, uso de arquétipos, texto e subtexto, diálogos, questões de gênero, raça e classe social caem nesta definição. A construção narrativa em larga escala consiste num campo de transição entre a primeira e a terceira vertentes. Ela lida com a estrutura narrativa geral, responsável pela progressão do enredo e pela modulação dramática. Quem pesquisa esta vertente está interessado nas maneiras como as partes de um filme (planos, cenas e seqüências) se relacionam entre si, para constituir um todo compreensível. A última vertente consiste na prática estilística. Os pesquisadores dessa vertente lidam com padrões visuais e sonoros. Isso inclui um conjunto de ferramentas que incluem composição pictórica, enquadramento, iluminação, cores, cenários, figurinos, uso de ruídos, música, diálogos, silêncios, e muitos outros. O conceito de continuidade intensificada surgiu da constatação de que, a partir dos anos 1960, os diretores de cinema passaram a utilizar um repertório cada vez mais amplo de recursos narrativos e estilísticos, intensificando a poética do cinema em direção a uma experiência fílmica cada vez mais visceral. Bordwell sugere que os recursos de estilo e táticas narrativas introduzidos desde então não provocaram uma ruptura com os princípios gerais da poética, que ainda continuam valendo: O que mudou, tanto nos registros mais conservadores quanto nos mais vanguardistas, não foi o sistema estilístico da construção cinematográfica, mas certas ferramentas funcionando dele. (...) Desde os anos 1960, essas técnicas foram trazidas para o primeiro plano, de formas inéditas. (...) Enquanto se tornavam mais proeminentes, essas técnicas alteraram a textura de nossa experiência fílmica. (BORDWELL, 2006, p. 119). Para melhor ressaltar sua posição, Bordwell traz à tona a noção de continuidade clássica, que resume nos seguintes termos: O espectador entende como a história se move adiante no espaço e no tempo. Planos que estabelecem e restabelecem o conjunto situam os atores dentro do cenário. Um eixo de ação (ou “linha de 180 graus”) governa os movimentos e olhares dos atores, e todos os planos, embora possam variar em ângulo, são registrados apenas de um lado do eixo. Os movimentos dos atores são sincronizados através de cortes, e os planos mais próximos são reservados 26 para as reações faciais e linhas de diálogo significativas. Montagem alternada pode justapor vários feixes de ação (...). Diretores norteamericanos usaram essa síntese de técnicas de encenação, filmagem e montagem nos anos que se seguiram a 1917, e suas premissas se tornaram a base de uma linguagem fílmica internacional para o cinema de entretenimento, passando a ser codificada em manuais e currículos universitários nos anos 1950. (BORDWELL, 2006, p. 119-120). Bordwell assegura que a partir dos anos 1960 a estabilidade desse sistema começou a ser abalada pela introdução de novas técnicas estilísticas e narrativas. Para ele, as novas técnicas não rompiam com as práticas estilísticas e narrativas anteriores, fazendo na verdade uma operação de natureza diferente: De maneira geral, as novas ferramentas (...) não desafiam o sistema; elas o revisam. Longe de rejeitar a continuidade tradicional em nome da fragmentação e da incoerência, o novo estilo aponta para uma intensificação das técnicas estabelecidas. A continuidade intensificada é a continuidade clássica amplificada, elevada a um nível mais estridente de ênfase. Este é o estilo dominante dos filmes norte-americanos contemporâneos de grande audiência. (BORDWELL, 2006, p. 120). Em sua pesquisa, Bordwell mapeou alguns dos recursos narrativos e estilísticos usados pelos cineastas para intensificar a continuidade clássica, dos anos 1960 até hoje. Na temática, alguns desses recursos seriam: representações mais realistas do sexo e da violência; protagonistas mais falhos, humanos, alienados, solitários, inseguros ou moralmente ambíguos; a tendência ao alusionismo (isto é, às citações a filmes anteriores, às vezes de forma crítica, outras vezes de modo nostálgico e reverente); a caracterização mais densa de personagens, protagonistas ou não, tornando-os seres mais complexos; e a atenção realista aos detalhes e à acuidade histórica (worldmaking). Na construção narrativa em larga escala, algumas características da continuidade intensificada seriam: a divisão menos clara da narrativa em três atos; as narrativas em rede (com diversos protagonistas); a fragmentação cronológica e espacial das tramas; relações causais menos evidentes e mais ambíguas entre eventos que compõem a trama; trechos – ou até filmes inteiros – de narrativa subjetiva (em que a ação dramática acontece apenas dentro da mente de um personagem, às vezes sem deixar isto claro ao público). No que se refere à prática estilística, a continuidade intensificada seria encontrada em recursos como: a montagem com planos cada vez mais curtos; o uso de lentes de distâncias focais diferentes (muitas vezes dentro da mesma cena); a câmera mais próxima dos rostos dos atores, tendendo a enquadrar um de cada vez; os movimentos de câmera incessantes, com uso 27 proeminente de Steadicam 8, traveling e gruas; o uso freqüente do rack focus (técnica usada para direcionar a atenção do espectador dentro de composições pictóricas com mais de uma camada de ação, focalizando com nitidez apenas uma e depois outras, progressivamente); e, sugerindo um tratamento mais fragmentado do espaço e do tempo fílmicos, na economia de planos de conjunto. Juntas, essas ferramentas estilísticas teriam os seguintes propósitos: Alguns cineastas têm procurado refinar a tradição, explorando seus princípios minuciosamente. Esses criadores se perguntam: (...) como posso fazer as conexões causais mais prazerosas, as reviravoltas mais inesperadas, a psicologia dos personagens mais envolvente, a excitação mais intensa, os temas mais firmemente explorados? Como posso exibir meu virtuosismo? Quando os cineastas se revelam bem-sucedidos, revelam o alcance e a flexibilidade das premissas clássicas. (BORDWELL, 2006, p. 51). Este trecho traz à tona a estreita ligação entre a poética da continuidade intensificada e a questão do estilo individual 9. Nesse ponto, é fundamental demarcar uma diferença entre os conceitos de prática estilística e estilo, conforme adotados nesta tese. Enquanto a prática estilística consiste no conjunto de ferramentas que constituem a terceira vertente da poética do cinema, o estilo deve ser compreendido como um conjunto de padrões recorrentes na obra de determinado diretor, e que podem abarcar todas as vertentes da poética. O estilo consiste na soma de todas as escolhas técnicas e narrativas que caracterizam a obra de um cineasta. Esta tese trabalha com os filmes de Sergio Leone; aqui, portanto, o termo estilo será utilizado como sinônimo de assinatura estilística individual. Essa assinatura está expressa (conscientemente ou não) nas soluções encontradas pelo diretor para representar, em imagens e sons, aquilo que está no roteiro. A assinatura estilística nasce das soluções encontradas por cada cineasta para resolver problemas de representação de quaisquer ordens (narrativa, estilística, logística, operacional, etc.) com os quais um diretor se depara no dia-a-dia de seu ofício. Cada cineasta opera suas próprias escolhas. Quando constituem um padrão recorrente, estas definem o estilo do diretor. Normalmente, não é o estilo que determina as escolhas narrativas e estilísticas operadas por um cineasta; é o contrário. Este procedimento consiste no que Bordwell denomina de paradigma do problema/solução (BORDWELL, 2009, p. 320), e que pode ser 8 Sistema de pesos e molas acoplado à câmera que, afixada no ombro do operador, permite a mobilidade total deste, sem que a imagem resulte tremida ou desfocada. 9 O uso do termo “estilo”, ao longo desta tese, se aplica sempre ao conjunto de escolhas narrativas e estilísticas utilizado por um diretor para dar significado a uma obra de arte. A ênfase recai no caráter individual do termo. Quando falamos de estilo, estamos nos referindo às práticas recorrentes de determinado artista, e não ao movimento cinematográfico com o qual ele é identificado. 28 resumido sinteticamente da seguinte maneira: o processo de contar uma história num meio audiovisual consiste, grosso modo, numa sucessão constante de problemas de representação, que o diretor soluciona fazendo escolhas a partir de um repertório anteriormente disponível (e que, em muitos casos, o diretor cria, revisa, sofistica, sintetiza ou reformula). Para cada problema, existe uma série de soluções possíveis, entre as quais o artista deve escolher uma (ou mais). O paradigma do problema/solução consiste na adaptação, para o meio cinematográfico, do conceito de esquema (GOMBRICH, 2007). Os artistas não criam a partir do nada. Eles trabalham dentro de uma tradição que dispõe de todo um repertório de recursos, ou normas de estilo, que podem copiar, reformular, sintetizar ou rejeitar. O conjunto de recursos que compõe esse repertório constitui os esquemas. Cada artista ajusta os esquemas disponíveis a novas possibilidades oferecidas pelos contextos sócio-culturais, econômicos, tecnológicos e ideológicos em que trabalha. Defrontado com uma solução disponível para problema de representação, os diretores têm quatro opções: replicam, revisam, sintetizam ou rejeitam tal solução. Quando existe pelo menos uma ferramenta disponível para resolver o problema, e o diretor a utiliza sem modificá-la, ele replicou um esquema. Se o diretor modifica uma ferramenta, adaptando-a a novas circunstâncias ou usando-a para uma nova finalidade, ele revisou um esquema. O diretor pode utilizar elementos de dois ou mais esquemas, sintetizando-os para propor uma nova solução – esta é a síntese. Por fim, há também a rejeição, que ocorre quando o cineasta descarta todas as ferramentas disponíveis, inventando uma nova solução, mudando o roteiro para eliminar o problema de representação ou, o que é mais freqüente, recorrendo a algum esquema alternativo – e, nesse caso, muitas vezes revisando soluções anteriormente disponíveis. Esse é o paradigma do problema/solução. Ele nos ensina que determinada solução, usada com sucesso para resolver um problema de representação, tende a ser integrada aos esquemas circulantes dentro da atividade cinematográfica. As técnicas que têm sucesso da resolução de problemas se tornam parte integrante de esquemas. Vista dessa perspectiva, a poética da continuidade intensificada consiste de um conjunto de esquemas visuais, sonoros e narrativos que circulam na comunidade cinematográfica desde a década de 1960. Quando um diretor é confrontado com problemas de representação idênticos, e soluciona esses problemas recorrendo sempre às mesmas ferramentas, ele cria padrões recorrentes. Esses padrões determinam o que chamamos de estilo individual: 29 O termo estilo deve ser considerado em sentido amplo, como a arte de contar uma história em imagens e em sons; compreende a escolha dos atores e dos cenários, as regulações técnicas, a disposição dos pontos de vista e dos pontos de escuta, etc. Tudo é importante em matéria de estilo: a abertura da objetiva e a cor do papel pintado atrás do ator, a rapidez do traveling e o vaso de flores embaixo, à esquerda. (JULLIER; MARIE, 2009, p. 20). Há dois aspectos da passagem para os quais chamamos atenção. O primeiro está na idéia (ausente no texto) de que o estilo é o resultado autoral de um conjunto de escolhas. Não está descartada a contribuição de outros membros da equipe criativa (diretor de fotografia, cenógrafo, figurinista, diretor de arte, compositor, desenhista de som, etc.) na decisão por uma ou outra solução de representação. No entanto, é natural que o diretor do filme seja o responsável, em última instância, pelas escolhas que resultarão na cunhagem do estilo: É possível incluir como parte do estilo de Hitchcock seu pendor pelo suspense no tratamento dos diálogos ou o tema persistente do homem inocente perseguido por algo que não fez. De qualquer forma, características recorrentes de encenação, filmagem, edição e som sempre serão parte fundamental do estilo de um diretor. (BORDWELL, 1998, p. 4). O segundo aspecto é a referência de Jullier e Marie às “circunstâncias históricas particulares”, expressão que representa resumidamente a variada gama de limites e précondições impostos a qualquer cineasta por aspectos de natureza não estritamente cinematográfica, mas que remetem aos contextos sócio-culturais, tecnológicos, econômicos, históricos, políticos e ideológicos nos quais ele opera. É importante se deter por um momento neste ponto. Todas as escolhas estilísticas e narrativas, mesmo as mais simples, são atravessadas por fatores não-cinematográficos. Essas escolhas são e serão feitas sempre, quaisquer que sejam as circunstâncias. Elas moldam a assinatura pessoal de um diretor, embora não sejam necessariamente pensadas de modo consciente. O conjunto de elementos que constitui a assinatura autoral de um diretor sempre emerge através da maneira como este lida com os esquemas circulantes de sua arte. No entanto, poucas vezes essas escolhas são feitas livremente. Contextos sócioculturais, tecnológicos, econômicos, políticos e ideológicos atuam como limites ou précondições para que o cineasta as efetue. Portanto, a constituição do estilo pessoal se dá dentro de uma rede de contextos que se atravessam e incidem diretamente sobre essas escolhas. Orçamento, tecnologia, modas e a censura, por exemplo, são alguns desses contextos, muitas vezes externos ao filme em si. Ainda assim, se a constituição do estilo de um cineasta não pode ser inteiramente explicada pela análise textual de seus filmes, por outro lado o pesquisador corre o risco de 30 atribuir uma ênfase excessiva ao papel dos contextos na definição do estilo. É por isso que Bordwell alerta para a necessidade de uma aproximação cuidadosa do objeto: “O objetivo do historiador é passar dos fatores culturais às características estilísticas por meio de passos curtos e cuidadosos, não por grandes saltos” (BORDWELL, 2009, p. 312). Em outras palavras, o que ele propõe é que, embora os processos sócio-culturais exerçam sua cota de influência, “a organização estilística que detectamos é resultado da seleção que os diretores fizeram entre as alternativas disponíveis” (BORDWELL, 2009, p. 69). Nesse sentido, ao invés de pensar a cultura como causa última do estilo, ele propõe que os fatores externos sejam considerados antes como um ponto de partida do processo de criação, uma espécie de tela em branco com limites definidos por esses fatores externos, e sobre a qual o artista opera uma série de escolhas narrativas e estilísticas para solucionar problemas específicos de representação: Tais escolhas podem ter sido planejadas antes de filmar, podem ter emergido espontaneamente durante a filmagem ou se imposto na pós-produção. Para fazer uma distinção supersimplificada, podem ser “escolhas livres”, que realizam realmente as intenções do diretor, ou podem ser “escolhas forçadas”, nascidas de limites externos, como tempo, dinheiro ou falta de poder. Dessa maneira, para explicar mudança e continuidade dentro do estilo do filme, temos de examinar as circunstâncias que influenciam mais diretamente a execução do filme – o modo de produção, a tecnologia empregada, as tradições e o cotidiano do ofício favorecido por agentes individuais. Fatores mais distantes, tais como fortes pressões culturais ou demandas políticas, podem manifestar-se somente através dessas circunstâncias próximas, nas atividades dos agentes históricos que criam um filme. O espírito do tempo não liga a câmera. (BORDWELL, 2009, p. 69). O grifo original, do próprio autor, ajudou a definir o percurso metodológico que se faz nesta tese: o exame cuidadoso das características de narrativa e estilo da obra de Leone (através da análise de cenas e seqüências dos filmes) virá acompanhado da necessária análise dos contextos históricos (tais como os códigos formais e narrativos do cinema de gênero, os avanços tecnológicos, o modo de produção do cinema popular italiano, a contracultura, a trajetória do western na cultura midiática, o cinema modernista europeu, etc.). Esses contextos influenciaram decisivamente a maneira como Leone revisou, sintetizou, replicou ou rejeitou recursos de narrativa e estilo que vieram a constituir os esquemas dominantes da poética da continuidade intensificada. Assim, neste primeiro capítulo, investigaremos os principais contextos sócio-históricos dos quais Sergio Leone emergiu, como diretor. 31 1. Estilo e Modo de Produção 1.2 Cinecittà: uma história em ciclos Desde o início de sua trajetória na indústria cinematográfica italiana, Sergio Leone trabalhou dentro do sistema de produções populares de Cinecittà. Esse sistema, que se desdobrou em vários ciclos dedicados a filmes destinados a consumo popular, vinculados a gênero fílmicos rígidos, obedecia a um modo de produção que seguia regras econômicas e tecnológicas bastante estreitas. Qualquer diretor que trabalhasse dentro desse modo de produção precisava estar preparado pra enfrentar severas restrições de produção, especialmente dentro dos contextos tecnológicos e econômicos. Esse sistema se estabeleceu, então, como uma pré-condição importante para o desenvolvimento de padrões estilísticos e narrativos que alterassem ou revisassem os esquemas dominantes dentro da Itália. O início do ciclo de spaghetti westerns, do qual Leone se tornaria o principal realizador, pode ser rastreado muitos anos antes de o primeiro faroeste ser realizado na Itália. A origem está na criação do complexo de estúdios Cinecittà, em 1937. Cinecittà nasceu de uma estratégia política de Benito Mussolini. Financiando a criação de uma rede de estúdios de filmagem, em moldes parecidos com Hollywood, Mussolini tentou usar o cinema como propaganda para perpetuar-se no poder, além de garantir a criação de uma indústria de entretenimento que pudesse render dividendos – econômicos e políticos – ao governo fascista. Medindo-se em números, a estratégia deu certo. Em cinco anos, o número de filmes produzidos no país triplicou, chegando a 120 longas-metragens em 1942. Nos três anos seguintes, por causa da Segunda Guerra Mundial, este número foi reduzido dramaticamente, à medida que a população masculina se envolvia diretamente nos combates. Em 1945, quando Mussolini perdeu o poder, a indústria de cinema popular estava reduzida a escombros. Naquele ano, menos de 15% dos longas-metragens exibidos nas salas de projeção italianas tinham sido produzidos no país (CAMARGO; VELLOZO; PEREIRA, 2007, p. 37). O movimento neo-realista, nascido em 1942, celebrava o renascimento do cinema italiano através de uma política autoral. Seus diretores realizavam produções de baixo orçamento. Filmes como Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta, Roberto Rossellini, 1945) e Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, Vittorio De Sica, 1948) contavam histórias de gente comum, trabalhadores tentando sobreviver em meio ao caos das cidades cuja infra- 32 estrutura havia sido destruída no conflito internacional. Os filmes funcionavam como denúncia das precárias condições de vida na Itália do pós-guerra. Nos terrenos narrativos e estilísticos, o cinema neo-realista tanto herdou características impostas pelo modo de produção de Cinecittà quanto popularizou outras, definidas muitas vezes a partir de princípios estéticos e ideológicos considerados importantes pelos diretores que compunham o movimento. Entre essas técnicas estavam a economia no uso do close-up de rostos, a recusa a efeitos visuais e de edição (sobreposições, elipses elaboradas, etc.), as filmagens em locações reais, o uso de atores não-profissionais e as gravações sem som direto, com as trilhas de áudio sendo posteriormente criadas em estúdio (FABRIS, 2004, p. 205). O documentário aparecia como influência importante, ao lado de certos traços do melodrama hollywoodiano (a música neo-romântica, por exemplo). Embora o movimento neo-realista tenha exercido profunda influência no cinema modernista europeu que surgiria nos anos 1960, já havia terminado quando Sergio Leone começou a trabalhar como diretor, em 1962. E, apesar de os cineastas do movimento se esforçarem para captar a realidade de forma fiel (uma estética diferente dos filmes cheios de artifícios de Leone), o neo-realismo deixou marcas no cinema dele, como o cuidado com os detalhes e o tratamento do som. Nos anos 1950, a concorrência das produções americanas fazia os produtores de Cinecittà enfrentarem baixas bilheterias. O problema era agravado pelo pequeno incentivo financeiro do governo italiano, ocupado com a reconstrução do país arrasado. Para conseguirem se auto-sustentar, os produtores independentes que atuavam em Cinecittà (não apenas italianos, mas também franceses, alemães e espanhóis) bolaram um sistema de produção que privilegiava dois fatores: (1) o aluguel das instalações de Cinecittà para filmagens de produções estrangeiras; e (2) a produção em larga escala de filmes baratos, de apelo popular, seguindo regras rigidamente codificadas. O primeiro item recebeu a ajuda de uma lei federal, obrigando as grandes companhias estrangeiras a gastar dentro da Itália parte do dinheiro arrecadado dentro do país com as produções feitas em Roma (CAMARGO; VELLOZO; PEREIRA, 2007, p. 37). Quanto ao segundo item, os produtores estabeleceram um sistema de produção baseado em ciclos temáticos. Filmes vinculados a gêneros diversos eram produzidos a baixo custo, em grande número, e tão logo algum deles se destacasse nas bilheterias, tinha a trama e os recursos estilísticos copiados imediatamente por todos os produtores. Na maioria das vezes, tratava-se simplesmente de investir em variações do mesmo filme, através de uma fórmula padronizada, que consistia num esquema rígido de recursos estilísticos e narrativos. 33 Esse sistema de investimento em filmes de gênero era cíclico. Cada ciclo durava até que a fórmula narrativa começasse a dar sinais de desgaste (ou seja, as bilheterias desses filmes começassem a declinar). Quando isso acontecia, os produtores iniciavam uma nova rodada de procura por outro gênero que atendesse às expectativas do público. Aos poucos, foi estabelecido um sistema de produção com as seguintes características: A necessidade de atrair dinheiro de co-produções estrangeiras, se possível; o papel-chave desempenhado por produtores e audiências espanhóis (assim como o trabalho barato de técnicos espanhóis em locações fora dos estúdios); os cronogramas apertados de filmagem e a necessidade constante de dublagem do som (com algumas produções inclusive sendo dubladas simultaneamente em diversas versões estrangeiras); o uso nos créditos de pseudônimos norte-americanos pelos membros do elenco (...); a flexibilidade sobre roteiros reescritos durante as filmagens. (FRAYLING, 1981, p. 70). Todas essas características são essenciais para compreender o florescimento e a consolidação do spaghetti western na década de 1960. Note-se que várias práticas estilísticas e narrativas adotados pelos diretores do futuro ciclo foram fruto, em boa medida, das condições de produção oferecidas pelo sistema italiano. Por exemplo, o desenho sonoro dos filmes, com poucos diálogos (sempre dublados na pós-produção), músicas de estrutura pop e uso abundante de sons naturais amplificados. Esse sistema dispensava o aluguel de equipamento de captação de áudio em locação, enquanto a menor quantidade de diálogos reduzia o tempo de aluguel de estúdios de som. A partir do início dos anos 1950, a saúde financeira do cinema italiano passou a depender do sistema de ciclos de filmes de gênero. Em 1952, mais de 30% dos 130 longasmetragens feitos em Cinecittà pertenciam ao gênero do film fumetto (melodramas românticos), tendo decaído em 1954 e sendo sucedido por um tipo de comédia ligeira de costumes com características farsescas (FRAYLING, 1981, p. 70). Cada um desses ciclos tinha vida útil de aproximadamente cinco anos. O próximo gênero da lista foi o épico estilo sandália-e-espada. A produção dos pepla (o termo, plural de peplum, designa os saiotes usados pelos atores) está diretamente conectada ao uso da infra-estrutura de Cinecittà por grandes produções norte-americanas, que filmavam lá, entre as décadas de 1950 e 1960, épicos cujas tramas se passavam na Roma da Antiguidade. Essas equipes deixavam nos galpões de Cinecittà cenários e figurinos que eram reaproveitados pelos produtores italianos, como forma de reduzir ainda mais os custos. Foi dentro deste ciclo de cinema popular que Sergio Leone floresceu como cineasta. A onda de épicos em Hollywood começou em 1951, com o êxito de Quo Vadis? (Mervyn LeRoy, 1951). Circunstâncias tecnológicas, aliás, foram responsáveis por 34 impulsionar essa aposta de Hollywood em espetáculos extravagantes: com o advento da televisão colorida e a competição pela audiência que esta ensejava, os produtores norteamericanos se viram forçados a investir em tecnologias capazes de dotar os filmes de um visual grandioso, que não pudesse ser reproduzido na tela dos aparelhos domésticos de TV. O sucesso de Quo Vadis? incentivou os estúdios americanos a apostar no pepla. Para cortar custos, já que essas produções demandavam a construção de grandes cenários e dezenas de figurinos, mais a contratação de muitos figurantes e técnicos especializados, os produtores dos EUA alugavam sets em Cinecittà e contratavam mão-de-obra italiana. Na Itália, tanto a infra-estrutura quanto a mão-de-obra eram mais baratas do que nos Estados Unidos. Dessa forma, em meados da década de 1950, Cinecittà recebeu muitas equipes americanas. Foram filmados em Roma grandes épicos, como O Manto Sagrado (The Robe, Henry Koster, 1953), Helena de Tróia (Helen of Troy, Robert Wise, 1956), Ben-Hur (William Wyler, 1959) e Sodoma e Gomorra (Sodom and Gomorrah, Robert Aldrich, 1962). A já citada legislação que obrigava Hollywood a investir em território italiano parte dos lucros da bilheteria desses filmes alimentou o ciclo popular italiano, pois a parcela do resultado financeiro reinvestida em Cinecittà levava os produtores norte-americanos a filmar mais vezes em Roma, ou mesmo a financiar produções menores realizadas por equipes italianas. Além de ser o ciclo popular imediatamente anterior ao spaghetti western, o peplum também é o gênero que guarda mais semelhanças de estilo e narrativa com o spaghetti western. Isso aconteceu porque muitos diretores que consolidariam carreiras dirigindo spaghetti westerns começaram a dirigir filmes durante os pepla. É o caso de Sergio Corbucci (três filmes), Domenico Paolella (sete) e Mario Bava (quatro). Também foi o caso de Sergio Leone. Ele trabalhava com cinema desde os 16 anos, quando exerceu os postos de figurante e quinto assistente de direção em Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, Vittorio De Sica, 1946). Nos 13 anos que se seguiram até Os Últimos Dias de Pompéia (Gli Ultimi Giorni di Pompei, Mario Bonnard, 1959), que dirigiu, substituindo o titular adoentado (embora não tivesse recebido os créditos por esse trabalho), Leone executou uma variedade de serviços ligados à produção cinematográfica, sobretudo como roteirista, assistente de produção e diretor assistente. Ao todo, nesse período, trabalhou em 35 longas-metragens (FRAYLING, 2005, p. 16). Leone teve a chance de fazer assistência de direção para três grandes produções: Quo Vadis?, Helena de Tróia e Ben-Hur. Nesse último, dirigiu uma equipe de segunda unidade. Na tradição dos grandes mestres do Renascimento, ele aprendeu seu ofício com artistas mais experientes. Os dois tipos de experiência, com pequenas produções neo-realistas de baixo 35 orçamento e grande épicos hollywoodianos, eram muito distintas entre si, e deixaram marcas estilísticas no seu futuro trabalho como diretor: Leone dizia que reteve desse longo aprendizado a obsessão com a aparência documental de um filme neo-realista italiano (detalhe que dava mais credibilidade às histórias), a fascinação com a logística necessária às grandes seqüências de ação, um repertório de técnicas e a determinação de evitar o desperdício financeiro que via ocorrer nas superproduções hollywoodianas. A eficiência orçamentária das produções italianas menores era fortemente admirada por ele. (FRAYLING, 2005, p. 16). Algumas características de estilo e narrativa adquiridas nessa fase de aprendizagem derivaram dos limites impostos pelo modo de produção de Cinecittà. O desenho de produção (cenários e figurinos realistas, a pele queimada de sol dos atores), o tratamento hiper-real do som (poucos diálogos, ruídos naturais amplificados) e a representação gráfica da violência estão entre elas. Todas são recursos que revisavam esquemas dominantes e seriam, depois, associados à continuidade identificada. Na seqüência da carreira, Leone ainda dirigiria trechos não-creditados de outro longametragem, Gastone (Mario Bonnard, 1959), antes de sentar oficialmente na cadeira de diretor para o primeiro trabalho: O Colosso de Rhodes (Il Colosso di Rodi, Sergio Leone, 1961). Um autêntico peplum, realizado por obrigação contratual e sem liberdade estilística. Do ponto de vista do estilo, de fato não se encontra nesse filme as ferramentas que se tornariam recorrentes nos westerns de Leone. O filme se parece com qualquer outro pepla: cores saturadas (seguindo a moda da época); cenários limpos, que pareciam ter sido construídos no dia anterior, sem preocupação com acuidade histórica; predominância de tomadas longas encenadas em longos planos gerais; música orquestrada. Não há um único close-up extremo – o recurso estilístico mais evidente da obra de Leone – no filme. O Colosso de Rhodes não foi concebido por Leone, mas sim dirigido por ele, o que é algo bem diferente. Na ocasião, o gênero sandália-e-espada já começava a curva descendente rumo à extinção, como todo ciclo popular italiano. Após um período comercialmente vistoso, entre 1958 e 1961, os pepla estavam chegando ao ponto de saturação da audiência. Quando o fracasso de Sodoma e Gomorra (1962) causou a falência da produtora Titanus, era o prenúncio do fim, determinado nos anos seguintes por mais dois fracassos de proporções monumentais: Cleópatra (Cleopatra, Joseph L. Mankiewicz, 1963) e A Queda do Império Romano (The Fall of the Roman Empire, Anthony Mann, 1964), este último tendo decretado a falência da produtora do empresário russo Samuel Bronston, radicado em Hollywood. 36 O fim das grandes produções internacionais determinou, também, o encerramento do ciclo de pepla, inclusive porque as produções realizadas na Itália estavam deixando de atrair o público aos cinemas. Como os produtores tinham que criar um novo ciclo popular para manter o modo de produção de Cinecittà funcionando, iniciou-se um período de experiências, em busca de um filme que fizesse sucesso num nível capaz de impulsionar os produtores a copiálo. Este filme foi Por um Punhado de Dólares (Per um Pugno di Dollari, Sergio Leone, 1964). Por que o western? Na mesma época, nos Estados Unidos, o gênero passava por um fenômeno distinto, mas que acabaria por se mostrar fundamental para o surgimento do ciclo popular italiano: a migração para as séries de TV. Embora o cinema realizado nos Estados Unidos tivesse sobrevivido à já citada ameaça representada pela televisão nos anos 1950, os produtores de Hollywood tiveram que fazer ajustes no modo de produção dos grandes estúdios. Um dos nichos de produção que mais sofreram foi justamente o western. Durante os anos de ouro de Hollywood (1930-1950), os grandes estúdios tinham suas próprias cadeias de exibição, e costumavam exibir nelas programas duplos, com dois longasmetragens exibidos sucessivamente pelo preço de um. O espectador entrava no cinema, assistia a um filme B (produzido com menos recursos), deixava a sala para um lanche, e voltava para assistir então à atração principal. Três fatores contribuíram para extinguir esse sistema. O primeiro foi o aumento dos custos de produção após a guerra, quando um filme passou a custar até cinco vezes mais (MANTOVI, 2003, p. 47). O segundo foi a aprovação de uma lei antitruste pela Suprema Corte, em 1949, numa sentença que obrigou todos os estúdios a venderem suas cadeias de exibição. Enfrentando dificuldades financeiras em decorrência dessa decisão, os estúdios extinguiram os filmes B, que migraram para a televisão sob a forma de seriados semanais. A televisão foi o terceiro fator. Parte dos atores que estrelavam os filmes B, como William Boyd e Gene Autry, perderam os empregos no cinema. Então, fundaram produtoras independentes e passaram a produzir séries de TV, em que os episódios (30 minutos por semana) consistiam de versões mais curtas dos antigos filmes B. Séries como The Gene Autry Show, Range Rider (no Brasil, Tim Relâmpago) e as posteriores Rawhide (que revelaria Clint Eastwood) e Gunsmoke logo estavam entre as séries de maior audiência da televisão. O primeiro seriado de western apareceu em 1949. Os números crescentes comprovam o sucesso: no ano seguinte, eram três series; em 1951, oito. Esse crescimento chegou ao ápice em 1959, quando 48 séries semanais de western estavam em exibição nas três redes de televisão aberta dos Estados Unidos (BUSCOMBE, 1988, p. 428). Em 1970, após uma década 37 em que as estatísticas de produção e consumo de westerns declinaram consistentemente (ver Tabela A dos Anexos), ainda havia onze séries de western em exibição na TV dos EUA. Uma conseqüência inesperada dessas alterações no sistema de produção, distribuição e exibição de filmes foi o progressivo desinteresse do público pelo western na tela grande. Como os faroestes B eram exibidos na televisão, o público começou a deixar de ir ver as produções do gênero na tela grande. Esse desinteresse pode ser comprovado pelas estatísticas de produção do gênero no período. Em 1950, 150 filmes do gênero western foram lançados nos Estados Unidos (34% da produção total de Hollywood); em 1958, esse número caiu para 54 (22% d a produção dos estúdios); em 1963, foram filmados 11 faroestes nos EUA. Apenas 9% de toda a produção de Hollywood consistiam de westerns (BUSCOMBE, 1988, p. 427). No entanto, fora dos Estados Unidos a demanda pelo gênero continuava forte. Um exemplo disto envolveu o filme Sete Homens e um Destino (The Magnificent Seven, John Sturges, 1960), que faturou US$ 3 milhões nas bilheterias americanas, tendo sido considerado fracasso no país de origem 10. Em vários países da Europa, no entanto, foi o maior sucesso de bilheteria de 1961: “Para preencher uma lacuna em seus mercados internos, vários países europeus decidiram começar a fazer seus próprios westerns” (HUGHES, 2004, p. xii). Já que os americanos não produziam mais filmes do gênero, os europeus decidiram fazê-lo. Havia uma demanda na Europa por esse tipo de filme, e essa demanda tinha que ser preenchida. O raciocínio explica porque os produtores de Cinecittà resolveram apostar no western como um dos gêneros com potencial para substituir os mini-épicos sandália-e-espada. Além disso, eles tinham condições de infra-estrutura bastante favoráveis no continente; o bastante para criar uma espécie de linha de montagem cinematográfica capaz de produzir de dois a três filmes por semana, número considerado ideal para satisfazer o apetite das platéias européias por entretenimento cinematográfico popular. Em 1959, o deserto de Almería, a nordeste de Madri (Espanha), havia servido de cenário para um western britânico. Para realizar O Xerife do Queixo Quebrado (The Sheriff of Fractured Jaw, Raoul Walsh, 1959), os produtores haviam construído uma cidade cenográfica, chamada Hojo de Manzanares (figuras 1.1 e 1.2). O set passou a ser aproveitado com regularidade nos spaghetti westerns. Hojo de Manzanares aparece em todos os filmes de Sergio Leone, sempre com a “maquiagem” retocada pelo diretor de arte Carlo Simi, tendo sido a principal locação de Por um Punhado de Dólares (1964). 10 Estatística pesquisada no IMDb (www.imdb.com). 38 Figura 1.1: A cidade cenográfica de Hojo de Manzanares, construída em 1959 a nordeste de Madri, foi o set principal de Por um Punhado de Dólares. Figura 1.2: Casebres de estuque branco de Hojo de Manzanares se transformam no vilarejo mexicano de Agua Caliente, em Por uns Dólares a Mais. Por um Punhado de Dólares não foi o primeiro western italiano. Em 1964, Cinecittà produziu 27 longas-metragens do gênero. Por um Punhado de Dólares foi o 25º. Mas o sucesso alcançado pelo filme, superior à resposta de público de qualquer um dos faroestes anteriores, convenceu os produtores de que o western reunia todas as condições para se tornar o próximo ciclo de cinema popular capaz de sustentar a produção popular de Cinecittà. Dois pesquisadores mapearam o spaghetti western em estatísticas. Thomas Weisser (1992) contabilizou 555 filmes realizados entre 1960 e 1980; Bert Fridlund (2006) contou 546 longas-metragens no mesmo período. Fridlund atribui as pequenas diferenças a dois fatores, um subjetivo (a decisão de incluir ou não determinados filmes na lista, como os títulos espanhóis realizados entre 1959 e 1962) e outro objetivo (variações na metodologia usada para fixar o ano de produção do longa): As discrepâncias entre as listas dependem da inclusão de determinados filmes, e em alguns casos de opiniões diferentes quanto ao ano da produção. Esta cronologia situa o apogeu do spaghetti western no período 1964-1973 (...). Entre 1966 e 1968, o gênero teve uma forte posição comercial, numa época em que mais de 20% de todos os filmes italianos eram westerns. (FRIDLUND, 2006, p. 7). Embora divergentes, os números das listas são bem próximos, o que nos permite fixar o número de spaghetti westerns produzidos entre 1962 e 1978 em torno de 550. Curiosamente, os números do Governo da Itália são bem diferentes, somando 418 filmes em 20 anos (ver Tabela B dos Anexos). A divergência significativa é explicável: a Itália inclui em sua lista só produções com financiamento majoritário de empresas do país. Esse critério exclui os filmes realizados com recursos oriundos de outros países. Sob esse critério, apenas o primeiro western de Sergio Leone seria considerado italiano. O que há de comum em todos esses levantamentos estatísticos – e o elemento que os articula com esta tese – é o papel fundamental exercido pelos filmes de Leone no surgimento, na consolidação e no desenvolvimento do ciclo de spaghetti westerns. O papel dele como 39 criador de uma nova abordagem narrativa e estilística para o gênero – uma revisão crítica dos esquemas dominantes de representação do western que, como veremos, apontava em direção à continuidade intensificada – é o elo que une todas as pesquisas realizadas sobre o fenômeno. Levando isso em consideração, torna-se possível sintetizar a trajetória histórica da produção de spaghetti westerns em Cinecittà tendo como eixo o trabalho de Leone. Os filmes dirigidos por ele eram pontos de referência para os trabalhos dos demais diretores, tanto no fator estilo quanto no aspecto narrativo; o uso intenso de close-ups extremos e flashbacks, por exemplo, se tornaram artifícios utilizados por virtualmente todos os cineastas do spaghetti western, graças ao raio de influência exercida por Leone. O primeiro western de Leone foi viabilizado por três produtoras – uma italiana (Jolly Film), uma espanhola (Ocean Film) e uma alemã (Constantin Film) – com orçamento de US$ 200 mil (HUGHES, 2003, p. 4). O filme foi planejado como produção secundária, filmada em simultâneo ao longa-metragem A Pistola Não Discute (Le Pistole Non Discutono, Mario Caiano, 1964). As duas produções compartilhavam cenários e equipes técnicas, seguindo uma tradição do modo de produção de Cinecittà: uma equipe trabalhando em dois filmes ao mesmo tempo significava dois longas-metragens pelo preço de um. O modo de produção, aliás, era muito rígido: Cronogramas de filmagem (...) raramente ultrapassavam cinco ou seis semanas; orçamentos quase sempre estavam em patamares inferiores a US$ 200 mil; cidades cenográficas eram reutilizadas o tempo todo; os diretores só tinham permissão para filmar dois ou três takes de cada tomada, para economizar película fotográfica; os efeitos sonoros e diálogos eram póssincronizados (mesmo nas versões italianas); havia até mesmo planos gerais que reapareciam em filmes diferentes. (FRAYLING, 1981, p. 68). Graças às soluções narrativas e de estilo propostos ainda durante o período de préprodução, os produtores de Por um Punhado de Dólares consideraram o filme promissor. Até então, os faroestes europeus tentavam replicar os esquemas dominantes usados em Hollywood, enquanto Leone propunha uma releitura crítica do gênero, pontuada por novos recursos estilísticos e pela introdução de características típicas da cultura ibérico-mediterrânea (iconografia religiosa, humor grotesco, tratamento visual e sonoro com influências da ópera e do teatro de bonecos da Sicília, etc.) Alex Cox (2009, p. 27) credita o sucesso alcançado a esse processo de revisão dos esquemas do western americano. Cox afirma que, ao invés de se contentar em criar uma variação das histórias contadas por outros diretores do gênero, aplicando as soluções 40 rotineiras de estilo para os problemas de representação, Leone tratou o filme como projeto autoral, selecionando escolhas estilísticas incomuns. Para começar, Leone não se contentou em trabalhar com a equipe selecionada por Mario Caiano. Ele escolheu profissionais e lutou para convencer seus produtores a contratálos também para o filme de Caiano. Foi responsável, por exemplo, pela aquisição do desenhista de produção Carlo Simi, que acumulou direção de arte e figurinos em Por um Punhado de Dólares e A Pistola Não Discute (COX, 2009, p. 29). Nesse ponto, Leone propunha uma solução de estilo diferente para um problema de representação rotineiro: o cenário, compartilhado por todos os spaghetti westerns. A abordagem de Leone era suja, grotesca. Nada dos cenários limpos e coloridos que marcavam o visual dos pepla. O set principal utilizado pelas duas produções – a cidade cenográfica de Hojo de Manzanares – foi redecorado, para o filme de Leone, como um vilarejo-fantasma decadente e semi-abandonado. Simi elaborou um conceito para o set. Geograficamente, a cidade tem dois círculos concêntricos. No mais externo, onde moram os trabalhadores, há prédios baixos feitos de tijolo, barro e estuque caiado de branco. O círculo interno, onde fica a rua principal, tem construções maiores, de madeira. Todos os prédios são velhos e úmidos. Há uma lógica arquitetônica, social e econômica por trás dessa disposição geográfica. Essa lógica não é citada explicitamente no filme, mas pode ser percebida pelos espectadores: os trabalhadores moram em casas mais humildes do que os patrões, e a arquitetura distinta de cada bairro da cidade sinalizava claramente a origem da classe social que o habita. No entanto, ambas as áreas da cidade parecem semi-abandonadas. É uma cidade à beira da falência. Além do visual realista, incomum para filmes dos anos 1960, a presença desse conceito arquitetônico subliminar denota o uso de um recurso narrativo surgido nos anos 1960, que ganhou força após os anos 1980 e se tornou fundamental para a continuidade intensificada. Bordwell (2006, p. 58) chama esse recurso de worldmaking: Mais e mais filmes têm se esforçado para oferecer um cenário mais rico, complexo e detalhado, onde a ação dramática pode ser mais bem desenvolvida. Na era dos estúdios [1930-1960], desenhistas de cenários e figurinistas se preocupavam em criar um ambiente razoavelmente crível, mas no período que estamos considerando [pós-anos 1960] esses esforços foram ampliados até um novo patamar. (BORDWELL, 2006, p. 58). O worldmaking consiste na preocupação de localizar os personagens da trama dentro de um universo multidimensional, repleto de informações e detalhes, de modo que o 41 espectador pressinta o senso de realidade que dele emana. Essa prática – o trabalho cada vez mais detalhista dos desenhistas de produção, diretores de arte, figurinistas e maquiadores – tem o mesmo objetivo de outras ferramentas da continuidade intensificada: oferecer ao espectador uma experiência fílmica mais intensa. Bordwell cita, como filme pioneiro desta prática, 2001 – Uma Odisséia no Espaço (2001 – A Casse Odisseu, Stanley Kubrick, 1968). Ele diz que a tendência se alastrou nos anos 1970 e ganhou fôlego após o sucesso de Guerra nas Estrelas – Uma Nova Esperança (Star Wars, George Lucas, 1977), cujo enredo multidetalhado inclui dezenas de personagens, planetas, eventos e raças citados pelos protagonistas, deixando antever todo um universo de informações que permanece numa camada subjacente ao enredo, e que cada fã ou espectador pode explorar em sua imaginação. Bordwell não menciona o spaghetti western ou Leone. Outros marcos do worldmaking incluem filmes como O Caçador de Andróides (Blade Runner, Ridley Scott, 1982) e Titanic (James Cameron, 1997), ambos realizados após pesquisas iconográficas detalhadas; e nas trilogias Matrix (Larry e Andy Wachowski, 19992003) e O Senhor dos Anéis (The Lord of the Rings, Peter Jackson, 2001-2003), em que a grande quantidade de coadjuvantes e tramas paralelas foram explorados em narrativas multimídias, inclusive desenhos animados, jogos de videogame e revistas em quadrinhos. O conceito criado por Simi encaixa perfeitamente na noção de worldmaking. Além disso, a prática da pesquisa iconográfica preocupada com a acuidade histórica e com a obsessão por detalhes realistas seria intensificada nos filmes seguintes de Leone. O trabalho da direção de arte inclui uma paleta de cores incomum. Ao invés do colorido saturado, marca registrada dos westerns norte-americanos dos anos 1950, Leone privilegiou tons de terra e cores desbotadas. Marrom, vermelho-escuro, branco encardido e cinza-chumbo predominam tanto nas locações internas quanto nas externas (figuras 1.3 e 1.4). Saíram de cena as pradarias verdes, os riachos de água límpida, os paredões de rocha e o barro vermelho/dourado do Monument Valley; entraram os cactos, as escarpas barrentas e o empoeirado deserto do nordeste espanhol (figura 1.5). O cenário de Por um Punhado de Dólares era a fronteira mexicana, com seu deserto de terra seca, areia e pedras, habitado mais por moscas e coiotes do que por seres humanos. Num ambiente assim, caubóis e pistoleiros não podiam circular em roupas novas e coloridas; Simi apostou num figurino envelhecido, com roupas rasgadas, sujas e desbotadas. Os chapéus despejam nuvens de poeira no ar quando são sacudidos. Os homens têm queimaduras de sol, vivem suados e com a barba por fazer (figura 1.6). 42 Figura 1.3: Os interiores de Por um Punhado de Dólares consistem de aposentos de madeira velha, muitas vezes com portas tortas, piso solto e janelas quebradas. Figura 1.4: A paleta de cores dessaturada, na contramão dos filmes de Hollywood, privilegia amarelo, branco e cinza, contribuindo para a verossimilhança do ambiente. Figura 1.5: Ambiente do deserto espanhol, com escarpas secas, vegetação rasteira e pedras, é semelhante ao território da fronteira México-EUA. Figura 1.6: Close-ups extremos funcionam como moldura em composições recessivas; pele queimada contribui para a atmosfera de verossimilhança. Figura 1.7: A predileção de Leone pelos close-ups extremos de rostos humanos, com o enquadramento cortando a ponta do queixo e o topo da testa. Figura 1.8: Composição recessiva: figuras colocadas a diferentes distâncias da câmera criam linhas diagonais que dão perspectiva e profundidade à imagem. Simi viria a ser, junto com o compositor Ennio Morricone, parte fundamental da equipe criativa que acompanhou Leone nos filmes seguintes, ajudando-o a dar forma a suas idéias, transformando conceitos em recursos de estilo. Ele fez a direção de arte e os figurinos de todos os longas-metragens subseqüentes (exceção feita a Quando Explode a Vingança, cuja direção Leone assumiu com as filmagens em andamento). A fotografia de Massimo Dallamano segue a mesma abordagem realista. As cenas externas, filmadas no deserto, enfatizam o sol inclemente que transforma a vida na região em um inferno, com os excessos de luz neutralizando os contrastes e contribuindo para dar às cores uma textura quente e gasta. As cenas internas, registradas num museu sobre a vida rural localizado em Madri, demarcam grande distância em relação aos westerns tradicionais: são escuras, com pouca luz de enchimento, adotando um estilo de iluminação que valoriza os contrastes do tipo chiaroescuro e reforça a dramaticidade das cenas (figuras 1.3 e 1.4). Nas composições visuais, Leone demonstrava algumas características recorrentes de estilo: o gosto por close-ups extremos, com ênfase para o rosto humano (figuras 1.6 e 1.7), e 43 o uso freqüente de tomadas em grande profundidade de campo que realçavam a dramaticidade de composições pictóricas recessivas (WÖLFFLIN, 2000, p. 101) – técnica em que atores e objetos estão espalhados a diferentes distâncias da câmera, criando linhas diagonais – dispondo uma figura em primeiríssimo plano, bem próxima à câmera, funcionando como uma moldura. Muitas vezes, essa figura era um rosto focalizado em close-up extremo, o que unia as duas técnicas prediletas de Leone em uma única imagem. Esta variação da composição recessiva era uma revisão intensificada do recurso popularizado por Orson Welles em Cidadão Kane (Citizen Kane, Orson Welles, 1941), que consistia em colocar um elemento em primeiro plano, enquanto a ação principal era encenada ao fundo. Nesse último ponto, é importante ressaltar que Leone retomava uma característica estilística de um esquema de encenação característico do cinema dos anos 1940, mas que havia caído em desuso na década seguinte, em Hollywood, devido a questões técnicas. O uso desses dois enquadramentos, aliada à atuação deliberadamente lenta dos atores (reforçado por um desenho de som repleto de ruídos naturais amplificados), emprestava ao filme uma atmosfera que Leone reconhecia como influência da cultura italiana, em particular da ópera – de onde vinha a dramaticidade ostensiva – e do teatro de bonecos da Sicília: Os bonequeiros da Sicília pegam uma fábula e inserem referências a elementos de cada localidade visitada por eles. (...) É exatamente a mesma coisa que eu faço nos meus filmes: colocar a Itália dentro da paisagem do western. (LEONE, 2005, p. 76). Um elemento importante para o desenvolvimento das ferramentas estilísticas de Leone deve ser destacado nesta passagem: a infiltração consciente de elementos da cultura ibéricomediterrânea nos filmes. Ao reconhecer a influência da ópera e do teatro de bonecos em seu trabalho, Leone admite realizar uma operação consciente de desconstrução e releitura crítica dos esquemas do gênero. Outro recurso de estilo original foi o uso das lentes zoom (ou seja, com distância focal variável). Leone foi um dos primeiros diretores europeus a adotar o zoom, que vinha sendo utilizado pela televisão americana desde o começo dos anos 1950, mas só apareceu no cinema nos filmes de Akira Kurosawa (BORDWELL, 1997, p. 245), no começo da década de 1960, tendo demorado alguns anos para chegar a Hollywood. Leone usava esse recurso de forma relativamente discreta. Outros diretores de spaghetti westerns, intensificando ainda mais as ferramentas de estilo introduzidas por Leone, exacerbaram o uso desse recurso de maneira bastante radical. 44 Figura 1.9: Em Django (1966), o diretor Sergio Corbucci apresenta o personagem principal mostrando-o como um pequeno ponto na paisagem e, com o zoom, ... Figura 1.10: ... aproxima a imagem até transformar o que era originalmente um plano geral aberto num plano geral fechado, sem mover a câmera e sem cortar. Em vários filmes, o cineasta iniciava uma tomada com uma panorâmica e a encerrava com um plano geral, destacando um elemento da paisagem, ou vice-versa (figuras 1.9 e 1.10). Tudo isso sem a necessidade de cortar. Este recurso estilístico passou a ser extremamente usado nos spaghetti westerns; depois, abriu caminho dentro do cinema narrativo norteamericano da geração New Hollywood, nos anos 1970. Sam Peckinpah, por exemplo, adotou rapidamente essa técnica. Contudo, ao contrário do que ocorreu com a utilização de close-ups extremos de rostos, o uso extensivo zoom só permaneceria popular até o final da década de 1970 (BORDWELL, 1997, p. 246). Outra novidade introduzida pelo western de Leone consistiu no perfil violento, amoral e individualista do herói. O protagonista de Por um Punhado de Dólares, Joe (Clint Eastwood), consiste na adaptação do arquétipo do herói à sociedade hedonista e urbanizada dos anos 1960, onde o conceito de moral está em cheque. O perfil consiste em mais uma revisão do esquema narrativo dominante em direção à poética da continuidade intensificada. Tanto no western americano quanto nos primeiros longas-metragens do ciclo, em 1964, o protagonista invariavelmente seguia o mesmo código de conduta – recusa ao uso da violência senão em último caso, jamais atirar pelas costas, deixar o rival sacar primeiro, nunca lutar em benefício próprio, etc. – que estava firmemente estabelecido entre as convenções mais características do gênero desde seu surgimento (GOMES DE MATTOS, 2004, p. 15). Nos trabalhos de Leone, contudo, o herói tem perfil diferente. Ele é, na verdade, um anti-herói. Vive à margem da sociedade e não tem qualquer interesse em se integrar a ela; está sempre à procura de oportunidades para tirar proveito próprio; não hesita em usar a violência para se impor, mesmo que isso signifique recorrer a truques amorais, como atirar em inimigos desarmados (algo que não acontecia em westerns americanos). Convém registrar que o perfil do herói de Leone – essencialmente um personagem repetido em todos os westerns que ele dirigiu, um arquétipo oriundo da tradição italiana da 45 commedia dell’arte – foi uma revisão intensificada do que Kurosawa havia feito em Yojimbo (Akira Kurosawa, 1961), filme que inspirou o projeto de Leone a tal ponto que Kurosawa o processou por plágio, ganhando a causa e ficando com os direitos do filme na Ásia, além de parte dos lucros obtidos no resto do mundo (COX, 2009, p. 45). Mas Leone enumerava outras influências além do filme de Kurosawa, que ele viu em Roma no outono de 1963: Homero, Shakespeare, Dashiell Hammett, a Bíblia (o personagem de Clint Eastwood seria uma referência ao Anjo Gabriel, constituindo-se num dos muitos simbolismos religiosos presentes dentro do enredo), e a peça Arlecchino – Servitore di Due Padroni, (em português, Arlequim – Um Servo com Dois Patrões), de Carlo Goldoni (1745), autor que não por coincidência trabalhou dentro da tradição da comedia dell’arte. A introdução desse anti-herói era uma inovação criativa. O ciclo popular havia encontrado o elemento central de seu esquema narrativo, replicado por virtualmente todos os diretores: o anti-herói taciturno, errante, sempre pronto a levar vantagem em tudo, que não se apega afetivamente com nada e nem ninguém. O perfil deste herói trouxe a reboque outro recurso estilístico da continuidade intensificada: a representação gráfica da violência. Nos filmes de Leone, muitos personagens – mesmo o herói – são baleados, espancados, socados, torturados, assassinados a sangue frio. E tudo isso é mostrado na tela, muitas vezes com a câmera colocada bem próxima da ação. A questão da violência nos filmes inscritos no gênero western sempre foi de importância fundamental. Edward Buscombe (1988) afirma que a violência não tem significado meramente formal, mas representa aquilo que o folclore norte-americano associa à experiência da vida na fronteira: A violência é central para o western (...). Quando nos é dito que certo filme é um western, esperamos que ele seja visualmente ambientado de forma a inscrevê-lo num recorte específico de espaço e tempo; qualquer que seja o enredo, a violência da natureza e dos homens terá que ser parte essencial da paisagem; e provavelmente seu clímax emocional e moral acontecerá durante um ato singular de violência. (BUSCOMBE, 1988, p. 232). Em 1964, representar a violência de maneira realista era literalmente proibido em Hollywood pelo Código Hays 11. Diretores não podiam mostrar um corpo sendo perfurado por bala, ou sangue jorrando de um ferimento, pois isso faria qualquer filme ser cortado pelos produtores. O sucesso de bilheteria alcançado nos Estados Unidos por Por um Punhado de 11 Documento assinado por todos os grandes estúdios de Hollywood, e por eles obedecido, de 1930 a 1968; o Código Hays continha uma série de restrições relacionadas à exibição de cenas contendo elementos relacionados a sexo e violência em filmes (BORDWELL; THOMPSON, 2009, p. 198). 46 Dólares a partir de seu lançamento naquele país, em janeiro de 1967, aliado à irreverência típica da contracultura da épica, incentivou jovens diretores norte-americanos a seguir o mesmo caminho e desafiar o sistema de autocensura. No ano seguinte, em 1968, o Código Hays foi oficialmente abolido, pois a nova geração de diretores não o respeitava mais. De modo indireto, podemos dizer que os filmes de Leone contribuíram para a queda da autocensura dos estúdios dentro de Hollywood. Cenas como o final de Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas (Bonnie & Clyde, Arthur Penn, 1967), com um tiroteio em câmera lenta mostrando os bandidos atingidos por dezenas de tiros de metralhadora; a carnificina do clímax de Meu Ódio Será Sua Herança (The Wild Bunch, Sam Peckinpah, 1969), com metralhadoras dizimando todo um exército; e o massacre em Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976) carregam um débito em relação ao cinema de Sergio Leone. Os diretores norte-americanos sabiam disso. Sam Peckinpah, o cineasta mais associado à representação gráfica da violência nos anos 1960, admitiu publicamente que não teria conseguido filmar da maneira que desejava sem os filmes de Leone (COUSINS, 2004, p. 289). Em parte por causa da natureza sensorial do som (SERGI, 2004), compreendido pela maioria dos espectadores como elemento secundário do espetáculo audiovisual (ninguém diz que vai “ouvir” um filme quando entra numa sala de projeção), os recursos estilísticos introduzidos por Leone em seus filmes, desde Por um Punhado de Dólares, na área do sound design, têm passado despercebidos. No entanto, algumas das características mais recorrentes da prática estilística de Leone estão nesse campo. Parte dessas inovações deve-se, na verdade, aos limites impostos pelas condições de produção: os filmes produzidos em Cinecittà, já vimos, não registravam som sincronizado nos sets. Via de regra, as bandas sonoras de todos os spaghetti westerns eram finalizadas com diálogos em italiano, inglês, francês e alemão. Sergio Leone se aproveitou disso, em Por um Punhado de Dólares, para criar um ambiente sonoro que ia além de representar, do ponto de vista auditivo, as ações físicas, mas que reforçava o cenário inóspito e a atmosfera decadente das imagens. Para conseguir esse efeito, Leone apostou em um desenho de som que articulava sons naturais amplificados (elemento estilístico que trazia em si a noção de intensificação) e longos períodos sem diálogos, com pronunciado uso de silêncios. A música dos filmes de Leone também incluiu aspectos originais. Elementos da música concreta estavam entre os recursos de estilo que inspiraram Ennio Morricone a escrever a música de Por um Punhado de Dólares. Este conceito musical, criado em 1948 por Pierre Schaeffer, consiste na utilização de ruídos naturais – portas abrindo, passos, vento, 47 barulhos de animais, etc. – como parte integrante da composição musical. Morricone afirma que já havia utilizado o conceito numa composição criada para um filme norte-americano, mas a música em questão acabou recusada pelo outro diretor: A idéia era deixar o público ouvir, por trás do tema musical, a nostalgia de determinado personagem pela cidade. Escrevi a música incorporando sons urbanos, como se os sons da cidade pudessem ser ouvidos à distância, na memória do personagem. (...) Leone ouviu minha explicação do conceito, gostou e imediatamente pediu que aplicasse aquilo a um dos meus temas, retirando-lhe os vocais. O resultado o satisfez e ele me disse que deixasse como estava. Virou o tema de abertura. (MORRICONE, 2005, p. 92). De fato, o tema de abertura pouco tinha em comum com o estilo neo-romântico, inspirado nos compositores europeus do século XIX (Franz Schubert, Johann Strauss, Gustav Mahler, etc.), que era adotado por todos os compositores de Hollywood. A lógica de Morricone era de que a música ouvida num ambiente rude como o Velho Oeste não deveria ser executada por sofisticadas orquestras, mas por instrumentos rústicos e/ou exóticos. Leone foi específico ao instruir o compositor sobre o tipo de música que desejava: picaresca e ao mesmo tempo dramática, com sabor cômico mas também operística. Ele queria usar impor um estilo de música que não se afastasse totalmente no neo-romantismo, mas que incorporasse influências modernistas e locais. Seguindo esse conceito e inspirado pela musique concrète, Morricone criou um tema principal com uma estrutura de canção pop, intercalando versos e refrão; a melodia principal era solada por um assobio, e a harmonia, construída com guitarra elétrica, violões e um coral masculino. A maior ousadia estava na percussão, que incorporava sons naturais retirados da diegese: tiros, chicotadas, galopes de cavalo, sinos. O tema completo, executado durante os créditos de abertura, influenciou praticamente toda a música composta no ciclo do spaghetti western. Os assobios, a estrutura pop, as guitarras elétricas, os corais masculinos foram copiados pelos demais compositores que trabalhavam para os produtores ítalo-espanhóis. É importante ressaltar que Morricone foi o mais prolífico compositor do ciclo, tendo assinado duas dúzias de trilhas sonoras para spaghetti westerns 12. O resto da música do filme consiste em variações do tema principal. Um 12 É impossível saber exatamente quantos filmes do ciclo Morricone musicou, já que ele utilizava diversos pseudônimos (como Dan Savio e Leo Nichols) quando fazia música para a indústria italiana. O IMDb registra 492 trilhas compostas por Morricone em 40 anos de carreira. 48 fraseado de cinco notas, tocado por flauta (às vezes acompanhado por piano e bateria), é o leitmotiv 13 que anuncia a presença do herói. Para o duelo final, Leone pediu a Morricone um tema semelhante à canção mexicana executada pelos vilões antes do confronto decisivo do clássico Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, Howard Hawks, 1959): um degüello – na tradição mexicana, um apelo para que o adversário se renda antes do ataque final. Esse tipo de melodia tem uma origem histórica real: em 1836, foi executada para solicitar a rendição do inimigo, pelo Exército do México, antes da lendária batalha do Forte Álamo. Este segundo tema também se mostraria influente no tipo de música que acompanharia a maior parte das produções do ciclo de spaghetti westerns, em que o trompete é muitas vezes o instrumento principal – uma convenção estilística totalmente particular deste ciclo, já que a música usada por Hollywood e mesmo por outros ciclos do cinema popular italiano costumava usar muito pouco esse instrumento. É prudente assinalar, ainda, que os arranjos baseados em violões e trompetes eram convenientes, do ponto de vista diegético. A música folclórica da fronteira entre Estados Unidos e México emprega com freqüência esses dois instrumentos, de forma seu uso evoca o princípio do realismo, aplicado na direção de arte e nos figurinos, contribuindo para a construção de um universo mais multidimensional e coerente. O sucesso obtido na Itália foi avassalador. Entre agosto e dezembro, com exibições em só duas cidades (Roma e Florença), Por um Punhado de Dólares já havia se transformado na maior bilheteria de 1964, obtendo um saldo de 430 milhões de liras (COX, 2009, p. 43). Por volta de 1971, o filme havia ultrapassado os três bilhões de liras em faturamento (HUGHES, 2003, p. 14). O sucesso dava aos produtores de Cinecittà um gênero que funcionava como substituto comercialmente viável aos pepla, voltando a atrair multidões para os cinemas. 1.3 Apogeu e queda Em 1964, segundo números do Governo da Itália (BOLAFFI, 2009), foram produzidos 13 westerns com financiamento majoritário de empresas do próprio país. Ou seja, 8,1% de toda a produção cinematográfica italiana (160 títulos) consistiam de westerns. No ano seguinte, esse número subiu para 34 westerns, ou 18,7% do total. O crescimento deve ser creditado ao sucesso de Por um Punhado de Dólares. 13 Conceito de Richard Wagner, criado no século XIX, e que consiste em associar uma melodia característica a um personagem (ou grupo), sentimento ou situação dramática. 49 Nos anos seguintes, com a boa receptividade do público, esse total continuou crescendo. Em 1966, foram feitos 227 longas-metragens na Itália (dos quais, 22,9% westerns); em 1967 ficaram prontos 238 filmes (27,7% westerns); em 1968 foram 240 longas (29,6% westerns). Após um hiato em 1969 – 26 westerns italianos, contra 71 no ano anterior – os números voltariam a crescer no período 1970-1972, com o percentual de spaghetti westerns atingindo entre 15% e 18% da soma total de produções, cujo total variou entre 220 e 272. A partir de 1973, o ciclo entrou definitivamente em período de decadência, com menos produções a cada ano, até terminar definitivamente em 1978, quando apenas dois westerns foram realizados (BOLAFFI, 2009). No momento de boom do ciclo, um número grande de filmes significava uma quantidade igualmente alta de cineastas. Neste ponto, o que houve foi realmente uma migração em massa dos diretores de um gênero para outro. Todos os cineastas de maior destaque do ciclo de spaghetti westerns – Sergio Corbucci, Sergio Sollima, Gianfranco Parolini, Duccio Tessari e Enzo Barboni, além do próprio Leone – haviam feito pepla. Foi nesse contexto histórico que Leone dirigiu seu filme seguinte, gravado durante doze semanas, entre abril e julho de 1965, em Roma (cenas interiores foram registradas nos estúdios Cinecittà) e no deserto de Almería. Em Por uns Dólares a Mais (1965), havia uma dupla operação de fragmentação da estrutura narrativa. Em primeiro lugar, o aumento do número de protagonistas (agora eram dois anti-heróis), com a ação intercalada entre eles através do uso extenso da montagem paralela; em segundo, a quebra da continuidade cronológica através de flashbacks. Desta estrutura surgiram três variações de enredo usadas nos anos seguintes pela maioria dos diretores de spaghetti westerns: (1) o relacionamento conflituoso, mas cheio de respeito mútuo, entre um mentor experiente e seu discípulo; (2) a trama de vingança, em que o herói ganha uma motivação misteriosa que só ele conhece – apresentada à platéia gradualmente em flashbacks – para a obsessiva perseguição ao vilão; (3) um domínio maior da tecnologia por parte do herói, que compartilha com o vilão uma habilidade extraordinária com armas de fogo, mas se destaca pelo maior recurso tecnológico disponível. Mesmo indiretamente, Sergio Leone impunha sua marca nos filmes dos demais diretores italianos. Graças ao orçamento de US$ 600 mil, o mais generoso de um filme do ciclo até então, Carlo Simi pôde construir, pela primeira vez, uma cidade cenográfica. Chamado de Mini Hollywood, o set foi baseado em fotografias do século XIX da cidade de El Paso, no Texas (EUA) – ou seja, worldmaking. Foi erguido em Tabernas, na Espanha, na mesma região de Almería (figura 1.11), mas tinha um visual diferente de Hojo de 50 Figura 1.11: A cidade de El Paso, onde a maior parte da ação de Por uns Dólares a Mais (1965) se passa, foi o primeiro set construído para um spaghetti western. Figura 1.12: Como de praxe, a cidade cenográfica desenhada por Carlo Simi reapareceria em diversas produções, como Joe, o Pistoleiro Implacável (1966). Manzanares. Enquanto esta última (reutilizada nas cenas que se passam em Tucumcari, no começo do filme) era pontuada por prédios decadentes, Mini Hollywood foi planejada para passar a idéia de cidade nova e em expansão: arquitetura de madeira de lei, prédios novos de dois e três andares. Havia interiores decorados. Essa cidade cenográfica seria reutilizada em outras produções, como Joe, o Pistoleiro Implacável (Navajo Joe, Sergio Corbucci, 1966, figura 1.12). Os recursos permitiram a Leone chamar Clint Eastwood de volta, usando de novo o poncho, embora o personagem tivesse outro nome. Por questão de direitos autorais, ele era chamado de Monco – Leone estava processando a Jolly Film, co-produtora do primeiro filme, por causa das acusações de plágio de Yojimbo, e a firma queria impedi-lo judicialmente de usar o mesmo personagem, cujos direitos pertenciam à empresa. O orçamento também permitiu a escalação de Lee Van Cleef, veterano cujo rosto aparecera em papéis menores de clássicos como Matar ou Morrer (High Noon, Fred Zinnemann, 1952) e O Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, John Ford, 1962). Ele interpretava o pistoleiro mais maduro, rival e mentor de Eastwood. Um dos elementos narrativos recorrentes em Leone – o clímax que culmina com um duelo encenado como um balé de close-ups extremos, e sublinhado pelos degüellos de Morricone – aparece no final de Por uns Dólares a Mais. O duelo entre os dois heróis e o vilão é encenado em uma arena circular de pedras. Uma variação deste set circular seria usada, no ano seguinte, para o clímax de Três Homens em Conflito. A preferência por cenários circulares não passou despercebida a Carlo Simi: Leone simplesmente pedia: ‘Carlo, faça uma arena circular usando pedras’. Deixava claro que era uma exigência. (...) Fiz psicanálise, e acho que este tópico estava além de respostas objetivas. Achei melhor nunca perguntar o que este círculo de pedras representava. Deve ter representado algo, pois era um cenário sempre associado com a morte. (SIMI, 2005, p. 126). 51 Talvez a resposta fosse mais simples. Leone comparava os duelos dos westerns com as touradas espanholas. Seguindo esse raciocínio, é possível associar ao estilo de encenação de Leone aos espetáculos espanhóis, e em muitos níveis: a dramaticidade exagerada era obtida através do tratamento dilatado do tempo; acentuada pela abundância de close-ups e pela fragmentação do espaço fílmico; reforçada pelos movimentos lentos dos adversários que se estudam, como a espécie de dança que os toureiros fazem com os touros; e evocada pelo trompete estilo mariachi que toca, invariavelmente, as melodias dos degüellos. Na banda sonora, o filme também introduziu novos elementos de estilo. Morricone elaborou músicas que criavam jogos intrincados entre sons diegéticos e extra-diegéticos (como no duelo final, que será analisado mais adiante). Instrumentos exóticos, populares ou incomuns, como celesta, violão flamenco e castanholas, são incorporados aos arranjos. O uso de efeitos sonoros amplificados, associado a longos períodos de silêncio, está mais acentuado. Uma das cenas mais famosas encapsula vários elementos recorrentes de estilo. A cena mostra um duelo protagonizado por El Indio dentro de uma igreja abandonada (figura 1.13), ocupada pela gangue. O vilão veste branco e o outro duelista, homem honesto, está de negro – revisão crítica de um código do western. O cenário decadente – reboco descascando, paredes empoeiradas – está apinhado de estátuas de santos (figura 1.14), numa inserção da simbologia católica do diretor, enquanto restos de comida e rostos suados (figuras 1.15, 1.16 e 1.18) agregam elementos de ironia e do grotesco. Leone encena o duelo intercalando composições recessivas em profundidade de campo com moldura (figura 1.13, 1.14 e 1.17) e close-ups extremos de rostos (figuras 1.15 e 1.16), enquanto Morricone compõe a música – pastiche irônico de uma composição de Bach – num órgão de igreja (bem apropriado à diegese, portanto), justapondo-a ao som também diegético da música do relógio de bolso do vilão, que demarca o início do duelo e é executada delicadamente em uma celesta. Por uns Dólares a Mais fez ainda mais sucesso na Itália do que o antecessor e se tornou o maior sucesso financeiro da história da indústria italiana, faturando 50% a mais que o recordista anterior, A Doce Vida (La Dolce Vita, Federico Fellini, 1960). Se Por um Punhado de Dólares havia lançado as bases da revisão narrativa e estilística dos esquemas do western americano, levada a cabo pelos demais diretores do ciclo popular italiano, Por uns Dólares a Mais parecia reafirmar que o caminho era mesmo investir na intensificação dos elementos de estilo e narrativa. Os novos recursos introduzidos por Leone foram copiados por quase todos os diretores de spaghetti westerns. Os filmes da safra 1966-1968 adicionaram a figura de um segundo 52 Figura 1.13: Plano geral tem estátua de um santo (simbologia religiosa) emoldurando um duelo em segundo plano: composição recessiva. Figura 1.14: Código do western são subvertidos: o vilão usa branco e o herói, preto; cenário decadente, com paredes sujas; encenação em diagonal e profundidade. Figura 1.15: Leone justapõe close-ups extremos de rostos castigados pelo sol aos tradicionais planos gerais (quase sempre composições recessivas com moldura). Figura 1.16: Morricone intercala a melodia do relógio de bolso do vilão (diegética) com um pastiche de Bach executado em órgão de igreja (extra-diegético). Figura 1.17: Composição recessiva em profundidade de campo, usando o coldre do revólver de um dos duelistas como moldura: imagem recorrente na obra de Leone. Figura 1.18: Um dos membros da gangue (ladeado por estátua velhas de anjos) cospe tabaco: ironia, grotesco, religião, close-ups extremos e verossimilhança. herói e a motivação da vingança. Muitas vezes essas duas variações narrativas vinham juntas. E na maior parte dos filmes a ação dramática seguida dois personagens de forma intercalada, ferramenta narrativa que evoluiria, a partir dos anos 1970, para as narrativas em rede (com múltiplos protagonistas), uma característica central da continuidade intensificada. A partir do ano seguinte, os estúdios norte-americanos começaram a demonstrar interesse em importar os filmes do ciclo. Isso significou uma série de co-produções internacionais e mais dinheiro nas mãos dos produtores de Cinecittà. Mais dinheiro significava mais filmes, e os produtores começaram a oferecer trabalho a um grupo de roteiristas e diretores engajados politicamente, como Franco Solinas, Fernando Morandi e Sergio Sollima. Todos eles tinham ligações com o Partido Comunista da Itália. Nessa época, não havia muitos produtores interessados em bancar filmes políticos ambientados na época atual, cujo potencial de bilheteria era reduzido. Por isso, esses roteiristas e diretores decidiram aceitar as ofertas para fazer spaghetti westerns, e aproveitar 53 essas oportunidades para injetar subtexto político esquerdista nos enredos, quase sempre criticando duramente a política intervencionista dos Estados Unidos na América Latina. Convém lembrar que, neste mesmo período, os EUA apoiavam uma série de golpes militares em países da região, inclusive Brasil, Chile e Argentina. Os títulos realizados por esse grupo seguiam basicamente as mesmas revisões estilísticas de esquemas do western estabelecidos por Sergio Leone (direção de arte, fotografia, música, desenho de som, etc.), aproveitando o fato de os enredos dos filmes do ciclo se passarem na região da fronteira entre Estados Unidos e México para criar uma variante política do spaghetti western. Os spaghetti políticos constituem uma vertente secundária da segunda fase do ciclo de cinema popular italiano, fase esta dominada pelos duplos protagonistas e pelas tramas de vingança. O enredo básico dessa variante do ciclo consistia na injeção de subtexto político à estrutura narrativa de Por uns Dólares a Mais: a relação de amizade entre dois pistoleiros, sendo um mexicano revolucionário e um norte-americano individualista – e os filmes em geral terminavam com este último ganhando uma consciência política ou sofrendo uma punição simbólica por manter-se individualista. Uma Bala para Um General (Quien Sabe?, Damiano Damiani, 1966), Tepepa (Giulio Petroni, 1968) e Os Violentos Vão para o Inferno (Il Mercenario, Sergio Corbucci, 1968) são exemplos. Todos os filmes de maior sucesso do período replicaram táticas estilísticas e narrativas dos filmes de Leone, sobretudo os close-ups extremos. Tempo de Massacre (Tempo di Massacro, Lucio Fulci, 1966) e Django, o Bastardo (Django Il Bastardo, Sergio Garrone, 1969, figura 1.19) são histórias de vingança; assim é também A Morte Anda a Cavalo (Da Uomo a Uomo, Giulio Petroni, 1967, figura 1.20), que adiciona à fórmula o relacionamento entre o jovem herói e um pistoleiro mais maduro, cuja motivação é misteriosa e acaba sendo revelada num flashback; O Dia da Desforra (La Resa dei Conti, Sergio Sollima, 1966, figura 1.21) combina uma dupla de heróis amorais com subtexto político; Sartana (Gianfranco Parolini, 1968) e Sabata (Gianfranco Parolini, 1968, figura 1.22) apresentam heróis que dominam armas tecnologicamente avançadas para atacar os inimigos. Esses dois filmes, cujo diretor deu ênfase a uma encenação de estilo mais acrobático, com saltos de dublês, trocas de socos e menos violência gráfica, dariam partida à terceira fase do spaghetti western. No que se refere aos recursos estilísticos, as revisões esquemáticas de Leone também estão presentes. Tempo de Massacre (figura 1.23), A Morte Anda a Cavalo e Django, o Bastardo investem na representação gráfica da violência; O Dia da Desforra apresenta duelos com tratamento dilatado do tempo e abundância de close-ups extremos; Cemitério Sem 54 Figura 1.19: Django, O Bastardo recicla, em variação característica da trama-padrão do spaghetti western, uma jornada de vingança com toque sobrenatural. Figura 1.20: A Morte Anda a Cavalo combina duas variações narrativas: a trama de vingança e a atuação de dois pistoleiros – um jovem, outro velho – em conjunto. Figura 1.21: O Dia da Desforra mescla o conceito da dupla de heróis de gerações diferentes com o subtexto político dos spaghetti westerns ambientados no México. Figura 1.22: Sabata representa um tipo de herói que domina com perfeição as novas tecnologias, representadas por rifles mais novos e potentes. Figura 1.23: Tempo de Massacre, de Lucio Fulci, investe na representação gráfica da violência, abusando de close-ups extremos de rostos ensanguentados. Figura 1.24: Cemitério Sem Cruzes faz uso de ruídos naturais amplificados, alternados com poucos diálogos e longos silêncios, à maneira do estilo de Sergio Leone. Cruzes (Une Corde, um Colt, Robert Hossein, 1969, figura 1.24) reduz diálogos, usa ruídos naturais amplificados e muitos silêncios; Sartana e Sabata abusam do uso do zoom, apontando em uma nova direção, que é a encenação mais acrobática e paródica das seqüências de ação. Este recurso seria exacerbado a ponto de se transformar na principal característica estilística dos filmes da próxima – e última – fase do ciclo (1970-1978), que é a veia cômica pronunciada, numa espécie de híbrido de circo e western. Hughes (2003) e Fridlund (2006) concordam que o período entre 1964 a 1968 corresponde ao momento mais fértil do ciclo de produções italianas populares. Nesse Intervalo de quatro anos, os produtores de Cinecittà mantinham em média seis longasmetragens sendo filmados simultaneamente. Nenhum dos dois, contudo, atenta para o fato de que esse período também coincide com a fase mais prolífica de Sergio Leone. No decorrer desses cinco anos, Leone fez quatro longas-metragens – mais da metade de todos os filmes 55 que dirigiu. Os dois últimos vieram a ser os filmes do ciclo mais conhecidos internacionalmente: Três Homens em Conflito e Era uma Vez no Oeste, ambos 100% financiados por estúdios americanos (no primeiro caso, a United Artists; no outro, a Paramount). Depois de filmar este último, Leone decidiu parar com westerns e se dedicar ao projeto de sua vida – um filme de gângster, que deveria unir suas memórias de infância com sua paixão pelo cinema norte-americano clássico. Em Três Homens em Conflito, Leone deu seqüência ao processo de intensificação das práticas narrativas e estilísticas. A construção narrativa exacerba a estrutura do filme anterior, com três anti-heróis como protagonistas. Num filme americano, os três seriam vilões, já que ganham a vida roubando. Através de esquetes que documentam encontros e desencontros entre eles, o trio atravessa o território do sudoeste norte-americano, arrasado pela guerra civil (a ação dramática se passa em 1862), em busca de uma fortuna em ouro roubado, enterrada num cemitério militar. Na própria definição do diretor, trata-se de “um novo estilo de western, com personagens picarescos inseridos num cenário épico” (LEONE, 2000, p. 236). De fato, a dinâmica estabelecida entre os personagens de Clint Eastwood e Eli Wallach – o primeiro é o típico herói spaghetti, taciturno e de gestos largos, enquanto o segundo, um homem de nome latino que se move de modo rápido e não pára de falar – exerceu influência na variante cômica do ciclo, que se estabeleceria na década de 1970. Três Homens em Conflito equilibra momentos de tensão, seqüências de violência gráfica que flertam com o melodrama, gags e diálogos de tom humorístico: O épico cínico e engraçado de Leone intercala eventos históricos reais – ocorridos entre o fim de 1861 e o começo de 1862 – com as picarescas aventuras do ‘bom’ Clint Eastwood, do ‘mau’ Lee Van Cleef e do ‘feio’ Eli Wallach, cuja performance barulhenta e carnavalesca domina o filme. Os eventos históricos eram deliberadamente distorcidos para evocar as duas guerras mundiais do século XX. (FRAYLING, 2005, p. 51). No terreno da prática estilística, Leone expandiu recursos que já apareciam nos filmes anteriores. Ennio Morricone escreveu a música da seqüência do cemitério (figura 1.25) antes das filmagens, de modo que Leone pudesse controlar a duração e os movimentos de câmera de cada plano, na filmagem, a partir do som. A composição recessiva de tomadas em profundidade de campo com moldura, freqüentemente associada aos close-ups extremos de rostos que são usados como molduras, está cada vez mais abundante; por vezes Leone usa enquadramentos fechados que focalizam apenas os olhos dos atores (figuras 1.26 e 1.27). 56 Figura 1.25: A música das cenas no cemitério foi escrita antes das filmagens; na imagem acima, composição recessiva com figuras a diferentes distâncias da câmera. Figura 1.26: Os close-ups extremos característicos de Leone estão cada vez mais fechados, freqüentemente focalizando apenas os olhos dos personagens. Figura 1.27: Leone amplifica as composições recessivas com profundidade de campo, justapondo duas ações encenadas a distâncias cada vez maiores. Figura 1.28: A técnica do trompe l’oeil cinematográfico: personagem é surpreendido por elemento fora do quadro que deveria estar dentro de seu campo de visão. Figura 1.29: Cenários, figurinos (o colete de pele de carneiro de Eastwood) e armas foram objeto de pesquisa iconográfica, para garantir acuidade histórica. Figura 1.30: Momentos registrados por Matthew Brady em fotos históricas da guerra civil são recriados por Leone: pastiche e worldmaking ao mesmo tempo. Neste filme, Leone destaca mais outra ferramenta estilística, criada a partir da técnica pictórica do trompe l’oeil 14: os heróis freqüentemente são surpreendidos (assim como o espectador) pela entrada inesperada em cena de outros personagens que estavam fora do campo visual captado pela câmera um instante antes, mas já deveriam ter sido notadas pelo personagem mostrado naquele momento (figura 1.28). A direção de arte foi precedida de extensa pesquisa iconográfica, perseguindo a acuidade histórica: armas (revólveres, rifles, canhões) tinham que condizer exatamente com o equipamento produzido no ano em que a trama se passava; figurinos incomuns (capas para proteger os pistoleiros de tempestades de areia, coletes de pele de carneiro) eram historicamente corretos (figura 1.29). Os filmes norte-americanos de até então – inclusive westerns – não tinham esse tipo de preocupação com a verossimilhança histórica e com o 14 Técnica artística, advinda da pintura e da arquitetura, que consiste em criar uma ilusão ótica conseguida ao forçar relações de perspectiva fala entre objetos, formas ou pessoas; a expressão francesa original, que pode ser traduzida como ‘engana o olho’, é bastante sugestiva. 57 desenvolvimento coerente e realista do cenário e dos figurinos, uma ferramenta de estilo que constitui um exemplo claro da prática do worldmaking. A obsessão com os detalhes, possível graças ao orçamento de US$ 1,3 milhões, incluiu a construção de dois novos sets – uma estação ferroviária em La Calahorra, no deserto espanhol, e o cemitério circular onde ocorre o duelo final, montado num vale ao lado do rio Arlanza, perto de Madri – além da redecoração das duas cidades cenográficas usadas em Por um Punhado de Dólares e Por uns Dólares a Mais (o vilarejo de Hojo de Manzanares foi semi-destruído para dar lugar a Peralta, cidade arrasada pela guerra, enquanto o set de Mini Hollywood foi “maquiado” três vezes, para dar lugar a Valverde, Santa Fé e Santa Ana). Leone também intensificou o uso de um recurso já presente em Por um Punhado de Dólares, encaixando na narrativa alusões a filmes anteriores (especialmente westerns) e a fotografias históricas registradas pelo fotógrafo Matthew Brady durante a guerra civil norteamericana (figura 1.30). Dessa forma, ele ampliou a técnica do alusionismo cinematográfico, muitas vezes chegando ao ponto do pastiche (uma variação mais ostensiva do alusionismo): a narrativa em forma de mosaico que combinava pedaços de outros filmes num único enredo coerente. O pastiche se tornaria ferramenta típica da continuidade intensificada. Enquanto Leone conduzia a equipe por um cronograma de doze semanas de filmagens, entre maio e julho de 1966, o estúdio United Artists preparava o lançamento dos dois primeiros longas-metragens de Leone nos Estados Unidos. Os filmes chegaram aos cinemas norte-americanos em janeiro de 1967. Foram freqüentemente exibidos em par, no circuito de drive-ins. Ambos atingiram bilheterias superiores a US$ 4,5 milhões, consideradas muito boas para produções pequenas, exibidas longe das grandes salas de projeção. O sucesso dos filmes de Leone provocou uma retomada na produção de westerns dentro dos Estados Unidos, permitindo que cineastas como Sam Peckinpah e Don Siegel realizassem novas produções do gênero (FRAYLING, 1981, p. 43). A influência de Leone foi importante para diretores como Peckinpah. O cinema deste detém um débito de estilo em relação aos filmes de Leone, em particular no que se refere à representação da violência e ao uso do perfil de herói amoral e violento dentro de narrativas ambientadas em um universo inóspito, habitado por sociedades corruptas. Meu Ódio Será Sua Herança (1968) é um ótimo exemplo da incorporação de recursos estilísticos de Leone dentro do cinema norte-americano. O violentíssimo tiroteio final (figura 1.31) e o herói – líder de uma quadrilha de assaltantes (figura 1.32) – são recursos estilísticos que reapropriam as revisões esquemáticas operadas por Leone. 58 Figura 1.31: O tiroteio no clímax de Meu Ódio Será Sua Herança (1968), cheio de mortes violentas mostradas em câmera lenta, descende dos filmes de Leone. Figura 1.32: O herói de Meu Ódio Será Sua Herança (1968) – um assaltante, aqui enquadrado em close-up – evidencia a influência de Leone no western dos EUA. O modo realista de representação da violência passou depois a ser adotado pelos cineastas da geração New Hollywood 15. Martin Scorsese (Taxi Driver, 1976; Touro Indomável/Raging Bull, 1980), Francis Coppola (O Poderoso Chefão/The Godfather, 1972; Apocalypse Now, 1979), Arthur Penn (Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas) e William Friedkin (O Exorcista/The Exorcist, 1973; Comboio do Medo/Sorcerer, 1978) adotaram esse estilo de representação, determinando uma maneira de filmar a violência que acabaria sendo instituída dentro dos esquemas dominantes à disposição dos diretores contemporâneos. Enquanto isso, Leone planejava uma mudança. Ele entregou à United Artists um projeto de filme de gângster. Os executivos do estúdio não estavam interessados. Queriam mais westerns. Leone recebeu uma proposta da Paramount: dirigiria mais um filme do gênero e, se fosse bem-sucedido, ganharia sinal verde para fazer Era uma Vez na América (C’era uma Volta in America, Sergio Leone, 1984). Com US$ 3 milhões, Leone planejou Era uma Vez no Oeste como um mosaico de citações a clássicos do western, a começar pelo tema – a chegada do progresso, representado pela construção de uma ferrovia transcontinental, abordado em filmes como O Cavalo de Ferro (The Iron Horse, John Ford, 1924) e A Conquista do Oeste (How the West Was Won, John Ford/ Henry Hathaway/George Marshall, 1962). Era, na verdade, uma intensificação do alusionismo praticados nos filmes anteriores, mergulhando fundo no pastiche. Para este filme, Carlo Simi construiu três cenários no deserto espanhol: uma estação ferroviária decadente, onde foi filmada a seqüência de abertura (figura 1.33); um chalé suíço no meio de uma planície seca (figura 1.34); e uma cidade cenográfica completa, incluindo outra estação ferroviária, celeiros, galpões e prédios de até três andares (figura 1.35). Desta vez, com interiores decorados, para que as filmagens acontecessem sempre dentro do set (COX, 2009, p. 197). Uma linha ferroviária de dois quilômetros foi construída, para que o trem 15 Termo de Peter Biskind para a geração de jovens cineastas norte-americanos que emergiram a partir de meados da década de 1960, influenciados pela Nouvelle Vague francesa, entre os quais estavam os movie brats Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, George Lucas, Steven Spielberg e William Friedkin. 59 Figura 1.33: A estação ferroviária em que ocorre a abertura de Era uma Vez no Oeste foi um dos três cenários principais construídos para o filme. Figura 1.34: Outro cenário construído na Espanha foi o enorme chalé suíço no meio do deserto, erguido por um trabalhador supostamente louco: proto-worldmaking. Figura 1.35: Uma cidade cenográfica com interiores decorados foi erguida no deserto espanhol – era a primeira vez que isso acontecia num faroeste italiano. Figura 1.36: A locomotiva de Era uma Vez no Oeste transitou numa linha ferroviária verdadeira, construída no deserto espanhol especificamente para o filme. Figura 1.37: A cidade cenográfica erguida na localidade de La Calahorra, na Espanha, foi reutilizada depois por muitos spaghetti westerns, como ... Figura 1.38: ... O Preço do Poder (1969), de Tonino Valerii, filmado um ano depois, no mesmo local, com os mesmos objetos cênicos deixados por Leone. – uma locomotiva espanhola decorada como um trem americano do século XIX – pudesse ligar os três sets (figura 1.36). Cada cenário obedecia a uma lógica interna não explícita na narrativa. O chalé suíço expressava a confiança de Brett McBain (Frank Wolff) de que a linha férrea passaria pelas terras dele, transformando-o em milionário. Isso confirmava a prática do worldmaking. Os sets construídos em La Calahorra (figura 1.37) foram deixados de pé, de modo que outros diretores pudessem reutilizá-los. Isso aconteceu, por exemplo, em O Preço do Poder (Il Prezzo Del Potere, Tonino Valerii, 1969 – figura 1.38). Antes de se decidir por filmar na Espanha, Leone visitou o território real do oeste americano, procurando locações para o longa-metragem. Ele acabou desistindo de filmar nos EUA, decepcionado com a urbanização crescente das planícies outrora desérticas, onde John Ford filmara seus westerns. Essa viagem rendeu apenas uma seqüência: o passeio de carruagem de Claudia Cardinale pelo Monument Valley, cenário favorito de Ford, que o 60 cineasta de origem irlandesa usou em oito filmes, como Rastros de Ódio (The Searchers, John Ford, 1958) e No Tempo das Diligências (Stagecoach, John Ford, 1939). Na trilha sonora, inteiramente composta e gravada antes das filmagens, Morricone atingiu o ponto culminante de suas experiências com o uso de ruídos naturais amplificados e silêncios, com a cena de abertura – a monótona espera de três pistoleiros por um trem que demora a chegar – tendo na trilha de áudio apenas efeitos sonoros. Intensificando mais uma vez a construção narrativa em larga escala, quatro são os personagens centrais da trama; e quatro são os temas musicais, cada um correspondendo a um personagem e representando sua personalidade através de sonoridades características. Desta vez, Leone e Morricone evitaram o uso de elementos da diegese – ruídos e efeitos sonoros – dentro das composições, buscando uma sonoridade claramente neo-romântica, porque romântica era a atmosfera da história. O tema do herói Harmonica (Charles Bronson), que pouco fala e vive com uma gaita, é executado pelo próprio personagem em alguns momentos e em outros não, num jogo entre música diegética e extra-diegética. A gaita é o único instrumento que executa o tema, simbolizando a solidão e a recusa do personagem a viver em sociedade. Já o tema do vilão Frank (Henry Fonda), cuja vida está conectada atavicamente com a de Harmonica, é uma extensão do outro tema, solado numa guitarra elétrica – instrumento mais moderno e mais agressivo, como o personagem. Quase sempre os dois temas são tocados em sucessão, indicando o choque de destinos que o filme realiza no final. Para Cheyenne (Jason Robards), o pícaro da história, Morricone compôs um tema satírico, executado por um banjo sincopado e acompanhado de piano elétrico. Jill McBain (Claudia Cardinale), única mulher do filme, ganhou um tema romântico executado com orquestra de cordas completa. Havia ainda uma quinta música para Morton (Gabriele Ferzetti), o empresário que sonha em ver o oceano, cujo tema para piano cuja execução lembra vagamente o som de ondas quebrando. Durante as filmagens, Leone executava a música para os atores. Ele planejava, com o diretor de fotografia Tonino Delli Colli, a duração e a decupagem exatas de cada tomada, para que os movimentos de câmera pudessem ser sincronizados com as evoluções musicais. O melhor exemplo desta técnica está na tomada que mostra a chegada de Jill à cidade de Flagstone, em que a grua eleva a câmera para mostrar o panorama (prédios sendo construídos, movimentação de cavalos) no exato momento em que o acompanhamento lírico de piano elétrico e vozes femininas evolui em um crescendo até ganhar corpo e densidade com a adição de uma orquestra de cordas (figuras 1.39, 1.40, 1.41 e 1.42). 61 Figura 1.39: Jill McBain aguarda o marido na estação de trem: composição com moldura (a mulher) e foco profundo (o relógio ao fundo sinaliza o atraso) ... Figura 1.40: ... é acompanhada por uma melodia lírica executada inicialmente com piano elétrico e um coral de vozes femininas, que se ergue num crescendo ... Figura 1.41: ... em sincronia com o movimento de câmera, erguida por uma grua sobre o prédio da estação para revelar a vida fervilhante da cidade ... Figura 1.42: ... enquanto a composição musical ganha a adição de uma orquestra de cordas: exemplo do casamento entre sons e imagens na obra de Leone. Nos Estados Unidos, a receptividade do público foi fria. Na Itália, lançado na véspera de Natal, pouco chamou a atenção do público (COX, 2009, p. 205). O filme só fez sucesso real no circuito de salas alternativas, tendo ficado por dois anos consecutivos em cartaz numa sala de Paris. Devido ao fracasso, o projeto do filme de gângster foi cancelado. Leone diria em seguida que não faria mais nenhum western. A partir de 1970, começava uma nova fase no ciclo de spaghetti westerns. Esse período, cujo apogeu vai aproximadamente até 1973, é marcado pela introdução de recursos cômicos e acrobáticos no esquema dominante do gênero. Na verdade, esse ciclo consiste na produção de comédias pastelão disfarçadas de faroestes, num jogo intertextual que inscreve os códigos do western em narrativas cômicas e circenses. Os marcos iniciais desta fase foram Sartana (1968) e Sabata (1969). Hughes (2003, p. 219) identifica a origem desses filmes em um personagem de Leone: o Coronel Mortimer de Por uns Dólares a Mais. Naquele filme, Mortimer demonstra gosto por armas avançadas – possui uma luneta para observar vilões de longe, abre um cofre usando ácido e anda com um arsenal de rifles desmontáveis na bagagem. Sartana (Gianni Garko) seria, então, uma revisão exacerbada do Coronel Mortimer, inclusive no figurino preto e no uso de um rifle desmontável. Sabata deixa ainda mais flagrante a inspiração, porque Parolini escalou Lee Van Cleef, interprete de Mortimer, no papel-título. O herói ganhou passado idêntico ao do personagem de Leone: ambos são ex- 62 Figura 1.43: Sabata foi um dos primeiros spaghetti westerns a explorar a veia cômico-circense, que trocou a violência gráfica pelas acrobacias dos dublês. Figura 1.44: A quarta fase faria sucesso de público a partir de 1970, quando foi lançado Meu Nome é Trinity, com irmãos engraçados na linha de O Gordo e o Magro. oficiais do Exército Confederado que, derrotados na guerra civil e desiludidos, se transformaram em caçadores de recompensa. Em Sabata, Lee Van Cleef repete o figurino negro, fuma o mesmo cachimbo de Mortimer e se mostra expert em rifles desmontáveis e pistolas Derringer (mesmas armas utilizadas em Por uns Dólares a Mais). Por outro lado, havia seqüências de ação cada vez mais acrobáticas, com dublês dando saltos perigosos (figura 1.43). Existiam elementos nesses filmes que eram diferentes das fases anteriores do spaghetti western: Gianfranco Parolini revigorou o western com sua visão peculiar do Velho Oeste como Carnaval (...).Os protagonistas de Parolini lembram a trupe de um circo, com acrobatas, mágicos, atiradores de faca, jogadores de pôquer de habilidade extraordinária, e palhaços. (HUGHES, 2003, p. 218). Essa atmosfera picaresca, traço da cultura ibérico-mediterrânea, pode ser vislumbrada nos filmes de Leone, mas neles inscrita de modo mais sutil. A revisão do esquema realizada por Parolini consistia em exacerbá-la na direção da comédia. Essa exacerbação tomou forma ainda mais concreta em Meu Nome é Trinity (Lo Chiamavano Trinità, Enzo Barboni, 1970), que concentra sua ação dramática em torno do relacionamento conflituoso entre dois irmãos (figura 1.44), Trinity (Mario Girotti) e Bambino (Carlo Pedersoli). Os dois preferiam derrubar inimigos com socos. Saíam de cena os duelos com espaço fílmico fragmentado, close-ups e violência gráfica; entravam as brigas coreografadas como números de circo, filmadas em planos gerais, com direito a tortas na cara. Barboni eliminava do cardápio estilístico a representação gráfica da violência, já que seus filmes visavam um público-alvo formado por crianças e adolescentes, e portanto tinham que ter censura livre. Ou seja, esta aí outra revisão do esquema dominante, determinada por um limite contextual. Em termos comerciais, a receita deu certo. Meu Nome é Trinity faturou quase oito bilhões de liras (COX, 2009, p. 279) e escalou a lista das maiores bilheterias da Itália até as primeiras posições. A seqüência oficial, Trinity Ainda é Meu Nome (Continuavano a Chiamarlo Trinità, Enzo Barboni, 1971), foi ainda melhor e assumiu o posto de filme mais 63 rentável de todos os tempos na Itália. Tal sucesso provocou uma onda de westerns estilo pastelão durante os anos finais do ciclo. Embora usassem recursos estilísticos e narrativos oriundos do cinema de Leone, como a direção de arte realista (Trinity vestia roupas rasgadas e surgia em cena sempre coberto de poeira) e as trilhas musicais estruturadas como canções pop, intercalando versos e refrões, esses filmes revisavam outros recursos numa direção que desagradava a Leone. Ele fez seu próprio comentário sobre a onda de faroestes cômicos sob a forma de filme. Meu Nome é Ninguém (Tonino Valerii, 1973) foi produzido por ele e dirigido por Tonino Valerii. Na prática, atuando como diretor de segunda unidade, Leone dirigiu quase dois terços das cenas (COX, 2009, p. 300-301), incluindo todas as seqüências registradas no Monument Valley (EUA). Mas, antes de chegar lá, Leone já havia dirigido um quinto western. Quando Explode a Vingança (Giù la Testa, Sergio Leone, 1971) foi um projeto concebido e conduzido de maneira tumultuada, bastante semelhante a Meu Nome é Ninguém. O projeto nasceu para se tornar um comentário crítico de Leone contra a politização do spaghetti western, que ele enxergava nos filmes ambientados na Revolução Mexicana (FRAYLING, 2005, p. 64). Na ocasião, Leone ofereceu a direção a Giancarlo Santi, que não chegou a completar uma semana no cargo. Os dois atores principais, Rod Steiger (que ganhara um Oscar pouco antes) e James Coburn (grande astro de ação da época), fizeram pressão junto ao estúdio United Artists para que Leone assumisse a direção, o que acabou efetivamente acontecendo. Em termos de prática estilística, Quando Explode a Vingança detém algumas das impressões digitais de Leone, apesar da ausência de dois parceiros habituais (Simi e Delli Colli). Essa ausência redundou em diferenças perceptíveis: se os figurinos e cenários seguiam a ambientação grotesca e suja dos filmes de Leone, o cuidado com a acuidade histórica tornou-se bem menos obsessivo, e isso pode ser observado facilmente no roteiro. Por exemplo, a história ocorre em 1913; o Exército Revolucionário Irlandês (IRA), ao qual pertence um dos dois heróis, só seria criado seis anos depois, e esta informação era de domínio público, mas o erro factual entrou no filme. O uso de close-ups extremos (figura 1.45), a ironia (figura 1.46), os diálogos intercalados por silêncios e ruídos naturais amplificados, a técnica do alusionismo (figura 1.47) reaparecem. Já a música de Morricone, composta após as filmagens, era mais convencional, com apenas um tema principal e orquestração neo-romântica. A ação dramática focaliza a amizade entre Juan (Steiger), um bandido mexicano analfabeto, e Sean (Coburn), revolucionário irlandês do IRA, no México para lutar ao lado dos camponeses na Revolução do país. A dinâmica entre ambos era idêntica à estabelecida 64 entre Blondie e Tuco em Três Homens em Conflito; Juan era um típico pícaro de Leone (como Tuco e Cheyenne), enquanto Sean faz o tipo taciturno, confiante e cínico (figura 1.48). A maior preocupação do diretor era criticar os filmes da segunda fase do spaghetti western. Já vimos que quase todas essas obras compartilhavam o mesmo esqueleto narrativo: a relação entre um camponês revolucionário (porém ingênuo) e um gringo individualista. Leone inverteu esses papéis, transformando o estrangeiro num revolucionário. E ele tinha uma visão política niilista; achava que o spaghetti western estava sendo explorado politicamente e queria criticar esse procedimento. Assim, concebe uma trama em que o camponês se torna herói involuntário da Revolução, mas não acredita nela e perde toda a numerosa família. Enquanto isso, o idealista irlandês se desilude com sua crença política e morre. Ambos se envolvem com política e, por causa disso, experimentam tragédias. O lançamento foi um fracasso. Nos EUA, o filme apareceu numa versão com 154 minutos, foi retirado de circulação, cortado (perdeu 34 minutos) e recebeu outro título, A Fistful of Dynamite (Por um Punhado de Dinamite, óbvia alusão marqueteira aos filmes da trilogia com Clint Eastwood). Não adiantou. A bilheteria alcançada lá não atingiu as mesmas cifras dos três primeiros westerns. Parecia que Leone estava perdendo a popularidade. Ao mesmo tempo em que este fazia seu comentário sobre a politização do spaghetti western, o ciclo popular descobria a variação cômico-acrobática das tramas ambientadas no “Velho Oeste” espanhol. O sucesso desses filmes levou ao já citado Meu Nome é Ninguém (1973), cujo enredo é construído sobre um tema característico do spaghetti western – o relacionamento entre dois pistoleiros, um mais jovem e outro mais velho – em que cada personagem personifica uma variante do western. A ação acontece em 1899. De um lado, temos Jack Beauregard (Henry Fonda), pistoleiro de 51 anos, decidido a se aposentar para ir morar na Europa; do outro, um jovem caçador de recompensas (Mario Girotti) que idolatra o colega mais velho (figura 1.49), mas não quer vê-lo partir de forma melancólica, e o incentiva a enfrentar sozinho o Bando Selvagem (figura 1.50) – título do grupo de assaltantes de Meu Ódio Será Sua Herança (Sam Peckinpah, 1969), e que alude visualmente aos capangas da vilã do filme Dragões da Violência (Forty Guns, Samuel Fuller, 1957), numa dupla referência construída através do alusionismo – para garantir a si próprio o status de lenda do oeste. A escalação dos dois atores deixa evidente a intenção de Leone e Valerii. Fonda era, junto com John Wayne, um dos veteranos mais associados aos clássicos filmes de western; já o italiano Girotti era a face mais conhecida da vertente cômico-acrobática dos spaghetti westerns, graças ao papel de Trinity (cujo figurino esfarrapado é repetido). Colocá-los juntos 65 Figura 1.45: Em Quando Explode a Vingança, Leone retoma a tradição estilística de usar close-ups extremos que muitas vezes focalizam apenas os olhos dos atores. Figura 1.46: Juan (Rod Steiger) rasga cartaz exatamente à altura dos olhos do retrato para observar o banco que será roubado: uso da ironia como recurso estilístico. Figura 1.47: Intervenção gráfica na película sinaliza a idéia que o bonachão Juan tem para explodir um banco: influência de diretores modernistas, como Godard. Figura 1.48: Dinâmica entre o pícaro Juan e o cético Sean lembra a relação conflituosa entre os anti-heróis Tuco e Blondie, de Três Homens em Conflito. no mesmo filme era uma jogada de cineastas que desejavam sintetizar os dois arquétipos do western (um norte-americano, outro italiano) em um só produto: O filme é uma tentativa de conciliar pelo menos quatro tipos de westerns – o americano clássico, personificado por Henry Fonda; o western americano moderno revisionista, nas várias referências a Sam Peckinpah e ao Bando Selvagem; o spaghetti estilo Leone, com as músicas características de Morricone e os duelos dramáticos; e o spaghetti estilo Barboni, com Terence Hill [o pseudônimo inglês de Girotti], feijões fritos e personagens engraçadinhos. (COX, 2009, p. 301-302). Meu Nome é Ninguém reelabora a técnica do alusionismo, usada não apenas para combinar alusões a longas-metragens diferentes, mas sobretudo para combinar fases diferentes do western num produto conscientemente elaborado para servir como uma espécie de despedida, um réquiem do gênero, que a essa altura declinava rapidamente tanto na Itália quanto nos Estados Unidos. Em outras palavras, puro pastiche. Do ponto de vista da prática estilística, Meu Nome é Ninguém parece irregular. Há uma série de diferenças nos recursos estilísticos usados ao longo da trama, para resolver problemas de encenação. Por exemplo, os confrontos entre adversários são filmados de modo diferente dos duelos típicos de Leone. Saíam de cena os close-ups extremos e as composições em profundidade; entravam soluções estilísticas mais convencionais, como encenação horizontal no estilo tableau, com a câmera distante dos atores, e longos planos americanos. Os tiroteios cheios de suspense ainda apareciam (figuras 1.51), mas eram intercalados por cenas pastelão que incluíam tortas na cara e anões montados em pernas-de-pau (figura 1.52). 66 Figura 1.49: Jack (Henry Fonda) e Nobody (Mario Girotti): personagem icônico do western norteamericano encontra um pícaro do spaghetti western. Figura 1.50: O Bando Selvagem – 150 assaltantes cavalgam juntos – usa a técnica do pastiche para fazer uma citação dupla a westerns americanos famosos. Figura 1.51: Duelo dentro de barbearia contém close-ups extremos, silêncios prolongados, efeitos sonoros e composição recessiva, recursos típicos de Leone. Figura 1.52: Por outro lado, a presença de personagens circenses, a encenação cômica, o humor infantil e outras composições planimétricas vão na contramão estilística. Meu Nome é Ninguém foi bem nas bilheterias italianas, superando o primeiro exemplar da franquia Trinity, mas não alcançou nenhuma repercussão nos Estados Unidos (FRAYLING, 2005, p. 69). Esta aversão dos espectadores norte-americanos aos westerns acrobáticos, aliás, pode ser apontada como um dos fatores decisivos para a decadência definitiva do spaghetti western, cuja produção praticamente desapareceu após 1973, tornandose residual até sumir em definitivo a partir de 1978. Após Meu Nome é Ninguém, Leone deixou de lado as produções italianas para se concentrar no sonho de filmar as memórias de infância filtradas pelos esquemas dos filmes de gângster. Ele levaria mais de dez anos para conseguir financiamento e fazer Era uma Vez na América (1984), produção marcada por brigas de bastidores com os produtores norteamericanos e, conseqüentemente, por uma série de interferências do estúdio em suas práticas narrativas e estilísticas. Essas interferências ajudaram a fazer o filme fracassar, e praticamente decretaram o final da carreira de Leone. Para muitos críticos, Era uma Vez na America é a obra-prima de Sergio Leone. Uma análise atenta dos recursos estilísticos traz à tona padrões recorrentes nos westerns, mas usados com menos ênfase retórica. Certamente era o mesmo Leone, agora menos irreverente. Em 1984, para solucionar problemas de representação, Leone revisou recursos estilísticos de sua obra anterior, replicou outros tantos e descartou alguns mais. É curioso observar, também, como a mudança de gênero trouxe menos alterações diretas no repertório de práticas narrativas e estilísticas do que se poderia imaginar. 67 Um dos recursos de estilo que Leone manteve foi o hábito da releitura crítica dos códigos do gênero. Nesse ponto, Leone partiu de um conceito que por si só já era uma subversão ao esquema dominante daquele momento. Após o sucesso de O Poderoso Chefão (1972), quase todos os filmes de gângsteres feitos nos Estados Unidos lidavam com personagens que pertenciam à cúpula de organizações criminosas e/ou à máfia de origem italiana. Para Leone isso seria ainda mais natural, pois ele era italiano. Mas ele preferiu descartar essa muleta narrativa e fazer um filme sobre a amizade conflituosa de dois pequenos mafiosos de origem judia, ao longo de cinco décadas de violência. O filme foi uma superprodução estrelada pelo astro Robert De Niro. Com um orçamento de US$ 30 milhões (então um dos maiores da história de Hollywood) e nove meses de filmagens nos EUA e na Itália (FRAYLING, 2000, p. 453), Leone trabalhou pela primeira vez fora do sistema de produção de Cinecittà. Essa mudança gerou alterações significativas no uso dos recursos estilísticos e narrativos. As ferramentas mais afetadas estavam ligadas a aspectos visuais – composição, enquadramento, luz e cor. Leone foi forçado a revisar escolhas reconhecidas como assinaturas autorais, devido a circunstâncias tecnológicas e de produção. A alteração mais radical consistiu no abandono do processo Techniscope para o uso do equipamento padrão de Hollywood naquele momento, com câmeras que registravam a imagem no formato 1.85:1 16. Leone cogitou utilizar pela primeira vez o sistema de lentes anamórficas Panavision, mas descartou-o depois de assistir a Era uma Vez no Oeste no hotel, em Nova York. O filme foi exibido na TV com cortes nas laterais, o que irritou Leone. Ele sabia que seu filme seria mais visto na TV do que nos cinemas, e optou pela imagem mais quadrada; pensou que quando Era uma Vez na America chegasse à televisão, a mutilação seria menor (FRAYLING, 2000, p. 450). Essa opção permitia ao diretor de fotografia Tonino Delli Colli trabalhar com lentes esféricas normais, às quais estava mais acostumado. O abandono do sistema Techniscope, associado à predominância de cenas em interiores, tornou mais difícil para Leone compor imagens em profundidade de campo, como fizera tantas vezes em seus filmes. A composição recessiva com moldura ainda era possível, mas teve que ser revisada. Três soluções alternativas surgiram para resolver o problema: (1) posicionar a figura em primeiro plano mais afastada da câmera (figura 1.53); (2) deslocar a luz-chave (key light), de forma a filmar o primeiro plano em contraluz – apenas uma silhueta 16 Esses números consistem na razão entre a largura e a altura da imagem. No formato 2.35:1, para cada metro de imagem vertical correspondem dois metros e 35 centímetros na horizontal, enquanto no segundo caso a proporção é de um metro e 85 centímetros para cada metro de altura, resultando numa imagem mais quadrada. 68 Figura 1.53: Carros, ternos e chapéus eram objetos verdadeiros de 1933, e foram comprados em leilões de objetos antigos, especialmente para o filme. Figura 1.54: Em close-up extremo, membro da gangue sinaliza que recebeu o pagamento pelo serviço realizado: roubo dos diamantes em um banco. Figura 1.55: A tensão do motorista denuncia a cilada: composição com moldura em que Leone desloca a luzchave para transformar o primeiro plano numa sombra. Figura 1.56: Mafioso confere os diamantes, num closeup normal, deixando algum ar abaixo do queixo, enquanto o outro gângster aguarda a confirmação. Figura 1.57: Membro da gangue inicia a execução dos bandidos: a arma sai de foco quando se aproxima da câmera, mas o rosto continua focalizado em close-up. Figura 1.58: Representação gráfica da violência: bandido atingido no olho esquerdo cai morto, enquanto Leone filma o rosto destruído num close-up extremo. Figura 1.59: Segundo carro se aproxima e integrantes disparam uma saraivada de tiros de metralhadora – uma convenção do gênero gângster – contra os inimigos. Figura 1.60: Tomada em profundidade de campo encerra a cena com um rosto ensanguentado; o carro da gangue que praticou o atentado se afasta ao fundo. 69 – e esconder a falta de foco (figura 1.55); (3) focalizar com nitidez apenas o segundo plano, deixando a moldura fora de foco. No entanto, o número de close-ups manteve-se proeminente. O recurso estilístico do alusionismo voltou a ser utilizado em profusão. Alusões a clássicos de cada época em que a ação dramática se passa, além de citações a filmes de gângsteres famosos, pontuam a história. Estão lá referências diretas a O Garoto (The Kid, Charlie Chaplin, 1921), Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse (The Four Horsemen, Rex Ingram, 1921) e The Musketeers of Pig Alley (David W. Griffith, 1912), todos citados por personagens durante os diálogos. Há, também, momentos alusivos a filmes famosos, como as memórias de infância do gângster de Anjos de Cara Suja (Angels With Dirty Faces, Michael Curtiz, 1938), o teatro chinês de A Dama de Shangai (The Lady From Shangai, Orson Welles, 1948), o mafioso megalomaníaco de Fúria Sanguinária (White Heat, Raoul Walsh, 1949) e o carro metralhado de Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas (1967, figura 1.59). Leone manteve a representação gráfica da violência, ampliando a exposição na tela dos efeitos devastadores de socos e tiros sobre o corpo humano. Os vários atentados e assassinatos cometidos pela gangue de mafiosos são mostrados com profusão de close-ups de rostos ensangüentados e corpos perfurados por balas. Há uma seqüência bastante sangrenta de espancamento e dois longos estupros. Na cena do atentado cometido contra uma gangue rival, podemos analisar como Leone replicou e revisou esses recursos estilísticos distintos. Nela, o grupo de Noodles e Max, os dois protagonistas, entrega diamantes roubados, são pagos, mas assassinam os compradores das jóias, ficam com os diamantes e com o dinheiro. O plano de abertura é uma composição recessiva menos agressiva do que o normal (para ele), com o elemento em primeiro plano mais distante da câmera do que o normal (figura 1.53). Um dos membros da quadrilha se aproxima e é focalizado em close-up. Ele está impecavelmente trajado; os carros são veículos verdadeiros de 1933. O homem recebe o dinheiro (figura 1.54), e o plano seguinte usa composição com moldura em contraluz (figura 1.55). O comprador confere os diamantes (figura 1.56) antes que o mafioso saque o revólver (figura 1.57) e atire em seu olho esquerdo, produzindo um close-up extremo, sangrento, de um rosto destroçado (figura 1.58). Nesse momento, o segundo carro se aproxima e fuzila os compradores dos diamantes com tiros de metralhadora (figura 1.59), numa alusão direta ao clímax de Bonnie & Clyde. A cena termina com uma composição recessiva, mostrando um rosto ensangüentado em primeiro plano e o carro da gangue se afastando ao fundo (figura 1.60), quase fora de foco – a profundidade de campo obtida era menor do que nos westerns. 70 A questão da representação da violência já não enfrentava obstáculos, e por isso foi reproduzida sem alterações. A autocensura dos estúdios não existia mais. Além disso, a violência era coerente com os dois personagens centrais, que correspondiam ao perfil do herói violento, amoral e individualista que marcou a obra de Leone. Há só uma distinção entre eles e os heróis dos westerns: Max e Noodles não são desiludidos que vivem no deserto, mas sim parasitas sociais. Eles desprezam a sociedade, mas vivem dentro dela e mantêm as aparências. Quando não convêm, as regras sociais são desprezadas, como na cena em que Noodles, depois de uma noite de cortejo a Deborah (Elizabeth McGovern, na versão adulta) que inclui um luxuoso jantar num restaurante fechado para a ocasião, se irrita com a negativa da moça ante seus avanços e a estupra brutalmente no banco de trás do carro. Por outro lado, o senso de amizade entre os membros da gangue é extremamente forte. Eles se comportam entre si como uma grande família, uns apoiando os outros. Entre as ferramentas revisadas de maneira mais drástica por Leone está a construção em larga escala: o filme consiste num grande vai-e-vem cronológico, em que um personagem que vive em 1968 (presente) relembra fatos da juventude (1933) e da adolescência (1923). Além de intercalar as três cronologias ao longo da história, Leone povoou o roteiro com diversos personagens importantes, que multiplicam as linhas narrativas. O filme representa, na obra de Leone, o ápice do processo de revisão dos esquemas dominantes, relacionados à segunda vertente da poética do cinema, em direção à continuidade intensificada. Com o orçamento generoso, Leone pôde conduzir Carlo Simi e a figurinista Gabriella Pescucci numa escrupulosa pesquisa iconográfica, reunindo milhares de fotografias de Nova York nas três épocas em que a história se passava: fotos de arquivos policiais, fotografias jornalísticas e grandes panoramas fotográficos da cidade (figura 1.61), reconstituídos em imagens do filme (figura 1.62). Embora algumas cenas tivessem sido registradas em ruas do Brooklyn (figura 1.63), Leone mandou reconstruir um quarteirão do bairro nova-iorquino dentro dos estúdios Cinecittà (figura 1.64), com interiores decorados: a prática do worldmaking atingiu o apogeu no trabalho de Leone. Para os figurinos e objetos cênicos, Leone buscou a acuidade histórica: usou objetos e roupas verdadeiros. Simi e Pescucci visitaram antiquários, procurando trajes e móveis reais de cada época em que a história se passa. Parte desse material foi adquirida em leilões em Nova York, Los Angeles e Londres. Figurinos foram criados a partir da pesquisa iconográfica de Simi, e outros readaptados de roupas usadas em filmes de Luchino Visconti. A obsessão com os detalhes (figuras 1.65 e 1.66) era o objetivo: 71 Figura 1.61: Panorâmicas fotográficas de Nova York nos anos 1930 (como esta), fotos de arquivos policiais e jornalísticos ajudaram na criação de cenários e ... Figura 1.62: ... foram reproduzidas nos planos gerais que mostram figuras minúsculas de movimentando contra grandes paisagens, recurso típico de Leone. Figura 1.63: Algumas tomadas foram registradas em áreas do Brooklyn com prédios antigos preservados e a fumaça característica de Nova York saindo dos esgotos. Figura 1.64: Um quarteirão inteiro do Brooklyn, reconstituído a partir de pesquisa fotográfica, foi construído dentro dos estúdios Cinecittà, em Roma. Figura 1.65: Sobretudos e chapéus usados pelos atores foram comprados em antiquários ou costurados com tecidos e cortes característicos dos anos 1930. Figura 1.66: O cuidado com figurinos e objetos cênicos incluíu os óculos escuros, maiôs masculinos e femininos e até mesmos os coquetéis de frutas dos anos 1930. Quando Noodles pede uma xícara de café, quero ter certeza de que não sirvam numa xícara branca e redonda comum, mas numa xícara hexagonal com pequenos motivos florais, do tipo que era realmente usado nos anos 1930. (LEONE, 2000, p. 432). Leone entregou ao estúdio um filme com 229 minutos. Seguiram-se pré-exibições frustrantes e um corte, exigido pelos executivos, de uma hora e meia do total. Elogiado pela crítica após exibições no Festival de Cannes, o longa-metragem foi mal nas bilheterias. Desgastado pelas brigas com os executivos, Leone não filmaria mais. Morreria em 1989, aos 60 anos, de ataque cardíaco. Quando morreu, despertava sentimentos contraditórios na 72 comunidade cinematográfica. Seus filmes ainda não haviam sido analisados detidamente, no que se refere às práticas narrativas e estilísticas, embora tivessem se tornado objeto de um processo gradual de revalorização crítica. Detalharemos esse processo nas seções a seguir. 1.4 O impacto do gênero e do autorismo na fortuna crítica Em texto sobre Três Homens em Conflito, publicado em 2002 no jornal Chicago SunTimes, Roger Ebert revisou as reflexões que havia escrito em janeiro de 1967, no mesmo periódico, sobre o filme de Leone. No novo artigo, Ebert fez um mea culpa público por não ter sido capaz de julgar, na época do lançamento, a suposta qualidade do trabalho de Leone, que só agora, 35 anos depois, era capaz de enxergar. O texto deixa clara a existência de uma barreira ideológica que se infiltrava, às vezes sem que houvesse consciência disso, no discurso dos críticos, sobretudo entre os anos 1960 e 1970. Era uma barreira que isolava os filmes “de arte”, feitos sem objetivos comerciais imediatos, daqueles categorizados como puro entretenimento, supostamente inferior: Na estréia do filme nos Estados Unidos, no final de 1967, pouco depois de seus antecessores Por um Punhado de Dólares e Por um Punhado de Dólares a Mais, as platéias tiveram certeza de que o apreciaram, mas será que saberiam dizer por quê? (...) Minha reação foi forte, mas eu ainda não completara um ano como crítico de cinema e nem sempre tive a sabedoria de valorizar mais o instinto do que a prudência. Ao reler minha velha crítica, vejo que a descrição corresponde à de um filme quatro estrelas, porém deilhe apenas três, talvez porque se tratasse de um spaghetti western e, assim, não pudesse ser arte. (EBERT, 2006, p. 495). Ebert não era voz isolada em 1967. Muito pelo contrário. Ele sintetizava, de forma geral, a argumentação que levou a maior parte dos críticos da época a ignorar ou minimizar a importância dos faroestes italianos e da obra de Leone em particular. Em geral, os críticos partiam de pressupostos negativos para avaliar qualquer filme do ciclo. Em primeiro lugar, eram produções feitas para consumo massivo, dentro de um ciclo cujos produtores deixavam claro que o faturamento financeiro era fundamental. Para completar, havia a noção de que um western realizado na Europa era intrinsecamente inferior a qualquer outro feito nos Estados Unidos, por ter sido realizado por alguém que não podia compreender o espírito do gênero, já que este lidava com a formação da identidade cultural norte-americana. O texto deixa claro, nas entrelinhas, o jogo de expectativas negativas que existia dentro da crítica em relação ao western europeu. Esperava-se que um exemplar do ciclo italiano fosse qualitativamente sofrível, e esperava-se também que os críticos condenassem 73 instantaneamente esses filmes, inclusive sem dedicar muita atenção neles. O artigo deixa claro como Ebert já percebia, em 1967, que gostava do filme, mas somente o recuo proporcionado pelos anos – e com a mudança da opinião geral dos outros críticos sobre o spaghetti western em geral, e o cinema de Leone em particular – ele se sentiu seguro para avalizar essa opinião. Esta mudança gradual de opinião exemplifica bem o processo de revalorização a que a obra de Leone foi submetida desde então. Os pesquisadores do spaghetti western (FRAYLING, 2000) afirmam que tem havido, a partir dos anos 1970, uma valoração positiva dos filmes do ciclo. Esta mudança fica clara no relato de Alex Cox (2009): Quando estava tentando levantar dinheiro para Revengers Tragedy (Alex Cox, 2004), muitas vezes ajudava descrever a adaptação da comédia de horror de Thomas Middleton como uma espécie de spaghetti western. Os rostos dos financiadores brilhavam. Mas o que essas palavras – spaghetti westerns – significam para eles? Clint Eastwood, e uma licença para imprimir dinheiro? O deserto, Europa, os deliciosos anos 1960? Seus anos de adolescência ou juventude? O que quer que significasse, funcionava. ‘Oh!’, o financiador dizia. ‘Você pode incluir flashbacks, e música de Morricone!’. E a conversa nos escritórios cromados fluía, ainda que brevemente. Spaghetti westerns compõem um território familiar agora. São reconhecidos como algo digno de valor. (COX, 2009, p. 9). Mudanças na forma como a teoria do cinema tem lidado com o conceito de gênero fílmico detêm grande importância nesse processo de revalorização. Durante muito tempo, até os anos 1970, o gênero foi colocado num pólo oposto em relação ao conceito de autoria. Essa oposição foi tratada através de diferentes gradações de ênfase, mas sua premissa essencial permaneceu estável durante décadas: filmes de gênero constituem uma categoria estética menos importante, porque detêm objetivos comerciais mais imediatos. Este raciocínio começou, timidamente, a ser relativizado por algumas correntes teóricas nos anos 1950. Esse processo de relativização só ganhou força realmente ao longo dos anos 1970. Mesmo assim ele ainda permanece, até hoje, às vezes de forma inconsciente, porque o seu duplo – a noção de autoria – ainda é encarada fortemente de acordo com seus preceitos românticos. De todo modo, o resgate positivo do conceito de gênero tem trazido em seu bojo a tendência à revalorização do spaghetti western e, em particular, da obra de Leone. É possível citar exemplos institucionais que confirmam essa impressão. Em agosto de 2004, o Museum of the American West, um dos mais importantes espaços de preservação da memória da colonização do oeste daquele país, dedicou uma mostra aos filmes de Leone, expondo peças de figurino, cenário e cartazes das produções dele; um evento desse tipo seria impensável nos anos 1970, quando críticos e diretores de western nos Estados Unidos consideravam o 74 spaghetti western uma espécie de insulto. Em 2007, a 64ª edição do Festival de Veneza (um dos espaços mais tradicionais do cinema “de arte”) realizou a mostra especial A História Secreta do Cinema Italiano: Spaghetti Westerns, em que 32 longas do ciclo, realizados entre 1964 e 1976, foram exibidos em sessões especiais, com curadoria de Quentin Tarantino. Todos os exemplos citados – a mudança de opinião de Roger Ebert, as mostras em espaços culturais consagrados, a experiência de Alex Cox – refletem uma mudança na trajetória midiática do spaghetti western, ao longo dos últimos 40 anos. Esta mudança pode ser compreendida como resultado de um complexo processo de integração entre os conceitos de gênero e autoria – um processo, aliás, que ainda está longe de refletir harmonia. Antes de prosseguir, é importante relativizar esse fenômeno. Como veremos adiante, o novo estatuto de valor atribuído aos filmes do ciclo italiano não surgiu de um exame atento das práticas estilísticas e narrativas dos diretores. Trata-se de um processo de valoração mais sócio-cultural do que estético: o spaghetti western cativou um público que o consome como objeto de culto – um fenômeno característico da cultura de massa, em que produções se tornam populares em camadas segmentadas de consumidores –, mas continua despertando pouco interesse de pesquisadores em estudar suas práticas estilísticas e narrativas. Nas próximas seções, vamos examinar a fortuna crítica de Leone e procurar estabelecer com precisão a mudança gradual do discurso dos críticos sobre a obra dele. Antes, porém, precisamos refletir com mais profundidade sobre a dicotomia Gênero X Autoria. Como as teorias sobre gêneros fílmicos que emergiram nas últimas três décadas, revalorizando o conceito e propondo uma harmonização (ainda que relativa) com a idéia de autoria, se relacionam com valoração progressiva dos filmes de Leone? Para responder essa pergunta, vamos sintetizar rapidamente as teorias recentes sobre gênero e autoria cinematográficos, relacionando-as à emergência do autorismo na Europa dos anos 1960 e ao princípio da arte desinteressada de Kant (2002). A noção de gênero precede em muitos séculos a invenção do cinema. O vocábulo vem do latim genus e significa espécie, categoria ou agrupamento (STAM, 2003, p. 27; AUMONT; MARIE, 2001, p. 141). A palavra já era utilizada na filosofia e na biologia, para designar grupos de objetos ou seres com características em comum, quando começou a ser empregada na arte e na estética, a partir do século XVII, para categorizar conjuntos de obras que compartilhavam características de quaisquer ordens (enredo, narrativa, estilo, etc.): Os gêneros tiveram uma existência forte nas diversas artes desde essa época, mas sua definição sempre foi relativamente flutuante e variável. Por um lado, sempre se hesitou entre a definição pelo enredo (natureza morta, 75 paisagem, em pintura; drama, comédia, em teatro), pelo estilo (é o caso dos gêneros musicais), pela escritura (é antes o caso dos gêneros literários, que distinguem, por exemplo, o ensaio do romance). (AUMONT; MARIE, 2001, p. 142). No caso do cinema, Edward Buscombe (2004, p. 303) relata que o conceito foi tomado emprestado da teoria literária e utilizado para facilitar a tarefa de classificar os filmes em categorias, tanto para efeito de produção quanto para consumo. No campo da arte cinematográfica, a idéia do gênero sempre esteve “fortemente ligada à estrutura econômica e institucional da produção” (AUMONT; MARIE, 2001, p. 142). Na teoria do cinema, contudo, o problema da definição do conceito sempre foi complexo: O que é um gênero? Quais filmes devem ser chamados filmes de gênero? Como sabemos a qual gênero eles pertencem? Embora pareçam fundamentais, essas perguntas quase nunca são feitas – muito menos respondidas – no campo dos estudos cinematográficos. Muito confortavelmente assentados no mundo descomplicado dos clássicos de Hollywood, os críticos têm sentido pouca necessidade de refletir abertamente a respeito das assunções que percorrem as entrelinhas de seus trabalhos. (ALTMAN, 2003, p. 27). Historicamente, uma teoria dos gêneros fílmicos só começou a ser objeto de estudo, sobretudo nos Estados Unidos e na Inglaterra, entre o final dos anos 1960 e o começo da década seguinte (NEALE, 2000, p. 8). Por sua vez, críticos que atuavam em periódicos nunca se preocuparam em com os contextos sócio-culturais em que usavam o termo. Tudor (1985) afirma que a crítica sempre evitou, deliberadamente, cunhar uma definição clara do termo, para escapar de uma armadilha conceitual que pudesse enfraquecer seus argumentos. Essa armadilha tautológica deriva de uma constatação: não existe maneira objetiva, muito menos definitiva, de saber quando determinado filme pertence de fato a determinado gênero. Jullier e Marie afirmam que a maneira mais eficiente de um pesquisador usar o conceito é simplesmente comparando seu objeto de estudo a um protótipo, um “filme do qual todo mundo concorde em dizer que constitui um modelo indiscutível do gênero e buscar em que medida o filme em questão se parece com ele” (JULLIER; MARIE, 2009, p. 65). Ao longo dos anos 1970, o gênero foi tratado como um sistema, que podia ser identificado “por suas regras, componentes e funções (por sua estrutura profunda estática), ou ao contrário, pelos componentes individuais incorporados à espécie (por sua estrutura superficial dinâmica” (SCHATZ, 1981, p. 18). Aos poucos, a idéia do gênero como sistema tornou-se insuficiente. Steve Neale observou que o gênero não é exatamente um sistema, mas “um conjunto de processos de orientações, expectativas e convenções que circulam entre a 76 indústria, o texto e o sujeito” (NEALE, 1980, p. 19). Essa compreensão do termo implica que gêneros não são entidades historicamente estáveis. Todo gênero incorpora novos componentes e sofre alterações com o tempo, em todos os níveis de significação. O gênero muda à medida que mudam também os três atores entre os quais circulam os seus processos de significação. Considerando tudo isso, ainda é possível afirmar que filmes de um mesmo gênero são grupos de obras que compartilham certos códigos e convenções de estilo e narrativa. Edward Buscombe propôs que o gênero fílmico deveria ser concebido como um conjunto de obras constituídas por dois grupos de componentes, que denominou de formas externas e internas (BUSCOMBE, 2004, p. 306). Steve Neale (2000, p. 11) instituiu o termo iconografia para dar conta do conjunto de formas externas. Ele observou que a iconografia – que inclui elementos de cenário, figurino, iluminação, cor e composição pictórica – exerce um papel mais imediatamente reconhecível para a classificação de gêneros do que as formas internas, que por sua vez podem ser encontradas nos aspectos narrativos recorrentes (entre os quais estão temas, caracterização de personagens, eventos da trama, etc.). Traçando um paralelo entre poética do cinema e os conceitos de iconografia e forma interna, podemos afirmar que a primeira lida com aspectos relacionados à prática estilística, enquanto a última está relacionada à temática e à construção narrativa. A partir desse raciocínio, a aplicação da tese da continuidade intensificada de Bordwell à noção de gênero de Buscombe e Neale nos oferecerá algumas reflexões úteis para compreender a recepção oferecida pela crítica aos filmes de Sergio Leone. Ao trabalhar dentro de um gênero, um cineasta precisa seguir, ao menos parcialmente, um repertório de convenções que reforce torne, aos olhos da audiência, seu filme integrante do gênero. O diretor de um filme de gênero deve organizar as formas internas e a iconografia, ainda que através de diferentes práticas narrativas e estilísticas, para tornar o filme reconhecível como exemplar do gênero. Nesse sentido, o gênero funciona como um esquema (GOMBRICH, 2007). O modo como cada diretor lida com os problemas de representação específicos do gênero pode determinar sua capacidade criativa. Alguns diretores replicam códigos; outros revisam, sintetizam, modificam esse repertório, contribuindo para fazer surgir novos esquemas, em variações que podem se afastar muito ou pouco do repertório do gênero. Tudo isso implica que, necessariamente, o gênero exerce o papel simultâneo de limite e pré-condição ao uso dos recursos narrativos e estilísticos por parte do diretor. Qualquer escolha que este opere, para resolver problemas de representação, pode ser efetuada dentro de um repertório recorrente em suas práticas cinematográficas, mas precisa levar em consideração o gênero de filme que ele está realizando: “Não se filma uma cena de amor da 77 mesma maneira em uma comédia familiar, em um filme (...) destinado ao circuito de arte, ou em um filme pornô” (JULLIER; MARIE, 2009, p. 65). No entanto, a harmonia que este conceito de estilo propõe entre gênero e autoria nem sempre existiu na teoria do cinema. Ao contrário. Durante décadas, os dois conceitos foram tomados como excludentes. Considerava-se que os limites à liberdade criativa impostos pelo gênero impediriam um diretor de tornar-se autor. Essa abordagem foi dominante na teoria do cinema até a introdução, a partir dos 1950, do autorismo. O autorismo surgiu dentro de um contexto histórico específico da produção cinematográfica francesa. No artigo “Uma Certa Tendência do Cinema Francês” 17, publicado em 1954, François Truffaut (2006) agiu como porta-voz dos Cahiers du Cinéma (inclusive Godard, Eric Rohmer, Jacques Rivette e Claude Chabrol) e afirmou que a safra de filmes franceses da década de 1950 consistia de filmes sem personalidade, parecidos demais uns com os outros, porque os diretores se limitavam a filmar roteiros sem preocupações poéticas. O texto instava os diretores a tomar as rédeas do processo criativo cinematográfico. Se essas rédeas permanecessem nas mãos dos roteiristas (como acontecia na França) ou dos produtores (caso das realizações norte-americanas), teríamos um punhado de filmes “previsivelmente bem-adornados e bem falados, seguindo estilisticamente sempre a mesma fórmula” (STAM, 2003, p. 103); ou seja, filmes que se limitavam a replicar esquemas já estabelecidos. Para resolver o problema, dizia Truffaut, era preciso que o diretor se constituísse como líder da equipe criativa e, dessa forma, assumisse o papel do artista responsável pelo filme: A tradição de qualidade, para ele, reduzia o cinema a uma mera tradução de um roteiro preexistente, quando deveria ser visto como uma aventura em aberto no campo da mise-en-scène criativa. (STAM, 2003, p. 103). Um cinema verdadeiramente criativo tinha que se assemelhar à personalidade daquele que o realizasse; isso só poderia ser conseguido através do estilo. Por isso, Truffaut e demais críticos dos Cahiers du Cinéma contrapunham, ao cinema francês de índole literária, aquele que consideravam cinema mais vigoroso, cuja produção muitas vezes vinha dos filmes de gênero norte-americanos, feitos por diretores como Nicholas Ray e Alfred Hitchcock: Como produto da conjunção entre cinefilia e uma veia romântica do existencialismo, o autorismo deve ser visto em parte como uma resposta a (1) o menosprezo elitista do cinema por intelectuais do campo literário; (2) o preconceito iconofóbico contra o cinema como “meio visual”; (3) o debate 17 Disponível em português em TRUFFAUT, François. O Prazer dos Olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. Pags. 257-276. 78 em torno da cultura de massa que identificava o cinema como um agente de alienação política; e (4) o tradicional antiamericanismo da elite literária francesa. Nesse sentido, o autorismo foi um palimpsesto de influências, combinando noções românticas de expressão artística, noções formalistasmodernistas de descontinuidade e fragmentação estilística e uma atração “proto-pós-moderna” pelas artes e gêneros mais “baixos”. O ponto verdadeiramente escandaloso da teoria do autor estava não tanto na glorificação do diretor como equivalente em prestígio ao autor literário, mas exatamente em quem era depositado esse prestígio. Cineastas como Eisenstein, Renoir e Welles foram sempre considerados autores, porque se sabia que detinham controle artístico sobre suas produções. A novidade da teoria do autor estava em sugerir que também cineastas de estúdio como Hawks e Minnelli eram autores. (STAM, 2003, p. 106). É importante chamar a atenção, na passagem de Stam, para alguns tópicos significativos. Primeiro, Stam identifica como elemento fundamental do autorismo o combate a preconceitos elitistas relacionados à atribuição do estatuto de arte ao cinema. Esse ponto esclarece, em parte, como o autorismo contribuiu (ainda que isso pareça paradoxal) com o processo de revalorização gradual do cinema de gênero. Esse processo acabaria por se confirmar como característica da continuidade intensificada quando, a partir do final dos anos 1960, diretores de prestígio autoral, como Stanley Kubrick, começaram a lançar filmes de gênero (BORDWELL, 2006, p. 52). Em segundo lugar, Stam identifica o lugar contraditório da noção romântica de autoria dentro da política dos autores, já que essa noção aparece combinada com uma atração paradoxal pelos “gêneros mais baixos”. Essa tentativa se concretiza no recorte escolhido pelos Cahiers du Cinéma para caracterizar os diretores autorais. O fato de esse recorte incluir cineastas que trabalhavam no cinema de gênero foi, como aponta Stam, visto como “verdadeiramente escandaloso”. Convém lembrar que a questão da autoria no cinema sempre suscitou problemas. Foi por esse motivo que, como apontam Aumont e Marie, “a noção de autor de filme (...) demorou a aparecer historicamente” (2001, p. 26). Afinal, o cinema sempre foi uma atividade coletiva. Identificar elementos autorais dentro de um filme é tarefa mais complexa do que fazer o mesmo na pintura ou na literatura. No cinema, em que a criação estritamente individual é difícil de ser rastreada, existiria um autor? A própria idéia de autoria coletiva precisa levar em consideração o contexto de produção: Isso quer dizer que o status do autor no cinema está sempre ameaçado pela relação de forças entre o cineasta e as instâncias de produção e de difusão (ver o caso dos cortes publicitários e da “colorização” dos filmes na televisão). (AUMONT; MARIE, 2001, p. 26). 79 O grifo é meu. A expressão corresponde aos limites e pré-condições da prática estilística e narrativa, e que atuam fortemente no paradigma do problema/solução, interferindo diretamente na formação de uma assinatura pessoal de cada diretor. Desta forma, se olharmos o gênero – e seus repertórios mais ou menos rígidos de convenções – como um limite das práticas estilísticas e narrativas, entendemos por que os críticos assumem o cinema de gênero como um lugar menos provável de se encontrar autoria. No entanto, a política editorial dos Cahiers du Cinéma deixava claro que cineastasautores podiam operar dentro de gêneros fílmicos. Truffaut (2006) afirma que todo cineasta merecedor da alcunha de autor era capaz de introduzir elementos de sua personalidade, estilística e narrativamente reconhecíveis, dentro de qualquer filme: “O verdadeiro talento sobressairá, não importando as circunstâncias”. (STAM, 2003, p. 104). Para resumir: os padrões narrativos e estilísticos recorrentes permitem a um diretor exercer certo grau de autoria, mesmo quando atuando dentro de um gênero. Transformada em “teoria” após tradução ao inglês (TUDOR, 1985, p. 128), a política dos autores acabou distorcida, nos anos 1960, de forma a reforçar a dicotomia excludente entre gênero e autoria. Mas permaneceu a idéia de que o estilo – as soluções estilísticas e narrativas aplicadas por cada diretor para resolver problemas de representação, muitas vezes revisando esquemas dominantes – era o elemento que permitia a harmonização entre os dois conceitos. É o reconhecimento gradual desta afirmação, a partir dos anos 1970, que vai impulsionar o processo de revalorização da obra de Leone. Ademais, as teorias do gênero cinematográfico estão marcadas, também após os anos 1970, pelo conceito de intertextualidade, cujo princípio fundamental é uma espécie de negação a priori da noção de autoria individual (pelo menos no sentido romântico), pois defende que “todo e qualquer texto mantém relação com outros textos e, portanto, com um intertexto” (STAM, 2003, p. 225). A noção de criação intertextual pressupõe a impossibilidade da criação artística a partir do grau zero – e não apenas no cinema, mas em qualquer processo de representação ou narração. Assim, mesmo sem ter consciência, qualquer cineasta estaria construindo seus filmes a partir de certos esquemas – textos, sistemas, códigos e processos de significação – que já existiam antes dele: A intertextualidade interessa-se menos pelas essências e definições taxonômicas que pela “interanimação” processual entre os textos. (...) A intertextualidade é mais ativa, pensando o artista como um agente que dinamicamente orquestra textos e discursos preexistentes. (STAM, 2003, p. 227). 80 A metáfora do “agente” permite aceitar a idéia de autoria dentro do gênero. O processo criativo estaria, nesse caso, não na criação de uma narrativa particular por um cineasta, mas sim na combinação de certos processos estilísticos e narrativos em torno de um tema, que só então ganharia contornos originais: Em oposição à perspectiva da Escola de Frankfurt, do gênero meramente como um sintoma de produção em série massificada, os teóricos começaram a perceber o gênero como a cristalização de um encontro negociado entre cineastas e audiência, uma forma de conciliação entre a estabilidade de uma indústria e o entusiasmo de uma arte popular. (STAM, 2003, p. 148). Desta forma, a inscrição de um cineasta no rol dos autores passou a depender, ao longo dos anos 1970, da maneira como este cineasta era capaz de trabalhar temas, códigos estilísticos e narrativos de maneira mais ou menos original, introduzindo novos elementos dentro do repertório de convenções daquele gênero específico, desde que o repertório de códigos desse mesmo gênero continuasse funcionando. Na prática, para se afirmar como autor, um cineasta trabalhando dentro de um gênero devia, sempre que possível, lidar com os esquemas através dos processos de revisão e síntese. Desta maneira, era possível cunhar assinaturas estilísticas reconhecíveis. Há um parêntese importante aqui. Os processos de significação do cinema, como de resto em todas as artes de massa, necessitam provocar no público certas experiências reconhecíveis. Ressaltando como o repertório de gêneros, se utilizado de maneira simplista, pode “fazer com que o gênero soe como uma ameaça determinista à criatividade”, Graeme Turner (1997, p. 89) observa que o cinema “tem de lidar com o familiar e o convencional mais do que, digamos, a pintura e a poesia”: Nas artes populares, a percepção individual não tem o lugar privilegiado de que desfruta nas formas mais elitistas, como a literatura. Em vez disso, o prazer vem do familiar, do reconhecimento de convenções, da repetição e reafirmação. (TURNER, 1997, p. 89). Bordwell e Thompson concordam com esse raciocínio, observando que a mera repetição de códigos de gênero pode ocasionar, após muitos filmes, um desinteresse por parte do público com relação ao gênero. Eles enfatizam que os gêneros são construções sócioculturais dinâmicas, que mudam com o tempo, e que essas mudanças ocorrem a partir de operações intertextuais que caracterizam procedimentos autorais: Audiências esperam que o filme de gênero ofereça algo familiar, mas também demandam novas variações desse algo. O cineasta pode inventar algo moderada ou radicalmente diferente, mas terá que basear essa mudança 81 na tradição. O jogo interno entre convenção e inovação, familiaridade e novidade, é central para o filme de gênero. (BORDWELL; THOMPSON, 2008, p. 321). Esse raciocínio explicita o diálogo entre gênero e autoria injetado pela noção de intertextualidade, que por sua vez está conectada ao problema do estilo. O paradigma do problema/solução de Bordwell (2009) favorece essa leitura intertextual da dicotomia Gênero X Autoria. A exigência que dará a qualquer cineasta o estatuto de autor é o equilíbrio entre o novo e o familiar. Ou seja, mesmo operando dentro de uma rede de limites e pré-condições, o cineasta será tão mais autor quanto mais conseguir inserir elementos originais na poética do cinema, através do estilo: Há (...) inovação e originalidade nos filmes de gênero, e os melhores exemplos podem atingir um equilíbrio muito complexo e delicado entre o familiar e o original, a repetição e a inovação, a previsibilidade e a imprevisibilidade. Os produtores de filmes populares sabem que cada filme de gênero tem de apresentar duas coisas aparentemente conflitantes: confirmar as expectativas existentes do gênero e alterá-las um pouco. É a variação da expectativa, a inovação em como um roteiro familiar é representado, que oferece ao público o prazer do reconhecimento do familiar, bem como a emoção do novo. (TURNER, 1997, p. 89). Não parece ser coincidência o fato de que foi justamente a partir dos anos 1970, à medida que a teoria do cinema passava a aceitar a possibilidade de autoria dentro do gênero através dos conceitos de estilo e intertextualidade, que o cinema de gênero tenha alcançado um patamar de reconhecimento maior e mais efetivo, a ponto de a valorização do cinema de gênero pelos praticantes da arte cinematográfica ser nomeada por Bordwell (2006, p. 51) como uma das características da continuidade intensificada. Tampouco parece coincidência o fato de que, mais ou menos na mesma época, os filmes de Leone tenham alcançado certo grau de reconhecimento. É de se destacar, entretanto, que esse reconhecimento nunca veio acompanhado do estudo de suas práticas estilísticas e narrativas. Mesmo a pesquisa de Frayling sobre o spaghetti western no princípio dos anos 1980 – uma pesquisa pioneira, marco fundamental no processo de revalorização da obra de Leone – deu mais destaque aos contextos sócio-culturais de produção e recepção do que às práticas estilísticas e narrativas. Há, ainda, um último aspecto que é preciso observar, antes de seguir adiante. A obra de Sergio Leone não despertou reações negativas da crítica apenas por pertencer a gêneros cinematográficos, sobretudo o western. Precisamos lembrar que Leone fazia parte de um ciclo popular, encarado na época como subproduto desprezível que visava apenas o lucro. Se os 82 westerns americanos eram colocados numa categoria inferior em relação ao cinema dito “de arte”, os filmes do ciclo italiano não passavam, para os críticos, de imitações de segunda categoria dessa categoria já inferior – ou seja, eram o subproduto de um subproduto. Essa maneira extremamente negativa de ler o spaghetti western, que pode ser rastreada no discurso da maioria dos críticos dos anos 1960 e 1970, era agravada por dois fatores. Primeiro, o western lidava com a identidade cultural do povo americano; os filmes eram a tentativa mais flagrante de construir uma mitologia própria para uma nação formada essencialmente por imigrantes, e que se ressentia da falta de uma história oral. Em segundo lugar, o spaghetti western era mais um dos diversos ciclos de cinema popular italianos, feito para consumo de massa. O interesse explícito dos produtores no faturamento comercial desses filmes investia frontalmente contra o conceito de arte desinteressada, que Kant (2002) cunhou em 1790 e que constitui o alicerce fundamental da noção romântica de autoria, enraizada na cultura ocidental desde então. Vale a pena relembrar, rapidamente, os fatos históricos. Na Crítica da Faculdade do Juízo, Kant propôs que as Belas Artes deveriam ser necessariamente desinteressadas, tanto do ponto de vista da produção quando da fruição. Para ser bela, a obra de arte teria que ser realizada com objetivos puramente estéticos, e consumida do mesmo modo. A enorme influência de Kant na filosofia do século XIX, e na igualmente influente (no século XX) teoria crítica desenvolvida pelos pesquisadores da Escola de Frankfurt (sobretudo em Theodor Adorno), garantiu que essa noção romântica de arte se entranhasse profundamente em toda a cultura ocidental. Em maior ou menor grau, esta noção está implícita em praticamente todos nós, e incide diretamente na forma como moldamos nosso gosto e nosso juízo de valor acerca do consumo estético. Assim, não é difícil compreender os motivos pelos quais os críticos cinematográficos dos anos 1960 e 1970 desprezaram ou, nos casos mais positivos, minimizaram a importância do spaghetti western e de Leone. Os filmes dele (e dos demais diretores do ciclo) eram recebidos com reservas mesmo antes de serem vistos, pelo simples fato de que eram realizados dentro de um sistema de produção fortemente interessado no lucro. Pouco importava que o cinema sempre tivesse sido uma atividade tão industrial quanto artística. Os diretores do cinema “de arte” recebiam mais atenção e respeito porque faziam filmes cuja preocupação com as finanças era menor. Mesmo relativizada, a recepção reservada atualmente pela crítica cultural aos produtos oriundos da cultura de massa ainda segue esse mesmo princípio. A noção de autoria romântica derivada das proposições de Kant sobre a arte desinteressada continua muito influente. 83 1.5 A análise da fortuna crítica Primeiro pesquisador a examinar a fortuna crítica de Leone no período entre 1964 e 1978, Christopher Frayling afirma que a análise retrospectiva do discurso contido nos textos mostra claramente a tendência à desvalorização prévia dos longas-metragens: Quando os westerns de Leone (...) começaram a ser lançados internacionalmente, foram invariavelmente destroçados pelos críticos. O argumento, repetido com monótona regularidade, era o seguinte: devido ao fato de os westerns feitos em Cinecittà não possuírem raízes culturais na história ou no folclore americano, não passavam de imitações baratas e oportunistas. (FRAYLING, 1981, p. 121). Essa tese toma a fortuna crítica de Leone, organizada por Frayling, como ponto de partida, e a amplia em diversas direções. A compilação de Frayling incluiu, principalmente, textos publicados em revistas da Inglaterra. A ela, acrescentamos críticas divulgadas nos Estados Unidos; um ensaio acadêmico sobre o spaghetti western; opiniões de colegas contemporâneos de Leone sobre os filmes dele; e todas as críticas de filmes de Leone publicadas na revista Cahiers du Cinéma – um total de nove textos entre maio de 1965 e maio de 1972, mais um longo dossiê de 16 páginas que incluiu capa, editorial, crítica sobre Era uma Vez na América e entrevista em formato de perguntas e respostas, na edição 359, datada de maio de 1984. A escolha dos Cahiers teve dois critérios como base. Além de ser a principal publicação de referência entre cinéfilos e críticos de todo o mundo, sobretudo na época em que Leone atou, a revista estava fora do recorte analisado por Frayling. A análise dessa fortuna crítica confirma apenas em parte, o relato de Frayling sobre a existência de preconceito contra Leone. Esse preconceito parece estar efetivamente relacionado à militância de Leone no cinema de gênero e, mais do que isso, à vinculação dele ao ciclo popular italiano que era, então, encarado como mero subproduto, sem valor cultural. O recuo proporcionado pelos anos nos permite enxergar, contudo, um processo gradual de valoração positiva a que Leone foi submetido. Esse processo começou no final dos anos 1960 e continuou ao longo dos anos 1970. Frayling não foi capaz de identificá-lo. Apesar de tudo isso, as conclusões a que Frayling chegou nos proporcionam um excelente ponto de partida para a análise da fortuna crítica de Leone. Ele diz que os críticos construíram um repertório mais ou menos estável de argumentos, que apareciam, com variados graus de ênfase, em praticamente todas as críticas: 84 Os filmes eram gratuitamente violentos, e seus personagens apresentavam uma obsessão recorrente relacionada a dinheiro; as trilhas sonoras soavam em volume excessivo, e as letras eram indecifráveis; os orçamentos eram claramente baixos, algo denunciado pelos cenários franzinos, por variações no processo de coloração e por imperfeições técnicas no processamento de imagens pelo sistema Techniscope; as atuações dos italianos eram toscas e histriônicas, e as dos norte-americanos lacônicas, inexpressivas ou simplesmente inexistentes; em resumo, o público era submetido ao mesmo tipo de hipérbole cinematográfica barata e suja que havia se tornado marca registrada dos mini-épicos ‘sandália-e-espada’ de Cinecittà. (FRAYLING, 1981, p. 121). O trecho sintetiza o que os críticos pensavam sobre os filmes de Leone em meados dos anos 1960. Vamos analisar cada argumento, mas de início é significativo notar um paradoxo. Embora o cinema de gênero fosse encarado como menos importante, os críticos emitiam julgamentos de valor sobre os spaghetti westerns baseados no grau de obediência aos esquemas que constituíam o repertório do gênero em sua vertente americana (supostamente superior). Assim, se os diretores italianos não replicavam os esquemas desenvolvidos nos Estados Unidos, isso tornava esses filmes automaticamente inferiores àqueles. O raciocínio era claro: cineastas europeus estavam mais interessados no lucro do que na criatividade. Muitos críticos percebiam que Leone propunha uma revisão narrativa e estilística dos esquemas do western. Mas esse processo de releitura crítica do gênero era desprezado. Dentro da pesquisa de Frayling, um bom exemplo do primeiro argumento, que protestava contra a representação gráfica da violência, aparece numa entrevista realizada pelo roteirista Burt Kennedy com John Ford. Kennedy pediu uma opinião sobre o spaghetti western. Ford disse não ter idéia de que westerns eram realizados fora dos Estados Unidos, e devolveu a pergunta: “Nenhuma história, nenhuma cena. Só matança – 50 ou 60 mortes por filme” (KENNEDY apud FRAYLING, 1981, p. 35). A questão da violência representada de forma gráfica reaparece insistentemente nos textos dos anos 1960 – e com maior ênfase nas críticas publicadas nos Estados Unidos. Algumas delas era muito agressivas. No programa de TV Today Show, exibido rede NBC, Judith Crist fazia resenhas curtas (também publicadas no guia semanal da emissora, e reunidas num livro em 1974). Ela foi uma das mais duras críticas de Por um Punhado de Dólares: “Essa porcaria de 99 minutos só serve para espectadores com pendor por lixo sangrento” (CRIST, 1974, p. 211). A violência ofendia a moral puritana dos americanos; um filme a que exibisse não podia ser bom. Em tom mais irônico, o influente crítico do New York Times também condenou o mesmo recurso: 85 A grande novidade do filme é a quantidade abundante de episódios espetacularmente violentos. Sergio Leone (...) o povoou com generosos respingos de sangue, inclusive um homem gordo sendo esmagado por um barril, um pelotão inteiro de soldados massacrados, e buracos de bala jorrando sangue. Por fim, o anti-herói é espancado até virar uma massa sangrenta sem vida, da qual ele milagrosamente se recupera para matar seus espancadores. (CROWTHER, 1967). Bosley Crowther foi além de chamar o protagonista de anti-herói. Ele também ironizou o perfil do personagem, reclamando de sua amoralidade: É notável que o gringo esbelto que cavalga para San Miguel e virtualmente dizima a população da área antes de ir embora não é, de maneira alguma, devotado à justiça ou a ajudar os bons contra os maus. Ele é um pistoleiro cínico e frio cujo único interesse reside em se apropriar do que houver por lá de valioso. (CROWTHER, 1967). O perfil do herói, como a violência representada com realismo gráfico, era uma revisão estilística operada por Leone. Nos dois casos, como já vimos, inclusive, a rejeição de Hollywood tinha também um limite cultural imposto aos diretores: o sistema de autocensura, criado para evitar boicotes da parcela mais conservadora da população americana, representada por organizações como a Liga Americana da Decência 18. Num primeiro momento, essa revisão estilística foi interpretada como uma violação dos princípios morais que permeavam os westerns americanos. Essa reação negativa aparecia até nos textos que enxergavam algo positivo em Leone, como confirma a resenha que o crítico da Time, Stefan Kanfer, escreveu sobre Três Homens em Conflito, fazendo uma brincadeira bem-humorada com o título original (The Good, The Bad and the Ugly, ou O Bom, o Mau e o Feio): Bom é o trabalho de câmera de Leone, que combina cor e composição, com atenção afiada para detalhes de forma e textura, mais disponíveis nas filmagens em locação do que em estúdio. Má é a palavra para as atuações inexpressivas e para o vício de Leone no humor de histórias em quadrinhos. E Feio é o insaciável apetite por espancamentos e mutilações, com close-ups extremos de rostos amassados e grunhidos de morte nos efeitos sonoros. (KANFER, 1968). Esta última observação de Kanfer também está entre os argumentos elencados por Frayling. A trilha de áudio dos filmes de Leone era criticada pelo volume dos efeitos sonoros, pelos silêncios e pelos arranjos musicais com guitarra elétrica. De novo, os críticos reclamavam de revisões estilísticas que violavam o repertório de esquemas do gênero. Tanto 18 A National Legion of Decency foi fundada em 1933, por arcebispos da Igreja Católica, para combater filmes que, na visão da população conservadora, incentivavam a corrupção moral dos jovens. 86 os ruídos amplificados quanto a música acabariam se tornando elementos da continuidade intensificada. Trevor Blount, na revista Kinema, reclamou: Uma peça de merchandising como Por um Punhado de Dólares, com matanças rituais, silêncios intermináveis e música de fundo estridente, tem se caracterizado mais ou menos como uma paródia. (...) Os filmes de Sergio Leone revelam uma falta de raízes que desidrata tudo o que vemos. (BLOUNT apud FRAYLING, 1981, p.122). Um aspecto muito evocado pelos críticos dizia respeito à falta de acuidade histórica da música dos spaghetti westerns, já que as canções dos pioneiros no século XIX pouco ou nada tinham a ver com a música que se ouvia nesses filmes italianos. Ocorre que não era menos verdade que a representação musical do Velho Oeste verdadeiro, oferecida pelos filmes americanos, também nada tinha de realista. Os vaqueiros que viajavam por estados como Texas e California no século XIX usavam violino caipira e berimbau de boca. Instrumentos como violão, acordeão, piano e gaita, que protagonizam os arranjos da maioria das canções ouvidas nos westerns norteamericanos, foram instrumentos introduzidos na cultura daquele país apenas na virada entre os séculos XIX e XX, portanto num período posterior àquele em que está ambientada a ação dramática da maior parte dos westerns (BERCHMANS, 2006, p. 75). O argumento relacionado ao reaproveitamento de cidades cenográficas também não faz sentido, já que muitos westerns importantes dos anos 1950 (como os filmes de Budd Boetticher e Anthony Mann) foram feitos em cenários erguidos dentro nos estúdios de Hollywood para produções maiores, e posteriormente reutilizados. Além disso, o realismo grotesco do desenho de produção não apenas tinha mais a ver com a realidade do Velho Oeste como também se tornaria um importante elemento da continuidade intensificada, através de prática do worldmaking, a partir dos anos 1970. Mas, na época, os críticos entendiam essa prática estilística como uma violação dos esquemas do western americano. Escrevendo sobre Por uns Dólares a Mais, David McGillivray expressou essa indignação na revista Films & Filming (1965): Não consigo entender o apelo dessa abordagem ultra-ingênua, com cores pútridas e atores agitados que se contorcem como vermes, fazendo posturas e expressões faciais cuja intenção nem eles mesmos devem compreender. (MCGILLIVRAY apud COX, 2009, p. 70). Como se vê, outro argumento usado pelos críticos estava relacionado às atuações. Não havia meio termo: os atores eram exagerados, como aponta McGillivray, ou inexpressivos, 87 opinião de Kanfer. Ainda que se concorde com certa irregularidade no padrão de atuações, existem vários fatores que podem explicá-la. O modo de produção (que só permitia duas ou três tomadas de cada cena) é um deles. O fato de os atores serem de diferentes nacionalidades e falarem línguas diferentes nos sets, sendo dublados posteriormente em estúdio, as reforça. O caráter taciturno dos heróis de Leone também tem uma relação direta com a aparente inexpressividade – a caracterização psicológica dos personagens como homens frios exigia atuações assim. E pode-se perfeitamente enxergar a influência da ópera e da commedia dell’arte como influência na caracterização dos vilões. A economia de palavras por parte dos heróis de Leone foi discutida entre o diretor e o ator que deu vida a vários desses heróis, Clint Eastwood. O último lembraria depois que o roteiro original de Por um Punhado de Dólares tinha mais diálogos, e que ele próprio sugeriu a Leone reduzir as intervenções verbais do personagem (EASTWOOD, 2008, p. 214). Isso fazia o herói ganhar em mistério, parecendo mais confiante e perigoso. A caracterização taciturna foi, assim, repetida e até intensificada nos westerns seguintes de Leone. Outra argumentação dos críticos evocava o ciclo anterior do cinema popular italiano – os pepla – para explicar como havia nascido a tendência à ostentação de recursos estilísticos. Ocorre que esse modo retórico de filmar era comum também entre os diretores modernistas europeus (elogiados pelos mesmos críticos), além de evocar a poética da continuidade intensificada de Bordwell, exacerbada por Leone e gradualmente adotada por muitos outros cineastas ao redor do planeta. Ironicamente, como podemos ver, boa parte da argumentação construída para desqualificar os filmes de Leone consistia em identificar, de modo apressado, determinados recursos estilísticos e narrativos que divergiam das soluções para problemas propostos pelos cineastas americanos, atribuindo valor negativo à revisão ou síntese desses recursos, pelo simples fato de que elas se afastavam do repertório de códigos do gênero que constituíam os esquemas dominantes de representação. Alex Cox (2009), que era adolescente quando os spaghetti westerns começaram a ser lançados na Inglaterra, oferece um testemunho demonstrando que, muitas vezes, os mesmos motivos pelos quais a crítica considerava um filme ruim eram aqueles que faziam o público lotar as salas de projeção: Quando os westerns italianos apareceram pela primeira vez na Inglaterra e nos Estados Unidos, foram imediatamente arrasados; eles eram considerados ralé demais, até mesmo para os padrões da baixa cultura! Foram acusados de serem misóginos e gratuitamente violentos – coisas que eles definitivamente eram! (COX, 2009, p. 9). 88 Ele associa a estética da hiper-violência dos spaghetti westerns ao “ambiente de violência arbitrária” (COX, 2009, p. 10) que a sociedade ocidental experimentava. A segunda metade da década de 1960, convém lembrar, foi a época da política intervencionista norteamericana na América Latina e da repressão soviética a levantes na antiga Tchecoslováquia; enquanto isso, “a televisão exibia documentários sem fim sobre as duas guerras mundiais e notícias de última hora sobre o Vietnã” (COX, 2009, p. 10). O universo ultra-violento e amoral dos spaghetti westerns podia ser lido, de certa forma, como um espelho fraturado do ambiente sócio-cultural daqueles tempos: Violência – arbitrária, do tipo que aparecia a qualquer instante do seu lado – parecia ser a norma [na sociedade ocidental]. E quando uma série de filmes que exalava uma atmosfera de violência arbitrária, incessante, insana, quase juvenil apareceu, todos os jovens fomos fisgados – ainda mais considerando que os filmes pareciam irritar o establishment cultural. (COX, 2009, p. 10). Uma crítica minuciosa que sintetiza toda a argumentação negativa dos críticos pode ser encontrada no longo ensaio de Eduardo Geada dedicado ao spaghetti western (1978). Pelo rigor da análise acadêmica escrita por Geada, que ultrapassa o caráter ligeiro dos textos publicados nas revistas especializadas, o relato constitui um dos mais detalhados exemplos do discurso depreciativo elaborado pela crítica em relação ao trabalho de Leone. Por isso, escolhemos este estudo para analisar em profundidade a argumentação que desqualifica as práticas narrativas e estilísticas de Leone. O autor inicia o ensaio decretando que o spaghetti western é uma forma menor de cinema, um “cinema oposto a qualquer mercadoria formal, um cinema de puro divertimento, mercadoria rentável por excelência” (GEADA, 1978, p. 21). A definição de cinema “popular” (assim mesmo, entre aspas), que está no centro da crítica de Geada, é particularmente expressiva de suas intenções depreciativas: O cinema “popular” de grande consumo é, por definição e por exigências industriais óbvias, um cinema de estereótipos, isto é, um cinema industrial de protótipos que são todos do mesmo tipo. (...) O que faz o sucesso renovado do spaghetti western, como de qualquer outra variante do cinema dito popular, do melodrama ao filme policial, é a repetição sistemática dos códigos, a utilização exaustiva da mesma retórica visual e sonora, da estrutura narrativa instituída. Assim, em cada filme, o espectador sente o prazer de reconhecer as regras do jogo a que se habituou – porque foi habituado – a gostar. (GEADA, 1978, p. 21). 89 A análise de Geada usa a dicotomia Gênero X Autoria para proclamar a primeira categoria como inferior. Ora, o faroeste (assim como o thriller, o filme de horror, o melodrama, a comédia, o musical e qualquer outro gênero fílmico) só funciona, junto à audiência, quando a construção narrativa e estilística inclui certos elementos pinçados de um repertório de convenções previamente conhecido pelo espectador. Já vimos isso: cada um dos gêneros tem seu próprio repertório de códigos, e nenhum diretor que opera dentro de um gênero pode fugir inteiramente desse repertório. Muitos desses códigos são aquilo que Geada denomina, pejorativamente, de “estereótipos” ou “protótipos”. Quando se refere a estereótipos, protótipos e tipos, o autor português está usando um vocabulário oriundo da semiologia e referindo-se ao conjunto de códigos do western. Mas ele usa os três termos como sinônimos, o que enfraquece sua análise. Apesar de serem “palavras vizinhas” (CHATEAU, 2006), elas não devem ser confundidas, sob pena de provocar um desvio considerável nas intenções originais do autor. Para evitar essa confusão, vamos trabalhar com definições específicas: “O estereótipo seria um tipo estável ou fixo; o protótipo seria o primeiro exemplar que estabeleceria uma série de tipos; e o arquétipo seria o tipo original ou a origem de um tipo” (CHATEAU, 2006). O autor nos lembra que “essas definições não lhes retiram completamente a ambigüidade” (CHATEAU, 2006), mas será Geada as utiliza com o rigor metodológico necessário? O termo “estereótipo”, na História da Arte, tem relação com a representação de determinada realidade sócio-histórica que, apesar de compreendida como verdadeira, não passa de uma construção histórica sem raiz na realidade concreta (LANGER, 2004). Para a História da Arte, estereótipos são representações que tomamos como verdadeiras, mas que nasceram e se perpetuaram através de um circuito sócio-histórico de representações sem relação direta com a realidade histórica. Embora esta noção de estereótipo seja perfeitamente aplicável ao western (a figura icônica do caubói, vestido com calças jeans apertadas e camisas quadriculadas e coloridas, já representa um desvio considerável da realidade histórica do personagem), não nos parece que seja este o sentido aplicado por Eduardo Geada ao termo. Ele dá à palavra um uso claramente negativo, que parece apontar para outro conceito: “O protótipo de um automóvel deve ser reproduzido exatamente a cada nova realização” (CHATEAU, 2006). Um cinema de protótipos, portanto, seria um cinema em que os filmes são todos idênticos, construídos como carros em uma linha de montagem. É preciso lembrar que o cinema de gênero trabalha com muitos níveis de estereótipos, e isso não é um procedimento intrinsecamente negativo. Buscombe (2004) nos lembra que um 90 diretor que faz filmes de gênero não pode excluir todo o repertório de códigos deste gênero. Quem pode imaginar um western cuja ação não se passe no oeste norte-americano? Um western que não tenha caubóis, pistoleiros, cavalos e revólveres? Um western que não inclua na narrativa um duelo ou tiroteio, ou pelo menos a expectativa de um episódio violento? Esses são alguns dos códigos dos esquemas do western. Gêneros fílmicos, por definição, funcionam a partir desses códigos. Eles são atalhos usados pelos diretores para contar a história. Nesse sentido, mesmo se a análise de Geada estiver correta, sua intenção é duvidosa. Afinal de contas, o western clássico – que gerou cineastas como John Ford, cuja obra o crítico defende como uma forma de cinema superior – também foi construído a partir de códigos fílmicos anteriores ao diretor. Em relação aos filmes de Leone, Geada demonstra ter perfeita consciência do processo de releitura crítica que Leone levou a cabo. O último não se resumiu a replicar estereótipos. Ele revisou os esquemas circulantes disponíveis, muitas vezes através de procedimentos narrativos e estilísticos – por exemplo, o alusionismo e o pastiche – que só vieram se tornar estereótipos depois de Leone. Utilizando nove fotogramas retirados de filmes representativos do gênero (a maioria dirigida por Leone), o português enumera nove “estereótipos” que considera fundamentais para as práticas narrativas e estilísticas dos cineastas do spaghetti western. Ele as analisa detidamente, com o objetivo de realizar uma “desconstrução ideológica do lugar-comum cinematográfico” (GEADA, 1978, p. 22). Vale a pena discutir a interpretação negativa que Geada faz desses procedimentos, além da associação entre cada ferramenta e a poética da continuidade intensificada. Estes são os códigos: (1) O herói individualista, acompanhado de um cavalo e uma pistola como extensões do próprio corpo, habita o cenário clássico do western – o deserto –, que é mostrado em poucas tomadas, e raramente em planos gerais, para evitar que o público reconheça no cenário uma “autenticidade duvidosa” (GEADA, 1978, p. 22); (2) A insistência com que os diretores do western europeu incluem cenas que se passam em saloons, abusando de enquadramentos “exóticos”, com uso freqüente de câmera subjetiva e com a presença maciça de jogadores profissionais nos cenários; (3) O carinho especial que o herói demonstra para com sua arma, a partir da inclusão de seqüências em que este a limpa (o que Geada chama de “ritual de adoração”), bem como o uso freqüente de carabinas em lugar das pistolas; (4) A presença de metralhadoras automáticas em vários filmes, embora essa arma de guerra se tenha popularizado num período histórico posterior – especificamente durante a 91 Primeira Guerra Mundial (1914-1918) – ao recorte temporal em que a maioria dos westerns italianos se desenrola. Geada vê a metralhadora como um instrumento narrativo inserido na diegese sem qualquer razão narrativa ou justificativa histórica, apenas para justificar uma violência de cunho mais espetacular; (5) A multiplicação das situações violentas (duelos, emboscadas, lutas, assaltos, etc.) como forma de transformação de uma circunstância excepcional num momento cotidiano, de forma que “a passagem do banal para o excepcional se efetue sem interrogações” (GEADA, 1978, p. 27) por parte do espectador; (6) A alta freqüência das cenas envolvendo lutas corporais, sem o uso de armas, como forma de exaltar a superioridade física do herói, que sempre ganha esses embates; (7) A pouca importância da mulher nos enredos dos filmes, a não ser como “ornamento erótico que vem nos lembrar, eventualmente, o desejo e a virilidade do herói” (GEADA, 1978, p. 28); (8) O deslocamento do duelo – momento culminante que quase sempre finaliza o enredo de um western norte-americano – para o início ou para o meio da ação dramática, o que implica na “redução de todas as motivações da luta, sejam elas de caráter moral, social ou político, a um combate individual” (GEADA, 1978, p. 30); (9) Utilização do cenário revolucionário da fronteira mexicana, característico da terceira fase no spaghetti western, com a mera função de “fornecer ao filme um cenário exótico de violência” (GEADA, 1978, p. 31). Esses são os nove argumentos utilizados por Geada para construir sua tese, que consiste no seguinte: os filmes do ciclo de spaghetti western oferecem ao espectador uma experiência estética inferior à sua contraparte norte-americana, porque não têm qualquer tipo de preocupação histórica, utilizam recursos de estilo e narrativa de modo retórico e exagerado, com o intuito de bloquear o senso crítico do espectador e, assim, viabilizar o objetivo primário de seus diretores e produtores, que é o lucro financeiro. Considerando que nossa pesquisa se refere à obra de Sergio Leone – e não ao ciclo do spaghetti western como um todo –, vamos analisar esses argumentos um a um. O primeiro argumento insiste no fato de que o herói do spaghetti western está sempre acompanhado de um cavalo e uma pistola, sendo esta imagem intrinsecamente negativa. Cavalos e pistolas são “estereótipos” que vulgarizam o gênero. Geada parece esquecer que já era assim no western americano. Cavalos e revólveres estão entre os códigos inescapáveis do western; fazem parte da iconografia característica do gênero, são elementos que inscrevem o filme dentro de sua categoria genérica. Nos filmes de John Ford e Howard Hawks – diretores 92 citados por Geada como exemplos superiores do gênero – o herói sempre usou o cavalo como meio de transporte e carregou pistolas. O uso desses códigos não desqualificava as produções americanas; porque haveria de desqualificar o ciclo popular italiano? Geada também afirma que os diretores de spaghetti westerns evitavam o uso de planos gerais do deserto para evitar a questão da “autenticidade duvidosa” da paisagem. Nesse ponto, a análise dele é três vezes equivocada. Primeiro: Leone e outros diretores italianos mantiveram, sim, um dos motivos visuais mais característicos do western, que é o uso de tomadas panorâmicas de cavaleiros inseridos na paisagem do deserto. Em segundo lugar, se Geada está correto ao identificar o uso menos freqüente de planos gerais nos filmes de Leone, seu julgamento negativo em relação a este procedimento não parece ter sido assim considerado pelos diretores – inclusive norte-americanos – que emergiram a partir da década de 1970. A tendência de fragmentar o espaço fílmico, aproximando a câmera dos rostos dos atores, passou a ser replicada por muitos cineastas na década seguinte, inclusive norte-americanos, a ponto de se tornar um recurso associado aos esquemas dominantes da continuidade intensificada. Em terceiro lugar, a questão da autenticidade da paisagem do deserto espanhol (onde a maior parte dos longas-metragens era filmada) é facilmente rebatida através da análise da diegese. Embora seja uma diferente do deserto presente em estados como Califórnia, Nevada e Arizona (onde o solo é mais arenoso, possui tons avermelhados e oásis com vegetação mais exuberante, ao contrário da Espanha, onde o solo de barro predomina, a vegetação é rasteira e pontuada de cactos), a paisagem é diegeticamente justificada, já que a ação dramática mostrada nesses filmes se situa quase sempre na fronteira entre Estados Unidos e México, em estados como o Texas. Nesta região, a paisagem natural é parecida com o deserto espanhol. O segundo argumento de Geada diz respeito à maciça quantidade de cenas que se passam em saloons, associada às aparições freqüentes de jogadores profissionais e ao uso da câmera subjetiva. Geada acerta na descrição, mas oferece uma interpretação discutível. Ele retém uma convenção de gênero e considera o uso exagerado dessa convenção como procedimento estilístico desprezível. Nos westerns norte-americanos, como nos lembra Edward Buscombe (2004, p. 307), o saloon também é um cenário recorrente; além disso, é quase sempre mostrado como um ambiente hostil ao herói, onde a violência está prestes a explodir, o que ocorre de fato em filmes como Minha Vontade é Lei (Warlock, Edward Dmytryk, 1959), Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, Howard Hawks, 1959) e muitos outros. Nesse último vemos, também, um exemplo do uso da câmera subjetiva como recurso de estilo que sugere ao espectador a presença de um vilão prestes a atacar. Esta foi uma 93 ferramenta desenvolvida por diretores associados ao film noir, nos anos 1940, e que passou a integrar os esquemas cinematográficos em geral, extrapolando em muito o western. Até hoje, a utilização de ângulos subjetivos sinaliza ao espectador a presença de alguém à espreita. A eficiência narrativa da cena em que John Wayne e Dean Martin procuram um pistoleiro dentro de um saloon, em Onde Começa o Inferno, depende fortemente desta função narrativa da câmera subjetiva. E o filme de Howard Hawks é tido pelo próprio Geada como um dos melhores exemplares do western. O que Leone fez foi simplesmente ampliar – ou melhor, intensificar – o uso do recurso. O terceiro item de Geada diz respeito às armas. Este é outro código fundamental do western americano (BUSCOMBE, 2004, p. 307). Toda a ação dramática de Winchester 73 (Anthony Mann, 1950), para citar apenas um exemplo, gira em torno de um exemplar do a que se refere o título. Buscombe observa que a preocupação do herói com sua arma é diegeticamente explicável, e tem ligação direta com o primeiro argumento de Geada: o herói do western, que convive com a expectativa sempre próxima da violência, depende do bom funcionamento da arma para permanecer vivo. Nesse ponto, os filmes de Leone nos dão a oportunidade de examinar uma revisão estilística recorrente nele. Esse procedimento consistia em isolar um código específico do western e explicitá-lo através de uma retórica inflamada, no limite da ostentação. Os heróis de Leone, de fato, se preocupam com suas armas. O Coronel Mortimer de Por uns Dólares a Mais limpa o arsenal de rifles e revólveres desmontáveis, que carrega consigo, todas as noites. Há duas longas cenas que mostram pistoleiros limpando armas em Três Homens em Conflito. Ocorre que isso é natural dentro do mundo hiper-violento habitado por esses personagens. O terceiro item de Geada se confunde com o quarto, quando ele aponta o uso freqüente de carabinas e metralhadoras. Geada percebe uma das características centrais do spaghetti western, que é a crescente mecanização do herói, o domínio que ele detém sobre a tecnologia – característica fundamental para estabelecer sua superioridade frente aos adversários. Sua leitura, porém, enfatiza o caráter moral dessa supremacia tecnológica: armado com carabinas e metralhadoras, o herói está apto a eliminar o vilão sem ser ameaçado por ele, já que possui armas capazes de atingi-lo a uma distância segura, sem que este tenha chance de revidar. Neste ponto, o crítico português questiona indiretamente outra diferença proposta pelo spaghetti western, em relação ao western clássico: a mudança da personalidade do herói. Este já não obedece ao código moral dos westerns de Hollywood, em que o protagonista recusa a violência, a não ser em último caso. 94 Ocorre que o herói do faroeste italiano, como já vimos, tem de fato um perfil diferente. É amoral, violento e individualista; reflete um comportamento sócio-cultural cada vez mais comum na sociedade ocidental hedonista dos anos 1960. A mudança no perfil do herói consiste em outra contribuição de Leone à continuidade intensificada. Ao retirar os filmes do contexto de produção, Geada deixa de perceber que essa alteração no perfil do herói como sintoma de uma mudança sócio-cultural mais ampla: O anjo vingador não está tentando provar que os vilões estão errados, salvar a população ou resgatar a mocinha. Ele está lá tentando obter algum lucro pessoal; como seria de se esperar, ele acaba recebendo sua recompensa, não um beijo ou um aperto de mãos, mas uma sacola cheia de dólares ou uma caixa contendo um tesouro. O spaghetti western era a epítome da geração estilo EU louvando um herói estilo EU. (BETTS, 1992, p. xii). Em sua crítica, Geada também argumenta que a posse de carabinas e metralhadoras dá aos cineastas de spaghetti westerns a oportunidade de exibir mais violência na tela, muitas vezes injustificada. O recuo de três décadas nos ajuda a mostrar, de todo modo, que a representação cada vez mais gráfica da violência consiste em parte incontornável dos esquemas da continuidade intensificada. Esse raciocínio nos leva ao quinto argumento: a multiplicação das situações de violência. Geada reconhece nos spaghetti westerns uma recorrência maior de duelos e tiroteios, que reaparecem na trama a cada intervalo de 10 ou 15 minutos. A comparação entre títulos italianos com westerns realizados nos EUA até o final da década de 1950 mostra que isso é fato. Em obras como Os Brutos Também Amam (1953) ou O Homem que Matou o Facínora (1962), a violência é esperada durante todo o filme, mas só se manifesta esporadicamente – uma ou duas vezes, quase sempre com o objetivo de apresentar ao espectador a habilidade extraordinária do herói com uma arma – antes do duelo final. Christopher Frayling afirma que os detratores do spaghetti western citavam essa característica consistentemente quando falavam mal dos filmes de Leone, e tinham até uma explicação sócio-histórica para ela: Os críticos (...) observaram que a experiência de Leone (...) como diretor de segunda unidade acabou levando-o a valorizar as seqüências de ação até um ponto em que o diálogo quase não importava. (FRAYLING, 2005, p. 16). Como se sabe, diretores de segunda unidade costumam comandar cenas de ação física que exigem pouco esforço interpretativo dos atores. Portanto, o argumento tem certa lógica. O treinamento de Leone como diretor assistente pode, de fato, ter exercido o papel de précondição da criação dessa característica narrativa dele. 95 Por outro lado, também é possível considerar que o procedimento narrativo de inserir seqüências de ação a cada intervalo de 10 ou 15 minutos estava em consonância com o processo de aceleração do ritmo dos filmes, em curso a partir do início dos anos 1960 em toda a cinematografia ocidental. A média de duração de um plano, nos anos 1960, era de dez segundos (SALT, 2009, p. 280); esse número foi consistentemente acelerado ao longo das décadas seguintes, até chegar a quatro segundos em 2003 (SALT, 2009, p. 378). Há filmes, como Cidade das Sombras (Dark City, Alex Proyas, 1998) com média abaixo de dois segundos. Esses últimos são exceções. Ademais, esse processo de aceleração não passava apenas pela duração menor dos planos, já que as próprias cenas, como um todo, também se tornaram mais curtas e movimentadas, durando em média três minutos cada (BORDWELL, 2006, p. 57). Leone foi um dos diretores que iniciou esse processo de aceleração da narrativa, depois tornado global. Ele estava, então, revisando a vertente da construção narrativa em larga escala, num processo que foi retomado por muitos outros cineastas posteriores. O sétimo argumento é a pequena importância da figura feminina. Geada está correto. Mas essa observação se aplica a todo o western, e não apenas aos filmes italianos: Dentro dos filmes [de western] foi sempre assim: um pequeno cardápio de estereótipos femininos (mãe, professora escolar, prostituta, dançarina de salão, rancheira, índia, bandida) que não se equiparava à realidade. (...) Numa tentativa de explicar isso, muitos críticos associam esse papel secundário da mulher no western como uma grande narrativa baseada numa busca masculina por uma identidade nacional e sexual que marginalizou as mulheres. (BUSCOMBE, 1988, p. 240). O penúltimo tópico da argumentação diz respeito ao deslocamento dos duelos, que tradicionalmente ocorriam no final das películas, para o início ou o meio da ação dramática. Esse procedimento, para Geada, retira da cena de confronto suas motivações sociais e políticas. Ele deixa de perceber que um duelo no início do filme, do ponto de vista narrativo, tem uma função dramática diferente de um duelo no final: o primeiro funciona como exposição (quem é o herói, qual a sua personalidade, etc.), enquanto último tem a função de resolver o conflito central da ação dramática. Nesse ponto, é importante chamar a atenção para o modo como Geada perde de vista o caráter intertextual desta mudança da posição do duelo dentro da ação dramática. O filme que ele usa como exemplo, Era uma Vez no Oeste, começa com um duelo (cuja função narrativa é apresentar o herói à audiência). Mas o mesmo filme termina do modo tradicional, com outro duelo – um confronto clássico entre herói e vilão. Ou seja, não se trata do deslocamento de 96 uma cena dentro da estrutura narrativa, mas de um jogo intertextual com outros westerns: uma releitura crítica, uma revisão do esquema (feita nesse caso através da chave da ironia e da paródia). Ou seja, é uma maneira de revisar um código de gênero e inscrever, através desse procedimento, uma marca estilística pessoal – nesse caso, autoral – dentro dele. De fato, Geada reclama de todas as alterações efetuadas nos esquemas narrativos do western clássico. Ele parte do pressuposto segundo o qual um filme seria melhor se seguisse rigidamente os esquemas dominantes do gênero. Essa asserção contradiz um dos pressupostos do autorismo, segundo o qual o estilo é a maneira de o cineasta inscrever elementos autorais dentro de um filme de gênero. Então, se usarmos o autorismo como eixo teórico para ler criticamente a argumentação de Geada, a maioria dos argumentos elencados para desvalorizar o spaghetti western podem ser invertidos, passando a atribuir ao ciclo valor positivo, já que, ao operar um jogo intertextual com os esquemas narrativos do western, revisando-os (quase sempre em direção à continuidade intensificada), Leone e outros diretores italianos estariam inscrevendo marcas autorais dentro do gênero, através da releitura crítica. Mas Geada, preocupado em provar que o spaghetti western tem menos valor do que o americano, perde o raciocínio de vista. Por fim, o nono argumento diz respeito ao uso do cenário histórico da Revolução Mexicana como cenário de vários filmes do ciclo italiano, inclusive Quando Explode a Vingança, de Leone. Novamente, se a descrição de Eduardo Geada corresponde à realidade, sua interpretação dela – a noção de que a Revolução Mexicana é irrelevante para os enredos dos filmes, fornecendo somente um pano de fundo exótico para a ação violenta dos personagens arquetípicos do ciclo – nos parece fortemente tendenciosa. Já vimos antes que toda uma vertente político-ideológica do ciclo popular italiano nasceu do envolvimento de roteiristas e diretores filiados ao Partido Comunista. Esses cineastas só aceitavam trabalho em Cinecittà porque tinham dificuldade em conseguir financiamento para filmar enredos políticos contemporâneos. Dessa forma, ambientar a ação dramática no cenário da Revolução Mexicana era, para roteiristas engajados como Franco Solinas – escritor de filmes políticos como A Batalha de Argel (La Battaglia di Algeri, Gillo Pontecorvo, 1966) –, muito mais do que fornecer um cenário exótico para um western popular. Esses diretores queriam contrabandear temas políticos para dentro de filmes com grande alcance popular, fazendo um público massivo consumir ideologia esquerdista infiltrada no subtexto dos filmes. Ao analisar com profundidade a mitologia do spaghetti western, a maior contribuição de Geada à estratégia consciente que ele elabora para excluir o ciclo da historiografia 97 cinematográfica se dá na articulação de três premissas: falta de contextualização histórica, representação espetacular da violência e reprodução em série de fórmulas narrativas. Ele vê na espetacularização da violência – segundo ele, instituída como característica formal (e, portanto, “estereótipo”), desvinculada de seu contexto histórico e esvaziada de significado – um sintoma da falta de raízes culturais dos filmes pertencentes ao ciclo italiano: Desenraizado de qualquer referência histórica precisa, o spaghetti western viu-se condenado a utilizar apenas a estrutura mitológica do western clássico e a perpetuá-lo pelo único meio a seu dispor: a retórica. É por isso que os personagens do spaghetti western se podem permitir todas as liberdades possíveis e imaginárias, circular num tempo e num espaço indefinidos, porque eles não são já os legítimos representantes de um nacionalismo descomunal, mas, muito simplesmente, os herdeiros tardios de um paraíso cinematográfico tão lucrativo quanto narcisista. (GEADA, 1978, p. 33). Na verdade, Geada nos está dizendo o seguinte: o que há de realmente ruim no faroeste italiano não está nos filmes em si, mas no fato de seus diretores não representarem de forma legítima o contexto histórico ao qual estão vinculados, constituindo-se apenas em estrangeiros visitando um cenário que não lhes pertence, por razões basicamente comerciais. E se esses filmes fazem comércio, não podem ser arte. A noção de arte desinteressada de Kant está fortemente presente aqui. Além disso, é significativo perceber também que, se Geada evoca a necessidade de exame do contexto histórico do momento da produção dos filmes como prerrogativa para sua qualidade estética, ele também despreza, convenientemente, a importância de se levar em conta o contexto de circulação e consumo dessas mesmas obras. 1.6 Cineastas, intelectuais e os Cahiers du Cinéma Alguns cineastas (inclusive americanos) e intelectuais oriundos da literatura também escreveram sobre o spaghetti western, oferecendo abordagens diferentes em relação à obra de Sergio Leone. Depois de assistir a Por uns Dólares a Mais, o veterano Anthony Mann invocou o argumento da falta de raízes culturais para criticar o cinema de Leone. Para Mann, o filme “esquecia do verdadeiro espírito do Velho Oeste”: Nós [diretores norte-americanos] contamos histórias de homens simples, não de assassinos profissionais; homens simples, levados à violência pelas circunstâncias. Num bom western, os personagens têm uma trajetória com começo, meio e fim. Eles lutam pela vida no decorrer dessa trajetória. Já os personagens de Por uns Dólares a Mais encontram apenas o lado negro da vida ao longo do caminho. Homens maus, grotescos. Meu Deus, e aqueles rostos?! Um ou dois close-ups tudo bem, mas 24?! É demais! Os tiroteios a cada cinco minutos revelam o medo do diretor de entediar a 98 platéia, porque elas não têm um personagem consistente a seguir. Numa ficção, você não pode incluir mais do que cinco ou seis minutos de suspense, pois o diagrama de emoções deve ser crescente, não essa narrativa que parece o eletrocardiograma de um doente cardíaco. (MANN apud WAGSTAFF, 1992, p. 245). A crítica de Mann talvez seja a mais lúcida de todos os impropérios dirigidos a Leone no período. Ele combina, num trecho relativamente curto, ataques ao tratamento que Leone deu às três vertentes da poética do cinema. Na temática, Mann rejeita o perfil individualista e violento dos heróis do spaghetti western, criticando a amoralidade da caracterização psicológica dos personagens. Na construção narrativa, ele cria a metáfora do eletrocardiograma para sugerir que o ritmo acelerado do filme era prejudicial à narrativa. E na prática estilística, condena o uso abundante dos close-ups extremos. Apesar da crítica lúcida, é fácil identificar o que incomodava Mann: as ferramentas que ele rejeita consistem em recursos de estilo que revisavam os esquemas dominantes da prática cinematográfica. Esses recursos faziam a técnica chamar a atenção para si, indo na contramão do princípio da invisibilidade do estilo que caracterizava a poética da continuidade clássica, e que era importante para os diretores que emergiram antes dos anos 1950. Esse raciocínio está na base da crítica que Jean-Pierre Melville dedicou aos spaghetti westerns – uma das mais contraditórias, aliás. Melville construiu carreira transportando para as ruas de metrópoles francesas códigos de estilo e narrativa de outro gênero americano – o filme de gângster, em que heróis com chapéus e sobretudos circulam entre bares e mulheres suspeitas. Christopher Frayling (2005), inclusive, argumenta que Melville e Leone realizavam a mesma operação de desconstrução crítica do cinema de gênero, ambos revisando os esquemas disponíveis até então: Era uma Vez no Oeste pode ser interpretado como uma contribuição-chave para um momento emblemático do cinema europeu do fim dos anos 1960, quando um grupo de críticos convertidos em cineastas criou uma forma de cinema crítico (uma expressão que Leone particularmente desgostava, preferindo cinema cinema) que fazia referência ao trabalho de diretores de Hollywood sobre os quais eles escreviam com ardor. O que Claude Chabrol representou para Hitchcock, Jean-Pierre Melville para o filme de gângster e Bernardo Bertolucci para o film noir, Leone representou para John Ford [e para o western]. (FRAYLING, 2005, p. 34). Melville estruturava seus filmes a partir de uma estratégia de releitura crítica das convenções de gênero, uma tática similar à adotada por Leone. Embora bebesse da fonte do film noir e usasse Paris como cenário para histórias de um gênero estrangeiro, não reconhecia como válido o mesmo procedimento, realizado por Leone em outro gênero: 99 A coisa mais maluca é que os próprios norte-americanos gostam desses faroestes espanhóis (sic). Eles preferem Era uma Vez no Oeste aos faroestes autênticos! No momento, estamos passando por um fenômeno maldosamente destrutivo de uma das mais perfeitas formas de cinema. O spaghetti western está matando o faroeste! (MELVILLE apud COX, 2009, p.241). Melville parecia não perceber que as alterações na poética do cinema estavam acompanhando mudanças que ocorriam em todo o contexto sócio-cultural do ocidente, o que incluía outras artes narrativas. Em artigo de 1972, Simone de Beauvoir usou Três Homens em Conflito para ilustrar uma diferença que ela via entre o cinema e a literatura dos anos 1960, e que diz respeito à mesma mudança de paradigmas sócio-culturais: Alguns filmes de aventura me mantêm em suspense – alguns westerns, por exemplo, inclusive italianos, como Três Homens em Conflito. Histórias que normalmente pareceriam caricatas se fossem contadas por escrito conseguem encantar na tela. Há um estranho deslocamento (...) entre a evidência imediata daquilo que vemos e a improbabilidade dos fatos. Se um diretor usa esse deslocamento de forma inteligente, pode produzir os mais deliciosos efeitos. Esta é a base do humor do faroeste italiano. Mas só funciona quando feito de forma inteligente. (BEAUVOIR apud FRAYLING, 2005, p. 129). Ironicamente, ela deixa escapar o preconceito que havia contra o ciclo. A expressão “inclusive italianos” soa como um pedido de desculpas pelo elogio involuntário, justapondo a essa idéia a noção de que o western americano continuava superior. Outro intelectual a se manifestar sobre Leone foi Alberto Moravia. Em janeiro de 1967, Moravia escreveu um artigo analisando a questão – muito presente no discurso dos críticos europeus, como já vimos – das raízes culturais do spaghetti western. Ele propunha uma explicação cultural para o fenômeno: Não existe Velho Oeste na Itália, nem caubóis, nem bandidos na fronteira; ou melhor, não existe esse tipo de fronteira, nem índios, e nem pioneiros. O faroeste italiano não nasceu da memória ancestral, mas do instinto nostálgico de cineastas que, quando jovens, estabeleceram uma relação de amor com o western norte-americano. Em outras palavras, o western de Hollywood nasceu de um mito; o italiano teve origem no mito sobre um mito. (MORAVIA apud FRAYLING, 2000, p. 118). O raciocínio de Moravia é compatível com o do próprio Leone, que dizia amar não o western histórico, mas sua representação cinematográfica: “Para mim era possível abordar o western com distanciamento, de um ponto de vista europeu, sem deixar de ser um cinéfilo amante de westerns” (LEONE, 2005, p. 73). Essa postura curiosa diante dos spaghetti westerns está relacionada às críticas que iniciaram a gradual revalorização dos filmes de Leone. Desde essa época, porém, o que se 100 enxergava de positivo não estava tanto nos filmes em si, mas no suposto caráter de resistência cultural que o spaghetti western exercia, sem que seus diretores tivessem consciência disso. No que toca às práticas narrativas e estilísticas, Moravia não estava convencido das qualidades desses filmes, mesmo sem condená-los a priori: Os personagens principais são delinqüentes comuns que estiveram no pano de fundo dos filmes norte-americanos, e que nos italianos invadiram o cenário para se tornar protagonistas. Esses misantropos, caçadores de recompensa e trapaceiros contrastam radicalmente com os grandes cenários e os tons épicos do gênero western. Quando vê tudo isso, você acaba se perguntando: todas essas histórias são sobre o quê? Apenas sobre um punhado de dólares? Ou existe algo mais por trás? (MORAVIA apud FRAYLING, 2000, p. 118). Um acréscimo ao questionamento de Moravia veio, pouco depois, do outro lado do Atlântico, da caneta de uma crítica cujas opiniões costumavam defender o cinema de gênero: Pauline Kael. No artigo “Lixo, arte e o cinema”, publicado originalmente em fevereiro de 1969, ela decretou: “Em sua maioria, os filmes de que gostamos não são obras de arte” (KAEL, 2000, p. 131). Kael defendia o direito de o espectador gostar de “lixo” (ela se referia aos filmes de gênero, filmes que não eram “de arte”). Nos artigos em que retornou ao tema, Kael evitava falar em cinema de gênero, mas abordava com freqüência a noção de autoria (ela escrevia na fase mais popular do autorismo nos Estados Unidos), indo contra a corrente que encarava os dois conceitos como um sistema de oposições excludente. Abordando a questão do ponto de vista da experiência do espectador, Kael afirmou que a questão da autoria de nada interessava ao público. Para ela, de pouco adiantava a intenção do cineasta em criar uma experiência estética inédita (algo que, para os críticos da época, o credenciava ao status de autor). Afinal de contas, o público precisava ter prazer para usufruir de um filme; se o espectador não obtinha prazer, o filme não tinha nenhuma função. Talvez o prazer individual mais intenso da ida ao cinema seja esse, nãoestético, de fugir da responsabilidade de ter as respostas exigidas de nós em nossa cultura oficial. E no entanto essa é a base melhor e mais comum para desenvolver um senso estético, porque a responsabilidade de prestar atenção é anti-arte, nos deixa ansiosos demais pelo prazer, entediados demais para corresponder. Longe da supervisão e da cultura oficial, no escuro do cinema, onde nada nos pedem e nos deixam em paz, a liberação do dever e da obrigação nos permite desenvolver nossas próprias respostas estéticas. (...) A irresponsabilidade faz parte do prazer de toda arte; e é a parte que as escolas não querem admitir. (...) É essa sensação de livrar-nos da responsabilidade que sentimos no cinema que é levada ao extremo pela American 101 International Pictures e pelos bangue-bangues italianos de Clint Eastwood; são despidos de valores culturais. (KAEL, 2000, p. 142, grifo nosso). Não é coincidência o fato de os filmes de Leone serem citados por Kael como responsáveis por uma experiência estética prazerosa. A citação tinha o caráter provocador típico dela; os filmes do ciclo italiano ocupavam um lugar baixo na escala valorativa da produção cinematográfica, sendo constantemente acusados de terem gerados numa linha de montagem, com propósitos exclusivamente comerciais. Mas nota-se, apesar do esforço de Kael, que ela não procura superar realmente a distinção entre o filme de gênero e o “de arte”. A última frase (“são despidos de valores culturais”) é reveladora. Kael deixa claro que gosta dos “bangue-bangues de Clint Eastwood”, mas mesmo assim os coloca num patamar inferior aos “filmes sérios”. E, quando a escritora afirma que o prazer de ir ao cinema é “nãoestético” (apesar de contribuir para desenvolver no espectador uma resposta estética), ela está de certo modo concordando com a argumentação dos críticos mais elitistas, que procuram colocar num patamar mais alto de valor a experiência estética de origem puramente intelectual – a arte desinteressada de Kant. Embora os artigos de Moravia, Beauvoir e Kael sejam sintomáticos de uma mudança gradual no discurso da crítica em relação ao cinema de Sergio Leone, a trajetória dessa mudança pode ser rastreada com precisão quando se analisa a progressão cronológica dos textos sobre os filmes dele publicados pela revista Cahiers du Cinéma, a Bíblia dos cinéfilos de todo o mundo naquela época. Entre maio de 1965 e maio de 1972, a revista dedicou nove textos à análise de cinco dos westerns de Leone. O espaço editorial cada vez maior oferecido a essas críticas demonstra a atenção crescente dedicada aos filmes. A primeira resenha, publicada no número 166, em seguida ao lançamento europeu de Por uns Dólares a Mais, sequer merece ser chamada de crítica, pois consiste de um único parágrafo que contém a ficha técnica do filme e uma sentença solitária e desinteressada, que não contém nenhum tipo de análise estilística ou narrativa, resumindo-se a decretar que se trata de uma “tentativa de repetir o sucesso de Por um Punhado de Dólares” (MARDORE, 1965, p. 73). Nas entrelinhas, o texto sugere que os objetivos de Leone eram puramente comerciais. É preciso observar, também, que o primeiro western dele, feito um ano antes, havia sido ignorado pelos Cahiers. A ausência diz muito a respeito da importância que os críticos atribuíam ao spaghetti western como um todo e ao trabalho de Leone em particular. O sucesso de Por uns Dólares a Mais levou à necessidade de que os Cahiers criticassem o filme. Assim, o número 176 (março de 1966) trouxe outro texto sobre ele. O 102 artigo em si não fala apenas do cinema de Leone; reúne quatro longas-metragens italianos e analisa-os, um de cada vez, sob o pretexto de sintetizar a produção recente do país. Um parágrafo é dedicado ao filme de Leone, que o crítico Jacques Bontemps considera “menos ruim” do que o anterior. Bontemps desvaloriza o trabalho de direção, considerando como defeitos alguns recursos de estilo que, anos depois, podem perfeitamente ser interpretados de forma invertida: “Leone não tem critério nas composições visuais, os atores são histriônicos, a ação física é ampliada ao máximo e os assassinatos numerosos a signos acabam reduzidos a signos sem qualquer carga afetiva”. O decreto final diz que Por uns Dólares a Mais não passa de um “buquê de flores artificiais” (BONTEMPS, 1966a, p. 12). A crítica é curta, mas significativa. O texto sintetiza os mesmos argumentos detalhados anos mais tarde no texto mais minucioso de Eduardo Geada. Bontemps classifica Leone como diretor “barroco” (é a primeira de três menções feitas nos Cahiers ao estilo artístico que floresceu no século XVII, relacionando-o ao trabalho de Leone), seguindo um clichê da época – Georges Sadoul havia escrito pouco antes, em seu Dicionário de Cineastas, que Leone fazia jus à “tradição barroca italiana” (SADOUL, 1979, p. 184). No texto dos Cahiers, essa classificação aparece associada à metáfora das flores artificiais, e sugere que no filme há um gosto pelo exagero, um predomínio da forma em relação ao conteúdo. Contraditoriamente, esse suposto barroquismo assinala o único aspecto digno do (pouco) interesse que Bontemps encontra no filme: O excesso a única possibilidade de um western europeu existir sem ser insuportável, se fazendo exercício de estilo barroco e decadente num gênero que só está presente pela ausência nostalgicamente sentida: o western. (BONTEMPS, 1966a, p. 12). A observação a respeito da ausência do gênero alinha-se à convicção, ecoada por muitos outros críticos (já a vimos antes), de que um western só poderia ser considerado bom se viesse dos Estados Unidos; e, mais do que isso, se respeitasse o repertório de convenções do gênero, limitando-se à replicação dos esquemas dominantes. Para não deixar passar em branco o primeiro western de Leone, o número seguinte da revista (nº 177, abril de 1966) retornou a Por um Punhado de Dólares, em crítica de um parágrafo, acompanhada de ficha técnica. O texto do mesmo Jacques Bontemps chama a atenção, sobretudo, por deslocar o diretor do restante do ciclo dos spaghetti westerns, situando-o numa posição destacada dentro do panorama de produção popular na Europa. Em 103 seguida, o crítico recontextualiza o filme negativamente, calcado na idéia de uma representação espetacular da violência: Claramente superior a todos os demais westerns europeus, o que não significa, de jeito nenhum, que tenha o menor interesse, já que se há alguém convencido da pretensão da empreitada é o próprio Sergio Leone. Um desencanto total, portanto, e uma violência exacerbada demais para ser eficaz (BONTEMPS, 1966b, p. 81). No número 184 (novembro de 1965), Patrick Brion retornou a Por uns Dólares a Mais, reafirmando alguns dos argumentos de Bontemps, como a suposta qualidade superior de Leone em relação aos demais cineastas do spaghetti western (“sua austeridade o sobressai do resto dos subprodutos do western hispano-italiano”). Como de hábito, a representação gráfica da violência incomodava (“os assassinatos se sucedem invariavelmente, sem qualquer motivação psicológica”) e era responsável, na visão de Brion, pela suposta “degenerescência do gênero”. Nos dois últimos textos, é importante perceber que os críticos deixam escapar breves elogios; no entanto, é ainda mais significativo que, para justificar esse procedimento, ambos procurem destacar Leone do ciclo de spaghetti westerns, que dessa forma continua indigno de merecer a atenção da revista. Ironicamente, nos dois casos, os elogios têm relação direta com o que Brion chama de “floreios barrocos” 19, e que podemos associar às preocupações formais: as composições pictóricas, os close-ups extremos, o desenho sonoro e principalmente o caráter irônico, presente no alusionismo e que podemos associar à influência das tradições italianas da commedia dell’arte. Ou seja, exatamente os mesmos recursos que Jacques Bontemps havia criticado de forma enfática no primeiro texto dedicado pela revista a Leone: Por outro lado – e a eficácia certeira do filme tem aí suas raízes – a violência exacerbada chega ao limite do suportável, apesar de alguns floreios barrocos que introduzem o necessário recuo humorístico. (BRION, 1966, p. 73). Ainda que a crítica de Patrick Brion esteja longe de ser positiva, é possível notar que o eixo principal do texto está no mesmo fenômeno estilístico notado por Jacques Bontemps – a tendência de Leone à revisão intensificada de certos recursos formais, que ambos associam a um suposto exibicionismo “barroco”. Brion usa o mesmo vocabulário para se referir a esse fenômeno, mas elabora um pouco mais a gênese de uma idéia já presente em Bontemps: a noção de releitura crítica do gênero, de revisão dos esquemas, através da releitura de certos elementos de repertório de códigos do gênero. 19 No original, “floritures baroques”. 104 Depois de demorar a publicar as críticas dos dois primeiros westerns de Leone, os Cahiers du Cinéma foram rápidos em analisar Três Homens em Conflito. O longa-metragem foi lançado na França em 8 de março de 1968; o texto escrito por Sylvie Pierre apareceu no número 200 da revista, no mês seguinte. A rapidez do processo de edição era um sinal claro de que a carreira de Leone agora estava sendo acompanhada com mais atenção pela revista. O texto fez parte da seção Notas Críticas, editada no final da revista, que agrupava fichas técnicas e comentários curtos sobre lançamentos recentes. A crítica ocupou dois terços de página – o maior espaço editorial dedicado até então a um filme de Leone nos Cahiers. É uma crítica ambígua, que permite leituras positivas e negativas. Sylvie Pierre observa que Leone levava a cabo, ao contar a odisséia dos três vagabundos por dentro de um território em guerra – que, ela afirma, “não é nada além de um olhar europeu sobre a guerra de trincheiras de 1914, não se pretendendo de jeito nenhum um panfleto anti-militarista” – atrás de um tesouro enterrado, “uma operação apaixonante” (PIERRE, 1968, p. 124). Pierre registra procedimentos estilísticos recorrentes dentro do filme, como a tendência de Leone para os jogos com a entrada e a saída abrupta de personagens dentro do espaço fílmico (ela se refere muitas vezes ao recurso que denominaremos, mais à frente, de trompe l’oeil cinematográfico), introduzindo a irrupção abrupta de uma figura dentro de uma paisagem, ou vice-versa. Também destaca a verossimilhança dos acessórios utilizados por Leone, evocando o realismo grotesco dos cenários e figurinos. No entanto, sua observação mais interessante diz respeito ao perfil amoral do trio de protagonistas. Embora num primeiro momento critique Leone por desrespeitar a “função clássica do maniqueísmo do western” (mais uma vez, o processo de revisão do esquema dominante era compreendido como algo negativo), Pierre aprofunda sua análise, chegando à conclusão de que a brincadeira irônica com os rótulos de “bom”, “mau” e “feio” (presentes no título original) consiste no maior charme do filme: É original, aqui, a complexidade da perturbação trazida ao esquema maniqueísta do western. De Lee Van Cleef (o bandido violento que mata crianças) a Clint Eastwood (o homem bom de moralidade duvidosa), passando por Eli Wallach (o vagabundo simpático), existe uma degradação no uso desse recurso. Mas a astúcia do filme, sua mais bela intenção, consiste em uma operação de dissimetria da ironia aplicada às etiquetas dos personagens. (...) Nem o bom e nem o mau trazem provas de uma maldade absoluta. Um fecha os olhos dos moribundos com gentileza; o outro rouba os relógios deles com cinismo. Finalmente, se é o mau o único eliminado dos três, não é esse fato que evoca a euforia do puro espetáculo. É preciso que os dois sobreviventes se emancipem da ficção westerniana e se tornem dois indivíduos quaisquer num tempo de guerra, e que a carga de ouro de que tomam posse os afastem da aventura. (PIERRE, 1968, p. 124). 105 Apesar de o texto de Sylvie Pierre ser o primeiro a analisar mais detidamente recursos de estilo, chama a atenção os comentários ambíguos sobre o processo de revisão dos esquemas do western. Além disso, em nenhum lugar existe menção ao pertencimento do filme ao ciclo popular italiano, que em 1968 estava, como já vimos, no momento mais numeroso e criativo de sua trajetória. Para elogiar Leone, Pierre precisou destacá-lo desse ciclo. Pois é exatamente o contrário desse pressuposto que se pode ler na sexta crítica sobre Leone publicada nos Cahiers du Cinéma. A pretexto de comentar Era uma Vez no Oeste, Serge Daney escreveu o texto mais significativo de todos os que se pode ler a respeito de Leone nos Cahiers. A resenha foi publicada no número 216 (outubro de 1969), constituindo o primeiro de dois textos que a revista imprimiu sobre o longa-metragem – Sylvie Pierre escreveria uma crítica mais longa, dois números depois, que essencialmente reelaborava argumentos parecidos, só que procurando destacar um pouco mais os aspectos de estilo. A crítica de Daney é o texto que resolve melhor as ambigüidades sentidas nas resenhas da revista. Os críticos estavam sempre prontos a decretar o spaghetti western como intrinsecamente inferior ao western americano, embora às vezes conseguissem enxergar elementos dignos de interesse no trabalho de Leone. A questão é que, até o texto de Daney, nenhum crítico havia explicado claramente o que seria esse algo interessante. Daney foi o primeiro a explicitá-lo: era o caráter de releitura crítica que Leone oferecia ao repertório do western tradicional, o esforço para elaborar uma variação do esquema tradicional do gênero. Só que Daney não comentou esse esforço a partir de uma análise estilística. Sua abordagem foi condizente com a fase maoísta-esquerdista que os Cahiers viviam na época. Daney pouco se demorou na discussão sobre o filme em si (“marca o apogeu e talvez o colapso do ciclo”, afirmou, em uma sentença que se revelaria quase premonitória, pelo menos a respeito de Leone), deixando-o de lado para se concentrar em defender a agenda política do spaghetti western, e articulando-a com o processo de releitura crítica do gênero, através de uma operação contínua de desconstrução do repertório de convenções: Eles [os filmes de Sergio Leone] constituem a primeira tentativa, embora pouco conseqüente, de cinema crítico, ou seja, não mais em confronto direto com a realidade (mesmo que às vezes o recurso à verdade histórica – que Leone conhece bem – tenha um valor estratégico), mas com um gênero, uma tradição cinematográfica, a única que conheceu uma difusão mundial: o western. Não é pouca coisa. (DANEY, 1969, p. 64). O texto de Daney é paradigmático, antecipando o resgate posterior que se faria do cinema de Leone. Sem negar em nenhum instante o caráter popular – inclusive no modo 106 industrial de produção em série – dos spaghetti westerns, Daney critica os rumos que o western americano havia tomado na década de 1950, com uma tendência supostamente excessiva de psicologizar os personagens (“senso crítico, mas não cinema crítico”, diz, avançando um argumento que já podia ser encontrado nos escritos de André Bazin sobre o western), e avaliza um cinema que lhe parecia crítico do próprio cinema. Para ele, uma poética cinematográfica que pusesse em cheque o moralismo exacerbado do gênero americano só poderia ser elaborada fora de Hollywood. Em que pese o uso exagerado da terminologia marxista, é possível perceber que o argumento de Daney consiste numa elaboração mais profunda e detalhada das idéias lançadas pouco antes por Alberto Moravia – o spaghetti western não consiste na elegia de um mito, mas sim na elaboração de um mito acerca de outro mito – somada à noção de que a revitalização dos filmes de gênero só podia ser realizada de fora. E por que esse cinema popular crítico haveria de florescer justo na Itália? Para Daney, a Itália era o lugar perfeito para o surgimento de um cinema popular crítico, um cinema que encapsulasse um caráter de resistência cultural e ideológica ao avanço cultural dos Estados Unidos. Afinal, o país europeu era (ainda é) um dos únicos no mundo a ter uma indústria de cinema popular, comparável aos EUA em números e estatísticas de bilheteria. As “origens vis e baixamente comerciais” (DANEY, 1969, p. 64) do ciclo italiano são, para ele, o aspecto mais positivo do spaghetti western. A expressão entre aspas talvez seja o trecho mais significativo do texto de Daney. Ela denota claramente a linha de raciocínio que seria seguida por praticamente todos os críticos ao longo do processo de revalorização da obra de Leone nos anos 1970: a importância do spaghetti western não estava nos recursos de estilo, nem mesmo na fruição estética que os filmes proporcionavam. O ciclo popular italiano era importante na medida em que representava uma tentativa crítica de resistência cultural ao domínio norte-americano, desconstruindo-o de dentro para fora. Ou seja, somente ao conservar o caráter de massa, de produto audiovisual oriundo de uma linha de montagem, o gênero italiano poderia realizar com propriedade o seu “eufórico trabalho de desconstrução”, desmistificando todo um conjunto de convenções estabelecidas pela outra indústria do cinema: Admitamos que em alguns países onde o cinema constitui uma indústria robusta, o cinema B delimita uma espécie de lúmpen-cinema (cinema do lúmpen-proletariado), bom de qualquer modo para fazer a máquina girar, amado de forma esnobe e contraditória (em uma espécie de cinefilia “operária”) não podendo aspirar à qualidade, nem mesmo à consciência clara 107 dos elementos (temas, situações) que ele ilustra porque esta (a consciência) é reservada aos filmes de qualidade: digamos, mais para [Fred] Zinnemann que para [Alan] Dwan. (DANEY, 1969, p. 64). Essa passagem reforça o argumento central do texto. Centrando a argumentação na primeira vertente da poética do cinema, Daney sugere que o spaghetti western não poderia aspirar à qualidade do western americano, por ser uma cópia; ou seja, apesar de valorizar o ciclo, o coloca num patamar inferior ao ocupado por “filmes de qualidade”. Em outras palavras, os filmes de Leone só são bons na medida em que incitam à resistência cultural; mas, de um ponto de vista estilístico, não têm nada de novo a oferecer. A leitura de Daney parece ser, de fato, a mesma feita por Pauline Kael. No entanto, ele elogia a narrativa do filme por eliminar o moralismo puritano do gênero (isto é, valoriza indiretamente o perfil do herói mais amoral). Sua leitura, obviamente, é compatível com a orientação ideológica de esquerda dos Cahiers daqueles tempos. A revista tinha motivos políticos para reverenciar um cinema popular que propagava ideologias de esquerda, como era o caso do spaghetti western. Mas, uma vez estabelecidos os contextos cultural e político em que se localiza a obra de Leone, Daney parte para analisar a utilização formal do esquema do western. E afirma como característica mais importante deste procedimento o uso do pastiche como uma forma de explicitação da cinefilia, do conhecimento e da paixão por filmes. Este uso do pastiche não se dá apenas por uma questão de sensibilidade estética exagerada (embora esse argumento também esteja lá), mas também por uma estratégia crítica: [O pastiche] consiste ora em mostrar o que o western clássico ocultava, ora a exagerar o este mostrava. A força dos filmes de Leone está em extenuar a retórica habitual do western, em fazer do excesso de oferta o equivalente de uma negação. Em relação a isso, seria interessante mostrar como ao western convencional (...) Leone opõe uma seqüência ininterrupta de tempos fortes que se anulam reciprocamente: ao máximo de intensidade corresponde um mínimo de sentido. (DANEY, 1969, p. 64). Esse trecho é significativo. Após identificar a prática do pastiche e atribuir a ela uma crítica à ideologia do gênero, Daney enxerga o alusionismo como sintoma de procedimentos narrativos e estilísticos em direção à poética da continuidade intensificada. Ele está falando dos “floreios barrocos” a que outros críticos se referiram, atribuindo a eles um lado positivo (trazia consigo uma postura crítica) e outro negativo (provocava desequilíbrio entre forma e conteúdo, com ênfase no primeiro item). Quando se refere a uma “seqüência ininterrupta de tempos fortes”, e obviamente sem usar o termo (que só seria criado décadas depois), Daney 108 está se referindo à continuidade intensificada. No final do texto, ele retoma o raciocínio desenvolvido no início; reconhece que quase não tratou do filme, mas se coloca na contramão da corrente principal de críticos que não enxergavam valor na obra de Leone, observando que sua prática intensificada em estilo e narrativa nada tinha de gratuita, e que era preciso dedicar mais atenção aos filmes dele (algo que ele próprio, sintomaticamente, não faz): Interessante notar como, neste cinema, se dá a escolha dos meios (chamada de gratuita por toda uma tropa de bem-pensantes), a construção da beleza (dos atores e paisagens), da justeza de tal ou tal estilo de narração (elipse ou tempos longos). (...) Quanto a Leone, de quem pouco se tratou aqui, é igualmente possível empreender a decifração de uma obra superabundante, com muitos elementos, em tiques retóricos. (DANEY, 1969, p. 64). A análise das críticas subseqüentes publicadas nos Cahiers sobre filmes de Leone mostra o quanto o texto de Daney foi determinante para o surgimento de um padrão um pouco mais favorável na recepção dos críticos, daquele momento em diante. Esse contexto fica evidente já a partir do destaque editorial dado à crítica de Sylvie Pierre sobre o mesmo filme, publicada no número 218 (março de 1970). O texto ocupa três páginas da revista; pela primeira vez, um longa-metragem de Leone era analisado fora da seção Notas Críticas, que se ocupava exclusivamente de lançamentos. A política editorial da publicação já o considerava um diretor digno de receber atenção. Nesse sentido, convém observar que a ampliação do destaque editorial oferecido a Leone ocorreu justamente no momento em que o contexto de produção dos filmes dele mudou, com a associação de Leone aos grandes estúdios norte-americanos de maneira mais direta. Sabemos que, embora ainda filmado na Espanha, Era uma Vez no Oeste teve orçamento generoso, fugindo drasticamente dos limites e pré-condições impostos pelo modo de produção de Cinecittà. Eis, então, um paradoxo: elogiado por Daney por exercer um cinema popular de resistência contracultural, Leone ganhava espaço na revista exatamente no momento em que recorria ao dinheiro americano para filmar. Por causa disso, há pesquisadores, como Howard Hughes (2004), que desconsideram Era uma Vez no Oeste como produção pertencente ao ciclo italiano, por desobedecer aos padrões de produção reservados aos demais spaghetti westerns. A abordagem de Sylvie Pierre ao filme de Leone é bastante distinta do texto escrito por ela dois anos antes, a respeito de Três Homens em Conflito. A nova crítica não apenas cita diretamente o texto paradigmático de Daney, mas procura desenvolver e aprofundar aspectos do raciocínio dele. E, para isso, minimiza as observações a respeito das práticas estilísticas e 109 narrativas de Leone, concentrando-se na agenda política supostamente defendida pelo filme (ou, pelo menos, investindo na mesma leitura ideológica que Daney havia feito dele). Antes de falar qualquer coisa sobre o filme, Pierre realiza uma longa argumentação a respeito das conexões culturais entre o western norte-americano e sua contraparte italiana: O western não é nada além de um traço da ideologia sobre a história norteamericana, aquela inventando esta, pelo viés da mitologia, e de uma espécie de justificativa moral. Trata-se de justificar a história imperial dos Estados Unidos. (PIERRE, 1970, p. 53). A partir daí, colocando-se na contramão de um dos argumentos mais citados pelos detratores do spaghetti western, Sylvie Pierre refuta a acusação de falta de autenticidade histórica dos filmes do ciclo, afirmando que essa acusação “não faz nenhum sentido”, porque: (...) não foram importados [dos westerns americanos], evidentemente, nem a ideologia e nem a história, mas o produto acabado desse conjunto: a retórica. Ou seja, uma rede complexa de personagens, temas, situações, acessórios, cenários, roupas, que consiste apenas de variações combinatórias desses elementos, regidas por um código cuja necessidade permanece ininteligível. Sem dúvida, não é possível fazer esse empréstimo de outra forma que não seja do exterior (...). Leone, e com ele todo o western italiano, tomam emprestado a retórica ao western americano, mas fazem isso ao desenraizar a comodidade de um sistema já completamente constituído de figuras que, não tendo mais que se justificar em sua relação com o real, podem funcionar livremente, isto é, de modo gratuito. O empréstimo não é pequeno; ele é feito através de nada menos do que uma concessão, uma espécie de salto para fora da história. (PIERRE, 1970, p. 54). Quando se refere à retórica, ela faz questão de definir o conceito: trata-se do conjunto de recursos de estilo que compõem os esquemas do western americano. Nesse ponto, Pierre ignora o processo de revisão crítica desses esquemas levado a cabo por Leone, sugerindo que os filmes não passam de “variações combinatórias” desses recursos. Depois, num longo trecho que ocupa quase metade da crítica, ela se volta para o filme, observando a preocupação com a acuidade histórica e citando como exemplo a reconstituição minuciosa da cidade, das estações de trem e do saloons. Ela circunscreve um traço estilístico que se tornaria, à frente, recurso importante da poética da continuidade intensificada, e busca uma justificativa de ordem sócio-histórica para o estabelecimento desse recurso: Compreende-se muito claramente porque os westerns míticos de Cecil B. de Mille, Ford ou Mann não tinham que se preocupar em ser documentários, sendo eles mesmos documentos – documentos ideológicos americanos, imagens de um povo se olhando no espelho. O western de Leone, embora fantasioso, tende paradoxalmente à exatidão. Porque ele não se inventa de 110 uma ciência difusa; é preciso que ele nasça de certo saber, que só será arqueológico sendo monumental. (PIERRE, 1970, p. 54). Então, Pierre segue o raciocínio, insistindo na importância da ostentação formal – o “barroquismo” – dentro da obra de Leone. Ela sugere que há no filme uma tendência flagrante à ostentação estilística, à sobreposição da forma ao conteúdo: A história, em Leone, é apenas um espaço totalmente distinto da ficção, diante do qual a ficção morre e se exibe como um rabo de pavão, cheio de esplendores e vaidades. (...) Era uma Vez no Oeste é, antes de tudo, uma obra-prima de retórica. (PIERRE, 1970, p. 54). Na argumentação, Sylvie Pierre cerca o filme sem mergulhar nele. O cerne da análise está na leitura ideológica do trabalho de Leone; uma leitura claramente devedora a Daney. Antes de encerrar o texto, Pierre ainda nota o uso abundante do alusionismo dentro da trama do filme, antecipando em muitos anos a definição que Noël Carroll (1998) faria do conceito – uma narrativa em camadas sobrepostas, em que o público amplo entende a trama e um grupo menor, formado por cinéfilos, recebe piscadelas para um gozo estético privilegiado: Tudo é permitido, desde que a cada instante o cinema funcione e se veja funcionar. O resultado é de um narcisismo cinematográfico evidente. Um cinema que só remete a ele mesmo e a suas próprias mitologias. (...) O jogo duplo que poderia parecer no início duvidoso, entre a eficácia e a contemplação, tem de um lado o cinismo do saber fazer e a política comercial que assegura o grande público; e do outro, o fato de que pisca o olho para os intelectuais, com todas as êxtases estéticas permitidas. (PIERRE, 1970, p. 55). A leitura marxista de Pierre a leva a julgar como negativo o recurso estilístico do alusionismo (que até então, note-se, não havia sido citado por nenhum outro crítico dos Cahiers); no momento em que Leone “pisca o olho para os intelectuais”, seu cinema perde parte do caráter de resistência que forma, para os redatores dos Cahiers, a peça central de seus filmes. Na conclusão do texto, no entanto, Pierre relativiza essa leitura, instituindo uma ambigüidade característica dos textos dos Cahiers daquele período: Sobre esse jogo duplo, não podemos insistir demais que ele seja apenas retórico, reinscrevendo o filme na nossa história – a saber, a história de uma consciência pequeno-burguesa, infeliz, separada do real, e que se refugia na arte. Não totalmente refugiada, no entanto, porque tendo sido denunciado esse refúgio na vaidade, Leone não se instala nele. (PIERRE, 1970, p. 55). 111 O próximo filme de Leone, Quando Explode a Vingança, ganhou resenha nos Cahiers no número 238 (maio de 1972). Foi um texto curto, retornando ao padrão de ficha técnica e comentário rápido, dentro da seção Notas Críticas. Mais uma vez citando o texto de 1969 de Daney, Pierre Baudry inicia a crítica colocando uma questão pertinente e importante: Poderíamos até recentemente questionar o lugar dos filmes de Leone no spaghetti western. Parece-me que, longe de ser sua vanguarda, esses filmes tentam mais e mais guardar uma distância em relação a essa série. Depois de ter sido um emblema e um modelo para ela (Por um Punhado de Dólares, Por uns Dólares a Mais, etc.), para retomar a idéia de Daney (Cahiers nº 216), os westerns de Leone são agora críticos, e não somente em relação ao cinema americano, mas também em relação ao lúmpem-cinema italiano. (BAUDRY, 1972, p. 93). Embora essa observação nos pareça fundamental, Baudry não se alonga nela (talvez por falta de espaço). Ele procura justificá-la apontando uma alteração que os filmes de Leone realizam na estrutura narrativa do western (seja ele americano ou italiano) – um deslocamento operado na segunda vertente da poética do cinema: Longe de retomar a linearidade dos encadeamentos ficcionais do cinema de aventura e do western clássicos, os filmes de Leone, sobretudo depois de Três Homens em Conflito, se organiza como uma série de esquetes, uma sucessão de momentos fortes. (BAUDRY, 1972, p. 94). A partir daí, Baudry envereda por uma leitura psicanalítica do filme, observando que “nada chama a mais a atenção do que o desejo dos personagens”. Ele destaca a construção narrativa em larga escala, detectando uma suposta alteração na forma como Leone usava flashbacks e sugerindo que esse recurso, desta vez, não seguia uma trilha que ia “do abstrato ao concreto” (o crítico refere-se, aqui, à tradição de fragmentar o flashback e reapresentá-lo, aos poucos, em vários momentos do filme, a cada exibição mostrando um pouco mais da cena completa, de modo que só na última exibição conseguimos vê-la inteira e atribuir a ela um significado estável; essa técnica foi usada em Por uns Dólares a Mais e Era uma Vez no Oeste). Em Quando Explode a Vingança, para Baudry, os flashbacks “não explicam nada”; pelo contrário, consistem no “mistério essencial” do filme, aquilo que move a trama, transformando-a num permanente jogo de conflitos individuais, com o desejo como chave: A organização da diferença dos desejos – entre Juan, o camponês ingênuo e ladrão lascivo, colocando constantemente o sexo em primeiro lugar, e Sean, o anjo da destruição – não estabelece relações de completude, mas sim de oposição. E é dessa oposição que surge aquilo que é colocado em jogo na revolução, que é dada num sentido ausente. (BAUDRY, 1972, p. 95). 112 Chama a atenção, no texto de Baudry, a mudança da abordagem teórica. A orientação marxista ainda está lá, mas percebe-se uma nova tendência à leitura psicanalítica, certamente influência da popularidade de Lacan e Metz na teoria francesa de cinema dos anos 1970. Essa guinada em direção à psicanálise torna-se explícita na próxima crítica de um filme de Leone a aparecer nos Cahiers du Cinéma: o texto de Michel Chion publicado no número 359 (maio de 1984, mesmo mês do lançamento do filme na França) sobre Era uma Vez na América. A diferença de abordagens fica mais flagrante devido ao período de 12 anos que se passou entre as duas críticas (nesse período, Leone não lançou nenhum longa-metragem). O processo de revalorização positiva dos filmes, contudo, continuou acontecendo. Isto fica evidente quando se observa o destaque editorial dado a Era uma Vez na América. A publicação dedicou capa, editorial, entrevista e crítica ao filme, incluindo ainda um artigo escrito pelo próprio diretor. Tudo isso compôs um dossiê de 16 páginas. Seriam os últimos textos publicados sobre Leone enquanto ele ainda vivia. Por ocasião da morte de Leone, em 1989, os Cahiers du Cinéma publicaram outro artigo escrito por ele (justamente sobre as filmagens de Era uma Vez na América), no número 422. De lá até hoje, mais quatro textos apareceram nas páginas da revista, três deles registrando lançamentos em DVD de filmes de Leone e outro – um longo artigo de cinco páginas publicado no número 462, em dezembro de 1992 – traçando conexões entre Era uma Vez no Oeste, a obra dos irmãos Joel e Ethan Coen e o então recém-lançado Os Imperdoáveis (The Unforgiven, Clint Eastwood, 1992). Todos esses textos publicados após a morte de Leone foram elogiosos; nenhum se dedicou a analisar mais detidamente a prática estilística dele. Michel Chion inicia a crítica a Era uma Vez na América – que estabelece como “soberbo, ambicioso, largo, lírico, com um toque indelével do barato, do miserável, presente mesmo nos filmes mais caros de Leone, como que por solidariedade com seu país” e define o como “um filme sobre o cinema” – pincelando dados biográficos e lembrando que o pai e a mãe de Leone trabalhavam na indústria cinematográfica. Ele acrescenta: “Não retomaria esses dados de psicanálise rápida se não achasse que eles esclarecem o sujeito de muitos filmes realizados por ele: a busca genealógica de si dentro do universal, do autêntico na cópia, e da diferença na repetição” (CHION, 1984, p. 11). Essa observação é significativa. Chion interpreta a obra de Leone como produto de um esforço (consciente ou não) autoral. É interessante, no texto, observar como Chion utiliza seu background como compositor de música concreta e teórico do som no audiovisual para traçar, em diversos momentos, paralelos entre o processo (praticado por Leone) de revisão dos esquemas 113 dominantes do gênero fílmico e a ópera, que segundo Chion se utiliza do mesmo artifício, aproximando-se nesse sentido do jogo entre o familiar e o original que está no cerne da construção narrativa do cinema de gênero: [Leone] parte do pressuposto de que todas as histórias já foram contadas, e não se preocupa com isso mais do que um compositor de ópera. Os filmes trabalham (...) com o efeito do já-visto, que é um efeito típico da ópera. Uma abertura de ópera consiste, muitas vezes, em inserir temas que só ganharão sentido na atualização de certos acontecimentos, que ressoarão como já vividos por terem sido musicalmente antecipados. (CHION, 1984, p. 11). Chion também retoma e atualiza a argumentação lançada no texto de Serge Daney, embora dessa vez sem citá-lo diretamente. Para ele, a idéia de um cinema popular de resistência cultural não é mais, na década de 1980, suficiente para explicar o sucesso – e, mais significativamente, a qualidade – dos filmes de Leone. Então, recorre novamente à ópera para dar o salto que lhe permite elogiar o filme: Do ponto de vista do ritmo, da produção e da encenação, os Estados Unidos não podem mais, atualmente, apresentar muitos filmes como esse. Não é mais suficiente, para Leone, o procedimento de criticar o cinema americano para poder existir como contestação. O cinema americano é alimentado por uma espécie de auto-contestação, de uma reciclagem crítica ao infinito de seus modelos. Aqui, é a aparência que faz a diferença. É uma questão de forma, estilo e tom operístico. E em matéria de ópera, Sergio Leone está em casa. (CHION, 1984, p. 11). Insistindo na leitura psicanalítica, Chion faz referência à construção não-cronológica do enredo (procedimento importante de revisão estilística, e característica da continuidade intensificada), observando que esta é mais intrincada, sofisticada e complexa do que o jogo com os flashbacks apresentado em qualquer filme anterior de Leone. Desta feita, Chion avalia que essa estrutura não usa os momentos do passado como chave para a resolução de um trauma obsessivo, mas permanece vazia de significado, sem levar a lugar nenhum – ou seja, é pura retórica. Implicitamente, a idéia do efeito de ostentação, do “barroquismo”, aparece mais uma vez. Mais importante, para Chion, é que Era uma Vez na América não se traduz em bom cinema apenas por causa dessa manipulação dos recursos estilísticos, mas justamente porque essa manipulação, apesar de ostensiva, ainda permite brechas interpretativas que oferecem ao espectador a possibilidade de se infiltrar emocionalmente dentro da trama: O que apaixona no filme, além do domínio da técnica, são as contradições. Entre a reconstituição histórica e o caráter mítico da trama, entre a abundância de detalhes da infância e o apagamento das figuras paternas, 114 entre o estilo de encenação operístico e a integração de elementos instáveis e imprevisíveis como o jogo cronológico, entre muitos formidáveis atores além do genial De Niro, o grande ponto positivo é que o filme permanece aberto, suscetível ao enriquecimento aditivo. (CHION, 1984, p. 13). Analisadas em progressão, as nove críticas publicadas pelos Cahiers do Cinéma entre 1965 e 1984 funcionam como um microcosmo consistente da trajetória gradual como a crítica lidou com os filmes de Leone. O desprezo com que eram recebidos seus primeiros westerns deu lugar, lenta e gradativamente, a certo respeito crítico. No entanto, esse respeito não foi conquistado pelas práticas estilísticas e narrativas de Leone, mas pelo suposto ato de resistência cultural a Hollywood que seus filmes representavam. Essa resistência não partia de uma atitude criativa consciente; não estava inscrita nos filmes (e o fato de o próprio Leone ter dificuldade em reconhecê-la comprova isso). Portanto, a contribuição dele ao repertório da continuidade intensificada, através da instituição de processos de revisão dos esquemas dominantes do cinema de gênero, foi sistematicamente minimizada. É essa contribuição que tentaremos detalhar, analisando os filmes cuidadosamente, nos dois próximos capítulos. 115 2. Práticas narrativas de Sergio Leone 2.1 A narração na poética do cinema O surgimento de Sergio Leone como diretor aconteceu numa época em que não apenas o cinema, mas a sociedade ocidental como um todo passava por um período turbulento de mudanças. A continuidade intensificada, que começou a emergir no mesmo instante, deve ser vista como um reflexo, no campo da poética do cinema, dessas alterações no tecido social. Tendo começado a dirigir filmes nesse período, é natural que Leone tenha sido influenciado por ele. Ademais, ao estudar a constituição do estilo individual de um diretor, relegar a segundo plano os contextos sócio-culturais e históricos em que ele operou pode se revelar um erro. Se é verdade que o zeitgeist não liga a câmera, como disse Bordwell (2009, p. 69), não é menos verdade que ele influencia as escolhas feitas por aqueles que a ligam. O processo de seleção de ferramentas estilísticas e narrativas operado pelos diretores é atravessado, o tempo todo, por fatores extra-cinematográficos. De modo geral, historiadores que trabalham tentando reconstituir a influência dos contextos sócio-culturais na atividade artística se dividem em dois grupos, de posições antagônicas e bem definidas. De um lado, ficam aqueles que “propõem anular qualquer ligação entre história da arte e história da cultura” (GINZBURG, 1990, p. 48); do outro, ficam pesquisadores que colocam os contextos acima das causas mais imediatas das escolhas que definem o estilo, correndo assim o risco de “hipostasiar concepções abstratas do mundo e da vida” (GINZBURG, 1990, p. 48). Não defendemos enfaticamente nenhum dos grupos; propomos uma conciliação entre eles. Nos dois próximos capítulos, tentaremos isolar e identificar os padrões estilísticos e narrativos mais recorrentes dentro da obra de Leone, sempre reconstituindo os contextos nos quais ele efetuou as escolhas que levaram a esses padrões. Defendemos que os contextos, sejam causa ou conseqüência das escolhas, são dela indivisíveis. Entre as três vertentes da poética do cinema, a primeira (temática) reúne recursos narrativos mais imediatamente influenciáveis por contextos sócio-históricos e culturais. Como este capítulo dá conta da análise dos filmes de Leone a partir dessa vertente (englobando também a segunda, que consiste na construção narrativa em larga escala), partiremos do resgate desses contextos para associá-los, então, ao aparecimento e posterior desenvolvimento dos padrões narrativos recorrentes. 116 Em 1968, depois de assistir a Era uma Vez no Oeste em Paris, Jean Baudrillard decretou Leone como “o primeiro cineasta pós-moderno” (BAUDRILLARD apud FRAYLING, 2005, p. 17). Isso aconteceu antes de a condição pós-moderna (LYOTARD, 1998) começar a ser debatida em suas relações com a produção audiovisual da sociedade (HARVEY, 1989; JAMESON, 1991; CONNOR, 1993). Mas o que exatamente Baudrillard tinha visto no filme para fazer tal declaração? Aplicando as características centrais do pós-modernismo ao cinema, Jullier e Marie (2009, p. 214-215) procuraram sintetizar da seguinte maneira o que chamam de “cinema de terceiro grau”: produção em massa de filmes nostálgicos; ironia, paródia e autoconsciência sobre a índole ficcional das narrativas, muitas vezes expressa por uma retórica do exagero; despreocupação com teses éticas ou sociais, substituída pela relativização das questões morais e pela lógica do espetáculo; representações mais realistas da violência e do sexo; retorno às regras clássicas quando necessário e formulação de inovações formais apenas quando (e se) desejado; uso deliberado e generoso do pastiche (que eles chamam de “piscadelas”). Em maior ou menor grau, todas essas características podem ser encontradas nos filmes de Leone. Nesse sentido, o ponto mais importante do uso de todos esses recursos está na aplicação do paradigma do problema/solução de Bordwell aos spaghetti westerns. Podemos ver como Leone trabalhou dentro de uma tradição, revisando-a e atualizando-a – e, mais importante, intensificando-a – sem necessariamente desafiá-la. Em outras palavras: a aparição e o desenvolvimento de características associadas ao pós-modernismo constituem um processo de revisão de esquemas clássicos dominantes, que se coaduna perfeitamente com a poética da continuidade intensificada. A aceitação dessa lógica nos permite encontrar uma explicação eficiente, por exemplo, para a ironia presente em Leone. A ironia, abundante nos westerns dele, é associada por alguns autores (HARVEY, 1989; HUTCHEON, 2000) a uma experiência estética pósmoderna. Nos filmes de Leone, a ironia aparecia freqüentemente associada ao uso do alusionismo (CARROLL, 1998), ou à variação mais exagerada deste, o pastiche (DYER, 2007), bem como à releitura crítica de convenções do gênero. Chegamos a um ponto crucial. Esse raciocínio torna possível argumentar que algumas das escolhas estilísticas e narrativas efetuadas por Leone foram efetivamente influenciadas por uma sensibilidade pós-moderna latente na Europa dos anos 1960. Se aceitarmos essa hipótese, poderemos compreender que as características pós-modernas encontradas em Leone acabaram inscritas nos filmes pelo que Bordwell chama de pré-condições de estilo; foi dessa 117 forma que o contexto sócio-cultural influenciou Leone a fazer escolhas estilísticas que revisavam de maneira extravagante os esquemas circulantes do cinema de gênero. Voltemos a Baudrillard. A declaração dele se referia, principalmente, ao uso abundante do alusionismo, então um recurso usado com discrição pelos cineastas. Baudrillard se refere especialmente ao pastiche: “Um tipo de imitação que você sabe ser uma imitação” (DYER, 2007, p. 1). De fato, o gosto pela citação é um dos mais proeminentes recursos narrativos de Leone, embora seja importante assinalar que a estratégia de citar obras anteriores, para ele, obedeceu a várias gradações de intensidade e intenção (as citações podiam ser explícitas ou cifradas, reverentes ou irônicas), constituindo exemplos variados da técnica intertextual que Noël Carroll (1998) chamou de alusionismo. Nesse momento, além de verificar os diferentes usos que Leone fazia desse recurso narrativo, nos interessa demonstrar de que maneira essa experiência estética associada à condição pós-moderna emergiu deste contexto sócio-cultural para tornar-se um traço do estilo individual de Leone. O pastiche não foi um recurso narrativo que Leone escolheu adotar em Era uma Vez no Oeste. A técnica já vinha sendo cortejada por Leone nos filmes anteriores. Variações mais brandas de alusionismo podem ser percebidas desde Por um Punhado de Dólares; a técnica foi continuamente expandida nos filmes seguintes, atingindo o patamar maior de ênfase em Era uma Vez no Oeste, cujo enredo consiste numa espécie de antologia de momentos icônicos de faroestes do passado, uma colcha de retalhos que combina, dentro de um enredo coeso, inúmeras citações a obras anteriores. Esses momentos, encaixados na tessitura narrativa e estilística do filme, consistiam de alusões a cenas, personagens, nomes e lugares retirados de outros filmes. Eles provocavam no espectador uma percepção de reconhecimento de uma prática imitativa. Embora não fosse a primeira vez que Leone trabalhava com a alusão, em Era uma Vez no Oeste as citações eram tão abundantes e explícitas que traziam a técnica para primeiríssimo plano, o que justificava o comentário de Baudrillard. No entanto, o uso da alusão na narrativa cinematográfica não era uma novidade. Como vimos antes, a intertextualidade – sob variadas formas, que incluíam alusões visuais ou sonoras, citações sutis ou escancaradas – sempre foi elemento importante para a construção narrativa no cinema de gênero (particularmente o western): O gênero é particularmente propício para a citação, para a alusão, e, de modo mais amplo, para todos os efeitos intertextuais. Cenas ou formas prescritas por um gênero (...) são parecidas de um filme a outro e acabam constituindo uma espécie de repertório que cada novo filme do gênero convoca, mais ou menos conscientemente. (AUMONT; MARIE, 2001, p. 143). 118 Ocorre que, ao inserir citações em grande número, Leone estava investindo na variação retórica do alusionismo, uma prática intertextual que Noël Carroll (1998) afirma ter se intensificado na virada dos anos 1960 para os 1970 (mesma época do lançamento de Era uma Vez no Oeste). Carroll relata que a prática intensificada do alusionismo foi afirmada principalmente por dois movimentos cinematográficos simultâneos: a geração New Hollywood (EUA) e o Cinema Novo alemão. Ele faz questão de lembrar que as duas ondas cinematográficas compartilhavam a mesma influência, que era a Nouvelle Vague: Ao longo dos anos 1960, aspirantes a cineastas americanos e alemães olhavam para Paris em busca de um modelo, assim como faziam os cinéfilos e amantes da Sétima Arte em geral. Os cineastas aprenderam, ou acharam ter aprendido, o que significava seriedade e ambição acerca de filmes. Eles também receberam dicas sobre edição, composição visual e improvisação, como também apreenderam a noção de alusão. (CARROLL, 1998, p. 254). Já existia alusionismo na Nouvelle Vague, mas a técnica era praticada de modo mais episódico; as alusões, muitas vezes irreverentes, eram feitas mais a convenções de gênero quanto a filmes específicos. Melville, e em menor escala Godard, ficaram conhecidos por resgatar elementos da iconografia dos filmes de gângsteres. O que os cineastas americanos e alemães fizeram foi aumentar o grau de ênfase dessa prática, muitas vezes citando diretores e filmes específicos, buscando proporcionar uma nova fonte de prazer – o reconhecimento de citações – à categoria segmentada dos cinéfilos. Carroll relaciona diversos tipos de alusionismo, apontando alguns dos principais cineastas a adotar a técnica: Brian De Palma (um dos mais entusiasmados alusionistas, enchendo filmes com citações a Hitchcock), Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Rainer Werner Fassbinder (cuja obra continha inúmeras alusões aos melodramas de Douglas Sirk). As formas de alusionismo também eram múltiplas; os diretores podiam citar através de referências a enredos, temas, composições visuais, esquemas de cores e luz, diálogos. Podiam, inclusive, incluir no enredo personagens comentando ou assistindo esses filmes antigos. Segundo Carroll, a onda do alusionismo era parte de uma estratégia de afirmação de identidade, por parte de uma comunidade transnacional de cinéfilos, que crescera ao longo da década de 1960. Daí, inclusive, a grande quantidade de alusões a filmes metalingüísticos, que se referiam ao próprio fazer cinematográfico, como A Conversação (The Conversation, Francis Ford Coppola, 1974) e Um Tiro na Noite (Blow Out, Brian De Palma, 1981): A inclusão precoce de alusões autoconscientes da prática fílmica em filmes de gênero, e seu reconhecimento por cinéfilos intrépidos, era a interação simbólica da grande ressonância emocional que havia nos anos 1960 e no 119 princípio dos anos 1970, quando a redescoberta de filmes obscuros estava ligada a um projeto cinéfilo utópico que consistia na criação de uma nova cultura globalizada comum, e um processo paralelo de auto-definição e descoberta, a adoção de uma nova sensibilidade, adequada às gerações do pós-guerra. (CARROLL, 1998, p. 263). A esse raciocínio, Bordwell acrescenta que, inseridas dentro da tessitura narrativa ou estilística, as alusões podiam passar despercebidas para a maior parte da audiência, mas o filme não deixava de ser compreendido por causa disso, ao mesmo tempo em que a narrativa se constituía em dois níveis sobrepostos: “Um enredo comum para todo mundo e alusões para os cinéfilos” (BORDWELL, 2006, p. 8). A fonte do prazer estético proporcionada pelo alusionismo, portanto, estava no regozijo dos cinéfilos que percebiam as citações, enquanto notavam que a maioria dos espectadores passava ao largo delas. Dessa forma, o cinéfilo se reconhecia como integrante de uma categoria especial de consumidores cinematográficos. Embora Carroll tenha evitado a menção a termos como pós-modernidade, a questão do alusionismo encontrou espaço dentro desse debate a partir dos escritos de Fredric Jameson (1991) sobre o pastiche. Jameson retomou o raciocínio de Baudrillard e associou a prática do pastiche à condição pós-moderna no cinema. A contribuição de Jameson foi decisiva. Ele concretizou uma definição estável de pastiche – espécie de paródia branca, em que a dimensão crítica da citação paródica era nula – e o decretou como sintoma (mais do que característica) do esgotamento das grandes narrativas, um dos aspectos centrais da condição pós-moderna. Os novos diretores usavam o pastiche, dizia Jameson, porque todas as histórias que havia para contar já haviam sido contadas. Restava aos cineastas combinar elementos de filmes anteriores para criar algo novo. Embora usem molduras teóricas e termos diferentes, Carroll e Jameson falam do mesmo fenômeno. Eles concordam em um aspecto essencial: embora o alusionismo já aparecesse pontualmente na narrativa cinematográfica desde os anos 1920, a cultura da alusão (da qual fazia parte o pastiche) havia começado efetivamente na virada dos anos 1960 para os anos 1970, tendo sido intensificada aos poucos nas décadas seguintes. Pois foi exatamente nesse momento que Sergio Leone introduziu sua revisão dos esquemas circulantes do cinema clássico, ajudando a afirmar o pastiche como técnica narrativa importante entre os diretores dos anos 1960. Operando dentro de uma geração de cineastas que cultuava o alusionismo, ele foi um dos primeiros a executar a variação mais exagerada da técnica. Por definição, o pastiche funciona como uma experiência estética que exige dois elementos sobrepostos: a intenção, por parte do artista, em imitar um trabalho anterior; e o reconhecimento, por parte da platéia, nesta intenção do artista (DYER, 2007, p. 2). Dyer 120 examinou westerns de Leone como exemplos paradigmáticos de pastiche. Neles, as referências a clássicos do gênero são encenadas de forma deliberadamente reverente, para serem reconhecidas pelos cinéfilos na platéia: Embora as referências explícitas aos westerns tivessem a intenção de expressar uma visão caleidoscópica de todos os faroestes de Hollywood reunidos, e embora essa técnica assumisse no decorrer do filme – através de um processo de intertextualidade que hoje chamamos de pós-moderna – que os espectadores pudessem reconhecer essas citações, ao menos de maneira vaga, o ponto central do exercício era criar a impressão de que a audiência estava assistindo a um filme que já havia visto antes, ao mesmo tempo em que essa impressão vinha acompanhada da certeza de que ninguém havia visto a história ser contada daquele jeito. (FRAYLING, 2005, p. 33). O pastiche é largamente utilizado em filmes, videoclipes e na publicidade. Particularmente no caso da animação infantil, isso é uma verdade inquestionável; basta conferir títulos como Shrek (Andrew Adamson e Vicky Jenson, 2001), que consiste numa extensa combinação de referências a filmes e contos de fada, consolidando fortemente a narrativa nos dois níveis a que Bordwell se refere (uma comédia irreverente para o público infantil, e uma coleção de alusões para adultos cinéfilos). Não chega a ser surpresa que o pastiche tenha encontrado abrigo dentro de um ciclo subvalorizado do cinema de gênero. Nesse sentido, é possível compreender o pastiche em Leone como um esforço (consciente ou não) no sentido de superar a condição subvalorizada. Demonstrar seu vasto conhecimento cinematográfico era, para Leone, uma maneira de legitimar-se como artista. Talvez sem ter consciência disso, ele estava trabalhando com uma narrativa em duas camadas, como diria Bordwell: um western para o público em geral e um compêndio de citações que deliciavam críticos e cinéfilos. Dyer enfatiza que o pastiche, por ser uma modalidade exagerada de intertextualidade, tornou-se a prática intertextual mais comum dentro do pós-modernismo no cinema. Citando Jameson, ele associa o pastiche a uma sensibilidade pós-moderna (DYER, 2007, p. 41) e propõe uma diferenciação específica entre pastiche e paródia. O pastiche seria uma paródia sem crítica, e não teria necessariamente humor. Jullier e Marie vão além na diferenciação: Os pastiches são imitações que visam prestar homenagem ao estilo da obrafonte ou se divertir com ela – diferentemente das paródias, que a atacam com uma veia satírica. (JULLIER; MARIE, 2009, p. 194). O trecho de Jullier e Marie traz à tona, de novo, a questão central da ironia, que permeia toda a obra de Leone, e está no bojo da releitura crítica e irreverente que ele fez do 121 sistema de códigos do western. Essa releitura irônica do gênero foi efetuada, também, através de dois outros recursos fundamentais na constituição do estilo de Leone: o perfil cínico do herói (recurso através do qual Leone operava a relativização das questões morais, apontada por Jullier e Marie como característica central do cinema pós-moderno) e a representação mais gráfica e realista da violência. A transformação dos heróis em anti-heróis é característica da continuidade intensificada (BORDWELL, 2006, p. 83). Bordwell observa que essa tendência foi ampliada ao longo das décadas de 1960 e 1970, nos filmes americanos. Em Na Mira da Morte (Targets, Peter Bogdanovich, 1968), o protagonista é um jovem perturbado que se torna assassino sem motivo plausível. Os protagonistas de Scorsese são todos anti-heróis: um ex-militar paranóico em Taxi Driver (1976), um boxeador ciumento em Touro Indomável (1980), um comediante com delírios de grandeza em O Rei da Comédia (King of Comedy, Martin Scorsese, 1983) – todos dados a rompantes de extrema agressividade, que extravasam com atos de violência encenados de forma bastante realista e gráfica. Seria coincidência que a emergência desse novo perfil de herói acontecesse justamente durante a década de 1960? É pouco provável. A aparição do novo herói (ou anti-herói), que expressa de diferentes maneiras sua desilusão social, parece ser uma característica que reflete a nova sensibilidade sócio-cultural da Europa e dos EUA. Nesse sentido, seria correto afirmar que a condição pós-moderna exerceu um papel significativo – uma pré-condição – no desenvolvimento dessa característica narrativa. Para Leone, o herói moralmente ambíguo, hedonista e violento que aparece em todos os seus filmes era uma influência da tradição literária picaresca existente na Itália, como é o caso da commedia dell’arte (LEONE, 2005, p. 203). Naturalmente, ele não se dava conta de que a emergência desse herói mais cínico estava associada, pelo menos parcialmente, à emergência de uma sensibilidade mais competitiva e hedonista que ocorria nos anos 1960. Em sua pesquisa, significativamente, Bordwell não cita Leone como um dos diretores que introduziu esse anti-herói no cinema ocidental. Sem dúvida, ele tem razão ao enxergar esse papel em alguns diretores modernistas europeus (sobretudo Godard, Fellini e Antonioni). Mas os personagens amorais, egoístas e violentos de Leone ajudaram, sem dúvida, a constituir um alicerce narrativo sobre o qual muitos diretores dos anos 1970 trabalharam a caracterização de seus personagens. Uma maneira adequada de abordar esse ponto é através da tese de Will Wright (1975), que procedeu à análise narrativa dos principais sucessos de público do western, na década de 1960, chegando à conclusão de que, se no western tradicional a sociedade era constituída por 122 uma comunidade de boa índole, apesar de fraca (um problema que o herói, capaz de unir moralidade às habilidades dos vilões, podia resolver), no novo western a sociedade passou a ser vista como fraca, degradada e essencialmente corrupta. Esse problema era insolúvel pelo herói. Se a sociedade era corrupta em seu âmago, não havia nada que ele pudesse fazer. Nos enredos dos filmes norte-americanos pesquisados por Wright, a gradual descoberta dessa natureza intrinsecamente corrupta da sociedade provocava no herói um sentimento de repulsa e desilusão. Um sentimento de isolamento e amargura, que o impedia de aceitar a integração a esta sociedade, cujos valores ele não podia e nem desejava compartilhar. Como diz Graeme Turner: A cumplicidade entre o indivíduo e a sociedade é eliminada, de modo que os heróis dos faroestes profissionais [rótulo dado por Wright a esta nova fase do gênero] descobrem que a única solução para seu problema é uma morte heróica e quixotesca em defesa de seus códigos e reputação pessoal. (TURNER, 1997, p. 95). O corpus da pesquisa de Wright inclui dois filmes de Leone. Wright não percebeu, contudo, que havia uma diferença crucial entre os anti-heróis de Leone e os bandidos desiludidos, mas profundamente românticos, dos westerns americanos dos anos 1960. Essa diferença era de ordem moral. Para os heróis americanos, o código de honra – uma importante forma interna do gênero – continuava a ser inescapável. Desta forma, quando confrontados com a fraqueza moral da sociedade, os heróis dos filmes americanos experimentavam uma desilusão tão grande que só podia levar a duas saídas: a morte heróica em um ato de autoimolação – como nos casos de Meu Ódio Será Sua Herança (1969) e Butch Cassidy & Sundance Kid (Butch Cassidy, George Roy Hill, 1969) – ou o isolamento auto-imposto fora da sociedade, caso de Mais Forte que a Vingança (Jeremiah Johnson, Sydney Pollack, 1972). Nos filmes de Leone, contudo, o herói lidava com a corrupção e a degradação social de maneira bem diferente. Ele também rejeitava o convívio social, mas não se isolava ou morria; passava a viver uma vida errante, cínica e individualista, onde o que realmente importava era o dinheiro. Para os heróis de Leone, se a sociedade tem valores morais inferiores ao herói, este último simplesmente a deixava para trás e seguia em frente, sozinho. Em outras palavras, dane-se a sociedade. A noção de releitura autoral do gênero – um processo criativo que incluía a desconstrução sistemática dos códigos do gênero e a reconstrução crítica, livre da carga ideológica que esses códigos carregavam, ao mesmo tempo incorporando recursos particulares de estilo – parece fundamental para demarcar o cinema de Leone como 123 importante no processo de revisão de esquemas narrativos que transcreveram para o meio audiovisual essa sensibilidade pós-moderna. Joe (Clint Eastwood), protagonista de Por um Punhado de Dólares, é bem diferente do herói típico dos westerns norte-americanos. Embora compartilhe com eles a perícia no uso de armas de fogo e o distanciamento emocional em relação aos personagens que vivem em comunidade, todo o resto é diferente. Ele é mais violento, mais irônico, mais solitário e, sobretudo, mais amoral. A cena de abertura do filme destaca essa diferença. Joe é mostrado cavalgando em direção a um vilarejo humilde cuja paisagem – prédios baixos e velhos – localiza a ação dramática num território inóspito. Não sabemos quem ele é, mas sabemos que é diferente do herói americano: a montaria e o figurino demarcam distância considerável do western tradicional. Joe não cavalga um cavalo branco ou negro, mas uma mula (figuras 2.1 e 2.2) – a montaria revisa ironicamente um código do western. A roupa é maltrapilha: calças velhas, poncho e chapéu sujos, tudo coberto de poeira. Ao parar para beber água (figura 2.3), Joe presencia uma cena que sinaliza a completa ausência de autoridade legal na comunidade. Uma criança se esgueira para dentro de uma casa, de onde é expulsa a chutes e tiros por dois homens que espancam o pai do garoto, morador do casebre em frente (figuras 2.4, 2.5 e 2.6). Joe observa tudo com expressão impassível (figura 2.7). Ele percebe que há, na casa invadida pelo menino, uma mulher prisioneira. É evidente que ali está sendo cometida uma injustiça. Um dos espancadores nota a presença de Joe e se adianta, em atitude hostil (figuras 2.8 e 2.9), mas nenhum dos dois dá uma palavra. Joe baixa o rosto e continua a beber água, indiferente ao que ocorre ali (figura 2.10). Percebendo que ele não representa perigo, o agressor vai embora. A criança e o homem espancado entram em seu casebre e trancam a porta. A mulher, atrás da janela, olha para Joe com expressão reprovadora, mas ele apenas dá de ombros (figuras 2.11 e 2.12). Não é problema dele. Na cena, podem ser encontradas diversas características recorrentes em Leone, mas a mais ostensiva é o perfil do herói. A atitude displicente de Joe demarca uma distância considerável entre ele e os protagonistas dos westerns americanos, onde a moralidade que se concretizava no código de honra compartilhado por bandidos e heróis praticamente exigiria que o herói reagisse àquela barbaridade. Se assim o fizesse, o herói estaria chegando a uma comunidade cujos habitantes são essencialmente bons, mas fracos. Graças à sua coragem e habilidade, ele seria capaz de eliminar as ameaças. Mas Joe não faz nada disso. Ele não sente a mínima vontade de se integrar à sociedade. Aliás, o próprio senso de comunidade não existe no filme. Com poucas 124 Figura 2.1: A primeira tomada de Por um Punhado de Dólares enfatiza o terreno seco e sem vida, por onde passa uma montaria – sabemos que nela está o herói. Figura 2.2: A câmera se ergue e revela uma silhueta diferente do herói tradicional do western: roupa velha e suja, barba por fazer, ele está montado numa mula. Figura 2.3: A arquitetura das casas não lembra em nada os casarões de madeira das cidades do western dos EUA: são casebres de tijolo caiados de branco. Figura 2.4: Dois pistoleiros chutam e atiram contra uma criança: releitura crítica de uma convenção de gênero, já que nos EUA a censura não permitiria essa cena. Figura 2.5: Armados com revólveres, os pistoleiros espancam o pai da criança a pontapés, sem que este, desarmado, tenha chance de reagir. Figura 2.6: A câmera se aproxima para mostrar um pontapé na vítima, enquadrado em close-up: exemplo de representação gráfica da violência. Figura 2.7: O herói assiste ao espancamento sem esboçar reação: amoral e individualista, o herói é diferente do protagonista-padrão do western nos EUA. Figura 2.8: No contra-plano, uma composição recessiva típica de Sergio Leone: uma figura em primeiríssimo plano e outra ao fundo, criando perspectiva. Figura 2.9: Percebendo a presença de Joe, um dos pistoleiros se adianta, numa atitude claramente hostil, esperando para ver se ele reagirá: close-up extremo. Figura 2.10: Percebendo a reação do antagonista, Joe se apressa a beber água e sinaliza que não pretende reagir ao espancamento covarde, reforçando o perfil amoral. 125 Figura 2.11: Depois do espancamento, a mulher numa janela com grades olha para Joe, com expressão de desaprovação: ele poderia ter ajudado, mas não o fez. Figura 2.12: O anti-herói de Leone devolve o olhar com uma expressão neutra, quase cínica, enfatizando a mensagem: ele não tem nada a ver com aquilo. exceções (o dono da taverna, o coveiro, o sacristão da igreja), quem mora na cidade é pistoleiro (homens) ou viúva (mulheres). Há outros aspectos nesta cena que devem ser considerados. Há, por exemplo, alusionismo e ironia. Esses elementos ficam evidentes no plano de abertura, que focaliza o chão – pedregoso, sem vegetação, esturricado. Ouve-se o galopar de um animal. As patas entram em quadro (figura 2.1); a câmera faz um leve movimento para a direita e segue o cavaleiro, revelando aos poucos o ambiente: o vilarejo mexicano, com casas de estuque e tijolo, sem moradores à vista. Uma cidade-fantasma. O enquadramento inicial e o movimento da câmera oferecem uma releitura do western tradicional em vários níveis. Um deles é a composição pictórica. Nos filmes americanos, a tomada de abertura quase sempre era um plano geral aberto que inseria o herói no ambiente. Leone reproduz esse procedimento ao mesmo tempo em que o critica com ironia, através do cenário, do animal e do figurino maltrapilho: estamos num western muito mais grotesco. Outro aspecto importante desta cena é a questão da representação da violência. Leone registra uma ação que dificilmente seria permitida pelo Código Hays. Dois pistoleiros chutam e atiram contra uma criança de cinco anos. Cenas de violência contra crianças eram proibidas em filmes americanos. Em seguida, os dois pistoleiros espancam o pai dela com chutes e socos. Tudo isso às barbas do herói, que nada faz. Joe continua o seu caminho e entra na cidade, ouvindo o ressoar do sino de uma igreja; o som repetitivo acrescenta às imagens uma atmosfera desoladora. Ele passa por uma forca (figura 2.13). Observa as ruas desertas (figura 2.14) e cruza com a futura vítima do enforcamento (figura 2.15). Os moradores dos casebres olham para fora através de brechas de portas ou de janelas entreabertas (figura 2.16). Estão curiosos, mas evitam sair de casa. Tudo isso reforça a idéia de ausência de um senso de comunidade. A ausência desse senso é fator importante na construção do perfil do herói de Leone, que tinha consciência de estar revisando certas convenções do gênero. Ele explicava assim a introdução desse novo herói: 126 Figura 2.13: Joe entra na cidade montado numa mula e passa por uma forca; o badalo longínquo de um sino sublinha o clima lúgubre e a atmosfera desoladora. Figura 2.14: A primeira rua: quase ninguém fora das casas, sinalizando a completa ausência do senso de comunidade, tão importante no western dos EUA. Figura 2.15: O primeiro cavaleiro a cruzar com Joe passa sem cumprimentá-lo; ele tem um cartaz pendurado às costas que o caracteriza como um condenado à morte. Figura 2.16: De dentro das casas, os moradores espreitam a passagem do herói pelas portas e janelas: a população do vilarejo vive intimidada pela violência. [Antes] Você não podia mostrar violência porque o herói tinha que ser uma pessoa otimista, de moral positiva. Não podia sequer representá-lo com realismo: os personagens principais tinham que se vestir como modelos de passarela. Eu introduzi um herói que tinha índole negativa, era sujo, parecia um ser humano normal, e estava totalmente à vontade com a violência que o rodeava. (LEONE, 2000, p. 126). Mais à frente, Joe passa por um grupo de pistoleiros que goza dele (“não é inteligente vagar longe de casa”) e, num gesto aberto de hostilidade, atiram em direção às patas da mula que ele monta, da mesma maneira que os dois pistoleiros vistos na cena anterior haviam feito com o menino. Moral da história: não existe mesmo nenhum tipo de autoridade naquela cidade. Mais uma vez, Joe parece impassível, e não faz qualquer menção de revidar. Ele segue, entra na única hospedaria da cidade e se apresenta a Silvanito (José Calvo), o dono do lugar, falando pela primeira vez (um seco “olá”) aos sete minutos e 51 segundos. A essa altura, tanto o ambiente onde transcorre a ação dramática quanto o herói já estão bem delineados, assim como está demarcada a diferença entre este último e sua contraparte norte-americana. Estamos em um lugar onde as regras habituais de civilização não existem. As ruas vazias e os comentários dos personagens confirmam que ali não há nada que lembre uma comunidade. A julgar pelo comportamento do herói, que não demonstra surpresa em encontrar esse cenário, não se trata de uma exceção; embora tenha testemunhado dois acontecimentos em que a expectativa da violência é explícita, além de moralmente injusta, Joe não esboçou sinal de indignação. Ao contrário. Após alguns minutos de conversa com 127 Silvanito, inteirando-se do contexto social daquele lugar (dominado por duas gangues rivais), Joe já elaborou um plano para tirar proveito dele. Então, ele se dirige à mansão que Silvanito indicou ser da gangue mais poderosa – os Rojos –, diz saber que eles estão contratando pistoleiros e pede que o observem. Em seguida, ele se dirige à mansão no lado oposto da rua, sede do grupo rival e lugar onde se encontra o grupo de pistoleiros que troçou dele, minutos antes. De passagem pela hospedaria, Joe fala com o coveiro, que está na porta de entrada, pedindo que ele deixe três caixões preparados. Hoje, com o perfil do herói apreendido pelas platéias, ninguém se surpreende com o que vem a seguir. Mas o tiroteio demarca uma série de desafios ao sistema de códigos do western, com a introdução de elementos de ironia, de uma encenação que fragmenta o espaço fílmico de maneira incomum, bem como de uma forma mais gráfica de representação da violência. Todos são recursos que revisam os esquemas estilísticos e narrativos do gênero, e se tornariam depois ferramentas da continuidade intensificada. Joe pára diante dos pistoleiros (figura 2.17) e desafia os quatro em tom debochado. Diz que não ficou chateado com a recepção violenta, mas que sua mula sim. Após a reação hostil já prevista, ele os enfrenta num duelo clássico, sacando antes e acertando todos os quatro com tiros antes que qualquer um deles consiga revidar. Em seguida, se dirige à taverna de Silvanito. Ao passar pelo coveiro, boquiaberto, pede desculpas: “Errei a conta. Quatro caixões”. Leone encerra o tiroteio, decupado de maneira bem diferente do que seria feito num western norte-americano, com uma piada irônica. A cena escancara o caráter individualista de seu herói. Joe não está preocupado em defender os moradores. O plano que ele estabelece consiste em trabalhar alternadamente para as duas quadrilhas, de forma a ganhar dinheiro dos dois lados. O bem estar da comunidade não interessa em absoluto ao anti-herói de Por um Punhado de Dólares; ao se deparar com uma oportunidade de ganhar dinheiro, tudo o que ele deseja é embolsar o máximo possível. Esta cena também demarca uma maneira diferente de decupar um tiroteio – um conjunto de escolhas estilísticas incomuns nos westerns de até então. Leone alterna close-ups extremos de rostos (de Joe, dos pistoleiros e de algumas das testemunhas, como o garçom e o coveiro, nas figuras 2.20 a 2.23), planos-detalhes (revólveres, mãos e dedos, na figura 2.24) e poucos planos gerais e médios (figuras 2.17 e 2.19), produzindo um efeito de fragmentação do espaço e distensão do tempo fílmico que se tornariam uma marca registrada. Nos planos gerais, Leone com freqüência registra as cenas utilizando grande profundidade de campo, encenando duas ou mais ações a diferentes distâncias da câmera; uma delas é sempre muito próxima (a figura aparece numa das bordas da imagem, 128 Figura 2.17: A cena inicia com um plano de conjunto em que dois bandidos emolduram Joe, mais atrás: composição recessiva com o protagonista no centro. Figura 2.18: No contra-plano, três dos pistoleiros são mostrados em camadas diferentes, numa composição recessiva que enfatiza a profundidade de campo. Figura 2.19: Estabelecidas as relações espaciais, Leone passa a fragmentar a cena em enquadramentos mais fechados, começando com um plano médio de Joe. Figura 2.20: O primeiro close-up extremo evoca uma convenção do western, com o chapéu encobrindo os olhos e aumentando a aura de mistério do herói. Figura 2.21: As testemunhas que assistem ao confronto são mostradas também em close-ups, os rostos queimados de sol aumentando a verossimilhança. Figura 2.22: Joe não tira o cigarro da boca nem para falar; o cigarro mastigado entre os dentes virou marca dos personagens que Eastwood fez para Leone. Figura 2.23: A atitude dos pistoleiros muda do deboche para a tensão, expressa pelo silêncio; enquadramento combina close-up extremo com composição recessiva. Figura 2.24: A abundância de close-ups extremos fragmenta o espaço fílmico e produz um efeito de dilatação do tempo que amplia a tensão. Figura 2.25: O uso da câmera baixa permite que Leone registre no mesmo plano os tiros sendo disparados e os pistoleiros atingidos caindo: desafio aberto à censura. Figura 2.26: Composição visual recessiva típica de Leone: mão em primeiríssimo plano, vítimas num segundo plano distante, tudo registrado com nitidez. 129 funcionando como moldura dela) e outra fica distante. São composições recessivas (WÖLFFLIN, 2000, p. 101) com todas as camadas visuais mantidas em foco nítido. Quase sempre, quando esse recurso é usado, as ações vistas em primeiro e segundo plano estão co-relacionadas, uma interferindo na outra. Por exemplo, em primeiríssimo plano, entrando em quadro por um dos lados e servindo como uma moldura que dava profundidade ao quadro, fica uma figura (mão, revólver, coldre, nuca), enquanto ao fundo outras figuras reagem ao elemento em primeiro plano (figuras 2.25 e 2.26). Veremos no próximo capítulo como influências pictóricas diversas (diretores como Eisenstein, Mizoguchi e Orson Welles, e também pintores dos quais Leone gostava) influenciaram esse tipo de composição pictórica. Por fim, a maior de todas as transgressões. Leone filmava no mesmo plano a arma disparando e a vítima atingida desabando (figuras 2.25 e 2.26). Esse procedimento estilístico sofria, em 1964, um limite de censura. Um cineasta americano não podia filmar dessa maneira. O Código Hays proibia esse procedimento. Num tiroteio de filme de Hollywood, a bala saindo do revólver e seu efeito (a vítima sendo atingida) tinham obrigatoriamente que ser mostrados em tomadas diferentes, para que o corte entre os dois planos suavizasse a violência da situação dramática. Mas Leone estava livre desse limite, já que trabalhava na Itália e sem nenhuma obrigação contratual com estúdios dos Estados Unidos. Ao insistir em não cortar no momento dos tiros, ele também realizava uma representação mais realista da violência. Foi a partir de cenas como essa que os filmes de Leone passaram a ser acusados, pela crítica da época, de transformar a violência em pura retórica, em espetáculo sem significado moral. Essa forma gráfica de representar a violência, contudo, é recorrente nos demais filmes de Leone, tem relação direta com a relativização dos limites morais (pré-condição que também produziu o perfil ambíguo do herói) e mostrou-se muito influente no cinema das próximas décadas. Nesta cena em particular, Leone adaptou a composição recessiva com moldura e profundidade de campo à violação deliberada de uma convenção estilística do western norteamericano: a tomada que mostra Clint Eastwood atingindo os quatro pistoleiros foi composta com a mão do ator em primeiríssimo plano, para que o público pudesse ver detalhadamente os quatro disparos do revólver, enquanto os atores que interpretam os vilões vão caindo, sucessivamente, em segundo plano, dentro da mesma composição imagética. Não há cortes. Ao filmar as quatro mortes numa única tomada, Leone conseguia três objetivos: relia criticamente um código do western, enfatizava a expertise do seu anti-herói, e concebia um plano de composição pictórica inventivo. 130 O novo herói, a ironia e a questão da violência contribuíram para que os filmes de Leone recebessem, na época, um julgamento negativo de valor. No entanto, com o recuo proporcionado pelo tempo, é possível observar (e a própria crítica o fez, a partir dos anos 1970) que esses recursos concretizavam a sensibilidade pós-moderna. Outras três cenas de Por um Punhado de Dólares levaram a crítica a pensar que Leone estava indo longe demais na questão da representação da violência. A primeira mostra o massacre de uma tropa de soldados mexicanos cometido pelo líder dos Rojos, Ramón (Gian Maria Volonté). A segunda é uma cena, em que Joe invade um casebre para libertar a mulher prisioneira (Marianne Koch) vista no início do filme. Ele o faz matando cinco homens, um dos quais é baleado à queima-roupa enquanto está ferido e desarmado – espécie de heresia que violava o código de honra do western norte-americano. A terceira mostra Joe sendo espancado pelos Rojos, numa longa seqüência recheada de close-ups sangrentos. A violência em si não chegou a ser um problema na primeira cena (figuras 2.29 e 2.31). Não se vê sangue em nenhuma tomada. Ela é mais chocante pela quantidade de mortes e pela gratuidade com que os soldados são dizimados por um só homem, armado com uma metralhadora (figuras 2.27 e 2.28). Volonté interpreta a cena com modos sádicos: enquanto maneja a arma, ele gargalha incontrolavelmente, o prazer em matar visível no seu rosto (figuras 2.30). Depois da matança, a cena acaba com o único sobrevivente tentando escapar. Ramon o acerta de longe, praticamente sem mirar (figura 2.32). A cena o estabelece como vilão, contrapondo sua habilidade com um rifle à do herói com revólveres. Numa leitura apressada, aos olhos de espectadores menos atentos, poderia parecer não haver diferença entre herói e vilão. Afinal, os dois não sentem nenhum pudor em apertar o gatilho para arrecadar dinheiro. Leone soluciona o dilema com esta cena, enfatizando um aspecto psicológico: Ramon é um psicopata. Gosta de matar, sente prazer com isso. Joe não; só mata quando tem algo a ganhar. Não chegava a ser uma grande diferença num universo tão violento e individualista (para a crítica da época, um western com herói e vilão tão parecidos era um escândalo de amoralidade), mas demarcava uma distância narrativa importante. Após essa cena, há um longo interlúdio que enfatiza a amoralidade de Joe. Ele monta um plano para forçar um confronto entre os dois grupos rivais, atraindo ambos para um confronto no cemitério da cidade. Enquanto as gangues duelam, a cidade fica vazia, de forma que Joe ganha tempo e oportunidade para procurar o esconderijo do ouro roubado pelos Rojos. O herói não está interessado em livrar o vilarejo dos vilões, mas simplesmente em pegar o dinheiro para si. Sua motivação é individual, completamente fora da lei, e demarca fortemente o não-pertencimento à sociedade. 131 Figura 2.27: Leone inicia a cena com um plano de conjunto tradicional, que enfatiza (em primeiro plano) Joe e o amigo espionando o acampamento militar. Figura 2.28: Tomadas subjetivas que mostram a visão do assassino (compostas com moldura e em profundidade de campo) são freqüentes na cena. Figura 2.29: Embora não seja possível ver sangue em uma só tomada, a coreografia de quedas montada pelos dublês italianos reforça a idéia de violência excessiva. Figura 2.30: Leone registra em planos médios a expressão de prazer e gozo de Ramón, que maneja a metralhadora com gosto, fazendo dele um psicopata. Figura 2.31: O massacre cometido por um único homem pode ser interpretado como uma crítica indireta ao uso da tecnologia nas guerras travadas em solo europeu. Figura 2.32: Ramón encerra o massacre abatendo com um tiro certeiro o único sobrevivente; o público percebe que o vilão tem uma mira tão boa quanto o herói. A ausência do código de honra característico do western é explicitada de forma mais ostensiva numa cena mais à frente, em que o personagem se compadece da situação difícil da família com a qual cruzou na cena de abertura (já analisada). Depois de presenciar outras humilhações, Joe decide intervir e libertar a família. Um herói tradicional de faroeste não precisaria explicar essa intervenção, pois ela seria natural e esperada pelo público; um homem tão individualista quanto Joe, porém, tem que fazê-lo – e o faz de maneira lacônica, mas reveladora: “Conheci uma pessoa como você, e não havia ninguém lá para ajudar”, diz, na única frase pronunciada por ele em todo o filme que alude a um episódio (misterioso) do passado. Será que a desilusão, a solidão e a impassividade de Joe advêm de um trauma pessoal que ele jamais superou? Propositalmente, Leone não responde a essa questão. Ele não está interessado em psicologizar o personagem. Esta cena também exemplifica a construção da narrativa através 132 Figura 2.33: Composição recessiva com profundidade de campo: Joe (em primeiro plano) invade o casebre onde pistoleiros (segundo plano) mantêm uma mulher refém. Figura 2.34: Enquadrado em plano médio e sem demonstrar sinais de medo ou nervosismo, Joe abre fogo assim que os cinco pistoleiros ameaçam reagir. Figura 2.35: Quatro pistoleiros estão mortos e um, ferido, ainda vive; mesmo com ele desarmado, Joe abre fogo – e viola uma convenção do western tradicional. Figura 2.36: Leone inclui um plano próximo do pistoleiro morto, para acentuar ainda mais a operação de revisão de um esquema do gênero que acabou de efetuar. da técnica do alusionismo; só que aqui, ao invés de aludir a algum western do passado, Leone insere uma das muitas referências bíblicas no filme (a criança se chama Jesus, e o episódio evoca a passagem de Herodes descrita no Novo Testamento), sugerindo uma leitura do personagem de Clint Eastwood como uma espécie de anjo vingador. Ainda não se trata de pastiche, mas o alusionismo é evidente. Para conseguir a vingança, Joe precisa usar sua habilidade com as armas. Ele invade o casebre e atira nos pistoleiros (figuras 2.33 e 2.34). Enquanto destrói a casa, percebe que um dos cinco ainda se move, mesmo ferido. Joe saca o revólver e atira nele à queima-roupa (figuras 2.35 e 2.36). Na época, essa cena era capaz de causar indignação. Nos filmes americanos, o herói sempre demonstrava respeito para com o rival, e jamais atirava em alguém desarmado, muito menos se ele estivesse ferido. O terceiro momento transgressor é o espancamento de Joe pelos capangas dos Rojos. A cena dura dois minutos e 39 segundos (159 segundos). É o momento mais sangrento de Por um Punhado de Dólares. Leone registra o espancamento nos mínimos detalhes, iniciando com um close-up extremo do rosto ensangüentado de Clint Eastwood (figura 2.37). Na banda sonora, a violência é sublinhada e amplificada pela risada maníaca que um dos integrantes da gangue jamais interrompe em nenhum momento da agressão, um som que proporciona ainda continuidade temporal às tomadas da agressão (figura 2.38). Eastwood leva chutes, socos, tem a mão queimada e pisoteada (figuras 2.39, 2.40, 2.41 e 2.42). Esta é outra subversão de um código do western. Nos filmes norte-americanos, o 133 Figura 2.37: A cena de espancamento de Joe dura 159 segundos e inclui uma série de close-ups extremos do rosto ferido: representação gráfica da violência. Figura 2.48: Durante o espancamento, um dos integrantes da gangue dos Rojos permanece gargalhando histericamente, enquanto o herói sofre. Figura 2.39: Um dos capangas da gangue atira Joe ladeira abaixo; ao fundo, o som insistente da gargalhada reforça o ambiente de intimidação e violência. Figura 2.40: Numa das pausas do espancamento, o autor das gargalhadas provoca uma queimadura na mão do herói com uma ponta de cigarro aceso ... Figura 2.41: ... e já que o herói não tem mais forças para se levantar, passa a ser agredido com chutes e pontapés pelo restante da gangue, aumentando o sadismo. Figura 2.42: O plano-detalhe que encerra a cena do espancamento mostra um dos pistoleiros quebrando os ossos da mão esquerda de Joe com a bota. herói sempre enfrenta dificuldades para cumprir sua tarefa, mas nunca submetido a tanta violência. O grau de violência (acentuada pelo sangue e pelos ângulos de câmera mais próximos) leva a encenação em direção à continuidade intensificada. 2.2 Dupla de anti-heróis Em seu segundo western, Leone repetiu o perfil do herói e intensificou a construção narrativa em larga escala, criando dois protagonistas que dividem o tempo de tela e bifurcam a trama em duas narrativas paralelas. Os heróis de Por uns Dólares a Mais são igualmente solitários, implacáveis e tecnologicamente avançados. A divisão do protagonismo era um passo em direção à narrativa em rede, outra característica da continuidade intensificada. A narrativa em rede consiste, para Bordwell (2006, p. 89), em enredos cujo protagonismo é dividido entre mais de um personagem. Essa construção narrativa era 134 praticada desde Grande Hotel (Edmund Golding, 1932), só que de forma menos enfática – quase sempre era possível reconhecer um, entre os personagens importantes, que detinha o ponto de vista da história, de forma que se pressentia nele um protagonista oculto – e numa quantidade menor de filmes. Nos anos 1960, a divisão do protagonismo começava a ser mais explorada, e com graus maiores de ênfase. É o que acontece em Por uns Dólares a Mais, onde o tempo de tela e o ponto de vista da narrativa são divididos igualmente. Entre os dois heróis existe rivalidade, mas também respeito. Entretanto, ambos são igualmente individualistas. Não estão interessados em valores sociais. Daí a profissão que os dois cultivam: caçadores de recompensas – uma profissão que, a partir deste filme, se tornou uma espécie de clichê narrativo onipresente nos enredos dos spaghetti westerns (e também de alguns faroestes norte-americanos posteriores). A seqüência de abertura de Por uns Dólares a Mais oferece um exemplo simples, e ao mesmo tempo bastante rico, do perfil do herói de Leone e da vontade do diretor em revisar criticamente os esquemas do western, quase sempre através da ironia e do distanciamento crítico. O mais interessante é que nenhum dos protagonistas aparece em quadro. A tomada mostra, a grande distância e de ângulo alto, um cavaleiro cruzando uma planície deserta (figura 2.43). Esta imagem bate com a típica cena de abertura dos faroestes tradicionais norte-americanos, que quase sempre começam com um plano de conjunto mostrando o herói e o ambiente onde a ação dramática ocorre. No entanto, apenas alguns segundos são necessários para que seja possível perceber algo diferente. No filme italiano não há a tradicional música sinfônica. No lugar da música, pode-se ouvir, através do canal central do sistema sonoro, uma série de ruídos: um assobio, um rifle sendo engatilhado, um cigarro acesso e depois tragado. Esses ruídos sinalizam ao espectador que a câmera não representa uma visão objetiva da ação dramática, mas sim um ângulo subjetivo. O uso de sons fora do quadro indica que compartilhamos o ângulo de visão de alguém que pertence à diegese, alguém cujo olhar é o olhar da câmera. Quem seria ele? A continuidade da longa tomada esclarece o mistério. Ouvese um tiro de espingarda cujo eco percorre toda a planície. O cavaleiro que galopa à distância cai do cavalo (figura 2.44). Está morto. Os créditos aparecem, acompanhados da música de sabor satírico de Morricone, com tiros de espingarda e galopes de cavalo demarcando a percussão e abrindo buracos de bala nos títulos (figura 2.45), outro elemento de ironia acrescentado por Leone, num jogo inteligente entre a diegese (os tiros) e a extra-diegese (a brincadeira com os grafismos, representados pelos créditos). 135 Figura 2.43: A abertura de Por uns Dólares a Mais parece aludir a uma convenção do western tracional: a tomada de ângulo alto do herói cavalgando no deserto. Figura 2.44: Leone subverte essa convenção através dos sons fora do quadro de um pistoleiro armando um rifle; o homem no cavalo é abatido com um tiro em seguida. Figura 2.45: Ao introduzir a música e os créditos, Leone cria um jogo entre o diegético e o extra-diegético, fazendo o som dos tiros funcionar como percussão ... Figura 2.46: ... enquanto os créditos são “perfurados” seguidamente pelas balas; a cena termina com o nome dele próprio sendo “abatido” pelos disparos do “herói”. Esse mesmo jogo entre a diegese e a extra-diegese aparece na melodia principal, inicialmente assobiada pelo assassino dentro da diegese, e depois solada (também com assobios, numa dupla alusão ao personagem que acabara de matar o cavaleiro e ao filme anterior de Leone, cujo tema central era assobiado) dentro da canção de abertura (ou seja, fora da diegese). O nome de Leone, no final dos créditos, é “abatido” a tiros (figura 2.46). Só então surge o letreiro que esclarece a longa tomada de abertura: “Onde a vida não tem valor/A morte, às vezes, tem um preço/É por isso que os caçadores de recompensa apareceram”. Além do uso dos sons fora de quadro e da utilização da ironia na construção narrativa (através tanto das imagens quanto do som), é importante assinalar a releitura crítica de uma convenção do western, que é a inversão da tomada panorâmica de abertura como momento de apresentação simultânea do herói e do cenário. Ao evocar a tradição da tomada panorâmica de ângulo alto – um dos planos preferidos de John Ford, repetido em filmes como Rastros de Ódio (1956) e Legião Invencível (She Wore a Yellow Ribbon, John Ford, 1949) –, Por uns Dólares a Mais incentiva o espectador a pensar que o cavaleiro que ele vê à distância seria o protagonista do filme, como ocorre em quase todos os westerns norte-americanos. Em seguida, Leone deliberadamente subverte essa expectativa ao fazer com que o cavaleiro seja atingido por um tiro e morra. Se morre, ele não é o herói. E se o herói está sempre presente nessa tomada de abertura, então ele é o homem fora do quadro, o caçador de recompensas, como esclarece o letreiro que finaliza a cena. Um homem que se esconde para abater outro, cuja chance de defesa é nula, quase como se estivesse numa caçada de animais – 136 alguém cuja moralidade é, no mínimo, duvidosa. Não importa se a vítima do disparo era um criminoso; importa que ele não teve chance de se defender. O código de honra do western americano é mais uma vez deixado de lado. O efeito pretendido – confundir o espectador através da violação explícita de uma convenção para, a partir daí, levá-lo a questionar o uso dos códigos do gênero no restante da narrativa – é alcançado através de da combinação de encenação simples (um plano-seqüência com a câmera fixa, recurso de estilo comum até os anos 1940 mas em desuso nos anos 1960), sons fora do quadro, música que incorpora ruídos da diegese e intervenções gráficas (os créditos “perfurados” pelos tiros ouvidos na trilha sonora). Não custa lembrar que esse procedimento – subverter as convenções de gênero – deve ser compreendido como uma tentativa consciente de estabelecer e levar a cabo um projeto autoral calcado nas noções de intertextualidade e estilo: ao recorrer ao repertório de convenções estabelecido e reconhecível, e ao mesmo tempo questioná-lo (através da ironia e do alusionismo, principalmente), Leone está realizando um “jogo interno” entre elementos familiares e elementos novos – está inscrevendo autoria dentro do gênero. A ironia, outro recurso narrativo importante, fica mais clara na cena seguinte, em que o pistoleiro fora de quadro é apresentado. A cena acontece num trem. O plano de abertura mostra uma Bíblia (figura 2.47). Sem ter o rosto à vista, o homem que está atrás da Bíblia pergunta ao bilheteiro do trem, que passa no vagão onde ele se encontra, em quanto tempo o veículo passará por Tucumcari. “Três ou quatro minutos”, responde o bilheteiro. O rosto do passageiro permanece escondido atrás da Bíblia. Ele está vestido de preto, de onde se supõe que se trata de um padre ou de um reverendo. Este é um código de figurino integrante do repertório de convenções do gênero western. O passageiro que está sentado no banco vizinho, de frente para ele, puxa conversa (figura 2.48), dizendo que o trem não fará parada em Tucumcari. Só então o misterioso personagem abaixa a Bíblia, revelando – ao mesmo tempo para o espectador e para o passageiro tagarela – a expressão carrancuda do ator Lee Van Cleef (figura 2.49). “Este trem vai parar em Tucumcari”, decreta com firmeza, levantando-se. O reenquadramento operado nesta última tomada, que dura apenas dois segundos, é um exemplo da forma econômica com que Leone usava os primeiríssimos planos para gerar um efeito intertextual que ao mesmo tempo evocava um esquema de gênero e o subvertia. A tomada inicia com um close-up extremo do rosto de Lee Van Cleef, ressaltando a expressão confiante. Então o ator se levanta e ajusta o casaco preto, deixando entrever um revólver Colt e um cinturão de balas (figura 2.50). 137 Figura 2.47: Vestido de negro e com o rosto escondido atrás de uma Bíblia, o Coronel Mortimer é introduzido no filme como se fosse um padre ou reverendo. Figura 2.48: O passageira sentado no banco da frente do trem puxa conversa com o “padre”, informando-o que a trem não vai parar na cidade que é o destino dele. Figura 2.49: Close-up extremo do rosto mau-humorado revela (ao passageiro e ao público) que não se trata de um padre: revisão crítica do gênero através da ironia. Figura 2.50: O ator se ergue e seu gesto, associado ao reenquadramento, deixa o público ver um revólver: ele é o caçador de recompensa ouvido na cena anterior. Neste caso, Leone usa o figurino para confirmar o pertencimento do filme ao gênero, ao mesmo tempo em que o subverte pela ironia: roupas negras sempre foram tradicionalmente reservadas para personagens violentos, nos westerns americanos, mas padres (personagens naturalmente opostos à idéia da violência) também usam roupas negras. É este tipo de jogo intertextual (no caso, com o figurino) que permite a Leone inscrever uma marca autoral na narrativa sem dissociá-la do gênero. A ironia também está presente na cena seguinte, cuja função narrativa parece ser, mais do que confirmar a profissão de caçador de recompensas, enriquecer a caracterização do personagem. Na estação de Tucumcari, Lee Van Cleef se dirige à cabine do bilheteiro, onde ao lado está colado um pôster oferecendo uma recompensa de US$ 1.000 (figura 2.51) por um assassino. Enquanto o bilheteiro ri de uma piada (figura 2.52), o homem vestido de negro mantém a expressão fechada (figura 2.53); descola cuidadosamente o pôster da parede (figura 2.54) e guarda. O bilheteiro pára de sorrir. O personagem de Van Cleef se chama Coronel Mortimer. É um ex-oficial do Exército Confederado (derrotado na guerra civil) que virou caçador de recompensas. As três cenas analisadas aqui têm o objetivo narrativo principal de estabelecer a personalidade dele, sem qualquer eixo de ligação com a ação dramática (nesse ponto, a construção narrativa evoca outra característica da continuidade intensificada, em que os eventos que compõem a trama 138 Figura 2.51: O cartaz, com prêmio oferecido pela captura de um criminoso “aumentado” pelo próprio, é exemplo da ironia com que Leone tratou o western. Figura 2.52: O bilheteiro, sorrindo (e enquadrado num close-up que fragmenta o espaço fílmico), afirma que ninguém tem coragem de enfrentar o assassino. Figura 2.53: A expressão do Coronel Mortimer (também enquadrado em close-up), que olha para o bilheteiro sem se perturbar, faz o outro homem parar de sorrir. Figura 2.54: O gesto cuidadoso que ele faz em seguida – descolar e guardar o cartaz de recompensa – permite antever a personalidade metódica do personagem. possuem ligações mais frágeis). E esta personalidade se ajusta perfeitamente à atitude amoral, individualista e violenta do protagonista de Por um Punhado de Dólares. Mortimer vive e trabalha sozinho. Não demonstra nenhuma vontade de integrar-se à sociedade – daí o caráter taciturno. Sua rotina consiste em viajar de cidade em cidade, à procura de malfeitores a capturar. A postura passa a noção de calma mesmo nas situações de tensão, o que denota experiência; trata-se de alguém que vive essa rotina violenta há muito tempo, e já se acostumou com ela. Para se proteger dos perigos que a rotina lhe impõe, Mortimer se mostra paciente e meticuloso com tudo o que diz respeito à proteção pessoal – as roupas limpas e o zelo que demonstra ao descolar o cartaz da parede e dobrá-lo com cuidado, por exemplo, são sinais visuais desse pragmatismo. Essa personalidade pragmática é manifestada de forma mais ostensiva em cenas subseqüentes, que enfatizam o domínio tecnológico do personagem. Ele possui lunetas para observar os inimigos (figura 2.55), e mantém limpo um arsenal de rifles desmontáveis (figura 2.56). Quando precisa abrir um cofre, recorre à tecnologia – usa um ácido que corrói as trancas internas, abrindo o cofre sem danificar o dinheiro. Esse aspecto do domínio da tecnologia não apenas demarca uma distância considerável dos heróis dos filmes americanos (os quais, em geral, desgostam da necessidade de usar armas de fogo, embora sejam bons no manejo delas), mas também explicita a aproximação do herói do spaghetti western ao contexto social dos anos 1960, quando a sociedade estava mais exposta a imagens de violência por conta da televisão e de outras 139 Figura 2.55: Durante todo o filme, o Coronel Mortimer carrega consigo um arsenal de revólveres e rifles desmontáveis, que ele limpa todas as noites. Figura 2.56: Caçador de recompensas experiente, ele sabe que quem lida com a morte só fica vivo se for dominar as mais recentes tecnologias da violência. mídias de massa (era a época da Guerra Fria, dos confrontos no Leste europeu, dos conflitos bélicos na Coréia e no Vietnã), e cuja urbanização acelerada não apenas enfatizava a importância da tecnologia, mas disparava uma onda de hedonismo e competitividade social que isolava cada vez mais os indivíduos. Mortimer também personifica outro aspecto-chave da obra de Leone, que é o diálogo por vezes paradoxal e contraditório entre passado e futuro, entre tradição e modernidade. Se por um lado o ex-oficial confederado incorpora os traços amorais do novo herói, por outro mantém um pé no passado; quando a trama principal é revelada, consistindo na perseguição a um assaltante chamado El Indio (Gian Maria Volonté), descobrimos aos poucos que ele tem uma motivação pessoal para querer capturar o bandido: vingança. Essa descoberta acontece através de flashbacks progressivos, avanço em direção à fragmentação cronológica do enredo, característica da continuidade intensificada na construção narrativa em larga escala. Nesse ponto, é essencial chamar a atenção para um ponto importante: o cinema modernista europeu dos anos 1960 vivia, de maneira geral, uma tendência à fragmentação da narrativa fílmica, tanto do ponto de vista cronológico quanto do número de personagens. O primeiro aspecto era conseguido através do uso de flashbacks. David Bordwell rastreia o início do uso desse recurso duas décadas antes que Leone começasse a dirigir: “Nos anos 1940, apesar de os manuais de roteiros mandarem escritores evitarem flashbacks, os filmes estavam cheios deles” (BORDWELL, 2006, p. 89). A influência de Cidadão Kane (1941), nesse caso, não pode ser desprezada. No entanto, foi nos anos 1960 que essa tendência passou a ser intensificada. As experiências de Alain Resnais – sobretudo nos filmes Hiroshima Mon Amour (Alain Resnais, 1959) e O Ano Passado em Marienbad (L'année Dernière à Marienbad, Alain Resnais, 1961) – com a desconstrução da narrativa incentivaram roteiristas e diretores a fragmentar ainda mais o enredo, e de modo mais ousado. Essa fragmentação se dava tanto numa dimensão cronológica (a narrativa cronologicamente linear dava lugar a filmes recheados de flashbacks, nem sempre motivados por lembranças de personagens ou por alguma exigência do roteiro) 140 quanto em termos de unidade narrativa, expressa através do desenvolvimento de maior número de personagens, eventualmente dividindo o protagonismo do filme entre alguns deles. Como já vimos, essa prática narrativa gerou as chamadas narrativas em rede, que se tornariam mais complexas a partir dos anos 1970. Sergio Leone deu sua contribuição ao processo de fragmentação da narrativa, experimentando suas duas principais variações. Mas voltemos, por enquanto, à questão do perfil do herói. Segundo Will Wright (1975), a temática da vingança proliferou no western a partir do início dos anos 1950 e se tornou bastante comum na década seguinte, aparecendo em filmes como Winchester 73 (1950), Um Certo Capitão Lockhart (The Man From Laramie, Anthony Mann, 1955) e A Face Oculta (One-Eyed Jacks, Marlon Brando, 1960), todos protagonizados por homens torturados por traumas do passado e em busca de vingança. Edward Buscombe detalha esta mudança no perfil do herói da seguinte maneira: No enredo clássico o herói, que está de início fora da sociedade, é forçado a entrar nela porque a sociedade é desafiada e não consegue se defender sem a ajuda de um homem forte. No enredo de vingança, o herói é forçado a sair da sociedade para perseguir sua vingança. Os vilões continuam a ser antisociais, mas representam uma ameaça mais para o herói em si do que para a sociedade como um todo, que agora permanece mais bem estabelecida. Ao perseguir sua vingança, o herói entra em conflito com os valores sociais. (...) O enredo de vingança, portanto, aponta para uma incompatibilidade crescente entre o herói e a sociedade. (BUSCOMBE, 1988, p. 211). A última frase deixa evidente a distância existente entre o herói do western norteamericano e o anti-herói do spaghetti western. O primeiro é obrigado a deixar para trás a sociedade, de modo a perseguir a vingança sem sofrer uma condenação de ordem moral; ele está livre para retornar ao convívio social quando conquistar essa vingança, ou se desistir dela. Isso acontece, por exemplo, no ciclo de sete filmes de Budd Boetticher protagonizados por Randolph Scott, como Sete Homens Sem Destino (1956), e na série de cinco títulos de Anthony Mann estrelando James Stewart, entre os quais Região do Ódio (The Far Country, Anthony Mann, 1954). Neles, a “incompatibilidade crescente entre o herói e a sociedade”, como aponta Buscombe, é apenas temporária. Nada disso ocorre no mundo de Leone, onde o senso de civilização – a sociedade para onde o herói pode voltar após o acerto de contas com os traumas do passado – está ausente. Sem dúvida, os heróis de Boetticher e Mann influenciaram concretamente o trabalho de Leone; no entanto, trabalhando longe dos limites impostos por Hollywood e influenciado (conscientemente ou não) pela contracultura irreverente da Europa, que funcionava como précondição para o desenvolvimento de recursos estilísticos, Leone pôde levar essa 141 incompatibilidade entre herói e sociedade a um patamar mais intenso. A dissociação entre herói e sociedade é definitiva. Não permite um retorno, porque não há para onde retornar. O western americano compartilhava da mesma representação social, em que a sociedade era vista como corrupta e hedonista, minimizando dessa forma os laços sociais e afetivos entre os indivíduos. Mas a cultura norte-americana tratava de enfatizar o herói como um guardião nostálgico de uma sociedade antiga, cujos valores morais eram mais puros e positivos. Vendo o mundo se tornar mais cínico, esses homens freqüentemente buscavam uma morte honrosa ou passavam a viver isolados. Leone partiu da mesma percepção – a urbanização que isolava os indivíduos – e propôs uma leitura diferente, em que o herói observava a corrupção com cinismo, dava as costas para a sociedade e passava a levar uma vida errante e amoral. Para sobreviver num ambiente hostil, ele tinha que se acostumar com a violência. Tinha que dominá-la. Essas características estão sintetizadas em Mortimer. Seu individualismo taciturno empresta traços do caráter estóico dos heróis de Boetticher, e é possível vislumbrar a influência dos heróis traumatizados do western psicológico dos anos 1950, mas Leone revisava esse esquema ao misturar essas características com ironia, senso de humor negro, religiosidade cristã – um traço da cultura italiana também perceptível na grande quantidade de simbologia religiosa presente nos filmes – e uma irreverência quase juvenil, cuja origem está na contracultura européia da época. Não se pode negar a influência do zeitgeist na criação do perfil do herói de Leone. A percepção da decadência da sociedade contribuiu para que ele criasse um herói que captasse essa nova sensibilidade. A atmosfera crítica dos anos 1960, então, aparece como uma précondição importante do desenvolvimento de escolhas narrativas e estilísticas do cinema de Leone. Talvez tenha sido por isso que os filmes de Leone, e os spaghetti westerns em geral, fizeram sucesso de público. A audiência estava vendo algo que não era apenas plasticamente bonito, mas que tinha ressonância na experiência social da vida urbana daquela década. Em Por uns Dólares a Mais, Mortimer divide a cena com um segundo herói: Monco (Clint Eastwood). Este último é o mesmo personagem que liderava a ação dramática do filme anterior, apesar do nome diferente. Sergio Leone deixa isto evidente ao repetir o figurino (poncho marrom, chapéu e jeans empoeirados) e os maneirismos do personagem (o hábito de andar com pontas de cigarro nos bolsos ou no canto da boca, que acende sempre antes de pronunciar alguma frase irônica; os gestos largos e o andar preguiçoso, contrastando com a velocidade e a precisão necessárias nos momentos em que a violência irrompe; o caráter taciturno, de poucas palavras; e o humor negro). 142 Para acentuar ainda mais a semelhança, Leone introduz o personagem em uma cena que consiste numa variação do primeiro tiroteio de Por um Punhado de Dólares. O paradigma do problema/solução de David Bordwell se aplica perfeitamente a este exemplo. A cena constitui um problema de representação de natureza idêntica ao outro caso: o personagem se apresenta de forma irônica a um grupo de pistoleiros que não lhe conhece e deixa um cartão de visitas ensangüentado, baleando quatro deles. A maior diferença para o filme anterior é o cenário. Em Por um Punhado de Dólares, a cena de apresentação do herói acontece na rua; em Por uns Dólares a Mais, ocorre dentro de uma taverna (o cenário repleto de figurantes sinaliza o orçamento mais generoso que Leone teve à disposição). Monco chega à cidade de White Rocks em meio a uma tempestade; o início da primeira tomada da cena sincronizado na trilha sonora com o ribombar de um trovão (figura 2.57), num plano de conjunto criado a partir de um movimento de câmera ostensivo, que chama a atenção para si. Esse tipo de plano, aliás, aparecera apenas uma vez em Por um Punhado de Dólares (introduzindo a seqüência do duelo entre Joe e Ramon), passou a ser muito utilizado por Leone nos filmes seguintes. Trata-se de um movimento de câmera tornado famoso em E o Vento Levou (Gone With the Wind, Victor Fleming, 1939); é uma reminiscência do período clássico do cinema, tendo sido comum nas grandes produções de Hollywood dos anos 1940 e 1950. Esta é uma evidência de que o repertório de escolhas estilísticas de Leone baseava-se na solução disponível mais eficiente (revisada e intensificada, se necessário), e não exclusivamente no zeitgeist. Ele usava o que tinha à mão, independente da origem. Monco está vestido com o poncho do filme anterior. O nome do personagem é outro, mas o figurino e os gestos são idênticos. Mesmo ensopado, ele acende o indefectível cigarro, levantando levemente o chapéu de modo que os olhos apareçam apenas no final da tomada – o mesmo gesto feito segundos antes do primeiro tiroteio de Por um Punhado de Dólares (figura 2.58). Depois, entra no saloon. Ele aborda um freqüentador e pergunta por um conhecido ladrão. Leone providencia a resposta, antes que o homem responda à pergunta, dentro da própria composição recessiva da tomada: Monco e o interlocutor têm as cabeças nas extremidades do quadro, enquanto a área central focaliza, em segundo plano nítido, uma mesa com quatro jogadores. Todos usam roupas escuras, menos o que está de costas para a câmera; este veste um colete dourado, e está no centro da imagem (figura 2.59). É o bandido, claro. Monco se dirige até a mesa. Sem falar, agarra o baralho e distribui as cartas apenas entre ele e o bandido procurado (figuras 2.60). Os outros sujeitos na mesa se 143 Figura 2.57: Erguida por grua, imagem revela toda a cidade: movimento de câmera ostensivo é uma ferramenta de estilo que remonta aos anos 1930. Figura 2.58: Primeira aparição de Monco (Clint Eastwood) evoca Joe, de Por um Punhado de Dólares: poncho, cigarro e chapéu encobrindo olhos. Figura 2.59: Monco pergunta onde está o criminoso, e a composição recessiva já dá a resposta: o homem está centralizado em segundo plano (colete dourado). Figura 2.60: Sem diálogos, o jogo de intimidação praticado por Monco é encenado por Leone através de planos-detalhes de mãos e cartas de baralho ... Figura 2.61: ... além de uma decupagem que privilegia os close-ups e a troca de olhares; a técnica fragmenta o espaço e provoca a sensação de tempo distendido. Figura 2.62: Em pé, filmado em contra-plongé, Monco domina a encenação; o bandido, sentado, está subjulgado e é filmado em plongé (ver figura anterior). Figura 2.63: Quando a pancadaria começa, Leone troca os close-ups e planos-detalhes por planos gerais e médios, enquanto os atores percorrem todo o bar. Figura 2.64: Durante a luta, Monco atinge o criminoso com um golpe de caratê – uma citação divertida aos filmes asiáticos de artes marciais dos anos 1960. Figura 2.65: No momento em que Monco subjulga o adversário, a composição enquadra a porta de entrada, do lado direito, provocando a expectativa de que... Figura 2.66: ... alguém entre por ali, o que acontece poucos segundos depois – três pistoleiros aparecem para resgatar o homem que Monco dominou. 144 Figura 2.67: O pistoleiro no centro, filmado em extremo close-up, ordena que Monco largue o comparsa; ele tem apenas metade da barba feita, num toque de ironia. Figura 2.68: Encenação do tiroteio é similar à composição recessiva usada em Por um Punhado de Dólares: tiros e vítimas dentro do mesmo quadro. Figura 2.69: Ainda resta o criminoso que estava no bar desde o início; embora ele esteja ferido e desarmado, Monco o mata com um tiro a sangue-frio ... Figura 2.70: ... numa tomada em que vítima e agressor estão, de novo, enquadrados no mesmo plano. A cena termina com um plano-detalhe do revólver no coldre. entreolham, sem entender nada. Ouve-se o ruído do bar, que proporciona a sensação de continuidade temporal e sublinha a tensão crescente, num momento de distensão do tempo narrativo característico do trabalho de montagem de Leone, acentuado pelos close-ups dos dois personagens (figura 2.61 e 2.62). Os dois homens trocam socos (figura 2.63). Monco rende um adversário com um golpe de caratê (figura 2.64) no pescoço – uma alusão aos filmes de artes marciais orientais que começavam a chegar aos cinemas europeus nos anos 1960 –, e o agarra pela camisa. Ele está enquadrado em close-up, ligeiramente à esquerda, de costas para a porta de entrada da taverna, que fica enquadrada do lado direito, equilibrando a composição. O foco é nítido tanto no primeiro plano (Monco e o bandido) quanto no segundo (a porta de entrada da taverna, na figura 2.65), criando uma composição recessiva com moldura e profundidade de campo. Esse tipo de encenação, que usa vãos de portas e janelas para revelar ou ocultar personagens de acordo com conveniências narrativas é um recurso estilístico consagrado desde a época do cinema mudo. Louis Feuillade, responsável por muitos seriados de médiametragem influentes na década de 1910, já utilizava esta ferramenta para deslocar o foco principal da ação dramática dentro do próprio quadro, guiando o olhar do espectador sem precisar mover a câmera ou cortar (BORDWELL, 2008, p. 91). Leone revisou esse elemento de um esquema clássico de encenação, criando uma variação mais intensa dele. 145 A coreografia é precisa. No momento em que o adversário é dominado, a porta está vazia (figura 2.65). Como a composição visual mantém o foco nítido sobre ela, reservandolhe praticamente toda a metade direita do quadro, isso cria uma expectativa natural no público, que instintivamente desloca sua atenção para ela. No instante seguinte, três pistoleiros entram juntos pela porta e param sob o umbral (figura 2.66). Monco está de costas para a entrada da taverna – de frente para o espectador – e não registra a aparição dos bandidos; o público os vê antes dele, e isso coloca a audiência na posição de saber mais sobre o enredo do que o personagem, o que instantaneamente cria uma dimensão suplementar de suspense, aumentando ainda mais a tensão. Ao chegar, os pistoleiros nada dizem. Mas, por causa do som das botas no piso de madeira, do ranger da porta e do silêncio que toma conta da taverna, Monco percebe a presença. Ele desvia o olhar do rosto do bandido preso pela camisa para e olha para frente, tenso. O líder dos pistoleiros está no meio, um passo à frente dos outros; ele tem apenas metade da barba – um toque cômico para aliviar a tensão no seu momento mais intenso. O pistoleiro ordena que Monco largue o colega; está enquadrado em close-up extremo (figura 2.67). Leone justapõe mais três close-ups iguais à ordem do bandido – um para cada pistoleiro. Aliada ao silêncio, a sucessão de rostos fragmenta o espaço fílmico e acentua mais a tensão; por um momento, o espectador perde a noção espaço-temporal do momento. Monco se move então, largando o bandido espancado, ao mesmo tempo em que gira e atira três vezes em dois segundos (figura 2.68). Os pistoleiros não têm tempo para revidar. O momento resgata a composição recessiva da cena do tiroteio de Por um Punhado de Dólares: a mão com o revólver em primeiríssimo plano e a ação principal (os pistoleiros atingidos pelos tiros) em segundo plano, tudo fotografado em profundidade de campo. Nos dois filmes, encontramos a mesma escolha estilística para solucionar um problema de representação idêntico. Ademais, atirador e vítimas, de novo, estão dentro do mesmo quadro. A tensão se foi, mas a cena não acabou. O adversário espancado se arrasta para a direita, tentando escapar. Monco não se dá ao trabalho de olhar para ele, e nem mesmo se vira para atirar: dispara na direção do som do arrastar sobre o piso de madeira (figura 2.69). Depois, guarda o revólver no coldre, girando em torno do dedo indicador com velocidade, repetindo o gesto clássico dos heróis do western americano (figura 2.70). Essa cena organiza vários elementos do que podemos afirmar como exemplos diretos da prática estilística recorrente em Leone: um conjunto de soluções estilísticas e narrativas para problemas de representação que o diretor resgata, revisa e reutiliza, sempre que confrontado com problemas parecidos. O uso abundante de close-ups extremos, a utilização 146 dos ruídos diegéticos (os sons do bar, os passos sobre o piso de madeira) para injetar tensão e dar continuidade temporal à narrativa, as composições recessivas, a ironia, o alusionismo e a subversão a códigos do western são padrões recorrentes dentro dos filmes dele. Tanto Mortimer quando Monco são profissionais da violência. Ambos vivem à margem da sociedade, transitando de uma cidade para a próxima sem se fixar. Ganham a vida caçando bandidos, e seguem trajetórias paralelas; se cruzam na estrada e se reconhecem como iguais, nascendo daí respeito mútuo e clima de competitividade, que funcionam como uma espécie de versão irônica – uma releitura irreverente – do código de honra segundo o qual se comportavam os caubóis nos filmes americanos. A primeira vez em que os dois se defrontam, aliás, consiste numa cena que confirma a releitura crítica dos esquemas do western americano através da ironia e do alusionismo. Tratase da variação cômica de um duelo, em que os pistoleiros atiram um no outro; no entanto, por causa do respeito mútuo e também devido à ausência de uma razão de ordem prática para que um mate o outro, Mortimer e Monco iniciam uma espécie de jogo cômico. Eles se encaram longamente (figuras 2.71 e 2.72), pisam um no pé do outro (figuras 2.73 e 2.74), trocam sopapos (figura 2.75) e finalizam o “duelo” atirando um no chapéu do outro (figura 2.76), de forma a demonstrar simultaneamente a habilidade espetacular com o revólver e o senso de respeito para com o colega. Esta cena foi a primeira a ser concebida por Leone para o filme. Quando contratou Luciano Vincenzoni para escrever o roteiro, Leone descreveu esta cena para estabelecer o tom de ironia que pretendia conseguir. Vincenzoni expressou objeção à cena, mas acabou convencido do quanto ela era importante. A argumentação usada para convencer o roteirista deixa claro o quanto Leone estava consciente da operação de releitura crítica do gênero: A intenção era ser irônico, mas eu simplesmente não conseguia imaginar John Wayne chutando a bunda de Henry Fonda, ou algo parecido – não me faria rir, e pareceria francamente infantil. Mas Sergio descreveu longamente toda a seqüência, e acabou me convencendo. Ele queria aplicar a lógica de um jogo argumentativo entre crianças a dois personagens que eram puro instinto. Sergio disse achar que o sucesso do western era universal porque o comportamento inflamado e macho do típico herói do gênero era idêntico ao dos adolescentes e jovens durões de qualquer lugar, como o subúrbio de Roma, por exemplo... na adolescência, Sergio tinha convivido com esse tipo de fanfarrão juvenil, esses meninões arrogantes e fortes que chutam e provocam as crianças mais fracas. O que ele queria fazer era transportar essas memórias de infância para o western. (VINCENZONI, 2005, p. 171). 147 Figura 2.71: Leone inicia o confronto entre Monco e Mortimer com dois planos quase idênticos: botas de um em primeiro plano, o outro inteiro em segundo plano. Figura 2.72: A simetria entre as duas composições visuais sinaliza que os dois caçadores de recompensa se equivalem tanto em força quanto em inteligência. Figura 2.73: De frente um para o outro, os pistoleiros começam a pisar no pé um do outro, como dois adolescentes valentões que medem forças. Figura 2.74: Este jogo infanto-juvenil remonta aos confrontos da infância de Leone – um elemento de nostalgia transposto para um cenário de western. Figura 2.75: Depois de trocarem pisões, os dois homens trocam socos; ninguém aparece para assistir, confirmando que atos de violência são comuns ali. Figura 2.76: Monco esvazia o revólver acertando repetidas vezes o chapéu de Mortimer, que dá o troco em seguida, numa citação explícita a Vera Cruz (1954). Figura 2.77: Os únicos espectadores que assistem ao duelo quase-adolescente são um grupo de crianças; uma comenta sobre as semelhanças com suas brincadeiras. Figura 2.78: Pastiche: crianças escondidas sob o piso de um casa – mesmo esconderijo em que um menino vê o duelo final de Os Brutos Também Amam (1953). Numa única cena, Leone flertou com três tópicos que críticos incluem entre as experiências estéticas características da condição pós-moderna: ironia, nostalgia (a inclusão de memórias como forma de “reviver” um passado idealizado) e alusionismo. É importante não confundir ironia com humor. O discurso irônico evoca uma dimensão suplementar de entendimento que contradiz ou problematiza o que foi dito; ou seja, a ironia seria uma “estranha forma de discurso onde você diz algo que você, na verdade, não 148 quer dizer e espera que as pessoas entendam não só o que você quer dizer de verdade, como também sua atitude com relação a isso” (HUTCHEON, 2000, p. 16). O conceito de ironia, então, apreenderia uma atitude política, que neste exemplo está expressa na revisão de um código pertencente ao esquema narrativo do western americano: a expectativa da violência. Quando os dois caçadores de recompensa se posicionam um de frente para o outro, estão iniciando um ritual que talvez seja a convenção mais reconhecível do western: o duelo. Esta convenção fica ainda mais evidente quando se observa os ângulos escolhidos por Leone (figuras 2.71 e 2.72): câmera baixa, emoldurada por botas em primeiríssimo plano (composições recessivas), mostrando o rival em segundo plano. Tomadas de composição simetricamente idênticas são usadas como campo e contracampo, sinalizando a igualdade de forças dos dois protagonistas. Não existem um herói e um vilão; são iguais. Esta simetria nas composições visuais é outro elemento estilístico recorrente na obra de Leone. O que se segue é uma demonstração gratuita e algo infantil de habilidade com o gatilho, por parte de dois pistoleiros, que termina em chave cômica – com os dois dividindo uma garrafa de uísque na taverna mais próxima. Além disso, não parece ser por acaso que os únicos habitantes de El Paso que assistem ao “duelo” são crianças (figuras 2.77 e 2.78) – aliás, uma tomada que cita o duelo final de Os Brutos Também Amam (Shane, George Stevens, 1953), em que um menino e seu cão vêem adversários medindo forças escondidos num vão embaixo de uma casa – outra alusão que constitui pastiche. Quando os pistoleiros pisam no pé um do outro, uma das crianças se vê na cena: “É como nossos jogos”, diz às outras. A ausência de adultos na rua, olhando os pistoleiros se desafiarem, deve ser compreendida em chave dupla, pois não apenas estabelece o tom infanto-juvenil da cena, mas também sinaliza a ausência de um sentido social de comunidade. Os adultos que moram lá estão acostumados a presenciar tiroteios e cenas de violência, e portanto sequer aparecem nas portas e janelas. Tiroteios já fazem parte da rotina do lugar (assim como acontecia no vilarejo de Por um Punhado de Dólares). Neste exemplo específico, a ironia está na releitura crítica da forma interna do gênero chamada de expectativa da violência (BUSCOMBE, 2004, p. 310). Já a nostalgia – expressa na tensão entre um presente inadequado e um passado distorcido pela memória e pelo desejo, na descrição de Linda Hutcheon (1998) – pode ser vista na evocação de elementos da infância do diretor, e que inclui a participação de crianças como espectadores diegéticos do duelo, para a construção da narrativa. Quanto ao alusionismo, a citação a Os Brutos Também Amam não é a única que aparece na cena. 149 Figura 2.79: Os dois pistoleiros rivais de Vera Cruz (1954) fazem duelo de tiro mirando em pontas de lanças e tochas que adornam uma mansão no México. Figura 2.80: A diferença de idade – um veterano e um iniciante – entre os mercenários, bem como sua amoralidade, foram influências para o filme de Leone. Este momento representa um pastiche de cena de Vera Cruz (1954). Nesse filme, os dois personagens principais, interpretados por Gary Cooper e Burt Lancaster, competem para ver quem tem melhor pontaria (figuras 2.79 e 2.80), disparando tiros em tochas que enfeitam o muro de uma mansão. Se substituirmos as tochas pelos chapéus, a cena torna-se idêntica. O fato de os objetos-alvos dos tiros serem chapéus representa, ainda, uma terceira alusão, desta vez a O Pistoleiro (The Stranger Wore a Gun, Andre De Toth, 1953), filme em que o herói atira nos chapéus dos membros da quadrilha para afugentá-los sem feri-los, ao mesmo tempo em que manda um recado sobre sua habilidade com o gatilho. O confronto entre Mortimer e Monco é uma das primeiras vezes em que Leone inclui na trama de um filme seu uma alusão explícita a uma cena de outro filme (ou seja, pastiche). Em Por um Punhado de Dólares já havia alusionismo, mas as citações eram mais sutis, referindo-se códigos característicos do repertório do gênero western, sem referenciar momentos específicos de filmes. Frayling enumerou algumas dessas alusões: Há inúmeras referências ao Novo Testamento: O Estranho cavalgando sua mula e entrando em San Miguel como Cristo em Jerusalém; sua ‘crucificação’ num poste de madeira fora da cidade; sua participação na ‘Santa Ceia’ do clã dos Rojos; sua ‘morte’ e posterior ‘ressurreição’; uma profusão de cruzes, cemitérios e caixões. (...) Havia importantes referências à commedia dell’arte e à tradição carnavalesca, que podiam ser vistas no refrão musical satírico, no herói ardiloso, na ênfase detalhada aos atos de comer e beber, na atitude sarcástica em relação à morte, no gestual exagerado dos personagens hispânicos. (FRAYLING, 2000, p. 126-127). No primeiro filme, as citações a westerns anteriores seguiam um padrão alusionista mais sutil: a autoconsciência das convenções de gênero e a representação da violência (sem sangue) em Os Brutos Também Amam (1953, figura 2.81); a poeira de Paixão dos Fortes (1946), acrescentando um toque realista a um tiroteio (figura 2.82); a comunidade covarde de Minha Vontade é Lei (1959), cujos cidadãos preferem contratar um pistoleiro do que eleger um xerife, e assistem a um duelo como se estivessem no circo (figura 2.83); a atmosfera 150 Figura 2.81: Representação realista de um tiroteio em Os Brutos Também Amam (1953), com a vítima jogada para trás pelo impacto da bala: influência em Leone. Figura 2.82: Realismo de Paixão dos Fortes (1946) aparece na nuvem de poeira erguida pela passagem de uma carroça, tão densa que interrompe um tiroteio. Figura 2.83: A comunidade corrupta, covarde e curiosa de Minha Vontade é Lei (1959) exerceu influência na representação da sociedade fraca dos filmes de Leone. Figura 2.84: Personagens de O Homem Que Matou o Facínora (1962) estão conscientes de que mitologia e realidade coexistem em duas instâncias diferentes. pessimista e amargurada de O Homem Que Matou o Facínora (1962), com personagens que estão conscientes de que realidade e mito são instâncias diferentes (figura 2.84). Em Por um Punhado de Dólares, Leone usava o material de origem como inspiração para a construção da narrativa. Entre seus objetivos não estava o reconhecimento da citação por parte do público; ou seja, se seguirmos a definição de Richard Dyer (2007), ainda não se tratava se pastiche; era uma forma mais discreta de alusionismo. Desde então, Leone intensificou essa técnica. Na cena do confronto entre os dois anti-heróis de Por uns Dólares a Mais, a referência se transmuta em citação direta. O pastiche também pode ser rastreado em outras cenas. Leone cita vários filmes, incluindo Estigma da Crueldade (1958), cujo herói passa o filme seguindo assaltantes acusados de matar sua mulher e filho; ele carrega uma foto dos dois num relógio de bolso, que mostra a cada bandido antes de matá-lo (figura 2.85). O personagem, interpretado por Gregory Peck, serviu como modelo para Mortimer, que carrega um relógio de bolso idêntico com a foto de sua irmã, estuprada por El Indio (figura 2.86). Leone acrescentou ao perfil do herói desenvolvido em Por um Punhado de Dólares e Por uns Dólares a Mais algumas outras características. Essas características continuavam 151 Figura 2.85: O personagem de Gregory Peck em Estigma da Crueldade (1958), em busca de vingança, carrega a foto de mulher e filho mortos num relógio de bolso ... Figura 2.86: ... da mesma maneira que o Coronel Mortimer de Por uns Dólares a Mais, em que a imagem da irmã num objeto idêntico o motiva a obter vingança. avançando na direção da ironia, do grotesco, do carnavalesco – todas, não por coincidência, experiências estéticas que contêm uma agenda política, uma crítica social inerente, expressa através de uma forma irreverente e bem-humorada. Como se sabe, os diretores de westerns norte-americanos nunca lidaram bem com o humor. O gênero – em todos os seus momentos históricos – sempre foi muito sisudo; no universo masculino e misógino dos caubóis e pistoleiros não havia espaço para piadas. Portanto, a inserção de elementos cômicos pode ser vista como outro aspecto da revisão crítica dos esquemas típicos do gênero levada a cabo por Leone. 2.3 Heróis ou anti-heróis? Em Três Homens em Conflito, Leone continuou a intensificar alguns recursos narrativos, enquanto ampliou o quadro em que a ação dramática se desenrolava. Se o primeiro western se passava num só vilarejo e o segundo visitava meia dúzia de cidades na fronteira com o México, o terceiro (na verdade, primeiro a ser 100% financiado com dinheiro americano, e também pioneiro a ultrapassar o orçamento de US$ 1 milhão para uma realização de todos os ciclos populares italianos) mostra três personagens cruzando o território dos Estados Unidos, de norte a sul, em busca de um tesouro. Leone aumentou de novo o número de protagonista, acrescentando um terceiro antiherói à dupla do filme anterior: um ladrão (Eli Wallach) veio se juntar aos dois caçadores de recompensas (Eastwood e Van Cleef, este último num papel diferente), fragmentando ainda mais a ação dramática, no que tange à construção em larga escala. O título original – The Good, The Bad and The Ugly, cuja tradução literal para o português seria O Bom, o Mau e o Feio – contém, por si só, boa dose de ironia e irreverência. Esse título passava ao espectador a impressão inicial de que cada um dos três adjetivos podia ser aplicado, de forma estável, a um protagonista. A impressão é acentuada pela seqüência de abertura, que associa cada ator a um adjetivo, usando grafismos e imagens congeladas (freeze 152 frames) – este último, um recurso estilísticos que aludia às experiências com montagem realizadas por Truffaut em Os Incompreendidos (Les 400 Coups, François Truffaut, 1959) e Jules e Jim (1962). O público tinha sido acostumado, durante décadas assistindo aos westerns americanos, que herói era herói, e vilão era vilão. Esse código seria subvertido. O terceiro adjetivo – o Feio – contém vários níveis de ironia. Tomado literalmente, o termo parece destoar dos outros dois, porque faz referência a uma característica de outra natureza que não a moral. Por si só, esta interpretação gera um efeito cômico. Mas é preciso enfatizar que no inglês a noção de Ugly evoca diretamente a experiência estética do grotesco. Existe no termo, então, uma dimensão suplementar de significado que faz referência à expectativa da violência, tomada de forma crítica e irreverente. A ironia pretendida por Leone vai além da brincadeira com o título. A estrutura narrativa atribuía explicitamente a cada protagonista um adjetivo, em três cenas de abertura (todas desconectadas da ação dramática principal), para em seguida dar início a uma série de esquetes, envolvendo uma série de encontros e desencontros violentos entre os três antiheróis, num processo contínuo de embaralhamento dos papéis de herói e vilão. Uma estratégia narrativa que o próprio Leone explica assim: Sempre achei que termos como bom, mau e violento não deviam ser tomados num sentido estanque. Assim, me pareceu interessante desmistificar esses adjetivos num cenário de western. Um assassino pode muito bem ter virtudes. Pode demonstrar altruísmo, enquanto um homem supostamente bom é capaz de matar uma pessoa com total indiferença. Alguém que parece inicialmente ser violento pode, se formos capazes de conhecê-lo melhor, se mostrar mais nobre do que parece, e até mesmo ser capaz de expressar carinho e ternura em certas situações. (LEONE, 2005, p. 203). A última frase se aplica perfeitamente ao terceiro protagonista – o Feio – introduzido por Leone à estrutura em larga escala, por sua vez bastante semelhante à utilizada nos dois westerns anteriores. O perfil desse anti-herói, contudo, é um pouco diferente. Tuco não fecha a boca nunca, mente o tempo todo, procura levar vantagem em tudo. Está sempre suado, sujo e maltrapilho. Ao contrário dos dois caçadores de recompensas (frios, profissionais e eficientes), Tuco vive nervoso e agitado. Ele anda com um revólver amarrado num cordão que pendura no pescoço, ao lado de crucifixos e amuletos. E tem um tique nervoso: se benze de um jeito engraçado, fazendo o sinal da cruz invertido (figuras 2.87 e 2.88). Christopher Frayling (2005, p. 221) observa, com razão, que Tuco deriva de um arquétipo que pertence à tradição da commedia dell’arte e da literatura popular dos países mediterrâneos, e não ao western. Ele é um pícaro, um vagabundo astucioso, como Sancho 153 Figura 2.87: Figurinos de Tuco – sujo, maltrapilho, com a barba por fazer, repleto de correntes e com um crucifixo no peito – caracterizam o personagem como um pícaro. Figura 2.88: Sempre que mata um oponente, Tuco se benze várias vezes, sempre fazendo o sinal da cruz ao contrário: irreverência e iconografia religiosa. Figura 2.89: Juan de Dios, o sacristão que toma conta da igreja abandonada de Por um Punhado de Dólares, é pioneiro na galeria de pícaros de Sergio Leone ... Figura 2.90: ... assim como o coveiro Piripero, interpretado pelo ator Joseph Eagger, que reaparece num pequeno papel cômico em Por uns Dólares a Mais. Pança em Dom Quixote de La Mancha. Graças a esse personagem, que reapareceria em trabalhos subseqüentes (com outros nomes, e interpretados por diferentes atores, mas mantendo sempre a mesma caracterização), Umberto Eco comparou os filmes de Leone aos romances da Renascença, que resgatariam tradições medievais européias com um senso de “nostalgia pagã” (ECO apud FRAYLING, 2005, p. 221). É importante observar que a predileção por personagens com o perfil picaresco podia ser notada, com mais discrição, nos filmes anteriores. Piripero (Joseph Egger), o agente funerário de Por um Punhado de Dólares (figura 2.89); Juan De Dios (Ralf Baldassarre), responsável por tocar o sino do vilarejo no mesmo filme (figura 2.90); e o profeta sem nome (o mesmo Egger) que dá dicas a Monco numa seqüência quase surrealista em Por uns Dólares a Mais, introduziram essa tradição do folclore italiano no spaghetti western. A diferença é que, aqui, Leone traz do cenário de fundo para o primeiro plano narrativo esse personagem arquetípico que pouco tem a ver com a tradição do western. Tuco trouxe ao primeiro plano narrativo ainda outro elemento da cultura italiana, presente desde Por um Punhado de Dólares (mais uma vez de forma tímida), e que marcaria forte presença nos filmes subseqüentes do diretor: o apego que certos personagens demonstram pelo núcleo familiar mais próximo (pai, mãe, filhos e irmãos), cultivado junto a um desapego flagrante pelas regras sociais. Se o apego à família existe claramente no sistema de códigos do western norte-americano, o desapego às regras sociais não um padrão recorrente no gênero, mas sim na cultura ibérico-mediterrânea. 154 Essa operação de inserção de um traço cultural estrangeiro dentro do esquema narrativo do western foi problemática, especialmente por causa do perfil do herói de Leone. Em termos práticos, conciliar um protagonista tão amoral e solitário com essa cultura de apego à família não parece ter sido tarefa simples. Mas Leone encontrou na própria estrutura social italiana uma característica que o ajudou a driblar essa contradição: um traço cultural que o Edward C. Banfield (1958) de familismo amoral. A pesquisa de Banfield procurou identificar, na década de 1950, aspectos da cultura da região ao sul da Itália que pudessem explicar o relativo atraso econômico em que esta se encontrava em relação ao restante do país, após a Segunda Guerra Mundial. O aspecto central da questão, para Banfield, estava relacionado à união de dois pulsos sociais aparentemente incompatíveis: um sentimento de forte apego ao núcleo familiar básico (pais, filhos e irmãos) e outro sentimento, igualmente forte, de desapego a qualquer outra forma de organização social. Essa união formaria o que o sociólogo denominou de familismo amoral: um modelo de comportamento social oriundo da combinação de uma série de fatores estruturais e culturais, incluindo a religiosidade católica, a estrutura familiar fragmentada em núcleos menores a cada geração (desde o século XIX) e – talvez o fator mais importante – a crescente urbanização das sociedades. Banfield associava essa urbanização a um sentimento cada vez maior de isolamento. O conjunto de tudo isso é assim descrito pelo sociólogo: [O familismo amoral é] a inabilidade de determinados cidadãos agirem de com a intenção de realizar o bem comum ou, mais precisamente, de realizar qualquer objetivo capaz de transcender o interesse material imediato do núcleo familiar mais próximo. (BANFIELD, 1958, p. 9-10). Banfield atribui a origem do familismo amoral a uma conjunção de fatores. O catolicismo presente na Itália, a organização da família em pequenos núcleos que vão se desprendendo aos poucos da estrutura familiar mais ampla (conseqüência direta da guerra), o culto aos valores familiares dos ibéricos, etc. Os comportamentos gerados a partir deste traço cultural estariam resumidos em uma série de axiomas que Banfield enumera como características de um familista amoral: profundo desprezo às instituições sociais e à comunidade como um todo; individualismo exacerbado; desinteresse em lutar pelo bem comum (a não ser para tirar vantagem própria para si ou para a família); crença de que só funcionários estatais têm obrigação de defender a coisa pública; noção forte de que todos os políticos são corruptos e não farão nada além do estritamente necessário para se manter nos cargos; idéia de que a lei sempre será desrespeitada se não houver razão para temer uma 155 punição; e, mais importante de tudo, a firme certeza de que todos os indivíduos fora de seu núcleo familiar agem exatamente como ele. Isso significa que traços da cultura italiana estavam abrindo caminho nos filmes de Leone; estes seriam uma expressão cultural desses novos contextos sócio-históricos do país, mesclados à iconografia e aos esquemas narrativos de um gênero fílmico estrangeiro. Nesse sentido, o familismo amoral pode ser considerado como mais uma pré-condição determinante da assinatura narrativa e estilística de Leone; uma pré-condição expressa dentro da caracterização de personagens, e portanto dentro da vertente temática da poética do cinema. Por definição, um familista amoral se comporta seguindo os padrões clássicos de certo e errado, mas somente dentro de seu núcleo familiar mais próximo, pois considera que apenas estas pessoas são dignas de confiança dentro de uma sociedade cada vez mais corrupta. Uma vez inserido dentro de círculos sociais mais amplos, que vão além da família, o familista amoral deixa de lado as noções de certo e errado, passando a se comportar da maneira mais conveniente para si e para os parentes mais próximos. Como se pode perceber, este é um comportamento ajustado à sensibilidade mais individualista e hedonista dos anos 1960. Os primeiros heróis de Leone, já vimos, são homens solitários. Quando não pertencem a nenhum núcleo familiar, essas pessoas se tornam individualistas amorais. É o caso de Joe/Monco/Blondie. Esse personagem, portanto, pode ser visto como um amálgama de partes do herói americano (retendo dele o caráter solitário e desprezando a noção de que ele está pronto para defender os valores morais da sociedade, mesmo que esta não lhe admita como integrante) com o comportamento familista amoral da cultura italiana. Na verdade, quando Joe liberta Marisol e sua família em Por um Punhado de Dólares, dizendo ter conhecido alguém como ela antes, ele está expondo uma motivação oculta: já teve uma família – mãe, esposa ou namorada – que foi destruída, tendo por isso se tornado uma espécie de espectro vagando pelo deserto; um familista amoral sem uma família. Mortimer, de Por uns Dólares a Mais, apresenta a mesma caracterização. Por trás do caçador de recompensas meticuloso e organizado está um ex-militar disposto a vingar a morte de sua irmã. Evocando o personagem de Gregory Peck em Estigma da Crueldade, como já apontado anteriormente, Mortimer encontra motivação para seguir em frente olhando repetidamente a fotografia da irmã, dentro de um relógio de bolso. Mas o primeiro protagonista de Leone em que a característica do familismo amoral aparece explicitamente é Tuco, de Três Homens em Conflito. O traço cultural fica evidente na seqüência em que este se defronta com o irmão (Luigi Pistilli), o padre Pablo Ramirez, após anos sem se encontrarem (figuras 2.91 e 2.92). O religioso censura o irmão por viver uma 156 Figura 2.91: Tuco encontra o irmão, padre, num convento; os dois discutem em sala repleta de imagens de santos: iconografia cristã é abundante no filme. Figura 2.92: O diálogo entre os irmãos é talvez o único momento do filme em que Tuco deixa transparecer emoção: característica básica de um familista amoral. Figura 2.93: Quando Tuco recebe a notícia da morte dos pais, Leone usa um close-up e quebra a alternância plano-contraplano, filmado em ângulos equivalentes. Figura 2.94: Tuco leva um soco do irmão, mas o perdoa em seguida: na obra de Leone, esta é a cena que evoca com mais clareza o conceito de familismo amoral. vida de crimes e por ter passado anos sem procurar os pais. Tuco recebe a notícia de que o pai morreu dias antes e pediu para vê-lo. Ele fica desconsolado (figura 2.93). A discussão esquenta e os dois irmãos acertam bofetadas um no outro (figura 2.94). A briga só termina quando Tuco afirma que não teve outra escolha para sustentar os pais a não ser virar ladrão, pois tinha 10 anos quando Pablo largou a família para virar padre. Ele vai embora, enquanto o padre tenta pedir perdão. Este é o único momento do filme em que Tuco demonstra emoção genuína por alguém. Para enfatizar essa emoção, Leone sublinha parte do diálogo (mais especificamente a partir do instante em que o padre anuncia a morte do pai) com música melancólica – violão flamenco dedilhado lentamente, de modo dramático. Além disso, o cenário também está apinhado de símbolos religiosos – estátuas de santos e crucifixos decoram a sala escura onde o diálogo acontece. A razão para que a pontuação narrativa do familismo amoral e a iconografia religiosa apareçam juntos parece ser a consciência, por parte de Leone, de que os dois elementos constituíam parte importante de sua contribuição cultural ao western. É a idéia da releitura crítica que constituiria, também, uma operação de inscrição autoral dentro do gênero. Christopher Frayling (1981, p. 60) confirma esse raciocínio quando avalia que os três personagens da obra de Leone que mais se afastam da caracterização tradicional dos heróis do western são Tuco (Três Homens em Conflito), Cheyenne (Era uma Vez no Oeste) e Juan (Quando Explode a Vingança). Ele nota que os três são pícaros e os associa à influência da ópera e da commedia dell’arte. De fato, podemos acrescentar que os três incorporam 157 Figura 2.95: Monsieur Verdoux (1947) discute o conceito de moral através de um protagonista que cultiva flores e é incapaz de matar uma lagarta ... Figura 2.96: ... mas ganha a vida envenenando mulheres ricas e ficando com a fortuna delas, para sustentar uma mulher paralítica e um filho pequeno. Figura 2.97: O prisioneiro confederado amarrado na locomotiva, perto do final de Três Homens em Conflito, é uma referência a um clássico de Buster Keaton ... Figura 2.98: ... a comédia O General (1926), também ambientada na guerra civil norte-americana, e que contém um momento visualmente idêntico. Figura 2.99: A carruagem que avança sem controle pelo deserto, com todos os ocupantes mortos, faz referência a um longa-metragem de Budd Boetticher ... Figura 2.100: ... O Homem que Luta Só (1959), em que o herói também intercepta uma carruagem-fantasma, acontecimento que modifica o curso do enredo. Figura 2.101: O uso da grua para descortinar um panorama revelador dos horrores da guerra civil norteamericana é uma referência a uma cena clássica de ... Figura 2.102: ... E o Vento Levou (1939), de Victor Fleming, cuja seqüência similar é um dos momentos mais citados da Era de Ouro do cinema americano. perfeitamente o princípio do familismo amoral, e dialogam intertextualmente com personagens do western americano através da noção de ironia, em que uma dimensão não-dita de significado vem se juntar ao texto dito para criticá-lo. 158 Três Homens em Conflito leva adiante a prática dos dois tipos de alusionismo. Na dimensão mais discreta, Leone foi buscar inspiração em obras que trabalhavam o mesmo tema (a ambigüidade moral) com humor negro, e que tinham a guerra como pano de fundo: Monsieur Verdoux (Charles Chaplin, 1947), sobre um bancário desempregado que se transforma num assassino para continuar sustentando a família (figura 2.95 e 2.96), e o romance Viagem ao Fim da Noite, de Louis Ferdinand Céline, um dos escritores prediletos dos romancistas beatniks, que tanto influenciaram a contracultura dos anos 1960. No nível do pastiche, Três Homens em Conflito amplia e diversifica o número de citações, tornando-as mais facilmente reconhecíveis aos cinéfilos, especialmente aos americanos (convém não esquecer que Leone estava sendo bancado por um estúdio de Hollywood e fazia o filme para um público-alvo eminentemente estadunidense). Entre as citações reconhecíveis está a cena em que Tuco assiste à chegada de um trem com um prisioneiro amarrado à frente (figura 2.97), momento que evoca O General (The General, Buster Keaton, 1926, figura 2.98); a aparição de uma carruagem cheia de corpos no deserto (figura 2.99), aludindo a O Homem que Luta Só (1959, figura 2.100); e o clássico movimento de grua que parte do plano médio de um personagem para, ao erguer e afastar a câmera ao mesmo tempo, revelar um panorama devastador da guerra civil norte-americana, com cadáveres e feridos que se estendem até a linha do horizonte (figura 2.101), numa citação clara a E o Vento Levou (Gone With The Wind, Victor Fleming, 1939, figura 2.102). No filme também está uma das seqüências mais violentas da obra de Leone: o espancamento de Tuco num campo de concentração. Durante quatro minutos e um segundo (241 segundos), um capanga de Angel Eyes bate em Tuco, para tentar extrair dele uma informação. A cena foi inteiramente cortada da versão lançada nos Estados Unidos em 1967. Entre socos (figura 2.103) mostrados em close-up e presenciados por Angel Eyes, Tuco tira um dente da boca, coberta de sangue (figura 2.104). Leone enfatiza a violência criando uma montagem paralela que alterna o espancamento, ocorrido num barraco, e a execução de uma melodia lúgubre pela orquestra dos prisioneiros, que ensaia do lado de fora do prédio, a poucos metros de distância (figura 2.105). A cena envolvendo a orquestra faz referência sutil (ou seja, alusionismo) aos relatos de prisioneiros de campos nazistas da Segunda Guerra Mundial. Na ocasião, era comum que os ensaios com grupos musicais de detentos ocorrem no mesmo instante em que sessões de tortura eram levadas a cabo pelos oficiais da Gestapo. Assim, o som da música encobria os ruídos da violência produzida pelos soldados. 159 Figura 2.103: No decorrer da cena, Tuco leva socos e chutes até ter o rosto – mostrado em close-ups sangrentos e abundantes – desfigurado aos poucos. Figura 2.104: Enquanto Tuco apanha, a orquestra de prisioneiros do campo de concentração recebe a ordem de tocar mais alto, para abafar os gritos do anti-herói. Figura 2.105: Em close-up extremo que dura oito segundos, Tuco arranca um dente da própria boca após uma seqüência de socos que o deixam desfigurado. Figura 2.106: O agressor pressiona o nervo da vítima para mantê-la acordada durante a tortura, técnica real usada durante a guerra: preocupação com a acuidade. A obsessão com o realismo da pancadaria (worldmaking) é importante para o resultado da cena. Leone pesquisou como ocorriam sessões de tortura na guerra, e teve o auxílio do próprio ator Eli Wallach, que serviu no Exército norte-americano como paramédico. Wallach contou que quando uma vítima de tortura desmaiava os agressores a faziam recobrar a consciência pressionando o nervo supra-orbital, sobre as pálpebras. A pressão exercida nesse local era suficiente para que um homem inconsciente voltasse a si quase imediatamente. Leone usou a informação e incluiu esse procedimento na montagem final (figura 2.106). Para Era uma Vez no Oeste, Leone mais uma vez adotou a estratégia de intensificar elementos do esquema narrativo usado nos filmes anteriores. Dando seqüência à lógica de ampliar o número de protagonistas, Leone reaproveitou a dinâmica do trio de Três Homens em Conflito, acrescentando um quarto personagem principal – uma mulher, primeiro (e único) personagem feminino importante de Leone. Há ainda um quinto personagem importante, o empresário Morton (Gabriele Ferzetti), mas este não se caracteriza como protagonista, pois tem consideravelmente menos tempo em cena do que os outros quatro. Jill McBain (Claudia Cardinale) consiste no centro emocional do enredo, que gira em torno de disputas por um pedaço de terra no meio de uma região deserta do oeste, situada sobre uma das poucas reservas de água subterrânea do território. Por causa da presença de água, logo se descobre que a ferrovia transcontinental que cruza o país de leste a oeste, e que está sendo construída no exato momento em que a ação dramática se desenrola, terá que passar pelo tal terreno, o que o valorizará. 160 Ex-prostituta recém-casada com o dono do terreno, Jill herda as terras assim que o sujeito e seus filhos são assassinados, no início de Era uma Vez no Oeste. Assim, ela se torna alvo da disputa entre Frank (Henry Fonda), o assassino de olhos azuis cujo objetivo é tornarse empresário, e Harmonica (Charles Bronson), misterioso forasteiro errante e de passado incerto que se põe ao lado da moça por motivos que só são totalmente esclarecidos no final do filme. Leone usa a técnica dos flashbacks progressivos (mesmo recurso narrativo utilizado em Por uns Dólares a Mais, e que intensifica a fragmentação da construção narrativa em larga escala). A equação se completa com a aparição de Cheyenne (Jason Robards), líder de uma gangue de ladrões de banco que se envolve no caso por acreditar que Frank teria sido o assassino da família de Jill e estaria tentando atribuir a ele a autoria dessas mortes. A dinâmica entre os três personagens masculinos é, em essência, a mesma estabelecida no enredo de Três Homens em Conflito. Um dos heróis, Harmonica, tem a mesma caracterização do Joe/Monco/Blondie: um homem de passado desconhecido, que não demonstra nenhum interesse de estabelecer laços sociais; de poucas palavras, com gestos lentos e largos; pontaria certeira demonstrada num duelo contra um trio de pistoleiros profissionais, que acontece logo nos 15 minutos iniciais, como já havia ocorrido tanto em Por um Punhado de Dólares quanto em Por uns Dólares a Mais. Um olhar atento nos revela traços do familismo amoral, na forma do passado misterioso que, como havia ocorrido com Mortimer em Por uns Dólares a Mais, é revelado através dos flashbacks que somente no final expõem com clareza a motivação dele: obter vingança contra o homem (Frank) que matou seu irmão. Harmonica é, como Joe/Monco/Blondie e também como Mortimer, um familista amoral sem família. O segundo protagonista, Frank, descende de Angel Eyes (Três Homens em Conflito). A diferença é que neste filme ele é caracterizado claramente como um vilão psicopata, ao contrário do que ocorria no filme anterior, em que Leone propositalmente embaralhava os papéis de herói e vilão. A escalação de Henry Fonda representa mais uma tentativa deliberada do diretor no sentido de subverter as expectativas do público em relação a convenções do gênero. Afinal de contas, Fonda era, desde a década de 1930, um dos mais atores mais associados ao papel do mocinho do western, tendo protagonizado filmes como Consciências Mortas (The Ox-bow Incident, William Wellman, 1943) e Paixão dos Fortes (1946). No filme, Fonda interpreta um canalha desalmado. A cena de apresentação do personagem demonstra como Leone se deliciava com o jogo intertextual entre o seu personagem e os heróis do western americano interpretados pelo ator (ou seja, alusionismo). Nela, Frank lidera pistoleiros na chacina da família de Jill. A decupagem esconde 161 Figura 2.107: A mesa exagerada e a arquitetura requintada do chalé no meio do deserto sinalizam os sonhos ambiciosos da família irlandesa McBain. Figura 2.108: Sons fora do quadro são importantes para Leone: a interrupção súbita do canto dos pássaros alerta Brett McBain para a presença de humanos no bosque. Figura 2.109: Da mata, sem que os agressores se mostrem, vem uma saraivada de tiros que mata o patriarca e dois adolescentes; resta apenas um menino. Figura 2.110: Só então a gangue sai do esconderijo nos arbustos e caminha lentamente até o chalé; o contraluz impede que o público veja os rostos dos bandidos. Figura 2.111: Após um corte, o ângulo muda para uma tomada alta dos pistoleiros de costa, avançando na direção da criança indefesa: composição recessiva. Figura 2.112: Num traveling para frente, a câmera gira em torno dos pistoleiros até transformar uma composição recessiva em profundidade de campo ... Figura 2.113: ... num close-up extremo do rosto de Henry Fonda; comentário irônico sobre Fonda ser, ao lado de John Wayne, o maior mocinho do gênero. Figura 2.114: Também focalizado num close-up extremo, o mais jovem dos McBain encara o vilão; a justaposição de close-ups parece congelar o tempo. Figura 2.115: Frank (Fonda) decide não deixar testemunhas do massacre: ergue o revólver, cospe fora um pedaço de tabaco e atira na direção da câmera.... Figura 2.116: ... num cross-fade em que a imagem da arma se transforma numa locomotiva indo em direção à câmera (e o som do tiro vira o resfolegar do trem). 162 propositalmente o rosto do ator até o momento mais tenso, quando este (até então visto apenas de costas) prepara-se para matar um garoto de seis anos, para não deixar testemunhas. A cena inicia com a família McBain preparando-se para o almoço (figura 2.107). Uma súbita revoada de pássaros, acompanhada da inesperada ausência dos ruídos dos animais do bosque (que até aquele momento podiam ser escutados com clareza), alerta os moradores para a presença de algo ameaçador entre os arbustos (figura 2.108). O homem, o adolescente e a menina são mortos a tiros, sem que os agressores se mostrem (figura 2.109). Resta apenas o menino mais novo, que está dentro de casa. É um ato de violência vil, contra crianças e um homem desarmado. Uma violência desse tipo jamais seria cometida, num western americano, por homens brancos – por índios, sim, como ocorre em Rastros de Ódio (The Searchers, John Ford, 1956), em cena citada explicitamente aqui através de o súbito silenciar dos animais, que também denuncia a presença dos agressores no filme americano – ou seja, pastiche. Há, entretanto, uma diferença crucial, além da raça dos agressores. Em Rastros de Ódio, o massacre em si não é mostrado (está contido numa elipse). Numa só cena, usando as técnicas do pastiche e da ironia, Leone subverte duas vezes um esquema do gênero. São cinco os pistoleiros. Vestidos com sobretudos guarda-pó, eles saem da mata em seguida. Leone os filma de longe, ligeiramente fora de foco e com contraluz acentuada, de forma que não podemos ver seus rostos (figura 2.110). Há um corte, e o contra-plano os mostra de costas (figura 2.111). Eles se aproximam da criança mais nova. A música lúgubre de Ennio Morricone, tocada com uma guitarra elétrica, acentua a dramaticidade. O menino olha para o líder do grupo, que está à frente (figura 2.112). Sem cortar, a câmera faz um giro de 180 graus, agora para exibir diretamente o rosto do líder dos pistoleiros, reenquadrado em close-up extremo: é Henry Fonda. A decupagem é deliberadamente estudada para causar um choque na platéia, que sabe da presença de Fonda no filme (o nome aparece nos créditos, durante a cena anterior), mas ainda não tem idéia de que papel ele desempenhará nele. Com expressão enfastiada e gestos calculadamente lentos, o bandido cospe um pedaço de fumo – recurso dramático exaustivamente explorado por Leone, e hábito comum em heróis do western americano, como aquele interpretado pelo próprio Fonda em O Retorno de Frank James (The Return of Frank James, Fritz Lang, 1941) e também por John Wayne em Legião Invencível (1949) – e avisa aos comparsas que não devem deixar sobreviventes. O rosto do menino, amedrontado, é justaposto ao olhar frio de Henry Fonda (figuras 2.113 e 2.114). O pistoleiro atira na criança a sangue frio. No momento do tiro, há um dissolve e a imagem do 163 cano do revólver, apontando diretamente para o espectador num close-up extremo, se funde com a imagem de uma locomotiva avançando em direção à câmera (figuras 2.115 e 2.116). Nesse caso, é interessante observar que Leone optou por não utilizar a tradicional representação gráfica da violência, narrando o assassinato em si através de uma elipse. Esta é a primeira vez, nos quatro westerns de Leone, em que um ato de violência cometido por um protagonista não é exibido explicitamente. A atitude é compreensível, afinal: exibir diretamente o assassinato a sangue frio de uma criança poderia provocar no público uma rejeição não a Frank, o personagem, mas a ele próprio, Leone. O terceiro protagonista de Era uma Vez no Oeste, Cheyenne, tem origem na caracterização de Tuco como um pícaro: um bandido romântico e tagarela. Apesar de roubar e matar gente desarmada, ele fica furioso ao saber que os assassinos da família McBain usavam guarda-pós cor de terra, idênticos ao que o bando liderado por ele utiliza (“eu jamais atiraria numa criança”, diz). Cheyenne se revela um individualista amoral (ou um familista amoral sem família); como Harmonica, é um solitário, mas a simpatia instantânea dele por Jill não traz qualquer traço de interesse sexual. Ao contrário: Cheyenne associa Jill à própria mãe (“a mulher mais fina que já conheci”, afirma). A mãe de Cheyenne não sabia quem tinha sido o pai dele (“por uma noite, certamente foi o homem mais feliz do mundo”), mas criou o filho com liberdade e sabedoria, pelo menos na opinião dele. Em outras palavras, a importância da noção de família para Cheyenne o torna mais digno de simpatia. Por fim, o quarto protagonista é uma mulher. Para construir a caracterização de Jill, Leone recorre ao alusionismo: a situação vivida pela personagem (mulher pressionada a vender uma propriedade valiosa contra a sua vontade) é idêntica à experimentada pela dona da taverna (Joan Crawford) de Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954). Ao contrário do que ocorre neste, porém, Jill é fraca. Não se envolve em confrontos, se vê dominada fisicamente por pistoleiros, é obrigada a fazer sexo com o personagem de Henry Fonda (um dos muitos estupros encenados ao longo da obra de Leone), e não consegue impedir a venda de sua propriedade (que acaba sendo comprada e devolvida a ela pelo personagem de Charles Bronson; ou seja, ela só consegue alcançar o objetivo com a ajuda de um homem). Embora a própria intérprete de Jill tenha elogiada a determinação e a firmeza de caráter da personagem – “não se vê muitas mulheres com essa personalidade em westerns” (CARDINALE, 2005, p. 280) – a equipe criativa sabia que lidar com personalidades femininas não era um ponto forte de Leone. O assistente Tonino Valerii avalia que Leone não tinha sutileza para captar a psicologia das mulheres; só sabia apreciar o senso físico de 164 amizade existente entre homens, da mesma maneira que acontecia com outros diretores de western, como John Ford e Howard Hawks (VALERII apud Frayling, 2005, p. 279). Quanto ao pastiche, basta lembrar do comentário de Jean Baudrillard. A estrutura narrativa de Era uma Vez no Oeste foi concebida como um mosaico em que uma citação levava à próxima, e assim por diante. O objetivo de Leone era realizar uma elegia ao gênero, homenageando-o ao contar a história dele através das citações, que podiam consistir tanto em releituras críticas e irônicas de determinados códigos quanto em alusões diretas que respeitavam e homenageavam nostalgicamente esses códigos. Algumas citações são óbvias, como a cena de abertura, com três pistoleiros esperando a chegada de um trem numa estação semi-deserta (figura 2.117) – a mesma situação dramática é mostrada em segundo plano durante Matar ou Morrer (1952, figura 2.118). Ou a cena em que o menino Timmy McBain se esgueira por entre árvores para caçar pássaros (figura 2.119),em tomadas que aludem a uma cena de Os Brutos Também Amam (1953), em que outra criança faz os mesmos movimentos para atirar em um cervo (figura 2.120). A chegada da locomotiva, na abertura (figura 2.121), consiste numa citação múltipla. Visualmente, alude a uma tomada famosa de Cavalo de Ferro (1924, figura 2.122), obtida com a câmera colocada num buraco sob os trilhos; tematicamente, a chegada da ferrovia – e o conseqüente despertar da cobiça de pistoleiros – simboliza a domesticação da região selvagem pelo homem branco colonizador. Esse tema foi explorado em muitos westerns, inclusive Os Conquistadores (Western Union, Fritz Lang, 1941) e A Conquista do Oeste (1962). Um longa-metragem citado várias vezes é Johnny Guitar (1954). Além de o personagem feminino ter sido inspirado na protagonista dele, o personagem Harmonica também descendeu do mesmo filme, só que trocando o violão por uma gaita (figuras 2.123 e 2.124). O herói feito por Henry Fonda em O Retorno de Frank James (1941, figura 2.125), que também se chamava Frank, retém um hábito de muitos dos personagens de Leone: mascar tabaco (figura 2.126). A cena em que Cheyenne entra num bar e bebe água, revelando um par de algemas, foi copiada de Os Comancheros (The Comancheros, Michael Curtiz, 1961). Isso tudo sem falar da seqüência em que Jill, viajando de Flagstone (uma combinação – mais um pastiche – de Flagstaff com Tombstone, duas locações clássicas do western) para o rancho do marido, atravessa a região do Monument Valley, onde John Ford filmou oito westerns, consagrando o cenário como um dos mais característicos do gênero (figuras 2.127 e 2.128). Praticamente todas as cenas de Era uma Vez no Oeste comportam uma ou mais citações explícitas como essas. No que se refere ao pastiche, o longa-metragem representa o ponto mais alto do estilo de Leone. 165 Figura 2.117: A seqüência de abertura de Era uma Vez no Oeste, que flagra a monotonia de três pistoleiros aguardando a chegada de um trem, é citação de ... Figura 2.118: ... Matar ou Morrer (1952), em que três pistoleiros esperam um comparsa em cenário parecido, que inclui até uma caixa d’água em segundo plano. Figura 2.119: Em Era uma Vez no Oeste, pouco antes da chegada dos pistoleiros ao rancho da família McBain, a câmera segue um menino fingindo caçar pássaros ... Figura 2.120: ... em uma citação direta a Os Brutos Também Amam (1953), em que uma criança caça um cervo e é interrompida pela chegada de um cavaleiro. Figura 2.121: O ângulo baixo de câmera escolhido para filmar o plano que mostra a locomotiva pela primeira vez em Era uma Vez no Oeste, durante os créditos ... Figura 2.122: ... é exatamente igual à imagem icônica da viagem do trem no clássico do cinema mudo O Cavalo de Ferro (1924), um dos primeiros longas de John Ford. Figura 2.123: A inspiração para o personagem Harmonica (Charles Bronson), o misterioso protagonista de Era uma Vez no Oeste, veio diretamente de ... Figura 2.124: ... Johnny Guitar (1954), em que o personagem-título anda com um violão a tiracolo e sempre anuncia sua presença tocando o instrumento. 166 Figura 2.125: O hábito de mascar tabaco é um recurso dramático muito explorado por Leone – o personagem Frank cultiva esse hábito, inspirado por ... Figura 2.126: ... outro personagem com o mesmo nome e interpretado pelo mesmo Henry Fonda, no clássico O Retorno de Frank James (1941), de Fritz Lang. Figura 2.127: Uma das seqüências mais lembradas de Era uma Vez no Oeste faz reverência aos westerns de John Ford através das montanhas de Monument Valley. Figura 2.128: A reserva indígena no Utah (EUA) era o local preferido de John Ford, que fez lá oito longametragens, inclusive o clássico Rastros de Ódio (1956). 2.4 Fim da linha O filme seguinte, Quando Explode a Vingança, marca uma ruptura na estratégia de intensificação. Pela primeira vez, Leone tinha um objetivo primário que não expressava qualquer relação com o enredo do filme em si (como vimos antes, ele queria fazer um comentário pessoal sobre os spaghetti westerns de cunho político-ideológico). Além disso, Quando Explode a Vingança foi concebido como um filme que Leone apenas produziria; ele só assumiu a direção com as filmagens em andamento, devido à pressão dos atores principais. Ainda assim, na qualidade de produtor, Leone participou de todo o processo de desenvolvimento do roteiro, incluindo a caracterização dos personagens e a estrutura fragmentada da construção narrativa em larga escala (unidade narrativa dividida entre dois protagonistas; quebra da continuidade cronológica através do uso constante de flashbacks progressivos). Dessa supervisão surgiu um dos mais explícitos familistas amorais da obra de Leone: o assaltante Juan (Rod Steiger). A própria figura de Juan é suficiente para inscrevê-lo na galeria de pícaros de Leone: pés descalços, barrigudo, barba mal aparada, cabelos desgrenhados e grudados no rosto queimado de sol, roupa suja e puída, largas manchas de suor nas axilas, barrigudo, risada maníaca. Juan é o primeiro protagonista de um filme de Leone que possui família: seis filhos (de mães diferentes), irmãos e sobrinhos. Juntos, os integrantes do clã abrem o filme assaltando uma carruagem. A encenação e a decupagem enfatizam os elementos picarescos, a 167 Figura 2.129: Jato de urina destrói formigueiro: close-up extremo e rima irônica com o final, numa metáfora em que as formigas representam os revolucionários. Figura 2.130: A figura grotesca e bizarra de Juan (Rod Steiger) o inscreve instantaneamente na galeria de pícaros da tradição literária ítalo-espanhola. Figura 2.131: O condutor da carruagem (primeiro plano) autoriza Juan a subir a bordo (segundo plano): composição recessiva em profundidade de campo. Figura 2.132: A atuação histriônica de Steiger faz par com o figurino – cabelos suados, pés descalsos, calças curtas demais – para sublinhar o grotesco da figura. Figura 2.133: Os burgueses na carruagem, inclusive um bispo, recepcionam o mexicano com desprezo; a composição recessiva tem outro rosto como moldura. Figura 2.134: Os close-ups extremos dos rostos dos personagens são intercalados com planos-detalhes de bocas com pedaços de comida presos entre os dentes. Figura 2.135: Os burgueses conversam entre si em inglês, distribuindo insultos ao personagem Juan, sem saber que ele entende perfeitamente a língua. Figura 2.136: A única mulher na carruagem chupa uma tomate; Leone brinca com o grotesco da situação, criando um inesperado rasgo de sensualidade ... Figura 2.137: ... que irá reverberar dramaticamente mais tarde, quando Juan tentar estuprar a mulher numa arena circular; o estupro é encenado como um duelo ... Figura 2.138: ... em que planos gerais e americanos, com a encenação realizada em diagonal, são intercalados a close-ups extremos dos personagens ... 168 Figura 2.139: ... como este plano; a justaposição dos dois tipos de composição fragmenta o espaço fílmico e produz o efeito de distensão do tempo cinematográfico. Figura 2.140: A cena é encerrada com ênfase no grotesco: um plano-detalhe da bunda de Juan, com a expressão horrorizada da mulher ao fundo, à esquerda. ironia, o senso de grotesco; são todos elementos característicos de um legítimo anti-herói inspirado na tradição literária da commedia dell’arte. O filme abre com uma tomada insólita, que mostra um formigueiro sendo destruído por um jato de urina (figura 2.129) – mais tarde, esta cena comporá uma rima narrativa metafórica com o balé de violência da seqüência final, em que uma multidão de camponeses indefesos acaba assassinada num tiroteio com militares. O responsável é Juan (figura 2.130). Ele apanha carona numa carruagem (figuras 2.131 e 2.132) que leva um bispo (mais uma vez, a iconografia religiosa é usada para adicionar uma camada suplementar de ironia) e meia dúzia de burgueses bem vestidos (figura 2.133). O modo como Leone filma os burgueses comendo, enquanto riem de Juan falando em inglês (e pensando que ele não os entende) enfatiza ainda mais o grotesco: profusão de planos-detalhes de bocas mastigando pedaços de comida (figuras 2.134, 2.135 e 2.136), com restos presos nos dentes. Mais à frente, camponeses atacam a carruagem, e só então descobrimos que tudo não passa de uma emboscada tramada pelo próprio Juan, que lidera o assalto. A seqüência termina com uma cena que mostra Juan estuprando uma das mulheres da carruagem – mais um estupro para a longa galeria de cenas semelhantes nos filmes de Leone. Leone não filma o estupro em si (que está contido em uma elipse). A abordagem de Juan à mulher tem decupagem semelhante a um duelo: sem diálogos, num cenário circular, em que os dois rivais se movem um ao redor do outro (figuras 2.137 e 2.138), o tempo distendido através da fragmentação do espaço fílmico em close-ups extremos e planosdetalhes, até que o mexicano alcança a mulher e a agarra (figura 2.139). Juan domina a moça e, expressão vitoriosa, encerra a cena com uma frase irônica: “Se desmaiar agora, vai perder a melhor parte!”. A linha de diálogo é coberta por uma imagem que resume perfeitamente o grotesco da situação: um close-up extremo da bunda do ator Rod Steiger (figura 2.140). Além de Juan, Quando Explode a Vingança tem um segundo protagonista: o irlandês Sean (James Coburn), membro do IRA, que se encontra no México para auxiliar os camponeses na rebelião contra o governo nacional (o filme se passa entre os anos de 1910 e 169 1920, durante a Rebelião Mexicana). Embora destoe dos demais heróis de Leone, por ter ideologia e motivação políticas, Sean passa por uma jornada no decorrer do filme, tornando-se mais desiludido. Ele faz amizade com Juan e se decepciona com a causa revolucionária (após descobrir que os líderes camponeses estão mais interessados em enriquecer do que em levar a revolução ao poder), sacrificando-se no final por ter contribuído para a destruição da família do assaltante. Este, por sua vez, vê todos os filhos, irmãos e sobrinhos serem mortos, tornando-se sem querer um herói dos revolucionários; um herói que odeia a revolução. Apesar do credo político, um aspecto de Sean reflete o seu individualismo amoral. Através de flashbacks inseridos gradualmente com lembranças de Dublin, percebemos que a mudança para o México não ocorreu apenas por razões ideológicas, mas também por um motivo afetivo: a namorada por quem era apaixonado havia sido assassinada, fazendo-o deixar a Irlanda para tentar superar o trauma. Mais um familista amoral sem família. Quanto ao uso de múltiplos protagonistas, Leone parecia gostar da idéia de ter uma dinâmica entre heróis com caracterizações distintas. Isso pode ser conferido em todos os filmes dele, a partir de Por uns Dólares a Mais, e também aparece em Meu Nome é Ninguém, última incursão de Leone pelo western. Nesse último caso, é importante frisar que o filme não foi dirigido oficialmente por ele. Leone aparece nos créditos como produtor e argumentista. Na prática, sabe-se que ele trabalhou com o roteirista Ernesto Gastaldi, escolheu parte da equipe criativa (incluindo Ennio Morricone) e dirigiu todas as cenas registradas nos Estados Unidos, em variadas locações nos estados de New Mexico e na cidade de New Orleans. Essas cenas consistem de aproximadamente dois terços do filme (HUGHES, 2004, p. 246). Nesse longa-metragem, a técnica do pastiche aparece bastante, a começar pelo próprio título (a frase Meu Nome é Ninguém foi retirada do diálogo de Ulisses com o Ciclope, na Odisséia de Homero). Porém, dessa vez Leone utiliza com mais freqüência o alusionismo mais sutil. Um bom exemplo recai na aparição do Bando Selvagem (figura 2.141): embora o nome da quadrilha seja uma alusão ao título original de Meu Ódio Será Sua Herança (The Wild Bunch, Sam Peckinpah, 1969), sua representação visual alude a outro longa-metragem, Dragões da Violência (1958, figura 2.142). De qualquer forma, as citações explícitas continuam aparecendo. É o caso da cena de abertura, em que três pistoleiros armam uma cilada para tentar liquidar Jack Beauregard (Henry Fonda), caubói veterano, quando este decide fazer a barba (figura 2.143); além de apresentar o tratamento distendido do tempo e o uso de ruídos naturais amplificados como forma de realçar a tensão do momento, a cena alude a Paixão dos Fortes (1946), onde o mesmo ator havia encenado um momento idêntico (figura 2.144). 170 Figura 2.141: Embora o nome do bando de pistoleiros de Meu Nome é Ninguém (em si, alusão à Odisséia) seja uma alusão ao longa Meu Ódio Será Sua Herança (1969)... Figura 2.142: ... as cenas em que a quadrilha aparece, cavalgando pelo deserto, citam visualmente outro filme: Dragões da Violência (1957), de Samuel Fuller. Figura 2.143: A tensa seqüência que envolve o ato banal de se barbear, em Meu Nome é Ninguém, aproveita a presença de Henry Fonda para citar outro filme ... Figura 2.144: ... em que o ator norte-americano protagonizou uma cena de violência durante o mesmo ato: o clássico Paixão dos Fortes (1946), de John Ford. Os dois protagonistas são caracterizados de maneira arquetípica, cada um evocando uma vertente do western. A escalação dos dois atores principais deixa isso explícito. Para representar o veterano Jack Beauregard, Leone trouxe de volta Henry Fonda (figura 2.145). No papel do jovem fã que pretende suceder o ídolo está Mario Girotti (pseudônimo: Terence Hill), intérprete do personagem Trinity (figura 2.146). Da mesma forma que ocorrera em Era uma Vez no Oeste, a escalação de Fonda faz parte de um jogo intertextual com personagens anteriores interpretados por ele mesmo: homem solitário, de poucas palavras, que nos filmes americanos era um altruísta. Aqui, ele é um solitário interessado exclusivamente em coletar dinheiro suficiente para comprar uma passagem de navio que lhe permita viajar para a Europa. O mesmo jogo intertextual justifica a escalação de Girotti. Embora todos se refiram ao personagem dele como Nobody (em português, Ninguém), o que é ao mesmo tempo brincadeira irônica (porque o que ele mais deseja é ser alguém) e pastiche (citação à Odisséia, de Homero), é óbvio que se trata do mesmo Trinity dos dois filmes assinados por Enzo Barboni. A caracterização de Nobody é a mesma de Trinity, até mesmo no figurino. Ele também é errante e solitário. Nobody é um pícaro, um vagabundo que usa de esperteza para se safar de confusões. Veste roupas sujas, é preguiçoso, prefere usar as mãos ao revólver (embora seja um ás com uma arma nas mãos). Nesse ponto, ele se distancia um pouco do herói característico de Leone, 171 Figura 2.145: Henry Fonda interpreta um veterano pistoleiro com planos de aposentadoria, numa referência direta à decadência do western tradicional ... Figura 2.146: ... enquanto o italiano Mario Girotti, conhecido protagonista da série Trinity, encarna seu sucessor, um trapalhão que prefere socos ao revólver. pois é menos violento; de fato, Nobody nunca é apresentado como um criminoso, capaz de matar por dinheiro, como os heróis anteriores de Leone. Essa característica provoca a substituição dos duelos a bala, em algumas cenas, por trocas de sopapos coreografadas como número de circo, como ocorria nos spaghetti westerns que Leone estava criticando. Na prática estilística o filme é desigual, às vezes reproduzindo e outras vezes se afastando dos recursos recorrentes em Leone (esse fato é provavelmente explicado porque, afinal de contas, Tonino Valerii era oficialmente o diretor). As coreografias de tapas e chutes são encenadas e decupadas através de técnicas que preservam o senso de espaço e tempo fílmicos: as tomadas são mais longas, há menos close-ups e mais planos gerais; e a encenação freqüentemente mostra os atores atuando num eixo horizontal em relação à câmera, com profundidade de campo menor do que nos westerns anteriores. Este mesmo estilo de encenação pode ser observado nos filmes de Valerii, como O Preço do Poder (Il Prezzo Del Potere, Tonino Valerii, 1969) e Dias de Ira (Il Giorni Dell’Ira, Tonino Valerii, 1967). No que se refere à temática e à construção em larga escala, a cena analisada a seguir respeito bem mais os esquemas do gênero do que os demais filmes de Leone. Trata-se de uma briga de bar, momento familiar para qualquer espectador acostumado com westerns; e foi filmada usando-se o estilo clássico de continuidade invisível, como um diretor veterano de westerns nos Estados Unidos o faria, nos anos 1930-1960: predominância de planos americanos (figuras 2.147 e 2.149) ou médios (figuras 2.148 e 2.150) de longa duração. A encenação horizontal resulta em imagens planimétricas, com menos senso de profundidade. Os recursos estilísticos são menos retóricos do que os utilizados por Leone para encenar situações semelhantes em filmes anteriores. Na briga de bar de Por uns Dólares a Mais, que analisamos antes, Leone optou por planos curtos, cortes rápidos, variações radicais de enquadramento, encenação em diagonal, câmera próxima dos atores, close-ups extremos e composições recessivas com profundidade de campo. Nenhum desses recursos é usado aqui. Nesta cena, o diretor varia pouco o enquadramento. A ênfase está na velocidade da ação dentro do quadro (tapas em sucessão rapidíssima efetuados por Girotti); algumas vezes, 172 Figura 2.147: Para filmar as brigas de Nobody, Tonino Valerii usa um estilo de encenação mais clássico, com maior economia de close-ups e tomadas mais longas. Figura 2.148: Mesmo nas composições recessivas, com personagens dispostos numa linha diagonal, a distância entre os atores é próxima e a profundidade, menor. Figura 2.149: Tomadas que mostram tapas são encenadas com atores dispostos em linha horizontal e figurantes imóveis: composição planimétrica. Figura 2.150: A imobilidade dos figurantes é importante para que, na edição, a velocidade da tomada possa ser manipulada, acelerando-se em determinados trechos. é possível notar que o efeito decorre da alteração da velocidade de projeção, efeito perceptível porque os figurantes que assistem à cena, em segundo plano, praticamente não se movem (possivelmente orientados pelo diretor), o que causa um efeito de estranhamento geral. Poderíamos perguntar: por que encenar duas brigas de bar, em filmes do mesmo gênero, de maneiras tão distintas? A resposta mais simples é que não foi Leone, mas Valerii, quem dirigiu a cena, escolhendo soluções diferentes para os mesmos problemas de representação. Por outro lado, o diretor – seja ele quem tenha sido – usou uma situação dramática típica do western americano para reverter uma expectativa do público (uma briga de bar onde revólveres não eram sacados e nem disparados), e subverter um código específico do western cômico italiano através do estilo (filmando uma troca de sopapos de maneira deliberadamente reverente ao western mais antigo). Nesse ponto, cultivando tanto a tradição quanto a modernidade, justapondo ironia e nostalgia em uma única cena, o cineasta criava um paradoxo tanto temático quanto pictórico. Com relação à disputa entre Nobody e Beauregard, uma leitura possível para a rivalidade entre os dois pistoleiros de caracterizações tão distintas é que o diretor encenava no filme uma espécie de confronto do herói romântico do western americano contra o anti-herói cínico do spaghetti western. Esse confronto não está proposto numa leitura conceitual do filme; acontece de verdade, fica explicitado no duelo que fecha o filme. A cena, que é ambientada em New Orleans, mostra os dois protagonistas encenando um duelo clássico: um em cada lado da rua, com uma multidão assistindo (figuras 2.151 e 2.152) e um fotógrafo 173 Figura 2.151: O duelo final de Meu Nome é Ninguém cria um confronto entre os dois heróis na rua principal de New Orleans, com uma multidão assistindo. Figura 2.152: A decupagem tem pouco de Leone: planos americanos, nenhum close-up extremo e poucas composições recessivas, sem profundidade de campo. Figura 2.153: Um fotógrafo “dirige” a encenação dos pistoleiros, apontando o lugar exato em que cada um deve ficar para obter o registro do melhor ângulo. Figura 2.154: Depois de encenar a própria morte, Jack Beauregard vai viver na Europa; o veterano pistoleiro agora usa óculos de aro de metal para conseguir ler. registrando tudo (figura 2.153). Esse fotógrafo chega a orientar a posição de cada pistoleiro para conseguir o melhor ângulo do tiro fatal (uma ironia auto-reflexiva, aspecto do processo de intensificação da continuidade clássica visto dos filmes europeus dos anos 1960). Embora a cena termine com Beauregard supostamente morto, na verdade todo o confronto é uma armação da dupla. Ambos ficam vivos. Nobody se torna uma celebridade, tendo supostamente eliminado o homem mais rápido no gatilho do mundo. E agora habita um Oeste que nada tem de velho, em que automóveis e fotógrafos circulam, trazendo consigo uma modernidade que condena o gênero a um melancólico (e nostálgico) final. Beauregard (figura 2.154), ao mesmo tempo, viaja para a aposentadoria européia, depois de enviar uma carta agradecendo e se despedindo de Nobody. Cada um dos heróis recebe, simbolicamente, o destino que Leone imaginava estar reservado para o gênero. Após este filme, Leone não retornaria mais ao western, tendo se dedicado ao projeto que acalentava desde o começo da carreira: um épico gângster cujo conceito central era a violência como motor propulsor da prosperidade dos Estados Unidos. Embora lidasse com um gênero diferente, Leone trouxe consigo todo o repertório de técnicas estilísticas e narrativas, a começar pelo perfil dos heróis, pelas citações abundantes e pela representação da violência. O filme de gângster, que nos anos 1930 tinha sido um dos gêneros mais populares dos Estados Unidos, passava por uma onda de revitalização após o grande sucesso de O Poderoso Chefão (1972). Francis Ford Coppola, assim com a maior parte dos cineastas da geração New 174 Hollywood, assimilara alguns recursos estilísticos desenvolvidos pelos diretores europeus dos anos 1960, inclusive Leone. Seus filmes já tinham heróis amorais e violência gráfica. Mesmo assim, Leone teve problemas de ordem moral. Ele precisou lutar para convencer executivos que os dois personagens centrais eram viáveis para uma audiência americana. O problema estava no perfil violento de ambos. O épico mostrava a ascensão de Noodles (Robert De Niro) e Max (James Woods), de jovens e ambiciosos ladrões de padaria no Brooklyn a chefes de um império mafioso. Nessa trajetória, os dois agiam sem qualquer limite moral: assassinatos, assaltos, estupros. Ninguém sofria qualquer tipo de crise de consciência por causa disso, e nem mesmo uma punição simbólica. Mas o filme foi feito. A cena em que Noodles corteja a atriz Deborah (Elizabeth McGovern) sintetiza algumas dessas características. Sua análise permite perceber como Leone ajustou o perfil do anti-herói para um gênero urbano, em que ele é obrigado a viver em sociedade. No século XX, afinal de contas, a opção de abandonar a sociedade e viver vagando pelo deserto não existia mais. Era preciso seguir regras sociais, mesmo que apenas por aparência. No filme, Noodles é apaixonado por Deborah. Sabendo que a moça gosta de luxo, ele a convida para jantar num restaurante caro. Ao chegarem lá, Deborah constata que Noodles arrendou o lugar apenas para o casal (figura 2.155). Os garçons recebem-nos na entrada. Durante o jantar, os close-ups de ambos enfatizam a tensão (figuras 2.156 e 2.157). Os dois dançam uma valsa (figura 2.158), e saem numa limusine. O sol está para nascer. Noodles a pede em casamento, mas ela recusa (figura 2.159); não tem intenção de abrir mão de sonhos profissionais para ficar com um homem que não lhe permitirá trabalhar. Noodles deixa cair a máscara. Até ali ele seguiu as convenções sociais, mas, na verdade, ele não dá a mínima para elas; está acostumado a ter o que quer, a todo custo, e vai conseguir. O mafioso agarra Deborah, arranca e rasga suas roupas, e a estupra no banco de trás do carro (figuras 2.161, 2.162 e 2.163), numa longa cena pontuada pelos gritos dela. A cena tem dois minutos e onze segundos (131 segundos). Leone a decupa em close-ups extremos e planos-detalhes que enfatizam a humilhação da mulher. A construção sonora da cena – a amplificação natural dos gritos de Deborah – torna o momento ainda mais monstruoso. Este é o perfil dos dois heróis (Max é ainda pior): assassinos, ladrões e estupradores. O longa-metragem é narrado do ponto de vista de Noodles que, chegando à velhice em 1968, começa a recordar o passado. Toda a atmosfera é de nostalgia, incluindo a música – a mais convencional composta por Morricone para Leone, repleta de orquestras de cordas e big bands jazzísticas que evocam a música verdadeira ouvida nos tempos da juventude do protagonista – com citações a fraseados musicais de trechos de canções conhecidas (ou seja, 175 Figura 2.155: Composição com moldura: para ter duas camadas em foco (o luxo e a reação de Deborah são importantes), Leone filma o casal a certa distância. Figura 2.156: Close-ups de Robert De Niro enfatizam os olhares fixos e insistentes que dirige à mulher, tentando adivinhar se ela pretende ceder às investidas dele. Figura 2.157: Close-ups de Deborah, ao contrário, mostram a moça desviando constantemente o olhar, o que sinaliza que o resultado da noite não vai ser feliz. Figura 2.158: Orquestra de cordas acompanha a valsa do casal: móveis e figurinos foram pesquisados em antiquários, para garantir a acuidade histórica. Figura 2.159: Dentro do carro, Deborah explica a Noodles que não pretende se casar com ele, pois deseja se dedicar à arte: close-ups extremos de rostos. Figura 2.160: Ela se despede com um beijo na bochecha; os close-ups enfatizam o desconforto da mulher e a irritação mal-disfarçada do mafioso, que explode ... Figura 2.161: ... e arranca a roupa de Deborah com agressividade; ela se desespera e começa a gritar por socorro, mas eles estão dentro do carro e não há ajuda. Figura 2.162: Leone encena toda a seqüência do estupro, que tem dois minutos e 11 segundos, pondo a câmera bem próxima do casal e com planos médios ... 176 Figura 2.163: ... e close-ups que enfatizam o sofrimento da garota e a fúria incontrolável do herói do filme, um assassino e ladrão, agora também estuprador. Figura 2.164: Com o sol nascendo, Noodles sai do carro e vai embora a pé, caminhando contra o céu azul: o plano geral enfatiza a vida solitária que ele levará. pastiche). O tema central, que aparece em diversas versões e arranjos no decorrer do filme, consiste numa adaptação da canção espanhola Amapola, de 1922. A nostalgia consiste em uma “insatisfação latente com a cultura do presente, deixando um vazio que preenchemos com a nostalgia por um passado idealizado” (HUTCHEON, 1998). Trata-se de outra experiência estética associada à condição pós-moderna. A nostalgia é elemento central também na estrutura narrativa não-cronológica, já que a maior parte do enredo consiste nas lembranças entrelaçadas de dois períodos distintos do passado (1923 e 1933), a partir da mente de um homem que se encontra mais de três décadas depois. Aliás, a construção narrativa em larga escala consiste na maior ousadia em Leone em direção à intensificação de sua prática narrativa. As memórias do mafioso são contadas de forma não-cronológica, com flashbacks fora de ordem, que confundem deliberadamente a realidade com a fantasia, de forma que o espectador nunca tem certeza se está vendo o que ocorreu realmente ou representa uma versão idealizada do passado de Noodles, distorcida pelas próprias memórias do delinqüente. Era Uma Vez na América trafega indistintamente entre três épocas, indo e voltando no tempo. Durante todo o filme, somos levados a pensar que o presente narrativo é o ano de 1968; o passado é acessado através de lembranças induzidas pelo ópio – o personagem é freqüentador de bares de ópio – e que Leone revela, somente na cena final, serem distorcidas em variados graus de realidade. Nesse ponto, Leone utiliza outro recurso narrativo da continuidade intensificada: a subjetividade das tramas, ou de parte delas, que se passariam exclusivamente na mente de um personagem, sem correspondência direta com a realidade diegética (BORDWELL, 2006, p. 80). A cena final foi pensada para pôr em nova perspectiva toda a trama: aquelas memórias do passado corresponderiam à realidade ou não passariam do sonho de ópio do mafioso? Leone fez questão de trabalhar nas transições entre as cenas do passado e do presente, de forma a deixar essas transições claras e suaves, sem interromper o fluxo narrativo. Um dos 177 melhores exemplos de passagem do presente para o passado pode ser encontrado na cena em que Noodles adolescente se apaixona por Deborah, ao vê-la dançando balé enquanto espia por um buraco na parede do banheiro do bar do pai dela. A cena usa a técnica do pastiche, já que Leone a construiu visualmente como uma homenagem à série de quadros de Edgar Degas sobre bailarinas. Leone era apaixonado pelo pintor e buscou inspiração nele para desenvolver um de seus recursos estilísticos visuais mais recorrentes, que era a composição recessiva com encenação em diagonal. Voltaremos mais detalhadamente a este tópico no capítulo a seguir. A cena inicia com o velho Noodles, em 1968, entrando no mesmo banheiro masculino. Ele sobe na privada e retira um pedaço de madeira, abrindo um buraco cuja vista dá para o depósito do restaurante (figura 2.165). A música de Ennio Morricone evolui num crescendo; a velocidade do zoom está em sincronia com a aproximação do rosto do personagem à parede, que por sua vez está em sincronia com a evolução da música. É uma sincronia tripla, que culmina com um close-up extremo dos olhos de Noodles, emoldurados pelos limites do buraco na parede (figura 2.166). Então, a câmera pára e a música pára. O que ele vê? O corte nos mostra um plano geral aberto da adolescente dançando balé (figura 2.167). A música agora é outra – uma versão arranjada em ritmo de jazz para o tema oriundo de Amapola, com instrumentação consistindo de bateria, guitarra, um solo de clarinete e contrapontos ocasionais de saxofone. Deborah (Jennifer Connelly, na versão jovem) dança ao som de uma vitrola. A música é diegética. O enquadramento inicial a mostra emoldurada pelas bordas do buraco na parede, expressando subjetivamente que aquele é o mesmo ponto de vista imagético visto por Noodles. Leone então realiza um lento zoom, até eliminar a moldura por completo e construir um plano geral mais fechado. Os próximos cortes nos dão imagens de Deborah dançando mais de perto (figura 2.168). De vez em quando, ela desvia o olhar para a câmera, demonstrando saber que está sendo observada por alguém – e gostando disso (o gesto é mínimo, mas ajuda a caracterização da personagem, pois Deborah optará pela profissão de atriz no futuro). Quando Leone corta de novo para os olhos de Noodles (figura 2.169), percebemos que se trata de um flashback, pois o que vemos não são os olhos de um velho, mas os olhos curiosos de um adolescente. Os enquadramentos da dança visam explicitar o contraste visual entre a figura feminina e graciosa que se move, delicada e suavemente, dentro daquele ambiente grosseiro, masculino, sujo, cheio de poeira e grandes sacos de mantimentos (figuras 2.170, 2.171 e 2.172), até que o irmão dela invade o depósito (figura 2.173) e avisa que o pai requisita a presença da garota no bar. Ela obedece, desligando a vitrola – o final abrupto da música expressa também o fim da “visão” de Noodles –, mas encerra sua “apresentação” com um 178 Figura 2.165: Close-up lateral mostra o velho Noodles olhando por um buraco na parede do banheiro; zoom, personagem e música se movem em sincronia. Figura 2.166: Close-up extremo dos olhos de Noodles: primeira vez que a assinatura estilística mais reconhecível de Leone é utilizada no filme. Figura 2.167: Deborah ensaia balé no depósito de alimentos; cena consiste num pastiche de de pinturas de Edgar Degas com bailarinas, que Leone adorava. Figura 2.168: Close-ups enfatizam os olhares de soslaio que Deborah dirige para o buraco na parede, sabendo que está sendo observada – e gostando disso. Figura 2.169: No contra-plano, um close-up extremo revela não mais os olhos de um velho, mas os de um adolescente: descobrimos que se trata de um flashback. Figura 2.170: Em seguida, Leone decupa a cena numa série de planos gerais que enfatiza o contraste entre a delicadeza e a suavidade dos gestos femininos ... Figura 2.171: ... e o grosseiro e sujo ambiente masculino do depósito do bar, cheio de sacos de alimentos; a luz dourada expressa a nostalgia idealizada de Noodles ... Figura 2.172: ... em relação a este momento da infância, enquanto o plano de Deborah se admirando no espelho revela um traço exibicionista em sua personalidade. 179 Figura 2.173: De repente, um rapaz entra no depósito e avisa que Deborah precisa trabalhar; a composição visual em camadas e a luz evocam estilo de Degas. Figura 2.174: Deborah desliga a vitrola – encerrando também a música diegética – e troca de roupa na frente de Noodles, sem tentar disfarçar sua nudez. toque final de erotismo: troca de roupa na frente do rapaz (figura 2.174), exibindo-se nua. Como já sabemos, essa ação despretensiosa terá uma conseqüência violenta, anos depois. As duas cenas analisadas têm uma ligação entre si. Ao longo deste capítulo, analisamos os recursos recorrentes empregados por Leone para estruturar a temática e a construção narrativa em larga escala de seus filmes. Confirmamos, através de uma análise fílmica detalhada, que os padrões narrativos recorrentes na obra dele (pastiche e alusionismo em variados graus de ênfase, heróis violentos, individualistas e de moral ambígua, representação gráfica da violência, ironia e nostalgia, releitura de gêneros rigidamente codificados) sempre buscavam revisar os esquemas narrativos da fase clássica do cinema. Procuramos, também, analisar os contextos sócio-culturais nos quais esses padrões recorrentes surgiram para Leone, instituindo-se como limites ou pré-condições que o influenciaram nesse processo. Vimos, assim, que o traço em comum entre os usos que Leone fazia dos recursos narrativos disponíveis era o pendor pela ostentação, o gosto pelo exagero, aquilo que os críticos dos Cahiers du Cinéma chamaram de “barroquismo”. Por sua vez, esse pendor confirma a intensificação de características narrativas comuns ao repertório do cinema clássico, em direção à poética da continuidade intensificada. No próximo capítulo, aplicaremos a mesma metodologia para analisar a prática estilística de Leone (ou seja, a terceira vertente da poética do cinema). Pretendemos confirmar até que ponto essa retórica inflamada também aparece na maneira como ele solucionava outros problemas de representação com os quais se defrontava. Saímos do terreno narrativo para discutir, agora, questão da forma fílmica. 180 3. Práticas estilísticas de Sergio Leone 3.1 Construindo um repertório audiovisual Um ponto de partida promissor para a análise minuciosa da prática estilística de Sergio Leone é o estudo detalhado do confronto final entre os três anti-heróis de Três Homens em Conflito. Essa seqüência é particularmente eficiente, para nossos objetivos, porque se trata do “momento mais famoso da história do spaghetti western” (HUGHES, 2004, p. 120). Através de sua análise, pretendemos relacionar os padrões estilísticos mais reconhecíveis de Leone para, a seguir, analisá-los um a um, relacionando-os com os contextos e influências que permitiram ou mesmo determinaram sua utilização. A seqüência completa pode ser dividida em duas cenas. A primeira consiste no encontro final dos três personagens, depois de chegarem separadamente ao cemitério militar onde sabem que está enterrado o tesouro. A segunda é aquilo que Sergio Leone chamava de trielo – um duelo a três – para decidir quem tomará posse desse tesouro. É possível encontrar na seqüência, também, os padrões narrativos recorrentes em Leone, os quais já analisamos no capítulo anterior. O exame minucioso dessa seqüência nos permitirá, inclusive, estabelecer conexões os recursos de ordem narrativa e os demais, de natureza estilística. A seqüência é ambientada num cemitério militar abandonado. No local está enterrada uma carga de 200 mil dólares em moedas de ouro, escondidas em um dos 10 mil túmulos de soldados mortos durante a guerra civil. Depois de cruzarem todo o território norte-americano, de norte a sul, entre encontros e desencontros violentos, os três anti-heróis chegam ao local quase ao mesmo tempo. É o clímax do filme. Ao todo, a seqüência tem 149 planos. As duas cenas que a compõem têm duração completa de nove minutos e 23 segundos (563 segundos); a duração média de um plano tem 3,8 segundos. É uma média baixa para um filme de 1966, o que caracteriza uma montagem bastante veloz. Naquela década, os filmes costumavam ter, em média, nove segundos por plano (SALT, 2009, p. 280); mas Leone realizou Três Homens em Conflito em 1966, quando o processo de aceleração da montagem – uma das características centrais da poética da continuidade intensificada – estava em curso. Para começar a análise, é importante lembrar que se trata de um filme de gênero. Já vimos como o gênero funciona como uma pré-condição do estilo; portanto, é de se esperar que haja algum tipo de confronto físico. No mínimo, algum tipo de expectativa de que haja 181 um duelo; a expectativa da violência funciona como um dos mais fortes códigos do western. Se os três pistoleiros se encontrassem no cemitério, desenterrassem o ouro, apertassem as mãos e fossem embora, o público ficaria frustrado. O motivo dessa frustração seria a violação deste código tão importante. A questão, aqui, não era violar deliberadamente esse código, mas relê-lo criticamente, revisando o esquema dominante de construção narrativa do western. Toda a seqüência é estruturada como uma convenção de gênero: um confronto cujo arco dramático evolui até se transformar em um duelo clássico, só que entre três pistoleiros ao invés de dois. Os heróis se encaram e se estudam longamente, em uma espécie de arena circular feita de pedras no centro do cemitério. Blondie encerra o duelo com dois tiros certeiros, matando Angel Eyes, enquanto Tuco descobre que seu revólver está descarregado, pois Blondie havia retirado as balas na noite anterior. Nesse ponto reside um aspecto importante da releitura, operada através da ironia. Somente ao final da seqüência o espectador descobre, junto com Tuco, que todo o duelo, cuja ação dramática evolui num tenso movimento de crescendo, construído através de uma combinação cuidadosa de montagem visual, edição de som e música, foi uma farsa. Blondie sabia desde o início que Tuco não representava ameaça, de modo que pôde concentrar toda a atenção em Angel Eyes, enquanto os outros dois pistoleiros tinham que dividir a atenção alternadamente entre um e outro adversário. Estando em vantagem diante dos dois, não havia sido dificuldade para Blondie eliminar o adversário mais perigoso. Na verdade, a seqüência toda constitui uma subversão do código do duelo em três níveis: (1) há três adversários em cena, ao invés de dois; (2) se num western normal o pistoleiro mais rápido ganha, aqui vence o mais astuto, pois ele usa um truque desleal para sair em vantagem; (3) tanto quanto Tuco foi enganado por Blondie, o espectador foi enganado por Leone. Tuco é o primeiro a chegar ao cemitério. A primeira tomada, cujo corte está em sincronia com a última nota da melodia que sublinhou a cena anterior, consiste num close-up extremo do rosto do pistoleiro, com expressão exultante (figura 3.1). Ele olha diretamente para a câmera; esta representa o túmulo procurado, aquele onde está escondido o tesouro. Há dois aspectos interessantes na escolha do ângulo de câmera para este plano em particular. Em primeiro lugar, o ângulo escolhido, em que a câmera assume o ponto de vista do túmulo onde o tesouro está enterrado. Esse ponto de vista força o personagem a olhar diretamente para a câmera, um procedimento raro nos esquemas dominantes do cinema clássico, mas bastante comum no modernismo europeu dos anos 1960, cujos cineastas gostavam de lembrar ao espectador que ele está assistindo a um filme, à maneira de Bertolt Brecht. 182 Esse recurso estilístico era evitado no cinema de Hollywood porque se temia que ele quebrasse a ilusão de imersão na história proporcionada pela poética da continuidade clássica. A revisão dos esquemas realizada pelos cineastas europeus dos anos 1960, contudo, estava progressivamente reabilitando a ferramenta, que fora usada nas duas primeiras décadas do cinema mudo – por exemplo, no plano final do western O Grande Roubo do Trem (The Great Train Robbery, Edwin S. Porter, 1903). Os Incompreendidos (1959), A Tortura do Medo (Peeping Tom, Michael Powell, 1960) e As Aventura de Tom Jones (Tom Jones, Tony Richardson, 1963), por exemplo, constituem alguns dos filmes em que esse recurso foi usado. Então é possível afirmar que, ao incluí-lo no repertório estilístico utilizado em Três Homens em Conflito, Sergio Leone estava (conscientemente ou não) se alinhando ao grupo de diretores que iniciaram a poética da continuidade intensificada. O segundo ponto que chama a atenção é a abundância do enquadramento em close-up, sobretudo na variação extrema. Esse tipo de composição, embora comum, é muito mais freqüente no cinema de Sergio Leone do que no repertório de qualquer outro cineasta contemporâneo dele (COUSINS, 2004, p. 33). Para se ter uma idéia, dos 149 planos que constituem a cena, nada menos que 77 deles são close-ups – ou seja, 51,67%, mais da metade de todos os planos utilizados na montagem final. A tendência de Leone para destacar o rosto dos atores, buscando principalmente os olhos, está expressa nesta seqüência de forma evidente. Dos 77 planos que utilizam o closeup, 56 destacam rostos. Mais de um terço de todas as composições pictóricas (37,58%) esquadrinham os rostos dos atores. Os enquadramentos variam entre close-ups normais (ombros e rosto, como nas figuras 3.26, 3.27 e 3.28), close-ups extremos (somente o rosto, com as extremidades da cabeça e do queixo cortadas, a exemplo das figuras 3.29, 3.30 e 3.31) ou close-ups ainda mais extremos que focalizam apenas os olhos (figuras 3.36, 3.37 e 3.38). Algumas pré-condições sócio-culturais (releitura crítica do gênero, inovações do cinema modernista, concorrência com a televisão), tecnológicas (limitações no uso de lentes anamórficas) e financeiras (o close-up extremo muitas vezes escondia a pobreza do cenário, porque o rosto do ator preenchia toda a tela) foram determinantes para que Leone operasse essa escolha estilística, optando pelo uso cada vez mais abundante do close-up. Detalharemos essas origens da ferramenta estilística adiante. É importante estabelecer a conexão entre o uso do close-up e outro recurso de estilo: o tratamento peculiar do tempo fílmico, com dilatações e compressões, distensões e acelerações da narrativa que permitiam ao diretor manipular a percepção da passagem do tempo interno da cena, ao passo em que, na poética da continuidade clássica, os cineastas representavam a 183 passagem do tempo da forma mais natural possível, sem cortes bruscos que pudessem abalar a sensação de que o tempo transcorria em paralelo à vida real (no cinema clássico, saltos cronológicos ocorrem basicamente nas elipses e transições entre cenas). Essa conexão entre a preferência por close-ups e o tratamento do tempo diegético parece ter uma relação direta com a representação mais fragmentada do espaço fílmico, particularmente nos momentos de drama mais intenso, em que a câmera fica mais próxima dos personagens e a montagem é mais veloz. Leone sustentava a representação fragmentada do espaço fílmico durante o máximo de tempo possível, para então justapor aos close-ups e planos-detalhes uma ou outra tomada panorâmica em que os personagens se tornavam pontinhos minúsculos se movendo na tela (figuras 3.15 e 3.16). Essa economia de planos gerais contribui para não deixar tão claras as relações espaciais entre os personagens da cena. A fragmentação do espaço fílmico fica mais evidente a partir do instante em que a seqüência entra em sua segunda cena, quando os três personagens passam a se encarar em igualdade de condições, já que até então as relações de forças entre eles eram desequilibradas (figura 3.13 em diante). Não por acaso, é exatamente nesse momento que a música de Ennio Morricone é ouvida pela primeira vez. Mas, por enquanto, retornemos ao início da cena, quando Tuco chega (figuras 3.1 e 3.2). Ele começa a cavar (figura 3.3), quando a sombra de um homem entra no quadro pelo lado esquerdo (figura 3.4), ao mesmo tempo em que é possível ouvir, na trilha sonora, o fraseado que funciona como leitmotiv e, assim, identifica o dono da sombra antes que possamos ver seu rosto. É Blondie. A melodia de cinco notas (LÁRÉ-LÁ-RÉ-LÁ), associada ao instrumento que a executa (a flauta doce) o identifica. Até então, Leone decupa a ação recorrendo a ângulos de câmera clássicos: Tuco é filmado em plongé, do ponto de vista de Blondie, enquanto este é enquadrado em contraplongé (figura 3.5). Blondie está no comando. Tuco hesita (figuras 3.6 e 3.7), mas volta a cavar (figura 3.8), aceitando a superioridade momentânea do outro. Nesse momento, Angel Eyes chega. A entrada em cena do personagem de Lee Van Cleef é semelhante à chegada de Clint Eastwood, e sintetiza outro recurso estilístico importante na obra de Leone: a relação por vezes contraditória entre aquilo que está sendo mostrado no quadro e os elementos que estão fora dele; uma espécie de trompe l’oeil cinematográfico (figura 3.9). Os dois personagens focalizados pela câmera só percebem a chegada do terceiro ator quando uma pá entra em quadro por baixo do frame. No mundo real, essa aparição quase sobrenatural seria literalmente impossível. Afinal, os dois homens estão num terreno amplo, sem qualquer barreira aos olhos; um lugar silencioso. Seria impossível 184 que outro ser humano se aproximasse de qualquer lado sem ser ouvido, ainda mais considerando que esses dois homens são pistoleiros profissionais de categoria já comprovada. Nos filmes de Leone, contudo, essa relação do espaço em quadro com o espaço fora do quadro é constantemente fantasiosa; os personagens focalizados pela câmera muitas vezes só enxergam aquilo que está dentro do quadro, numa espécie de adaptação para o cinema da técnica do trompe l’oeil. Essa técnica também vale para a aparição de Clint Eastwood diante de Eli Wallach, reforçada pelo fato de que Tuco sabia, perfeitamente, que o adversário estava apenas alguns minutos atrás de si e, portanto, chegaria rapidamente até ele. Frayling (2000) explica assim a relação entre o espaço do quadro e o que está fora dele, na obra de Leone: De repente, objetos surgem de fora do frame, vindo de trás do campo de visão da câmera. Freqüentemente a câmera revela coisas surpreendentes para nós, coisas que os personagens deveriam ter sido capazes de ver antes. Pelas regras clássicas de Hollywood, esse trabalho de câmera é inteiramente redundante e sem motivo. (FRAYLING, 2000, p. 230). Uma das características do cinema clássico é a subordinação da forma ao conteúdo; os cineastas formados até a década de 1950 justificavam narrativamente todo tipo de escolha estilística que operavam. Mas nos filmes europeus dos anos 1960 já não era assim. Nesse sentido, ao inserir na decupagem composições visuais que pareciam gratuitas, apenas por razões estéticas (e ainda por cima recorrentes), torna-se óbvio que Leone estava, conscientemente ou não, operando uma intensificação na prática estilística, ao mesmo tempo em que cunhava uma assinatura pessoal. A entrada em cena de Angel Eyes oferece um exemplo de outro elemento recorrente do estilo pictórico de Leone: a composição recessiva com moldura e profundidade de campo. No plano (figura 3.9), a pá está bem próxima à câmera e funciona como uma espécie de moldura que tensiona a ação principal mostrada à distância, em segundo plano; as duas camadas da imagem aparecem em foco nítido. Esta é a maneira predileta que Leone encontrou para dar profundidade a seus planos gerais, mantendo a tensão da cena como um todo. Aliás, é muito freqüente que a figura em primeiríssimo plano seja um close-up extremo, muitas vezes de rostos. Esse tipo de composição é repetido em outros cinco planos que integram a cena (figuras 3.12, 3.20, 3.21, 3.22 e 3.32). Mais à frente, vamos esclarecer os limites e précondições que originaram a adoção dessa ferramenta, bem como sua ênfase tão pronunciada, na obra de Leone. Ela também aponta para uma intensificação na retórica visual dos filmes. No momento em que aparece, Angel Eyes toma de Blondie o comando dramático das ações. Ele ordena que os dois mercenários cavem (figuras 3.10). Blondie não obedece, e 185 Figura 3.1: Close-up de Tuco olhando para a câmera (então um tabu); o corte para este plano é sincrônico com o corte da música (cena anterior) para o silêncio. Figura 3.2: Tuco olha para o túmulo onde o tesouro supostamente está enterrado; a banda sonora inclui apenas sons fora de quadro (vento, pássaros e corvo). Figura 3.3: Agora, os sons emitidos por ele (respiração e ruídos da escavação) se somam à trilha sonora; o pistoleiro é mostrado em planos gerais e médios. Figura 3.4: A sombra de Blondie entra em quadro sem que Tuco o veja se aproximar; sabemos que é ele por causa do leitmotiv (a música tocada com uma flauta). Figura 3.5: Blondie é enquadrado em contra-plongé (ele comanda a ação); o corvo – ave de mau agouro na mitologia – grasna mais alto em segundo plano sonoro. Figura 3.6: Tuco é filmado em plongé (ângulo que representa submissão); ele avalia a possibiliade de atirar em Blondie para ficar com o tesouro só para ele ... Figura 3.7: ... e Leone narra essa hesitação cortando para um plano-detalhe da mão do pistoleiro se aproximando lentamente do revólver no bolso. Figura 3.8: Tuco desiste de reagir e volta a cavar; com o alívio da tensão, a câmera se afasta e passa a filmar os personagens num clássico plano de conjunto. Figura 3.9: Uma pá entra em quadro por baixo do frame (trompe l’oeil), acompanhada pelo leitmotiv musical do trio: antes de vê-lo, sabemos que Angel Eyes chegou. Figura 3.10: Blodie se recusa a cavar e diz que se for baleado, o tesouro estará perdido para sempre; o closeup extremo de Angel Eyes indica o alto nível de tensão. 186 Figura 3.11: Blondie chuta a tampa do caixão e revela um esqueleto lá dentro; a localização do tesouro, que parecia certa, volta a ser um mistério para os outros. Figura 3.12: Blondie apanha uma pedra no chão, escreve algo embaixo dela e começa a caminhar para o centro do cemitério; agora, ninguém domina ninguém. Figura 3.13: Um degüello começa a ser executado enquanto Blondie caminha; o violão flamenco faz floreios cuja intensidade cresce no momento em que ... Figura 3.14: ... Blondie deposita a pedra no chão e a câmera faz um zoom in na pedra; a música se torna mais dramática e agora inclui um solo de trompete. Figura 3.15: O refrão apoteótico soa em volume máximo, enquanto os três se movem lentamente dentro da arena, num plano geral que dura 22 segundos ... Figura 3.16: ... e é sucedido por outro plano geral, mais longo (39 segundos) e com a câmera mais distante, que descreve as relações espaciais entre os pistoleiros. Figura 3.17: Leone corta para um plano médio e a música cessa de repente; agora só se ouve o vento soprar, o canto longínquo de pássaros e o corvo. Figura 3.18: Blondie também é filmado em plano médio, com a mesma duração da tomada anterior, dedicada a Tuco; a simetria de ângulo e duração dos planos ... Figura 3.19: ... se estende também à tomada dedicada a Angel Eyes; Leone sinaliza através da decupagem a eqüidade de forças entre os três protagonistas. Figura 3.20: O próximo bloco de três tomadas recorre a uma das composições prediletas de Leone: um elemento em primeiríssimo plano (cabeça e ombro) ... 187 Figura 3.21: ... e a ação dramática acontecendo ao fundo (outro pistoleiro); as duas camadas da imagem permanecem focalizadas com nitidez. Figura 3.22: A mesma composição recessiva é dedicada aos três personagens, reforçando a isonomia de força e astúcia; todos os sons diegéticos são eliminados ... Figura 3.23: ... enquanto o degüello de Morricone ressoa ao fundo; a ausência de planos gerais fragmenta o espaço fílmico e induz a uma representação indireta ... Figura 3.24: ... do tempo, que parece passar mais lentamente do que o normal; a câmera permanece estática em todos os planos dessa seqüência, ... Figura 3.25: ... enquanto a duração das tomadas é progressivamente encurtada; a montagem ainda é simétrica, dedicando o mesmo tempo e os mesmos ... Figura 3.26: ... enquadramentos para todos os protagonistas; a cada mudança de enquadramento, a câmera se aproxima um pouco mais dos rostos. Figura 3.27: Durante os primeiros close-ups, é possível perceber que Blondie permanece calmo, olhando fixamente para a sua direita, para o local onde está ... Figura 3.28: ... Angel Eyes, cuja fisionomia é tensa mas firme; os olhos dele dançam de um lado para o outro do rosto, denotando indecisão (ausente no adversário). Figura 3.29: A fisionomia de Blondie parece rígida como uma rocha; ele não traga o cigarro e continua a olhar exclusivamente para a direita, desprezando Tuco. Figura 3.30: Angel Eyes, por sua vez, olha para um lado e para o outro; ele parece mais tenso, enquanto os closeups extremos duram menos a cada rodada. 188 Figura 3.31: Dos três pistoleiros, Tuco parece ser o mais agitado; sua musculatura está inteiramente rígida de tensão, e seus olhos não se fixam em nenhum ponto. Figura 3.32: Leone inclui mais uma rodada de planos com composições recessivas (moldura, encenação em diagonal e profundidade de campo); o primeiro plano ... Figura 3.33: ... é sempre ocupados pelos revólveres e mãos (que se aproximam lentamente das armas) dos heróis; a tensão está prestes a chegar ao máximo. Figura 3.34: Leone explora várias vezes no filme o defeito físico de Lee Van Cleef, que havia perdido a ponta do dedo médio da mão direita num acidente. Figura 3.35: A ausência de sons diegéticos deixa o espectador sem pontos de síncrese e contibui para a percepção de que o tempo parece estar congelado. Figura 3.36: Durante a rodada de close-ups extremos dos olhos dos pistoleiros, o nervosismo de Tuco fica mais evidente, assim como a calma de Blondie, ... Figura 3.37: ... cujo olhar fixo parece adivinhar o desfecho da cena; perto do fim, o degüello ganha uma percussão militar e a música se torna ainda mais épica. Figura 3.38: Angel Eyes permanece imóvel, mas seus olhos agora já não param de dançar entre um lado e o outro do rosto, denotando indecisão e impaciência. Figura 3.39: O movimento da mão de Angel Eyes acontece no exato momento em que a música pára de tocar; os planos se sucedem em alta velocidade. Figura 3.40: Ouve-se um tiro, e o próximo plano que vemos mostra Blondie com o revólver apontado para Angel Eyes; o silêncio acentua a gravidade do momento. 189 Figura 3.41: Após um rápido plano geral, a câmera se aproxima e mostra Angel Eyes caindo; ele se arrasta, ferido, procurando a arma que lhe escapou das mãos. Figura 3.42: Enquanto isso, Tuco saca o revólver e tenta atirar, mas descobre que sua arma não tem munição: Blondie a havia descarregado na noite anterior. Figura 3.43: Angel Eyes consegue pegar o revólver e se vira para Blondie; o close-up acentua rapidamente o nível de tensão, já que o pistoleiro agora pode revidar. Figura 3.44: Antes que isso aconteça, porém, Blondie acerta o segundo tiro; o impacto da bala jogo o corpo sem vida de Angel Ayes diretamente dentro da cova. explica: o tesouro não se encontra ali (figura 3.11). Ele é o único que sabe a cova correta. Então apanha uma pedra (figuras 3.13 e 3.14) e escreve o nome da cova sob ela. Os três terão que duelar pela posse da pedra e do tesouro. Toda essa primeira parte abusa de duas outras características centrais para Leone: o desenho de som que enfatiza ruídos naturais amplificados e o desenho de produção sujo e realista. Nos dois casos, é possível perceber claramente a preocupação do diretor com os detalhes, com a criação de uma atmosfera que transmita ao mesmo tempo a verossimilhança do ambiente e da situação dramática vivida pelos personagens. Ou seja, as duas características partilham do mesmo princípio: expressividade dramática sem prescindir da verossimilhança. Efeitos sonoros e diálogos compõem o trecho, que transcorre sem música, com uma breve exceção – o fraseado de flauta com cinco notas que serve de leitmotiv para sinalizar a entrada em cena de Blondie, “respondido” por outra frase, de três notas, que por sua vez é o leitmotiv de Tuco. Ouve-se apenas o vento, o canto de pássaros e a respiração ofegante de Tuco. Ele apanha um pedaço de madeira do túmulo vizinho (num rasgo de humor negro característico de Sergio Leone, a pá improvisada é retirada de cima da cova verdadeira em que o tesouro está enterrado, algo que Tuco só vai descobrir muito depois) e começa a cavar. A partir desse momento, há cinco sons audíveis. Dois deles são provenientes de fontes sonoras que estão em quadro (a respiração de Tuco e os ruídos produzidos pela escavação). Os outros três provêm de fontes sonoras situadas fora do quadro: o barulho do vento 190 soprando, o canto dos pássaros (sutil, mas intermitente) e o grasnar periódico de um corvo, mais alto e forte que o piar dos outros pássaros. Esses dois grupos de sons têm importâncias narrativas diferentes, pois afetam a percepção da cena pelo espectador de maneiras distintas. Os dois sons cuja fonte de origem está visível são produzidos por Tuco, único personagem em quadro; eles providenciam pontos de síncrese (CHION, 1994, p. 58) entre a trilha de áudio e as imagens (tanto dentro de cada plano quanto na justaposição entre eles). Esses pontos de síncrese asseguram ao espectador que a sincronia entre informações visuais e auditivas está sendo respeitada. Nesse caso, os sons não contêm em si nenhuma informação narrativa relevante. Eles apenas reforçam a impressão de realismo para o público. Os outros ruídos – os sons fora de quadro – são mais importantes, do ponto de vista expressivo e emocional, apesar de menos percebidos pela audiência. O público não vê pássaros, corvo ou vento em momento algum da cena; por uma questão fisiológica de seleção operada pelo aparelho auditivo da espécie humana, relega automaticamente esses ruídos a um plano secundário de percepção sonora. Nesse tipo de situação, os sons fora de quadro atingem o espectador diretamente numa dimensão sensorial, produzindo um efeito – uma sensação – que não sabemos explicar como ocorreu, porque não identificamos a sua origem, já que não pensamos no que esses sons secundários fazem conosco. É freqüente, nos filmes, que o espectador sinta certas sensações (medo, angústia, isolamento, etc.) sem conseguir explicar concretamente qual a combinação de elementos visuais e/ou sonoros que causou essa sensação. Só a análise cuidadosa, do ponto de vista da percepção, pode revelar como tal efeito foi construído pelo diretor. Os sons fora do quadro, com bastante freqüência, têm enorme grau de responsabilidade na construção dessas cenas. O piar dos pássaros, o vento e o grasnar do corvo têm a função de proporcionar ao espectador uma noção tridimensional do espaço fílmico onde a cena se desenrola. Mas esses três ruídos possuem, também, a função suplementar – e primordial – de criar uma atmosfera de isolamento, de decrepitude, de morte. Tuco está num cemitério; o corvo, na mitologia grega, simboliza a má notícia, o azar e a morte. A presença desse pássaro, sinalizada pelo som fora de quadro, é expressiva; acentua a tensão do momento, porque o espectador realiza uma conexão de idéias sem pensar: a morte está por perto. Algum perigo se aproxima. Antes de prosseguir, é preciso chamar a atenção para o uso que Sergio Leone faz do silêncio. Não é aquele silêncio que Jean-Claude Carrière (1994) denomina de “silêncio absoluto”, referindo-se à ausência irrestrita de ruídos, vozes e música, um silêncio criado 191 artificialmente em estúdio, pois “não existe na natureza” (CARRIÈRE, 1994, p. 34), mas a um silêncio que se coaduna com a definição do termo oferecida por Michel Chion: A impressão de silêncio em uma cena de filme não vem simplesmente da ausência de ruídos. Ela só pode ser produzida como resultado de contexto e preparação. O exemplo mais simples consistiria em preceder a cena que contém o silêncio de outra cena repleta de barulho. Portanto, o silêncio nunca consiste de um vazio neutro. Ele é o negativo do som que ouvimos antes; é o produto de um contraste. (CHION, 1994, p. 57). O silêncio, expresso pela ausência de música e diálogos, bem como pela amplificação acentuada (ou seja, hiper-real) de sons naturais produzidos por seres e objetos que estão presentes, é outra ferramenta estilística recorrente em Leone. Esse elemento de estilo surgiu como resultado da conjunção de duas pré-condições: o sistema de produção dos filmes em Cinecittà (quase sempre realizados sem captação de som direto) e a influência do cinema japonês. Voltaremos a este tópico à frente. A chegada de Blondie surge em sincronia com o primeiro trecho musical da cena. Nesse ponto, é imprescindível explicar o uso do leitmotiv em Três Homens em Conflito. A melodia do tema principal consiste numa seqüência de cinco notas (o fraseado emula o grito de um coiote, animal que habita a diegese do filme, o deserto), que corresponde a uma ‘pergunta’: LÁ-RÉ-LÁ-RÉ-LÁ. Esse fraseado simples recebe, em seguida, uma ‘resposta’ em contraponto de outra frase musical, que consiste de mais três notas (FÁ-SOL-RÉ). A inovação de Ennio Morricone consistiu em utilizar a mesma seqüência de notas como leitmotiv para os três protagonistas, significando que eles são três versões da mesma personalidade. O espectador infere qual o leitmotiv de cada um através do instrumento utilizado para executar o fraseado musical. Para Blondie (o menos brutal dos três), a seqüência de notas é tocada numa flauta doce; para Angel Eyes (o mais malvado), o instrumento utilizado é a ocarina (em uma versão feita de argila, cujo som é bastante grave e sombrio, como o próprio personagem); e Tuco (o mais engraçado) é acompanhado por uma sobreposição de duas vozes masculinas que gritam as cinco notas, com o casamento sugerindo uma textura selvagem, como o grito original do coiote que inspirou a composição. No decorrer do filme, o espectador associa uma sonoridade específica a cada herói. Ao conceber essa estrutura, Morricone procurava reforçar o conceito central, elaborado por Leone, de que os três protagonistas se equivalem em força e astúcia, tendo moralidades muito parecidas; eles podem ser compreendidos como aspectos diferentes de um mesmo personagem. O compositor também respeitava um princípio central nas composições para 192 todos os filmes de Leone: o uso de elementos da diegese – no caso, a inspiração do coiote – como elementos integrantes da música: “[Esse som] tinha que ser eloqüente, para imitar o uivo do coiote e também para evocar a selvageria do universo do Velho Oeste” (MORRICONE apud FRAYLING, 2000, p. 236). O uso do leitmotiv fica mais complexo quando dois personagens estão contracenando. Nesse caso, Morricone desdobra o fraseado musical em dois momentos distintos, ponto e contraponto, cada fraseado executado pelo instrumento característico de um personagem. Há uma ‘pergunta’ (tocada com o instrumento relacionado ao personagem que comanda a cena emocionalmente) e em seguida a ‘resposta’ (executada no instrumento associado ao personagem em posição inferior). Este é o caso específico do uso da música no momento em que Blondie aparece. Assim que a sombra entra em quadro, ouvimos as cinco notas que emulam o grito do coiote, executadas com uma flauta: Blondie. Num jogo bem-humorado e irônico entre a diegese e a extra-diegese, a música parece alertar Tuco, que ergue a vista para verificar quem se aproxima. Nesse ponto, Leone corta para um contra-plano de Eastwood, enquadrado em plano médio e contra-plongé, enquanto ouvimos a ‘resposta’, gritada por um homem. Compreendemos: Tuco está momentaneamente dominado. A iminência de um ato violento fica evidente; Leone sinaliza isso através do desenho de som. O grasnar do corvo, antes ouvido de maneira esparsa, se torna mais insistente. O espaço ouvido entre um grasnar e outro diminui sensivelmente. Logo em seguida Angel Eyes chega; sua chegada é realçada pela introdução de um segundo trecho musical – as três notas do contraponto (FÁ-SOL-RÉ), compondo uma segunda ‘resposta’ à ‘pergunta’ de Blondie. Embora seja o mesmo fraseado, o instrumento que o executa não é a ocarina, característico do personagem de Lee Van Cleef, mas um órgão de igreja. Qual a razão possível para que, a esta altura do filme, uma convenção musical firmemente estabelecida dentro da narrativa seja desrespeitada? Talvez seja uma tentativa deliberada de confundir o espectador; talvez o novo instrumento seja uma referência à simbologia cristã, tão presente dentro da obra de Leone como um todo. Seja qual for a razão para a troca de instrumento, o efeito pretendido – surpresa – é alcançado. Por fim, os diálogos dominam auditivamente o trecho da cena a partir da entrada de Angel Eyes. Como em todos os spaghetti westerns, as frases são dubladas. Essa técnica possibilitava que Leone escolhesse o elenco, especialmente os coadjuvantes, pela aparência, à moda de Eisenstein, sem restrições relacionadas à nacionalidade e, portanto, à língua nativa de cada ator. Os atores podiam falar em qualquer língua, e alguns deles preferiam simplesmente contar números, simplesmente construindo frases com o mesmo número de 193 sílabas do que a linha estabelecida pelo roteiro. Eles sabiam que depois, na pós-produção, outro ator diria aquela frase em estúdio. Por tudo isso, a sincronização das vozes com o movimento labial era pouco meticulosa. Embora os sons vocais fossem emitidos sempre que os atores abriam a boca, os movimentos labiais nem sempre correspondiam aos sons emitidos. De fato, essa característica não era específica da obra de Leone; a questão da sincronia labial funcionava dessa maneira em todo o cinema italiano, como nota Michel Chion: Há vários níveis de sincronismo [entre som e imagem] e, particularmente no caso da sincronia labial, esses níveis exercem certo papel no estilo do filme. Por exemplo, os franceses estão acostumados a uma sincronização cuidadosa e fiel, e acham estranha a pós-sincronia nos diálogos dos filmes italianos. O que eles estranham, na verdade, é um estilo de sincronização mais livre, mais solta, freqüentemente descompassada em um décimo de segundo. Esta diferença é particularmente notável no caso da voz. Enquanto uma sincronia muito fiel faz o som da voz corresponder precisamente ao movimento dos lábios, os filmes italianos levam mais em consideração a totalidade da fala e menos o corpo que fala. No geral, a sincronia mais livre provoca um efeito menos naturalista, mais poético. (CHION, 1994, p. 65). Como Chion observa, esse recurso estilístico ia de encontro às preocupações realistas para as quais Leone dedicava grande esforço. De qualquer modo, era um recurso gerado por uma pré-condição marcante que havia se tornado hábito de todos os cineastas da Itália. Vale a pena salientar que essa falta de sincronia entre os diálogos e os movimentos labiais dos atores também pode explicar, pelo menos parcialmente, o fato de Leone usar o mínimo possível de diálogos em seus filmes. Esta é outra razão que pode ser apontada como pré-condição influente no uso dos efeitos sonoros (e do silêncio) para ajudar a contar a história. Se prosseguirmos com o raciocínio, a criação de pontos de síncrese através dos ruídos torna-se ainda mais importante. Afinal de contas, os pontos de síncrese mais naturais no cinema estão justamente na sincronia entre as vozes dos atores e os movimentos labiais – e os filmes de Leone não podiam usar esse recurso, tendo que sinalizar buscar a percepção da sincronia entre as bandas visual e sonora em outro lugar. Esse lugar, obviamente, estava na mixagem dos efeitos sonoros em volume e intensidade maiores do que o habitual. Mais um aspecto de estilo que pode ser observado na primeira parte da cena é o desenho de produção, que inclui cenário, figurinos e maquiagem. Três Homens em Conflito marca um ponto alto da obsessão de Leone com a acuidade histórica e a verossimilhança. Em 1964, o conceito da direção de arte de Por um Punhado de Dólares era representar os personagens vivendo num ambiente de natureza hostil. Nas filmagens de Três Homens em 194 Figura 3.45: Vera Cruz (1954), considerado um dos mais realistas westerns dos anos 1950, usava figurinos de cores saturadas para oferecer visual grandioso. Figura 3.46: Mesmo depois de vários dias cavalgando sob o sol do deserto, os personagens de O Homem que Luta Só (1959) estão sempre limpos e arrumados. Conflito, essa preocupação havia evoluído para a necessidade de parecer o mais historicamente acurado que fosse possível. Uma das possíveis razões para isso era a reação de Leone contra algumas das críticas que seus filmes recebiam, argumentando que ele se preocupava mais com o espetáculo do que com a representação fiel da realidade. Leone reagia contra essas críticas apontando para aspectos artificiais da aparência dos filmes americanos, como o colorido saturado que marcou toda a produção de Hollywood depois da ascensão do Cinemascope, em 1953, com pistoleiros usando camisas amarelas, roxas, azuis ou vermelhas (figuras 3.45 e 3.46): Westerns passaram a ser encenados como jogos infantis, com atores caindo para frente ao invés de serem jogados para trás pelo impacto dos tiros. Não se via sangue. Por um Punhado de Dólares quebrou as regras, no que diz respeito à representação da violência, e agregou um realismo que é possível notar nos novos filmes. (LEONE, 2005, p. 82). Assim, desde o primeiro western que fez, Leone instruiu Carlo Simi a pesquisar em livros históricos e preparar uma vasta documentação fotográfica da época e do local onde a ação dramática ocorria. Na cena analisada, essa preocupação fica evidente ao se examinar em detalhes a locação do cemitério militar (figuras 3.2, 3.3, 3.8, 3.9 e 3.12). Cemitérios eram locações familiares em westerns. Quando aparecem, em clássicos como Paixão dos Fortes (1946) e Rastros de Ódio (1958), são sempre mostrados como lugares cobertos com grama, com lápides organizadas, de aparência bucólica. O cemitério de Três Homens em Conflito não é nada disso. Fica num vale quase sem vegetação, coberto de poeira. É composto por 10 mil túmulos, a maioria com lápides improvisadas que consistem de pedaços de madeira com nomes inscritos – muitas marcadas com a palavra Unknown, ou Desconhecido –, cruzes toscamente construídas com gravetos ou pedaços de pau. Essa representação improvisada de um cemitério (figura 3.47) pode parecer macabra, mas é historicamente correta. Simi desenhou a locação com base em fotografias de Matthew 195 Figura 3.47: Mais de 10 mil lápides improvisadas com pedaços de madeira foram concebidas pelo diretor de arte Carlo Simi e construídas no deserto da Espanha. Figura 3.48: Um cemitério militar da guerra civil registrado por Matthew Brady em 1862: referência visual para a locação de Três Homens em Conflito. Brady (figura 3.48). Tudo isso – a preocupação com o realismo, a construção detalhada dos cenários e objetos cênicos, as pesquisas iconográficas extensas – constituem uma operação de worldmaking; ou seja, era mais uma prática estilística que buscava a intensificação. O worldmaking também se estende aos figurinos. Tuco usa botas velhas, calça e casaco de veludo marrom (empoeirado), e uma camisa branca encardida (figura 3.3) de suor. Angel Eyes veste calça, colete e chapéu pretos (figura 3.19). Num jogo intertextual com os dois primeiros westerns que fez, Leone faz Blondie resgatar, de um soldado moribundo que ele encontra algumas cenas antes, um poncho idêntico ao que Joe e Monco usam nos filmes anteriores (essa operação pode ser compreendida como um pastiche dos próprios filmes dele, inclusive). Dessa forma, no clímax de Três Homens em Conflito, Blondie usa exatamente a mesma roupa que Joe e Monco vestiam nos outros dois filmes (figura 3.5). Todos os três personagens estão cobertos de poeira, suados, rostos queimados de sol, barba por fazer. O realismo dos figurinos demarca uma diferença crucial, em relação aos filmes americanos. Nesses últimos, o herói sempre usa camisas roupas limpas, troca de roupa durante a trama (mesmo quando viaja sem bagagem), está barbeado e de banho tomado. O uso da cor em Leone, aliás, também obedece ao princípio do realismo; num universo de natureza inóspita, em que os homens passam várias horas por dia sob o sol abrasivo, as cores – das roupas, das casas, de tudo – se desgastam rapidamente: Nós tínhamos um ponto de partida, um princípio estético: num western, você não pode usar muitas cores. Escolhíamos uma paleta mais sutil – preto, marrom, vermelho escuro, branco encardido – porque os prédios são feitos de madeira e as cores dos exteriores eram muito gastas. Ambos tínhamos uma queda por tonalidades de areia. (DELLI COLLI, 2000, p. 229). Na primeira cena, ainda falta analisar o casamento meticuloso entre as trilhas de áudio e imagens. A quase total ausência de música mascara um pouco esse entrelaçamento, mas ele 196 se faz presente de forma muito ostensiva na segunda parte, quando começa o trielo propriamente dito, que decidirá sobre a posse do tesouro. Emocionalmente, o filme entra num novo estágio, a partir da segunda cena da seqüência. Os três personagens se colocam em igualdade de condição; o enredo evoluiu até apresentar o cenário característico de um duelo típico de western, uma convenção de gênero. A partir daí, a cena sofre uma grande mudança de ênfase dramática. Nenhuma palavra será pronunciada por qualquer um dos personagens até o final, um trecho que tem o total de quatro minutos e 39 segundos (529 segundos) sem diálogos. O desenho de som, os silêncios e as falas pontuadas de frases curtas, ironia e aforismos – esta última, recurso muito usado em filmes contemporâneos que adotam a autoconsciência como recurso narrativo, tratando diálogos e narração em off como slogans publicitários – dão lugar à música. Trata-se de um degüello que, seguindo a tradição da parceria entre diretor e compositor, é estruturado como uma canção pop, com dois versos em crescendo intercalados por um refrão solado por um trompete. A melodia é executada por esse instrumento nos refrões, momentos em que a música se torna mais intensa; durante os versos que os intercalam, a melodia é dedilhada ao violão flamenco, com alterações na velocidade e na intensidade da execução (rápida e forte em alguns momentos, lenta e dramática em outros). Castanholas e uma seção de cordas em segundo plano sonoro (esta última proporcionando o elemento de ligação que faz a ponte entre o verso e o refrão) completam a harmonia, o ritmo seguindo fielmente a decupagem das imagens – delicado para tomadas longas, vibrante quando a justaposição de tomadas se torna mais rápida e os planos, mais curtos. O mais importante, nesse procedimento estilístico, é a quebra deliberada de uma convenção característica da poética da continuidade clássica. Nos momentos de tensão dos westerns de Leone (especialmente duelos), muitas vezes a música é mixada em volume mais alto do que efeitos sonoros e vozes, os quais são, às vezes, eliminados por completo da trilha sonora. O procedimento viola o esquema dominante do uso da música no cinema, desde os tempos dos filmes mudos: a inaudibilidade da música (GORBMAN, 1988, p. 57). Segundo Claudia Gorbman, a música cinematográfica está quase sempre, quando utilizada da maneira clássica, subordinada a imagens e diálogos. Até os anos 1960, os diretores usavam composições musicais para cumprir três funções narrativas principais: pontuar a ação física (muitas vezes substituindo os efeitos sonoros), expressar e conduzir as emoções da platéia, e dar um senso de continuidade às imagens. A música estava subordinada não apenas à trilha de imagens, mas também aos diálogos. Desse modo, o espectador a 197 percebia num registro inconsciente, sem “ouvi-la” realmente – sem prestar atenção nela; essa inconsciência sobre a presença da música seria elemento fundamental para reforçar a atenção dirigida pelo espectador à progressão dramática da narrativa. É a mesma lógica da invisibilidade aplicada à montagem no cinema clássico: sem cortes bruscos (no caso, sem intervenções sonoras estridentes, que chamassem a atenção para si), a atenção do espectador ficava sempre voltada para a trama. Com isso, havia melhores possibilidades de engajá-lo emocionalmente na história que estava sendo contada. Nos filmes de Leone, esse uso “inaudível” da música é freqüentemente recusado. Leone traz a música para o primeiro plano sonoro, muitas vezes subordinando o ritmo das imagens a ela, ou retirando todos os outros sons (vozes e ruídos) da mixagem, fazendo a música influenciar a leitura que o espectador faz das imagens. Leone realizava isso, essencialmente, através de duas técnicas: (1) a sincronia entre a montagem imagética e a evolução melódica da música de Morricone; e (2) a predominância da música sobre todos os demais sons da trilha sonora, em certos momentos. Detalharemos tudo isso mais à frente. É fundamental observar que esse procedimento não apenas revisava o esquema dominante do uso da música no cinema, mas também estava em consonância com a autoreflexividade pretendida pelos diretores modernistas da época, para quem deixar a técnica ser percebida pela platéia era uma atitude natural. Portanto, esse uso da música constitui uma opção estilística que se coaduna perfeitamente com a poética da continuidade intensificada. Além disso, em certo sentido, a música é usada por Leone para reforçar a escolha dos ângulos de câmera e modular dramaticamente a cena. O casamento entre a evolução da música e a edição de imagens é meticulosamente planejado para interligar cada instância de aproximação da câmera em relação aos pistoleiros (do plano geral ao médio, do médio ao close-up, do close-up normal ao extremo, etc.) com um aumento gradual na intensidade da execução musical. No exemplo, sempre que Leone muda o enquadramento, aproximando a câmera de cada duelista e compondo planos cada vez mais fechados, a música cresce em intensidade; enquanto isso, a montagem é progressivamente acelerada e a duração dos planos torna-se menor. Tudo isso gera um efeito de ampliação crescente da tensão, acentuada pela fragmentação do espaço fílmico que os enquadramentos fechados proporcionam. Essa era a versão de Leone para uma ferramenta típica dos diretores modernistas europeus – o uso do falso raccord com intenção de suspense –, que a utilizavam para subverter uma convenção da linguagem cinematográfica e libertar o cinema da linearidade de tempo e espaço (BÜRCH, 1992, p. 36). 198 Bordwell acrescenta uma idéia importante para explicar porque, no decorrer dos anos 1960, os diretores começaram a fragmentar cada vez mais o espaço fílmico. Para ele, os cineastas foram influenciados pela popularização dos formatos Scope de imagem, pois esses formatos de imagem possuíam mais espaço lateral, de forma que era possível mostrar o cenário mesmo durante um close-up. Para Bordwell, a tela Scope levou os diretores a encarar o quadro não mais como uma janela a ser preenchida com elementos visuais, mas como uma superfície que podia ser dividida em unidades rítmicas (BORDWELL, 2007, p. 311). O uso recorrente da composição recessiva típica de Leone seria uma maneira possível de dividir o quadro Scope em diferentes unidades, da forma descrita por Bordwell. Antes de elaborar um pouco mais a idéia, voltemos à cena e a analisemos em detalhes. Há, nela, uma ironia suplementar: existe lugar mais adequado para um duelo do que um cemitério? Mais à frente, Leone dará cabo dessa ironia com um toque de humor negro, fazendo o corpo sem vida de Angel Eyes escorregar diretamente para dentro de uma cova no momento em que ele é atingido, dispensando assim os serviços de um coveiro (que, obviamente, não existe, uma vez que o cemitério está abandonado). Trata-se de uma cena de suspense, no sentido hitchcockiano do termo. O duelo, num western, é um momento de suspense. Segundo Hitchcock, a distinção entre suspense e terror é similar a um ataque aéreo utilizando bomba voadora ou V2. A primeira faz um “barulho de motor de popa”, de forma que as pessoas sabem que ela estava a caminho; quando o barulho para, a bomba cai e explode, segundos depois. Já a V2 não faz ruído, e explode sem que as pessoas se dêem conta disso. No primeiro caso, a sensação experimentada pelas pessoas é o suspense; no segundo caso, terror (HITCHCOCK, 1998, p. 146-147). O elemento central do suspense, portanto, é a expectativa. Para criar suspense, o cineasta precisa ordenar certos elementos integrantes da narrativa, de forma que o público possa antecipar um resultado e saboreie a expectativa, a ansiedade da espera por esse resultado. Quando os pistoleiros se reúnem, olhando uns para os outros, as mãos cada vez mais próximas dos revólveres, sabemos o que vai ocorrer em seguida. Leone dava um tratamento especial ao tempo fílmico nesses momentos de suspense. Ele manipulava recursos estilísticos para sustentar essa expectativa pelo maior tempo possível; daí a sensação de tempo congelado, ou distendido, nos momentos de suspense inseridos em seus filmes. É o caso do trielo. Vivenciamos a expectativa do tiroteio durante muito mais tempo do que acontecia em outros westerns, quase como se assistíssemos à cena em câmera lenta – um recurso que Leone efetivamente nunca usa. 199 Nesse sentido, a audibilidade da música em certos trechos do filme – sua percepção consciente por parte do espectador – era muito importante para libertar os acontecimentos do duelo da linearidade espaço-temporal do resto da trama. À fragmentação espacial da cena (conseguida através dos cortes rápidos e dos planos cada vez mais fechados) correspondia uma eliminação (total ou parcial) dos sons diegéticos, com o predomínio da música, o que acabava por tornar subjetiva a percepção da passagem do tempo. Daí vem a sensação de câmera lenta, de tempo dilatado: embora a música proporcionasse continuidade temporal, a fragmentação do espaço e a eliminação dos sons diegéticos contribuíam para inscrever os duelos de Leone em uma dimensão onde o tempo passava mais devagar. O tratamento que Leone dava ao tempo de seus duelos tem ligação importantíssima com a presença da música. No exemplo, a música é introduzida como acompanhamento da caminhada de Blondie em direção ao centro da arena. Ela começa com uma frase de trompete. Blondie deposita a pedra no chão e a câmera faz um zoom, reenquadrando-a em plano-detalhe (figura 3.14), ao mesmo tempo em que Morricone cria um súbito crescendo, adicionando violinos em uníssono e violão dedilhado; o crescendo corresponde com exatidão ao zoom. A sincronia entre os movimentos da imagem e a evolução dramática da melodia é impecável. Não se pode deixar de prestar atenção na música, mesmo que se tente, inclusive porque todos os sons diegéticos são eliminados da trilha sonora. Ele é um dos exemplos mais eloqüentes da revisão do esquema dominante de uso da música no cinema levado a cabo por Leone. O que se segue é quase um balé. Os três pistoleiros em círculos, lentamente, um olhando para o outro, entre planos médios e close-ups de olhares desconfiados. Após o zoom, Leone justapõe duas tomadas panorâmicas (figuras 3.15 e 3.16), com respectivamente 22 e 39 segundos de duração. São planos gerais abertos, em que os personagens se tornam minúsculas manchas se movendo na tela. Esses dois planos indicam ao espectador as relações espaciais entre os pistoleiros. Eles são essenciais para que se entenda o desenrolar da ação, pois daí em diante Leone não incluirá mais nenhum plano geral, fragmentando sucessivamente o espaço fílmico e aproximando cada vez mais a câmera dos heróis. Durante os dois planos gerais os sons diegéticos somem. Não há diálogos e nem efeitos sonoros; apenas a música, que acelera e desacelera, pulsando no mesmo ritmo dos movimentos da câmera, até que cada pistoleiro se coloque numa posição equânime dentro da arena circular. O efeito de percepção obtido pelo conjunto (encenação, montagem visual e música) é de que o tempo passa em câmera lenta. Durante o primeiro plano geral, a música evolui do verso para o refrão, em um crescendo cuja melodia é conduzida por uma seção de violinos que evolui até atingir a 200 apoteose durante o refrão. É aí que entra o trompete, executando um solo em tom de lamento; a harmonia é sustentada por um coral masculino e violinos. No exato momento em que Leone insere o segundo plano geral, o trompete inicia o solo do refrão. A sincronia é absoluta. Leone corta para um plano médio de Tuco (figura 3.17) e, mais uma vez, a justaposição da imagem é sincrônica com o movimento da música, que é interrompida no exato instante do corte. Os três homens estão parados. A câmera se aproxima cada vez mais. A decupagem é simétrica, dedicando o mesmo tempo de tela a cada um dos pistoleiros, e mostrando-os sucessivamente com o mesmo enquadramento; essa simetria sinaliza ao espectador a igualdade de condições. Eles são equivalentes em força e astúcia, e estão cientes disso. Leone inicia com planos médios (figuras 3.17, 3.18 e 3.19); corta para composições recessivas em profundidade (figuras 3.20, 3.21 e 3.22); e daí para planos-detalhes (figuras 3.23, 3.24 e 3.25). Vêm então três close-ups (figuras 3.26, 3.27 e 3.28), depois três close-ups extremos (figuras 3.29, 3.30 e 3.31); uma composição recessiva com o primeiríssimo plano em closeup extremo (figura 3.32); três planos-detalhes simétricos das mãos de cada pistoleiro (figuras 3.33, 3.34 e 3.35); três planos de close-ups extremos dos olhos (figuras 3.36, 3.37 e 3.38). No início desse trecho, durante os planos médios, o silêncio enfatiza a gravidade do momento; apenas os pássaros, o vento e os corvos quebram o silêncio. Quando a decupagem passa aos planos simétricos de composição recessiva com profundidade, a música retorna. Não o degüello ouvido antes, mas uma melodia minimalista, três notas executadas por uma celesta; trata-se de uma alusão explícita – pastiche – ao clímax do filme anterior de Leone, Por uns Dólares a Mais, em que o duelo final também ocorre numa arena circular de pedras e é sublinhado pela melodia tocada por uma celesta. Aos poucos, o dedilhar em estilo flamenco retorna, injetando trechos episódicos do degüello anterior em intercalação com a melodia da celesta. Trechos do degüello soam mais agressivos, pois surgem inesperadamente, acompanhados de percussão e sinos. Assim que a decupagem chega aos close-ups extremos, Leone abandona a simetria e passa a alternar closeups de olhos, de rostos e planos-detalhes; ele acelera a montagem, reduzindo cada vez mais a duração dos planos. Nesse exato momento, o verso do degüello evolui novamente em direção ao refrão apoteótico, com o solo de trompete sublinhando uma longa e alucinante seqüência de close-ups extremos de olhos, mãos e revólveres, até que a mão de Angel Eyes faz um rápido movimento lateral (figura 3.29) e ouve-se um tiro; a música pára imediatamente. O plano seguinte mostra Blondie com o revólver na mão (figura 3.40). Ele atirou primeiro. Só então Leone retorna para um rápido plano geral aberto, que focaliza toda a arena circular, para depois aproximar a câmera e mostrar o personagem de Lee Van Cleef caindo 201 (figura 3.41). Tuco tenta disparar, mas não consegue (figura 3.42). Blondie não atira nele. Quando Angel Eyes finalmente encontra a arma, Leone o focaliza num close-up extremo (figura 3.43), criando subitamente um breve instante de suspense antes de Blondie o atingir pela segunda vez; o impacto da bala joga o pistoleiro dentro de uma cova (figura 3.44). A associação das técnicas utilizadas por Leone, sobretudo no trecho final da cena, provoca uma extraordinária fragmentação do espaço fílmico; a conseqüência desse tratamento retórico da imagem e do som é a distensão do tempo fílmico e a intensificação do suspense. Noel Bürch (1992) afirma que todos os cineastas modernistas europeus da época estavam sofisticando a decupagem visual ao construir articulações espaços-temporais não mais dentro de cada plano, mas sim através das relações entre os planos; não mais através da encenação, e sim através da montagem imagética. Resnais, Godard, Rohmer e Antonioni são citados como exemplos de cineastas que desenvolveram esse recurso estilístico em diferentes direções, desenvolvendo um cinema que, ao provocar certa desorientação espaço-temporal do espectador, conseqüentemente o obrigava a manter distanciamento crítico da obra: A concepção internacional de modernismo cinematográfico foi largamente difundida a partir do neo-realismo tardio e dos trabalhos do jovem Bergman, através dos filmes de Antonioni, Bresson, Fellini e Buñuel, até os Jovens Cinemas dos anos 1960, especialmente a Nouvelle Vague. O ideal de objetividade de Bazin e os elogios dos Cahiers sobre a mise-en-scéne sóbria foram confrontados por um cinema de fragmentação, ambigüidade, distanciamento e efeitos estéticos flagrantes. (BORDWELL, 1998, p. 87). Essa última sentença pode ser aplicada integralmente ao cinema de Leone. Bürch (1992), de novo, explica a construção dessas articulações espaços-temporais mais difusas, propondo que a percepção do espectador não inclui apenas elementos dentro do quadro, pois é afetada também por tudo o que circunda esse quadro, tanto visual quanto auditivamente (e, no caso de Leone, podemos afirmar que é afetada também pela música auto-consciente). Bürch afirma que a composição pictórica funciona como elemento central de um cubo perceptivo; a construção do espaço e do tempo fílmicos só se realiza dentro da mente de cada espectador, depois que este articula aquilo que vê no quadro com os elementos que sabe estarem fora do quadro, em todas as seis direções possíveis: os quatro limites da tela (as duas laterais, em cima e em baixo), atrás da tela (e dos personagens) e em frente à tela (atrás da câmera). E como é possível, para o público, ter conhecimento de todo esse espaço fílmico extracampo? Através da associação mental entre o plano que está sendo visto e o espaço fílmico completo, que cada espectador reconstitui articulando o plano visto com os demais planos que integram a cena. O som exerce um papel fundamental nesse processo cognitivo, pois na vida 202 real o espectador ouve em 360 graus, tendo dessa forma uma noção mais ou menos precisa daquilo que existe fora de seu campo visual. O ponto central do raciocínio de Bürch é que os diretores europeus dos anos 1960, ao revisarem dessa forma as táticas de encenação típicas dos esquemas da continuidade clássica, estavam expandindo as possibilidades criativas da arte cinematográfica (BÜRCH, 1992, p. 36). Embora Bürch significativamente não mencione Leone, podemos afirmar que a cena do trielo constitui um exemplo da nova forma de articulação espaço-tempo a partir da decupagem e da música. A cena analisada contém amostras de quase todas as características importantes da prática estilística de Leone: tratamento particular do tempo fílmico, distendendo-o para modular a tensão; uso abundante de close-ups extremos; composições recessivas com moldura em profundidade de campo; atenção obsessiva aos detalhes e preocupação com a acuidade histórica; música que mistura elementos satíricos e neo-românticos, incorporando influências do concretismo modernista; desenho de som hiper-real, com ruídos naturais amplificados que constroem uma atmosfera emocional, ao mesmo tempo em que inserem as imagens numa ambiente tridimensional; e cuidado meticuloso com a articulação entre som e imagem. Nos anos 1960, já vimos, algumas dessas características faziam com que Leone fosse mal visto pela crítica, que insistia em chamá-lo de exibicionista. Escrevendo sobre Era uma Vez na América, o crítico Leo Benvenuti cunhou uma palavra para esse procedimento: “Leone-ness” 20 (FRAYLING, 2000, p. 463), um termo que poderia ser traduzido como leonice. Benvenuti argumentou que qualquer diretor poderia ter filmado o épico em duas horas e meia, mas não Leone, um cineasta maneirista de tal ordem que precisava reservar meia hora para se exibir estilisticamente, criando leonices. Há uma cena de Era uma Vez na América que corresponde ao que Benvenuti chama de leonice. Patsy (Brian Bloom) chega ao apartamento de Peggy (Julie Cohen) com uma bomba de creme. Todos na vizinhança sabem que a garota faz sexo em troca de doces. No momento em que ele chega à casa da garota, ela está tomando banho, e isso o obriga a aguardar. Leone constrói uma cena de dois minutos e 21 segundos (141 segundos) que consiste em um garoto sentado nos degraus de uma escada, olhando para um doce. No entanto, este é um dos momentos mais lembrados do filme. Leone constrói suspense através da manipulação do tempo fílmico. Patsy senta-se na escada e põe o embrulho ao lado (figura 3.49). Ele olha para o embrulho, olha para a porta, desvia o olhar. Olha de 20 A expressão se refere aos tiques (nesse caso, a conotação negativa é evidente) que correspondem aos recursos estilísticos e narrativos mais característicos do diretor. 203 Figura 3.49: Patsy senta-se na escada, mas evita olhar para o embrulho; note o corrimão em primeiro plano, fora de foco, usado como moldura na composição. Figura 3.50: O menino cede à tentação e abre o pacote com o doce, olhando de lado para verificar se Peggy está perto; ele hesita um instante e fecha o embrulho ... Figura 3.51: ... para em seguida abri-lo novamente; cortejando o suspense, Leone enfatiza o detalhe da cereja vermelha, que simboliza a tentação irresistível. Figura 3.52: Patsy desiste de esperar Peggy e devora o doce em alguns segundos: exemplo de cena sem relevância para a narrativa – uma leonice. novo. Abre o embrulho, passa o dedo na cobertura do doce (figura 3.50), volta a fechar o pacote. Abre-o novamente (figura 3.51), tira a cereja, a recoloca no bolo. Tudo isso por várias vezes, até devorar o doce inteiro (figura 3.52). Do ponto de vista puramente cinematográfico, trata-se de uma cena inteiramente retórica. Não tem nenhuma importância para fazer a ação dramática avançar. Nela, Leone revisa vários esquemas característicos da continuidade clássica, inclusive utilizando diversos recursos estilísticos que deixam a técnica ostensivamente visível. O que Leone estava fazendo em cenas como essas, aqui analisadas, era ajudar a constituir, junto a outros diretores contemporâneos, um novo repertório de técnicas que revisavam os esquemas disponíveis e intensificavam a maneira como um cineasta contava uma história. Nas seções seguintes, vamos nos deter nesse conjunto de recursos estilísticos, explorando cada um e tentando identificar quais os limites e/ou pré-condições que contribuíram para que Leone os adotasse. 3.2 Composição e enquadramento De todos os padrões estilísticos recorrentes na obra de Leone, o uso abundante de close-ups – sobretudo de close-ups extremos – é a ferramenta mais associada ao trabalho de 204 Leone. Close-ups extremos de rostos (em que o enquadramento vai do queixo à testa do ator) ou apenas de um par de olhos são, até hoje, instantaneamente associados ao trabalho de Leone por cinéfilos, pesquisadores e cineastas. Para se ter uma idéia, quando Quentin Tarantino dirige uma cena e deseja que o diretor de fotografia filme um close-up extremo, pede da seguinte maneira: “Faça um Sergio Leone” (FRAYLING, 2000, p. 490). É a senha para que o operador de câmera saiba com exatidão o tipo de enquadramento desejado. Curiosamente, o close-up era um recurso estilístico evitado pelos cineastas da geração anterior a Leone. Parafraseando Godard: para Rossellini, De Sica e outros, evitar o close-up era uma questão de moral 21. Eles associavam esse tipo de enquadramento ao melodrama norte-americano; aproximar a câmera do rosto do ator era uma maneira fácil de manipular as emoções do público, forçando-o a sentir determinado sentimento e praticamente obrigando-o a se identificar com o personagem em questão. Ao mesmo tempo, o close-up isolava o personagem do espaço físico onde a ação dramática acontecia, violando dessa forma um dos princípios fundamentais do neo-realismo: a integração dos atores ao cenário. Mas, então, qual a origem do uso tão abundante do close-up dentro da obra de Leone? Vamos investigar uma série de razões, mas antes disso é importante ressaltar que ele estava consciente sobre o uso particular que dava ao close-up: Nos Estados Unidos, todos fazem um close-up em um personagem quando ele está prestes a dizer algo importante. Eu sempre reagi contra essa prática. Meus close-ups são sempre a expressão de uma emoção. Sou muito cuidadoso nessa área, então me chamam de perfeccionista ou formalista, porque eu prezo por minhas composições visuais. Mas não faço isso para deixar o filme mais bonito. Estou procurando, em primeiro lugar, as emoções mais relevantes. (LEONE, 2000. p. 77). Leone rejeitava o rótulo de formalista. Ele rebatia essa afirmação evocando toda uma linhagem de diretores antes dele que valorizava os close-ups de rostos com funções expressivas. Nesse ponto, Leone tinha razão. Alguns diretores soviéticos dos anos 1920, especialmente Sergei Eisenstein (figura 3.53), concebiam o close-up como um estudo pictórico da face humana, extraindo dele não uma informação objetiva, mas um efeito emocional: “a essência está em filmar expressivamente. Devemos (...) usar o limite da forma simples e econômica que expressa o que precisamos” (EISENSTEIN, 2002, p. 137). Era uma espécie de antecipação avant la lettre da poética da continuidade intensificada, narrando de forma expressiva e não meramente objetiva. 21 Referência à frase famosa de Godard (“todo traveling é uma questão de moral”), publicada nos Cahiers du Cinéma nº 97 (julho de 1959). 205 Figura 3.53: Close-up extremo na famosa cena do massacre da escadaria de Odessa, em O Encouraçado Potemkin (1925): emoção e estudo da face humana. Figura 3.54: Carl Dreyer usou close-ups extremos para injetar um sentido místico ao martírio da personagem central de A Paixão de Joana D’Arc (1928). Diretores europeus em ação nos anos 1920 e 1930, a exemplo de Eisenstein e Carl Dreyer (figura 3.54), lançavam mão desse recurso estilístico com freqüência. No entanto, eles faziam parte de uma minoria. Na Europa, o esquema dominante da época apontava para o registro visual de cenas em tomadas longas e com câmera distante dos atores. Esses recursos eram ainda mais proeminentes nos países europeus do que em Hollywood, onde também constituíam um esquema dominante (SALT, 2009, p. 245). Nos Estados Unidos, os cineastas usavam o close-up com mais economia e cautela, pois “receavam que um corte súbito para um pormenor pudesse desagradar a um público habituado a ver teatro e estar, assim, sempre à mesma distância da ação” (COUSINS, 2004, p. 31). Por isso a poética da continuidade clássica, consolidada nos Estados Unidos a partir de 1917, foi organizada em torno do princípio da suavidade – ou mesmo invisibilidade – dos cortes. As cenas eram filmadas inicialmente com a câmera afastada da ação; os cortes, efetuados no meio de alguma ação física efetuada pelos atores, quando então os cineastas introduziam planos mais próximos, e vice-versa. Dessa forma, os espectadores não percebiam os cortes, pois se evitava os sobressaltos visuais que desviassem a atenção da história que estava sendo narrada. O som (música, ruídos e voz) também exercia papel importante nesse fluxo contínuo de informações: suas propriedades físicas (intensidade, tom e timbre) eram mantidas tão estáveis quanto possível, no decorrer de uma mesma cena, para evitar que alterações acústicas bruscas proporcionassem a eliminação desse princípio da invisibilidade. Constituindo um instrumento de exceção nos esquemas visuais dominantes do cinema clássico, a partir de 1928 o close-up passou a ser utilizado ainda menos, por uma razão técnica: a instituição do cinema com som sincronizado, fato ocorrido no ano anterior. Pelo menos até 1932 (SALT, 2009, p. 242), decupar qualquer cena em muitos planos multiplicava 206 as dificuldades técnicas, devido às dificuldades logísticas de captação e edição dos sons diretos. Por isso, a maioria das cenas era filmada em estilo tableau, em composições visuais que focalizavam os atores de corpo inteiro, em planos gerais. Esses planos permitiam, muitas vezes, que cenas inteiras fossem filmadas em uma única tomada. Somente a partir de meados dos anos 1930 observou-se a tendência, tanto nos EUA quanto na Europa, de filmar os atores com a câmera cada vez mais próxima, variando os enquadramentos. Além disso, desde o aparecimento da televisão, nos final dos anos 1940, a utilização de close-ups vinha aumentando gradativamente, embora com menor intensidade no cinema. Seriados de TV recorriam com freqüência ao close-up dos rostos dos atores para permitir que o público acompanhasse a modulação emocional do enredo com mais facilidade – verificar o grau de emoção irradiado por um rosto em planos gerais ou médios, na tela pequena de um aparelho de televisão, era bastante difícil, de forma que os diretores começaram a inserir close-ups de reação dos atores nos momentos mais dramaticamente significativos. Essa técnica não foi assimilada imediatamente pelos cineastas por duas razões. Primeiro, havia um complicador tecnológico, pois os formatos anamórficos de imagem introduzidos em 1953, como o Cinemascope, exigiam lentes especiais que deformavam as bordas dos enquadramentos próximos (BORDWELL, 2008, p. 52), dificultando os close-ups normais e inviabilizando os extremos. Além disso, havia um preconceito dos profissionais do cinema para com a televisão, vista então como uma ameaça à indústria cinematográfica. No começo dos anos 1960, quando Sergio Leone começou a dirigir, os dois problemas estavam desaparecendo aos poucos. O Cinemascope dera lugar ao sistema Panavision, também anamórfico, cujas câmeras e lentes permitiam a filmagem de close-ups sem grandes distorções (por outro lado, os close-ups extremos ainda eram muito raros, em parte porque não era possível preencher todo o quadro com um rosto e manter o foco nítido). Também a TV deixara de ser uma ameaça ao cinema, passando a influenciá-lo. A mudança gradual de decupagem visual ocorrida nos anos 1960 se deu mais ou menos da seguinte maneira: À medida que a montagem rápida se desenvolvia nos anos 1960, os diretores quebravam as cenas de conversa em muitos close-ups e, hoje, essas cenas são editadas com planos únicos. Tais planos permitem ao editor variar o ritmo das cenas e selecionar os melhores fragmentos da atuação de cada ator. (BORDWELL, 2008, p. 53). No caso de Leone, os orçamentos pequenos e a dificuldade que isso gerava para povoar os cenários com figurantes incentivaram o uso dos close-ups extremos. Tonino Valerii (2003, p. 299) afirmou que Leone orientava os diretores de fotografia a fechar cada vez mais os enquadramentos em close-up, aproximando cada vez mais a câmera dos atores. Ao invés 207 de enquadrá-los a partir dos ombros (close-ups normais), os operadores de câmera eram instruídos a preencher todo o quadro com o rosto, do topo da cabeça até a ponta do queixo, para evitar que cenários vazios, sem figurantes, aparecessem nas laterais do quadro largo. Por causa de tudo isso, historiadores do estilo (BORDWELL, 2008, p. 322; COUSINS, 2004, p. 33; BORDWELL, THOMPSON, 2009, p. 418; SALT, 2009, p. 247) concordam entre si: Leone foi o diretor que mais usou close-ups extremos, especialmente de rostos. Os números mostram que esta observação continua valendo; os filmes feitos por Leone contêm maiores índices de close-ups do que os trabalhos de qualquer outro diretor que trabalhou antes ou depois dele. Para comprovar isso, contamos o número de close-ups em três filmes de Leone (Por um Punhado de Dólares, Três Homens em Conflito e Era uma Vez na América) e comparamos os dados obtidos com a média de usos de close-ups em longasmetragens realizados nos anos de 1959 (SALT, 2009, p. 280) e 1999 (SALT, 2009, p. 369). Para realizar esse levantamento comparativo, procuramos selecionar filmes realizados por Leone sob diferentes modos de produção, e em épocas diferentes da carreira. Por um Punhado de Dólares foi feito sob as normas rígidas de Cinecittà e com orçamento de US$ 200 mil; em Três Homens em Conflito, Leone teve seis vezes mais dinheiro à disposição e acesso a novas tecnologias; e Era uma Vez na América, além de realizado quase duas décadas depois e se constituir como o último trabalho de Leone, é um trabalho de outro gênero, e foi filmado no sistema de produção dominante em Hollywood 22. Apesar dos três contextos de produção serem bastante diferentes entre si, as estatísticas demonstram que o uso do close-up em Leone variou pouco, ao longo da carreira dele, com uma tendência ao uso cada vez mais generoso do recurso, especialmente quando associado a reenquadramentos 23. Vejamos: o primeiro western de Leone contém 221 closeups normais (55 combinados com reenquadramentos) e 217 close-ups extremos (32 com reenquadramentos). O filme tem 857 planos, descontados os créditos iniciais, dos quais 438 (ou seja, 51,10%) são close-ups; o total de close-ups supera a metade do número de planos do filme inteiro. Na prática, um a cada quatro planos do filme consiste de close-ups normais, e um a cada quatro é um close-up extremo. Além disso, um a cada três planos do filme (260 deles, ou 30,33% do total) contém pelo menos um reenquadramento. 22 A decupagem rigorosa foi realizada com o auxílio do software Cinemetrics (www.cinemetrics.lv). As tabelas completas com os números de cada filme estão nos Anexos. 23 Consideramos como reenquadramento tantos os movimentos de câmera (pans, tilts, gruas, etc.) quanto os planos que usam o zoom para aproximar ou distanciar as figuras mostradas na imagem do espectador. 208 Realizado dois anos depois, Três Homens em Conflito alcança resultados parecidos – ligeiramente mais destacados – no uso do recurso. Do total de 1.472 planos, 325 são close-ups (84 com reenquadramentos), e outros 551 close-ups extremos (141 com reenquadramentos). Esses números significam que um a cada três planos do filme (551 planos, ou 37,43%) é um close-up extremo; e um a cada cinco (325 planos, ou 22,07%), um close-up normal. O longametragem tem, ao todo, 876 planos em close-up. Isto significa que 59,51% do total de planos do filme são composições pictóricas em close-up – três em cada cinco planos realizados. A quantidade de planos que contêm reenquadramentos é ligeiramente maior do que em Por um Punhado de Dólares: 458, ou 31,11% – média de um a cada três planos. Era uma Vez na América foi realizado exatas duas décadas após o primeiro western de Leone. Teve orçamento de US$ 30 milhões de dólares e utilizou um formato de imagem diferente (saía de cena a proporção 2.35:1, substituída pela 1.85:1, mais comum nos Estados Unidos). Mas as alterações financeiras e tecnológicas exerceram pouco impacto no uso do recurso estilístico. O total de planos em close-up, soados os normais e extremos, chega a 1.019 dos 1.687 que compõem os 22 minutos do filme: 60,40% dos planos são em close-up, um aumento menor que 1% em relação a Três Homens em Conflito, feito 18 anos antes. Leone usou 444 planos (26,31%) em close-up normal, ou um a cada cinco; e 575 planos em close-up extremo (34,08%), ou um a cada três. São médias praticamente iguais às alcançadas no filme de 1966. Quanto ao uso do recurso, a variação mais significativa de Era uma Vez na América para os westerns de Leone é a quantidade de reenquadramentos. No longa-metragem de 1984, 675 planos (40, 01% do total, ou dois em cada cinco) contêm pelo menos um reenquadramento. Esta taxa indica um aumento de 10% no uso desse recurso, em relação aos filmes italianos de Leone (ver Tabela B dos Apêndices). Para efeito de comparação, Barry Salt (2009, p. 281) contou os tipos de planos em uma amostragem de 20 dos 151 longas-metragens produzidos nos Estados Unidos em 1959, e chegou a um percentual de 44,38% de close-ups (dos quais 10,08% são close-ups extremos). Ou seja, um a cada três planos em filmes da época são close-ups, índice semelhante aos longas-metragens de Leone; e um a cada dez planos são close-ups extremos. Dentro dos westerns, esse número é ainda menor (os cineastas valorizavam os planos gerais, como forma de destacar a iconografia do gênero). O Homem que Luta Só (1959), por exemplo, usa 25 close-ups extremos, ou exatos 5% de todos os 500 planos do longa-metragem – um a cada 20 planos do filme. Os diretores de westerns da geração anterior praticamente não usavam closeups extremos. Em No Tempo das Diligências (1939), John Ford usou apenas dois planos do 209 tipo (ou 0,30% dos 656 que compõem o filme). É correto afirmar, pois, que Leone usava de duas a quatro vezes mais close-ups extremos do que os outros diretores de sua época. A pesquisa de Barry Salt demonstra que o uso dado pelos diretores contemporâneos ao close-up é significativamente maior, sobretudo da modalidade extrema, mas o uso que Leone fazia do recurso permanece mais eloqüente do que a média. Em 1999, Salt contabilizou os tipos de planos usados em 671 filmes lançados comercialmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, chegando ao índice de 47,89% de close-ups (dos quais 15,43% da modalidade extrema). Isso nos mostra que um a cada três planos de um filme atual consiste em close-up normal, e um a cada seis planos se enquadra na definição de close-up extremo. A comparação nos mostra que os filmes de Leone contêm pelo menos o dobro de close-ups extremos, e 10% a mais de close-ups normais, do que os longas-metragens realizados em 1999. Outra conclusão importante mostra que Leone foi o único cineasta dos anos 1960 – e permanece um dos raros diretores até a atualidade – a utilizar mais close-ups extremos do que close-ups normais em seus filmes. A pesquisa de Barry Salt (2009, p. 280-281) demonstra que os diretores dos anos 1960 usavam, em média, um close-up extremo para cada quatro closeups normais. No ano de 1999, essa relação era de três close-ups normais para cada extremo. Na obra de Leone, ao contrário, a cada três close-ups normais, ele usava quatro extremos. O resultado desse estudo estatístico nos mostra que o uso do close-up extremo pode ter sido impulsionado por modas, pelos contextos de produção e pela influência da televisão, quando Leone começou a dirigir; mas a consistência e a ampliação do uso desse recurso, ao longo de duas décadas, demonstram que a ferramenta se tornou uma opção estilística consciente. Mais até do que uma solução para um problema de representação, o close-up extremo se tornou uma assinatura estilística amplamente reconhecida. O segundo recurso visual mais característico de Leone é o uso freqüente da composição pictórica em profundidade de campo. Esse tipo de composição institui o que Bordwell (2008, p. 219) chamou de “espaço recessivo”, seguindo o estudo de Heinrich Wölfflin sobre a composição dos artistas barrocos na Europa do século XVII: Há um momento em que enfraquece a relação entre os planos e passa a ser enfatizada a seqüência em profundidade dos elementos do quadro; nesse momento, o conteúdo já não pode ser apreendido através de camadas estruturadas na superfície, e a força motriz passa a residir na articulação dos componentes próximos e afastados. (...) Mesmo nos casos em que esse efeito [a encenação planimétrica] parece inevitável – por exemplo, quando um certo número de figuras se alinha ao longo da boca de cena – o artista cuida para que essas figuras não se cristalizem numa fileira perfeita, obrigando o observador a fazer incursões constantes [com o olho] até o fundo do quadro. (WÖLFFLIN, 1996, p. 101). 210 Nas composições recessivas, o artista se esmera em criar linhas diagonais que cortam o quadro do primeiro plano até o fundo. Os artistas podem criar esse efeito através de vários recursos, inclusive as gradações de luz e cor. Mas a maneira mais simples de instituí-lo na imagem sempre foi a disposição das figuras em diferentes planos de profundidade da imagem. No cinema, a composição recessiva é obtida quando o diretor posiciona figuras (atores e objetos cênicos) a diferentes distâncias da câmera, o que injeta mais perspectiva ao quadro. Movimento, luz e cores contribuem para acentuar o efeito, mas a disposição das figuras é a maneira mais eficaz de alcançá-lo. Ao longo da história do cinema, a composição recessiva constituiu uma alternativa de encenação relativamente pouco utilizada pelos diretores. Nos anos 1920 e 1930, a encenação dominante tendia a posicionar os atores numa linha perpendicular à câmera, produzindo um achatamento visual que resultava numa imagem planimétrica (WÖLFFLIN, 2000, p. 102), com quase nenhuma profundidade. Isso era resultado não apenas da influência do teatro, mas também dos equipamentos – sobretudo lentes e película – ainda incipientes, que não permitiam aos diretores de fotografia obter profundidade de campo muito extensa, de forma que os atores, para ficar em foco, tinham que se posicionar numa faixa estreita do cenário. Apesar disso, havia exceções, incluindo diretores famosos, oriundos de escolas e países diferentes, que popularizaram a composição recessiva como uma alternativa viável à imagem planimétrica, embora esta tenha permanecido mais popular no cinema clássico. Sergei Eisenstein, Kenji Mizoguchi, Jean Renoir e John Ford estão entre essas exceções. Cada um deles revisou e adaptou as composições recessivas de uma maneira particular e ligeiramente diferente dos demais. Todos influenciaram o processo de revisão e adaptação desse recurso que Leone levou a cabo, nos anos 1960. Eisenstein exerceu muita importância nesse processo devido à atuação suplementar como professor e teórico do cinema. Ele alertou para as possibilidades da composição recessiva associada à profundidade de campo ainda no final dos anos 1920, quando começou a aplicar à encenação cinematográfica uma coreografia mais elaborada do movimento dos atores dentro do quadro. Essa coreografia obedecia ao mesmo princípio que ele usava em sua teoria da montagem: a organização dos elementos visuais que compunham o quadro era, em si, um segundo processo de montagem, só que realizada dentro do plano, e não no corte. Através da coreografia, dizia Eisenstein (1992, p. 24) o realizador podia guiar o olho do espectador para certas partes da imagem, depois para outras, e assim por diante. Esse processo era tão mais eficiente quanto mais utilizasse a profundidade de campo. 211 Figura 3.55: Esboços desenhados em 1933 por Eisenstein para uma cena de Crime e Castigo (nunca filmada): composição recessiva em profundidade. Figura 3.56: O momento culminante seria filmado com câmera fixa, com os atores movendo-se dentro do quadro a diferentes distâncias da câmera. Figura 3.57: Eisenstein colocou em prática a composição recessiva com profundidade de campo em Ivan, o Terrível; a moldura é um rosto em close-up extremo. Figura 3.58: Elegia de Osaka (1936): Mizoguchi preferia tomadas mais longas, em que os personagens em segundo plano se moviam dentro do quadro. Figura 3.59: Composição recessiva em A Regra do Jogo: Renoir colocava figuras em primeiro plano distantes da câmera e criava diagonais com o movimento deles. Figura 3.60: A baixa profundidade de campo às vezes deixava o segundo plano fora de foco; em Renoir, o primeiro plano também não é tão proeminente. Foi refletindo sobre as possibilidades narrativas da composição recessiva que Eisenstein criou o conceito de mise-en-cadre (que poderíamos traduzir livremente como “encenação dentro do quadro”), em 1929. Quatro anos mais tarde, durante aulas na escola de 212 cinema de Moscou, ele propôs um exercício a seus alunos, que deixou registrado em desenhos: filmar o momento culminante do romance Crime e Castigo (Dostoievski) – um assassinato – numa única tomada com câmera fixa. Os esboços (figuras 3.55 e 3.56) revelam uma variação da composição recessiva muito semelhante àquela que seria posta em prática, três décadas depois, por Leone. A cena não chegou a ser filmada, mas anos depois Eisenstein usou em seus filmes as idéias sobre a mise-en-cadre (figura 3.57). Na década de 1930, Kenji Mizoguchi resgatou a composição recessiva de maneira bastante similar ao uso que Eisenstein fez do recurso. Nos filmes de Mizoguchi, a técnica de filmar dentro no mesmo quadro duas ações simultâneas, uma próxima e outra distante da câmera, aparece várias vezes (figura 3.58), em coreografias aparentemente mais casuais e em tomadas longas, com muito movimento. Mizoguchi usava a profundidade de campo, mas em seus planos as figuras se moviam constantemente, tanto no primeiro quanto no segundo plano. Na França, Jean Renoir usava composições recessivas com tanta freqüência quanto Mizoguchi. Ele também era adepto das tomadas longas, e os planos freqüentemente reuniam vários atores conversando e se movimentando a diferentes distâncias da câmera. No entanto, Renoir não preferia não colocar seus atores muito próximos à câmera. Além disso, ele às vezes mantinha o segundo plano fora de foco, ou agrupava os atores numa área mais estreita, de maneira a utilizar a profundidade de campo com intensidade menor (figura 3.59 e 3.60). O uso que Renoir dava à composição recessiva também era diferente de John Ford. Dos quatro cineastas estudados até aqui, Ford era o que mais valorizava o espaço geográfico em que a ação dramática acontecia. De modo geral, o primeiro plano em Ford é sempre mais distante do que em Eisenstein, Mizoguchi ou Renoir, porque a integração do homem à paisagem funcionava como tema central em seus filmes. A relação dos atores com o espaço cênico era tão importante – ou até mais – do que a coreografia das figuras dentro do quadro. Por isso, ao contrário de Renoir, ele usava todo o potencial da profundidade de campo, de forma que suas composições visuais mantinham toda a área da imagem em foco (figura 3.61 e 3.62), com a primeira figura em plano médio ou geral. Ford exerceu influência na revisão que Orson Welles fez da composição recessiva em profundidade, mas Welles criou uma variação mais exagerada. Ele hiperdramatizou o recurso através da combinação de várias técnicas: além da profundidade de campo, usava o contraplongé (a filmagem dos personagens de baixo para cima acentuava a dramaticidade dos rostos, efeito amplificado pelas sombras oriundas da iluminação quase expressionista que utilizava, com pouca luz de enchimento) e colocava um ator em primeiro plano próximo da câmera. Este último, em geral, permanecia parado, enquanto os demais atores iam e viam do 213 Figura 3.61: No Tempo das Diligências (1939): encenação em diagonal com profundidade de foco, mas sem primeiro plano destacado, para valorizar o espaço. Figura 3.62: Em Rastros de Ódio (1956), Ford distribui os atores dentro do quadro a diferentes distâncias da câmera, mas todos estão focalizados com nitidez. Figura 3.63: Cidadão Kane (1941): Welles encenava em diagonal, usava primeiros planos agressivos e grande profundidade de foco; o movimento do ator ... Figura 3.64: ... para trás expõe o verdadeiro tamanho da janela, criando ilusão típica do trompe l’oeil, alcançada através do jogo com as perspectivas das figuras. Figura 3.65: Por uns Dólares a Mais (1965): divisão do quadro Scope em unidades rítimicas, com close-up extremo e composição recessiva criando trompe l’oeil. Figura 3.66: Composição idêntica é apresentada em Três Homens em Conflito: distância entre elementos em primeiro e segundo planos podia ser de até 20 metros. Figura 3.67: Figura em primeiro plano formava moldura; elementos em segundo e terceiro plano interagem com ela, obrigando a platéia a perscrutar a tela com os olhos. Figura 3.68: Nos interiores, contrastes de luz e cor, além da disposição das figuras e de aberturas de portas e janelas, auxiliavam na criação de linhas diagonais. 214 primeiro plano ao fundo, de forma que essa movimentação assinalasse a modulação dramática, com personagens dominando e sendo dominados por outros alternadamente, às vezes dentro da mesma tomada, quase sempre sem cortes (figuras 3.63 e 3.64). A influência de Welles popularizou essa variação hiperdramatizada de composição recessiva nos filmes dos anos 1940. A técnica inventada pelo diretor de fotografia Gregg Toland, chamada deep focus (ampla profundidade de campo obtida através da combinação de lentes grande-angulares, iluminação mais forte e película mais sensível à luz), popularizada por Cidadão Kane (1941), permitia o uso desse recurso em filmes preto-e-branco (a película colorida exigia mais luz, o que diminuía automaticamente a profundidade de campo obtida). Nos anos 1950, pela mesma razão tecnológica que reduziu o uso de close-ups – a adoção de processos anamórficos como o Cinemascope –, as composições recessivas voltaram a ser pouco utilizadas. Elas se tornaram tecnicamente mais difíceis de obter. O próximo cineasta a resgatar a composição recessiva foi justamente Sergio Leone. O uso típico que Leone dava à composição recessiva se aproximava das variações executadas por Eisenstein, Mizoguchi e Welles. Havia sempre uma figura em primeiro plano emoldurando a ação ao fundo; a profundidade de campo era ampla, com grande distância entre as duas ações em diagonal, que por sua vez sempre se relacionavam, uma influenciando a outra (figuras 3.65, 3.66, 3.67 e 3.68). Mas havia, também, diferenças significativas. Leone também tinha predileção clara por planos com câmera fixa, dentro dos quais o movimento dos atores era mínimo. Ele tendia a enquadrar de modo mais estático; suas composições recessivas consistiam em, muitas vezes, tomadas com câmera fixa, em que os atores também se moviam muito pouco. A sensação de movimento era gerada não no interior da composição pictórica, como seus antecessores, mas através da justaposição rápida desses planos recessivos com outros planos (ou seja, através da montagem e da fragmentação do espaço fílmico). Na obra de Leone, as composições recessivas quase sempre aparecem numa variação ainda mais agressiva do que a criada por Welles: figuras colocadas a poucos centímetros da câmera, emoldurando uma ação que ocorre em segundo plano, muito distante; profundidade de campo maior do que a utilizada por Ford e Welles – a distância entre o primeiro plano e o fundo, ampliada pelo uso de lentes grande-angulares, era freqüentemente de até 20 metros; composições pictóricas com pouco ou nenhum movimento (da câmera e dos atores). Usando a tela larga widescreen da forma sugerida por Bordwell (BORDWELL, 2007, p. 311) – uma superfície dividida em unidades rítmicas –, Leone freqüentemente unia os dois recursos proeminentes (close-ups extremos e composições recessivas) no mesmo quadro. Fazer isso era simples: bastava usar um rosto, mão, pé ou objeto (revólver, coldre) como 215 figura em primeiríssimo plano; essa figura preenchia 2/3 ou metade da tela. Dessa maneira, a linha diagonal criada dentro do quadro levava o olho do espectador do primeiro quadro para o fundo, ao longe, criando um jogo de tensão que ampliava o suspense alcançado. Mas será que a influência de outros cineastas explica o uso freqüente dessa variação da composição recessiva por Leone? Provavelmente não. Leone certamente usou Welles, Eisenstein, Ford, Mizoguchi e Renoir como inspiração, mas combinou essa influência com a paixão por pintores europeus (FRAYLING, 2000, p. 233). Entre esses pintores estão Edgar Degas (1834-1917, figura 3.69), Francisco Goya (1746-1828, figura 3.71), Giorgio De Chirico (1888-1978, figura 3.75) e Diego Velásquez (1599-1660, figura 3.73). A influência dos pintores pode ser constatada, inclusive, pela relativa ausência de movimento dentro do quadro; Leone enquadrava como se pintasse uma tela. Os planos que usavam a composição recessiva aparecem, dentro das cenas, com uma solenidade que induz o espectador a admirar o “artista” que os produziu. Era, talvez intuitivamente, uma tentativa de se impor como autor. De fato, a composição recessiva com profundidade de campo de Leone pode ser compreendida como uma adaptação das técnicas de Degas e De Chirico para a arte cinematográfica. Degas criava linhas diagonais nos quadros através do posicionamento das figuras a diferentes distâncias do pintor; era comum que um modelo ficasse perto dele, numa das bordas do quadro, funcionando como uma espécie de moldura; essa técnica é evidente na série de quadros de bailarinas que Leone adorava. Aliás, Leone dizia que a predileção de Degas por retratar os modelos fazendo ações físicas convencionais também o influenciou na direção dos atores (daí o gestual lento que os pistoleiros faziam quando se moviam). De Chirico era citado por Leone por outra razão, sobretudo pelo uso da nitidez agressiva nas composições com linhas diagonais, que incluíam ações em primeiro plano e no fundo (ambas muito nítidas), e também pela técnica do trompe l’oeil, jogando com a perspectiva ao fazer certos elementos do quadro parecerem maiores (ou menores, às vezes os dois ao mesmo tempo) do que deveriam. Goya, por sua vez, criava composições recessivas menos através da disposição das figuras, e mais através do uso da iluminação chiaroescuro para produzir efeitos de profundidade; sua influência pode ser mais percebida nas tomadas registradas em interiores, onde Leone não conseguia obter profundidade de campo tão agressiva, tendo que usar a luz para criar linhas diagonais. Já Velásquez foi influente, sobretudo, na paleta de cores pastéis, cujas variações gradativas constituíam outro recurso para criar diagonais. Goya também era mencionado por Leone por representar os poderosos de modo satírico, enquanto os humildes eram vistos com mais simpatia. 216 Figuras 3.69 e 3.70: À esquerda, La Classe de Danse (1873–1876), pintura a óleo que faz parte da série mais famosa de Edgar Degas, da qual Leone era admirador confesso: a disposição das bailarinas pelo cenário cria uma linha de encenação em diagonal, com todas as camadas da imagem vistas com nitidez; a mesma composição pictórica é utilizado na cena acima de Era uma Vez no Oeste (1968), com barris e pedaços de madeira inseridos no centro da imagem, para sugerir uma linha em diagonal entre o pistoleiro (primeiro plano) e sua vítima (segundo plano). Figuras 3.71 e 3.72: À direita, a pintura a óleo El Tres de Mayo de 1808 en Madrid (1814), de Francisco Goya: note como o estilo, a luz e a cor, com áreas escuras nas bordas do enquadramento e pontos brancos e amarelos, à esquerda do quadro, são reproduzidos em cenas de Leone em interiores, como esta de Por um Punhado de Dólares (1964), acima. Figura 3.73 e 3.74: À esquerda, a pintura a óleo Las Meninas (1656), de Diego Velásquez, cuja influência Leone admitia na paleta de cores pastéis e na maneira como ele retratava os nobres com sátira e os humildes e enfermos com simpatia; na imagem acima, de Três Homens em Conflito (1966), Leone usa as duas técnicas, fazendo Lee Van Cleef usar um mendigo sem pernas para obter uma informação (e retratando este último, portanto, com simpatia) e também utilizando os sobretons em cinza-chumbo para tornar mais sóbrio o azul predominante na cena. 217 Figura 3.75 e 3.76: À direita, a pintura a óleo Andromache (1916), de Giorgio De Chirico: note como o pintor posiciona uma figura em primeiro plano que parece muito maior do que o castelo visto em segundo plano, embora seja na verdade bem menor (e os dois elementos visuais, apesar de separados por grande distância, são ambos vistos com nitidez agressiva); acima, composição recessiva que aparece em Por uns Dólares a Mais (1964), com um close-up extremo de rosto funcionando como moldura para a ação principal em segundo plano longínquo; os dois elementos são filmados com nitidez agressiva, e um rosto gigantesco é justaposto à figura minúscula dos homens caminhando, num jogo de perspectiva característico da técnica pictórica do trompe l’oeil. O gosto de Leone pela pintura européia era conhecido de seus colaboradores. Ele costumava viajar a Madri para visitar o Museo Del Prado, onde estudou minuciosamente quadros como Las Meninas (1656), de Velásquez. Leone colecionou telas de Giorgio De Chirico. Antes de filmar Três Homens em Conflito, mostrou pinturas dos quatro artistas ao fotógrafo Tonino Delli Colli, para que ele as usasse como referências (FRAYLING, 2000, p. 233) nas composições, na iluminação e no uso de tonalidades de terra e areia. Em resumo, Leone combinou influências do cinema e da pintura para criar uma variação da composição recessiva que se tornaria forte assinatura estilística. É importante observar, por fim, que ele freqüentemente criava um “diálogo” visual entre as duas camadas da imagem, com a figura em primeiríssimo plano participando ativamente da ação dramática, interferindo com os elementos da encenação que estavam posicionados à distância, de modo que o espectador precisasse percorrer toda a imagem com os olhos. A composição recessiva com moldura aparece, ainda que timidamente e sem grande profundidade de campo, em alguns westerns influentes dos anos 1950. William Wellman usou composições recessivas em Céu Amarelo (Yellow Sky, 1948, figura 3.77), e George Stevens fez o mesmo em Os Brutos Também Amam (1953, figura 3.78). É provável que esses filmes – ambos homenageados com citações em Era uma Vez no Oeste –tenham influenciado Leone, que no entanto não se limitou a replicar esse esquema, revisando-o de maneira evidente. 218 Figura 3.77: Composição com moldura em Céu Amarelo (1948): para evitar problemas com o foco, revólver está em contraluz e segundo plano, bem próximo à câmera. Figura 3.78: Revólver serve de moldura em Os Brutos Também Amam (1953): o Cinemascope tornou esse tipo de composição tecnicamente dificil de reproduzir. Na época em que Leone começou a dirigir, as composições recessivas com profundidade de foco estavam fora de moda. Em Hollywood, os diretores não podiam usá-las por causa das limitações técnicas impostas pelas lentes anamórficas; na Europa, cineastas como Michelangelo Antonioni, Theo Angelopoulos e Rainer Werner Fassbinder preferiam composições planimétricas, que geravam imagens mais achatadas e sem profundidade (o efeito chapado era, ainda, intensificado pelas lentes teleobjetivas, que começavam a ser tornar populares no mesmo período). Quando o espaço recessivo aparecia, os atores estavam quase sempre distantes e/ou de costas para a câmera. Os europeus preferiam esse recurso porque achavam que “a profundidade wellesiana hiperdramatiza a ação, aproximando demais o primeiro plano do espectador” (BORDWELL, 2008, p. 219), dirigindo o olhar da platéia de maneira mais ostensiva. Já a imagem planimétrica, com o primeiro plano distante, exercia o efeito contrário: desdramatizava a ação, dificultando a leitura das expressões faciais dos atores. Para adotar a composição recessiva com profundidade de campo e moldura, Leone precisou resolver impedimentos técnicos. A maneira mais comum de filmar uma composição recessiva, nos anos 1960, era utilizando lentes de distância focal longa (teleobjetivas). Mas essas lentes ofereciam pouca profundidade de campo. As teleobjetivas não permitem focalizar com nitidez as figuras em primeiro e segundo plano; elas desfocam uma das duas camadas. No caso das lentes especiais dos formatos Scope, que vinham sendo usadas desde 1953, a profundidade de campo era ainda menor. Tudo isso tornava complicada a tarefa de manter em foco as duas camadas da imagem; se o diretor assim o desejasse, os elementos em primeiro e segundo plano precisavam estar muito próximos um do outro. Para compor uma imagem recessiva com alguma profundidade, os cineastas precisavam ordenar os atores numa 219 área que ia de três a oito metros de distância da câmera (BORDWELL, 2007, p. 313), uma faixa de encenação muito mais estreita do que Leone desejava. Em 1963, surgiu uma solução técnica para esse problema. Essa solução permitia que a câmera ficasse a poucos centímetros de distância do elemento em primeiro plano, mantendo o foco nele e também na ação dramática mais distante, a até 20 metros de distância. Essa solução surgiu em Roma, no laboratório italiano da Technicolor. Foi lá que alguns técnicos inventaram um sistema que funcionava de modo semelhante ao Cinemascope. O sistema foi chamado de Techniscope (BARBUTO, 2009). Para entender como funcionava o Techniscope, é preciso compreender antes o funcionamento do Cinemascope. Esse último foi desenvolvido por causa da necessidade que os grandes estúdios sentiram, nos anos 1950, em adotar formato de tela diferente do utilizado pela televisão, vista como uma ameaça à sobrevivência do cinema. Até ali, as câmeras registravam as imagens na proporção 1.33:1 (1,33 metro de largura para cada metro de altura). Com o Cinemascope, a proporção passou a ser 2.35:1. Para registrar a imagem mais larga, os técnicos utilizavam uma solução matemática que envolvia o uso, acoplado à câmera, de lentes especiais anamórficas. A câmera capta a imagem mais larga, mas esta, ao passar pela lente, é esticada duas vezes no sentido vertical (figura 3.79). Desta forma, a imagem impressa no negativo fica distorcida. No momento em que o filme é projetado, outra lente anamórfica acoplada ao projetor elimina a distorção, reproduzindo o quadro original (BARBUTO, 2009). A adoção de sistemas Scope por todos os grandes estúdios, ao longo dos anos 1950, determinou uma série de restrições técnicas ao trabalho dos cineastas, todas relacionadas à dificuldade de manipulação das lentes anamórficas. Essas lentes eram caras, maiores, pesadas e menos capazes de obter profundidade de campo. Tudo isso impôs limites severos aos movimentos de câmeras e às táticas de encenação: Lentes anamórficas têm efetivamente distâncias focais maiores do que as não-anamórficas, e portanto oferecem menor profundidade de campo. Para complicar mais, os mais prestigiosos filmes realizados em formato widescreen eram filmados em cores, e as cores exigiam mais luz. (BORDWELL, 1997, p. 237). A adoção do Cinemascope forçou os cineastas a adotar a encenação com os atores dispostos num eixo horizontal, como uma “corda de roupa estendida” (COUSINS, 2004, p. 13). É aí que entra o Techniscope. A solução era engenhosa: “Enquanto o Cinemascope aumenta a relação entre largura e altura dobrando a primeira, o Techniscope faz o mesmo diminuindo pela metade a segunda” (BARBUTO, 2009). Do ponto de vista matemático não 220 Figura 3.79: Imagem fotografada com lente Cinemascope distorce a imagem esticando-a para cima, voltando ao normal apenas no momento da projeção. Figura 3.80: A imagem gravada na película pelo sistema Techniscope não é anamórfica e ocupa a metade do espaço na película, mas tem resolução mais baixa. faz diferença, pois a proporção de imagem obtida é exatamente igual, ou seja, 2.35:1 (figura 3.80). Em termos estéticos e financeiros, contudo, havia vantagens e desvantagens. O principal problema do Techniscope estava relacionado à qualidade da imagem. Como o Techniscope usava uma área menor do negativo, a imagem precisava passar por uma ampliação maior na projeção; a textura ficava mais granulada e tinha cores desbotadas. Mas o sistema tinha vantagens também. Era econômico: o diretor de fotografia só precisava utilizar 50% do negativo em 35 milímetros necessário para registrar a mesma quantidade de filme em Cinemascope. E havia vantagens estéticas: [O Techniscope] usava as lentes comuns, que chamamos de esféricas. Pelo fato de a diagonal do quadro ser menor, havia um aumento da profundidade de campo em relação ao 35 mm e ao Cinemascope. Havia uma boa disponibilidade de lentes zoom (...) [o que não acontecia com as lentes anamórficas, muito mais caras e difíceis de encontrar]. Se poderia ter o quadro largo, permitindo o trabalho com a paisagem, liberando a mise-enscène. E, de quebra, fazia o negativo render o dobro, diminuindo os custos. (BARBUTO, 2009). Na Itália, os produtores de Cinecittà adotaram o Techniscope como formato padrão dos filmes de baixo orçamento, pois as vantagens financeiras eram expressivas. Leone, em particular, viu no formato a solução para o problema das composições recessivas. A desvantagem mencionada – textura granulada e cores desbotadas – não chegava a ser um empecilho para ele, que apostava de qualquer forma nas cores gastas e na textura suja. De certo modo, o sistema até favorecia a aparência rústica pretendida. O Techniscope dava aos diretores de fotografia a possibilidade de trabalhar com uma profundidade de campo maior. O formato, portanto, aboliu o limite tecnológico imposto pelos equipamentos, de forma que Leone encontrou nesse formato as condições ideais para adotar em seus filmes o tipo de composição recessiva radical que desejava. 221 É importante observar que outros limites tecnológicos obrigaram Leone a adaptar o uso desse recurso estilístico para Era uma Vez na América (1984). Feito em Hollywood, este filme não foi registrado em Techniscope, pois a Warner, que bancou os US$ 30 milhões do orçamento, não aceitou utilizar o formato desenvolvido na Itália, por causa da qualidade mais baixa da imagem obtida. Leone e o fotógrafo Tonino Delli Colli chegaram a realizar um teste com o Cinemascope, mas decidiu-se pelo sistema Panavision quando viu Era uma Vez no Oeste no formato Pan & Scan, na TV do hotel onde estava hospedado 24. Os cortes nas laterais da imagem o irritaram. Isso o levou a optar pelas filmagens na proporção 1.85:1, até hoje a mais popular em Hollywood. Assim, o filme sofreria menos cortes quando exibido na TV. Havia ainda outra vantagem. O sistema escolhido, não-anamórfico, permitia trabalhar com lentes esféricas, com as quais fotógrafo e diretor estavam acostumados. Essa mudança trazia uma desvantagem: a profundidade de campo era menor. Leone teve que se adaptar, revisando o esquema criado nos anos 1960. Para criar composições recessivas em Era uma Vez na América, ele tinha três opções: (1) usar o elemento em primeiro plano mais afastado da câmera (normalmente a três metros dela); (2) filmar a moldura em primeiro plano em contraluz, para esconder a falta de foco; (3) descartar a nitidez em uma das duas camadas da imagem, focalizando apenas uma delas e usando, se necessário, a técnica do rack focus (através da qual ele podia focalizar progressivamente uma área da imagem e depois a outra). Todas as composições recessivas do filme usam uma dessas três possibilidades. Duas delas podem ser conferidas na cena que mostra a chegada de Noodles (Robert De Niro) ao bar onde a quadrilha que ele chefia se reúne. Max (James Woods), o co-líder, está sentado num trono do século XVII. Noodles pede café e senta num sofá comum, junto com outros membros da gangue. Durante 73 segundos, ele mexe a colher na xícara, enquanto os demais integrantes da quadrilha se entreolham nervosamente. Leone inicia a cena com dois planos gerais. Cada um deles compõe em profundidade de campo, usando duas técnicas diferentes. No primeiro plano (figura 3.81), o perfil de Noodles (Robert De Niro) está em primeiríssimo plano, mas é filmado em contraluz, e isso o transforma numa silhueta negra. No plano seguinte, a moldura é fornecida pela mão de Max segurando um charuto (figura 3.82), também em primeiríssimo plano, mas com a ‘moldura’ fora de foco; só se pode ver com nitidez os personagens agrupados em segundo plano. 24 Para “encaixar” a imagem retangular de um filme Scope na tela mais quadrada de uma televisão, os estúdios mutilavam as laterais do enquadramento, reduzindo assim a proporção de 2.35:1 para 1.33:1. Ao todo, 46% da imagem de cada frame são literalmente jogados fora, destruindo completamente a composição original planejada pelo diretor. 222 Figura 3.81: Composição recessiva com moldura em profundidade de campo: Leone disfarça a falta de foco do primeiro plano transformando-o numa silhueta ... Figura 3.82: ... e desfoca a moldura na tomada seguinte; câmeras Panavision reduzem a profundidade de campo, forçando o diretor a alterar composições com moldura. Figura 3.83: Irritado, Noodles pede uma xícara de café, enquanto o resto do bando aguarda, dispostos numa rara composição planimétrica e com pouco volume. Figura 3.84: Leone cria suspense num momento banal, usando o ruído ritmado da colher batendo na xícara, movimento que dura 72 segundos ... Figura 3.85: ... enquanto os demais membros da gangue se entreolham, esperando o momento em que o chefe vai parar de mexer a colher e explodir de irritação. Figura 3.86: Leone fragmenta o espaço fílmico recorrendo a close-ups dos rostos dos atores, com o som intermitente da colher mantendo a continuidade. Figura 3.87: Um dos membros da gangue aparece segurando uma flauta-de-Pã, instrumento dominante na trilha sonora, brincando com a música extra-diegética. Figura 3.88: A troca de olhares e os enquadramentos em close-ups extremos dá a impressão de que a cena ocorre em câmera lenta: distensão do tempo diegético. 223 Figura 3.89: No final da cena, Noodles finalmente bebe o café, sem externar a sua irritação, interrompendo o ruído da colher e dissipando a tensão do grupo. Figura 3.90: Leone corta para o rosto de Max, o membro rebelde da gangue; o close-up dá mais “ar” em cima e abaixo do rosto, enfatizando o alívio que ele sente. Mais à frente, enquanto Noodles se serve do café e mexe interminavelmente a colher (figura 3.84), criando tensão, o diretor fragmenta o espaço fílmico em close-ups dos membros da gangue se entreolhando (figuras 3.85, 3.86, 3.87 e 3.88), finalizando com um close-up do próprio Noodles bebendo o café (figura 3.89). No plano seguinte, Max relaxa (figura 3.90). Outro aspecto pictórico do estilo de Leone, menos evidente e mais sutil, é uso de uma variação da técnica do trompe l’oeil. Já vimos como esta técnica abriu caminho na obra de Leone através da influência de Giorgio De Chirico: Quando descrevia sua admiração [pelo trabalho de Giorgio De Chirico], Leone tendia a enfatizar os jogos com a percepção, o uso da ilusão e do trompe l’oeil, as justaposições bizarras, o fato de que as coisas nunca eram o que pareciam ser. (FRAYLING, 2000, p. 231). Vimos, também, que ela aparece muitas vezes associada ao uso do close-up extremo dentro da composição recessiva. Para jogar com a percepção do espectador, Leone usava esses dois recursos; ele brincava, ainda, com a relação entre os elementos que apareciam em quadro e outros que estavam fora dele. Esse recurso estilístico pode ser encontrado em todos os filmes, com maior ênfase em Três Homens em Conflito. A característica já pôde ser observada duas vezes na cena do cemitério, quando Blondie e depois Angel Eyes aparecem para Tuco. Ambos esgueiram-se para dentro do quadro sem que sua movimentação chame a atenção dos personagens em quadro, o que seria realisticamente improvável. Um dos exemplos mais claros da maneira como Leone adaptou à mídia cinematográfica a idéia fundamental do trompe l’oeil (ou seja, criar uma ilusão imagética que ‘engane o olho’) está na tomada de abertura de Três Homens em Conflito. Aliás, nesse momento específico, Leone usa a técnica não apenas para brincar a percepção do espectador, mas também para subverter uma convenção do western (o plano de abertura que mostra o herói cavalgando à distância). 224 Figura 3.91: A tomada de abertura de Três Homens em Conflito inicia com um plano geral aberto, em que se pode ver o deserto seco com montanhas ao fundo. Figura 3.92: Com câmera fixa e sem cortes, o rosto de um pistoleiro entra em quadro, pelo lado esquerdo, enganando o espectador: trompe l’oeil no cinema. A tomada inicia com um plano geral que mostra a paisagem do deserto (figura 3.91). O plano geral, associado ao ângulo alto, sugere uma abertura nos moldes de um western norte-americano, mas o que se segue é a aparição surpreendente do rosto em close-up extremo de um pistoleiro, que entra em quadro pelo lado esquerdo do frame (figura 3.92). Em Três Homens em Conflito, Leone usa o trompe l’oeil para pregar peças visuais no espectador e criar efeitos cômicos. Em outra cena, Tuco e Blondie estão numa estrada vazia (figura 3.93); o primeiro tira do bolso um mapa rasgado, e eles o consultam (figura 3.94), enquanto caminham em frente (figura 3.95). Nesse instante, uma tropa de militares os cerca, entrando no quadro pela direita, pela esquerda e pela frente (figura 3.96). Seria literalmente impossível que os militares conseguissem se aproximar dos dois pistoleiros sem serem vistos ou ouvidos, uma vez que eles são muitos e invadem o quadro também pela frente, a mesma direção para onde, apenas um instante antes, Tuco e Blondie estavam olhando (lodo depois, Leone focaliza o espaço à esquerda de Tuco e Blondie, mostrando o exército inteiro ali, algo que deveria ter sido notado pelos dois). O duelo final de Era uma Vez no Oeste traz outros exemplos dessas três ferramentas estilísticas – close-ups extremos, composições recessivas e trompe l’oeil –, e uma análise mais acurada da cena pode nos ajudar a correlacioná-las entre si, e com outras ferramentas de narração e estilo usadas por Leone, de forma mais abrangente. A cena consiste num duelo entre herói e vilão. Harmonica e Frank se encontram para decidir quem ficará vivo. O segundo desconhece o motivo do ódio que o primeiro nutre por ele (assim como o público). Leone inclui uma surpresa que subverte a convenção do duelo do western, introduzindo um longo flashback (convém lembrar da fragmentação cronológica da narrativa como componente importante de intensificação da segunda vertente da poética do cinema) que revela, finalmente, o motivo do desejo de vingança de Harmonica: alguns anos antes, Frank foi responsável pela morte do irmão mais velho dele. No fim da cena, Harmonica baleia Frank, que morre com a gaita enfiada na boca, na mesma posição em que Harmonica estava ao desmaiar, enquanto via o irmão morrer enforcado pelo vilão, alguns anos antes. 225 Figura 3.93: Blondie e Tuco desmontam dos cavalos para observar o terreno e tentar descobrir em que área fica o cemitério militar que estão procurando. Figura 3.94: Os dois consultam o mapa rasgado que Tuco desenhou, enquanto caminham devagar para frente; a câmera se aproxima dos dois pistoleiros. Figura 3.95: Eles continuam caminhando, enquanto conversam sobre o rumo a seguir, olhando para frente e para os lados, sem enxergar absolutamente nada. Figura 3.96: No instante seguinte, uma tropa de soldados cerca os dois, entrando em quadro pelos dois lados e pela frente: trompe l’oeil cinematográfico. A duração da cena é de oito minutos e 55 segundos (535 segundos). Ela possui 59 planos; a duração média de cada tomada é de nove segundos – média quase três vezes mais longa do que o trielo de Três Homens em Conflito. A explicação para isso está na introdução de novas técnicas: nesta cena, a câmera se move mais do que na cena do outro filme (em que a predominância é de tomadas com câmera fixa) e o uso do zoom também é mais abundante. Esta opção leva o diretor a reenquadrar com freqüência, e isso os cortes constantes. A encenação apresenta semelhanças e diferenças perceptíveis com o momento correspondente do filme anterior. Uma das semelhanças está no abundante número close-ups de rostos: 38 dos 59 planos em que a cena consiste mostram rostos humanos, ou quase dois terços (64,40%) do total de tomadas (figuras 3.98, 3.104, 3.106, 3.109, 3.110, 3.111, 3.113, 3.114, 3.117, 3.118, 3.119, 3.121, 3.124, 3.125, 3.127 e 3.128). É nítida a preferência de Leone por close-ups extremos que aproximam a câmera cada vez mais dos olhos dos personagens. Há dois close-ups extremos que focalizam apenas os olhos (figuras 3.111 e 3.118); o primeiro, que introduz o flashback, tem 22 segundos. Leone usa com mais freqüência as lentes zoom (de distância focal variável) e os movimentos de câmera com grua. Em Era uma Vez no Oeste, ele freqüentemente transforma um plano geral num close-up (ou vice-versa) sem que haja cortes, muitas vezes recorrendo à técnica do trompe l’oeil (ou seja, fazendo personagens entrarem em quadro inesperadamente). Isso ocorre no plano de abertura (figuras 3.97 e 3.98), quando vemos Frank (Fonda) caminhando à distância, antes que o rosto de Harmonica entre no quadro pela direita. 226 O efeito de percepção é de surpresa. O plano termina numa composição recessiva, com as duas camadas da imagem (o rosto de Harmonica na frente, Frank caminhando atrás) em foco. O contra-plano (figura 3.99) exibe o mesmo enquadramento, só que invertido, agora com Frank em primeiro plano e Harmonica ao longe. A simetria, como havia ocorrido no trielo de Três Homens em Conflito, sinaliza a equivalência de forças entre os personagens. Na cena, uma tomada que começa como close-up também pode se transformar num plano geral aberto, depois que a câmera se afasta da ação principal e sobe, revelando as relações espaciais entre os personagens. Essa estratégia de encenação ocorre pelo menos duas vezes: a primeira no começo da cena, quando Frank e Harmonica se posicionam no quintal da fazendo de Jill (Claudia Cardinale) para iniciar o duelo propriamente dito – e vale a pena observar que o cenário é, mais uma vez ecoando os duelos dos westerns anteriores de Leone, uma arena circular delimitada por um muro de pedras. A segunda vez ocorre durante o flashback que revela a motivação de Harmonica, rasgando a cronologia do plano. O plano começa com um close do rosto dele quando jovem (figura 3.114). Quando a câmera se afasta e é erguida por uma grua (o mesmo movimento de E o Vento Levou, citado em Três Homens em Conflito), a imagem se transforma num plano geral aberto, revelando o horror da cena (figura 3.115). O plano anterior, o mais longo da cena – 56 segundos –, é outro exemplo dessa técnica. Esse plano inicia o flashback: um homem focalizado em plano geral (figura 3.112), se aproximando em direção à câmera, até a imagem se transformar em um close-up (figura 3.113). Embora seja uma tomada visualmente simples, tem um significado emocional poderoso; ela enfatiza o instrumento musical como o objeto que liga Harmonica e Frank, simbolizando o desejo de vingança que move o primeiro. O tratamento do tempo fílmico é sofisticado. Desta vez, Leone substitui a espera dos pistoleiros no duelo pelo flashback. É possível ver o rosto suado da vítima (figura 3.116) várias vezes; Frank e seus pistoleiros de aluguel são mostrados realizando ações rotineiras, como comer uma maçã (figura 3.117), demonstrando que aquele tipo de execução é banal para eles. É importante observar que o flashback acontece apenas na cabeça de Harmonica, e portanto sua longa duração desorienta o espectador, que é privado de acompanhar o que ocorre na diegese durante o período que dura o flashback. Nesse ponto, Leone usa a sincronia entre os cortes na imagem e no som para revisar outro esquema do western. Se o ato de interromper o duelo para mostrar um longo flashback já representa em si um desafio às convenções, o modo como a ação retorna à diegese demarca um desafio ainda maior. Leone não retorna ao momento de expectativa pelo duelo, em que os 227 Figura 3.97: Leone inicia a cena com um plano geral que focaliza Frank caminhando lentamente para o local do duelo; ele está centralizado e bem distante da câmera. Figura 3.98: Harmonica entra em quadro em sincronia com um violento acorde de guitarra, criando uma composição com moldura e trompe l’oeil simultâneos. Figura 3.99: A mesma composição recessiva com profundidade de campo é usada no contra-plano, cuja simetria sinaliza a igualdade de forças entre os duelistas. Figura 3.100: Em sincroniza com outro acorde de guitarra, Leone corta para um novo plano geral; a câmera se afasta para trás e é erguida até mostrar ... Figura 3.101: ... um plano geral bem aberto que localiza os dois pistoleiros no cenário familiar de todos os duelos de westerns de Leone: uma arena circular de pedras. Figura 3.102: Uma vez apresentados o cenário e a localização dos personagens, Leone corta para um novo plano geral: simetria numa composição planimétrica. Figura 3.103: Os duelistas estabelecem um lento ritual de preparação; Leone compõe em profundidade, com Frank em primeiro plano e Harmonica ao fundo. Figura 3.104: O diretor começa a fragmentar o espaço fílmico recorrendo aos close-ups, que sinalizam o aumento da tensão emocional entre os pistoleiros. Figura 3.105: Ao primeiro close-up de Frank corresponde um plano geral de Harmonica; o vilão gira ao redor do herói, na arena, avaliando a situação. Figura 3.106: Simetricamente, Leone inverte os enquadramentos: um close-up extremo de Harmonica, cuja face impassível não revela nenhuma emoção ... 228 Figura 3.107: ... dá lugar a um plano subjetivo de Frank, também centralizado, também imóvel: a igualdade de condições é absoluta, e o duelo está para começar. Figura 3.108: Num plano geral objetivo, Harmonica se move pela primeira vez, caminhando para frente; a música pára subitamente, aumentando a tensão. Figura 3.109: O corte do plano geral aberto para um close-up extremo de Frank fragmenta o espaço fílmico e amplifica ainda mais a tensão: ouve-se só o vento. Figura 3.110: Leone quebra a simetria até então impecável com um close-up extremo do rosto de Harmonica, seguido de zoom que procura focalizar ... Figura 3.111: ... apenas os olhos do herói; a tomada completa tem 22 segundos e dispara um flashback que se passa dentro da cabeça de Harmonica e começa ... Figura 3.112: ... com uma longa tomada de 56 segundos, mostrando um homem caminhando em câmera lenta, iluminado em contraluz, pelo deserto do oeste dos EUA. Figura 3.113: O plano geral do homem se transforma num close-up, e só então o conseguimos reconhecer: é Frank, mais jovem, e ele tem nas mãos uma gaita. Figura 3.114: Ele enfia a gaita à força na boca de um rapaz; a câmera se afasta e sobe, num movimento de grua similar ao visto no início da cena do duelo ... Figura 3.115: … até revelar o cenário: três pistoleiros vêem o enforcamento de um homem nos ombros de Harmonica, com picos do Monument Valley ao fundo. Figura 3.116: O close-up da vítima, enquadrada em contra-plongé, revela a expressão facial de sofrimento: suor e pele queimada de sol são sinais de realismo. 229 Figura 3.117: Leone justapõe vários close-ups dos pistoleiros efetuando ações banais, como comer uma maçã: a cena do assassinato cruel é rotineira para eles. Figura 3.118: .Um close-up extremo focaliza os olhos do jovem Harmonica vertendo uma lágrima; em sincronia, a música de Morricone evolui em crescendo dramático. Figura 3.119: Em câmera lenta, Harmonica não suporta o peso do irmão sobre os ombros e desaba com o rosto no chão, desmaiando com a gaita presa entre os dentes. Figura 3.120: O som de um tiro, em sincronia com um corte na imagem, marca o retorno ao presente: composição em moldura mostra que Frank foi baleado. Figura 3.121: O pistoleiro gira para trás, o rosto contorcido num esgar de dor; ouve-se apenas o som do vento (silêncio produzido pelo contraste com a música). Figura 3.122: Leone corta para uma tomada mais distante, para permitir que Harmonica entre em quadro, em segundo plano, caminhando em direção a Frank. Figura 3.123: A próxima tomada volta a usar o contraplongé; a nuca do herói em primeiro plano funciona como moldura para uma composição recessiva. Figura 3.124: O contraplano focaliza um close-up extremo de Harmonica, agora em plongé: tendo atingido o vilão, o herói agora domina a cena. Figura 3.125: O close-up extremo de Frank é composto em contra-plongé; ferido e dominado, ele ainda tem tempo para perguntar ao herói qual o motivo do duelo. Figura 3.126: A câmera se afasta para poder enquadrar a ação física dominante: Harmonica repete o gesto de Frank, anos antes, e enfia a gaita na boca dele ... 230 Figura 3.127: ... cujo olhar indica que ele finalmente conseguiu entender quem é Harmonica e porque ele o perseguiu obsessivamente durante todo o filme. Figura 3.128: Um close-up extremo do vilão, desabando com a gaita na boca, encerra a cena; o plano cria simetria visual com a tomada do desmaio de Harmonica. pistoleiros se encaram, esperando para ver quem saca primeiro; assim que o jovem Harmonica desaba no chão em câmera lenta, provocando a morte do irmão (figura 3.119), o som de um tiro interrompe brutalmente a música épica de Ennio Morricone; exatamente ao mesmo tempo, um corte seco nos leva ao presente, e a imagem vista é um plano com composição recessiva em profundidade (figura 3.120). Quando o tempo fílmico retorna ao presente, o ponto culminante do confronto já aconteceu. Nesse ponto, a câmera deixa de enquadrar os personagens respeitando o eixo horizontal, que representava a eqüidade de forças entre os pistoleiros; agora Harmonica está no comando, tendo subjugado Frank. Ele é mostrado em contra-plongé, enquanto Frank aparece em plongé (figuras 3.122, 3.123, 3.124, 3.125, 3.126 e 3.127). Harmonica faz questão de revelar quem ele é; e o faz enfiando a gaita na boca de Frank, que morre (3.128), caindo na terra com a gaita na boca, na mesma posição em que Harmonica havia caído durante o flashback – uma simetria típica de Leone. Outro elemento dos esquemas tradicionais do western que Leone revisa é a música, composta antes das gravações, de forma que, ao registrar essas cenas, Leone sabia a duração exata de cada plano e o momento de cada movimento de câmera para ajustar as imagens às evoluções melódicas. A técnica de compor antes de gravar imagens reafirma o uso modernista que Leone e Morricone faziam da música: ela era feita para ser efetivamente apreciada pelo espectador, o que demarca distância considerável da noção de inaudibilidade da música, característica do esquema sonoro da poética da continuidade clássica. Isso fica evidente no exemplo da sincronia entre o final da música (som) e a passagem do flashback para o presente da diegese (imagem), no momento do tiro fatal que matou Frank. Mas há outras passagens da cena em que se percebe o casamento sincronizado entre música e imagem. A entrada em cena dos dois personagens, por exemplo. A música que sublinha o duelo inicia no instante exato em que o primeiro plano da cena começa (figura 3.97); trata-se de uma melodia suave, dedilhada ao violão. No momento em que o rosto de Harmonica entra 231 em quadro, agressivamente, ouve-se uma seqüência de três acordes de guitarra elétrica; a cada acorde corresponde um corte que leva a um novo plano (figuras 3.98, 3.99 e 3.100). Todo o primeiro trecho da composição, com uma seção de cordas executando a melodia e um coral masculino unindo-se à guitarra (instrumento associado a Frank) e à gaita (Harmonica) para criar a harmonia, evolui num crescendo, enquanto os homens giram ao redor um do outro (figuras 3.103, 3.104, 3.105, 3.106 e 3.107). Quando a composição volta ao arranjo inicial, só com violão, Harmonica anda para frente, interrompendo sincronicamente o reconhecimento do terreno por parte dos adversários. Os dois param, um de frente para o outro (figura 3.108). A música também pára. Por quase dois minutos, não se ouve nada além do vento. Leone aumenta o suspense alternando close-ups extremos de um de outro (figuras 3.109 e 3.110), até que a câmera faz um zoom lento e demorado em direção aos olhos de Charles Bronson (figura 3.111). No momento exato do zoom, a melodia principal retorna suavemente, agora executada por uma gaita. A sincronia entre a imagem (o zoom) e o som (a gaita) é a senha para o início do flashback. O equilíbrio entre a obediência e a subversão às convenções do gênero também pode ser observado na direção de arte e nos figurinos. O duelo ocorre no quintal de uma casa construída no deserto. A arquitetura caótica da casa (com um ‘puxadinho’ de tijolo ao lado) sinaliza que ela foi construída em etapas, sem planejamento arquitetônico; há pedaços de madeira e pedras depositados pelo quintal. Os homens têm roupas cobertas de poeira e rostos queimados de sol; a paleta de cores é velha e desgastada (embora o filme inteiro seja banhado por uma luz dourada que dá ao todo um tom fabular). Mais uma vez, worldmaking. 3.3 Cenários, figurinos e objetos cênicos Leone tinha 16 anos quando fez assistência de direção em Ladrões de Bicicleta (1948). Não era exatamente um serviço profissional, mas um estágio não-remunerado. Ele era encarregado de lidar com figurantes, servir café e sanduíches. Pode parecer sem importância, mas essa experiência deixaria um legado ao seu trabalho como diretor. A afirmação pode parecer estranha: o cinema de Leone lidava com a fantasia, e não com a representação fiel do mundo, como queriam os neo-realistas. Mesmo assim, a experiência deixou marcas na prática estilística: o cuidado obsessivo com detalhes, tanto na verossimilhança quanto com seu potencial dramático e narrativo. Leone ilustrava essa influência contando sobre uma reunião que presenciara entre o diretor Vittorio De Sica e os roteiristas Cesare Zavattini e Sergio Amidei (FRAYLING, 2000, p. 51). 232 O trio debatia uma cena: o protagonista saía de casa segurando um sanduíche de mortadela. Zavattini sugeriu que o sanduíche estivesse embrulhado numa folha do jornal comunista Unità. Amidei concordou, mas achou que a mensagem seria menos explícita e mais eficiente se o espectador pudesse ler apenas a última sílaba do logotipo (‘tà’). De Sica então entrou na conversa. Era melhor trocar o sanduíche por uma maçã: Diante da câmera, o protagonista morderia a maçã pela primeira vez e então começaria a sua jornada para o desastre. Honestamente, eu ouvia a declaração dele quase como se fosse capaz de comer a maçã. De Sica conseguia descrever a cena como se estivesse acontecendo diante de nossos olhos. O cinema, para ele, significava atenção total a esses pequenos detalhes. (LEONE, 2000, p. 51). A lição que ele extraiu do episódio foi o cuidado com cada pequeno detalhe. Leone aprendeu que o efeito visual do objeto mostrado na tela era tão importante quanto o efeito emocional que provocaria no espectador. A aparência realista dos westerns de Leone, o cuidado com a verossimilhança, veio daí – o neo-realismo, portanto, pode ser apontado como pré-condição de um importante recurso estilístico de Leone. O tratamento estilístico que ele deu à aparência de seus filmes era resultado de um olhar treinado dentro do contexto sócio-cultural do cinema europeu dos anos 1950 e 1960, interessados em oferecer filmes que fossem uma contrafação das produções excessivamente espetaculares (e por isso mesmo, de aparência artificial) que tinham origem em Hollywood: Diretores americanos confiam demais em roteiristas e nunca pesquisam o suficiente sobre sua própria história. Na verdade, alguns westerns feitos no começo do século eram mais próximos da realidade do que os atuais. Mas depois que Hollywood cresceu e virou uma indústria, os filmes passaram a divergir mais e mais da realidade histórica. A partir de certo ponto, o gênero estava recebendo muita influência de rodeios e shows de rádio, que pouco tinham a ver com o Velho Oeste de verdade. (LEONE, 2005, p. 81). Para alcançar a verossimilhança desejada, Leone investiu na obsessão com os pequenos detalhes. E, à medida que suas produções tinham orçamentos maiores, essa preocupação passou a se tornar uma mania perfeccionista. Durante as filmagens de Três Homens em Conflito, certo dia, Leone procurou o diretor de produção, Fernando Cinquini, e o avisou que havia se esquecido de filmar um plano previsto no cronograma. Era um planodetalhe da espora da bota de um pistoleiro. Cinquini o tranqüilizou. Aquilo podia ser filmado em qualquer outro dia, mais para o final das gravações. Semanas mais tarde, com as filmagens chegando ao final, Cinquini procurou Leone e sugeriu que ele filmasse o plano da espora. Não era possível, retrucou Leone. Ele precisava recriar o cenário com 300 figurantes (incluindo uma tropa inteira de atores vestidos de 233 Figura 3.129: Construção baixas, de tijolo e barro, caiadas de branco, sujas e queimadas de sol: moradias dos peões na vila de Por um Punhado de Dólares. Figura 3.130: Se os trabalhadores mexicanos viviam em casas humildes, os habitantes mais ricos moravam no centro, em mansões de madeira: worldmaking. Figura 3.131: Rascunho desenhado po Carlo Simi para o figurino do personagem de Clint Eastwood: o poncho era usado como sinal narrativo da ambientação ... Figura 3.132: ... do enredo do filme na fronteira entre Estados Unidos e México; chapéu, botas e calças foram comprados pelo próprio ator numa loja dos EUA. militares), rifles, cavalos e uma carruagem. “Em segundo plano, Leone queria captar toda a vida da cidade”. (FRAYLING, 2000, p. 228). É possível afirmar, de fato, que a influência neo-realista nesse aspecto não só funcionou como pré-condição para Leone, como também gerando mais tarde exemplos de worldmaking. Carlo Simi foi outra influência no desenvolvimento desse recurso. Ele instituiu, desde Por um Punhado de Dólares, a prática da pesquisa iconográfica em livros de fotografia e arquitetura, jornais e bibliotecas. Em Por um Punhado de Dólares, Simi recorreu a livros que documentavam as construções do Velho Oeste real para sugerir as construções baixas, de estuque branco (figura 3.129), e os prédios de madeira do centro da cidade. E tudo tinha que ser velho, com janelas tortas, pintura descascando e portas que rangiam (figura 3.130). No que se refere ao figurino, Simi criou o poncho de Clint Eastwood (figura 3.131 e 3.132), importante para localizar geograficamente o filme na fronteira entre EUA e México, e apostava nessa noção da verossimilhança. Simi sugeriu que o restante das roupas – trazidas pelos atores ou alugadas a um fornecedor de figurinos – seguisse o mesmo princípio da 234 Figura 3.133: Para a cidade progressista de El Paso, Simi optou por usar arquitetura mais requintada, com prédios de até três andares e paredes de madeira de lei. Figura 3.134: A cidade cenográfica de El Paso foi construída em torno de uma construção que imitava um forte espanhol: paredes grossas e grades nas janelas. Figura 3.135: Uma das armas do Coronel Mortimer que existia de verdade no século XIX: revólver deesmontável Buntline Special com tambor de 12 balas. Figura 3.136: Caçador de recompensas profissional, o Coronel Mortimer andava com um arsenal de rifles e fazia questão de limpá-los todas as noites. arquitetura: “Disse que seria uma boa idéia sujar os chapéus, para que a audiência pudesse sentir a sujeira e o suor daquele ambiente.” (SIMI, 2005, p. 124). A abordagem de Leone – o cuidado com os detalhes, o senso de acuidade histórica, o estabelecimento de uma história paralela que não aparecia diretamente no enredo, mas cujos detalhes podiam ser sentidos, numa espécie de proto-worldmaking – era semelhante. Um aspecto cultural que precisa ser considerado, no que se refere a esse aspecto da representação do ambiente sujo do Velho Oeste, é a emergência da contracultura. Nos anos 1960, os homens usavam cabelos longos e barba mal feita, uma aparência que não tinha sido comum nas décadas anteriores. Mesmo que Leone não tenha sido influenciado por isso, a mera existência da contracultura permitiu que o público – mais jovem, mais irreverente, mais acostumado a essa moda – aceitasse mais facilmente o visual sujo dos westerns de Leone. A primeira cidade cenográfica que Leone e Simi construíram reforça esse cuidado com a acuidade histórica e com a verossimilhança dos detalhes. A cidade, usada em Por uns Dólares a Mais, era El Paso. Simi consultou fotografias da locação real e descobriu que não se parecia em nada com o vilarejo do primeiro filme. El Paso era, na época, uma cidade economicamente desenvolvida. Assim, ele optou por um estilo de arquitetura diferente, com construções de madeira novas e grandes, de dois ou três andares (figura 3.133). A idéia (fictícia, mas compatível com a realidade histórica) era que a cidade havia sido erguida ao redor das ruínas de um antigo forte militar construído pelos espanhóis. Essa fortaleza teria 235 sido reformada para abrigar um banco (figura 3.134), e assim não se assemelhava em nada à aparência que bancos normalmente tinham em westerns americanos: Quisemos nos afastar do banco localizado na rua principal, com uma porta comum e grades nas janelas, e então eu desenhei uma velha fortaleza espanhola, ainda com partes semi-destruídas. Parecia com uma prisão, uma caixa-forte. (SIMI, 2005, P. 125). O arsenal de armas do Coronel Mortimer também foi resultado de pesquisas. Leone queria que Mortimer usasse uma arma diferente em cada cena, e todas tinham que ser historicamente acuradas. O revólver tornou-se um Buntline Special de 12 balas e com suporte de ombro (figura 3.135). Mortimer utilizava uma pistola Derringer sob a manga do casaco, e tinha um arsenal de rifles desmontáveis (figura 3.136). Todas eram réplicas construídas a partir de livros pesquisados por Simi (HUGHES, 2004, p. 45). Três Homens em Conflito foi o filme em que Leone e Simi se esmeraram com mais rigor para oferecer ao público uma representação historicamente acurada da guerra civil norteamericana. Eles passaram duas semanas pesquisando na Biblioteca do Congresso, em Washington (EUA), fotocopiando livros históricos que documentavam, em fotos, detalhes das armas e roupas usadas na década de 1860. A arquitetura, as táticas de batalhas, os campos de concentração para prisioneiros de guerra, os veículos (locomotivas, carruagens), nada foi improvisado. O worldmaking, ainda discreto nos outros filmes, tinha sido intensificado. O arsenal de réplicas incluiu um revólver Colt Navy e dois rifles (um Henry, com mira telescópica, e outro Sharps) para Clint Eastwood (figura 3.137); um revólver New Model Army Remington para Lee Van Cleef; e uma pistola montada com partes de três revólveres por Eli Wallach, operação realizada em frente à câmera, numa cena do filme: o cano de um Colt, o tambor de uma Smith & Wesson e o punho de um Colt Navy (figura 3.138). Durante as filmagens, Leone pediu emprestado ao Exército espanhol uma miríade de armas históricas, incluindo morteiros e canhões da marca Parrott – o mesmo tipo de arma que havia sido usado na guerra dos Estados Unidos (HUGHES, 2004, p.110). Até mesmo a locomotiva foi adaptada para ficar parecida com os veículos da época, com laçadores de boi na parte da frente (onde às vezes os dois amarravam soldados considerados traidores, como na figura 3.139) e vagões especiais para transporte de carga militar. Leone, Simi e Vincenzoni dedicaram atenção especial ao trabalho de Matthew Brady (1822-1896), pioneiro do foto-jornalismo americano. Nos anos da guerra, ele acompanhou de perto várias batalhas e reuniu mais de seis mil fotografias. Leone teve acesso a esse material e usou-o extensivamente, inclusive para encenar as cenas de batalha de maneira parecida com 236 Figura 3.137: Um dos dois rifles utilizados pelo personagem de Clint Eastwood em Três Homens em Conflito tinha mira telescópica e era da marca Henry. Figura 3.138: Tuco monta, diante da câmera, um revólver composto de peças oriundas de três diferentes armas: um Colt, um Smith & Wesson e um Colt Navy. Figura 3.139: Imagens dos créditos de Três Homens em Conflito mesclavam as cores da pop art de Andy Warhol com poses inspiradas nas fotografias de Matthew Brady. Figura 3.140: O estilo do colorido saturado que aparece nos créditos do filme também fazia referência a experiências de revelação feitas pelo próprio Brady. Figura 3.141: Soldados da União se aglomeram em trincheiras escavadas: alusão ao estilo sangrento de combate que marcou a Primeira Guerra Mundial. Figura 3.142: Moradores da cidade de Peralda fogem às pressas da cidade, com bombas explodindo ao fundo: alusões aos bombardeios da Segunda Guerra. Figura 3.143: Prisioneiros marcham para o interior de um campo de prisioneiros: torres de sentinelas que emolduram a imagem sugerem uma prisão nazista. Figura 3.144: O ângulo escolhido para encerrar o plano da entrada dos prisioneiros não deixa dúvidas sobre a alusão aos portões dos campos de concentração. os registros de Brady. Os créditos de Três Homens em Conflito, com stills retirados de cenas do filme e coloridos artificialmente, consistem num pastiche do trabalho de Brady, provavelmente influenciados pela pop art de Andy Warhol (figuras 3.139 e 3.140). Para se certificar que a experiência recente das duas guerras mundiais que haviam devastado a Europa não passasse despercebida, Leone incluiu alusões às batalhas em trincheiras da Primeira Guerra Mundial (figura 3.141), aos bombardeios aéreos com 237 Figura 3.145: Foto de Matyhews Brady (1863: soldados do exército da União preparam os canhões para o confronto, pouco antes de uma das batalhas da guerra. Figura 3.146: A encenação da batalha que antecede a explosão da ponte buscou inspiração dos registros fotográficos feitos por Matthew Brady, embora o fotógrafo não tenha podido (por limitações técnicas de equipamento) fotografar as batalhas em si. Figura 3.147: Corpos se estendem em todo o campo de batalha, até o horizonte, momentos após a batalha de Gettysville (1863): fotografia de Matthew Brady ... Figura 3.148: ... que se tornaria, mais tarde, um dos mais famosos registros da guerra civil feitos pelo fotógrafo; Sergio Leone realizou uma recriação cinematográfica da fotografia e inseriu a cena depois da explosão da ponte, quando Tuco e Blondie contemplam a devastação deixada pela guerra, com corpos de soldados estendidos pelo campo de batalha. Figura 3.149: Na tentativa de criar uma representação indireta da guerra e suas conseqüências para a sociedade, Leone povoou o filme com atores aleijados. Figura 3.150: Homens sem membros surgem como figurantes, em segundo plano, em diversos momentos da narrativa, para sinalizar a proximidade da violência. populações de cidades fugindo às pressas (figura 3.142) e às instalações dos campos de concentração nazistas (figuras 3.143 e 3.144). Leone incluiu alusões em homenagem a Brady, inserindo os três anti-heróis dentro de eventos reais ocorridos na guerra e fazendo-os presenciar batalhas que simulavam imagens históricas registradas pelo fotógrafo (figuras 3.145, 3.146, 3.147 e 3.148). Ao mesmo tempo, esse procedimento unia as práticas do alusionismo e do worldmaking. Décadas depois, filmes como Forrest Gump (Robert Zemeckis, 1994) e JFK (Oliver Stone, 1991) intensificariam essa revisão do esquema, inserindo personagens fictícios em imagens de arquivo reais. A acuidade histórica da guerra não ficou restrita às armas e objetos. Leone se esmerou nas representações indiretas da guerra, assumindo que a verossimilhança da representação seria percebida pelo espectador, ainda que inconscientemente. Foi por essa razão que o 238 italiano povoou o cenário com figurantes sem braços ou sem pernas (figuras 3.149 e 3.150), para sugerir visualmente as conseqüências nefastas da guerra. Esse esforço culminou na construção do cemitério militar. A locação, construída num vale perto de Almería, foi desenhada por Simi com dois propósitos. O primeiro era a acuidade histórica; o set precisava ser idêntico a um cemitério improvisado para enterrar mortos após grandes batalhas. Simi encontrou a inspiração numa foto de Matthew Brady (1862), que mostrava as lápides improvisadas – pedaços de madeira e gravetos cruzados – e a grande quantidade de mortos. Já vimos como a construção do set copiou o estilo tosco dos túmulos. Além disso, o cemitério precisava satisfazer a um desejo de Leone: tinha que ter uma forma circular, contendo no centro uma arena semelhante ao cenário do clímax de Por uns Dólares a Mais. Simi recorreu à lógica (figura 3.151): talvez o cemitério improvisado tivesse sido erguido em torno de algum cemitério civil, mais velho e menor. À medida que a guerra fizesse mais vítimas, ele seria expandido em círculos concêntricos, para fora. Os túmulos mais antigos, perto do centro, teriam lápides de mármore envelhecido; os mais recentes, nos círculos mais externos, onde estariam enterrados os soldados mortos em conflitos, consistiriam apenas de pedaços improvisados de madeira. Foi seguindo essa lógica que o cenário foi construído. Este é um bom exemplo de worldmaking: para erguer um cenário, o diretor de arte criou toda uma história da locação, que não aparecia no filme, mas podia ser sentida pelo espectador (figura 3.152). Como a acuidade histórica tinha débito considerável com o trabalho de Matthew Brady, Leone incluiu uma alusão específica a ele. Numa curta cena que se passa numa estação ferroviária, Brady é visto de relance, fotografando um grupo de soldados prestes a embarcar para a batalha (figura 3.153). Os militares fazendo poses parecidas com as que eram vistas nos retratos que o verdadeiro Brady fazia das tropas (figura 3.154). Em Era uma Vez no Oeste, Leone manteve essas preocupações com acuidade, mas abriu concessões ao realismo porque seu objetivo, dessa vez, não era representar a realidade histórica, mas sim representar a mitologia criada sobre o Velho Oeste. Era uma Vez no Oeste não era uma história sobre os Estados Unidos do século XIX, mas uma história sobre os filmes que representavam os EUA do século XIX. Ainda assim, o trabalho de Carlo Simi pode ser verificado no esmero com que a locomotiva que aparece no filme recriou os verdadeiros trens dos Estados Unidos no século XIX (figura 3.155); no chalé suíço erguido no meio do deserto (figura 3.156) por um trabalhador visionário que tinha a certeza de enriquecer nos meses seguintes; na estação ferroviária semi-deserta que serve de cenário para a longa cena de abertura (que também tinha 239 Figura 3.151: Rascunho do cemitério militar (o cenário da seqüência final de Três Homens em Conflito) desenhado por Carlo Simi: uma arena circular no centro. Figura 3.152: Sergio Leone contou com 250 soldados do Exército da Espanha para, em dois dias, erguer cerca de 10 mil túmulos e lápides improvisadas com pedaços de mármore e madeira, num vale localizado perto das cidades cenográficas que ficavam em Almería. Figura 3.153: Como forma de homenagear Matthew Brady e assinalar claramente sua contribuição indireta à direção de arte, Leone incluiu uma cena em que o fotógrafo é mostrado em ação, retratando um grupo de oficiais prestes a embarcar para a área do conflito. Figura 3.154: A pose que os atores fazem é alusão a alguns dos famosos retratos de militares e figuras públicas dos EUA que Brady realizava na época (1862). Figura 3.155: Vagão de trem adaptado para um passageiro com dificuldade de locomoção: cenário mescla luxo e praticidade sem fugir à acuidade histórica. Figura 3.156: Suntuosidade do chalé suíço erguido no meio do deserto simboliza o espírito empreendedor e sonhador do fazendeiro assassinado no início do filme. Figura 3.157: Construções assimétricas, de madeira velha e torres enferrujadas, sinalizam a construção caótica e semi-abandonada da estação ferroviária. Figura 3.158: Idéia dos sobretudos guarda-pó usados pelos pistoleiros no filme veio de registros fotográficos da vida no Velho Oeste: a vestimenta era mesmo real. uma história prévia: teria sido erguida de modo caótico, unindo pedaços de madeira de qualquer jeito, como na figura 3.157); e nos sobretudos guarda-pó amarelados que os pistoleiros usam (figura 3.158), cuja existência podia ser confirmada nos livros de fotografias que documentavam a vida no Velho Oeste. 240 Figura 3.159: Inspiração para a encenação do atentado cometido contra a gangue de Noodles veio de fotos tiradas por policiais de Nova York no ano de 1932. Figura 3.160: Fotografia de um mafioso assassinado em Beverly Hills em 1947 serviu de inspiração para a encenação do assassinato de um barão do crime. O último filme de Leone, Era uma Vez na América, deixou de lado o western, mas manteve a tradição de realização de pesquisas iconográficas. Junto com Carlo Simi e a figurinista Gabriella Pescucci, Leone colheu material junto a arquivos fotográficos de jornais norte-americanos. O objetivo era mais ambicioso do que simplesmente providenciar uma reconstituição visual acurada do período da Grande Depressão; Leone desejava encenar cada tiroteio ou atentado a partir de imagens de crimes de grande repercussão, registradas por peritos da polícia ou repórteres criminais dos anos 1930. Ele combinava pastiche – cópia e combinação de informações de diferentes fontes – e obsessão com acuidade histórica para alcançar o máximo de verossimilhança possível: Para o massacre cometido pela gangue em Westchester (figura 3.159), ele buscou inspiração numa fotografia noturna de carros de polícia e bombeiros de 1932; para os assassinatos de Salvy e Willie, a foto de um repórter policial de um corpo estendido numa calçada com carros estacionados (1933); para o atentado contra Joe (figura 3.160), uma foto do cadáver do mafioso Benjamin ‘Bugsy’ Siegel logo após ele ser morto por atiradores ligados ao Sindicato dos Motoristas, em Beverly Hills (1947); e para o vidro do carro estilhaçado por balas, no mesmo crime, um still de Scarface [Howard Hawks, 1932]. (FRAYLING, 2000, p. 429). 3.4 O som: voz, ruídos, silêncios e música Se o neo-realismo funcionou como pré-condição para o desenvolvimento de recursos estilísticos no desenho de produção, também o fez no trabalho com o som. Neste último caso, a influência se deu de forma mais sutil, indireta, através de um conjunto de tradições seguido pela indústria cinematográfica italiana, as quais se impuseram como limites que afetaram muitas escolhas estilísticas de Leone na área da construção da narratividade através do som. A análise da maneira como Leone trabalhava o som nos permite destacar quatro recursos recorrentes: (1) a música era feita para ser apreciada pela audiência, prática que ia de 241 encontro ao princípio da inaudibilidade das composições musicais (GORBMAN, 1988, p. 57); (2) a articulação meticulosa entre as camadas sonora e visual do filme, com sons – diegéticos ou não – sincronizados minuciosamente com os cortes visuais; (3) o desenho de som enfatizando ruídos naturais amplificados e silêncios, ao mesmo tempo reduzindo o uso de diálogos, criando assim uma categoria de filmes de Michel Chion (2009, p. 121) chamou de “lacônicos”; (4) a inclusão de sons diegéticos na harmonia, como tiros, chicotadas e galopes. Os quatro recursos consistem de revisões nos esquemas dominantes de construção sonora dos filmes da época, sobretudo os americanos; posteriormente, a partir dos anos 1970, alguns desses recursos se tornariam populares no cinema de Hollywood. Já vimos antes como o uso que Leone dava ao primeiro (a inaudibilidade da música) alterou significativamente o esquema dominante da composição musical para cinema. A seguir, vamos analisar os outros três, além de verificar como os contextos sócio-culturais, tecnológicos e econômicos possibilitaram às quatro ferramentas emergirem dentro da obra em Leone. Em Cinecittà, como já vimos, o modo de produção desprezava a gravação de som direto (FABRIS, 2006, p. 206). O motivo principal para essa prática era financeiro. Gravadores de som sincronizado com a película custavam caro e eram pesados, exigindo a contratação de equipes de técnicos cujos salários inviabilizavam financeiramente a utilização em locações externas, caso dos desertos espanhóis, onde eram filmados os spaghetti westerns. Além disso, os diretores vinculados a Cinecittà estavam acostumados a trabalham com a dublagem posterior. Essa prática era comum na Itália desde a ascendência do neo-realismo, na década de 1940. Os cineastas neo-realistas, que começaram a filmar quando a Segunda Guerra Mundial se aproximava do fim, não apenas estavam impossibilitados de gravar som direto nas locações, como vislumbravam uma vantagem estética nessa limitação: “A filmagem de cenas sem gravação [de áudio], com sincronização realizada posteriormente, (...) tornava possível uma maior liberdade de atuação” (FABRIS, 2006, p. 206). Sem ter que se preocupar se o microfone estava captando os diálogos, os diretores ganhavam tempo, filmavam mais rápido e economizavam dinheiro para usar na pós-produção. Quando Leone começou a dirigir, no início da década de 1960, o gravador Nagra III – primeiro equipamento portátil capaz de gravar som direto sincronizado com a película, e que começara a ser utilizado em 1959 – tinha se tornado popular entre os diretores europeus. Com uma exceção: os italianos. Acostumados com o sistema de pós-sincronização de áudio, os cineastas da Itália continuaram filmando sem som direto. Além disso, como a maioria das cenas ocorria em locações externas, a captação dos diálogos ficava financeiramente inviável nas produções dos ciclos populares de Cinecittà. O 242 aluguel dos equipamentos – gravadores, mesas de mixagem, monitores de áudio – era caro. O som direto estava descartado 25. A experiência como diretor assistente fez Leone se acostumar com isso. Mesmo a partir de Três Homens em Conflito, quando a melhoria das condições de orçamento lhe permitiu começar a trabalhar com som direto, Leone continuou usando a técnica de reconstituir vozes e ruídos na pós-produção. No filme de 1966 ele registrou os diálogos nos sets, mas o objetivo era utilizar esses sons apenas como faixas-guia para auxiliar os dubladores. Por fim, o fato de que havia atores de várias nacionalidades nos sets, cada um falando uma língua diferente, inviabilizava definitivamente o uso de som direto. E nem Leone nem os produtores de Cinecittà tencionavam abrir mão desses elencos internacionais, pois ter atores oriundos de vários países facilitava a divulgação do filme por toda a Europa. O único filme em que Leone efetivamente usou o som direto na trilha final de áudio foi Era uma Vez na América. Isso aconteceu por insistência dos dois atores principais, Robert De Niro e James Wood. Eles convenceram Leone que as interpretações ficariam melhores com a utilização do som direto. Nesse filme, 65% dos diálogos foram gravados nos sets (FRAYLING, 2000, p. 443). Não por acaso, é também o filme mais convencional de Leone, em termos de experiências narrativas com ruídos amplificados e silêncios. Durante o ciclo de spaghetti westerns, todos os filmes eram dublados em quatro línguas diferentes (inglês, italiano, francês e alemão). Esse modo de produção afetou a estrutura narrativa dos spaghetti westerns, e não apenas na textura sonora. Quanto menos diálogos, menos tempo de aluguel de estúdios de som era necessário (ou seja, mais barato ficava o filme). Assim, os roteiros incluíam mais cenas de ação física (perseguições de cavalo, tiroteios, duelos, brigas, etc.); uma a cada 15 minutos, em média, e sem diálogos. Portanto, a contexto de produção gerava uma revisão significativa do esquema dominante de construção narrativa, apontando para a continuidade intensificada. Essa estrutura narrativa – seqüências de ação mais numerosas e mais longas, intercaladas por cenas que faziam a ação dramática avançar – se tornaria muito popular no mundo todo, a partir dos anos 1970. O orçamento se constituía ao mesmo tempo como limite e pré-condição da prática estilística. E se uma das conseqüências disso foi o aumento do número e da duração das cenas de ação, outra foi a necessidade de encontrar uma maneira alternativa de enfatizar a evolução do enredo, pois no cinema clássico a maior parte da exposição acontece através de diálogos, 25 Essa situação, aliada aos elencos multinacionais (incluindo atores americanos, italianos, espanhóis, alemães e franceses), gerou situações curiosas nas locações. Era comum que houvesse, na mesma cena, atores falando em duas ou três línguas diferentes. Quando Tuco (Eli Wallach) discute com o padre Ramirez (Luigi Pistilli), em Três Homens em Conflito, o norte-americano falava em inglês e o colega respondia em italiano. Um não entendia o outro, embora o roteiro determinasse que eles eram irmãos. 243 ainda que a platéia nem sempre se dê conta disso. Michel Chion chama o esquema dominante da construção sonora de verbocêntrico, assinalando que esse esquema se consolidou ao final dos anos 1930, em Hollywood, e continua hegemônico (embora a importância dos efeitos sonoros tenha aumentando desde o surgimento do sistema Dolby, em 1975): O que é [o cinema verbocêntrico]? Um cinema em que o diálogo é o centro invisível da atenção, porque ocorre simultaneamente a uma ação visual (...) paralela ao diálogo, embora não tenha relação intrínseca com ele, servindo apenas para pontuá-lo. (...) Assim, a ação visual dá ao diálogo um impulso ou estímulo que faz a cena parecer mais cinematográfica, nos fazendo esquecer que o diálogo é o coração e o motivo de a cena estar ali. (CHION, 2009, p. 73). Chion nos dá uma série de exemplos de ações corriqueiras – beber algo, acender um cigarro, comer, dirigir, dar um laço no sapato, jogar sinuca, etc. – que nada acrescentam à narrativa, a não ser uma dinâmica visual que mascara o caráter verbocêntrico da cena em si: é o que está sendo dito pelos personagens, e não o que eles estão fazendo, que faz a ação dramática avançar. Eles poderiam perfeitamente estar parados, um ao lado do outro, e a trama seria compreendida do mesmo modo; só que as imagens estáticas tornariam o filme visualmente desinteressante, o que acabaria por revelar o caráter verbocêntrico à platéia. Os filmes de Leone não descartam completamente esse esquema, mas o revisam. A causa maior desse processo está no modo de produção: sem poder gravar som direto, trabalhando com orçamentos limitados e atores de várias nacionalidades, Leone teve que encontrar outra maneira de narrar o avanço da trama (ou seja, teve que solucionar o problema de representação revisando a solução mais comumente disponível). Tudo isso pode ser comprovado estatisticamente; basta comparar o número de frases ditas pelos personagens de um western de Sergio Leone com a quantidade de falas presentes em qualquer western norte-americano da mesma época. Para fazer isso, selecionamos um corpus aleatório de 23 westerns realizados entre os anos 1930 e 1960, por diretores renomados (incluindo Ford, Hawks, Mann e Boetticher) e contamos cada linha de diálogos representada pelos atores desses filmes. Fizemos o mesmo procedimento nos sete filmes de Sergio Leone estudados nesta pesquisa (inclusive Era uma Vez na América e Meu Nome é Ninguém). A justaposição desses resultados mostra que todos os sete filmes de Leone têm menor quantidade de falas do que qualquer outro filme integrante do corpus selecionado (ver Tabela A dos Apêndices, que está ordenada do filme mais lacônico ao mais tagarela). Os sete filmes de Leone ocupam os sete primeiros lugares da lista. 244 Para efeito de comparação, Por um Punhado de Dólares possui 687 linhas de diálogo em 99 minutos (menos de sete linhas por minuto). O Homem que Matou o Facínora, feito dois anos antes, contém 1093 frases em 123 minutos, quase nove por minuto – taxa idêntica a Rastros de Ódio (1956), do mesmo John Ford. Onde Começa a Inferno (1959) soma 1526 linhas em 141 minutos (onze por minuto), enquanto Rio Vermelho (1948) é ainda mais tagarela: 1628 em 133 minutos, mais de doze falas por minuto e taxa idêntica a Duelo ao Sol (Duel in the Sun, King Vidor, 1946), o mais verborrágico dos westerns. Embora as condições financeiras fossem mais favoráveis a cada filme, Leone não tornou seus filmes mais verbocêntricos por causa disso. Ele continuou economizando diálogos. Há, em Três Homens em Conflito, 946 frases em 179 minutos (cinco por minuto), apesar de este filme ser protagonizado por um dos personagens mais tagarelas de Leone, que é Tuco. Já Era uma Vez no Oeste contém 686 linhas de diálogos em 175 minutos – pouco mais de quatro por minuto, ocupando o primeiro lugar de nossa lista de westerns lacônicos. Mesmo quando comparamos os filmes de Leone a diretores norte-americanos de westerns psicológicos com heróis que pouco falam, como Budd Boetticher e Anthony Mann, a discrepância permanece. Sete Homens Sem Destino (1959) e O Resgate do Bandoleiro (The Tall T, Budd Boetticher, 1957), ambos de Boetticher, apresentam respectivamente 642 e 691 frases em 73 e 78 minutos, taxas que indicam pouco menos de nove frases pronunciadas por personagens a cada minuto. De Mann, Winchester 73 e Um Certo Capitão Lockhart (The Man from Laramie, Anthony Mann, 1955) possuem 1103 e 1102 linhas de diálogos em respectivamente 92 e 104 minutos – ou seja, quase doze e mais de dez por minuto 26. Baseando-se nessa amostragem, podemos afirmar que Leone foi o mais lacônico de todos os diretores de westerns. E ele levou essa característica consigo quando filmou Era uma Vez na América, sua primeira incursão fora do gênero. O filme completo tem 1359 linhas faladas pelos atores em 229 minutos (menos de seis frases por minuto). Antes de seguir em frente, é necessário um último comentário relacionado ao esquema verbocêntrico. Ao contrário do que Chion parece deixar implícito, esse esquema não foi adotado (e tampouco permanece dominante) por razões de comodidade narrativa ou preguiça. Os diretores não impulsionam a trama para frente usando diálogos apenas porque é mais fácil, mas também por razões relacionadas às práticas cognitivas da espécie. Trata-se de um traço 26 A metodologia para realização dos cálculos foi a seguinte: extraiu-se a trilha de diálogos em português dos DVDs dos filmes constantes da pesquisa, e contou-se o número de linhas, dividindo-se o resultado pela duração em minutos oficial, constante no banco de dados do Internet Movie Database (IMDb). Cada fala considerada consistia de duas linhas de até 40 caracteres cada. 245 antropomórfico: quando nossos ouvidos detectam o timbre da voz humana (que soa sempre dentro de uma faixa de propagação de ondas sonoras que vai de 60 a 1300 Hz), direcionamos naturalmente nossa atenção para esses sons (e desprezamos todos os demais), tentando reconhecê-los e interpretá-los. Com base nesse princípio, os sound designers costumam mixar, na trilha sonora de qualquer filme, diálogos em volume mais alto do que efeitos sonoros e música, salvo em momentos de exceção. Se não fosse assim, os espectadores não apenas seriam privados de acompanhar a trama, mas também ficariam fisicamente exaustos pelo esforço mental e auditivo de tentar decifrar as palavras por detrás dos outros sons. Mas voltemos a Leone. Quando começou a dirigir filmes, ele foi confrontado com esse problema de representação. Procurou solucioná-lo aplicando aos efeitos sonoros a mesma obsessão pelos detalhes que usava nas áreas da direção de arte e do desenho de produção, e que por sua vez era oriunda da experiência neo-realista do princípio da carreira. Leone desenvolveu um recurso estilístico incomum na época: a construção sonora da narrativa com uso generoso de efeitos sonoros, sobretudo ruídos naturais amplificados na mixagem. Esse recurso consistia no uso de sons (quase sempre provenientes da diegese) cujo volume era equalizado em maior intensidade, obtendo um efeito perceptivo que os sound designers chamam de realismo emocional, e que consiste na reprodução, dentro da trilha sonora do filme, de um modo de audição mais aguçado do que o normal, em que os pequenos ruídos ganham uma dimensão sensorial. Chion usa o termo tradução para nomear o fenômeno: O espectador reconhece os sons como verdadeiros e compatíveis, não tanto porque eles reproduzem concretamente aquilo que seria ouvido na mesma situação no mundo real, mas porque eles traduzem, expressam ou transmitem as sensações – não necessariamente auditivas – relacionadas à situação. (CHION, 2009, p. 488). Esse procedimento não era comum na época. Como as tecnologias de gravação e projeção eram rudimentares, a maioria dos diretores dedicava pouco tempo para pensar a trilha de áudio. Em Hollywood, a banda sonora era preenchida com música (quase sempre de sabor neo-romântico, inspirada nos compositores europeus do século XIX), que intercalava os diálogos e era intensificada, em termos de volume, nos trechos sem a voz humana. De todo modo, ruídos e efeitos sonoros usados até então eram poucos, rudimentares, e serviam mais para criar um senso de ambiência – aquilo que Michel Chion (1994, p. 87) chama de “vasta extensão” sonora – e sugerir a tridimensionalidade do espaço fílmico do que para criar pontos de sincronização (CHION, 1994, p. 58) entre aquilo que se ouve na banda sonora e as imagens que são vistas simultaneamente na tela. Nesse ponto, Leone seguiu a 246 trilha aberta por pioneiros no uso dos ruídos como elementos de construção da narrativa, como Robert Bresson (e seu uso expressivo e emocional de sons fora do quadro) e Jacques Tati (que utilizava efeitos sonoros em volume amplificado para guiar a percepção do espectador dentro do próprio quadro), ambos – junto com Jean-Pierre Melville, Stanley Kubrick, Akira Kurosawa e o próprio Leone – nomeados por Chion como diretores de filmes integrantes da variação lacônica do esquema dominante de construção sonora. Note-se que, num cinema que propunha a fragmentação cada vez maior do espaço fílmico, com abundância de close-ups, os sons auxiliam bastante o espectador na organização cognitiva do espaço fílmico fora de quadro. Essa construção tem relação com a maneira como a fisiologia do organismo humano faz nossos cérebros processarem o som. Ao contrário das imagens, que são projetadas numa tela e por isso têm limites (laterais, superior e inferior), os sons são percebidos num raio de 360 graus. Ouvimos sons o tempo inteiro, pois não podemos “fechar” os ouvidos (como fazemos com os olhos). Por essas características, o cérebro se acostuma a isolar os ruídos, processar os mais importantes e descartar os demais. Na hora de dormir, o cérebro “desliga” os sons para que possamos adormecer; acordados, usamos inconscientemente os sons para compreender o que se passa ao nosso redor, inclusive construindo mentalmente as partes desse espaço que não conseguimos ver. Na época de Leone, a figura do sound designer 27 ainda não existia. Os diretores que experimentavam técnicas novas nesse campo expandiam as possibilidades em diferentes direções. Leone explorou o uso mais intenso dos ruídos como ferramenta narrativa. A atenção, aqui, recai sobre o volume amplificado dos ruídos; de novo, a prática estilística aponta para a revisão de um esquema dominante em direção à continuidade intensificada. Além disso, esse tipo de mixagem favorecia a moda, comum entre os diretores europeus da época, de deixar a técnica ser vista ostensivamente pela platéia: “um cinema em que a retórica se tornava um fim em si mesma” (CHION, 2009, p. 107). Essa tendência maneirista era evidente em Leone (já vimos que todos os críticos dos Cahiers du Cinéma a notaram), e também pode ser observada em vários outros recursos estilísticos, incluindo a música. De fato, os filmes de Leone instituíram uma paisagem sonora repleta de sons diegéticos que serviram de assinatura estilística: o sopro do vento, os tiros que reverberam longamente nos vastas planícies, os ruídos produzidos por animais do deserto (coiotes, corvos). Todos são sons que povoam o universo do spaghetti western. 27 A denominação de sound designer para os profissionais que pensam criativamente a trilha sonora apareceu nos créditos de um filme pela primeira vez em 1979, quando Walter Murch recebeu esse crédito pela mixagem de Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola (STAM, 2003, p. 237). 247 Se o uso dos ruídos naturais (reconstituídos em estúdio e intensificados na mixagem) era a principal técnica utilizada por Leone para construir a paisagem sonora, ele não destacava todos e nem qualquer ruído, mas ampliava a intensidade de poucos efeitos narrativamente importantes em cada cena (em geral, dois ou três ruídos específicos), às vezes para produzir pontos de sincronismo, outras vezes para guiar a atenção do espectador para determinadas áreas da imagem, ou ainda para dar ênfase emocional a algum aspecto da narrativa. Essa terceira função – a ênfase emocional – consistia em um recurso estilístico que estava emergindo naquele momento, no cinema europeu: os ruídos passavam a exercer uma função que era, então, exclusiva da música. Este recurso se tornaria ferramenta extensamente explorada no cinema contemporâneo, a partir da década seguinte, principalmente depois que os filmes passaram a ter as trilhas sonoras finalizadas no sistema Dolby Estéreo 28. Jacques Tati foi um dos grandes pioneiros dessa técnica, descrita assim por Michel Chion: A impressão geral de fluxo sônico contínuo por parte do espectador não resulta de características de edição e mixagem concebidas separadamente, mas sim da combinação de todos os elementos sonoros. Jacques Tati, por exemplo, usava efeitos sonoros cuidadosamente planejados, gravados separadamente e depois inseridos no continuum da trilha sonora em pontos específicos. Caso ouvidos isoladamente em sucessão, eles resultariam numa trilha sonora fragmentada e cheia de interrupções, se não fosse pelo uso de um background sonoro contínuo que amarrasse todos os demais elementos numa massa sonora única. (CHION, 1994, p.46). Já vimos um exemplo do funcionamento dessa técnica na seqüência do trielo. Naquela cena, é possível ouvir dois grupos de sons, entre os quais se destaca claramente o grasnar do corvo – uma ave de mau agouro – acima de todos os outros sons que compõem a primeira parte da seqüência. Isso quer dizer que o corvo está mais próximo dos pistoleiros do que os outros pássaros, e é por isso que o ouvimos mais claramente. Uma das principais funções da equalização do volume dos vários sons de uma cena é exatamente essa: estabelecer, de forma sutil, as relações espaciais entre todos os elementos que constituem o espaço fílmico da cena. No entanto, é possível argumentar que Leone tinha outro objetivo ao estruturar assim o som dos pássaros. Para criar ambiência e tridimensionalidade, ele obteria um resultado mais eficiente se procurasse inserir os sons de cada pássaro em diferentes faixas de freqüência sonora. Assim, os espectadores ouviriam uma trilha mais complexa; seus aparelhos auditivos seriam capazes de calcular instintivamente a distância e a direção de cada animal em relação 28 O sistema Dolby Estéreo (1975) permitiu que cineastas passassem a finalizar o som dos filmes em até quatro canais. O Dolby Estéreo alcançou popularidade a partir de Guerra nas Estrelas (Star Wars, George Lucas, 1977), tornando-se o sistema de projeção de áudio padrão em todo o mundo (SERGI, 2004). 248 ao ponto de escuta. Nesse caso, no entanto, seria perdido o efeito emocional obtido com o grasnar do corvo. Se Leone faz o grasnado sobressair acima de uma massa indistinta de cantos de vários outros pássaros, o faz porque sabe que esse som particular exerce um efeito de percepção no espectador mais importante para a narrativa do que os sons dos demais pássaros. Leone também realizou experiências com o uso criativo de sons fora do quadro para impulsionar a narrativa sem a necessidade do uso de diálogos. Um exemplo dessa técnica pode ser encontrado numa cena de três minutos e 19 segundos (199 segundos) de Três Homens em Conflito. A cena consiste de uma montagem intercalada de três ações distintas: enquanto uma parada militar cruza a cidade, Blondie limpa o revólver num quarto de hotel, e três bandidos contratados por Tuco se aproximam do quarto para matá-lo. Leone narra as três ações sem diálogos, usando a montagem paralela e os sons. A cena começa com Blondie limpando seu revólver (figura 3.161). A condição em si adiciona tensão extra à cena, pois compreendemos que ele não terá condições de reagir ao ataque que virá. Podemos ouvir os ruídos produzidos pela pequena vassoura com que ele tira a poeira da arma (ou seja, os sons são amplificados artificialmente); ao fundo, em segundo plano sonoro, ouve-se os ruídos produzidos pela parada militar. Leone corta para o desfile (figura 3.162). O som que estava em segundo plano, na tomada anterior, eleva-se sincronicamente ao primeiro plano. O corte seguinte mostra a terceira ação simultânea: os pistoleiros sobem as escadas para ir até o quarto onde está Blondie (figura 3.163 e 3.164). O som do desfile volta a ficar em segundo plano; esse som tem grande importância na cena, pois é o elemento responsável por interligar no tempo e no espaço as três ações que estão sendo representadas em paralelo. Mas os sons em primeiro plano agora consistem nas pancadas das botas nos degraus. Leone repete a mesma seqüência de cortes, enfatizando a aproximação dos bandidos (figura 3.165, 3.166, 3.167 e 3.168). É importante observar como ele amplia o suspense recorrendo à fragmentação do espaço fílmico através dos close-ups extremos: rostos, botas, revólveres, patas de cavalo (no desfile). Os sons produzidos por esses objetos são ouvidos em volume amplificado. O espaço fílmico é extraordinariamente fragmentado, mas o espectador jamais se sente desorientado, por causa da mixagem consistente do som: o barulho do desfile militar dá unidade aos close-ups. No exato momento em que o primeiro dos três bandidos chega à porta do quarto, os militares obedecem a uma ordem do comandante e interrompem a marcha por um instante 249 Figura 3.161: O plano inicial da cena mostra Blondie limpando o revólver, o que acentua o suspense: a platéia não sabe se ele terá tempo de reagir ao ataque. Figura 3.162: Fora do hotel, um desfile militar produz os sons do ambiente (passos, galopes, carruagens) que providenciará unidade temporal e espacial à cena. Figura 3.163: Dentro do hotel, os três bandidos começam a subir as escadas para emboscar Blondie: sons de botas aparecem em primeiríssimo plano ... Figura 3.164: ... enquanto continuamos a ouvir, em segundo plano, os sons ritmados e contínuos do desfile militar; os bandidos se aproximam cada vez mais ... Figura 3.165: ... enquanto Blondie, sem saber do perigo que corre, continua limpando o tambor do revólver; Leone fragmenta o espaço fílmico através de close-ups. Figura 3.166: A cavalaria agora passa em frente ao hotel, e os ruídos produzidos pelos cavalos e pelos soldados ficam mais nítidos: perigo maior para Blondie. Figura 3.167: O bandido pára de caminhar e olha para frente, focalizado em close-up extremo: ele chegou ao destino, fato confirmado pelo plano seguinte, ... Figura 3.168: ... um close-up que focaliza o número do quarto onde o espectador sabe que Blondie está hospedado; os ruídos da tropa dominam a trilha sonora. Figura 3.169: O desfile pára diante do hotel; o súbito silêncio atrapalha os planos dos bandidos, que deixam de contar com a “cobertura” sonora para atacar. Figura 3.170: Como reação instantânea, os três pistoleiros deixam de se mover, mas o movimento dos pés faz a espora da bota de um deles tilintar ... 250 Figura 3.171: ... num ruído suave que alerta Blondie; focalizado em close-up extremo, ele ergue os olhos com as sobrancelhas arqueadas, em sinal de alerta. Figura 3.172: O silêncio momentâneo é quase total; só se pode ouvir, ao longe, ruídos de explosões causadas pela guerra; os bandidos aguardam para atacar ... Figura 3.173: ... enquanto Blondie acelera o processo de remontar o revólver, num close-up acentuado pelos cliques das peças de metal em volume amplificado. Figura 3.174: Após uma ordem do comandante, o desfile militar reinicia, criando uma nova sinfonia de ruídos e funcionando como “deixa” para o ataque. Figura 3.175: Em close-up, um dos bandidos aproxima a mão do trinco da porta; um crescendo de violinos acentua a tensão, pois não sabemos se Blondie reagirá. Figura 3.176: Os bandidos entram no quarto e são alvejados por três tiros; Leone filma a tomada em composição recessiva com profundidade de campo. Figura 3.177: Em seguida, num plano médio, Blondie ergue-se – sinal de que agora ele tem o domínio da cena – e explica: o tilintar da espora lhe serviu de alerta. Figura 3.178: Em seguida, ele atira a queima-roupa no bandido ferido e desarmado, rompendo o código de honra característico do western norte-americano. (figura 3.169). Os outros bandidos que se aproximam param, mas um deles dá um ligeiro passo à frente, produzindo um leve tilintar da espora (figura 3.170). Esse pequeno ruído, normalmente imperceptível, é mostrado de forma intensificada, em primeiro plano sonoro, o que assinala sua importância narrativa para a cena; diegeticamente, ele se torna perfeitamente audível devido ao contraste com o súbito silêncio provocado pela interrupção do desfile militar. A audição deste som é resultante de contexto e preparação adequados. 251 O ruído alerta Blondie para a situação – e o espectador compreende que ele percebeu porque, assim que o tilintar da espora é ouvido, Leone corta para um close-up extremo que o mostra erguendo o olhar, as sobrancelhas arqueadas em sinal de alerta (figura 3.171). Então os cortes se aceleram. Ouve-se apenas o sopro do vento e, bem ao longe, ocasionais explosões que nos lembram da guerra em andamento. O silêncio acentua a gravidade da situação. Os bandidos esperam (figura 3.172). Blondie acelera o processo de remontar as peças do revólver e carregá-lo com balas (figura 3.173). O desfile militar é retomado (figura 3.174). Os passos e galopes são ouvidos novamente, interrompendo o silêncio. Os bandidos estão prontos para atacar, e se aproximam da porta do quarto (figura 3.175). Nesse ponto, Sergio Leone recorre a uma convenção de filmes de suspense, que ocasiona o que Michel Chion (2009, p. 477) chama de “efeito empatético” (um “efeito criado pela música que está em harmonia com o clima emocional da cena”): inclui um cue musical simples, um crescendo de violinos, para acentuar ainda mais o suspense. Quando a porta do quarto é aberta, Leone corta para uma composição recessiva: o revólver de Eastwood em primeiríssimo plano, os bandidos espremendo-se na porta ao fundo (figura 3.176). O herói atira três vezes; sincronicamente, a música pára (figura 3.167). Blondie atira a queima-roupa (figura 3.168) em um dos bandidos que ficou ferido. No que se refere à construção da trilha sonora, é importante atentar para o cuidado com que os ruídos (as botas, a espora, os sons do desfile, o revólver) foram intensificados e orquestrados de forma a guiar a percepção das imagens por parte do espectador, eliminando assim a necessidade do uso de diálogos explicativos para a apreensão da história. Embora mantivesse como princípio estético o uso de sons provenientes da diegese, Leone não hesitava em violar esse princípio, se a maneira mais eficiente de expressar uma idéia através dos sons o pedisse. Há uma cena de Era uma Vez no Oeste em que o diretor utiliza um som externo à diegese para expressar a vida interior de um personagem através da adição desse ruído extra-diegético. A cena é protagonizada por Morton (Gabriele Ferzetti). O sonho da vida dele é finalizar uma ferrovia que corte os Estados Unidos de costa a costa. Perto do final do filme, ele está preso dentro de seu próprio trem de luxo, guardado por pistoleiros. Ele olha para um quadro que mostra as ondas do oceano. Usando o zoom, Leone corta entre o quadro e os olhos dele, marejados de lágrimas (figuras 3.179, 3.180, 3.181 e 3.182). Quando Morton começa a fitar o quadro, todos os sons diegéticos desaparecem. Ouvimos apenas o barulho ritmado das ondas do oceano. Este som, claro, não é diegético; a cena acontece no meio do deserto do Arizona. O som das ondas é aquilo que Chion denomina 252 Figura 3.179: Deprimido, Morton caminha pelo trem onde é prisioneiro; de repente, ele pára de andar e olha para a esquerda, olho fixo num ponto fora do quadro. Figura 3.180: O contra-plano indica que ele observa uma pintura do mar; a banda sonora exclui os sons diegéticos e passamos a ouvir apenas o ruído de ondas. Figura 3.181: O close-up extremo que focaliza os olhos de Morton esclarece: o ruído das ondas traduz em sons o desejo/sonho do empresário, que é ver o mar. Figura 3.182: Em seguida, a câmera faz um zoom dentro do quadro, como se as ondas estivessem olhando de volta para o empresário: ele decide se rebelar. de “som interno subjetivo” (CHION, 1994, p. 76): um ruído que traduz o sentimento que está se passando no interior do personagem. O som das ondas expressa a intensa emoção experimentada pelo empresário (uma emoção acentuada pelo uso do zoom e pelos olhos marejados). Somente ele está “ouvindo” aquele som. Quanto olha para frente, Morton tem outra postura. O som das ondas vai sumindo devagar; a mixagem indica que ele estava perdido em pensamentos, mas retorna agora ao mundo real, e os ruídos da diegese – o resfolegar do trem, a algazarra dos pistoleiros – retornam, criando ambiência e pontos de sincronismo. O ato de olhar para aquele quadro provocou no empresário uma mudança de atitude. Ele está mais confiante. No que se refere ao desenho de som, o momento mais famoso de Leone é a cena de abertura de Era uma Vez no Oeste. São 15 minutos e 39 segundos praticamente sem palavras e sem música, uma sinfonia de ruídos amplificados. A metáfora da sinfonia é pertinente, uma vez que a idéia dos ruídos diegéticos veio de Ennio Morricone, que chegou a escrever música para a cena, mas sugeriu que os ruídos acentuariam melhor a monotonia dos pistoleiros que aguardam a chegada de um trem na estação de Flagstone. A cena começa dentro da estação. A porta enferrujada abre devagar; passos produzem o ruído ritmado de botas batendo na madeira. Os planos-detalhes iniciais, que não permitem ver o local (figuras 3.183 e 3.184), e os ruídos amplificados preparam os sentidos do espectador para descobrir o lugar através dos sons. Eles permitem que a platéia organize mentalmente o espaço fílmico, mesmo aquele que está fora do quadro. 253 Existem dois grupos de sons que se pode ouvir ao longo desse trecho inicial: o primeiro é formado pelos ruídos produzidos pelas pessoas dentro da estação (passos, abrir e fechar de portas, giz raspando o quadro negro); o segundo é constituído por uma miríade de sons que caracterizam o ambiente externo como um espaço vasto e vazio: um moinho enferrujado, o vento, galinhas, um cachorro, um canário, uma goteira, o zumbido de uma mosca e uma coleção de pequenos ruídos que, intensificados, contribuem para dotar o espaço fílmico de uma qualidade aural quase viva. Esse conjunto de sons possui duas funções. A primeira é a já citada caracterização da monotonia. Esta tem uma relação com o recurso estilístico do alusionismo: o esqueleto narrativo da cena é uma alusão a Matar ou Morrer (High Noon, Fred Zinnemann, 1952), em que a mesma situação dramática (três pistoleiros esperam a chegada de um trem) é encenada. A segunda função é auxiliar o espectador a explorar o ambiente de forma sensorial, experimentando uma imersão no local. Os sons incluem as brincadeiras de um dos pistoleiros com um canário numa gaiola (figura 3.187), a risada nervosa do vendedor de bilhetes (figura 3.188), e a fuga barulhenta da índia que trabalha no local (figura 3.189). Instalados na estação, os pistoleiros procuram atividades para preencher o tempo. Um deles caminha pela plataforma (figuras 3.190 e 3.191) e se posta abaixo da caixa d’água (figura 3.192). Ele está sob uma goteira (figura 3.196); coloca o chapéu e acompanha o ruído ritmado da água, que cria uma espécie de melodia percussiva (figura 3.197). Outro pistoleiro anda até o coche onde os cavalos bebem água (figura 3.193). Ele brinca com a água e estalar as juntas dos dedos (figura 3.198), criando uma segunda linha rítmica percussiva. Esses ruídos se sucedem mecanicamente, lembrando o tique-taque dos pontos do relógio, o que reforça ainda mais a idéia de monotonia. O terceiro pistoleiro põe o chapéu sobre os olhos, mas não consegue dormir (figura 3.194), pois os ruídos o impedem. Primeiro, um telégrafo soa logo ao lado dele, que arranca os fios (figura 3.195). Depois, uma mosca pousa em seu rosto e passeia sobre ele (figura 3.199), enquanto o homem tenta espantá-la soprando com a boca. Quando ele finalmente se irrita e resolve a situação, prendendo a mosca com o cano do revólver (figura 3.190), ouve-se o apito de uma locomotiva. O trem está por chegar (figura 3.191). A espera terminou. Durante esse segundo trecho, a edição de som é planejada para guiar a percepção do espectador de diferentes maneiras. Em primeiro lugar, é claramente perceptível a criação de padrões rítmicos minimalistas, para exprimir a sensação de monotonia. Cada pistoleiro está às voltas com seu próprio padrão rítmico: a goteira, os estalos dos dedos, o zumbido da mosca. 254 Figura 3.183: Após o rangido que demarcou a abertura da porta da estação ferroviária, vemos apenas um par de botas, que fecham a porta com um movimento. Figura 3.184: Um plano-detalhe destaca a arma e as balas na cintura do homem que acaba de abrir a porta: a informação visual indica que se trata de um pistoleiro. Figura 3.185: Um plano médio do bilheteiro, intimidado pela sombra do invasor (à esquerda), revela o interior do prédio; o som de outra porta abrindo indica que ... Figura 3.186: ... o pistoleiro não está sozinho; em primeiro plano, um segundo pistoleiro aparece em outra porta; um terceiro invasor aparece em seguida ... Figura 3.187: ... e começa a brincar com o pássaro cujo canto domina a sinfonia de ruídos, assustando-o com barulhos produzidos pela boca e fazendo-o se calar. Figura 3.188: O bilheteiro, focalizado em close-up extremo, pede que os homens esperem; ele é trancado no banheiro sem que os pistoleiros digam nada. Figura 3.189: Enquanto isso, a índia que trabalha no lugar foge correndo, os pés levantando poeira e produzindo barulho; é possível ouvir galinhas ali perto. Figura 3.190: Os pistoleiros saem do prédio da estação para a plataforma de madeira velha; o ranger ritmado e monótono de um moinho prepara o corte para ... Figura 3.191: ... um plano geral em que o moinho serve como moldura da ação principal – o pistoleiro caminhando – vista em profundidade de campo. Figura 3.192: O pistoleiro que caminhava posta-se embaixo da caixa d’água, com a ferrovia em segundo plano; o ruído do moinho agora está mais distante ... 255 Figura 3.193: ... mas o ritmo monótono dos rangidos agudos proporcionam senso de continuidade à cena, cujas tomadas fragmentam todo o espaço fílmico. Figura 3.194: Outro pistoleiro tenta cochilar, com a caixa d’água e o moinho atrás; o ruído de um telégrafo começa a ser ouvido em primeiro plano sonoro ... Figura 3.195: ... e então o telégrafo aparece no primeiro plano da imagem, situado logo ao lado do pistoleiro, que demonstra irritação com a interrupção do cochilo. Figura 3.196: Um close-up introduz outro personagem, que começa a ouvir o ruído próximo de uma goteira, certamente caindo da caixa d’água logo acima ... Figura 3.197: ... e então Leone revela, num planodetalhe, a origem do ruído, com as gotas d’água se formando lentamente, o que enfatiza a monotonia. Figura 3.198: Sentado junto ao coche dos cavalos, o terceiro pistoleiro brinca com a água e depois começa a estalar os dedos: uma sinfonia completa de ruídos ... Figura 3.199: ... coroada pelo surgimento de uma mosca, que vem perturbar o cochilo do primeiro pistoleiro; ele tenta soprá-la para longe, sem sucesso ... Figura 3.200: ... até que, num movimento brusco e certeiro, prende o animal com o cano do revólver, no momento exato em que ouvimos o apito do trem ... Figura 3.201: ... que aparece ao fundo da tomada seguinte, uma composição recessiva em profundidade de campo, com nuca de pistoleiro em close-up extremo. Figura 3.202: Leone usa os créditos para criar humor sutil: a aparição do nome dele na tela ‘interrompe’ a marcha do trem, que finalmente pára na estação. 256 Figura 3.203: Pistoleiros aguardam na plataforma: dedos batem no coldre, sonorizando uma composição recessiva com moldura e profundidade de campo. Figura 3.204: Com o trem em movimento, os pistoleiros dão as costas para ir embora; o toque de uma gaita (música diegética) interrompe a trajetória dos três. Figura 3.205: Leone corta para um close-up extremo, a primeira aparição de Harmonica no filme: ele desceu do trem pelo lado oposto, para escapar da emboscada. Figura 3.206: Plano geral enfatiza as relações espaciais entre pistoleiros e Harmonica: a composição recessiva mostra que o confronto está prestes a começar. Figura 3.207: Composição recessiva em profundidade: depois que Harmonica pára de tocar, a melodia continua (extra-diegética), solada por um banjo. Figura 3.208: Mesmo com uma mala na mão esquerda, Harmonica consegue alvejar os três pistoleiros; mas ele cai de costas, criando tensão: será que morreu? Figura 3.209: Leone amplia suspense saindo do cenário do tiroteio e inserindo plano-detalhe do moinho, motivo visual e sonoro mais importante de toda a cena. Figura 3.210: Close-up focaliza o rosto de Harmonica e o herói se movimenta: ele ficou ferido, mas não morreu; o moinho imediatamente para de girar, jogando a cena ... Figura 3.211: ... num silêncio absoluto, enquanto Harmonica se ergue: a interrupção brusca do som dá gravidade ao momento e sugere poder sobrenatural. Figura 3.212: Herói recolhe bagagem e se prepara para ir embora; composição recessiva mostra moinho parado ao fundo, emoldurado por pés e mala do pistoleiro. 257 Há um motivo visual e rítmico que afeta todos os personagens: o rangido do moinho abandonado, que aparece em duas tomadas com destaque (figuras 3.191 e 3.209). O moinho funciona como um relógio e simboliza a passagem mecânica do tempo. O rangido sinaliza que a ação acontece em tempo real, já que é possível ouvi-lo durante toda a cena, com uma breve interrupção (o momento em que o pistoleiro arranca os fios do telégrafo, instante em que o filme adota momentaneamente o ponto de escuta do personagem, para provocar no espectador a percepção da tranqüilidade que ele sente ao quebrar o aparelho e interromper o ruído). Muitas vezes, o som ouvido pelo espectador durante um plano, quase sempre oriundo de algum objeto, animal ou pessoa fora do quadro, chama a atenção para esse novo elemento ainda não visível, que só aparecerá na imagem um pouco depois de ser ouvido, quase sempre no plano seguinte. Nesse caso, a percepção da imagem por parte da platéia é dirigida pela organização (em termos de volume, intensidade e freqüência) dos ruídos ouvidos no plano imediatamente anterior. O público é preparado, no plano anterior, para perscrutar a imagem seguinte e procurar instantaneamente, dentro dela, a fonte da origem daquele novo ruído. Tudo isso é importante nos planos gerais e médios, quando há muitos elementos visuais dentro do quadro, disputando a atenção do espectador. Um bom exemplo está no momento em que os pistoleiros saem para a plataforma da estação (figuras 3.190 a 3.198); há uma seqüência de planos gerais que utilizam esse recurso. Durante o plano que mostra um dos pistoleiros caminhando na plataforma (figura 3.190), a intensidade do som do moinho sobe gradualmente; o plano seguinte mostra o moinho em primeiríssimo plano (figura 3.191). À frente, há um plano do pistoleiro que cochila (figura 3.194), enquanto ouvimos o som (agora longínquo) do moinho. No meio do plano, o ruído frenético do telégrafo (que não está em quadro) ocupa o primeiro plano sonoro; a tomada seguinte mostra o telégrafo em primeiro plano visual (figura 3.195). Logo em seguida, enquanto o terceiro pistoleiro está parado sob a caixa d’água, o público ouve uma goteira fora de quadro (figura 3.196); o plano seguinte localiza a goteira em um ponto exatamente acima da cabeça do pistoleiro (figura 3.197). Por fim, o apito da locomotiva é ouvido enquanto vemos um close-up extremo de um pistoleiro (figura 3.200), mas o trem só aparece no plano seguinte (figura 3.201). Em todos esses casos, é sempre o som oriundo de um elemento fora do quadro que guia a atenção do espectador para determinado ponto ou aspecto da imagem que aparecerá no quadro seguinte. O uso de sons fora do quadro é, junto à análise da música, um dos aspectos mais abordados dentro da área de estudos do som cinematográfico (CHION, 1994, p. 73). A cuidadosa construção sonora dessa cena reafirma o potencial criativo dos sons fora de quadro. Trata-se da técnica desenvolvida por Jacques Tati e Robert Bresson – efeitos sonoros 258 organizados e inseridos dentro de uma paisagem sonora contínua que dá unidade à trilha sonora – acrescida de um elemento novo: o silêncio, nesse caso usado para dar ênfase emocional à idéia de monotonia. Esse senso de monotonia só é possível de conseguir através de uma técnica especificamente criada para expressar o silêncio: Outra maneira de expressar o silêncio (...) consiste em expor o ouvinte a ruídos. Refiro-me a tipos sutis de ruídos, como o tique-taque de um relógio, associados normalmente a ambientes tranqüilos e silenciosos. Esses elementos normalmente não atraem atenção das pessoas; não seriam sequer audíveis se os outros sons (tráfico, conversas, local de trabalho) não fossem eliminados. (CHION, 1994, P. 57). É esse o caso da cena. Leone gera a percepção de monotonia ao deixar o espectador ouvir ruídos que ele normalmente não ouviria: uma mosca, o estalar de dedos, o telégrafo, o moinho, o vento, etc. Momentos de silêncio como esse são comuns também nas cenas que antecedem duelos e confrontos decisivos, em todos os filmes de Leone. Nesse caso, expressam não a idéia de monotonia, mas o modo de percepção aguçada de um ser humano que está exposto a um grande perigo. Nesses momentos, somos capazes de ouvir até os menores ruídos. A audição, como afirma Chion, é um sentido igualmente relacionado ao ouvido e à mente. Leone explica assim o uso do silêncio em seus filmes: Aos poucos, fui notando que todos os diretores de quem eu gostava eram parecidos em sua obsessão pela velocidade. Eles instruíam os atores a acelerar suas falas até o ponto em que você mal conseguia distinguir as últimas sílabas de uma frase das primeiras sílabas da próxima. Nunca havia o menor intervalo para mostrar que talvez a pessoa quisesse pensar antes de responder. Eu não concordava com esse sistema, achava-o muito artificial. O senso de ponderação antes de uma resposta era algo que só conseguia encontrar no cinema japonês. Durante muito tempo, quis dar aos meus filmes esse ritmo. (LEONE, 2000, p. 291-292). Analisando-se essa passagem, é possível encontrar duas características fundamentais para a construção desse recurso estilístico. Em primeiro lugar, é nítida a influência do neorealismo: a hesitação antes de uma resposta faz parte da realidade física e emocional de uma conversa, e a eliminação dessas pausas dá aos diálogos da maioria dos filmes de ficção um senso de artificialidade. A segunda característica é a necessidade de afirmação autoral, realizada através da revisão crítica das convenções de gênero (nesse caso, os diálogos em velocidade acelerada, característicos dos filmes de Hollywood nas décadas de 1930 e 1940). Na segunda parte da cena, a tomada que mostra a chegada do trem (figura 3.202) consiste num dos momentos de ironia em que Leone brinca com seu próprio nome: a linha de 259 crédito que nomeia Leone como diretor ‘interrompe’ a trajetória da locomotiva, como se fosse um freio. Os três pistoleiros, calculadamente dispersos, aguardam o desembarque de alguém. Leone encena essa espera com close-ups e planos-detalhes das mãos perto das armas (figuras 3.203), em composições recessivas. O resfolegar do trem proporciona o senso de continuidade temporal (criado pelo moinho antes de o trem chegar); os ruídos naturais amplificados (passos, dedos batendo nos coldres) acentuam a tensão e fornecem pontos de síncrese. O apito do trem anuncia a partida; sem que ninguém houvesse desembarcado, os pistoleiros dão as costas (figura 3.204). Nesse exato momento, ouve-se uma nota musical executada por uma gaita; por um instante, o espectador é levado a imaginar que este som específico é extra-diegético. Então os personagens param. Eles ouviram a gaita. Só então percebemos que a música é diegética, executada por um personagem fora do quadro; trata-se de uma brincadeira de Leone com uma convenção musical, produzindo o equivalente sonoro à técnica do trompe l’oeil (uma técnica que Michel Chion denomina trompe l’oreille, ou ‘enganar o ouvido’). Esse som traz consigo a tomada seguinte, que mostra Harmonica, o passageiro aguardado (figura 3.205). Ele continua a tocar, enquanto os pistoleiros o encaram (figuras 3.206 e 3.207). Segue um breve diálogo; depois que Harmonica começa a falar, a melodia continua a ser ouvida (em segundo plano sonoro, executada por um banjo em staccato, acompanhado de guizos); ou seja, a música passou de diegética a extra-diegética (nesse caso, obedecendo à tradição clássica da inaudibilidade da música, já que o espectador não se dá conta dessa transição). Após o tiroteio (figura 3.208), o ruído do moinho (figura 3.209) é elevado ao primeiro plano sonoro. Harmonica caiu, junto com os três pistoleiros (figura 3.210). Após o próximo corte, ele se levanta (figura 3.211). Exatamente ao mesmo tempo em que a platéia descobre que Harmonica está vivo, o moinho pára de se mover. O silêncio domina a cena (o sopro do vento também é interrompido, o que justifica diegeticamente a interrupção do ruído do moinho). Harmonica se ergue, com o moinho visível em segundo plano (figura 3.212). A idéia da cena surgiu numa conversa entre Leone e Morricone. O último contou que havia ido a um concerto concretista em Florença, em que o artista havia entrado no palco com uma escada e, diante de uma platéia quieta, passara vários minutos arranhando e batendo nela. Durante a conversa, Morricone começou a filosofar: “qualquer som do cotidiano, retirado de seu contexto e isolado pelo silêncio, se torna algo indefinível e diferente, algo que não faz parte de sua natureza intrínseca” (MORRICONE, 2000, p. 283). Essa idéia, oriunda da música concreta, é uma de suas marcas mais reconhecíveis como compositor: 260 Expandindo os limites daquilo que o público e os produtores estavam prontos a aceitar, ele introduziu harmonias corajosas e sonoridades incomuns. Seu maior talento estava na arte de escolher tons agradáveis ao ouvido e mixar instrumentos tradicionais a sons inesperados, às vezes originados do folclore italiano, outras vezes escolhidos entre sons produzidos por objetos cotidianos que eram retirados de sua função primeira, como uma xícara ou uma máquina de escrever. (EHRESMANN, 2009). Morricone tentava introduzir elementos da música concreta, nos filmes em que trabalhava, desde 1962. Sua primeira experiência consistiu em um arranjo para uma canção folk. Foi a gravação que sedimentou a parceria com Leone. A música tinha uma letra que falava sobre a saudade de um homem pela cidade de origem. A fim de evocar na música a nostalgia sugerida pela letra, Morricone havia incorporado sons da vida rural ao arranjo. Também havia incluído um coro vocal masculino e fraseados de flauta doce, lado a lado com melodias soladas numa guitarra elétrica Fender Stratocaster. A justaposição de flauta e guitarra criava uma tensão extra, já que a primeira é um instrumento normalmente usado para sugerir uma presença rural, enquanto a segunda constitui obviamente uma sonoridade urbana. Leone gostou do conceito. O tema de Por um Punhado de Dólares derivou dessa composição, acrescida de chicotadas, badalos de sino, batidas de martelo, tiros e galopes de cavalo, além da melodia assobiada (ao invés de cantada). Nesse ponto, a influência da música concreta, através de Morricone, foi determinante para a revisão desse esquema operada por Leone. Além disso, do ponto de vista do diretor, é também importante associar a incorporação de sons da diegese dentro da música à influência indireta do neo-realismo. O que Leone estava buscando era uma música que tivesse algum tipo de conexão com o verdadeiro Velho Oeste; ou seja, que traduzisse para o reino da música a verossimilhança das imagens. Já vimos: a música que se ouvia no Velho Oeste, no século XIX, era rústica: canções nostálgicas de imigrantes. Eram acompanhadas por violino caipira e berimbau de boca. Rodas de violão e gaita, e bares com pianos, que evocam hoje a imagem que temos daquela época, consistem de uma convenção criada pelos westerns americanos. Esses instrumentos só se tornariam populares entre o final do século XIX e o início do século seguinte. Nosso imaginário associa o Velho Oeste a esses instrumentos graças ao retrato historicamente incorreto que Hollywood fez da música popular do período (BUSCOMBE, 1988, p. 193-194). O que a parceria propunha era uma síntese: nem música caipira (rústica demais), nem música concreta (moderna demais), nem orquestrações neo-românticas (que suavizavam a brutalidade do ambiente diegético). Por um lado, Morricone introduziu inovações, como sons da diegese dentro dos arranjos; e, por outro, manteve elementos da música cinematográfica 261 clássica: arranjos que enfatizavam cordas (violino, violoncelo) e madeiras (flauta, oboé), e recursos narrativos que propunham alto grau de sincronização entre as bandas sonora e visual, tais como leitmotivs, ostinati e mickeymousing 29. Não custa lembrar que esses recursos estavam a serviço de uma música feita para ser ouvida no plano consciente pelo espectador. Desde Por um Punhado de Dólares, Morricone partiria sempre dos mesmos elementos para construir a música dos filmes de Leone: instrumentos exóticos, como ocarina e oboé (Três Homens em Conflito), celesta e berimbau de boca (Por uns Dólares a Mais); ruídos da diegese usados como elementos rítmicos ou harmônicos; estruturas simples de música pop (versos e refrões); instrumentos populares nos anos 1960 (guitarra, piano elétrico, bateria); e sincronia entre música e montagem, inclusive com música composta antes das filmagens. A última característica da música de Morricone para Leone são os degüellos antecedendo os duelos. Já analisamos a música de um desses momentos (o trielo de Três Homens em Conflito). Do ponto de vista da composição musical, entretanto, o mais interessante degüello de Morricone está em Por uns Dólares a Mais. A música é ouvida durante o confronto entre o Coronel Mortimer e El Indio, numa arena circular de pedra das quais Leone tanto gostava. Nosso foco de interesse está no jogo entre os sons diegéticos e extra-diegéticos que constituem a composição musical, chamando a atenção do espectador para a música e contribuindo, junto com a fragmentação do espaço fílmico em close-ups extremos e planos-detalhes, para a sensação de que a cena se passa mais lentamente, como se deslocada para outra dimensão espaço-temporal, onde o tempo passa mais devagar. A cena começa com uma composição recessiva (figura 3.213). O vilão tem o controle da cena, pois está armado, enquanto a pistola do adversário está no chão. Na banda sonora, ouve-se apenas o sopro do vento e o tilintar das esporas do vilão. El Indio puxa um relógio de bolso (figura 3.214). É um ritual particular que o espectador já conhece: antes de enfrentar um adversário, ele dá corda no relógio e avisa que podem atirar assim que a campainha parar. A melodia da caixa de música é o leitmotiv de El Indio; nós a ouvimos, os pistoleiros também. Música diegética. É uma celesta. Eles se encaram; Mortimer é mostrado num closeup (figura 3.215), a música soando em primeiro plano sonoro. Então, algo estranho acontece: ao olhar para a fotografia no relógio, El Indio percebe a semelhança física da dona do objeto com o coronel. Um zoom focaliza o rosto dele em close-up extremo (figura 3.216). 29 Um leitmotiv consiste num fraseado ou trecho melódico associado a personagem, local ou situação dramática; um ostinato é uma figura rítmica ou melódica repetitiva, usada para dar dinâmica a cenas com visual monótono; mickeymousing é como ficou conhecida em Hollywood a técnica de sincronizar trechos musicais e movimentos dos personagens (GORBMAN in HILL; CHURCH GIBSON, 1998, p. 45). 262 Sincronicamente, ao aumento da nuance dramática da cena, corresponde uma alteração na execução da melodia: a celesta diegética, antes ouvida na textura sintetizada de um relógio mecânico (ou seja, destituída das freqüências mais altas e baixas), ganha o acompanhamento de uma orquestra de cordas, os violinos – obviamente extra-diegéticos – adicionando lirismo à música. De repente, a reverberação que ouvíamos junto à melodia do relógio (diegeticamente executada num espaço aberto) desapareceu. A alteração quase imperceptível na textura do som sinaliza que, a partir daí, a música está tocando dentro das cabeças dos personagens. A função da orquestra é sublinhar a torrente de sentimentos que invadem os adversários, agora que ambos reconhecem uma motivação extra, pessoal e emocional. Leone acentua a percepção de reconhecimento, por parte de El Indio, justapondo mais duas composições simétricas recessivas (figuras 3.217 e 3.218), a primeira delas centralizando o relógio de bolso na mão dele. A melodia diegética do relógio começa a se tornar mais lenta, um sinal de que a corda está acabando (ou seja, o tiroteio está para começar). A orquestra desaparece suavemente, ao mesmo tempo em que o eco agregado à celesta retorna. O momento emocional passou; a percepção cognitiva de ambos agora está voltada exclusivamente para o momento do duelo. Tudo isso é comunicado ao espectador pelo jogo diegético envolvendo a música, as características físicas do som e seu casamento com as justaposições de planos e os movimentos de câmera. O enquadramento com moldura que mostra o relógio centralizado, na mão de El Indio, faz uma rima com o plano que introduz o personagem de Clint Eastwood na cena (figura 3.219). Trata-se de uma composição recessiva que investe no trompe l’oeil. Monco aparece na arena sem que os dois adversários tenham percebido sua chegada. A chegada de Monco demarca nova alteração na música. A orquestra retorna para assinalar o final da melodia do relógio com um crescendo de cordas que forma um grande acorde em uníssono. A música é reiniciada logo depois num arranjo inteiramente diferente: violão flamenco e castanholas fazem floreios e se mesclam em intervalos regulares à celesta do relógio. Dessa maneira, o compositor insere o tema de El Indio dentro de um dos tradicionais degüellos tão adorados por Sergio Leone. Do ponto de vista da emoção, esse trecho (em que mudam a dinâmica e o arranjo da composição) assinala um interlúdio. El Indio não está mais em vantagem. A presença de Monco garante que isonomia ao duelo entre os dois adversários. Uma vez que isso está estabelecido, o que Leone enfatiza recorrendo a um plano geral aberto (figura 3.222) que aponta a simetria dos três personagens dentro da arena circular, bem como a disposição de Monco para não participar do acerto de contas, o duelo está para começar. 263 Figura 3.213: Desarmado, Mortimer aguarda El Indio dentro da arena de pedras de Agua Caliente: composição com moldura em profundidade de campo. Figura 3.214: A banda sonora (vento, tilintar das esporas de El Indio) ganha o acréscimo de música diegética: o relógio toca melodia melancólica executada por celesta. Figura 3.215: A celesta sublinha o close-up do Coronel Mortimer, com expressão neutra; optando de novo pela simetria, Leone corta para um close-up de El Indio ... Figura 3.216: ... e a câmera faz um zoom para frente, enquanto o vilão observa a semelhança entra o rosto da mulher no relógio e a figura do Coronel Mortimer, ... Figura 3.217: ... semelhança acentuada pela composição com moldura em profundidade que centraliza o relógio, tornando-o o motivo visual mais fundamental da cena. Figura 3.218: Violinos se juntam à celesta, que perde a textura mecânica: agora a música ecoa na cabeça dos personagens (é tanto diegética quanto extra-diegética). Figura 3.219: A entrada em cena de Monco ocorre num trompe l’oeil (ele aparece sem aviso) e evoca visualmente o plano 3.183 (com o relógio centralizado). Figura 3.220: O terceiro personagem se junta ostensivamente a Mortimer, o que Leone sinaliza reunindo os dois num único plano médio, deixando ... Figura 3.221: ... El Indio sozinho do outro lado da arena circular; o plano médio, simétrico, expressa a igualdade de forças, agora que os duelistas têm condições iguais. Figura 3.222: Monco se afasta para observar o duelo, num plano geral bem aberto; a música se transforma num jogo entre a celesta do relógio (diegética) ... 264 Figura 3.223: ... e um arranjo com violão flamenco e castanholas (extra-diegética) em contraponto; ao primeiro plano geral de Mortimer corresponde ... Figura 3.224: ... um plano geral idêntico, em contraplano, de El Indio; a encenação aproxima aos poucos a câmera dos atores, mas sem esquecer a simetria, ... Figura 3.225: ... manifestada tanto nos ângulos idênticos de câmera (caso dos close-ups) quanto na duração igual dos planos dedicados a mostrar cada um dos duelistas. Figura 3.226: Quando os personagens passam a ser filmados em close-ups, a composição ganha um solo de trompete mariachi: o típico degüello de Leone, ... Figura 3.227: … só que exibindo em contraponto a melodia diegética da celesta do relógio, que é executada mais devagar à medida que a corda vai terminando. Figura 3.228: A velocidade mais lenta de execução indica que o duelo está mais perto de acontecer, já que os pistoleiros podem atirar assim que a música parar. Figura 3.229: Entre os close-ups extremos dos dois pistoleiros, Leone insere close-ups de Monco, cigarro na boca, que assiste sentado e impassível ao duelo. Figura 3.230: Composição recessiva com moldura (Mortimer) em profundidade de campo quebra simetria da montagem, até então respeitada escrupulosamente. Figura 3.231: A melodia da celestra fica lenta, quase parando; plano-detalhe mostra a mão de El Indio se movimentando nervosamente em direção ao revólver ... Figura 3.232: ... mas o Coronel Mortimer, ficalizado num plano-médio em contraluz, consegue atirar primeiro: não há mais música diegética nem extra-diegética. 265 Figura 3.233: O impacto da bala joga El Indio para trás; a trilha sonora agora consiste apenas do sopro forte do vento e dos ruídos produzidos pelo vilão, que ... Figura 3.234: ... se arrasta no chão da arena, tentando alcançar o revólver, sob os olhares de Monco e Mortimer, este último pronto para atirar novamente. Figura 3.235: No mesmo instante em que consegue empunhar a arma de novo, El Indio inclina a cabeça e morre; não é necessário um segundo tiro do adversário. Figura 3.236: Monco mastiga o cigarro tranqüilamente e felicita o vencedor com um toque de humor negro e ironia típicos de Leone: “Bravo!”. Fim da cena. Visualmente, Leone encena o duelo recorrendo aos mesmos recursos estilísticos que repetiria mais tarde em Três Homens em Conflito: planos gerais (figuras 3.223 e 3.224), close-ups (figuras 3.225 e 3.226) e close-ups extremos (figuras 3.227 e 3.228), sempre prezando pela simetria (enquadramentos e duração idênticos para os dois duelistas) e pela aproximação sistemática da câmera em relação aos atores. No plano sonoro, a melodia evolui num crescendo e culmina com um solo de trompete escudado por coral masculino. Uma composição recessiva (figura 3.230) demarca uma ruptura na simetria visual (pois não vemos o contra-plano) e sinaliza a superioridade emocional de Mortimer. O solo de trompete é abruptamente encerrado. Voltam o violão flamenco, as castanholas e a caixa de música em contraponto (os dois primeiros saem de cena aos poucos). A melodia do relógio torna-se mais lenta (figura 3.231). Quando a música pára, Mortimer atira primeiro e vence o confronto (figura 3.232, 3.233 e 3.234). Não há mais música; o contraste entre o final do degüello e a súbita escassez de sons produz um efeito de silêncio. Pode-se ouvir apenas o resfolegar da respiração de El Indio, ferido mortalmente (figura 3.235), enquanto Monco, num toque de ironia e humor negro, mastiga o cigarro: “Bravo!” (figura 3.236). O sopro constante do vento e os sons produzidos pelos pistoleiros são os únicos efeitos sonoros remanescentes. Ampliadas ainda mais, todas as características presentes podem ser encontradas na cena da chegada de Tuco ao cemitério, em Três Homens em Conflito. Professores dos cursos 266 de Cinema em instituições de ensino norte-americanas, como a University of Southern California, fizeram seus alunos – entre os quais George Lucas e John Milius – estudarem essa cena detalhadamente, analisando-a plano a plano (FRAYLING, 2005, p. 190). O objetivo era aprender como realizar um casamento sincrônico entre sons e imagens. Foi assim que a continuidade intensificada, nos moldes de Leone, começou a se popularizar entre os diretores dos anos 1970 (e, através desses, entre os cineastas das gerações subseqüentes). Chegamos, então, ao quarto e último recurso recorrente da prática estilística de Leone em relação ao som dos filmes. Embora rara, a prática estilística de buscar a sincronia entre sons e imagens não era exatamente nova nos anos 1960. Em 1940, Sergei Eisenstein já havia teorizado sobre esse recurso dramático, que chamou de “montagem vertical” (EISENSTEIN, 1992, p. 106). Para ele, o cineasta que conseguisse pensar a trilha musical em sincronia com a trilha de imagens seria capaz de unificar dois fluxos de informação em um ritmo único e indivisível, que então seria percebido pelo espectador como um todo mais poderoso: Devemos saber como apreender o movimento de uma determinada peça musical fixando seu caminho (sua linha ou forma) como a base da composição plástica que deve corresponder a música. (EISENSTEIN, 1992, p. 113). Eisenstein era obcecado por sincronia. Ele achava que todo diretor devia perseguir os mais diversos tipos de sincronia na construção da narrativa (entre música e cor, entre composição pictórica e encenação, entre som e enquadramento, entre diálogos e música, etc.). Quem assim o fizesse, estaria montando seu filme de maneira vertical, e não mais apenas horizontal. A montagem vertical dava mais trabalho, mas oferecia uma recompensa àqueles que a praticassem. Usando o vocabulário dos músicos, Eisenstein propôs que as diversas sincronias possíveis entre elementos visuais e sonoros dariam ao filme uma harmonia mais rica e complexa (nesse sentido a justaposição de planos, ou montagem horizontal, funcionaria como a melodia). A prática da montagem vertical elevaria a qualidade artística do filme. No artigo em que criou o conceito, Eisenstein analisa longamente uma seqüência de seu próprio Alexandre Nevsky (Aleksandr Nevskiy, Sergei Eisenstein, 1938) – a batalha sobre o gelo – e explica que a música usada ali foi escrita antes das filmagens por Sergei Prokofiev, compositor com quem trabalhava há vários anos (não parece ser coincidência o fato de que a parceria entre ele e Eisenstein fosse longa; para que a teoria funcionasse na prática, era preciso que um conhecesse bem o outro, como também acontecia com Leone e Morricone). Eisenstein planejara a seqüência de modo que cada compasso da música coincidisse com um corte na imagem, e que cada evolução melódica ou harmônica da composição contemplasse 267 algum movimento (dos atores ou da câmera): “Não podemos negar o fato de que a impressão mais surpreendente e imediata será obtida, é claro, a partir de uma coincidência do movimento da música com o contorno visual” (EISENSTEIN, 1992, p. 115). Antes de Eisenstein, os historiadores do cinema registram apenas uma experiência em que a música de um longa-metragem havia sido composta antes das filmagens: Ama-me Esta Noite (Love Me Tonight, Rouben Mamoulian, 1932), filme sempre citado por estudiosos do som cinematográfico, mas cuja preocupação com a sincronia entre imagens e sons não é tão intensa quanto as proposições de Eisenstein. Esse esquema da relação entre música e imagens não se tornou dominante, talvez porque a arte cinematográfica tenha nascido como a arte das imagens em movimento; subordiná-la a outra arte (a música) não parecia (para muitos, continua não parecendo) correto. Não é possível saber com certeza se Leone estava ciente da teoria de Eisenstein, mas parece bastante claro que as experiências que ele levou a cabo a partir de Três Homens em Conflito, junto com Ennio Morricone, concretizam com precisão as idéias de Eisenstein. E, de todas as cenas dos filmes de Leone que se valem desse esquema, é a chegada de Tuco ao cemitério que as põem em prática de maneira mais relevante. O objetivo dramático da cena é nulo. Ela poderia ser descrita em duas linhas e durar poucos segundos, sem prejuízo à narrativa. Mas foi mantida na edição final para alcançar um efeito de percepção intensificada junto ao espectador, envolvendo-o emocionalmente na busca pelo tesouro e preparando-o para o duelo final; é um momento típico do cinema modernista dos anos 1960, em que a técnica se deixa ver. A cena documenta, em, três minutos e 26 segundos (206 segundos), a frenética corrida de Tuco por entre os túmulos do lugar. Ele tenta encontrar o local exato onde a fortuna de US$ 200 mil está enterrada. A cena é composta por 23 planos, cuja duração média é elevada, para os padrões de Leone: 8,9 segundos. Apesar disso, a cena parece transcorrer com muita velocidade. A razão principal disto é que Leone imprime a sensação de velocidade não através dos cortes rápidos, mas do movimento incessante do personagem – que corre sem parar por entre os túmulos –, da câmera (que gira em velocidade, às vezes transformando os túmulos em um borrão) ou de ambos, ao mesmo tempo. O efeito geral é de pura energia. Leone inicia a cena com um trompe l’oeil. A tomada imediatamente anterior mostrara Tuco mergulhando para frente; o plano seguinte o mostra aterrissando sobre uma lápide (figura 3.237). Seria impossível que ele, correndo em direção ao cemitério, não tivesse visto o mar de túmulos que se estende até o horizonte. 268 No exato instante em que Tuco entra no enquadramento e atinge a lápide, o toque solene de um sino inicia a música. O plano de abertura tem 56 segundos. O pistoleiro contempla o cemitério (figura 3.238). A câmera recua e sobe ao mesmo tempo, em outro plano de grua que faz alusão a E o Vento Levou (1939). Eufórico, Tuco joga fora o mapa que informava a localização do cemitério (figura 3.239) e corre para frente, rumo ao centro (figura 3.240), enquanto a música evolui. A composição musical não se resume a ficar em segundo plano narrativo, pontuando as ações do personagem; torna-se, ela mesma, a razão de a cena existir. Trata-se de uma música feita explicitamente para ser ouvida pelo espectador, arrancando a cena da continuidade cronológica do filme e colocando-a numa dimensão simbólica e emocional. Além disso, a sincronia alcançada entre os cortes, os mais sutis movimentos da câmera e a evolução de melodia e harmonia é minuciosa. A música inicia com uma seqüência de quatro notas, repetida várias vezes, executadas num piano; no exato momento em que Tuco se ajoelha e olha para frente, um oboé começa a solar uma melodia lírica, enquanto uma seção de cordas entra em seguida para completar a harmonia, em segundo plano sonoro. Quando Tuco joga fora o mapa, emite um breve som de satisfação com a boca (podemos ouvir, ainda, o barulho das folhas de papel amassadas). Em contraponto a este grupo de sons diegéticos, Morricone insere um segundo grupo de sons extra-diegéticos: um fraseado percussivo seguido de uma nova badalada do sino, mais forte e prolongada. São duas inclusões simultâneas de elementos diegéticos dentro da composição. A caixa, que introduz a percussão, é um instrumento militar; o sino expressa o simbolismo religioso. Esses sons nos lembram que Tuco está dentro de um cemitério militar. Se prestarmos atenção, ainda podemos ouvir o canto de pássaros em segundo plano. A música faz um novo floreio, enquanto Leone injeta uma dose de ironia e humor negro, fazendo um cachorro entrar em quadro (figura 3.241) – mais um trompe l’oeil. O cão foge com um ganido. São os últimos sons diegéticos que ouvimos na próxima seção da cena, porque no instante seguinte o pistoleiro começa a correr por entre os túmulos. No momento exato em que Tuco começa a correr, dois fenômenos sonoros acontecem: primeiro, todos os sons diegéticos (que ainda podíamos ouvir em segundo plano sonoro) desaparecem; está claro que a cena adota, então, o ponto de escuta subjetivo de Tuco, cuja atenção voltada para a tarefa de encontrar o tesouro afeta sua percepção, desviando-a inteiramente para esse objetivo, de modo que ele deixa de perceber todos os sons do ambiente. A composição de Morricone, nesse sentido, seria uma representação sonora das emoções que ele sente no decorrer da cena. 269 Figura 3.237: No exato instante em que Tuco atinge a lápide, um sino marca o início da música, que segue com um fraseado cíclico de quatro notas ao piano ... Figura 3.238: ... e incorpora um oboé, solando a épica melodia principal, enquanto uma seção de cordas faz a harmonia, a partir do momento em que ele se ergue. Figura 3.239: Eufórico com a descoberta do cemitério, Tuco joga fora o mapa; é possível ouvir o canto dos pássaros, mixado em segundo plano da trilha sonora. Figura 3.240: A câmera se ergue e se afasta do personagem: pastiche do famoso movimento de grua de E o Vento Levou (1939), que Leone repete várias vezes ... Figura 3.241: ... em seus filmes; os ganidos do cachorro negro que entra no quadro por baixo do frame são os últimos sons diegéticos ouvidos nesta parte da cena. Figura 3.242: Quando Tuco começa a correr entre os túmulos, os sons diegéticos desaparecem e uma voz de soprano passa a solar a melodia, dando-lhe um ar sacro. Figura 3.243: Quando Tuco atinge o centro do cemitério – uma arena circular de pedras –, os violinos passam ao primeiro plano do arranjo, executando a melodia. Figura 3.244: Leone corta para um close-up de Tuco, arfando de cansaço e euforia, mas os sons diegéticos de sua respiração não são ouvidos pelo espectador. Figura 3.245: Quando Tuco começa a correr em círculos, observando os túmulos mais de perto, um coral masculino é introduzido: as vozes dos soldados mortos? Figura 3.246: O mar de lápides que quase não tem fim: um trecho em uníssono (violinos, trompete, oboé) sublinha o momento mais apoteótico da música. 270 Figura 3.247: Tuco corre lentamente, parecendo indeciso; um interlúdio musical mantém os violinos em ostinato, enquanto uma guitarra com wah-wah imita ... Figura 3.248: ... o grito do coiote (a gargalhada dos mortos?) e os ruídos da diegese – os passos no cascalho – voltam a serem ouvidos brevemente, por um instante. Figura 3.249: Tuco está cada vez mais frenético; a percussão marcial nos lembra que estamos num cemitério militar, enquanto os movimentos circulares ... Figura 3.250: ... da câmera e as tomadas do ponto de vista de Tuco transformam as lápides num borrão; as tomadas são cada vez mais curtas e movimentadas, ... Figura 3.251: ... conduzindo a música a um clímax apoteótico, com sinos, trompetes, violinos e vozes masculinas atingindo as escalas mais agudas. Figura 3.252: De repente, um plano do céu azul com a câmera fixa interrompe o fluxo alucinante de imagens; o rosto de Tuco passa num borrão e então retorna, em ... Figura 3.253: ... close-up extremo, olhando fixamente para a câmera, com a expressão de êxtase: ele finalmente encontrou o túmulo que estava procurando. Figura 3.254: No exato instante em que Leone corta para o close-up do túmulo, a música termina, com uma interrupção abrupta que traz consigo o silêncio. Em segundo lugar, um novo badalo de sino introduz mais um elemento musical: a voz de uma soprano feminina, que acrescenta dramaticidade. Só então, quando a música evolui num crescendo, Leone começa a cortar (figuras 3.242 e 3.243). A voz passa a fazer a harmonia e abre espaço para os violinos da orquestra, que solam esse trecho da composição. Quando Leone corta para um close-up de Tuco (figura 3.244), arfando, não ouvimos os sons da respiração, apenas vemos os movimentos de sua boca. 271 Enquanto Tuco começa a correr em círculos (figura 3.245), Morricone introduz um coral masculino no trecho que liga o corpo da composição ao seu clímax, em que a voz aguda da soprano retorna, dessa vez acompanhada de trompetes e de percussão militar. Esse trecho da música incorpora diversos elementos que expressam do ponto de vista sonoro a idéia do cemitério militar: as vozes masculinas, a caixa, o trompete, o andamento marcial, o sino. O trecho termina com os vários instrumentos soando em uníssono (violinos, trompete, oboé), sublinhando uma longa tomada em plano geral aberto (figura 3.246). O interlúdio da canção inicia com uma breve seção de violinos em ostinato, acompanhando planos médios de Tuco correndo. Nesse ponto o pistoleiro parece indeciso; os sons diegéticos retornam, sinalizando essa indecisão, e passa a ser possível ouvir os passos de suas botas resvalando contra o cascalho. Uma guitarra elétrica executa as três notas (FÁ-SOLRÉ) que configuram o leitmotiv da ‘resposta’ ao grito de coiote. Mas Tuco não desistiu. Os violinos evoluem acima da voz da soprano para uma releitura do trecho mais dramático da composição, enquanto Tuco acelera – e deixamos novamente de ouvir os sons diegéticos. A cena entra em seu momento mais frenético. Leone mescla tomadas longas (figuras 3.247 e 3.248), que mostram o pistoleiro correndo entre as lápides, e tomadas curtas de câmera subjetiva, que simulam o olhar de Tuco girando entre os túmulos, em movimentos circulares cada vez mais rápidos. A harmonia entrelaça vozes masculinas, trompetes e violinos (que se alternam solando a melodia), enquanto o andamento marcial acentua o aumento gradual da dramaticidade; a evolução da música está em sincronia com o processo de aceleração tanto da montagem (planos cada vez mais curtos) quanto dos movimentos de câmera (cada vez mais rápidos), até que tudo o que conseguimos ver são borrões (figuras 3.249 e 3.250). Perto do final da cena, a execução da música evoluiu até as escalas mais agudas dos instrumentos; uma série de badalos de sinos se junta à massa sonora liderada pelos violinos, com toques de trompete e percussão militar em contraponto. Então, Leone força numa interrupção abrupta no ritmo alucinante das imagens, justapondo a uma série de planos da câmera se movendo furiosamente em círculo (figura 3.251) a um plano fixo do céu azul (figura 3.252); após dois segundos, o rosto de Tuco entra em quadro, em close-up extremo, olhando diretamente para a câmera (figura 3.253). No mesmo instante a música pára, e Leone corta para um close-up de um túmulo (figura 3.254). Um silêncio sepulcral (sem trocadilhos) sublinha a mensagem: é o tesouro. Casamento meticuloso entre som e imagem, orquestração neo-romântica com instrumentos exóticos e rejeição ao princípio da inaudibilidade da música, elementos sonoros 272 oriundos da diegese. Todos os recursos estilísticos recorrentes na música dos filmes de Leone estão presentes nesta passagem, bem como várias das ferramentas de estilo visual, sonoro e narrativo: ironia, alusionismo, perfil do herói, worldmaking, close-ups extremos, composições recessivas com profundidade, trompe l’oeil, ruídos naturais amplificados. A cena funciona como um catálogo das principais ferramentas estilísticas de Leone. Aqui, chegamos ao final de nossa análise fílmica. Tendo demonstrado o padrão recorrente de todas as ferramentas de estilo e narrativa, e explicado as diversas influências que originaram a presença de cada um desses recursos estudados dentro dos filmes de Leone, podemos localizar com mais precisão, agora, o papel exercido por ele na revisão e síntese de diversos elementos dos esquemas constituintes da poética da continuidade clássica, em direção à continuidade intensificada. No quarto e último capítulo, a seguir, vamos mostrar como alguns desses recursos passaram a integrar o repertório de técnicas à disposição dos artistas, nas décadas seguintes, em alguns casos tornando-se elementos proeminentes dos esquemas circulantes da narrativa cinematográfica. 273 4. O legado de Leone 4.1 Continuidade intensificada e Geração New Hollywood Após o final da Segunda Guerra Mundial, a freqüência de espectadores às salas de cinema caiu, todos os anos, por duas décadas. Por exemplo, 80,5 milhões de espectadores pagaram bilhetes nos Estados Unidos para entrar em cinemas, em 1946; o número caiu para 30 milhões em 1960 (GOMES DE MATTOS, 2006, p. 118). Naturalmente, as razões dessa crise podem ser explicadas por uma rede de contextos sócio-culturais, históricos, econômicos, tecnológicos e políticos. Essa rede inclui a concorrência da televisão e de outras formas de lazer, a quebra do monopólio dos grandes estúdios em 1948-49, a ascensão dos adolescentes como categoria importante de consumo na segunda metade dos anos 1950, e outras. O surgimento da poética da continuidade intensificada, nos anos 1960, deve ser compreendido como uma reação a essa crise; se não diretamente, com certeza de forma indireta, já que foi a redução do número de espectadores que levou os grandes estúdios de Hollywood a dar oportunidades para uma nova geração de cineastas – a primeira formada em universidades de Cinema – que, por sua vez, rapidamente introduziu no repertório de técnicas estilísticas e narrativas toda uma série de recursos que surgia na Europa desde o início dos anos 1960, e que os cineastas veteranos não haviam assimilado. Inclui-se, entre esses novos recursos, a maior parte das ferramentas de estilo e narrativa recorrentes em Leone. De fato, não é preciso ser um historiador para perceber que houve modificações significativas nas práticas estilísticas e narrativas dos cineastas desde então. Se um leigo comparar títulos realizados nos anos 1940-1950 e realizações posteriores, notará diferenças flagrantes. Assistamos a Sangue de Pantera (Cat People, Jacques Tourneur, 1942) e sua refilmagem A Marca da Pantera (Cat People, Paul Schrader, 1982); ou as duas versões de O Destino Bate à Sua Porta (The Postman Always Ring Twice, Tay Garnett, 1946; e Bob Rafelson, 1981). Chegaremos, sem grande esforço, ao mesmo vaticínio de David Bordwell: Os filmes norte-americanos mudaram enormemente. Tornaram-se mais sexies, mais profanos, mais violentos; piadas sobre peidos e kung fu estão por todo lugar. A indústria se transmutou num hipopótamo corporativo, enquanto novas tecnologias transformaram a produção e a exibição. E, para chegar à minha preocupação central, ao longo das mesmas décadas algumas estratégias narrativas de enredo e estilo foram trazidas à proeminência. (BORDWELL, 2006, p. 1). 274 As alterações sugeridas por Bordwell foram graduais. A poética da continuidade intensificada não consiste de um esquema fechado, mas de um conjunto de esquemas narrativos e estilísticos que, desde então, foram (e continuam sendo) constantemente revisados. Essas revisões têm sido impulsionadas pelos mais variados limites e pré-condições, que vão desde alterações nos modos de financiamento de filmes (que hoje é feito com dinheiro oriundo de investidores de vários países, incluindo nações do Oriente Médio) até as incessantes inovações nas tecnologias de produção (câmeras digitais de alta definição, gravadores digitais), circulação (filmes distribuídos por redes de fibra ótica, downloads através da Internet) e projeção (sistemas 3D digitais, IMAX, TVs de alta definição, Blu-Ray). Todas essas alterações continuam a intensificar a continuidade intensificada: “Podemos esperar por variações cada vez mais extravagantes de estilo. Talvez os filmes do século XXI sejam os filmes dos anos 1980, só que mais exagerados” (BORDWELL, 2006, p. 179). Esse último trecho consiste de uma paráfrase de outra frase presente no capítulo anterior, quando ele dizia que os filmes dos anos 1980 eram os filmes dos anos 1960 intensificados. Bordwell fundamenta aí sua tese de que a poética do cinema contemporâneo nasceu nos anos 1960. Nesse sentido, a pesquisa que aqui se conclui funciona como estudo de caso do período mais delicado de transição dos esquemas clássicos de construção da narrativa cinematográfica para os esquemas intensificados, focalizando a obra de um cineasta cuja contribuição para a consolidação dessa nova poética tem sido pouco observada. Neste último capítulo, nossa meta principal será relacionar alguns dos padrões recorrentes de estilo e narrativa na obra de Sergio Leone ao repertório de esquemas da continuidade intensificada, mostrando como os diretores que vieram depois de Leone recuperaram e revisaram suas práticas estilísticas e narrativas. Para alcançar esse objetivo, detalharemos a influência de Leone nos cineastas que emergiram a partir dos anos 1960, conhecidos como a geração New Hollywood: os movie brats Francis Ford Coppola, Brian De Palma, George Lucas, Steven Spielberg, Martin Scorsese, John Milius, William Friedkin, Peter Bodganovich, Arthur Penn, Sam Peckinpah e outros. Os filmes desses diretores introduziram no sistema dos grandes estúdios dos EUA as ferramentas estilísticas e narrativas que nasceram dos esquemas revisados pelos diretores europeus. Foi através deles que a poética da continuidade intensificada tornou-se globalizada. Por isso, é importante traçar paralelos entre os filmes de Leone e a obra dessa geração. Tal tarefa pode nos ajudar a compreender com mais precisão a contribuição de Leone ao repertório estilístico e narrativo do cinema contemporâneo, cujos cineastas, por sua vez, também têm revisado essas ferramentas, sempre a partir dos limites e pré-condições impostos 275 por fatores como a evolução tecnológica, a competição com novas formas de entretenimento (videogames, Internet), os sistemas globalizados de produção cinematográfica e outros. A emergência dos movie brats, nos anos 1960, aconteceu de maneira bastante rápida. A transição dos veteranos para os novos diretores foi abrupta, e esse fato está diretamente ligado, como já dissemos, à queda da freqüência do público aos cinemas. Pressentindo que a platéia dos anos 1960 era mais jovem e que os filmes realizados pelos diretores veteranos pareciam não dialogar com esse público, os executivos da indústria apressaram a aparição de uma nova geração de cineastas, capaz de falar ao novo público com naturalidade. Esses diretores jovens eram admiradores do neo-realismo e da Nouvelle Vague: eles “se afastavam do clássico para dialogar com o modernismo europeu” (MASCARELLO, 2006, p. 336). Leone é pouco citado entre os diretores influentes dos anos 1960, mas seus filmes exerceram forte impacto sobre a geração New Hollywood. Esse impacto não apenas aparece nos filmes, como veremos logo mais, mas foi reconhecido diretamente por alguns deles. John Milius lembra que a seqüência do cemitério de Três Homens em Conflito era analisada planoa-plano durante aulas de edição, na University of South California, para que os alunos pudessem observar o uso que Leone fazia dos close-ups extremos e a sincronia entre a música e os cortes (FRAYLING, 2000, p. 398). John Carpenter usou o tema de Harmonica na cerimônia do próprio casamento (FRAYLING, 2005, p. 192). Ele contrataria Morricone para fazer a música de O Enigma de Outro Mundo (The Thing, John Carpenter, 1982), e incluiria uma das mais famosas linhas de diálogos de Era uma Vez no Oeste (ou seja, pastiche) em Assalto à 13ª DP (Assault on Precinct 13, John Carpenter, 1976). No caso desse último, Carpenter incorporou vários recursos da obra de Leone, alguns deles através do alusionismo: perfil do herói (o protagonista do filme é um assassino que lidera vários policiais na reação ao cerco de uma delegacia de polícia por uma gangue de rua), representação gráfica da violência, close-ups e composições recessivas. Carpenter explicita a influência de Leone através de diálogos colocados na boca do assassino (quando perguntado o que o levou a matar alguém, ele responde que sempre teve “algo a ver com a morte”, citando uma frase célebre do citado filme de Leone. A cena mais polêmica do filme, graças à representação da violência, reúne quase todas essas ferramentas: um membro da gangue de rua mata uma garota, em frente a um carrinho de sorvetes, com um tiro no peito. O instante sangrento é mostrado explicitamente – daí a polêmica gerada pelo filme, pois mostrar o assassinato de crianças era um tabu havia décadas no cinema norte-americano. Há diversas composições recessivas (figuras 4.2 e 4.3) construídas à moda de Leone. Uma delas cria uma moldura (figura 4.5) a partir da nuca de 276 Figura 4.1: Criança se dirige ao caminhão de sorvete; composição recessiva dispõe figuras (árvore, criança, veículo) a diferentes distâncias da câmera. Figura 4.2: Carpenter filma o sorveteiro atendendo à criança numa composição recessiva típica de Leone, só que com o segundo plano ligeiramente fora de foco. Figura 4.3: Um integrante da gangue de rua surge de repente no contra-plano, numa composição simétrica que mantém a cabeça do sorveteiro em close-up. Figura 4.4: Carpenter compõe a imagem sempre em dois planos de profundidades distintas, com a ação variando entre o primeiro e o segundo planos. Figura 4.5: O terrorista atira no sorveteiro e o observa deitado no chão: composição recessiva com moldura, em que a cabeça do agressor está fora de foco. Figura 4.6: Quando a criança aparece de novo na janela oposta do carro, o terrorista (enquadrado em close-up médio) atira nela sem esboçar qualquer reação. Figura 4.7: Segurando sorvete, menina é atingida no peito, em close-up médio: representação gráfica da violência é intensificada, pois cometida contra criança. Figura 4.8: Numa composição idêntica à de abertura da cena, os membros da gangue deixam a cena do crime com dois corpos estendidos no chão. um personagem, da mesma maneira que Leone fazia em seus filmes. Carpenter, contudo, não replica literalmente o recurso, mas o revisa, adaptando-o à tecnologia disponível: filmando 277 com lentes teleobjetivas, que reduzem a profundidade de campo, ele mantém uma das duas camadas da imagem – às vezes o primeiro plano, às vezes o segundo – fora de foco. George Lucas telefonou a Leone enquanto montava Guerra nas Estrelas (Star Wars, George Lucas, 1977), pedindo dicas sobre a sincronia entre música e imagens (FRAYLING, 2005, p. 86). Kubrick admitiu que a representação da ultra-violência vista em Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, Stanley Kubrick, 1971) tinha sido inspirada pelos westerns de Leone (COUSINS, 2004, p. 289). Durante a pré-produção de Barry Lyndon (Stanley Kubrick, 1975), o mesmo Kubrick conversou com Leone, fazendo perguntas sobre as técnicas que ele usava para trabalhar com música gravada antes das filmagens, de forma a perseguir a sincronia existente entre os fluxos visual e sonoro (FRAYLING, 2005, p. 82). Scorsese admitiu a influência de Leone não apenas nele mesmo, mas em vários dos colegas de geração: Não há dúvida de que Era uma Vez no Oeste influenciou bastante a nossa geração dos anos 1970 – Spielberg, Lucas, Milius, John Carpenter – mas, falando por mim, a maior influência está na coreografia dos planos, na sincronia destes com a música, e no tempo interno de certos momentos, como os cortes que vão e vêm entre um rosto e uma mosca, o chapéu e a goteira, todas aquelas imagens da abertura de Era uma Vez no Oeste. (...) Estilisticamente, isso encontrou seu caminho em filmes como Touro Indomável [Raging Bull, 1980], A Cor do Dinheiro [The Color of Money, 1986] e outros. (SCORSESE, 2005, p. 202-203). O exame detalhado de cenas dos filmes de Scorsese nos mostra como Scorsese revisou alguns dos esquemas presentes na obra de Leone. Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976) adaptou várias ferramentas para o submundo da Nova York dos anos 1970. O tiroteio que encerra o filme transpõe, de certa maneira, a atmosfera inóspita dos westerns de Leone para uma metrópole contemporânea. A cena consiste no clímax da história: o veterano de guerra Travis Bickle (Robert De Niro), com um arsenal de revólveres escondidos sob um casaco, invade o motel onde vive a prostituta-mirim Iris (Jodie Foster). O resgate termina de forma hiper-violenta, com Travis assassinando três homens e sendo baleado a queima-roupa. Em fóruns de discussão, como o existente no Internet Movie Database, espectadores sugeriram que Travis morre no tiroteio, e que o epílogo do filme – uma cena em que ele é cumprimentado como herói – consiste numa fantasia post mortem, caracterizando uma narrativa subjetiva, que Bordwell lista como um dos recursos da continuidade intensificada. Scorsese revisa várias ferramentas estilísticas e narrativas encontradas em Leone. A cena, que dura quatro minutos e um segundo (241 segundos), contém 55 planos. A aproximação da câmera em relação à ação dramática, fragmentando o espaço fílmico, é perceptível. Scorsese usa 12 planos gerais (figuras 4.17 e 4.19) e 14 close-ups, sendo nove de 278 rostos e dois de pistolas (figuras 4.9, 4.10, 4.13 e 4.15). Os outros três são close-ups extremos que focalizam boca, nariz e olhos, em enquadramentos que remetem a Leone (figura 4.20). Ao todo, Scorsese utiliza seis planos com composições recessivas com moldura (figuras 4.11, 4.16, 4.17 e 4.19), construídas à moda de Leone: encenação em dois planos distintos, com a figura em primeiro plano servindo de moldura para a ação dramática ao fundo, filmada em profundidade de campo. Por causa de limitações tecnológicas relacionadas ao equipamento e ao tipo de iluminação, Scorsese não alcança a mesma profundidade de campo de Leone, de forma que quase sempre o elemento em primeiro plano está fora de foco – ou seja, trata-se de uma revisão da solução estilística de Leone, impulsionada por limites tecnológicos, da mesma forma que havia acontecido com Carpenter em Assalto à 13ª DP (e aconteceria também com o próprio Leone em Era uma Vez na América, como já vimos antes). Do ponto de vista sonoro, os ruídos naturais amplificados aparecem em toda a cena, e a técnica de guiar a atenção do espectador para determinadas áreas da imagem através dos sons fora do quadro é usada em dois momentos, para alertar personagens sobre a chegada de outros personagens. Há períodos de silêncio, em que se ouve apenas os sons da respiração e dos movimentos de Travis; a música de Bernard Herrmann é introduzida em sincronia com o último plano da cena, no exato instante em que Travis perde a consciência. O casamento meticuloso entre as bandas sonora e visual também evoca a obra de Leone. O realismo ouvido nos ruídos também aparece na direção de arte e nos cenários. As paredes estão caindo aos pedaços, os degraus de madeira da escada rangem (figura 4.12) como se fossem desabar a qualquer momento (BISKIND, 2009, p. 313). É fundamental observar o perfil do protagonista. Travis Bickle, como os personagens de Clint Eastwood nos westerns de Leone, é um anti-herói, um homem perturbado, um pária que vive à margem da sociedade, freqüentando cinemas pornográficos e transitando de madrugada pelos subúrbios (e odiando cada minuto disso, o que contribui para o clima crescente de paranóia). Ele é taciturno e violento: mata um homem desarmado (o porteiro) com um tiro na cabeça, na frente de uma criança de 12 anos. Essa cena não seria permitia antes da queda do Código Hays, 1968. Muito menos a cena teria sido filmada da mesma maneira, em que os tiroteios arrancam dedos de mãos (figura 4.9), explodem miolos de um homem contra a parede (figura 4.18), furam buracos de bala que jorram sangue (figuras 4.14) e mostram facas atravessando partes do corpo (figuras 4.16) tudo isso com a câmera bem próxima dos atores. A representação da violência é gráfica, e vai um passo além da verossimilhança obtida nos filmes de Leone, revisando-a e intensificando-a. 279 Figura 4.9: Um tiro do herói num homem desarmado (e mostrado num close-up) explode a mão e os dedos da vítima: representação mais realista da violência. Figura 4.10: Close-up do rosto irado de Travis, salpicado de sangue: a cena completa contém 14 close-ups, constituindo um quarto de todas as tomadas. Figura 4.11: Travis acerta o cafetão no estômago, o impacto da bala atirando-o para trás: encenação e maquiagem reforçam o realismo gráfico da violência. Figura 4.12: Composição em profundidade de campo, com o revólver em primeiríssimo plano servindo de moldura: composição pictórica típica de Sergio Leone. Figura 4.13: Close-up do rosto destaca o sangue no pescoço: enquadramento e representação da violência são elementos de estilo recorrentes em Leone. Figura 4.14: Cliente da prostituta é atingido duas vezes, uma no rosto e uma no peito, os buracos da bala jorrando sangue: violência cada vez mais gráfica. Figura 4.15: Com o pescoço coberto de sangue, Travis se levanta e entra no quarto, sendo focalizado num closeup extremo; ele é seguido pelo porteiro, que ... Figura 4.16: … tenta revidar, mas tem a mão esquerda atravessada por faca: representação gráfica da violência e composição recessiva com encenação em diagonal. 280 Figura 4.17: Após dominar o porteiro, Travis se levanta e encosta a arma em seu rosto; composição recessiva em profundidade de campo enquadra Iris ao fundo. Figura 4.18: Travis explode a cabeça do porteiro com tiro, espalhando os miolos pela parede: representação gráfica da violência vingou após o fim do Código Hays. Figura 4.19: Depois do ataque, Travis senta no sofá e tenta o suicídio; a chegada da polícia é mostrada numa composição recessiva com moldura, a la Leone. Figura 4.20: Scorsese corta para um sangrento close-up extremo ao estilo de Leone: cínico e irônico, Travis finge balear a própria cabeça, com um sorriso nos lábios. Quanto ao alusionismo, Scorsese filma os tiroteios em ângulos que os fazem parecidos com duelos, através de composições recessivas (figuras 4.12 e 4.19) com pistolas servindo de moldura, em primeiro plano. O pastiche se fez presente de forma ostensiva: os close-ups do copo de água com Alka-Seltzer no quarto de Travis – um motivo visual importante, embora não apareça na cena analisada – foram incluídos como citação visual a Duas ou Três Coisas que Eu Sei Sobre Ela (Deux ou Trois Choses que Je Sais D'elle, Jean-Luc Godard, 1963). Brian De Palma, citado por Noël Carroll (1998) como um dos principais cineastas americanos a adotar o alusionismo como ferramenta de estilo, recorreu a recursos comuns em Leone com mais ênfase do que Scorsese e Carpenter. A cena que constitui o clímax dramático de Síndrome de Caim (Raising Cain, Brian De Palma, 1992), por exemplo, foi quase inteiramente filmada através de close-ups (figura 4.22), a maioria deles em versão extrema (figuras 4.21, 4.23 e 4.27), e planos-detalhes (figura 4.24). De Palma só insere planos gerais (figuras 4.29 e 4.30) quando a cena já está próxima de terminar, e eles são poucos. Nesta cena específica, De Palma usou 66 close-ups, dos quais 48 são close-ups extremos que mostram apenas um rosto ou uma mão, numa cena que dura quatro minutos e 32 segundos (272 segundos). A duração média de um plano, nesta cena, é de apenas 2,3 segundos; e nada menos do que 55,93% das tomadas são close-ups. A técnica de fragmentar o 281 Figura 4.21: Close-up extremo de um dos personagens inicia a cena do clímax de Síndrome de Caim (1992); no contra-plano, vemos a outra protagonista da cena, ... Figura 4.22: ... uma mulher, enquadrada num close-up normal; um total de 66 close-ups foram incluídos na edição final, o que representa 55,95% dos planos. Figura 4.23: A criança que está sendo raptada, nos braços do homem, também é enquadrada em close-up extremo, produzindo fragmentação do espaço fílmico. Figura 4.24: A mãe da criança segura uma navalha e ameaça o seqüestrador; o objeto também é enquadrado por De Palma através de um close-up extremo. Figura 4.25: De Palma corta para um plano médio subjetivo, simulando a visão da mulher e permitindo ao espectador inferir as posições dos personagens. Figura 4.26: Quando o seqüestrador chama o elevador, a composição recessiva usa uma mão para emoldurar a ação em segundo plano: trompe l’oeil cinematográfico. Figura 4.27: Brian De Palma recorre a close-ups ainda mais extremos para sinalizar o aumento da tensão, quando o raptor está prestes a fugir pelo elevador. Figura 4.28: A outra personagem consegue alcançá-lo e enfia a navalha no pescoço dele, em mais um close-up, produzindo uma representação realista da violência. 282 Figura 4.29: Quando o bandido deixa a criança (cuja roupa é alusão a Inverno de Sangue em Veneza) cair, De Palma insere um dos primeiros planos gerais d a cena ... Figura 4.30: ... e corta para um novo plano geral, inserindo laranjas como alusão ao filme O Poderoso Chefão (1992), em que a fruta simbolizava a morte. espaço fílmico para produzir o efeito de tempo dilatado e ampliar o suspense, como já vimos, era uma das ferramentas importantes para criar tensão nos westerns de Leone. Na prática, essa fragmentação do espaço fílmico revela uma mudança gradual que caracteriza a poética da continuidade intensificada. Barry Salt (2009, p. 371) afirma que o número de close-ups extremos dobrou em quatro décadas (de 1959 a 1999), tendo se estabilizado depois desse período. Em compensação, a quantidade de planos médios e planos gerais abertos (usados por cineastas de todos os países) caiu pela metade. Direta ou indiretamente, quando De Palma decupa a cena dessa maneira, está pagando tributo aos filmes de Leone – que, como já vimos, usava de três a quatro vezes mais close-ups extremos, nos anos 1960, do que qualquer outro cineasta. De Palma também inclui composições recessivas em profundidade de campo com moldura, muito semelhantes àquelas elaboradas por Leone. A mais ostensiva delas mostra uma mão em primeiríssimo plano (figura 4.26) enquanto duas testemunhas do crime observam, em segundo plano distante e nítido, a tentativa de seqüestro. A tomada evoca o trompe l’oeil característico de Leone. A representação da violência é gráfica, e fica explícita no plano-detalhe de uma navalha sendo enfiada no pescoço de um homem (figura 4.27). Para completar, De Palma introduz alusões a outros filmes: a O Poderoso Chefão (1972), através da inclusão de laranjas (figuras 4.29 e 4.30) no exato instante em que um dos personagens – uma criança – cai do parapeito de uma passarela (no filme de Coppola, a presença de laranjas sempre antecede a morte de algum personagem); e a Inverno de Sangue em Veneza (Don’t Look Now, Nicolas Roeg, 1973), na figura da menina loira vestida com uma capa de chuva vermelha, cuja imagem é o leitmotiv visual do suspense de Nicolas Roeg. Entre as ferramentas de estilo recorrentes em Leone que foram integradas ao repertório de esquemas dos diretores da geração New Hollywood, estão: execuções sangrentas, closeups extremos, composições recessivas, uso de ruídos naturais amplificados e protagonistas amorais em O Poderoso Chefão (1972, figuras 4.31 e 4.32); close-ups extremos, hiper- 283 Figura 4.31: Coppola recorre à composição recessiva típica de Leone, usando parte do ombro do ator como moldura em primeiro plano, em O Poderoso Chefão. Figura 4.32: A representação gráfica da violência, o uso criativo dos sons fora do quadro e o uso de close-ups de rostos também são marcas que remetem a Leone. Figura 4.33: Scorsese fragmentou o espaço fílmico extraordinariamente através do uso de close-ups extremos e planos-detalhes em Touro Indomável. Figura 4.34: A violência gráfica, a câmera lenta e os ruídos naturais amplificados são recursos oriundos de Leone que aparecem nas lutas de Touro Indomável. Figura 4.35: Heróis de Sem Destino são motoqueiros que traficam cocaína: protagonistas dos filmes da geração New Hollywood são amorais e individualistas. Figura 4.36: Vigarista que protagoniza Lua de Papel ensina a filha – uma criança de nove anos que fuma – a ganhar a vida dando golpes em pessoas ingênuas. Figura 4.37: Close-ups extremos da menina possuída pelo demônio em O Exorcista acentuam a acuidade dos ferimentos produzidos pela maquiagem em Hollywood. Figura 4.38: Unhas pintadas, robe feminino e sobrancelhas feitas: figurinos de Um Dia de Cão injetam realismo nos close-ups extremos dos personagens. 284 Figura 4.39: Figurinos dos personagens de Barry Lyndon surgiram a partir de pesquisa iconográfica detalhada; vestidos e chapéus reais do século XVIII foram usados. Figura 4.40: Representação realista da violência e composições recessivas com profundidade de campo podem ser encontradas em Laranja Mecânica. Figura 4.41: Brian de Palma criou diversas composições recessivas com profundidade de campo em A Fúria, usando o rosto de algum personagem como moldura ... Figura 4.42: ... assim como utilizou diversos close-ups extremos de olhos e bocas para intensificar a ação dramática nos momentos de maior tensão. Figura 4.43: Spielberg usou a profundidade de campo para compor tomadas em que os personagens encenavam a ação a distâncias diferentes da câmera... Figura 4.44: ... enquanto as lentes grande-angulares possibilitaram o uso de rostos em close-up como molduras, criando o trompe l’oeil típico de Leone. Figura 4.45: Composição recessiva com moldura em O Império Contra-Ataca: pastiche de antigos westerns e aventuras em seriado produzidas nos anos 1930 e 1940. Figura 4.46: Além de usar close-ups extremos, Spielberg montou imagens para sincronizar minuciosamente os cortes, na cena das bicicletas voadoras, com a música. violência e uso de ruídos naturais amplificados em Touro Indomável (1980, figuras 4.33 e 4.34); protagonistas amorais como a dupla de motoqueiros traficantes de drogas em Sem 285 Destino (Easy Rider, Dennis Hopper, 1969, figura 4.35) e o vigarista que ensina truques sujos à própria filha em Lua de Papel (Paper Moon, Peter Bodganovich, 1973, figura 4.36); closeups extremos e música minimalista com influências do concretismo em O Exorcista (1973, figura 4.37); direção de arte realista e abundância de single shots, muitas vezes em close-up, em Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon, Sidney Lumet, 1975, figura 4.38); acuidade histórica em Barry Lyndon (1975, figura 4.39) e novamente a violência gráfica em Laranja Mecânica (1971, figura 4.40); composições recessivas em profundidade de campo com moldura, muitas vezes combinadas com close-ups extremos de olhos, em A Fúria (The Fury, Brian De Palma, 1978, figuras 4.41 e 4.42); composições recessivas em profundidade de campo que muitas vezes criavam trompe l’oeil cinematográficos, como em Tubarão (Jaws, Steven Spielberg, 1975, figuras 4.42 e 4.43); pastiche que alude a antigos westerns e aventuras infanto-juvenis dos anos 1930 e 1940 na série Guerra nas Estrelas (Star Wars, George Lucas, 1977-1980-1983, figura 4.44), cuja música persegue o mesmo casamento meticuloso entre som e imagens visto em ET – O Extraterrestre (ET The Extra-terrestrial, Steven Spielberg, 1982, figura 4.45); Nesse último caso, o diretor alterou a montagem final apenas para sincronizar a modulação do arranjo de John Williams ao fluxo de imagens de toda a seqüência final, que inclui a cena em que o extraterrestre faz as bicicletas voarem 30. Por que os diretores dos anos 1970 estavam adotando as técnicas estilísticas e táticas narrativas que surgiam na Europa, a exemplo dos recursos de Leone? O fenômeno não pode ser relacionado apenas à redução do número de espectadores. A influência desse fenômeno nas novas práticas estilísticas foi indireta (afinal, como Bordwell nos lembra, o espírito do tempo não liga a câmera), na medida em que apressou a emergência de diretores mais jovens. Um dos contextos sócio-culturais que deve ser mencionado como explicação parcial para o desenvolvimento da continuidade intensificada está a influência crescente da televisão. Nos anos 1960, os filmes – até então vetados pelos grandes estúdios para exibição na TV – começaram a ser mostrados na tela pequena. Por isso, os chefes de produção de todos os estúdios solicitaram aos diretores que revisassem seus procedimentos técnicos, concebendo os filmes como obras seriam exibidas em telas de diferentes tamanhos. O resultado dessas recomendações é que os diretores passaram a aproximar cada vez mais a câmera da ação dramática, utilizando mais close-ups, planos médios e single shots (BORDWELL, 2006, p. 148-149). A televisão explica o aumento de planos próximos, que permitiam a melhor compreensão da ação dramática por parte dos espectadores. 30 Esta informação é registrada nos extras do DVD do filme, em entrevistas com Spielberg e John Williams. 286 O surgimento de novos equipamentos – câmeras e gravadores de som portáteis, novas lentes de distâncias focais variáveis, películas mais sensíveis à luz, máquinas de edição nãolineares, Steadicam – gerou revisões constantes das práticas estilísticas, desde os anos 1970. O aspecto comum em todas essas revisões é que, cada vez mais, os diretores jovens procuravam capturar a atenção dos espectadores de maneira mais intensa, de forma a evitar sua dispersão. Como se sabe, ver um filme na TV é um ato que favorece bem mais a dispersão do que fazer o mesmo numa sala de cinema. As inovações técnicas na área do som seguiram esse princípio: fisgar a atenção do espectador com mais ênfase. Uma maneira de fazer isso era usar mais os efeitos sonoros amplificados, objetivo facilitado pelo surgimento, em 1975, de um processo eletrônico de redução do ruído natural que escapava da película por causa do atrito com o projetor eletrônico. O Dolby NR (sigla de noise reduction) logo ganhou um upgrade sob a forma do sistema Dolby Stereo, no qual filmes registrados em película de 35 milímetros podiam ter trilhas sonoras reproduzidas em até quatro canais independentes (SERGI, 2004, p. 27). As possibilidades criativas abertas por essas tecnologias levavam a novas revisões dos esquemas de construção narrativa no cinema, sempre em direção à poética intensificada. Como os recursos desenvolvidos por Leone apontavam na mesma direção, muitas das suas soluções para problemas de representação foram adotadas – e, em muitos casos, revisadas ou adaptadas – pelos novos cineastas. Nesse ponto, Bordwell chama a atenção para um aspecto que revela a importância do cinema de gênero para a constituição da poética da continuidade intensificada: dentro da história do cinema, a origem de novos recursos estilísticos e narrativos muitas vezes pode ser rastreada dentro de filmes de gênero. Isso havia acontecido, por exemplo, no princípio dos anos 1940, quando o uso de iluminação chiaroescuro e de ângulos virtuosos de câmera apareceram antes nos thrillers B, migrando só depois para dramas e produções classe A, que são normalmente filmes mais conservadores, do ponto de vista estilístico. Bordwell cita outros dois motivos para explicar o fenômeno: filmes de gênero visam atingir um público geralmente mais jovem (e mais receptivo a inovações); e seus diretores têm mais liberdade para experimentar, pois trabalham com orçamentos menores (BORDWELL, 2006, p. 158). De fato, o cinema de gênero tem sido tratado pelos estúdios de Hollywood, durante muitas décadas, como campo de testes em que os diretores podem se desenvolver, antes de migrarem para produções maiores e mais ambiciosas em termos de público. A mesma lógica é aplicada ao desenvolvimento de novos recursos estilísticos: eles são postos à prova primeiro em filmes menores, normalmente objetos de consumos segmentados, antes de passarem a ser 287 adotados nas maiores produções. Ao lado das pré-condições tecnológicas (as vantagens do Techniscope em relação aos problemas de foco, por exemplo) e sócio-culturais (censura, modo de produção), esse raciocínio ajuda a explicar porque Sergio Leone pôde levar suas práticas estilísticas e narrativas a níveis que só depois foram adotados em Hollywood. Nos anos 1970, os grandes estúdios também passaram a visar um público-alvo cada vez mais jovem. Essa percepção levou à emergência do fenômeno do blockbuster, e também auxiliou no gradual reconhecimento crítico dos filmes de gênero. Um dos diretores beneficiados por isso foi William Friedkin. Operação França (The French Connection, William Friedkin, 1972), um thriller protagonizado por um detetive misógino, ganhou cinco Oscar naquele ano, inclusive o de melhor filme. Foi uma das primeiras vezes na história da premiação que um filme policial (ou seja, de gênero) abocanhou os principais troféus. Esse filme contém uma famosa cena de perseguição de carro (encerrada, aliás, com a execução de um bandido a queima-roupa e pelas costas, da maneira cruel que os personagens de Clint Eastwood costumavam agir nos westerns de Leone); a cena consiste praticamente em um catálogo de demonstração de técnicas da continuidade intensificada. Várias delas já apareciam no repertório de Leone e foram submetidas a processos de revisão por Friedkin. A cena tem oito minutos e 38 segundos (538 segundos) e utiliza 152 planos; média de 3,5 segundos por plano, que caracteriza montagem veloz, mesmo para a época. Ela mostra o detetive Popeye Doyle (Gene Hackman) perseguindo, de carro, um trem suspenso que liga os bairros de Coney Island e Manhattan (EUA). Dentro do trem está um assassino (Marcel Bozzuffi). Friedkin alterna trechos que mostram a direção frenética de Doyle com outros que focalizam os esforços do criminoso para despistar o detetive. Em busca de realismo, Friedkin filmou em locação, numa linha de metrô cedida pela Prefeitura de Nova York. A direção de arte determinou que figurantes vestissem as próprias roupas, e as ruas foram deixadas como estavam, sem retoques (figuras 4.43, 4.59 e 4.52). Não há nenhum plano registrado com câmera fixa, grua ou dolly; todos foram captados com câmera na mão, com constantes reenquadramentos e sacolejos. Há na cena 35 close-ups. Isso corresponde a 23,02% das tomadas, ou uma em cada quatro (figuras 4.50, 4.51, 4.54 e 4.55). Existem dois close-ups extremos de olhos, típicos de Leone (figura 4.57). Há 18 composições recessivas, sobretudo tomadas filmadas dentro do carro (a nuca de Hackman serve de moldura para dar profundidade ao movimento em segundo plano, como nas figuras 4.47 e 4.56) e do trem (figuras 4.52 e 4.58), com partes da figura do criminoso funcionando com o mesmo propósito. 288 Figura 4.47: Composição recessiva, com a câmera colocada no banco de trás do carro, mostra o detetive invadindo a contramão para poder seguir o trem ... Figura 4.48: ... onde está o assassino profissional, abordado por um policial que o viu entrar armado no veículo, se encaminha para a cabine do condutor. Figura 4.49: Ele atira no policial, acertando-o na barriga, que jorra sangue: a representação da violência é bastante realista, como nos filmes de Leone. Figura 4.50: A montagem alternada focaliza o rosto de Popeye Doyle por trás do vidro do carro: close-up extremo do rosto para enfatizar a emoção do policial. Figura 4.51: O assassino domina o condutor do trem, enquadrado num close-up extremo; ele obriga o homem a seguir em frente sem parar em nenhuma estação, ... Figura 4.52: ... o que provoca reclamações dos passageiros, que passam a ser ameaçados pelo bandido: composição recessiva com profundidade de campo. Figura 4.53: Dublê atinge um carro que atravessa seu caminho: o veículo era de um morador do bairro que não sabia das filmagens em locação (worldmaking). Figura 4.54: Popeye Doyle grita ao observar uma mulher com um carrinho de bebê começando a atravessar a rua, enquadrado por Friedkin num close-up extremo. 289 Figura 4.55: No contra-plano, a mulher grita de volta, também enquadrada num close-up extremo e borrado, o que sugere a velocidade do carro que se aproxima. Figura 4.56: A perseguição continua, com o tráfego mais intenso à medida em que o trem chega a Manhattan: composição recessiva com o primeiro plano sem foco. Figura 4.57: Com o suor escorrendo no rosto, Popeye Doyle acompanha o trem olhando para cima, num closeup extremo dos olhos, bem ao estilo de Sergio Leone. Figura 4.58: Dentro do trem, o assassino não consegue mais conter os passageiros e atira num bilheteiro: composição recessiva em profundidade de campo. Figura 4.59: Na saída da estação, Popeye confronta o assassino., mais uma vez encenada numa composição recessiva com moldura e profundidade de campo. Figura 4.60: Desarmado (a arma sem balas ficou no trem), o assassino se vira para correr, mas Popeye não hesita e atira nas costas dele: moralidade ambígua. Do ponto de vista narrativo, é importante observar que a cena consiste numa alusão explícita a outra perseguição famosa, registrada em Bullitt (Peter Yates, 1968). A inserção da cena dentro de Operação França foi exigência do produtor Philip D’Antoni, o mesmo de Bullitt; ele insistiu para que Friedkin incluísse no longa-metragem uma perseguição que superasse aquela do filme de três anos antes (BISKIND, 2009, p. 214). O perfil do herói e a representação da violência são duas outras características de Leone que aparecem na cena. Doyle é sadomasoquista, bêbado e obsessivo-compulsivo. Quando alcança o assassino (figura 4.59), não conversa com ele; apenas lhe aponta o revólver. A encenação recorre a composições recessivas. O criminoso vira as costas e sai 290 andando; ele confia que o detetive não irá atirar pelas costas num homem desarmado. Mas Doyle atira. Mata o homem de costas, à queima-roupa (figura 4.60). O realismo é seguido na edição de som. Friedkin descarta o uso de música diegética. Toda a sonorização é feita a partir do uso de ruídos naturais amplificados, como Leone fazia. No entanto, há sempre um ruído básico, mantido em segundo plano sonoro, que dura toda a cena e dá unidade aos planos fechados que fragmentam o espaço diegético. Na cena analisada, esse ruído é o barulho do trem, que possui a mesma função do canto de pássaros na cena do cemitério de Três Homens em Conflito, ou do moinho na abertura de Era uma Vez no Oeste. Esse ruído é pontuado por outros sons, de duração mais curta, mixados em volume mais alto do que seriam ouvidos normalmente na vida real, e que criam pontos de síncrese, permitindo ao espectador compreender a tensão dos personagens protagonistas: freadas e cantadas de pneus, gritos (de Doyle, de passageiros do trem, de transeuntes, como nas figuras 4.54 e 4.55), toques de buzina, sons metálicos resultantes das batidas de carro em objetos pelo caminho. A massa sonora sugere o movimento frenético dos veículos. Os ruídos diegéticos são inseridos no conjunto sonoro do mesmo modo que a pá (Três Homens em Conflito), a goteira e a mosca (Era uma Vez no Oeste). 4.2 Sergio Leone e os filmes contemporâneos Operação França ainda não era o que os historiadores do cinema chamaram depois de blockbuster, mas assinalava características estilísticas e narrativas que se tornariam marcar registradas desse novo modo de produção que floresceu em Hollywood a partir de 1975 (MASCARELLO, 2006, p. 346). O blockbuster teve origem a partir do sucesso de Tubarão (1975), caracterizando-se pelo investimento maciço em marketing, pelo lançamento simultâneo no maior número possível de salas, pelo estabelecimento de franquias cinematográficas, e pelas indústrias paralelas de merchandising: Ao invés das produções típicas da era dos estúdios, os mega-filmes podem alcançar uma sobrevida robusta através de álbuns de trilha sonora, exibições em TV a cabo e no videocassete. (BORDWELL, 2006, p. 3). As características sócio-culturais que modificaram os hábitos dos cinéfilos se consolidaram de fato na virada entre os anos 1970 e 1980. E a constante evolução tecnológica continuou provocando mudanças incessantes nesse panorama. Cinemas drive-in e de bairro deram lugar a cadeias de Multiplex, quase sempre localizados dentro de grandes shopping 291 centers. Formatos mais baratos de vídeo doméstico (primeiro o VHS, a partir de 1980; depois o DVD, de 1995 em diante; e atualmente o Blu-Ray) motivaram o aparecimento de uma geração de cinéfilos colecionadores de filmes, agora disponíveis para serem vistos e revistos em casa. Hoje, o panorama de produção, circulação e consumo de filmes é multifacetado, está em constante evolução e muda muito rapidamente. As salas de projeção coletiva continuam a existir, mas disputam espaço com home theaters capazes de reproduzir longas-metragens com fidelidade de imagem e som similar à projeção em película. Esse panorama sócio-cultural, que envolve os aparatos de produção, circulação e exibição de filmes, também afetou as práticas estilísticas e narrativas dos diretores, motivando sucessivas revisões nos esquemas dominantes de construção narrativa. Os recursos desenvolvidos nos anos 1960 estão na base desse processo. Um exame atento de filmes contemporâneos confirma que muitas técnicas criadas ou adaptadas pelos diretores modernistas europeus têm sido revisadas. Os recursos desenvolvidos por Sergio Leone têm um papel importante dentro desse repertório estilístico. A influência de Leone no cinema atual pode ser medida com mais precisão quando o colocamos ao lado de Quentin Tarantino, cineasta mais celebrado pela crítica internacional desde a década de 1990, desde então apontado como um dos poucos renovadores estilísticos do cinema contemporâneo. Ele sempre deixou clara a admiração pelo trabalho de Leone: Havia um grau de verossimilhança em seus filmes [de Leone] que outros filmes da época não tinham. Mesmo que então os filmes dele fossem vistos como surrealistas, tinham uma aparência realista que não era possível encontrar em títulos dos anos 1950 e 1960. (...) Leone e Morricone formaram a melhor parecia diretor-compositor da história do cinema. Não dá nem para imaginar os filmes de Leone sem a música de Morricone. (...) Era uma vez no Oeste foi como uma escola de cinema para mim. Eu o vi na TV quando criança, e foi uma grande experiência porque dava para apreender da experiência um novo estilo de direção. (...) Com Era uma Vez no Oeste, foi como se ele [Leone] dissesse: este aqui é o seu faroeste norte-americano, OK? Agora vou subvertê-lo. (TARANTINO, 2003). Desde Cães de Aluguel (Reservoir Dogs, Quentin Tarantino, 1992), Tarantino se serviu abundantemente de vários recursos de estilo característicos de Leone: close-ups extremos, representação gráfica da violência, heróis amorais e violentos. O alusionismo está no centro nevrálgico do trabalho de Tarantino, assim como foi característica fundamental para Leone; de fato, há muitas citações a filmes de Leone em obras como Kill Bill (Quentin Tarantino, 2003) – em que trechos de músicas de Morricone foram usados – e Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds, Quentin Tarantino, 2009). 292 Figura 4.61: Cena do filme de Tarantino alude à conversa que a camponês e o assassino contratado para matá-lo têm à mesa, durante Três Homens em Conflito. Figura 4.62: Os personagens de Leone, enquadrados em close-ups extremos e iluminados em contrastes chiaroscuro, sabem que tudo terminará em violência ... Figura 4.63: ... assim como os personagens de Tarantino; iluminação deixa apenas mesa e janela iluminadas, com os personagens envoltos em sombras. Figura 4.64: Fazendeiro e oficial de Bastardos Inglórios fumamcachimbos (alusão a Leone) e têm os rostos freqüentemente enquadrados em close-ups extremos. Neste último, a começar pela legenda introdutória (Era uma vez numa França ocupada pelos nazistas...), toda a cena de abertura consiste numa alusão explícita – um pastiche – do início de Três Homens em Conflito, no qual Angel Eyes visita o homem que foi pago para matar (Antonio Casas) e janta com ele, antes de executar o serviço, enquanto os dois trocam longos olhares silenciosos que deixam evidentes o quanto cada um sabe perfeitamente o que acontecerá ao final (figuras 4.61 e 4.62). A longa conversa à mesa entre o coronel SS Hans Landa (Christoph Waltz) e o agricultor Pierre LaPadite (Denis Menochet) é carregada com o mesmo suspense, uma semelhança que Tarantino acentua fazendo os dois personagens fumarem cachimbos com dupla função narrativa, funcionando em dois níveis – simbolizam a personalidade de cada um e evocam o personagem de Lee Van Cleef (uma piscadela bem-humorada reconhecível pelos fãs do filme de Leone) –, e também usando uma iluminação chiaroescuro semelhante à utilizada em Três Homens em Conflito (figuras 4.63 e 4.64), com predomínio de fontes de iluminação laterais e pouca luz de enchimento. Os filmes de Tarantino consistem numa espécie de catálogo das práticas estilísticas e narrativas do repertório da continuidade intensificada. O caso específico da obra dele é particularmente significativo para esta tese, porque há uma ligação direta entre ele e Leone. Mas é importante assinalar que Tarantino, como muitos diretores contemporâneos, não simplesmente replica as soluções de Leone para problemas de representação. Ele utiliza os esquemas disponíveis e os revisa, adaptando-os a novos contextos, novos limites tecnológicos e a seus objetivos narrativos. Esse processo contínuo de revisão concretiza, também, a idéia 293 de que o autorismo pode ser harmônico com o conceito de gênero. Tarantino tem sido descrito por muitos críticos como uma espécie de usina de reciclagem cinematográfica: Talvez a mais constante crítica ao trabalho de Tarantino seja de que ele se resume a reciclar filmes antigos (o crítico da revista New Yorker, David Denby, se refere a ele como um “idiota de cinemateca”). Essa crítica confunde reunião criativa de elementos dispersos com reciclagem. Tarantino (...) tem um conhecimento profundo sobre a maneira como os filmes são feitos e como seus diretores atingem certos efeitos. Tem também um enciclopédico conhecimento de gêneros internacionais, como o wu xia chinês, filmes de samurai e máfia japoneses, e filmes de ação e kung fu de Hong Kong. Enquanto seus filmes homenageiam todos esses gêneros, sua referência mais persistente está nos crescendos de violência incontroláveis do spaghetti western. (STONE, 2009). Não é coincidência que o rótulo de pós-moderno seja freqüentemente aplicado ao trabalho de Tarantino; tampouco é coincidência que a técnica do pastiche seja associada aos filmes dele (use-se ou não o termo). Nesse ponto, Tarantino compartilha com Leone o gosto pela citação, pela homenagem ao mesmo tempo nostálgica e irônica, irreverente e subversiva. Alusionismo (ou pastiche), ironia, releitura crítica de gêneros, representação gráfica da violência, worldmaking, gosto por close-ups extremos, cronologia não-linear e uso de lentes grande-angulares são algumas das ferramentas estilísticas e narrativas de Leone facilmente reconhecíveis no repertório de Tarantino. Vários desses elementos estão numa cena célebre de Cães de Aluguel, que causou polêmica quando do lançamento do filme. A cena encerra o segundo ato e consiste em um ato de tortura – pode ser lida, inclusive, como uma citação à tortura de Tuco em Três Homens em Conflito, cena analisada no segundo capítulo. Após o assalto frustrado a uma joalharia, um dos bandidos é deixado no esconderijo do grupo, um galpão abandonado, vigiando um policial capturado na ocasião. Há um terceiro personagem em cena: outro assaltante, desmaiado em meio a uma poça de sangue. Mr. Blonde (Michael Madsen) não tem uma razão específica para torturar o policial, mas decide fazê-lo. Dentro da estrutura narrativa, a cena parece não ter importância, a não ser para revelar detalhes da personalidade psicopata do assaltante. A verdadeira razão narrativa para a existência da cena só é revelada no final, quando descobrimos que seu propósito era revelar o grande mistério da trama: a identidade do policial infiltrado na quadrilha, Mr. Orange (Tim Roth). É essa revelação que impulsiona o filme ao clímax, que consiste num duelo triplo – um trielo, nova citação a Três Homens em Conflito – em que todos os participantes são baleados. Mas voltemos à cena em questão, que possui onze minutos e 28 segundos (688 segundos) estruturados em 159 tomadas. Cada plano tem duração média de 4,3 segundos. 294 Como nos filmes de Leone, os números absolutos podem enganar, pois Tarantino usa tomadas longas e inclui um plano-seqüência, com duração total de 87 segundos, em que Mr. Blonde sai do galpão para buscar um galão de gasolina no carro, localizado na rua em frente, e retorna (figuras 4.75 e 4.76), sendo seguido pela câmera (cujo movimento praticamente não cessa). Tarantino demonstra seu gosto pelos close-ups extremos (figuras 4.69, 4.73 e 4.81) à maneira de Sergio Leone, incluindo 18 deles (de um total de 24 close-ups, sendo 23 de rostos – vistos nas figuras 4.69, 4.77 e 4.81 e um plano-detalhe de uma navalha, na figura 4.67). Em termos estatísticos, 11,32% dos planos são close-ups extremos, percentual que sobe para 15,09% quando consideramos o total de close-ups. A maior parte dessas tomadas focaliza o policial ferido, especialmente depois que ele tem a orelha direita arrancada a navalhadas por Mr. Blonde (figura 4.77). Duas composições recessivas com moldura e profundidade de campo, filmada com uma lente grande-angular que dá à imagem uma textura nítida e agressiva, bem semelhante à composição típica de Leone, foram incluídas (figuras 4.80 e 4.83); e uma terceira, filmada com uma lente teleobjetiva que deixa o primeiro plano da composição desfocado, também faz parte da decupagem (figura 4.65). O perfil violento do herói e a representação da violência são as ferramentas narrativas mais notáveis. Apesar de o momento mais violento da sessão de tortura acontecer fora do quadro, Tarantino o enfatiza através do desenho de som – os gritos do policial evoluem para urros, depois que ele tem a orelha arrancada – e através da generosa quantidade de sangue que cobre o desmaiado Mr. Orange. Este, apesar de visto apenas parcialmente durante quase toda a cena, desempenha um papel fundamental no fim (figuras 4.79, 4.81 e 4.82). O momento dessa revelação, aliás, é encenado com o uso de outra técnica oriunda de Leone: o trompe l’oeil cinematográfico. Ao longo de toda a cena, o espectador pouco nota a silhueta de Mr. Orange desmaiado no chão. Quando Mr. Blonde acende o isqueiro para incendiar o policial (figuras 4.78), é atingido por uma rajada de balas. Só então Tarantino corta para um plano que mostra Mr. Orange com uma pistola na mão (figuras 4.79 e 4.80). O policial disfarçado de assaltante acordou, ouviu parte da conversa e sacou a arma sem que Mr. Blonde percebesse (aliás, na cena imediatamente anterior, o próprio Mr. Blonde entra no galpão para encontrar os outros assaltantes sem que nenhum deles o veja, sendo que vários olhavam diretamente para a porta por onde ele entrou – um trompe l’oeil ainda mais enfático). A divisão do protagonismo entre vários personagens é, como já vimos, uma característica importante para Leone. Em Cães de Aluguel, Tarantino adota o mesmo procedimento: não existe um protagonista – quatro dos assaltantes têm mais tempo de tela do que os demais – e os relacionamentos desconfiados entre os membros da gangue fazem alusão 295 Figura 4.65: Composição recessiva com moldura registrada com lente teleobjetiva mantém o primeiro plano (o braço) fora de foco: revisão do esquema. Figura 4.66: Mr. Blonde acerta um tapa no rosto do policial, enquadrado num close-up, iniciando a sessão de tortura: pastiche de Três Homens em Conflito. Figura 4.67: Mr. Blonde tira da bota uma navalha, focalizada em close-up extremo: um sinal de que o grau de violência visto até este momento vai aumentar. Figura 4.68: O assaltante liga o rádio numa estação de músicas antigas, que toca a canção “Stuck in the Middle with You” (toque de humor negro), um R&B de 1975. Figura 4.69: Close-up extremo mostra com realismo a perplexidade do policial, que não entende o que está ocorrendo; o bandido anuncia que vai continuar. Figura 4.70: O assaltante, enquadrado em plano americano, dança com a navalha ao redor do policial, aumentando a tensão e a expectativa da violência. Figura 4.71: Finalmente, numa composição recessiva em que a câmera se aproxima da ação, Mr. Blonde investe contra o policial, levando a navalha até seu .... Figura 4.72: ... rosto, enquanto a câmera desenquadra os personagens e permanece fixa, fitando um vão na parede, enquanto ouvimos gritos cada vez mais altos ... Figura 4.73: ... do policial, até que Mr. Blonde entra no quadro, segurando a orelha do policial: representação gráfica da violência e uso de sons fora do quadro. Figura 4.74: O assaltante conta uma piada ao policial e ele anuncia que vai dar uma saída, mas volta rapidinho; composição recessiva em profundidade de campo. 296 Figura 4.75: Num plano-seqüência de 87 segundos, comum em Hollywood desde os anos 1970, a câmera segue Mr. Blonde até o carro, do lado de fora do ... Figura 4.76: ... galpão, enquanto ele pega um galão de gasolina e volta para dentro do cômodo, ainda dançando, enquanto joga líquido inflamável no policial. Figura 4.77: Este, finalmente sem mordaça (e focalizado num close-up extremo ensangüentado), implora para não ser executado, enquanto o assaltante despeja ... Figura 4.78: ... toda a gasolina sobre ele e acende um isqueiro; os pequenos sacolejos da câmera na mão reforçam a tensão que permeia a cena, até que ... Figura 4.79: ... Mr. Orange surpreendentemente salva o policial, descarregando o revólver no comparsa: o trompe l’oeil é utilizado para provocar surpresa. Figura 4.80: Câmera faz semicírculo em torno de Mr. Orange; encenação cria linha diagonal (composição recessiva), com Mr. Blonde morto no fundo do quadro. Figura 4.81: Enquanto Mr. Orange revela que também é policial e trabalhava infiltrado, o agente é mostrado num close-up extremo que acentua a violência. Figura 4.82: Coberto de sangue e focalizado em close-up, Mr. Orange diz que única chance de sobreviverem é se o chefe da gangue surgir; aí a polícia invadirá o local. Figura 4.83: No final, Tarantino inclui composição recessiva, com close-up extremo funcionando como moldura e profundidade de campo: alusão a Leone. Figura 4.84: A tomada final da cena é um plano geral bem aberto, parecido com a tomada de abertura, que integra mais uma vez os personagens ao ambiente. 297 direta a Três Homens em Conflito: eles mudam de lado constantemente, tecendo uma rede de pequenas traições que se acumula ao longo da trama. Apesar do clima surreal, a prática do worldmaking e a preocupação com a textura realista das cenas estão presentes. Tarantino se certifica de que seus personagens fumem cigarros da marca fictícia Red Apple (incluídos em todos os outros filmes dele, o que sugere que todos se passam num mesmo universo paralelo); personagens citados em diálogos aparecem pessoalmente em outros filmes – Mr. Blonde, por exemplo, cujo nome real é Vic Vega, tem um irmão que surge com destaque em Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994). Tarantino manteve no set de filmagens um paramédico, para garantir que a quantidade de sangue perdida por Mr. Orange fosse compatível com a de uma pessoa que, sangrando, permanece viva e consciente (figuras 4.82, 4.83 e 4.84). Finalmente, Tarantino faz uso humorístico da música. No caso específico, a canção executada na diegese (Mr. Blonde liga um rádio, na figura 4.68, e dança com a navalha, na figura 4.70) é “Stuck in the Middle with You” – como o título indica, trata-se de uma brincadeira irônica de humor negro com a situação dramática do policial. Como se vê, a comparação do uso de ferramentas estilísticas e narrativas da continuidade intensificada nos filmes de Leone e em filmes realizados na Hollywood dos anos 1970 confirma que o processo de intensificação das técnicas para engajar cada vez mais o espectador na trama fez com que os filmes ficassem mais retóricos, rápidos, violentos e moralmente ambíguos. A comparação de Cães de Aluguel com Operação França ou Taxi Driver, por sua vez, deixa evidente que este processo de intensificação não parou. A mesma constatação pode ser feita quando justapomos o filme de estréia de Quentin Tarantino com qualquer filme de gênero realizado uma década mais tarde. Vejamos o caso de um filme recebido por críticos como renovador de tradições, estabelecendo um paradigma de excelência de decupagem e estrutura narrativa para filmes de gênero, na virada para o século XXI: Matrix (Larry e Andy Wachowski, 1999). Este filme foi lançado sete anos depois de Cães de Aluguel; a relativa proximidade entre os lançamentos nos permite verificar os avanços do processo de intensificação estilística e narrativa de maneira cuidadosa, sem grandes saltos. A cena escolhida para análise é o confronto entre Neo (Keanu Reeves) e o agente Smith (Hugo Weaving) no metrô. É uma cena curta: quatro minutos e quatro segundos (244 segundos). A duração é menor que a metade da cena de Cães de Aluguel, mas os irmãos Wachowski utilizam quase o mesmo número de tomadas: 121 planos compõem a montagem 298 final. A média é de 1,9 segundo por plano – mais do que o dobro da velocidade de justaposição de planos encontrada em Cães de Aluguel. Há cinco composições recessivas à maneira de Leone (figuras 4.86 e 4.88) e outros três planos gerais (figura 4.103). Girando o tempo inteiro em torno dos atores, a câmera cria uma espécie de arena circular virtual, bem na linha dos duelos operísticos de Leone (figuras 4.91 e 4.92), que pareciam touradas Os efeitos sonoros maximizam os ruídos diegéticos, da mesma forma que Leone fazia. Matrix levou a técnica do pastiche a um novo patamar; a torrente de alusões a outros filmes, revistas em quadrinhos, iconografia religiosa, teorias filosóficas e cultura pop em geral é praticamente incessante. O início do confronto inclui citações diretas aos westerns de Sergio Leone: composições recessivas com moldura e profundidade de campo (figuras 4.86 e 4.88), enquadrando as mãos e a cintura dos atores em primeiro plano e o adversário ao fundo, de maneira simétrica; close-ups dos rostos tensos (figura 4.91); ruídos diegéticos amplificados (dedos estalando, o ruído de um jornal levantado pelo vento entre os dois pistoleiros, visto nas figuras 4.86 e 4.88) que pontuam o silêncio inicial e acentuam a tensão. A fragmentação do espaço fílmico, a distensão do tempo, a simetria visual (figuras 4.85 e 4.87, 4.86 e 4.88, 4.89 e 4.90, 4.93 e 4.94), a construção cuidadosa do som em sincronia com a edição de imagens, todas são técnicas recorrentes no trabalho de Leone e que integram (muitas vezes em variações mais extravagantes) o cardápio da continuidade intensificada. Quando o duelo começa de verdade, a queda dos adversários um de frente para o outro (figura 4.92) cria um pastiche do estilo visual dos filmes de John Woo, que sempre incluiu em seus thrillers policiais rodados em Hong Kong – caso, por exemplo, de O Matador (The Killer, John Woo, 1989) – essa composição visual, como uma assinatura estilística que os irmãos Wachowski homenageiam. Depois que os dois adversários largam as pistolas e passam a lutar com as mãos, os diretores recorrem a técnicas típicas da continuidade intensificada: fragmentação do espaço fílmico (através de variações dramáticas do ângulo de câmera, que passam de planos médios a close-ups extremos com rapidez, como nas figuras 4.102, 4.103, 4.104 e 4.105), cortes no meio do movimento, uso da câmera lenta (figura 4.103). A sensação de velocidade também é reforçada, em grande parte, pelo desenho de som hiper-real: além de escutar os socos e chutes com reforço nos tons de baixa freqüência (o que lhes dá a sensação de potência ampliada), pode-se ouvir até mesmo o barulho dos deslocamentos do vento provocados pelo movimento rápido dos braços e pernas dos atores, enquanto eles trocam golpes. Ao longo da disputa, os dois personagens fazem pausas e trocam diálogos irônicos; os irmãos Wachowski filmam 299 Figura 4.85: O confronto entre Neo e o agente Smith começa com um close-up extremo do primeiro; ele acredita que pode vencer o adversário cibernético. Figura 4.86: Irmãos Wachowski encenam confronto em composições recessivas com moldura e profundidade de campo: pastiche dos westerns de Sergio Leone. Figura 4.87: A simetria característica dos duelos filmados por Leone também é repetida aqui; para cada close-up de Neo corresponde um close-up de Smith. Figura 4.88: A simetria se estende à composição recessiva; Smith estala dedos e o vento sopra folha de papel: ruídos amplificados, como nos filmes de Leone. Figura 4.89: Os adversários começam a atirar um no outro quase ao mesmo tempo; ambos correm em direção à câmera, em diagonal, para fugir dos tiros. Figura 4.90: Enquanto isso, a simetria visual continua: ao plano geral que mostra Neo correndo, corresponde uma tomada que mostra Smith fazendo o mesmo. Figura 4.91: Um salta em direção ao outro; o efeito especial bullet time “congela” o tempo e permite que a câmera gire em torno dos adversários no ar ... Figura 4.92: Neo cai no chão com a pistola encostada no rosto de Smith; ele é focalizado num close-up extremo emoldurado pela nuca do adversário, composição ... Figura 4.93: ... copiada simetricamente na tomada seguinte; os ângulos de câmera e a simetria pistolasrostos consistem numa alusão aos filmes de John Woo. Figura 4.94: Com as pistolas descarregadas, os dois adversários largam as armas e decidem duelar usando os corpos; Smith destrói uma parede com um murro. 300 Figura 4.95: Com óculos quebrados, Smith ameaça Neo; trata-se do primeiro de vários diálogos que entrecortam a ação física, sempre filmados em close-ups extremos. Figura 4.96: A tomada em contra-plano acentua a noção de simetria buscada desde o princípio do duelo: para cada plano de Smith, corresponde um idêntico de Neo. Figura 4.97: Nas lutas, os irmãos Wachowski usam planos médios com freqüência, dando inteligibilidade aos movimentos, mas a câmera sempre se move. Figura 4.98: Agora Neo está em posição inferior; pela primeira vez ele cai, sangrando pela boca. O agente Smith espera que ele fuja pelas escadas, mas Neo ... Figura 4.99: ... o surpreende, levantando-se e fazendo um gesto irreverente com a mão, acentuado pelo closeup extremo; o gesto irrita o agente Smith, que ... Figura 4.100: ... parte para o ataque com raiva, a emoção acentuada pela expressão facial do ator, focalizada em close-up extremo pelos Wachowski. Figura 4.101: Socado e chutado com força pelo agente Smith, Neo voa para trás; o movimento amplo é enquadrado como um dos poucos planos gerais da cena. Figura 4.102: Depois que perebe o som fora de quadro do trem (citação a Era uma Vez no Oeste), Smith manobra para atirar Neo na linha férrea e .... Figura 4.103: ... aplica nele uma gravata, imobilizando-o enquanto aguarda a chegada do trem que irá matá-lo; o clímax da cena é montado com close-ups extremos ... Figura 4.104: ... dos dois personagens, que ainda dialogam enquanto o trem se aproxima rapidamente; a orquestra de cordas faz um crescendo para sinalizar ... 301 Figura 4.105: ... o perigo que o herói corre, enquanto os irmãos Wachowski incluem uma tomada em composição recessiva que centraliza o trem chegando. Figura 4.106: Neo consegue reverter a chave de braço do adversário e foge do trilho do trem com um salto mortal em direção à plataforma, vencendo a luta. esses diálogos pontuais de maneira intensificada, com profusão de close-ups extremos (figuras 4.93, 4.94, 4.101, 4.102, 4.106 e 4.107). O clímax da luta é sinalizado pelo som fora de quadro do metrô – uma citação à abertura de Era uma Vez no Oeste. O agente Smith executa um golpe que atira o adversário diretamente nos trilhos do trem (figuras 4.105). A luta parece terminada; numa composição recessiva, vemos o trem chegando ao longe, com os dois personagens em primeiro plano (figuras 4.108). Mas, numa reversão surpreendente (ou nem tão surpreendente assim, já que se trata de uma convenção narrativa existente desde os seriados televisivos dos anos 1930), Neo consegue dar um contragolpe e saltar de volta para a plataforma da estação, no exato momento em que o metrô atinge o adversário (figuras 4.109 e 4.110). Assim, ele vence a luta. Outro diretor contemporâneo que recorre a recursos estilísticos e narrativos característicos de Leone é Sam Raimi. Close-ups extremos, composições recessivas, representação gráfica da violência e uso de ruídos amplificados aparecem fortemente nos filmes dele, como Um Plano Simples (A Simple Plan, Sam Raimi, 1998), em que uma cena de confronto entre três caipiras, vista pela esposa de um deles, é encenada através de composições recessivas com moldura e profundidade de campo (figuras 4.107 e 4.101) e close-ups extremos (figuras 4.109 e 4.112). Os ruídos de rifles sendo engatilhados, em alto volume, acentuam a tensão. A cena culmina com um homem sendo baleado no peito, violência que Raimi enfatiza inserindo uma tomada em plano médio que mostra a vítima recebendo o tiro (figura 4.113) e outra, em que o rosto da mulher, visto em close-up, recebe um jato de sangue (figura 4.114); é uma citação a Touro Indomável (1980), de Scorsese. Um dos gêneros que mais tem utilizado técnicas do repertório da continuidade intensificada é a animação infantil. A trama de Shrek (2001), por exemplo, consiste num grande pastiche. O enredo é estruturado sobre citações irreverentes a contos de fada e a filmes infanto-juvenis anteriores, quase sempre encenadas como releituras irônicas que subvertem convenções do gênero (em particular as animações da Disney). Em outras palavras, a 302 Figura 4.107: Composição recessiva com cabeça como moldura; Raimi revisa o recurso de Leone, desfocando o primeiro plano e aproximando a figura ao fundo. Figura 4.108: O terceiro personagem vê a cena de longe, mas dá um passo à frente, enquanto a câmera se aproxima dele através de um traveling para frente. Figura 4.109: A tomada seguinte é um close-up extremo do atirador, que grita com o personagem fora do foco; os rostos mais próximos da câmera acentuam a tensão. Figura 4.110: No contra-plano, o terceiro personagem também ergue a sua arma, focalizado em plano médio; o enquadramento sugere que ele ainda está indeciso. Figura 4.111: Raimi insere mais uma composição recessiva com moldura; a encenação mantém os três atores posicionados a diferentes distâncias da câmera. Figura 4.112: O terceiro personagem passa a ser focalizado também em close-up extremo, acentuando a tensão em mais um grau: ele está perto de atirar. Figura 4.113: Atingido pelo tiro do terceiro personagem, o agressor dispara sem direção, enquanto manchas de sangue explodem contra a parede atrás dele ... Figura 4.114: ... e também respingam no rosto da mulher que assiste à cena, focalizada em close-up: representação gráfica de um ato de violência. 303 construção narrativa em larga escala de Shrek utiliza a mesma técnica que Sergio Leone usou em Era uma Vez no Oeste, só que mais exacerbada. A segunda cena, após a apresentação dos créditos (que nos apresenta aos hábitos maleducados do protagonista, um herói tão anti-social quanto os heróis de Leone), estabelece o cenário com o qual o filme vai lidar: a floresta onde vivem os personagens de contos de fada foi invadida por um vilão que cobra impostos ou expulsa os habitantes do lugar. Narrada do ponto de vista de um burro (figuras 4.116 e 4.117), a cena deixa entrever uma série de personagens que se pode reconhecer de outros filmes e histórias orais: os sete anões de Branca de Neve (figura 4.115), os três ursos de Cachinhos Dourados (figura 4.118), Pinóquio, Robin Hood, os três porquinhos (figura 4.119). Para tentar fugir da prisão inevitável, o burro rouba o pó mágico da fada Sininho, de Peter Pan, e sai voando (figura 4.120). “Vocês podem ter visto um elefante voar, mas aposto que nunca viram um burro voar”, ele diz, numa alusão irreverente a uma das canções mais lembradas de Dumbo (Ben Sharpsteen, 1941). As animações computadorizadas também têm sido terreno fértil para a utilização da técnica do trompe l’oeil cinematográfico. É possível ver dois exemplos nos respectivos prólogos de Toy Story 2 (John Lasseter e Ash Brannon, 1999) e Bolt (Byron Howard e Chris Williams, 2008). Nos dois casos, a encenação é rigorosamente a mesma: um personagem, enquadrado de frente para a câmera e olhando para frente, só percebe o elemento surpresa – que está diante dos olhos dele – depois que a câmera faz um traveling para trás, revelando simultaneamente ao público e ao personagem esse novo elemento, que o personagem certamente deveria ter percebido antes, se a representação da cena em si fosse realista. No caso de Toy Story 2, o personagem é Buzz Lightyear, um astronauta cuja missão é exterminar o bandido intergaláctico Zurg (citação ao vilão Darth Vader, de Guerra nas Estrelas). Enquadrado em close-up (figura 4.121), Buzz avisa a outros membros de sua equipe que não há sinal de vida naquele planeta, aparentemente desabitado; então a câmera faz um traveling para trás e revela dezenas de robôs que cercam completamente o herói, até onde a vista alcança (figura 4.122). Seria impossível ele não ter visto aquele cenário antes. A encenação em Bolt é idêntica. O personagem é um cachorro que protagoniza uma série de TV sem saber que está sendo filmado – pastiche de O Show de Truman (The Truman Show, Peter Weir, 1998). Ele é um filhote à venda. Está dentro de uma caixa de vidro, na vitrine da loja de animais (figura 4.123). A câmera faz um traveling para trás e revela, bem na frente dele, uma cenoura de brinquedo; em sincronia com o movimento da câmera, o cão franze a sobrancelha e começa a latir para o brinquedo (figura 4.124). Trompe l’oeil cinematográfico e pastiche, duas características recorrentes no repertório dos filmes de 304 Figura 4.115: Plano geral que inicia a cena de Shrek permite que vejamos os sete anões (de Branca de Neve) acorrentados: alusão irreverente aos contos de fada. Figura 4.116: A cena é narrada do ponto de vista de um burro, que segundo a sua dona (interessada em vendê-lo ao exércido do lorde malvado), consegue falar. Figura 4.117: Assustado, o bruxo percebe que junto com os sete anões também está presa uma feiticeira: composição recessiva em profundidade de campo. Figura 4.118: A família de ursos dque aparece na fábula Cachinhos Dourados surge presa, em mais uma das dezenas de alusões irreverentes a contos de fada. Figura 4.119: Na fila em que o burro aguarda, Gepeto aparece tentando vender Pinóquio; Robin Hood e os três porquinhos podem ser vistos em segundo plano. Figura 4.120: Depois de roubar um pouco do pó voador da fada Sininho (Peter Pan), o burro cita Dumbo (1941): “Aposto que você nunca viu um burro voar!”. animação contemporâneos, integram a continuidade intensificada e já eram utilizados muitos anos antes, nos westerns de Leone. Antes de concluir, é importante assinalar que os recursos estilísticos e narrativos da continuidade intensificada são utilizados por cineastas de quaisquer nacionalidades, idades, raças, sexos, sem vinculação a gêneros ou movimentos estéticos. O que diferencia uns diretores de outros é o grau de utilização dessas ferramentas e o tipo de adaptação ou revisão esquemática que se faz delas, a partir das características pessoais e/ou contextuais (ou seja, por causa de limites ou pré-condições) de cada profissional. 305 Figura 4.121: Após pousar num planeta desconhecido, Buzz fala no intercomunicador e, enfquadrado num close-up, diz que não pode ver nenhum sinal de vida. Figura 4.122: A câmera faz então um traveling para trás e o mostra rodeado por dezenas de robôs hostis: técnica do trompe l’oeil cinematográfico, típica de Leone. Figura 4.123: Logo depois de acordar, numa caixa de vidros na loja de animais, Bolt se espreguiça e olha em volta animadamente, parecendo entediado. Figura 4.124: Após um traveling para trás, a câmera revela um brinquedo em forma de cenoura; ao mesmo tempo, o cão arqueia sobrancelhas e ataca o brinquedo. Ferramentas que compõem o repertório dessa poética podem ser encontradas em praticamente qualquer filme; e várias dessas ferramentas foram desenvolvidas com a contribuição dos filmes de Leone. Vejamos alguns exemplos: em Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country For Old Men, Joel e Ethan Coen, 2007), a cena em que o assassino profissional (Javier Bardem) localiza a mala de dinheiro roubada é inteiramente construída com o uso de sons naturais amplificados (particularmente os bips de um localizador eletrônico); close-ups e planos detalhes fragmentam o espaço físico (figuras 4.125 e 4.126). A música neo-romântica com influências concretistas, incorporando sons da diegese, foi um recurso explorado em Desejo e Reparação (Atonement, Joe Wright, 2007), cujo compositor, Dario Marianelli, incluiu os sons da máquina de escrever usada pela personagem narradora ao longo dos trechos musicais orquestrados (figuras 4.127 e 4.128). Ruídos hiperreais amplificados, profusão de close-ups extremos (a maioria de rostos), composições recessivas e worldmaking (figuras 4.129 e 4.130) foram ferramentas adotadas em O Senhor dos Anéis (The Lord of the Rings, Peter Jackson, 2001). A violência ganha uma representação ultra-realista em Irreversível (Irreversible, Gaspar Noé, 2002), em que um homem tem a cabeça destroçada por golpes de extintor de incêndio (figuras 4.131 e 4.132). 306 Figura 4.125: Cena em que o assassino encontra a mala de dinheiro em Onde os Fracos Não Têm Vez (2007) usa o silêncio e os ruídos naturais amplificados do ... Figura 4.126: ... sinalizador que se encontra dentro da mala, mais close-ups extremos, para fazer a trama avançar sem a necessidade de diálogos expositivos. Figura 4.127: O ruído da maquina de escrever, mostrada num close-uo extremo na primeira cena de Desejo e Reparação (2007), é usado na composição musical ... Figura 4.128: ... como elemento percussivo: a mescla de música sinfônica neo-romântica com elementos diegéticos é herança da parceria Leone-Morricone. Figura 4.129: Close-ups extremos e planos-detalhes, quase sempre acompanhados de ruídos amplificados, são recursos abundantes em O Senhor dos Anéis ... Figura 4.130: ... cuja pesquisa iconográfica detalhada criou um passado histórico completo para o território ficcional da Terra Média: prática do worldmaking. Figura 4.131: Vício Frenético (2009), de Werner Herzog, inclui composições recessivas filmadas com lentes grande-angulares, como esta, e também tomadas ... Figura 4.132: ... em profundidade de campo em que os personagens em primeiro plano emolduram a ação principal que ocorre em segundo plano, como esta. 307 Figura 4.133: Ultra-violência do filme franco-argentino Irreversível (2002) inclui um longo plano-seqüência sem cortes, em que a cabeça de um homem é esmagada ... Figura 4.134: por sucessivos golpes de um extintor de incêndio, mostrados em close-up: representação da violência atinge nível maior de intensidade. Figura 4.135: Em Um Olhar do Paraíso (2009), Peter Jackson abusa de close-ups extremos dos olhos dos personagens, chegando a incluir diversas tomadas ... Figura 4.136: ... registradas com lentes grande-angulares que mostram unhas, tornando possível discernir até as linhas das impressões digitais dos dedos. Figura 4.137: Os close-ups extremos de Michael Mann, como em Fogo Contra Fogo (1995), são registrados com lentes teleobjetivas, deixando o fundo desfocado ... Figura 4.138: ... da mesma maneira que o primeiro plano sem foco das composição recessivas com moldura que o diretor norte-americano constrói em seus filmes. Composições recessivas com moldura e profundidade de foco são utilizadas tanto com lentes grande-angulares quanto com teleobjetivas (figuras 4.133 e 4.134) em Vício Frenético (The Bad Lieutenant: Port of Call – New Orleans, Werner Herzog, 2009). Close-ups extremos que focalizam apenas os olhos ou literalmente uma unha de um personagem (figuras 4.135 e 4.136), filmados com lentes grande-angulares, são freqüentes em Um Olhar no Paraíso (The Lovely Bones, Peter Jackson, 2009). Esses mesmos recursos – o close-up extremo e a composição recessiva com moldura – são revisados de maneiras diferentes em Fogo Contra Fogo (Heat, Michael Mann, 1995), cujo diretor evita as grande-angulares e usa teleobjetivas, deixando a imagem mais planimétrica (no primeiro caso, figura 4.137) ou desfocando uma das duas camadas da composição recessiva (no segundo caso, figura 4.138). Todos os exemplos exemplificam com propriedade a idéia de Gombrich (2007) a respeito dos esquemas circulantes nas artes pictóricas: cada diretor se apropria dos esquemas disponíveis, sejam eles dominantes ou não, e os revisa, de acordo com os limites e pré- 308 condições dentro das quais trabalha, e levando em consideração suas experiências prévias e seus próprios problemas de representação. Nos exemplos anteriores, Peter Jackson e Michael Mann reelaboram dois recursos abundantes em Leone (o close-up extremo e a composição com moldura) através de dois processos distintos de revisão, o primeiro usando lentes grandeangulares e o segundo, teleobjetivas. É provável que a experiência de Mann com a televisão – onde ele trabalhou por muitos anos antes de começar a dirigir filmes – tenha funcionado como influência, nesse caso, já que as lentes teleobjetivas são muito mais usadas na TV. Vale observar, ainda, que vários dos exemplos utilizados neste capítulo foram produzidos fora dos grandes estúdios de Hollywood. Os diretores citados possuem nacionalidades distintas, trabalharam dentro de sistemas de produção diversos, foram influenciados por limites e pré-condições de naturezas diferentes. O que os une é que todos replicaram ou revisaram ferramentas da continuidade intensificada, e esse repertório de técnicas já aparecia de forma recorrente na obra de Leone. Naturalmente, nos filmes mais comerciais, é possível identificar esses recursos com mais recorrência, porque esses filmes demandam maior engajamento emocional do espectador, exigindo assim uma revisão mais intensa dos esquemas. Vejamos uma passagem de Titanic (James Cameron, 1997). A cena consiste de uma transição entre cenas, que nos leva do presente para o passado da trama (ou seja, de 1997 para 1912), através das memórias de uma personagem presente na trágica viagem do navio – e vale lembrar que os flashbacks são elemento recorrente na obra de Leone. Cameron inicia a transição com um close-up extremo do rosto da passageira do navio (figura 4.139). Num zoom lento para frente, a câmera se aproxima dos olhos da mulher (convenção que leva os espectadores a perceber que, no plano seguinte, estaremos dentro das memórias dela), mas não se detém neles; segue em frente, circulando-a, para focalizar a tela do monitor de TV que se encontra atrás dela, e que mostra uma imagem dos destroços do navio afundado. O close-up se transformou, sem cortes, numa composição recessiva com moldura (figura 4.140). O espectador continua ouvindo a mulher contando sobre o dia do embarque no Titanic (o som do monólogo proporciona a sensação de continuidade), enquanto a câmera gira em torno da imagem da carcaça do navio; esta, através de uma sobreposição digital, se funde com uma imagem do mesmo navio, agora funcionando a pleno vapor, em 1912 (figura 4.141). A tomada encerra com um plano geral que focaliza o Titanic em toda sua majestade (figura 4.142). A obsessão de Cameron com a acuidade histórica o levou a reconstruir uma réplica perfeita do navio (utilizando as plantas da embarcação verdadeira). Trata-se do tipo de 309 Figura 4.139: Transição para um flashback – recurso estilístico recorrente na obra de Leone – inicia com um close-up extremo que busca os olhos da mulher. Figura 4.140: Num traveling para frente, a câmera focaliza o monitor de TV com a imagem do Titanic, emoldurada pela cabeça: composição recessiva. Figura 4.141: Enquanto ela recorda o dia da partida do navio, uma sobreposição feita com efeitos especiais transformam os destroços numa réplica ... Figura 4.142: ... e retornam finalmente ao ano de 1912, num plano geral aberto que enfatiza a perfeição da reconstrução da embarcação: worldmaking. pesquisa iconográfica que Leone levou a cabo em Três Homens em Conflito e Era uma Vez na América, constituindo a prática do worldmaking. Exemplos da poética da continuidade intensificada podem ser rastreados em quase todos os filmes contemporâneos, com variadas gradações de ênfase. Nesse sentido, não se trata de uma prática estilística que se pode adotar ou descartar, mas sim de um repertório de esquemas que revisaram os princípios gerais das três vertentes da poética do cinema, sem quebrá-los ou abandoná-los, mas ajustando-os a novos contextos sócio-culturais, tecnológicos, políticos, ideológicos e econômicos. E esse conjunto de ferramentas narrativas e estilística está disponível a todos os cineastas. Ao longo do último capítulo, pudemos traçar conexões estilísticas e narrativas entre a obra de Leone e filmes de diretores contemporâneos. É importante ressaltar que o objetivo desta seção era demonstrar que Leone, efetivamente, desempenhou um papel importante no desenvolvimento de algumas dessas ferramentas, que constituem a continuidade intensificada. Não se trata de reivindicar para Leone o papel de principal criador (muito menos de criador solitário) dessa poética, já que tal figura histórica jamais existiu. 310 Conclusão A poética da continuidade intensificada é uma criação teórica que nasceu do estudo das práticas narrativas e estilísticas de um grupo de diretores que atuaram nos anos 1960. Esses diretores realizaram filmes nos mais diferentes países, sob condições diversas de produção, e a partir das influências mais díspares. Esta tese procurou confirmar que Sergio Leone foi um importante cineasta desenvolvedor dessa poética. Essa comprovação foi afirmada através de uma análise estilística rigorosa dos filmes que ele realizou. No entanto, em parte pelo fato de a estilística continuar sendo uma disciplina ainda pouco importante nos estudos cinematográficos, em parte por causa do preconceito (muitas vezes inconsciente) dos críticos para com o cinema oriundo de gêneros e ciclos populares, Leone ainda hoje é visto mais como diretor famoso do que como cineasta influente. Sua importância histórica, quando tomada sob o ponto de vista da abordagem estilística, ainda se faz merecedora de mais atenção do que recebe. Nosso estudo de caso sobre a filmografia de Sergio Leone demonstrou como ocorreram alguns dos processos de revisão dos esquemas circulantes da poética clássica do cinema, levados a cabo a partir dos anos 1960. Assinalam, também, que várias dessas revisões tiveram origem e/ou atravessam os filmes dele. Ao longo deste relato, procuramos desvelar a dimensão real da contribuição que Leone ofereceu à constituição da continuidade intensificada – uma contribuição que vai muito além da maneira como Leone filmava bundas de cavalos, para retornar à anedota proferida por Bernardo Bertolucci. Como já vimos, quando se fala em continuidade intensificada (usando-se ou não o termo criado por Bordwell), é lugar-comum citar Godard, Bergman, Truffaut, Fellini, Antonioni, Tarkovski, Resnais e outros diretores modernistas europeus, todos associados a um cinema feito para um consumo segmentado, para o qual muitos estudiosos usam o termo “cinema de arte”. Todos esses diretores, sem dúvida, exerceram papéis destacados na constituição da poética da continuidade intensificada. Mas outros cineastas que aturaram na mesma época e trabalharam com gêneros de índole popular, especialmente aqueles que atuaram dentro de ciclos de produção massiva – como é o caso de Sergio Leone –, continuam a ter seus papéis históricos, dentro desse processo, minimizados ou mesmo desprezados. Esse fenômeno ocorre inclusive com aqueles que, como Leone, passaram por algum tipo de revalorização crítica ao longo de suas carreiras, tornando-se dignos de respeito. Como pudemos ver, esse respeito é, de certa forma, apenas relativo. 311 A abordagem estilística, especialmente quando amparada na análise fílmica ampla e detalhada, pode ajudar a concretizar possibilidades de leitura alternativa da história do cinema, tendo o desenvolvimento do estilo como eixo principal. Essas possibilidades nos parecem importantes, não apenas porque relativizam a importância do gosto e do juízo de valor na construção de uma historiografia do audiovisual, mas para que seja possível compreender melhor como se dá o desenvolvimento e a o aprimoramento das soluções estilísticas para problemas de representação – ou seja, as escolhas operadas pelos diretores, cada um dentro do contexto sócio-cultural específico no qual trabalhou – dentro do cinema. No percurso desta tese, vimos como Leone exerceu um papel de liderança estilística dentro do ciclo popular do spaghetti western, criando, revisando e adaptando soluções para problemas de representação que passaram a ser copiadas ou recicladas por toda uma geração de diretores. Por sua vez, a popularidade dos títulos vinculados ao ciclo de spaghetti western (não apenas entre os espectadores comuns, mas também entre os cineastas das gerações subseqüentes) ofereceram uma contribuição destacada ao desenvolvimento e à consolidação da poética da continuidade intensificada. Vimos como a obra de Leone foi importante na instituição de um novo perfil de herói, mais cínico e individualista. Observamos como os filmes dele auxiliaram outros diretores dos anos 1960 a romper o tabu da representação da violência no cinema. Demonstramos como Leone incorporou a seus filmes aspectos da experiência sócio-cultural pós-moderna, a exemplo da ironia e da nostalgia. Explicamos como ele refinou a técnica do pastiche cinematográfico e como resgatou, revisando-as e ampliando-as, técnicas oriundas do cinema clássico, como os close-ups extremos e as composições recessivas em profundidade de campo. Vimos como Leone ampliou a importância do uso de efeitos sonoros e silêncios na construção da narrativa, e como incorporou influências da música pop e do concretismo às composições predominantemente neo-românticas que sempre caracterizaram a poética da continuidade clássica. Detalhamos como ele intensificou o cuidado com a verossimilhança e com a acuidade histórica de cenários, objetos cênicos e figurinos, antecipando a prática do worldmaking. Por fim, demonstramos como essas ferramentas estilísticas foram resgatadas por cineastas de várias tendências, nos anos a seguir, passando então a constituir novos esquemas circulantes que compõem atualmente a poética da continuidade intensificada. De certo modo, Sergio Leone não encapsula a imagem do artista como gênio, no sentido original e romântico do termo (COMPAGNON, 2010). O gênio artístico, para filósofos como Kant, Schopenhauer e Nietzsche, constitui um dom natural. Não pode ser aprendido ou ensinado, pois nasce da intuição pura; pode ser, no máximo, refinado através das 312 técnicas de produção, do conhecimento e da cultura (aliás, nesse ponto, Nietzsche difere dos outros dois filósofos mencionados, já que considerava a cultura como um aspecto limitador – e não amplificador – do gênio). No caso de Sergio Leone, quando estudamos com cuidado os limites e pré-condições que circundavam os contextos histórico, sócio-cultural, tecnológico e econômico no qual ele operou, concluímos claramente que nenhuma das marcas estilísticas recorrentes em seus filmes nasceu de uma inovação radical ou de uma revisão estilística sem lastro histórico discernível. Leone não rompeu com a tradição audiovisual que o precedeu; ele a reforçou e ampliou em diferentes direções. Sua obra confirma a tese de David Bordwell: a continuidade intensificada consiste de um processo contínuo de intensificação da poética do cinema, através da revisão constante dos princípios narrativos e estilísticos que governam a construção de sentido das obras audiovisuais. Sergio Leone foi, sim, um renovador de tradições cinematográficas. Os processos de revisão dos esquemas estilísticos que ele levou a cabo são produto (direto ou indireto) da rede de contextos dentro da qual ele se desenvolveu como cineasta. Essa constatação não diminui sua importância como artífice – um dentre muitos – da poética dominante do cinema contemporâneo. Para concluir: pode-se perfeitamente não gostar dos filmes de Leone, assim como pode-se simplesmente achar desimportante a maneira como ele filmava bundas de cavalo, mas a análise estilística minuciosa da obra dele demanda um reconhecimento crítico que deve ir além de uma nota de rodapé nos livros de história do cinema. 313 Referências ALTMAN, Rick. 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País: Itália. Direção: Roberto Rossellini. Ano de produção: 1945. Sabata. Título original: Sabata. País: Itália. Direção: Gianfranco Parolini. Ano de produção: 1969. Sangue de Pantera. Título original: Cat People. País: Estados Unidos. Direção: Jacques Tourneur. Ano de produção: 1942. Sartana. Título original: Sartana. País: Itália. Direção: Gianfranco Parolini. Ano de produção: 1968. Scarface. Título original: Scarface. País: Estados Unidos. Direção: Howard Hawks. Ano de produção: 1932. Sem Destino. Título original: Easy Rider. País: Estados Unidos. Direção: Dennis Hopper. Ano de produção: 1969. Sete Homens e um Destino. Título original: The Magnificent Seven. País: Estados Unidos. Direção: John Sturges. Ano de produção: 1960. Sete Homens Sem Destino. Título original: Seven Men From Now. País: Estados Unidos. Direção: Budd Boetticher. Ano de produção: 1956. 325 Shrek. Título original: Shrek. País: Estados Unidos. Direção: Andrew Adamson e Vicky Jenson. Ano de produção: 2001. Síndrome de Caim. Título original: Raising Cain. País: Estados Unidos. Direção: Brian De Palma. Ano de produção: 1992. Sodoma e Gomorra. Título original: Sodom and Gomorrah. País: Estados Unidos. Direção: Robert Aldrich. Ano de produção: 1962. Taxi Driver. Título original: Taxi Driver. . País: Estados Unidos. Direção: Martin Scorsese. Ano de produção: 1976. Tempo de Massacre. Título original: Tempo di Massacro. País: Itália. Direção: Lucio Fulci. Ano de produção: 1966. Tepepa. Título original: Tepepa. País: Itália. Direção: Giulio Petroni. Ano de produção: 1968. The Musketeers of Pig Alley. Título original: The Musketeers of Pig Alley. País: Estados Unidos. Direção: David W. Griffith. Ano de produção: 1912. Titanic. Título original: Titanic. País: Estados Unidos. Direção: James Cameron. Ano de produção: 1997. Touro Indomável. Título original: Raging Bull. País: Estados Unidos. Direção: Martin Scorsese. Ano de produção: 1980. Toy Story 2. Título original: Toy Story 2. País: Estados Unidos. Direção: John Lasseter e Ash Brannon. Ano de produção: 1999. Três Homens em Conflito. Título original: Il Buono, il Brutto, il Cattivo. País: Itália. Direção: Sergio Leone. Ano de produção: 1966. Trinity Ainda é Meu Nome. Título original: Continuavano a Chiamarlo Trinità. País: Itália. Direção: Enzo Barboni. Ano de produção: 1971. Tubarão. Título original: Jaws. País: Estados Unidos. Direção: Steven Spielberg. Ano de produção: 1975. Um Certo Capitão Lockhart. Título original: The Man From Laramie. País: Estados Unidos. Direção: Anthony Mann. Ano de produção: 1955. Um Dia de Cão. Título original: Dog Day Afternoon. País: Estados Unidos. Direção: Sidney Lumet. Ano de produção: 1975. Um Olhar no Paraíso. Título original: The Lovely Bones. País: Estados Unidos. Direção: Peter Jackson. Ano de produção: 2009. Um Plano Simples. Título original: A Simple Plan. País: Estados Unidos. Direção: Sam Raimi. Ano de produção: 1998. Um Tiro na Noite. Título original: Blow Out. País: Estados Unidos. Direção: Brian De Palma. Ano de produção: 1981. Uma Bala para Um General. Título original: Quien Sabe?. País: Itália. Direção: Damiano Damiani. Ano de produção: 1966. 326 Vera Cruz. Título original: Vera Cruz. País: Estados Unidos. Direção: Robert Aldrich. Ano de produção: 1954. Vício Frenético. Título original: The Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans. País: Estados Unidos. Direção: Werner Herzog. Ano de produção: 2009. Winchester 73. Título original: Winchester 73. País: Estados Unidos. Direção: Anthony Mann. Ano de produção: 1950. Wyatt Earp. Título original: Wyatt Earp. País: Estados Unidos. Direção: Lawrence Kasdam. Ano de produção: 1994. Yojimbo. Título original: Yojimbo. País: Japão. Direção: Akira Kurosawa. Ano de produção: 1961. 327 Anexos Tabela A: Números de produção de spaghetti westerns (1960-1980) Ano Weisser 31 Fridlung 32 Catálogo Bolaffi 33 % do total da produção italiana 34 1960 - 1 2 - (135) 1961 4 1 - - (152) 1962 2 2 - - (160) 1963 14 14 - - (164) 1964 27 35 13 8,1 (160) 1965 42 58 34 18,7 (182) 1966 69 68 52 22,9 (227) 1967 66 70 66 27,7 (238) 1968 83 73 71 29,6 (240) 1969 43 33 26 10,8 (241) 1970 34 42 35 15,9 (220) 1971 54 51 39 18,4 (211) 1972 51 44 42 15,5 (277) 1973 24 20 18 7,7 (234) 1974 19 12 8 3,3 (240) 1975 10 13 5 2,5 (201) 1976 5 3 2 0,85 (234) 1977 4 2 3 2,0 (150) 1978 3 3 2 3,5 (56) 1979 0 1 0 - 1980 1 0 0 - Total 555 546 418 13,00 (3111) Fonte: The Spaghetti Westerns: A Tematic Analysis (FRIDLUND, 2006, p. 8). 31 Dados compilados por Thomas Weisser (1992). Dados compilados por Bert Fridlund (2006). 33 Estatísticas publicadas anualmente pelo Catálogo Bolaffi (dados oficiais do Governo da Itália). 34 Estatísticas publicadas anualmente pelo Catálogo Bolaffi (dados oficiais do Governo da Itália). 32 328 Tabela B: Produção de filmes em geral e westerns em Hollywood (1926-1967) Ano Total de filmes Total de westerns Percentual de westerns 1926 1927 1928 1929 1930 1931 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 700* 678 641 562 509 501 489 507 480 525 522 538 455 483 477 492 488 397 401 350 378 369 366 356 383 391 324 344 253 254 272 300 241 187 154 131 147 121 141 153 I56 178 199 145 141 92 79 85 108 65 76 145 135 135 122 123 143 130 120 103 95 80 98 95 108 97 130 109 108 92 69 68 83 70 54 39 28 22 15 11 21 22 20 20 28 21 11 16 16 17 22 13 16 28 26 25 27 25 30 27 25 26 24 23 26 26 30 27 34 28 33 27 27 27 31 23 22 21 18 17 10 9 15 14 13 11 * total aproximado Fonte: The BFI Companion to the Western (BUSCOMBE, 1988, p. 427) 329 Apêndices Tabela A: Quantidade de linhas de diálogo em filmes de gênero Era uma Vez no Oeste (1968) Quando Explode a Vingança (1971) Meu Nome é Ninguém (1973) Três Homens em Conflito (1966) Por uns Dólares a Mais (1965) Era uma Vez na América (1984) Por um Punhado de Dólares (1964) O Homem do Oeste (1958) Vera Cruz (1954) Johnny Guitar (1954) Matar ou Morrer (1952) Legião Invencível (1949) Paixão dos Fortes (1946) Os Brutos Também Amam (1953) Sete Homens Sem Destino ((1956) O Resgate do Bandoleiro (1957) O Homem que Matou o Facínora (1962) Rastros de Ódio (1956) O Homem que Luta Só (1959) Céu Amarelo (1948) No Tempo das Diligências (1939) O Preço de um Homem (1953) Um Certo Capitão Lockhart (1955) Onde Começa o Inferno (1959) Dragões da Violência (1957) Minha Vontade é Lei (1959) Região do Ódio (1954) Winchester 73 (1950) Rio Vermelho (1948) Duelo ao Sol (1946) DIÁLOGOS DURAÇÃO 686 linhas 728 linhas 593 linhas 943 linhas 719 linhas 1359 linhas 687 linhas 730 linhas 694 linhas 834 linhas 670 linhas 838 linhas 795 linhas 1011 linhas 642 linhas 691 linhas 1093 linhas 1116 linhas 689 linhas 961 linhas 1005 linhas 953 linhas 1102 linhas 1526 linhas 917 linhas 1417 linhas 1128 linhas 1103 linhas 1628 linhas 1793 linhas 175 minutos 157 minutos 117 minutos 179 minutos 132 minutos 229 minutos 99 minutos 100 minutos 94 minutos 110 minutos 85 minutos 103 minutos 97 minutos 118 minutos 73 minutos 78 minutos 123 minutos 119 minutos 73 minutos 98 minutos 96 minutos 91 minutos 104 minutos 141 minutos 79 minutos 122 minutos 97 minutos 92 minutos 133 minutos 144 minutos LINHAS POR MINUTO 3,92 4,63 5,06 5,26 5,44 5,93 6,93 7,30 7,38 7,58 7,88 8,13 8,19 8,56 8,79 8,85 8,88 9,37 9,43 9,80 10,46 10,47 10,59 10,82 11,60 11,61 11,62 11,98 12,24 12,45 330 Tabela B: Uso de close-ups e movimentos de câmera em filmes de Sergio Leone Close-ups sem movimento Close-ups extremo sem movimento Outros enquadramentos sem movimento Close-ups com movimento Close-ups extremos com movimento Outros enquadramentos com movimento Total de planos do filme Plano mais longo do filme Média de duração de um plano Por um Punhado de Dólares 166 185 246 55 32 173 Três Homens em Conflito Era uma Vez na América 241 410 363 84 141 233 275 347 390 169 228 278 857 86 segundos 6,5 segundos 1.472 87,2 segundos 7,1 segundos 1.687 247,4 segundos 7,9 segundos