Coletânea de contos Vários autores Cartas do Pequeno Imperador Vol 1: feito por Elas ©2015 Vários autores Contato: http://cartasdopequenoimperador.blogspot.com http://facebook.com/gloriosoimperiobrasil Edição, Diagramação e Arte: Eber Josué Impressão e acabamento: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C184c Cammarota, Bianca Cidreira et al. Cartas do pequeno Imperador (Vol 1 - feito por Elas) / Bianca Cidreira Cammarota [et al.] – Três Corações: Eber Josué Dias de Oliveira, 2015. 154 p. ISBN 978-85-8196-956-5 1.Literatura brasileira. 2.Ficção. 3.Contos brasileiros. 4.História do Brasil. 5.Brasil Imperial. 6.Dom Pedro II. I. Eber Josué, org. II. Série Glorioso Império do Brasil. III. Título. CDD: B869.3 CDU: 82-3 / 82-92/94 Índices para catálogos sistemáticos 1.Literatura brasileira: 869.3 2.Ficção : Contos brasileiros: 869.308 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização dos respectivos autores. Coletânea de contos Vários autores Cartas do Pequeno Imperador Vol 1: feito por Elas 1ª Edição Três Corações-MG Abril de 2015 PREFÁCIO Ao ser convidada para escrever o prefácio deste livro, aceitei de pronto. Para mim é uma honra fazer parte de uma obra organizada por meu grande amigo e escritor Eber Josué, cujo senso crítico já evidencia o alto grau de qualidade contida nos contos selecionados e incluídos nesta coletânea. Além disso, chamou-me muito a atenção, em diversos textos, o teor literário voltado para o público infanto-juvenil, educadora que sou de um público alvo também nessa faixa etária. Sinto-me lisonjeada em apreciar esta obra, que reúne várias autoras de portes elevados. O livro “Cartas do pequeno Imperador” trata-se de contos fictícios sobre a infância do Dom Pedro II, órfão de mãe com apenas um ano, de pai aos oito, e destinado, desde os cinco anos, a ser o Imperador de um país gigante como o Brasil. Uma literatura envolvente que nos levará a conhecer diversas formas de pensamentos e descrições. Uma obra direcionada a todo público que deseja enriquecer seus conhecimentos e viajar no imaginário mundo Real, que é esta coletânea tão bem escolhida e desenvolvida com dedicação e carinho. Acredito que todo escritor tenha sua peculiaridade ao descrever suas ideias e pensamentos, e quando mergulhamos em seus escritos desvendamos a particularidade de cada um. Como disse a escritora Clarice Lispector, no seu livro Água viva, “Sou um coração batendo no mundo”. Você concordará comigo, leitor, que cada uma das escritoras desta coletânea é um coração batendo no mundo. E são esses corações pulsantes que mantém viva a nossa paixão pelos livros e pela literatura. IVY JATOBÁ Educadora ÍNDICE PREMIADOS Ana Luiz Sua Majestade, meu pai 9 Anatieli Fiabane Os pés descalços de Esmeralda 25 Anna Julia Dannala Franco de Souza Conselho de amigo 36 Bianca Cidreira Cammarota A mim mesmo 41 Caroline da Cruz Alias A carta profética 53 Maria Angelica Ferrasoli Pedro e Julio 61 Maria José Rodi Passerino As jóias de Rebeca e o Pequeno Imperador 69 Mirian Rodrigues Aud A última carta de um menino 78 Nana Rodrigues Protocolo 192: comunicado à Família Real 91 Neyd Montingelli Um segredo só nosso 97 MENÇÕES HONROSAS Ana Lygia Cantiga de leite e de fé 112 Grasiela Elenice Stoffel Leopoldina e o Imperador 119 Isa Rita Sou criança e não abro mão disso... 133 Letícia Magalhães Entre cartas e diários 140 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Ana Luiz [Lousa, Loures, Lisboa, Portugal] Nascida em Vendas Novas, Portugal, no ano de 1974, é Licenciada em Psicologia Aplicada e Mestre em Informática, atuando na área bancária. Duas das suas grandes paixões são a leitura e a escrita. Contudo, só em 2012, quando a sua situação profissional e acadêmica o permitiram, dedicou-se mais seriamente a esses hobbies. Fundou o blogue literário “Linked Books”, do qual é coadministradora, publicou um livro a solo, intitulado “O Quebra-Montras” e participou com diversos contos em antologias e revistas. Recentemente, obteve o 2º prémio no IV Concurso Internacional de Contos Vicente Cardoso, na categoria de autor internacional. Sua Majestade, meu pai Rio de Janeiro, 25 de Fevereiro de 1834 «A Sua Digníssima Majestade, meu querido Rei, meu pai. É com grande alegria que vos escrevo, sabendo-o de boa saúde em terras da Europa. São enormes e dolorosas as saudades que de si guardo, mitigadas, apenas tenuemente, por suas tão aguardadas epístolas que velo como tesouros. Apesar de aspirar o momento em que voltarei a estar em Sua nobre presença, saiba que entendo e reconheço no nosso afastamento, a sagrada mão de Nosso Senhor. Sua Majestade certo dia me escreveu: “Os nossos destinos enquanto homens, são ditados por um destino de força maior, o de sermos reis dos homens”, e abraço esse propósito de vida, com extrema seriedade. De olhos postos no futuro, apesar das atribulações e dificuldades próprias de minha idade, tenho-me dedicado de corpo e alma aos estudos, sob a perene supervisão de meu respeitável tutor D. José Bonifácio. Sobre a natureza dessas dificuldades, gostaria de lhe solicitar que com elas não se apoquente. São irri9 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ sórias e residuais, e atribuo-as ao facto de, apesar do grandioso destino que o futuro me reserva, ser, na presente data, ainda um infante. Não me afligem as intrigas palacianas e as disputas políticas, a que meu Pai se referiu na sua prévia carta. Imerso no estudo, procurando apreender todas as ferramentas que o glorioso ofício de imperador me exigirá, essas questões, não me provocam vigília nas preciosas horas de descanso. Confesso meu Pai, contudo, que sinto que as horas de descanso não me repousam suficientemente, apesar de as cumprir rigorosamente, como é Seu conselho e ordem. O cansaço acompanha-me muitas vezes, impedindo-me a tão necessária concentração que as disciplinas de estudo exigem. Contudo, a ninguém mais que à minha pessoa poderei atribuir o ónus desta ocorrência, o que me causa grande angústia. Por tal, por mo terdes perguntado, e por desejar seu conselho, lho quero confessar, meu pai. Acontece que, uma grande novidade tem ocupado os meus mais profundos pensamentos, apesar de saber errado, ocupar-me de tão trívias conjecturas. O Senhor Rafael, nosso estimado amigo e meu protector, descobriu há poucas semanas, umas grutas, dentro da nossa propriedade. A entrada agora descoberta, havia estado camuflada entre árvores doentes que foram abatidas. Rafael tem procedido a averiguações, durante as horas das minhas lições. Suspeito que terá tido instruções, não sei se suas, para não 10 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas me revelar notícias sobre essa exploração, apesar de lhas solicitar amiúde. Se tal é verdade, desde já me desculpo, meu pai. Acatarei sua decisão com tranquilidade, e esquecerei o assunto. Mas vejome actualmente absorto no imaginário, sonhando agitadamente que o acompanho. Não o faço conscientemente, mas como já lhe referi, meu pai, temo que seja a minha condição de infante, que me induz nestas divagações. Peço-lhe pois, conselho sobre este assunto, que é o único que me atormenta, desculpando-me por ocupar seu tempo com estas fúteis atribulações. Seu filho que o respeita e adora, Infante Pedro.» Paris, 29 de Abril de 1834 «Meu mui querido e respeitado filho Pedro. Estimo que se encontre bem de saúde, e a progredir nos seus estudos. Tenho recebido excelentes notícias de seu estimado e responsável tutor, e bem vejo em suas cartas como tem evoluído, o que mui me apraz. Toda sua conduta tem sido largamente comentada e elogiada. Sinto-me abençoado por, apesar da nossa forçada distância, sabê-lo conduzir-se honradamente nos planos que Deus para si traçou. Seu pai sente-se deveras orgulhoso de si, e faz votos para que o tempo e a distância se encurtem, permitindo que estejamos frente a frente num futuro breve. 11 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Folgo sabê-lo distante das intrigas palacianas, uma vez que a sua condição entre tantas influências e pressões me preocupa. A sua mente deve estar livre de mesquinhas intrigas de poder e influências. Todas as cortes e todos os palácios reais, são invariavelmente assaltados por essa praga. É meu conselho para si, meu filho estimado, para agora e no futuro, se mantenha sempre tão próximo quanto afastado de tais malefícios. Próximo no conhecimento, pois deverá conhecer tudo, o que de mau e de bom se move no seio de sua corte, sejam elas pessoas ou ideias. Afastado, para que delas possa ter uma melhor compreensão e agir sempre em consonância, sem sofrer influências que não sejam as da sua mente, do seu coração, e de Deus Nosso Senhor. Quanto ao assunto que o atormenta meu filho, tomei providências para que lhe seja permitido acompanhar Rafael no reconhecimento das recentemente descobertas grutas. Acompanha esta carta, outra, para que ele leia de minha pena, a autorização necessária. Ficará o documento com o selo real, que poderá apresentar a José Bonifácio, seu tutor, e a Mariana Carlota, sua dadama e extremosa aia, caso seja levantada qualquer objecção. Devo-lhe dizer, meu filho, que não encaro a sua vontade de acompanhar Rafael, apenas como um capricho infantil. Orgulhame que o queria acompanhar, pois nem todos os homens têm a coragem e a fibra para se aventurarem a locais onde a outros tremem os joelhos. Sinto pois, que essa sua coragem, é mais uma das suas grandes qualidades, e que virá a revelar-se-lhe valiosa no futuro. Por outro lado, dar-lhe-á um pouco de actividade ao ar 12 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas livre, o que fortifica qualquer rapaz, seja ele rei ou peão. Aviso-o contudo de que deverá seguir escrupulosamente todas as indicações de Rafael, sob pena de eu cessar esta autorização. Esperando que esta decisão vá ao encontro dos seus desejos, os votos sinceros de saúde e paz, seu pai, Sua Majestade Dom Pedro I» Paris, 29 de Abril de 1834 «Meu estimado amigo Rafael, Espero que esta carta o vá encontrar bem de saúde. Escrevo-lhe em primeiro lugar para agradecer a sua excelência, enquanto amigo e protector do pequeno D. Pedro. Sei que a amizade que me dedica se estende a nosso infante, e tal tem transparecido na formação de um carácter instruído e sensato, mas também nobre e corajoso. A minha gratidão para consigo será eterna. Serve esta carta em especial, para lhe autorizar que meu filho Pedro o acompanhe nos trabalhos que tem desenvolvido nas recentes grutas descobertas, sobre as quais já me havia feito relatório. Agradeço-lhe essa sua preocupação em relação à segurança palaciana, tão fundamental, para que a paz de espírito reine sobre todos. Concordo com o conteúdo da sua última carta, em que expõe a ameaça que representa a existência antes ignorada, de cavernas nos domínios. Poderia, por certo, ser uma circunstância infeliz, que sendo descobertos por ladrões ou assassinos, a vida de todos, mas em especial do pequeno rei, poderia correr grande perigo. 13 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Esses trabalhos contudo, têm suscitado a imaginação do pequeno Infante, o que louvo, pois prova tratar-se de um rapaz vigoroso, e de coragem. Também demonstrou a sua persistência e determinação ao fazer-me tal pedido, apesar, de segundo me foi informado, terem-lhe sido proibidas tais actividades por parte de seu tutor. Sei que Rafael não aprecia o tutor do menino Pedro, mas é inegável que Bonifácio tem feito um trabalho notável e magnífico, e isso bem se demonstra pela qualidade de vocabulário e de pensamento nas cartas que meu pequeno Rei me escreve. Porém, conter uma criança sempre no estudo, poderá ter resultados nefastos, na sua vida futura. Assim, e no sentido de incutir peso no outro prato da balança, permito que Pedro o acompanhe não mais que uma hora, todos os dias. Nosso infante recebeu instruções para lhe obedecer cegamente, pelo que não prevejo problemas, dado tratar-te de um rapaz íntegro, cuja palavra sempre tem cumprido. Prevejo grandes benefícios para o pequeno, em acompanhá-lo. Não só de ordem recreativa e de actividade fora das salas palacianas, mas também de reforço de seu carácter. Qual o rei que não retira benefícios em se deixar ensinar por um valente e corajoso soldado, como é o meu mui amigo Rafael? Despeço-me, agradecendo-lhe, seu Rei e eterno amigo, Sua Majestade Dom Pedro I» Rio de Janeiro, 2 de Junho de 1834 14 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas «A Vossa Digníssima Majestade, Escrevo-lhe na esperança de se encontrar bem, e com o coração condoído de não o poder acompanhar nas suas andanças por terras da Europa. Sou seu soldado e amigo, e o senhor, é minha majestade e meu rei. É pois o meu lugar, ao seu lado, e lamento esta forçada distância a que estou obrigado, não mo permitir ocupar. Não hesite em mandar-me chamar, caso lhe possa ser útil. No entanto, saiba que adopto o dever que me imputou com aprazimento, e lhe dedico de bom grado, todos os minutos das minhas horas. Juro-lhe meu Rei, que não abandonarei a beira do menino Infante, enquanto eu deixar entrar o ar neste peito batido, nem que ele próprio mo ordene. Também eu me orgulho do homem em que o menino se transforma dia-a-dia, e tenho fé que se tornará em breve no grande Imperador que o nosso Brasil tanto carece. Quanto ao menino acompanhar-me nas grutas, será um privilégio tomá-lo ao meu cuidado. Não vejo inconveniente na sua presença, pois é já seguro que as cavernas não escondiam qualquer intenção de malfazer às gentes do palácio. As cavernas são muito profundas, mas não são construções humanas, nem existem nelas ligações para fora dos limites da propriedade real, que pudessem servir de brecha para qualquer invasão premeditada. São verdadeiramente magníficas e dignas de exploração cuidada. Tenho-me deslumbrado com várias maravilhas naturais, algumas de não fácil acesso, e estou certo que o nosso futuro rei, encontrará nelas diversão, e terá um campo de 15 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ exploração onde outros atributos que não os do estudo, poderão ser testados e desenvolvidos. Por mim, tudo farei para que tal aconteça, Seu eterno e fiel amigo, Rafael.» Rio de Janeiro, 20 de Julho de 1834 «A Vossa Digníssima Majestade, Meu Querido Rei, Meu Pai, Que a boa saúde o tenha acompanhado desde nossa última carta, são os meus mais sinceros votos. Chegam-me de nossa corte de Portugal, relatos um pouco alarmantes, de grande lutas e quezílias, e sei que meu Pai carece de todas suas forças para triunfar, o que não tenho qualquer dúvida que assim acontecerá. São tantos os agradecimentos que lhe tenho a fazer, e tantas as histórias que tenho para lhe contar, que só o poderei fazer devidamente, quando nos voltarmos a encontrar, o que espero ser em breve. As saudades de meu mui estimado pai, são cada vez maiores, e à medida que vou evoluindo, sinto que há coisas que só o Senhor, enquanto Rei designado por Nosso Senhor, me poderá instruir. É minha missão, aprender a governar o melhor que a minha pessoa consegue, este povo e esta terra, que são meus do coração. Apesar de não conseguir relatar todos os recentes acontecimentos, há algo que é necessário partilhar consigo, pois é imperativo o seu conselho sobre que uso dar a um achado curioso e intrigante, que me deixou a mim e a Rafael abismados. Realizá- 16 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas mos este achado nas grutas, após uma descida a uma das cavernas inferiores. Todas as cavernas têm ostentado, sem excepção, maravilhas naturais únicas, dignas de um bom livro de ciência da exploração. Mas uma houve, que me deixou e mim e a Rafael, abismados e aturdidos. Não havia qualquer dúvida de que aquela gruta havia testemunhado a visita de gente como nós, e não apenas da mãe Natureza. Todas as paredes estavam decoradas de mil cores e símbolos, e o chão coberto de pequenos artefactos que pareciam ter servido em tempos para decorar e iluminar. Mas o mais incrível, era uma espécie de altar que se erguia ao centro, também ele decorado de símbolos coloridos e indecifráveis, e o que parecia ser uma arca colocada no centro desse altar. Após exploração cuidada, assegurando-se da ausência de perigo, Rafael permitiu-me abrir a antiga e magnífica arca. Confesso que receei naquele momento, pois desmoronou-se ao toque, como um castelo feito de areia. Parecia ter sido feita de uma qualquer espécie de barro, seco pelo anos, e ao removermos toda a terra e poeira, surgiu a maior surpresa de todas. No centro do altar, depois de todos os restos da velha arca terem desaparecido, eis que lobrigamos num suporte de madeira grossa, três vasilhas. Trata-se de três frascos de vidro, semelhantes a frascos de poções, cada um deles com uma cor diversa. Havia um amarelo, um azul e um vermelho, e cada frasco tinha uma inscrição. No amarelo liase «sapientia», no azul «honor» e no vermelho «cor». Recorri, já no palácio onde guardámos os frascos, aos meus manuais de la- 17 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ tim, e estas palavras, como não é segredo para o meu sábio pai, tratam-se das palavras «sabedoria», «honra» e «coração». A princípio, desconfiei da descoberta como sendo alguma brincadeira de Rafael, mas ele deu-me garantias contrárias. Ele próprio se encontra tão estupefacto quanto eu. Indagámos, e ninguém poderia ter tido acesso prévio àquela gruta, o que mais atesta a sua legitimidade. Rafael desconfiou que pudesse tratar-se de alguma armadilha, ou tentativa de envenenamento, e tratou de mandar investigar, a composição daqueles frascos coloridos. Com muita discrição e ocultando as inscrições e os frascos, retirou uma pequena amostra de cada frasco e entrou em contacto com um mestre alquimista, para análises. O resultado é ainda mais surpreendente, pois os conteúdos dos frascos revelaram-se totalmente inofensivos, e essencialmente feitos de frutos, nomeadamente abiú amarelo, pitaya vermelha, e jabuticaba azul. Isto é tudo quanto sabemos sobre o nosso achado. Venho pedir-lhe conselho sobre a possível utilização destas poções de frutos, que aparentemente poderão dar ao seu tomador, sabedoria, coragem ou coração. Tememos ainda poder-se tratar de alguma armadilha, ainda que não venenosa. Não será perigoso experimentar os conteúdos, apesar de se tratar essencialmente de sumos de frutos? Tudo isto é muito estranho, e Rafael afirma haver a possibilidade de termos descoberto a gruta de algum curandeiro de uma antiga tribo do Rio de Janeiro. Diz Rafael, que existe a possibilidade de se tratar de algum artefacto pertencente à tribo antiga dos índios Tekoa, e que iria procurar entre a popu- 18 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas lação indígena, alguém que nos possa instruir sobre o assunto, desde que tal não implique revelar o segredo da gruta ou das poções. Confesso que a alguém, que como eu tem destinado ser rei e imperador destas vastas terras e deste nobre povo, encontrar tais poções é desconcertante, mas ao mesmo tempo tentador. Sinto-me perante um grande dilema moral. Quem negaria, para além do seu carácter e da sua formação, um pouco mais de sabedoria, de honra ou de coração? Mas isso não será enganador para o povo, não será governar de fingir? Meu adorado pai, parece este um teste ao meu carácter, e confesso estar sem saber como proceder. Sinto que devo ignorar este achado, e confiar apenas nas minhas aptidões naturais, cultivando as que mais me falham, e sinto que será esse o conselho que Sua Majestade me dará. Ainda assim, ouso pedir-lhe indicações. A sua sabedoria e mestria nos assuntos da vida, que ainda me é tão curta, é-me mui valiosa e necessária. Seu filho agradecido que o respeita e adora, Infante Pedro.» Portugal, 20 de Agosto de 1834 «Meu mui querido filho Pedro, Escrevo-lhe feliz por sabê-lo bem de saúde e a evoluir grandemente nos seus estudos. Ainda ontem recebi uma exposição do senhor seu tutor José Bonifácio, em que o menino era altamente recomendado. Sabê-lo assim, dá a Seu Pai forças reno- 19 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ vadas para prosseguir a sua luta aqui em Portugal. Devo contarlhe que se adivinha o fim destes conflitos, com vitória para a nossa digna Casa Real. Não me devo regozijar antecipadamente, mas quero crer que assim sendo, o nosso encontro, que tantas vezes vem sendo adiado, será transformado em realidade. Quanto à questão que me coloca, meu filho, é uma questão muito particular. Toda a história parece retirada de um conto de fadas, ou de uma qualquer fábula sobre reis. Mas se Rafael dá garantias de que não há aqui qualquer partida ou truque, eu creio no meu bom e fiel amigo. A questão de utilizar ou não a poção, não é de fácil resposta. Primeiro havia que garantir que não haveria malefícios para a sua saúde ao tomá-las, o que já foi realizado, e a meu ver muito bem. Coloca-se pois a questão moral. E Pedro, olhe que seu pai, apesar de tantos anos de vida, ainda perdeu algumas noites em claro a pensar neste tão singular e estranho caso. Após muito reflectir eis o que aconselho. Se estivéssemos em uma fábula sobre reis, ao que se assemelha de tão estranha me relatam a história, o final seria certamente aquele que já desconfiáveis. Destruir as poções e não mais pensar nisso, governando, somente com as suas qualidades naturais. Mas neste caso, não sendo uma fábula, porque não aproveitar a ajuda que parece ser divina, e colocada de boa índole no seu caminho? É como o rei se servir de conselheiros, não é batota, não é enganador, nem é governar fingido. É apenas tentar governar o melhor que se consegue. Se lhe concederam acesso a tão 20 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas grandioso dom, caso as poções funcionem, é certo, por que motivo não potenciar um pouco as suas já excelentes qualidades? Por que motivo recusar ao povo o melhor governo que poderia ter? Mas não se engane filho, o mais certo será as poções não terem um efeito muito potente, mas se procurar bem dentro de si, encontrará a forma de melhorar essas suas aptidões naturais. Repare também como essas três cores, são as cores mais básicas, das quais se fazem todas as outras. Quem sabe se poderá potenciar outras qualidades, que não essas principais, cujos nomes figuram no frasco. Veja meu filho, se a coragem não é fruto da combinação de honra e coração, ou por exemplo a justiça não será a mistura de sabedoria com honra, e veja também, como o bom senso poderá ser uma mistura das três? As combinações são infindáveis. Se as poções tiverem em si efeito, não vejo como o poderia aconselhar a não o experimentar, antes de as destruir sem saber o que daí poderia advir. Dou ordens contudo, a Rafael que o acompanhe, sempre sem excepção, e que tenham muito cuidado com as dosagens. Estas deverão ser sempre muito pequenas, testando-se com cuidado as quantidades, e não correndo o risco de exagerar na quantidade tomada. Esperando que acolha com sensatez este conselho de seu Pai. Saudosamente, Sua Majestade Dom Pedro I» Portugal, 20 de Agosto de 1834 «Meu estimado amigo Rafael, 21 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Espero que a saúde lhe continue a permitir tirar todo o partido da vida, meu amigo, e confesso-lhe, para minha alegria, ser quase certo que em breve nos veremos. Quero-lhe agradecer ter permitido a Pedro acompanhá-lo, e mais ainda, pelas aventuras que lhe proporcionou. Escrevo-lhe hoje, sem conhecimento de meu filho Pedro, e peço que guarde desta carta total sigilo. Escrevo-lhe principalmente para o congratular por essa mirabolante história em que envolveu Pedro, e pela forma brilhante como o fez. Confesso que até eu me senti aturdido, e sem saber se tudo aquilo poderia ser ou não verdade. Até o dilema moral em que o colocou foi muito interessante, e me deu que pensar. Deve em breve ser informado do meu conselho a Pedro, e talvez estranhe, ter dado o conselho inverso ao esperado. Talvez o meu amigo Rafael contasse com uma ordem minha para destruição das fingidas poções, conferindo a meu filho toda a confiança para governar apenas com suas habilidades naturais, dando-lhe maior ímpeto para que ele as aperfeiçoasse ao extremo, sem necessidade de recursos externos. Contudo, Rafael, meu grande amigo, o que a vida me ensinou, é que até o melhor dos homens precisa por vezes de um pequeno empurrão. O mais sábio, o mais honrado, o mais misericordioso, o mais corajoso, todos eles. Nenhum escapa, de em algum momento da vida carecer de algo, que o obrigue a ir mais além. O pequeno não tem Mãe, e cresce longe de seu Pai. Apesar da vossa leal dedicação ao infante, a sua, de Bonifácio, e de Da- 22 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas dama, se há criança que mereça poções milagrosas, ainda que fingidas, é o Infante Pedro. Bem sei, Rafael, de que nada valem e que são só um jogo que meu bom amigo, muito inteligentemente inventou para o menino, mas se o tomador não o souber, o efeito das poções será tanto mais real quanto ele o desejar. Por vezes basta pensar que estamos a ser empurrados, e esse empurrão imaginado leva-nos a dar um salto real. No entanto, só muito ocasionalmente e em situações muito especiais, essa toma poderá ser um recurso. Peço, pois que vigie atentamente e o guie, tal como o tem feito até aqui. Esperando que compreenda os meus conselhos, e que continue velando por nosso rei com sua inquestionável amizade. Sua Majestade Dom Pedro I» Rio de Janeiro, 10 de Setembro de 1834 «A Vossa Digníssima Majestade, Espero-o de saúde, e congratulo-o por suas batalhas travadas em terras Lusitanas estarem prestes a consagrá-lo vitorioso. Não há para mim maior alegria que a de ser seu soldado, de o chamar Meu Rei, e de defender com a minha própria vida o seu pequeno infante Pedro. É sobre ele que trata esta carta. Meu rei, rogo-lhe mil desculpas se o induzi em qualquer engano. A história, bem como as poções, são reais. Não fiz qualquer trapaça ou jogo, e eu próprio estou estupefacto com tudo isto. Temo que os seus conselhos possam ter sido dados com base no facto de acreditar serem fictí- 23 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ cias as poções. Se desejar mudar desde já os seus conselhos ao infante, julgo que poderemos arranjar forma de fazê-las desaparecer, até que minha digníssima majestade se encontre de novo junto de nós, e as possa observar com seus próprios olhos. Até que receba ordem contrária, acatarei a decisão que o infante tomar, baseada nos seus conselhos. Certo é que levarei este segredo comigo para o túmulo, nem que para tal, tenha que levar os frascos comigo. Seu eterno fiel amigo, Rafael.» Sua Majestade D. Pedro I do Brasil, morreu no final de Setembro, não se sabendo até hoje, se recebeu e leu esta carta do seu amigo Rafael, ou se apenas não teve oportunidade de lhe responder. Nada se sabe também sobre a veracidade da existência das poções, sobre os seus efeitos, sua origem, ou o uso que delas fizeram o Imperador Pedro II e Rafael. Conta a lenda que repousam, junto do corpo de Rafael, que não deixou de cumprir a sua promessa de acompanhar Sua Majestade D. Pedro II até ao fim dos seus dias. 24 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Anatieli Fiabane [Videira, Santa Catarina] Nascida em Chopinzinho, Paraná, é Acadêmica do Curso de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina (campus de Videira). Coautora do livro “Pergunte ao Advogado!” (Curitiba: JM, 2014). Autora de diversos artigos científicos e, ainda, de publicações em jornais (Diário Catarinense, Florianópolis; A Notícia, Joinville). É Escrevente Notarial do Tabelionato de Notas e Protestos de Videira. Os pés descalços de Esmeralda – Pedrinho, venha! É hora de praticar seus estudos. – É a voz de Tina me chamando. Preciso me apresentar ou vou acabar levando uma bronca. Juntou desajeitadamente os papéis e pincéis, e se postou a correr. – Por favor, florestas e animais estejam aqui amanhã para que eu possa terminar meu trabalho de pintura – gritava o jovem enquanto corria. Não percebeu que era observado de longe por um par de olhos curiosos. – Cheguei Tina. Desculpe-me pelo atraso – falou ofegante fazendo um gesto de reverencia, se curvando com o intuito de mostrar seu respeito ante a presença de sua mestra. Uma mulher que aparentava seus 30 anos e mantinha os cabelos sempre curtos como os dos homens, porém sua coragem era superior a qualquer um deles. Por isso mesmo, era a encarregada do treinamento de espada e luta corporal do pequeno Imperador. – Que isso não se repita. Quando estiver comandando um exército pretende se atrasar e deixar seu inimigo esperando – a criança baixou a cabeça em silêncio, ficando sem jeito diante do questionamento. 25 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ O treino era sempre duro e Tina muito severa, mas não por ser má e sim, por que sabia que um dia o frágil menino que agora escutava seus ensinamentos, se transformaria em um formidável guerreiro, liderando um Império e teria que ter força e habilidade suficientes para enfrentar qualquer dificuldade e desafios. – Por hoje acabou. Está liberado – avisou Tina. No mesmo instante Pedro largou a barra de ferro de 50 quilos que estava elevando fazia 3 horas. Exausto se jogou de costas no chão. Ficou parado por alguns instantes olhando o céu, parecia não apenas estar cansado, mas também triste. – Até amanhã Pedrinho, e vê se não se atrasa – escutou o adeus de Tina como se fosse uma voz distante, não teve forças nem para responder. “De todos os meus 15 nomes que compõem o meu prenome, Tina insiste em me chamar de Pedrinho”. Mesmo com a mente em funcionamento, continuou parado. Fechou os olhos esperando o corpo parar de doer, para conseguir se levantar e voltar para casa. Foi quando ouviu um barulho de passos. Postouse rapidamente em pé, agarrou um galho de árvore, estava pronto para se defender ou atacar qualquer pessoa que resolvesse ameaçar sua vida. Tinha consciência de que era uma pessoa importante, herdeiro do trono imperial e muitos desejariam capturá-lo em troca de obter vantagens ou chantagear o governo. – Quem está aí? Saia? – ordenou. Percebeu que havia alguém se escondendo atrás de uma árvore. Olhou para os lados na esperança de que algum guarda 26 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas aparecesse para lhe socorrer ou quem sabe Tina estivesse voltando, devido a ter pressentido o perigo. No entanto, não avistou ninguém por perto. Juntou então sua própria coragem e seguiu passo por passo rumo a golpear seu oponente. Quando se aproximava do objetivo, impulsionou o corpo e se jogou em cima do inimigo. Foram os gritos de choro que se instauraram, juntamente com muitas suplicas de clemência e pedidos de perdão. “É uma menina”. O garoto ficou com as bochechas vermelhas, totalmente desconcertado, sem saber qual atitude tomar. – Desculpe-me moça – finalmente conseguiu falar. Levantou-se e estendeu a mão para ajudar a menina a se erguer. Porém a mesma estava muito assustada e só fazia chorar, enquanto escondia o rosto com as mãos. – Não chore. Está tudo bem. Por favor, deixa eu te ajudar – falou carinhosamente, ainda com a mão estendida. A menina retirou as mãos do rosto, revelando os olhos marejados de lágrimas, em que podia ser notado o medo e o pavor ante a presença da realeza. Mesmo assim recusou a ajuda do menino. Levantou-se por conta própria, porém não teve forças para se manter em pé, cambaleou para cair; o jovem Imperador foi rápido e a segurou antes que tocasse o chão. O menino apesar de possuir seus 10 anos de idade, tinha a força de um adulto. Sentir em seus braços o corpo esquálido daquela frágil menina era o mesmo que segurar um inofensivo pássaro machucado pelas armadilhas dos caçadores. Sua pele more- 27 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ na e ferimentos, indicavam que provavelmente havia fugido de alguma fazenda de escravos. – Eí moça, acorde. “Não adianta, está desmaiada”. – E agora, o que faço? Logo vai chegar à noite, se eu não voltar depressa para casa, capaz de enviarem o exército para me procurar. Mas, ao mesmo tempo não posso deixar você aqui, sozinha – falou olhando para o rosto da menina. “Já sei”. Jogou o fraco corpo nas costas e seguiu a passos largos o caminho rumo ao palácio. Torcendo para que ninguém o visse entrar, se esgueirou entre os cômodos, driblou os guardas e levou a menina ainda desacordada para seu quarto. – Sei que essa não é uma atitude apropriada, mas é o máximo que consigo fazer por você neste momento – falou como se a moça pudesse ouvir. Durante o jantar desviou alguns pedaços de pão para levar para sua hóspede. – Já terminei meu jantar. Peço permissão para me retirar – falou olhando para sua supervisora que em troca acenou em concordância. Não desperdiçando tempo saiu rapidamente da mesa. Surpreendeu-se ao entrar no quarto e não ver mais a menina deitada na cama onde havia deixado. – Cadê você? Ei? – articulava em voz baixa, tentando não chamar atenção. 28 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Foi quando percebeu que sua cortina estava agora com pés, ainda por cima, sujos. – Te peguei – exclamou agarrando a jovem e puxando-a para fora do pano. – Por favor, não me faça mal. Não tive intenção de perturbar o senhor – a menina se postou a chorar, ajoelhada aos pés do Imperador. – Não faça isso – agarrou os seus braços para levantá-la do chão – quero te ajudar, se quisesse te fazer alguma maldade não a teria trazido comigo – afirmou. O rosto dela se encheu de alívio e de alegria, ambos ficaram se olhando. O mágico silêncio foi interrompido pelo ronco do estômago vazio da menina. – Acredito que esteja precisando disso – falou retirando de baixo da camisa dois pedaços de pães. Que foram rapidamente devorados pela faminta mulata. O pequeno Imperador ficou contemplando a menina, enquanto pensava como deveria ser triste viver em um mundo de incertezas, sem saber se no dia seguinte estará vivo, ou com comida na mesa. “Será que todo nosso povo vive nestas condições de miséria?” – Como é seu nome? – Chamam-me de Esmeralda, por causa dos meus olhos verdes, mas não sei qual é o nome que minha mãe havia escolhido, pois fomos separadas quando eu tinha 2 anos – parou de falar pensando se deveria continuar a contar sua história – por isso 29 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ fugi da fazenda, quero encontrá-la, antes que os brancos me tirem a infância – percebeu a bobagem que havia falado, mas agora já era tarde demais. O rapaz ficou entristecido com o comentário, mas tinha consciência de que era a realidade em que vivia seu povo. – Nosso país é muito extenso como pretende encontrar a tua mãe? – Os escravos me falaram que ela foi levada para uma fazenda no interior do estado – falou triunfante – isso diminui a minha porcentagem de busca. A menina parecia muito esperançosa, e o nobre não teve coragem de derrubar suas expectativas. – Esconda-se embaixo da cama, que vou chamar os empregados para preparar um banho, direi que é pra mim, mas será para você – propôs ao observar o estado físico precário que sua colega de quarto se encontrava. Sem questionar a garota rapidamente engatinhou para debaixo do móvel. Depois que os empregados se retiraram, a menina saiu de seu esconderijo, enquanto isso o jovem vasculhava em seu armário retirando algumas roupas, que as colocou em cima da cômoda. Os pés descalços da escrava estavam com cortes, seus braços tinham ferimentos, na verdade tamanha era a sujeira que se tornava difícil diferenciar os machucados. – Não se preocupe. Pode aproveitar seu banho. Vou sair para buscar remédios para esses ferimentos – falou apontado 30 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas para os pés da menina – e aquelas roupas são para você colocar depois que se lavar. – O que está fazendo – perguntou a mulata quando viu o garoto pegando uma faca e cortando a palma da própria mão. – Preciso de um motivo para pedir medicamentos, caso contrário podem desconfiar – afirmou. Enquanto andava pelos corredores do palácio começou a pensar, em como a vida era difícil quando não se possuía o manto da nobreza para acolher e proteger. Quando retornou ao quarto, se deparou com uma pessoa totalmente diferente da que havia deixado momentos antes. Diante de seus olhos se encontrava uma bela jovem de pele morena, olhos verdes e brilhantes, seus cabelos eram tão ondulados que mais pareciam molinhas saltitantes, e agora em seu rosto havia um leve sorriso. – As roupas são de menino e ficaram um pouco grandes, mas estão limpas e te manterá quentinha – disfarçou Pedro. – Agora vou passar remédio nestes machucados. – Por que está me cuidando desta forma? – questionou enquanto recebia atenção do menino. – É simples. Se eu não puder cuidar de você que é apenas uma pessoa, como posso me comprometer como Imperador a cuidar de um país. Penso todo dia nisso, e hoje quando te encontrei percebi que era o destino me dando a chance de mostrar que eu consigo sim proteger e cuidar de alguém. 31 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ – Nossa nunca imaginei que um membro da realeza se preocupava realmente com o povo – depois que falou se arrependeu. – Desculpe não quis dizer isso. – Não tem problema. Acredito que seja o pensamento da maioria das pessoas, mas quero que saiba que da mesma forma que meu pai sempre lutou para conseguir o fim da escravidão, pretendo dar continuidade aos seus trabalhos. A menina demonstrou surpresa com as palavras do garoto, mas estava grata com sua bondade. – Eu decidi que vou te ajudar a encontrar a sua mãe – afirmou o jovem enquanto finalizava seu trabalho com os curativos. – Agradeço o seu cuidado, mas não pode ir comigo – afirmou Esmeralda com pesar. – Mas achei que você iria ficar feliz com a minha proposta de te acompanhar nesta missão – Pedro falou entristecido. Meio receosa a menina colocou sua mão no rosto de Pedro, enquanto olhava fixamente em seus olhos. – Você estará sempre comigo, e irá ajudar minha mãe e todo meu povo se ficar e assumir o posto de Imperador do Brasil – assegurou. Durante a noite enquanto todos dormiam, o jovem Pedro arrumou uma trouxa de comida e algumas roupas, preparou também um cavalo para levar Esmeralda pelo caminho até sua mãe. Ambos se despediram prometendo se reencontrarem novamente, em um futuro próximo. 32 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas – Que teus pés te levem até tua mãe, mas que te tragam de volta para ficar comigo – pediu o menino. Dia 23 de julho de 1840 Carta ao meu Imperador Meu querido amigo e Imperador do meu coração. Já faz alguns anos desde a última vez que conversamos. Durante este tempo muitas coisas aconteceram em minha vida, mas a principal é que encontrei a minha mãe. Estamos vivendo em uma pequena propriedade, arrendada, no interior do nosso vasto país. Conseguimos nos manter daquilo que cultivamos na terra, a vida é difícil, mas a permanente lembrança de seu rosto me faz acreditar que dias melhores estão por vir. Hoje meu Imperador, se torna o Imperador de todos nós brasileiros e eu não poderia deixar de estar (aos menos em pensamentos) perto de você em um momento tão glorioso. Peço que cuide dos ferimentos da nação, assim como cuidou dos meus machucados naquela noite. Mantenha em seu coração a pureza de um menino, a generosidade e bondade de um homem, mas também a perseverança, autoridade e coragem de um líder. Olhe sempre para àqueles que não possuem quem os ampare, e ensine aos que têm a mantê-las. Por fim, guarde está carta como um lembrete constante de que quando as coisas estiverem difíceis para suportar e precisar fugir, em algum lugar deste Brasil existe uma pessoa te esperando. Abraços de sua Esmeralda. 33 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ PS: não posso cumprir a promessa de ir te encontrar, pois meus pés já não se movem mais, apenas meu coração. Dizem que D. Pedro II carregou até a morte a carta de Esmeralda no bolso de seu casaco, como um lembrete constante de seu compromisso com o povo. O documento foi achado anos mais tarde, porém nunca ninguém conseguiu encontrar ou saber quem foi Esmeralda. – Acabou a história. Hora de dormir. – Ah! Mãe. Será que está história é real? A Esmeralda não encontrou nunca mais o Imperador? – perguntou a criança já sonolenta. – Vai de você, acreditar ou não – afirmou a mãe observando a sua filha pegar no sono. Beijou levemente sua testa e saiu fechando a porta procurando não fazer barulho. – A senhora ainda não foi dormir minha avó? Precisa de ajuda? – questionou a uma velha mulata sentada em uma cadeira de rodas na sala, enquanto terminava seu tricô. – Não precisa se preocupar comigo. Qual foi a história que Luiza pediu para você contar? – A sua história – falou a moça sorrindo para a avó – boa noite, durma bem – deu um suave beijo na testa da senhora. Assim que teve certeza que estava sozinha, Esmeralda retirou do bolso do vestido um pedaço de papel já amarelado pelo tempo. 34 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Para minha amiga Esmeralda. Levei muitos anos para conseguir te encontrar, pena que agora que obtive êxito, já não possuo mais tempo, o torpor da idade me leva mais perto da morte, e a velhice já não me permite mais ser um aventureiro e cavalgar até onde está neste momento. Mas mesmo assim me sinto feliz por ter podido passar alguns instantes ao seu lado, queria apenas que soubesse que fiz o meu melhor para ser um bom imperador, assim como havia me pedido. Seus pés já não podem mais me alcançar, mas desejo que o vento leve até você os sinceros sentimentos de amizade oriundos de um jovem menino, e a gratidão por conta de ter confiado e acreditado neste imperador. Com carinho. D. Pedro II, ou simplesmente Pedrinho. 35 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Anna Julia Dannala Franco de Souza [Valinhos, São Paulo] Nascida em Franca, São Paulo, no ano de 1999, é estudante, apaixonada por livros, desenhos e animais. Poetisa, escritora e desenhista, mascote da editora Iluminatta e acadêmica da Academia Nacional de Letras do Portal do Poeta Brasileiro. Desde pequena adotou o hábito da leitura o que levou-a a escrever sobre tudo o que gosta, vê e sente. Começou a escrever seus primeiros poemas e contos aos 7 anos. Desenha desde os 4 anos, desde histórias em quadrinhos a sonhos. Autodidata, aprendeu, somente com a observação de fotos, a técnica de desenho e a lista aos 10 anos. Pintou sua primeira tela espatulada (A namoradeira) aos 12 anos. Conselho de amigo "Caro Dom Pedro, Venho por meio desta comunicar o senhor sobre um fato que deve ser levado em consideração: o senhor sendo um jovem garoto deve ter muitos sonhos ao qual almeja, sendo muito próximo de vós conheço estes seus sonhos loucos. Quero pedir que não descarte nenhum deles. Guarde-os no bolso e se precisar leia esta carta para orientar-se. Sei bem que o senhor é amante das ciências e literatura, sei bem que o senhor dedica cada minuto de sua vida aos estudos. O senhor passa o dia todo estudando das sete as dez da noite com apenas duas horas de lazer por dia. Sou seu melhor e talvez único amigo, sei que nessas duas horas que tens passa pensando em sua infelicidade e solidão. Um príncipe devia ter mais amigos, mas nem com suas irmãs pode manter contato. Seu pai deve se orgulhar de sua inteligência. Lembro que um dia mencionou que ele lhe dissera que não és um gênio nem passa perto disso, mas és inteligente, o senhor riu. Sabe, menino, as vezes fico a pensar sobre ti, sobre tua infância sem pai nem 36 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas mãe, com seus tutores e "dadama", como chama sua mãe de criação. “Um dia vais assumir o trono”, foi o que seu pai lhe dissera... Quero lhe dar um conselho que deve ser meditado antes. O senhor passa a vida triste demais para uma criança, não tem amigos ou família presente, sua vida é feita de estudos e mais estudos. Fico me indagando o que queres de verdade, pois não entendo. Tens todos os sonhos do mundo na mente, todos amassados e jogados numa gaveta escura da mobília, estás seguindo o seu sonho ou o sonho de seu pai? Não que esteja me intrometendo, mas não me canso de pensar em sua felicidade, seu bem. Menino Dom Pedro, como queres que te entendam se nem mesmo eu lhe entendo? Sua infância pode ter sido melancólica, mas encontrou nos livros um refúgio, um sonho que pode ser vivído a qualquer hora (na verdade, nas duas horas que tens livres), podes voar nessas páginas envelhecidas como sei pai voou nos navios. Lugar melhor para guardar lembranças não há. Peço também e, principalmente, que nunca se afaste dos livros, eles são teu refúgio, mas quero que sigas seus sonhos. O que queres de verdade? Eu já não sei, senhor. Gostaria de vê-lo outra vez, cantando e correndo atrás de uma borboleta, como quando bem pequenino, engatinhando no chão. És menino ainda, tímido e carente, mas mesmo sendo quem és pode mudar vosso caminho. Aprendi o pouco que sei assim como você, lendo muitos 37 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ livros e estudando muito. Preso muito a educação, porém preso também a felicidade de vós. Conheço bem o desejo que tens de sair do palácio num belo cavalo e mudar-se para um casebre numa floresta qualquer para escrever seus romances e aventuras. Vós sois um pequeno príncipe com sonho de ser cavaleiro errante. Queres viver aventuras, ou ao menos uma bem vivida. Meu objetivo escrevendo esta carta é deixar-lhe apenas um conselho, senhor. Deixar-lhe aqui ao menos um pouco do sentimento que me veio ao escrever esta carta e dizer-lhe que gostaria muito de vê-lo novamente, sorrindo, como quando tão pequeno que mal engatinhava. Não me importo se vais pegar esta carta e jogá-la "na gaveta de sonhos esquecidos", mas quero que apenas a leia uma única vez com atenção e pense a respeito, isto não é uma ordem, como fazem sempre convosco, é apenas um conselho: siga seu coração. Dom Pedro menino, vives agora um dilema, mas não se alarme, fique calmo e aja com sabedoria assim como seus pais lhe disseram, assim como seus tutores lhe ensinaram ditando a vós as regras de ouro da vida além das regras de se ser um príncipe." [...] Isto tudo foi o que disse-me um velho amigo que me escrevera esta carta há muitos anos quando ainda tinha 7 anos de idade. Nunca parara para ler esta carta, mas hoje após receber a notícia de que queriam diminuir a maioridade para assumir o trono revirei minha "gaveta de sonhos esquecidos" e lá a encontrei, amassada e empoeirada pelo tempo que passara ali. 38 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Fiquei um tempo olhando a carta e refletindo até a hora da esperada pergunta. Enviaram uma delegação para perguntar se eu aceitaria ou rejeitaria a antecipada de minha maioridade. Mas, ao contrário do que esperavam, não disse um tímido "sim". Passei tanto tempo meditando sobre a carta que cheguei a uma conclusão: queria seguir meu coração. Esperariam que eu dissesse "sim" e talvez um "já" se me perguntassem que viesse a ter efeito no momento ou esperasse até meu aniversário em dezembro. Era o que esperavam, porém não foi o feito. Naquele dia eu renunciei. Pedi desculpas e repeti as palavras do conselho que meu amigo me fizera: siga seu coração. Fitaram-me indignados, então fugi. Já havia deixado tudo preparado assim que terminei de ler a carta, peguei a bolsa com alguns de meus livros favoritos, alguns de ciência e fugi, mas não num belo cavalo branco, me escondi entre os trapos de uma carroça que passava pelas ruas e segui para onde ela foi. Ali estava o ex-futuro imperador, Dom Pedro II, balançando aconchegado numa rede de palha de um casebre qualquer abandonado em uma floresta não habitada. Meu coração em meus ouvidos há muito tempo, não podia deixar de ouví-lo como disse meu amigo na carta. O pouco que me restava eram essas palavras que guardei com todo o zelo em meu bolso. Abandonara a coroa, os regentes dariam conta de suprir minha falta. 39 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Havia sido imprudente? Queria perguntar a meu amigo, mas ele não poderia responder, pois como havia escrito antes: se nem mesmo ele me entendia como poderia eu me entender? Não sabia o que viriam os regentes a fazer de agora em diante. Talvez houvesse caos entre a população, mas, como todos, eu sou humano e escolhi seguir um sonho, por mais louco que soasse, aquelas palavras guiaram-me a meu destino e qualquer que fosse o desse país, pois afinal de contas não seria este simples príncipe amante das letras o responsável por mudar este país, certo? No verso da carta estava escrito: "Ass.: Seu eterno melhor amigo, Dom Pedro II". 40 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Bianca Cidreira Cammarota [Aracaju, Sergipe] Nascida no Rio de Janeiro, é servidora pública federal há vinte e oito anos, atualmente trabalhando na Universidade Federal de Sergipe. Embora escrevesse desde pequena, somente há dois anos decidiu participar de concursos literários. Considera que o ato da escrita seja mais do que um hobby: é a maneira pela qual se expressa e lhe traz alegria da criação. A mim mesmo Recordações. Era esse o título escrito no livro, mas não era o nome original. Também o menos apropriado, pensou Pedro. O imperador marco Aurélio não discorrera suas reflexões para os outros prioritariamente e sim perfazia mais um desabafo solitário, uma conversa íntima. Contudo, aquela era uma obra traduzida por ingleses e eles talvez não compreendessem realmente o âmago de um home que tivera o mundo em suas mãos... um poder desejado por tantos, menos por aquele que o detivera. Ele entendia muito bem. A carta de sua madrasta era o seu marcador de leitura, a companheira de viagem dos escritos romanos pelo oceano, a condutora pelas águas profundas do Atlântico. As letras manchadas pelas lágrimas anunciavam a morte de seu pai, Dom Pedro I em Paris, sua solidão de viúva e sonhos alquebrados. Também lá se encontravam, arranhadas de tinta escura, as preocupações e carinho dela para com seu enteado, agora órfão de pai e mãe, adotado por um país que o reclamava, que o exigia. E, embora ele e sua madrasta não nutrissem um amor mãe-filho, aquela solidariedade fraternal o aquecia e dava-lhe a certeza que tal sentimento duraria por toda uma vida. 41 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Seu olhar se perdeu na paisagem verde, uma das mãos apoiada no livro escuro e a outra no bolso de sua casaca negra de luto, de onde retirou uma caixa pequena de outro trabalhada, colocando-a encima da mesa de jardim à sua frente. Quedou-se a mirá-la, pensativo. Pertencera a seu pai e destinava-se a guardar rapé, esquecida no dia de sua partida há cinco anos. Deixada para trás na correria da fuga abrupta. Abandonada tal qual um menino estarrecido de cinco anos. Abriu a tampa da caixinha com cuidado, a fim de que o vento não levasse o pó guardado. E bem, o pequeno imperador sabia que não era tabaco diante dos seus olhos. Uma sombra se aproximara, anunciada por passos no piso de pedra. Sentado no banco e de costas para quem surgia, o menino discretamente fechou a tampa da caixinha dourada. Virou-se, encontrando Rafael, o qual se curvava em uma reverência. - Seu período de descanso termina em cerca de meia hora, Majestade. - Obrigado, Rafael. - Vossa Majestade não está se divertindo com seus brinquedos? – o veterano de guerra franziu o cenho. - Estou com dez anos. – a voz era monótona, um uníssono constante – Meus preceptores acreditam que não devo mais me distrair com... banalidades. O camareiro, amigo e a única figura paterna em sua vida balançou a cabeça tristemente. 42 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas - Seu descanso agora se expressa em...? - Resolvi traduzir um livro para a língua portuguesa. Assim, faço uma boa leitura, exercito a inglesa e pratico a caligrafia. – bateu levemente no caderno à sua direita, o tinteiro e pena próximos. Rafael franziu os lábios. Sua compaixão por aquele garoto era tão grande quanto sua lealdade e gratidão para com o pai dele. Lamentava profundamente a vida isolada, alheia e solitária que aquela criança arcava. Tão diferente do pai. Uma lástima o filho não possuir sua bravata e sua força. Dom Pedro I jamais permitiria que o controlassem, sendo sua grande virtude e seu gigantesco defeito. Talvez alguma rebeldia trouxesse um pouco de calor àqueles olhos azuis europeus no rei brasileiro. - Há algo que deseje, Majestade? - Tudo que não posso desejar – murmurou. Elevou a voz – Obrigado, Rafael. Pode ir. Tenho ainda algum tempo para... enfim. – gesticulou, dispensando o criado. O veterano militar enrijeceu-se em posição de sentido, curvando-se após em obediência. Deu meia-volta e dirigiu-se ao palácio. O pequeno imperador acompanhou a partida do camareiro e percebeu a vinda de um senhor idoso incrivelmente alto em sua direção. Rafael e o velho se encontraram em um momento, mas não se cumprimentaram, como se não tivessem se visto. O idoso acompanhou a caminhada de Rafael com um sorriso e retomou seu caminho ao monarca. 43 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ O menino continuou sentado, enquanto avaliava o forasteiro: alto, elegante em sua simplicidade, a roupa sóbria e discreta de tecido primoroso. Os olhos se constituíam em uma imensidão de mansidão clara e translúcida. Havia uma familiaridade em sua expressão. - Quem é o senhor? - Um amigo de Vossa Majestade é o que pretendo ser. Posso me sentar? Pedro acenou para o banco do outro lado da mesa, constrangido por não ter oferecido um assento a um velho, curioso por um estranho achar-se em sua presença sem anúncio, aborrecido e alegre por toda a quebra de protocolo. Haveria algum perigo? Uma dissidência política enviar um velho para matá-lo seria por demais patético. Mas os homens eram sombrios por debaixo de seus gestos aristocratas. A uns cinquenta metros componentes da corte conversavam animadamente, enquanto Rafael e vários guardas s postavam eretos e vigilantes. E ninguém se alarmara com a presença daquele estranho. - Marco Aurélio. – o senhor apontou o livro – Foi um bom homem. - Mas não foi feliz, suponho. - Concordo. – o homem acariciou a própria barba longa e branca, reflexivo – Acredito que preferiu buscar a paz em vez da felicidade própria. 44 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas - Parece que o senhor não vê com bons olhos a felicidade. – Pedro apoiou a cabeça na mão, o cotovelo encima da mesa, interessado. - Tenho a impressão que a felicidade depende de fatores externos. E o externo é como como vento: sempre em movimento, sempre mudando. Não é possível viajar em um barco ao sabor do vento. A paz, no entanto, é como uma embarcação com leme. Mesmo que haja um tufão ou tempestade, sabe-se qual rumo se quer tomar. – olhou para a árvore que lhes emprestava sombra, uma imensa copa com folhas largas e aconchegantes – E quando encontramos a paz, ou pelo menos nos enveredamos em sua busca, nossa tranquilidade tende a amenizar a loucura dos outros. Os olhos azuis de Pedro se arregalaram e cintilaram por um instante, antes de uma nebulosa ideia os tornou opacos. - Não quis me dizer seu nome e nem eu desejei saber, pois imaginei que o senhor fosse diferente. Mas, não. Seu nome continua sem importância, porém seu objetivo em conversar comigo se revelou. Nada diverso do que todos almejam de mim: que eu aceite o trono e que assuma realmente o reino – escondeu o rosto entre os braços – Já faço tudo o que me mandam. Já não basta? Os olhos claros do velho se encheram de compaixão, todavia sua voz não vacilou. Foi firme, porém suave. - Controlam o que come. Vigiam seu sono. Espreitam suas leituras. Censuram as cartas e livros que recebe. Escolhem suas roupas. Direcionam suas ideias. Já não basta? 45 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ - Não desejam que eu seja impulsivo e autoritário como meu pai. O homem suspirou. - Seu pai fez o que ele podia realizar. Tomou a frente e tornou este país independente. Todavia, não fora feito para governar. Uma crueldade exigir de um home o que ele não tem condições de concretizar. Ele foi sempre uma criança. Um brilho de ira se ascendeu no semblante do meninoimperador. - E eu nunca pude ser uma criança. Meu pai era um adulto quando sentou no trono. Meu berço já era meu trono. Jamais tive ou terei a liberdade da qual ele usufruiu! O homem esticou o braço na mesa e tocou a mão de Pedro, uma ousadia mortal, com a qual o monarca não se importou. - Vossa Majestade é muito mais do que qualquer um desses homens arquitetou que se tornasse. Encontra-se entranhado em seu espírito uma visão e resiliência que todo o mundo um dia reconhecerá. Até alcançar a maturidade, muitas dúvidas lhe açoitarão no tocante se é sua mente ou a deles que o conduz. Entretanto, chegará um amanhecer que Vossa Majestade fitar-se-á diante do espelho e enxergará o líder que estas terras necessitam e clamam. Pedro perdeu seu olhar nos raios de sol que cortavam as folhas da árvore acima deles. Inconscientemente, pousou a mão na caixinha dourada escondida sob seu braço. - Muitos frutos bem antes de estarem prontos. 46 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas O homem retirou sua mão do menino e encostou-se na cadeira de ferro. Várias folhas secas se esparramaram pelo chão de pedra. - Verdade, majestade. Até mesmo nesse lindo jardim do Palácio do Paço muitos frutos se perdem, o que é uma pena. – olhou demoradamente ao redor – Há várias espécies de plantas aqui. Maravilhosas. Muitas trazidas da Europa, não? Algumas do Oriente também. Aquelas flores púrpuras ali, bem ocultas atrás do arbusto. Salvo engando, é beladona. Para um botânico, um espécime deveras interessante. Algumas bagas, aquelas bolinhas negras, maceradas até de se tornarem pó escuro transformam-se em remédio para muitos males. Ou são usadas para causarem muitos males. O senhor alto e de casaca escura encarou firmemente o pequeno rei, uma eternidade em poucos instantes. - A morte por beladona não é uma escolha inteligente. - Por vezes, é a única escolha digna, senhor. - Essa não é uma dessas situações. A criança ergueu o queixo de forma altiva. - Mas será a minha escolha. - Má escolha, principalmente se for a primeira e última. - Seria livre. - E aprisionaria gerações de seus súditos, pessoas simples em guerras em fim. Encarceraria todo um horizonte de possibilidades deste país buscar ser um bom lugar de se viver. Pedro se pôs em pé, resoluto. 47 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ - Realmente imagina que este país encontre sua grandeza? Com minha vida ou com minha morte, homens gananciosos, cruéis e sem escrúpulos continuarão a devastar estas terras e oprimir os simples. O senhor é o adulto, mas sou eu, uma criança, que vislumbro este presente deprimente se fincar por décadas. O velho assentiu. - Tem razão, Majestade. Enxergo homens sombrios e tempos obscuros se aproximando; prenuncio nefasto o próximo século sendo construindo em seus alicerces neste mesmo instante. Contudo, mesmo em eras mais tenebrosas, a lembrança viva de homens bons impulsiona os que detém ideias e ideais nos momentos de mais desesperança. E este país precisa desses homens. O menino pegou a caixinha dourada, apertando-a com tanta força que os entalhes rebuscados marcaram a palma de sua mão. - Não serei o que meus tutores esperam. - Será o que seu povo precisa... hoje e nos dias que virão. O homem retirou um objeto do interior da casaca escura e depositou encima da mesa. Pedro se aproximou do objeto e o que viu o deixou surpreendido: uma pena com seu caule, feito de mármore creme com rajadas róseas. O bico encontrava-se fechado; não havia abertura para a tinta. O idoso segurou o objeto com as duas mãos e deslocou a peça, separando-a em duas partes. Não era uma pena; era uma adaga de lâmina finíssima com uma bainha imitando o caule. 48 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas - Vossa Majestade percebe? Este é o instrumento do monarca, a pena que corta. Suas palavras escritas determinarão o futuro de muitos. Sua espada será para honrar homens valorosos e para defender os esquecidos. Vossa Majestade pode vir a se tornar a pena que corta. - Com o custo de esquecer o que quis para minha vida. - Com a benesse de levar esperança para tantos de agora e do amanhã. O menino suspirou. - Dar-me-á a pena-adaga para que eu abandone a caixa dourada. - Não. Vossa Majestade decidirá por si se esquecerá ou não a caixa, sem nenhuma barganha. E quanto à pena-adaga... terá que possuir a sua própria. Ele se levantou, sorrindo. - Chegou minha hora. E agradeço à Vossa Majestade pelo nosso encontro. Eu estava morrendo e me foi permitido aqui estar. Pensava que minha vida fora em vão, que todos os meus esforços e renúncias não valeram de nada. E não há nada mais triste do que ter a morte à espera levando apenas a tristeza consigo e a sensação de fracasso. Contudo, percebo agora que minhas ações semearão o coração de muitos. Que o esquecimento e o abandono não passam de ilusão. - Não verei mais o senhor. – lamentou, pois era uma afirmativa e não uma pergunta. 49 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ - Não, Majestade. Garanto-lhe que estarei ao seu lado por todos os seus dias. – e seu sorriso iluminou-se. O homem fez uma reverência e virou-se, caminhando para longe. Pedro desejava que o novo velho amigo não partisse, mas um rei não devia correr atrás de um súdito. Porém, muito além do que uma quebra de etiqueta, o menino sentiu que deveria permitir que o amigo partisse, junto com todos os sonhos que acalentava para si, junto com o pó negro da caixa jogado ao vento, junto com a paz da morte que evaporava no ar. Pedro sabia que o velho tinha razão. Muitos dependiam dele. Sua vida era valiosa e poderia torna-la eterna com suas ações justas. O que significavam as intrigas palacianas, os conchavos corruptos, a ganância dos medíocres avarentos diante da construção da esperança, de um símbolo que atravessaria os tempos? Sua solidão seria acompanhada por livros, pelos sonhos de um mundo maior, enquanto lutava contra a mesquinhez dos egoístas. Rafael se aproximou. Trazia um pequeno pacote em suas mãos. - Majestade, seu tempo acabou. - Não. – sorriu levemente – Apenas começou. - Majestade, havia outro presente além do livro que veio com a carta de sua madrasta. Seus tutores relutaram em entregála até este momento mas, inexplicavelmente, mudaram de ideia. O menino-rei abriu o embrulho. Era um estojo retangular de madeira escura. E, dentro dela, repousava, no veludo azul, uma pena-adaga de mármore rajado de rosa. 50 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas - Tem certeza que é presente de minha madrasta? – indagou, estarrecido – Ela não comentou sobre esta peça na carta. Não foi um senhor distinto que me presenteou? - Esta peça veio com uma página à parte da carta, a qual foi destruída por seus professores. – enrubesceu – Pelo menos o presente foi admitido. - Tem certeza? - Sim, Majestade. Sua governanta em pessoa me entregou a caixa e explicou a situação. Não foi nenhum senhor que trouxe este mimo. - Ele estava ali. – apontou para o palácio – Conversava comigo há meia hora e esse foi. - Majestade, ninguém estranho percorreu o jardim. Eu mesmo, de longe, velava pelo seu sono. - Meu sono? - Sim. Após alertá-lo de seu tempo restante de descanso, Vossa Majestade pousou a cabeça no livro e adormeceu durante todo esse interstício. Despertou agora, quando cheguei. - Isso não é possível. Era um senhor de uns sessenta, setenta anos, o homem mais alto que já vi, barba branca, cheia e longa, pele alva e com rugas, olhos azuis. Vestia-se sobriamente de preto. Como ele não foi visto entrar e sair do jardim? - Acredito que sonhou com esse homem. Seu sono foi profundo. Fiquei surpreso, inclusive, de como despertou tranquilamente quando lhe dirigi a palavra. Porém, darei o alerta à guarda 51 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ para vasculhar o palácio e os arredores à procura desse senhor, caso Vossa Majestade deseje. - Não, não há necessidade. Foi um sonho – um sonho mais real do que tudo, pensou o menino – Ele me lembrou alguém. - Um parente? - Um parente próximo... bem próximo, para falar a verdade. – sorriu consigo mesmo, à medida que a compreensão do fantástico episódio lhe iluminava a mente. A explicação era tão incrível quanto ao acontecido, mas não importava. Mudara sua vida para sempre. Levantou-se, animado. Nunca se sentira tão vivo e senhor de si. Viu a caixinha dourada na mesa, aberta e vazia. Seu sorriso se ampliou ainda mais, o que surpreendeu Rafael. - Vossa Majestade está se sentido bem? - Melhor do que nunca.... melhor do que nunca! Tenho que voltar aos meus afazeres. Tenho muito a aprender. Tenho um reino para governar. Com passos decididos, andou em direção ao palácio. Seu corpo franzino e frágil parecia fortalecido e lhe pareceu engrandecer, como se estivesse com quase dois metros de altura. Alisou o rosto, imaginando que em breve cresceria uma barba. E ela seria grande, cheia e grisalha até o fim de sua vida. 52 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Caroline da Cruz Alias [Bragança Paulista, São Paulo] Nascida em Santo André, São Paulo, é estudante de Editoração. Trabalhou com publicações universitárias pela revista Originais Reprovados e pela editora laboratório Com-Arte, da Universidade de São Paulo. Atua como professora de redação. A carta profética Estava caminhando sozinho pelos cômodos do Paço de São Cristóvão. Quase não o deixavam ver suas irmãs, a mãe havia morrido, não tinha amigos de sua idade e sofrera recentemente mais um duro golpe: fazia poucos dias que seu pai havia partido para Portugal. O jovem Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga, herdeiro do trono imperial brasileiro, ainda não tinha idade para entender ao certo o porquê. O pai, é claro, tentara explicar quando foi se despedir do pequeno príncipe, mas, com seus cinco anos e pouco, o menino pouco absorveu do que lhe fora dito. Meteu na cabeça que aquele abandono sem fim que vivia devia ser resultado de algum mau comportamento do qual não se lembrava. Aquelas andanças no palácio imperial ele fazia forçando-se justamente a lembrar de que traquinagem era culpado e que justificasse sua situação. Não lembrava. - Nobre príncipe Pedro! - Alguém chamou por ele. Não respondeu, mas esperou a pessoa aproximar-se. Era Mariana, sua aia ou, como preferia, a “dadama”. 53 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ - Príncipe Pedro, não deveria estar aqui, fugindo de seus tutores. - A repreensão era firme, mas sem deixar de ser carinhosa. Ela se preocupava de verdade com ele. - Perdeu o dia todo de estudos… - Suspirou. - Bem, agora já é tarde. Vamos nos aprontar para o jantar, está bem? Mas o menino não respondia. Ele estava bastante abatido aqueles dias, mas ela não se surpreendia. - Príncipe Pedro, se prometer comportar-se, tenho para sua alteza uma lembrança da imperatriz Amélia. - A mamãe lembrou de mim? - Com o carinho inegável que a nova imperatriz lhe dedicava, e também a suas irmãs, logo passou a chamá-la daquela forma. - Sim, claro! Ela sente muito por ter precisado partir e recusa-se a abandoná-lo. - Fez uma breve pausa. - E então, promete não fugir outra vez amanhã? Assim podemos ver o que a imperatriz lhe deixou… O menino balançou a cabeça numa afirmação. A aia tomou sua mão e eles foram preparar-se para o jantar, após o qual se retiraram para os aposentos do herdeiro. Já arrumado para descansar, Pedro observou Mariana trazer o combinado, as lembranças da imperatriz Amélia para ele. - Aqui estão. Um presente e uma carta. - Passou ao pequeno primeiro o presente, que foi aberto com cuidado. - Um belo broche. Quando o arrumarmos amanhã, irá usá-lo. - Ele sorriu e ela continuou: - Precisa de ajuda para ler a carta? 54 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Ela sabia da resposta. O príncipe tinha uma facilidade muito grande com leitura e a imperatriz não dificultaria desnecessariamente a carta para seu jovem enteado. Ele não precisava de ajuda, mas apreciava sua companhia vigilante… Bem, nunca se sabe quando vai haver uma palavra nova. “Estimado Pedro”, era como a carta começava e ele gostou daquele início. “Estimado” queria dizer, que ele se lembrasse, que ela gostava dele. Era um bom começo. A carta não era longa, mas a imperatriz em poucas palavras lhe deixou muitos de seus sentimentos. Desculpou-se várias vezes por precisar acompanhar seu pai a Portugal. Ela mesma não queria partir, porque havia, além dele e suas irmãs, a filha que ela carregava e Amélia sofria em separá-los antes que sequer pudessem se conhecer, mas era preciso. No mais, prometeu que não o esqueceria e manteria constante contato. “Espere por mais cartas minhas”, ela dizia antes de finalizar com um “Carinhosamente, Imperatriz Amélia, sua mamãe”. Pedro apertou a carta com suas mãos pequenas, como se fosse um tesouro. Mariana tentou o convencer a soltar a carta, mas ele insistiu em dormir com ela aquela noite. A ama deu-se por vencida, beijou-lhe com delicadeza as mãos e despediu-se, avisando que voltaria cedo na manhã seguinte. E, assim que a porta fechou-se, Pedro colocou todo o seu empenho em dormir, tarefa que ficara mais fácil sabendo que ao menos a imperatriz não o culpava por qualquer travessura e, ao contrário do que pensara, sentiria sua falta. Dormiu longamente. 55 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Quando Mariana voltou com o sol, o jovem ainda tinha a carta nas mãos. Pelo jeito havia dormido tranquilamente, pois o objeto estava intacto. Ela o acordou e arrumou para o desjejum e todas as outras atividades com as quais enchiam seu dia. - Príncipe Pedro, não deve ir às suas obrigações carregando a carta da imperatriz, ela pode se perder ou rasgar. Guarde-a no baú junto com as demais. Pedro concordou com sua “dadama”. Não queria estragar a carta, então caminhou até a grande arca na qual guardava suas cartas, que ainda eram bem poucas, ele admitia. Quando ia colocar a carta dentro do objeto, reparou num envelope que não estava lá a última vez que mexera no baú. Olhou para Mariana, que apenas sorriu, e não era um sorriso de quem sabe de algum segredo, era só um sorriso de quem incentiva alguém a se apressar. O pequeno imperador decidiu deixar, como combinado, a carta de sua quase-mãe com as demais e levar, em contrapartida, aquela que não estava lá antes. Então, sem que sua ama percebesse, colocou a mensagem no bolso interno do casaco e logo estava ao lado da dama, que o guiou com alguma pressa ao salão onde estava sendo servido seu desjejum. O menino comeu, teve algumas de suas aulas, encontrou por acaso com a irmã Francisca e, logo após o almoço, deu um jeito de escapar à aia, aos mentores e a Rafael, a quem o pai fez praticamente seu guarda-costas. Enfiou-se no lavabo, dizendo estar se sentindo mal pelo calor, precisando lavar o rosto para refrescar. 56 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Quando viu-se sozinho, o jovem Pedro tirou o envelope que carregava no bolso e o abriu. Estava ansioso para ler o conteúdo, pois a aparência era muito régia, como se fosse algo de extrema importância, ainda que não houvesse por fora nenhuma indicação de quem enviara tal recado. “Querido Pedro, o pequeno Imperador” eram as primeiras palavras. Ainda não sabia quem era o autor delas, mas era alguém que gostava dele, como a imperatriz, ou pelo menos era o que transparecia. “Eu gostaria demais que minhas palavras o alcançassem, meu jovem, pois, quem sabe, assim talvez fosse possível mudar o rumo dos acontecimentos.” A carta toda mostrava um grande carinho por ele, mas, apesar disso, o assunto dela não o agradou. “Entristece-me muito que, a despeito de teus esforços, o tempo do Império esteja acabando”, “e tenho me perguntado: será que algo poderia fazer tudo diferente?”. Não estava assinada e isso honestamente não importava. No auge de seus cinco anos, ele entendeu muito pouco da carta, mas uma coisa absorveu: ela falava de como ele seria responsável pela queda do Império! Mas como?! Ele nem tinha começado a reinar e alguém já estava dizendo que iria tudo por terra… Como alguém poderia saber algo assim? E então ele lembrou de como o pai havia partido para Portugal… E se, na verdade, a ida dele não estivesse relacionada com sua irmã Maria ou o tio Miguel, como seu genitor o havia feito crer? E se, na verdade, o Imperador Pedro I já soubesse também do fracasso da monarquia no Brasil e por isso tivesse partido? 57 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Talvez se Pedro tivesse mais idade não acreditasse naquilo, mas, para uma criança tão pequena, era muito plausível, fazia todo o sentido. Rasgou a carta o mais picada que pôde e saiu do lavabo determinado a mudar o que estava escrito. Não importava o que dissessem, ele se tornaria um soberano memorável, de um jeito bom. Desde aquele dia, tornou-se muito mais assíduo nos estudos, sem se sentir forçado àquilo. Percebeu com o tempo, que o empenho dos outros em sua educação derivava em muito do desejo de que ele fosse diferente do pai, que era muito mais conhecido por emotivo e inconsequente do que por racional e cuidadoso. Mas com o tempo aquilo perdeu a importância… O tempo e a distância o afastaram mais e mais da imagem de seu antecessor, caída no quase esquecimento, assim como a mensagem profética de que seu governo acabaria. Quando foi coroado aos quinze anos, antes do tempo previsto, já não conseguia mais lembrar por que trazia sempre aquela sensação de mal estar no que dizia respeito à sua soberania. Sempre fazia mais do que possível, esforçava-se mais do que necessário, sabia mais do que lhe era cobrado, e sentia que havia razão tanto no mal estar quanto no empenho excessivo, mas não conseguia trazer à superfície da memória. Não importava que as pessoas mais próximas dissessem que não era preciso dar mais de si, de alguma forma ele sentia que não era o bastante. Não foi à toa que se tornou uma das mais emblemáticas figuras de seu tempo. Reconhecido por intelectuais, admirado por 58 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas grande parte da população de seu país, não havia muitas críticas direcionadas especificamente a seu caráter ou sua política. E, ainda assim, não conseguia aplacar o tormento que o acompanhou a vida toda. Quando falava com sua antiga “dadama”, a quem não deixou de tratar daquela forma infantil e carinhosa nem mesmo na fase adulta, não ocultava suas tristezas. Também não as escondia de Rafael. Nem em suas cartas à antiga imperatriz, a única mãe de que se lembrava, ainda que por pouco tempo. Futuramente, tampouco fez segredo de sua esposa, Teresa. Em seus escritos para si mesmo também não deixava de falar de seus tristeza e cansaço. Sim, estava cansado, cada dia mais cansado. E quando chegou a década de 80 - e, veja bem, 1880 - mal aguentava mais. Comparecia assiduamente a seus compromissos, mantinha-se fiel a seus estudos, comportava-se eximiamente, mas estava esgotado e infeliz. O excesso de esmero com a pátria o fazia até mesmo duvidar de sua filha Isabel como herdeira, na certeza de que apenas seu próprio zelo era capaz de manter a ordem no país. Estava tão empenhado em ser bom para todos, tão distraído nessa tarefa, sequer notou o golpe que lhe feriria mais que tudo e justo quando se sentia um pouco mais confiante. Voltara há pouco da Europa, onde fora tratar da saúde debilitada. Havia sido recebido com grande entusiasmo pelo povo e ele próprio sentia-se satisfeito com a decisão tomada por sua herdeira em sua ausência. Remover o estigma da escravidão fazia-lhe bem. A situ- 59 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ ação ecônomica era estável, a política externa estava mais que em dia, o país era visto como um modelo de potência emergente… Mas tudo acabou. Nunca pensou que perderia o apoio das elites numa situação tão positiva. Como poderia supor que seriam tão egoístas a ponto de não ver que o desenvolvimento da nação seria também produtivo para as elites? Não poderia e por isso agora pagava. Sentia-se apunhalado pelo golpe que o depunha e exilava, mas esgotara toda sua força antes e agora não conseguia resistir. Mesmo entendendo que a revolução não era interesse da maioria, não lutou contra ela, simplesmente porque não mais era capaz. Em seus últimos minutos em seus aposentos, despedia-se dos objetos que não o acompanhariam. Dedicou breves minutos a cada um deles, lembrando os bons e maus momentos que cada um deles proporcionou-lhe. Até que chegou ao velho baú de cartas. Quando era pequeno, ele estava tão cheio de espaço vazio, mas, agora, estava transbordando de cartas, de uma forma na infância ele nunca julgou ser realmente possível - cogitara até mesmo a possibilidade de que as outras pessoas usavam cartas falsas e envelopes vazios para encher suas arcas de memórias. Hoje, vendo as mais de seiscentas cartas que trocara apenas com a madrasta e mais tantas outras, já não via sentido naquele pensamento infantil, mas, mesmo assim, foi inspirado nele que tomou uma pena e sentou-se para escrever a última carta que poria naquele baú. Deitou no papel as primeiras palavras: Querido Pedro, o pequeno Imperador... 60 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Maria Angélica Ferrasoli [São Caetano do Sul, São Paulo] Nascida em São Caetano do Sul, é jornalista e escritora, tendo publicado o livro infantil infantil “A Cueca do Papai” pela editora Pingo de Letra (2013). Premiada nas áreas de jornalismo (reportagem/Concurso SP da Gastronomia - Câmara dos Vereadores de SP) e literatura, entre os quais se destacam o Paulo Leminsky (contos: Toledo, PR), Cora Coralina (poemas: Ribeirão Preto, SP) e das prefeituras de São Caetano e Niterói (contos: edição Oscar Niemeyer). É Pós-graduada em História, com foco no aprendizado da História Local, e fez uso da metodologia da História Oral em seu Mestrado em Comunicação (concluído em maio/2015) e no projeto literário Quando meus pais eram crianças. Pedro e Júlio Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1837 Caro amigo Júlio Desculpe-me primeiramente por chamá-lo assim: amigo. Nós não nos conhecemos, e eu encontrei o seu endereço numa cartinha que estava dentro de “O furiozo na Ilha de S. Domingos”. Ganhei o livro de Dona Mariana Carlota de Verna Magalhães Coutinho, que cuida de mim. Um presente, porque faço 12 anos de idade no próximo dia 2.Dona Mariana me disse que oencomendou diretamente na Typographia Lisbonensi, em Portugal, mas quando comecei a ler achei a sua cartaentre as páginas 42 e 43 (logo na parte em que serena a tempestade) e, fato muito impressionante, escrita em francês! Como o selo estava rompido, eu a li, e pelo que pude entender você tem quase a mesma idade do que eu. Foi por isso, Júlio, que resolvi chamá-lo amigo. Você já sabe que o meu nome é Pedro e que vivo no Brasil, porque leu no envelope o meu endereço. Na verdade eu nasci no Brasil, e não são muitas as pessoas com quem posso falar ou es61 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ crever em francês. O nosso idioma é o português, mas não exatamente como se fala em Portugal, um pouquinho diferente. Mas o que quero lhe dizer mesmo é que, assim como você, também sou fascinado pelo mar e pelas aventuras marítimas. Não acredito que serei um navegador, como Pedro Álvares Cabral ou Cristóvão Colombo, porque já sei que terei muito trabalho a fazer em terra firme. Mas o oceano e seus mistérios sempre despertam minha admiração e curiosidade. Então, quando li sua carta (a quem você iria enviar? Não há destinatário...), fiquei fascinado pela descrição da máquina que se move embaixo das ondas. Será que você já viu essa máquina? Do jeito que a descreve, tive a impressão de que já esteve até dentro dela, respirando o ar de suas impenetráveis paredes. Eu ainda não tenho nenhum poder real, pois não fui emancipado (um dia poderei ser imperador do Brasil... não, não ria, por favor, estou dizendo a verdade!), mas se tivesse eu mandava construir esse poderosoveículo para observar o mar e suas entranhas. Imagine o que deve haver nas profundezas, naquela parte do oceano onde dizem que o azul é tão escuro que apenas seres luminosos deslizam, achatados em todas as suas formas pela força da água e a pressão da gravidade? Teríamos que instalar alguma iluminação para nos locomovermos nessa escuridão sem fim. Me desculpe, mas já me tornei seu companheiro de viagem... é uma ideia tão sensacional que não me permito estar distante! Na segunda parte de sua carta reparei que você estava se alimentando. Tem uma manchinha de gordura na ponta do papel, 62 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas então pensei: Júlio deve ter comido um bom doce! Aqui no Brasil temos doces deliciosos de frutas nativas. O meu preferido é o de figo, mas Dona Mariana não me deixa comer todos os dias. Nessa parte também tem a história do homem que queria viajar pelo céu. Nossa! Foi outra coisa que me impressionou muito. Bem que eu queria também viajar assim. Essas conversas de tapetes voadores são muito interessantes, mas nunca vi alguém que fizesse um tapete voar. Temos mesmo no palácio tapetes persas, que seriam os originais, e eles não saem do lugar, pelo contrário. Outro dia tomei um tombo tropeçando na beirada de um deles, um tapetão tão pesado que nem se moveu. Como seria esse transporte que você imagina? Um tipo de cestinho levado pelo vento? Mas como se manteria no ar? Eu já pedi ao meu tutor que contrate um professor de desenho, pois quero desenhar todas essas invenções maravilhosas que você descreve. Depois eu envio os desenhos a você, e me diz se estão de acordo. Eu tenho um tutor porque meus pais já morreram. Não me lembro muito bem de minha mãe, porque eu era bem pequeno, mas mesmo assim sinto sua falta. Meu pai teve que voltar para Portugal e me deixar aqui para que o Brasil continuasse a ser nosso; quero dizer, não nosso, mas do povo de Portugal. Ele morreu naquele país. São histórias muito compridas, que envolvem tradição, heranças e complicações políticas. Às vezes até são interessantes, mas quase sempre terminam do mesmo jeito, então não dá para gostar muito. Eu prefiro as histórias cheias de inventos e que a gente não desconfia qual vai ser o final. Por 63 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ exemplo: para onde irá o homem que vai viajar voando ou muito abaixo da superfície do mar? Vai sobreviver? Que coisas verá nestes mundos, tão desconhecidos para mim? Por enquanto, como meu tutor contratou um professor de astronomia e outro de botânica, contento-me em explorar o céu à noite e observar as sementes, frutas e flores que encontramos pela terra ao redor do palácio. Uma vez também fomos a uma linda floresta, na Tijuca, e fiquei deslumbrado com tanta beleza. Se algum dia você vier ao meu Brasil vou ficar contente em lhe mostrar esse lugar, assim como a casa em que eu nasci, de onde se pode avistar o mar. Imagine que engraçado se eu um dia eu fosse lá e visse da janela essa grande máquina emergindo do oceano! Todos iam tomar um grande susto, mas eu saberia que você estava por perto, e não ia sentir nenhum pinguinho de medo! Vou ter que dar uma paradinha agora, para as aulas de dança e depois de esgrima. Não gosto de nenhuma das duas, mas meu tutor diz que um imperador deve entender de tudo, pois precisará conversar com pessoas de todos os tipos. Até um hagiológio já me fizeram decorar! .... Cá estou de volta, amigo Júlio! Na verdade passaram-se dois dias (hoje é 30 de novembro de 1837), e estou muito ansioso porque agora falta muito pouco para o meu aniversário. Dona Mariana já me prometeu que fará um almoço delicioso e poderei comer doce de figo à vontade. Meu tutor garantiu que encomendará a Lisboa novos livros de aventuras. Só não me deixou ainda experimentar o rapé, mas disse que o farei já no próximo ano. As 64 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas amas e empregadas do palácio estão todas animadas com a minha festa, porque também haverá um baile de gala para as autoridades. Eu tenho certeza que almoço será muito melhor do que esse baile, pois nele tenho que ficar posando de imperador com uma roupa apertada e engomada, com os pés em sapatos novos, que sempre fazem os pés doerem, e o cabelo todo penteado. O que eu queria mesmo, Júlio, era convidar meus amigos para o almoço e fazer uma grande farra nos jardins do palácio, com brincadeiras de correr e esconder, como fazem os meninos pelas ruas. Mas eu não tenho nem amigos para convidar. Só quando aparece algum menino da minha idade que seja da nobreza é que eu tenho companhia. E eles em geral não gostam de falar de aventuras, de livros ou estrelas, preferem comentar as guerras que seus pais venceram e como estão aumentando os limites de seus reinos. Um dia veio uma menina aqui no palácio, filha de uma condessa. Foi logo depois que eu fiz 12 anos, e ela devia ter uns 15. A mãe a deixou no salão principal e fui convidá-la para ir ao jardim. Eu levava um livro de poemas de Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine, se não engano (acho que era Primeiras Meditações Poéticas), e comecei a ler algumas poesias para ela, que não sabia o idioma francês. Quando terminei, a menina segurou minha mão e disse: Você é encantador! Fiquei muito vermelho e queria sair correndo, mas aguentei firme e agradeci, como me ensina o professor de bons modos e etiqueta. Logo depois a condessa apareceu na porta do palácio e chamou a filha. Então ela se aproximou de mim e deu um beijo... um beijo nos meus 65 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ lábios! Dessa vez não agradeci nem pude dizer nada, pois senti todo meu corpo tremer e tive a impressão de que ia cair na grama. Fiquei uns dias assim, sem pensar em nada nem querer ler livro algum, só lembrando dela e do beijo. Perguntei a Dona Mariana como se chamavam a condessa e a filha, mas ela disse que não sabia, que estavam indo embora do Brasil porque a menina ia contratar casamento. Duvidei e duvido. Até hoje penso nela, e em como seria bom se pudéssemos nos encontrar novamente. Já andei ouvindo que logo vou ser emancipado e então em breve terei que me casar. Mas não tenho a menor vontade de me casar, porque queria viajar pelo mundo e conhecer pessoas, lugares, invenções. Se a filha da condessa fosse comigo seria muito divertido, mas como posso fazer isso? Tenho menos liberdade do que um cachorro, essa é que é a verdade. Por sorte há livros maravilhosos e pessoas como você, Júlio, que pensam nos dias do futuro como se eles estivessem ao alcance das mãos. De qualquer forma, sei que se eu tiver que me tornar um imperador vou abrir as portas do meu reino para todas as novidades. Vou criar museus, parques, bibliotecas, vou criar escolas e chamar para o meu país os melhores pensadores do mundo. Só acho que, mesmo assim, não terei muitos amigos. Dizem que meu pai, quando governava esse reino, tinha muitas namoradas. Mas ninguém me conta nada sobre seus bons amigos, o que me faz supor que, como eu, também não os tinha. Se você me responder a essa carta, prometo, Júlio, poderemos nos corresponder por muitos e muitos anos. Seremos ami- 66 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas gos se você o permitir. Um dia, creio, haverá alguma fantástica invenção que poderá nos colocar frente a frente sem que para isso seja preciso nos locomovermos. Poderei ouvir sua voz na hora em que desejar e você poderá ouvir a minha, e talvez você até possa me ver e eu a você, quem sabe? Há tantas coisas para serem inventadas nesse mundo (e quantos outros haverá por estes céus sem fim?) que não consigo sequer pensar em nomear todas essas possíveis invenções. Mas eu as sinto, sinto que vêm chegando, e um dia estarão na porta de meu palácio. Talvez eu já não esteja lá para recebê-las, mas meus netos e bisnetos por certo estarão, não é? Ah, eu disse que não queria casar, é verdade... Mas a ideia de ter herdeiros não me é de todo desagradável. O que você pensa sobre isso? Júlio, mais uma vez tenho que interromper a carta para ir à aula, dessa vez de ciências naturais. Estudaremos a importância dos adubos e dos vermes na terra. Por falar nisso, vermes, será que entendi direito seu sobrenome? É quase assim que vou escrever no destinatário, por isso rogo sinceramente que esteja correto, para que você tão logo me responda, meu prezado amigo Júlio Verne. Um grande abraço do Pedro ______________ Notas do autor O escritor Júlio Verne nasceu em Nantes, em 8 de fevereiro de 1828. Era, portanto, três anos mais novo do que Pedro II. 67 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ O furiozo na ilha de S.Domingos é de 1835. É um “melodrama em 2 actos para se representar no Real Theatro de S. Carlos”. [A Poezia é de Thiago Ferretti ; A Muzica é do Mestre Donizetti]. - Lisboa : na Typographia Lisbonense, 1835. - 111 [1] p. ; 15 cm. Biblioteca Nacional de Portugal. Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine foi escritor, poeta e político francês. Primeiras Meditações Poéticas foi publicado em 1820. 68 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Maria José Rodi Passerino [Florianópolis, Santa Catarina] Nascida em Itajaí, Santa Catarina, é Psicóloga Clínica em Florianópolis, onde possui consultório e atende, desde 2000, principalmente crianças e adolescentes. Também atua no Centro de Referência da Assistência Social de Santo Amaro da Imperatriz, Santa Catarina, desde outubro de 2014. Leitora assídua, escrever tornou-se hobby incentivado pelos sobrinhos. As joias de Rebeca e o Pequeno Imperador Jacob Jensenson, renomado ourives judeu, reuniu as mais lindas joias acomodando-as em uma valise de couro. Fora chamado ao Paço para mostrar as peças a Condessa de Belmonte, Mariana Carlota de Verne Magalhães, aia de Dom Pedro II. Levaria a filha consigo, e aproveitaria para deixar Rebeca na casa de sua irmã após sair do palácio. A menina adorava passar o dia com a tia. E ele como pai, pensava constantemente, na necessidade da menina conviver com outras pessoas. Rebeca, sua única filha, tem apenas Anita, uma escrava de sua idade, como fiel companheira. No palácio, a espera foi curta. Logo, ele e Rebeca, foram recebidos pela Condessa, cumprimentando-a conforme pedia o protocolo. Na sala onde foram recepcionados, havia uma mesa com tampo de mármore róseo e pés lindamente trabalhados. Sobre ela, o senhor Jensenson esticou uma toalha de veludo negro e espalhou as belas joias. Encantada com a beleza e perfeição das peças, a Condessa de Belmonte, segurava uma a uma examinando-as detalhadamente. 69 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Rebeca, curiosa como toda criança, aproveita para olhar ao redor. Era a primeira vez que visitava o palácio e estava impressionada. Num canto da sala, sentado, lendo alheio ao que acontecia, encontrava-se um menino de mais ou menos sua idade. Observou-o por um momento. O único movimento que ele fazia era o trocar de páginas do livro. Sem atentar-se ao que fazia, foi afastando-se do pai e aproximando-se do pequeno rapaz. Próxima a ele, tentou ler o título do livro. Conseguindo somente distinguir que era formado por muitas figuras de pássaros. Interessada, inclinou-se para ver melhor. Este movimento espontâneo e descuidado acabou por criar uma sombra sobre o livro, o que fez com que Dom Pedro II levantasse a cabeça para observar a menina, à sua frente, espantado. Ninguém chegava tão perto sem sua permissão, certamente não um estranho. O pequeno imperador indagava-se mentalmente, de onde teria surgido ela? Como entrara ali? E quem seria ela? Olhava-a tão surpreendido, que fez Rebeca corar e dizer: - Meu nome é Rebeca. Meu pai veio mostrar as joias para a senhora Condessa. - Eu sou Pedro, muito prazer, responde timidamente o imperador. - O que você está lendo? – questiona Rebeca apontando para o livro. 70 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas - É um livro sobre aves brasileiras. Para que eu possa identificar os pássaros do Brasil. Rebeca, sem cerimônia, senta-se a seu lado para observar melhor. Estava acostumada a fazer o que queria em casa e sequer pensou que ali precisava agir de forma distinta. Seu dedinho acariciava a figura de um pássaro colorido, impressa no livro no colo de Pedro. - Oh! Como é lindo. Gostaria de fazer uma joia no formato dele. - Você faz joia? – pergunta ele desconfiado. - Meu pai está me ensinado. Estendendo o braço direito a ele, na intenção de mostrar uma cobrinha de prata com olhos amarelos, enrolada em seu braço. Toda orgulhosa conta – eu que fiz. - É linda, parabéns. - Eu conheço várias pedras preciosas e semipreciosas. Posso desenhá-las para você, inclusive as peças que já fiz. - Que interessante! Gostaria muito – responde ele com os olhos brilhantes de excitação diante da possibilidade de conhecer algo diferente. Neste instante, o senhor Jensenson, chama a filha para ir embora. Se curva respeitoso quando percebe com quem ela conversava. Rebeca se despede de Pedro prometendo mandar seus desenhos por carta. E ele sorri animado. Despedem-se da Condessa e saem do Paço Imperial. 71 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Agitado, o senhor Jensenson questiona a filha: - Como você foi falar com o imperador? Isto não pode acontecer. Você tem que respeitá-lo. - Eu não sabia quem ele era. Desculpa papai, vou escrever a ele pedindo desculpas. - Espero que não traga problemas esta sua atitude. Que estória é esta de escrever a ele? - Prometi mandar-lhe uns desenhos de joias. Ao chegar em casa à noite depois de ter passado um dia agradável em companhia de sua tia, procura todos seus desenhos de joias e pedras, com a ajuda de Anita, e espalha-os sobre a cama para selecionar o que enviar ao pequeno imperador. E animada conta para amiga, o que aconteceu na visita ao palácio, divertindo-a com a situação. - Você vai mesmo escrever para ele, Rebeca? - Vou, ele pode ser o Imperador, mas também é criança como eu. As meninas escolhem um desenho de uma drusa de ametista, como pedra bruta, e outra de uma pedra lapidada por seu pai, uma safira, para fazer parte de um colar. Selecionam, também, o desenho de um pássaro de ouro com pequenas ametistas incrustadas, que se tornou um magnífico broche. Rebeca desenhara e iniciara a confecção do broche. Seu pai dera os retoques finais. Com os desenhos selecionados, pena e nanquim em mãos, inicia carta. 72 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Rio de Janeiro, 15 de março de 1834. Sua Majestade Imperial Dom Pedro II, Como está o senhor? Desejo que esteja bem e lendo muitos livros. Como lhe prometi, estou enviando os desenhos. Este pássaro faz dois meses que o fiz. Dei-o de presente à minha querida mãezinha pelo seu aniversário. Meu pai diz que a ametista é encontrada em várias partes do Brasil e que é considerada uma pedra semipreciosa. Eu, particularmente, acho-a muito bonita. Tenho um anel com esta pedra e Anita também. Anita é minha irmã do coração. Em outro momento eu lhe falo sobre ela. Espero que o Vossa Majestade aprecie os desenhos. Cordialmente, Rebeca Jensenson. A carta foi enviada. O infante Dom Pedro II ficou surpreso em recebê-la. Feliz ao mesmo tempo, sentiu vontade de ler. Admirou os desenhos e respondeu elogiando, atrevendo-se em mandar um desenho de um pássaro que ele mesmo fizera. A seus olhos não estava perfeito, mas pensou que a nova amiga gostaria de qualquer maneira. Rebeca, com a resposta a sua carta em mãos, não cabia em si de tanta alegria. Anita acredita que a amiga leu, aproximada- 73 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ mente, umas duzentas vezes naquele dia tal missiva. E muitas outras nos dias seguintes. As duas possuíam uma coleção aquarelada das pedras e começaram a organizá-las para enviar aos poucos para o novo amigo especial. Ambas eram exímias desenhistas. No segundo envio, Rebeca confessa que Anita a ajudou. Rio de Janeiro, 27 de março de 1834. Majestade, Agradeço como todo o meu coração o desenho do pássaro enviado, como também sua carta. Seu desenho agora faz parte dos tesouros que tenho. E como prometi, quero lhe contar de um tesouro muito especial, minha joia muito amada. Contam que minha mãezinha teve dificuldades pra engravidar e perdeu dois bebês antes de mim. Quando nasci, ela passou muito mal e o médico recomendou que não tivesse mais filhos ou poderia morrer. Meus pais não desejavam que eu crescesse sozinha e quando estava com seis meses de idade, compraram um bebê recémnascido de uma escrava, que seu dono fazia questão de separar da mãe. A menina escrava veio morar conosco e cresceu comigo. Sempre fomos muito amigas. Para mim, ela é minha irmã do coração. Seu nome é Anita, ela é muito meiga, alegre e bonita. Tem lindos olhos cor de topázio. 74 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Estou enviando-lhe os desenhos de um anel e de um pingente de topázio para o senhor conhecer bem a cor dos olhos desta minha amiga e irmã de coração. Agradeço sua atenção. Com todo o respeito, cordialmente, Rebeca. A missiva foi enviada. As cartas tornaram-se a alegria das três crianças. Eram sempre esperadas com muita ansiedade. Em seis meses de correspondências constantes, grande quantidade de desenhos fora enviado e cuidadosamente guardados. Além de confidências trocadas e relatos infantis sobre o diaa-dia. Certo dia chegou a Dom Pedro II, uma carta de Rebeca, desta vez sem desenhos. Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1834. Majestade, Perdoe-me por não estar enviando desenhos. Ontem, uma coisa muito horrível aconteceu e não consigo parar de sofrer e chorar. O Comendador Farias, amigo de meu pai, sempre compra muitas joias dele. Homem muito rico. Toda vez que vem a nossa casa, vê Anita e eu brincando. Ele sempre foi gentil conosco. Desta vez, propôs a papai comprar Anita. Papai recusou a princípio. Contudo, com a insistência do senhor Farias, ele aca- 75 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ bou concordando em vendê-la. Mesmo sabendo o quanto eu amo Anita. O Comendador dizia que ela era somente uma escrava, e que minha atitude era só um capricho de criança e que logo esqueceria. Quando minha querida irmã Anita foi levada embora hoje, me abracei a ela e ela a mim, não queríamos nos separar, não queria soltá-la. Estou chorando desde então, a dor é horrível, não passa. Desculpe incomodá-lo com minha dor. Cordialmente, Rebeca. Tristeza e compaixão invadiram o coração do bondoso menino, que tinha uma nação para governar, quando leu a carta de sua querida amiguinha. Dom Pedro II pediu a seu amigo e protetor Rafael investigar. O que soube, deixou-o estarrecido. Anita ao ser levada para a casa do Comendador, foi abusada e violentada por ele e para se defender cortou o rosto do mesmo com uma faca. A atitude da menina de olhos cor de topázio para defender-se, gerou um ódio implacável no homem que ordenou o espancamento da mesma no tronco. A menina escrava não resistiu à tamanha crueldade, e morreu, dois dias após ser levada da casa de Rebeca onde crescera feliz. Anita morta nada mais poderia ser feito. 76 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas O pequeno imperador escreveu tentando consolar sua amiga, omitindo o desfecho dos fatos de que tinha conhecimento. Era difícil para ele concentrar-se em outro assunto diverso ao sofrimento destas duas meninas. Entretanto, não recebera mais cartas de Rebeca e pediu novamente a Rafael que descobrisse o que se passava. Rafael, veterano negro da Guerra da Cisplatina, trabalhava no palácio e cuidava do menino Dom Pedro II a pedido do pai dele, Dom Pedro I que partira; trouxe-lhe a notícia que a pequena Rebeca não mais se alimentava, nem saia da cama, tão profundo era seu abatimento. Passado mais uma semana, Rafael retorna com a informação que sua querida amiga Rebeca não pertencia mais a este mundo. Ao saber da morte cruel de Anita, a intensidade da sua dor foi tão forte que seu coraçãozinho parou de bater para não mais sofrer. A solidão tomou conta do menino, cada vez mais envolvido com as questões imperiais, levando-o a profundas reflexões sobre a vida e o ser humano. Sentimentos de amor e respeito ao próximo invadiam seu coração e transformaram-no em Sua Majestade Imperial Dom Pedro II, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, O Magnânimo. 77 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Mirian Rodrigues Aud [São Paulo] Nascida em Rio Grande, Rio Grande do Sul, aos 27 anos é estudante apaixonada por Egiptologia, História e Artes Marciais. Escreve poesias, contos, fanfictions e também contribui com artigos para o projeto “Egiptologia Brasil”, que engloba um site, página em rede social e grupos de interesse, procurando sempre compartilhar um pouco do seu conhecimento com quem possui a mesma paixão. Fascinada por palavras, adora desafios literários e qualquer gênero desperta sua imaginação. Atualmente finaliza uma história de aventura, que pretende publicar futuramente. A última carta de um menino Suportar o peso de nascer como um membro da Casa de Bragança, acabava por ser algo muito difícil para uma criança, mas, e quanto ao fardo de aos cinco anos de idade, ser deixado com a coroa de imperador do Brasil? As lágrimas rolavam livres pelo alvo rosto de traços marcantes de Pedro, já havia perdido as contas de quantas vezes lera a carta que seu pai, Dom Pedro I, havia lhe deixado em despedida, quando abdicou do trono. Em sua mente infantil, não conseguia entender tão bem os motivos para que seu querido pai tivesse deixado tudo para trás. E, apesar de receber desde muito cedo uma educação primorosa para que pudesse no mínimo compreender como tudo funcionava, a sensação de abandono e todos os sentimentos em torno disso afloravam. Naquele momento, tratou de ficar sozinho no lugar que mais gostava na residência imperial, a sala onde ficava a coleção de antiguidades das mais diversas civilizações, que seu pai iniciou. Não queria ninguém lhe dizendo o que fazer, fugiria dos olhares da criadagem e de outras pessoas 78 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas que viviam ao seu redor, dos cochichos a respeito da “fuga” de seu pai para a Europa. Na sala, foi direto para a coleção que mais chamava a sua atenção, a egípcia. Aquela também era a preferida de seu pai, lembrava-se das histórias que ele contava sobre a origem das peças, escavadas por Giovanni Battista Belzoni. Algumas haviam sido doadas para o Museu Real, porém, a pedido do príncipe, aquelas ficaram na coleção particular da família. Ao aprender a ler, Dom Pedro II já se interessava por livros que vinham dos mais diversos países, porém, os franceses que falavam sobre o Antigo Egito eram os que fazia questão de retirar da biblioteca e levar para o seu quarto. Após quase uma hora olhando incansável para as estátuas, jóias, objetos que fizeram parte do cotidiano egípcio e até mesmo práticas funerárias, ele decidiu que deveria escrever uma nova carta a seu pai. Com certa dificuldade pela baixa estatura diante da mesa imensa que havia lá, acomodou-se na cadeira, só que não conseguia apoiar-se para poder escrever de uma maneira no mínimo confortável. Sua tutora, Mariana Carlota, após procurar por todos os cômodos pelo pequeno príncipe, o encontrou tentando escrever. Como fez na primeira carta, ofereceu-se também para ajudalo, sobretudo quando notou a instabilidade emocional dele. O menino assentiu e deu lugar à tutora, que molhou a pena com cuidado na tinta e esperou que ele começasse a ditar. Pedro não sabia bem como começaria aquela carta, tinha um bom vocabulá- 79 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ rio aos cinco anos e naturalmente as palavras vinham à sua mente. Timidamente, com a voz embargada, foi dizendo o que sentia e queria que o pai soubesse. Cerca de meia hora depois, a tutora mostrou ao pequeno o que escreveu, com sua perfeita caligrafia, havia mudado apenas algumas palavras: “Querido pai, ainda não consigo entender o que aconteceu. Está tudo exatamente como o senhor deixou e imagino que a qualquer momento, o verei entrando pelo portão com um singelo sorriso e feliz por estar chegando para o jantar. Meus tutores nunca me deixam só e os estudos começam logo após o sol nascer e acabam quando o sono é o vencedor entre a longa batalha que travamos dia após dia. Sei que tudo é para o meu bem e que o senhor ficará um pouco mais tranquilo sabendo que estou seguindo o conselho deles, como me disse na última carta. Quero que um dia o senhor se orgulhe desse filho que o ama e também tem orgulho do pai... Certo dia, o senhor me ensinou que um homem não deve ter medo de nada, todavia, eu tenho apenas um: temo esquecer o seu rosto, as lembranças das poucas horas de diversão que tínhamos juntos. Não tenho uma memória sequer de minha mãe e não desejo que isso também aconteça um dia com meu pai. Por favor, volte em breve. Já sinto saudades das histórias em torno da campanha do tio Napoleão no Egito e a “Comissão das Ciências e das Artes”. Também quero ouvir o que o senhor prometeu sobre 80 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Young, Champollion e a Pedra de Roseta! São tantas as histórias que ficou de me contar e sei que um dia poderei ouvi-las. O Brasil há de sossegar, prometo ao senhor! E quando se der, serei o primeiro a dar-lhe a notícia. Se o senhor não tem esperanças, eu terei por todos nós. Até breve.” Mariana Carlota de Verna Magalhães Coutinho, notou o brilho no olhar do príncipe após fechar a carta. Ele estufou o peito, ergueu a fronte e colocou-se a andar em direção à porta. Antes de sair, falou decidido: - Dadama, por obséquio, pode fazer com que chegue às mãos de meu pai? - É claro que sim. Agora, vá descansar, logo voltaremos às lições. Os tempo passou e a solidão era imensa na vida do menino com o mais pesado dos fardos do império, não tinha liberdade para nada, nem mesmo para brincar, como qualquer criança a sua idade. Os brinquedos eram substituídos por livros, que ficavam cada vez mais difíceis e abrangendo mais e mais assuntos. Sorria apenas quando sua tutora trazia-lhe correspondências. Entre algumas que não lhe interessavam dos parentes espalhados pela Europa, encontrou a única que preencheria seu coração com uma alegria que mal cabia-lhe no peito. Era a hora de seu descanso e naquele momento, a “Dadama”, como chamava Mariana desde bebê, deixava-o sozinho. 81 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Tranquilo, sentou-se em sua cama confortável e abriu a missiva, com a caligrafia inconfundível de Dom Pedro I. “Se meu coração não pode ter o contentamento de ver meu querido e prezado filho, ao menos através de um papel, podemos matar um pouco da saudade. Não vou perder nosso precioso tempo falando sobre assuntos que todos pelo paço devem falarlhe ao longo do dia, então, contarei algo que tenho certeza que o agradará, por ser assunto de seu interesse desde sempre. Há por aqui algo deveras inusitado, chamado popularmente de “Pó de Múmia”. Dizem ser um milagroso remédio capaz de sanar inúmeras dores e alguns até contam que é um elixir para a longa vida. Um amigo muito próximo relatou que as suas dores de cabeça constantes foram curadas após uma dose única do milagroso pó, entretanto, o sabor e cheiro não são lá dos melhores. Creio que algo assim não chegará até o Brasil e que um pequeno homem, repleto de ideais, condenaria a forma como se dá a obtenção do remédio. Os estudos sobre a antiga civilização egípcia estão sendo cada vez mais populares em países europeus, muitos figurões daqui têm verdadeiros tesouros em suas coleções e tenho certeza de que deixariam o meu pequeno filho com os olhos brilhando quando os visse. Quem sabe um dia, você mesmo possa viajar até a África e contemplar o que alguns membros de nossa família outrora conseguiram. Aproveitando o ensejo, que tal uma pequena história sobre Napoleão Bonaparte? 82 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Conta-se que ao chegar diante da Esfinge de Gizé com toda a sua comitiva, ele desceu do majestoso cavalo e olhou para o alto, buscando o rosto daquele misterioso monumento. Após alguns minutos de silenciosa contemplação, chamou um dos arqueólogos da comissão e indagou: “O que aconteceu com o nariz? Por qual motivo é sempre o nariz?” O arqueólogo deu de ombros, então, o jovem general continuou: “Já são mais de vinte estátuas faltando apenas o nariz, agora isso...” E bem, meu querido filho, de toda a comissão, nenhum estudioso sequer conseguiu desvendar o mistério que envolvia a falta do nariz da Esfinge e de outras estátuas. Alguns atribuíram ao “damnatio memoriae”, outros às ações do tempo, dentre várias explicações. O mais curioso é que mesmo sendo inocente do “crime” de ter mandado canhões atirarem contra a Esfinge afim de seus homens treinarem a pontaria, seu tio também nunca fez questão de se defender das fábulas europeias a esse respeito. Você acha que no fundo, ele se orgulhava por ter ficado conhecido como “o culpado pela falta do nariz da Esfinge”? Eu acho que sim, pois se tinha algo que ele realmente gostava, era de deixar sua marca por onde passava. (...)” O menino riu como há muito tempo não fazia, junto à carta, havia uma cópia de um desenho de Frederick Lewis Norden, do ano de 1755, retratando a Esfinge já sem o nariz. O príncipe sabia que Napoleão tinha má fama e muitos diziam que era louco, porém, tinha certeza de que aquele desenho provava que pelo 83 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ menos a culpa da falta do nariz, o imperador francês não havia levado para o túmulo. Em seu quarto, se sentia apto para escrever com o próprio punho, já que lá a mesinha havia sido feita para ele. O pai entenderia sua caligrafia e apesar de ser mais cômodo pedir para a tutora escrever por ele, queria tentar. “Saudações, adorado pai. Muito alegre fiquei após ler tudo aquilo que o senhor escreveu! É muito bom ter alguém para dividir comigo um pouco do que gosto e tristemente, as histórias que conto a respeito dos faraós, não empolgam ninguém por aqui. Só repetem que o passado tem que ser morto e enterrado. Acredito que um dia, vou poder sim chegar até a Esfinge, quem sabe consigo a resposta para o mistério do nariz desaparecido! Sei que por muito tempo não poderei arredar o pé daqui, mas, ninguém causará impedimento quando eu atingir a maioridade. Viajarei para tantos lugares, que precisarei de mil diários para narrar tudo o que verei! Há alguns dias, o senhor José Bonifácio, disse que me traria uma surpresa. Perguntei o que era, e ele apenas disse que eu ficaria sem palavras quando visse. Quanto ao “Pó de Múmia”, estou curioso para saber o processo. Acredito que meu estimado professor de francês, Monsieur Boiret, deve ter conhecimento. Meus professores e tutores, muitas vezes têm conflitos que não entendo. Minha estimada Dadama, sempre está com a ex- 84 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas pressão brava e mesmo não sendo comigo, acaba deixando-me triste. A rotina aqui em nossa casa está difícil, tanto que até mesmo os criados deixam transparecer que não estão satisfeitos. Todos dizem-me que é impossível a sua volta, papai, estou conseguindo compreender aos poucos os seus motivos para ter partido tão rápido... Só quero que saiba que estou tentando ser forte e cuidar das minhas irmãs também. Com muita tristeza, despeçome mais uma vez...” Pedro II finalizou a carta, assinou formalmente e a fechou com seu selo. Não havia conseguido colocar no papel tudo o que queria e estava com um pouco de remorso por ter feito queixas, todavia, era a forma que encontrava de desabafar. Aos oito anos da idade, recebeu a última carta escrita por seu pai. Dias depois, veio a notícia de que Dom Pedro I havia falecido e como disse na primeira carta escrita à bordo da nau Warspite, não tornou a ver o filho desde que partiu. Se o pequeno imperador já era introspectivo e triste, aquilo havia contribuído para que piorasse. Não queria chorar, havia negado o abraço de consolo das irmãs e tudo o que mais desejava, era voltar aos tempos em que sua família inteira estava presente. Naquela idade, já tinha um gabinete e lá, além da coleção egípcia de seu pai que mandou trazer, o presente de José Bonifácio chamava a atenção. Um sarcófago ricamente trabalhado, da Baixa Época, contendo dentro intacta a múmia de uma “cantora de Amon”. Ao contrário de muitos, ele nunca quis saciar a curio- 85 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ sidade de ver como era a múmia, contentava-se apenas em tê-la ali e em vários momentos, fazia-a de confidente. Muitos estranhavam o fato de uma criança falar com um sarcófago e sua tutora, católica fervorosa, por muitas vezes repreendeu José Bonifácio por ter trazido “aquilo” para a residência real. Achava que os mortos deveriam descansar em paz, e nem de longe a exposição em um gabinete parecia com o merecido descanso de um morto. Para ela, era um ato de profanação e um grande pecado. Dom Pedro II apenas ria discretamente quando a tutora começava a falar da múmia e algumas vezes, caçoava dizendo que ela respondia e até mesmo cantava para ele. Diante do sarcófago, ele encarou o rosto lá pintado e disse quase em um desabafo: - Saberia você, Sha-Amun-em-su, como eu poderia enviar uma última carta a meu pai? O menino balançou a cabeça e sentou-se diante da mesa, deixado seu rosto transparecer a profunda melancolia. Ao abrir a sua gaveta, viu uma caixinha de fósforos e imaginou que ali estava a resposta para a pergunta que havia feito à sua “múmia conselheira”. Munido de tinteiro, pena e folhas de papel, escreveria uma última carta a Dom Pedro I e ali, finalmente poderia colocar tudo o que sempre quis. “Outra vez lhe escrevo, só que já não sei bem se minhas palavras chegarão até o senhor. Mais uma despedida, meu amado pai, e agora será para sempre este adeus que eu nunca tive coragem de dizer. Me ensinaram a respeitar a vontade de Deus, entretanto, que vontade é essa que arranca um filho dos braços do pai 86 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas e não permite sequer que ele lhe dê um último beijo e preste a homenagem merecida? Alguém lá em cima deve pensar que para que eu seja um governante forte, deverei passar por tantos obstáculos e sair vitorioso no final dessa jornada que começou há tão pouco e sinto que já não tem mais fim. Herdei muitos valores do senhor e tudo o que aprendi de bom, foi fazendo da sua pessoa o meu espelho. Hoje, são muitas as pessoas que tentam fazer de mim, um homem. Querem que eu seja justo, honesto, de bom coração, paciente, forte e determinado... Tudo aquilo que é necessário para ostentar a coroa do Brasil sobre a cabeça, dizem que eu tenho que ser perfeito. Te pergunto, meu pai, o que é um homem perfeito? Sou apenas um menino, que nunca teve liberdade e não sabe nem mesmo como empinar um papagaio no céu ou como se joga um pião. Só em meus sonhos posso ter a vida que um menino deseja e ainda assim, quando estou sonhando, sempre virá alguém para me acordar. Não tenho para onde fugir, me chamam de menino chorão e dizem que sou difícil de agradar... Só que os agrados que querem me fazer, não são aqueles que desejo. Não gosto das aulas de música, acompanhadas de tanta severidade, não gosto de aprender latim daquele jeito enfadonho. E, qual a graça de pintar, se não posso colocar na tela o que minha imaginação manda e nem mesmo brincar com as tintas e pincéis, junto às minhas irmãs? A cada hora do dia, haverá alguém dizendo o que devo fazer. Querem entrar dentro de mim, já não me deixam ler sobre os faraós, o Egito e sua cultura milenar, e se digo que o senhor meu 87 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ pai permitia, em uníssono dizem “ele não está entre nós e é para o seu bem”. Todos de uma hora para a outra resolveram saber o que é ou deixa de ser para o meu bem e confesso, tenho vontade apenas de sair correndo e viver como as outras crianças da minha idade! Talvez o senhor esteja desapontado em saber disto, pai, ou quem sabe quando tinha a minha idade, também sonhasse com o mesmo. Se um dia hei de sair desse lugar para conhecer o mundo? Não sei mais! O peso da coroa que herdei consegue ser maior que a minha vontade de voar. Ter nascido nesse país, o que o senhor considerava a minha maior vantagem, nunca soou tão bem aos meus ouvidos. Ainda não sei o que é amar uma pátria, sobretudo quando não sou livre para ver com meus próprios olhos aquilo que ela tem de melhor para oferecer. Para ser sincero, a única certeza que continuo trazendo dentro do meu peito, é a de que nunca vou desistir de encher de orgulho o meu amado pai, mesmo que em espírito – ou o seu “Ba”, como diriam os egípcios. Vou honrá-lo e manter a promessa de trazer sossego à esta pátria, assim como prosperidade e tudo aquilo que o senhor almejou. Um dia, o mundo há de admirar-me, assim como ao senhor. E também um dia, todos lembrarão de minha pessoa como um modelo a ser seguido e dirão que eu fui “grande”. Se era isso o que meu pai queria, a promessa está feita. Lembra-se, meu pai, que o senhor ensinou-me o que era “Dua” para os egípcios e que achava que soava muito mais bonito do que “Salve”? Então, ape- 88 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas nas para o senhor, eu brado: “Dua, meu pai! Dua, Pedro I do Brasil!” Para toda a eternidade, amarei o senhor. Esteja em paz e me guie, seja sempre a minha luz e inspiração. De seu filho, saudoso e esperançoso de um dia reencontrálo.” Ao enrolar o papel, Dom Pedro II, sentiu-se mais leve e teve a sensação de que o pai leria cada palavra com emoção após a ideia que surgiu. O mais estranho foi ter ouvido uma voz de mulher, sussurrando “Ankh, Udja, Seneb”, algo que ele já sabia o que era, mais uma vez, graças às histórias do pai. Ele olhou desconfiado para o sarcófago de sua cantora e riu alto, de uma forma que há muito tempo não fazia. Instantes depois pegou os fósforos e sem culpa, ateou fogo na carta, esperando então que o papel virasse cinzas. Com cuidado, pegou as cinzas com a mãozinha delicada e foi até a janela que estava aberta. - O vento levará minhas palavras até o senhor... Tenho fé. Tudo o que fez foi soprar as cinzas para o alto e naquele momento, o vento se fez presente e garantiu que elas voassem até que seus olhos não conseguissem mais acompanhar. Aquela era a garantia que chegaria até seu pai. Daquele dia em diante, o menino aos poucos se tornou homem e de fato, conseguiu cumprir cada promessa que fez a seu pai e a si mesmo. Nunca esqueceu das palavras que ouviu em seu gabinete, na voz aveludada de mulher. Sempre que sentia que não 89 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ aguentaria a rotina pesada para uma criança, repetia consigo como um mantra, “Ankh, Udja, Seneb... Vida, Prosperidade e Saúde.” Era apenas isso que precisava para seguir seu caminho, nunca feliz, mas ao menos, conformado pelo destino de ter nascido filho de um imperador e esperança única de uma pátria que um dia ainda clamaria por ele. 90 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Nana Rodrigues [Florianópolis, Santa Catarina] Nascida em Curitiba, Paraná, é atriz e dramaturga, participante da Cia Mínima de Teatro e do Núcleo de Dramaturgia do SESI-PR, sob orientação do Diretor e Dramaturgo Roberto Alvim. Publicou em 2010 sua primeira peça “Para Consumo Imediato”, dentro da coletânea de Novos Dramaturgos do SESI-PR, tendo o lançamento oficial ocorrido no Festival de Curitiba – 2010. Já realizou leituras dramáticas de alguma de suas peças, inclusive dentro do projeto “Tardes de Dionísio” na Casa Hoffman, e participou de várias montagens teatrais em Curitiba. Já teve contos e poemas vencedores de vários concursos no país, entre eles o XV Concurso Nacional de Contos "Prêmio Jorge Andrade" de 2012. Expõe alguns de seus escritos (contos, poesias, criticas, etc) no blog Nana Rodrigues – por dentro. Protocolo 192: comunicado à família real Que fique claro não se tratar de uma carta. Que fique bastante claro o teor da comunicação aqui feita e de que não se trata de uma carta de uma mãe para seu amado filho. Trata-se tão somente de um comunicado de uma Imperatriz a seu jovem Imperador. Não somos uma família real, somos a Família Real. Eis a nossa realidade. Jovem Imperador, Que sejam longos os seus dias. Tão longos quanto possam ser os dias desta terra. Repletos de gloria e o sabor de muitas e grandes vitorias. Que seus súditos se curvem ao vê-lo passar e sejam imensas as alegrias de seu povo ao saber que estais no comando. Sua imensa capacidade os orgulhará. Seus louros não terão fim. Serão grandes suas conquistas e todos lembrarão de seus feitos e de seu nome, ainda que em mil anos. A quem queremos enganar? Quem? Eu não suportaria falar nem mais uma palavra de maneira tão vergonhosamente falsa e 91 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ imoral. O tédio de dias como os nossos não tem fim. Estamos fadados a viver o que ninguém vive. Sequer nós mesmos. A astucia é fazê-los acreditar que tudo o que não somos é o que sempre seremos. E maior astucia ainda seria a de fazer-nos acreditar. Como pude ser tão infiel? Os decretos que devem ser assinados e homologados junto a corte seguem de navio para que vossa Majestade possa dar continuidade a vossa governança. Eles deverão ser recebidos no máximo até as festividades da Páscoa. Dê ao povo um discurso magistral, digno de vossa ossatura. Eles não merecem seus esforços para que possa dar certo o que nunca dará. Seus esforços são desnecessários. Esta terra afundará por si só, sem que se precise mexer um tronco ou um alqueire de barro. Aqui já sabemos o fracasso de nossas desventuras, mas ai ainda acreditam que algo bom possa surgir de tantos infortúnios. Quiçá pudéssemos voltar atrás. Quiçá nunca ter colocado uma só Nau ao mar. Agora sabemos o valor de nossas conquistas e o sofrimento que elas causaram. Não deveríamos ter saído de nosso lugar. Nunca saberemos. Estamos providenciando novos empregados para que sejais servido com toda pompa e formalidade que deveis. Conquanto acostume-se a ordenar tudo aquilo que imagina como certo, pois eles desejam ser ordenados, são selvagens. A corte está de acordo com suas bem-aventuranças, mui digno Imperador. O rei não sabe mais o que fazer com tantos desgostos advindos deste além mar. Queria poder chama-lo pelo nome, mas 92 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas isso já me fugiu ao controle e a mente. Seria desastroso confessar que não lembro o nome do homem com quem me casei e tive filhos. Deveria ter anotado num papel. Ele diz que se pudesse recolheria todos os que levou e fecharia as portas deste desastroso paraíso vez por todas. Perceba que na maioria das vezes não é possível voltar atrás. Por hora sabeis que aqui estamos todos repletos de jubilo com a possível visita papal até vosso reino e que muitos serão os lucros deste encontro. Vossa Santidade percebeu a tempo a honra de compartilhar de vossa presença nobre e cheia de vigor. Portese como tal. Seus irmãos cobiçam tanto o que tens, que se caíres por terra, com febres e convulsões impossíveis de se diagnosticar, saibas que será por este ódio que cultivam junto a ti. Mal sabem a sorte que têm de não serem quem sois. Poderiam gozar a vida que lhes resta, com toda pompa e sem sequer pensar nas responsabilidades, mas preferem o fulgor da inveja pelo que não lhes é de direito. São inúteis fabricados pelo meu próprio ventre. Pratique a arte da guerra com o mesmo afinco que tens dedicado a leitura das cartas de suas amantes e não tome para si a única arte que seu pai soube fazer. Aquele inútil. Não se trata de um conselho e sim uma advertência. Suportei tudo o que pude e mais do que qualquer outra poderia suportar. Agora deposito em ti, filho amado, todas as esperanças de que o futuro consiga ser menos penoso do que foi o passado e tem se mostrado o presente. 93 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Que dádiva é essa de que tanto falam? Sou uma mulher que sabe exatamente o que é não ser. Desespera-me saber que há entre nós um mar imenso. O sal entre nossas emoções nos faz desejar ver um fim que não se aproxima e não se sabe se algum dia chegará. Querido Príncipe de meus dias remotos, retorne a seu lar. Abandone tudo o que pode acreditar que construiu e venha viver dias de paz com sua amada mãe. Trata-se de um comunicado. Leia-o em voz baixa, não peça para que o façam em seu favor. Retire-se da companhia dos que o cercam e dedique-se a estudar isto que lhe escrevo como se dessas palavras dependesse sua vida. Realmente, se queres ter uma vida, disto ela depende. E não é a Rainha, Imperatriz ou sei lá o que, ou é a Rainha que vos fala. Já não podemos mais nos separar. Dias e noites vividas como ela viveria. Agradando a corte com acenos e cobiças. Somos iguais. Não podemos voltar atrás. E isso desespera meu tão fraco coração. A politicagem é o que nos corrói. Nosso começo e nosso final. Corrompe tudo o que nela encosta e somos tomados por ela até o fluido que excretamos. Ela está em nossa mente em cada passo que damos, pensando que é feito por nós mesmos. Não quero este triste fim para ti, meu mui especial e querido filho de ventre. Sangra-me as entranhas de imaginá-lo daqui alguns anos escrevendo a seus filhos assim como agora eu o faço. Em entrelinhas e mentira. Em comunicados e decretos. 94 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Trata-se de um comunicado. Leia-o defronte aos súditos no domingo de Páscoa. Grite se for preciso, para que todos compreendam o que se passa dentro de meu sofrido coração de mãe. Uma mãe que não quer se separar do único filho que realmente amou e que agora se encontra tomado de poder, soberba e luxuria. Numa terra selvagem, inóspita e distante. Uma terra que até então não existia e deveria não ter passado nunca a existir. Seu pai não conseguirá compreender sua decisão, mas terás o meu apoio. Terás tudo o que uma mãe um dia poderá dar a seu filho mui amado e seus dias serão ainda mais pacíficos. São dias opacos os que vivemos longe um do outro. Dê especial ênfase aos papeis referentes a Izabel. Que sejam tratados com toda a brevidade que merecem e que se tornem profícuos. Não suporto ouvir-lhe sequer o nome. Izabel. Deles dependem outros que seguirão no próximo navio. Mandarei as coisas que me pediste, todas elas. Esperemos que os ignóbeis que lhe seguem não façam uso delas antes mesmo que possa aprecialas. Leia-a quando vossa Santidade estiver presente. Para que ele saiba que o que nos exigem é demasiado para nossa força. Que todos os que desejam ser o que nós somos, isso que aparentamos ser, sejam brutalmente punidos por nos cobrarem com tamanha crueldade. Para o inferno com este Papa de meia pataca e todos os que riem de nossas costas. Eu estou farta! Meu filho amado e querido. Não se trata de uma carta. Trata-se de um ato de desespero. Escrevo como quem divaga, mas 95 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ com uma corda amarrada aos meus punhos e pescoço. Quisera pudesse ser apenas uma mãe que suplica pela volta de seu filho. Quisera pudesse ser o que qualquer mortal é. Mas nosso fardo deve ser carregado com o orgulho que ele fomenta. Esqueça de vez por todas a loucura de querer voltar a corte. Eles aqui andam loucos e o destruirão ao seu primeiro pisar no cais. Seja coerente e faça com que esta nova província que agora é seu condado, seja orgulho deste velho e rançoso continente. Estamos para além dessas coisas que todos sentem e sabem. Somos aqueles que permanecerão depois que tudo que eles conhecem já tiver partido. Somos o amanhã meu excelente Imperador. Que falem todos o quanto puderem falar. Que esbraveje seu pai e irmãos. Nenhum deles é digno de vossa pena ou misericórdia. Faça o que deve ser feito e o faça de imediato. Não somos apenas uma família real, somos a realidade de todas as famílias que se inspiram em nós para dar norte a suas vidas vazias e perdidas. Somos motivo de celebração e orgulho. Sejamos em vida o que não foram nossos antepassados. Gloria, luz e majestade sem fim. Vida longa ao nosso tão digno Imperador, que viverá e reinara para sempre! P.S. Se quiser voltar, estarei aqui, de braços aberto e pronta para lutar. Sua mãegestade, a Imperatriz. 96 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Neyd Montingelli [Curitiba, Paraná] Nascida em Curitiba, Paraná, é casada e tem quatro filhas. Formada em Psicologia e especialista em Nutrição, Leite e Queijos. É aposentada pela Caixa Econômica Federal e já teve um laticínio de leite de cabra. Tem sete livros publicados e participa de trinta e cinco antologias. Escreve contos sobre cavalos no site Hipismo&Co e receitas com derivados caprinos no site Farmpoint. Membro de diversas entidades Acadêmicas no Brasil e do Núcleo de Letras e Artes de Buenos Aires. Foi premiada em vários concursos literários, recebeu o Certificado Responsabilidade Cultural Semeador de Livros e Amigos (Juruá Editora) e o Certificado Responsabilidade Cultural do Instituto Memória Piá Bom de História. Um segredo só nosso - É o Sr. Tancredo? Eu falei com o senhor ontem sobre a desratização aqui no Palácio de São Cristóvão. Então está acertado, pode vir amanhã antes das sete. Vou deixar o vigia do dia já avisado. Como eu falei, o barulho é no gabinete de estudos do Imperador, no segundo andar. Vem das paredes. Acho que os ratos estão nas paredes, dentro das paredes. Tancredo &Tancredo desinsetização, uma empresa sólida, com mais de 30 anos no mercado, conta agora com o trabalho novo e atualizado do neto do proprietário. Guilherme Tancredo Alves Neto trabalha com o avô há dois anos, desde que o pai ficou doente e deixou o lugar para ele. No começo o rapaz detestou o serviço. Ele gostava mesmo é de ficar em casa, mexendo no computador, escrevendo crônicas satíricas que mandava para jornais, revistas e blogs. Ganhava um dinheiro aqui, outro ali e ia levando a vida na folga. Tinha muito tempo livre e várias namoradas. Passava as manhãs na praia de Maresias,surfando. Com 28 anos ainda não havia encontrado um rumo para sua vida. 97 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Como morava com os pais, foi obrigado a assumir o posto do pai na empresa. Não conseguiu desvencilhar-se desse compromisso. O avô era um cara muito legal, deixava que ele ficasse solto, trabalhando quando queria, com muitas horas vagas para surfar, escrever e namorar. Ele só devia ficar no pequeno escritório da empresa para receber os telefonemas e agendar as visitas e aplicações. O resto o avô se encarregava do trabalho. De vez em quando o avô pedia a ajuda do folgado para algum serviço maior, mais pesado. Este serviço chamou a atenção do surfista namorador. Ele nunca havia entrado no Palácio Imperial e aquela construção imponente cheia de histórias mexia com ele. O avô chegou e ele foi falando: - Vozão, ligaram do Palácio do Imperador, quero dizer, do Museu. Querem que a gente vá lá dar um fim em uns ratos que estão atazanando a vida deles. Eu quero ir. Nunca entrei lá. Quero ver esse tal de Palácio por dentro. - Quando? - Amanhã. Chuta a hora... - Sei lá. Para você querer ir, deve ser de tarde. - Sabe de nada inocente! É de madrugada. Tem que chegar lá antes das sete. - Então arranjou serviço para o velho aqui bem cedo e no domingo, né? 98 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas - Nada disso, nada disso. Como eu falei, quero conhecer o tal Palácio. Pode deixar que eu quebro essa. O avô não estava acreditando, mas vendo o neto ali na sua frente tão animado, resolveu ir com ele arrumar a caminhonete com os apetrechos para o trabalho da “madrugada”. Acordar cedo não era problema para o surfista. Afinal, é o sol nascendo que chama as melhores ondas. Muito antes da 7 horas da manhã, lá estava o rapaz encorpado, bronzeado e com o longo cabelo loiro preso com um elástico, na entrada do Palácio. Pega uma grande maleta quadrada amarela e preta, coloca no ombro e segue o vigia porta adentro. - Que espetáculo! Nunca tinha entrado aqui. Como é bonito! Você gosta de ver essas coisas antigas? - Eu sou um admirador de todas as peças que estão aqui. Tenho pena das outras coisas que foram leiloadas, roubadas, perdidas. Trabalho neste lugar há 9 anos. - Nossa. Isso aqui deve ter muita história além da história. Vamos lá cumpadi. Vamos à cena do crime murídeo no segundo andar. Guilherme segue o vigia até o elevador. - Ô cara. Eu não quero andar de elevador em lugar como este. Quero subir por aquelas escadas que aparecem em filmes antigos. Onde é? O vigia Antônio, cede ao pedido do rapaz e voltam ao centro do Palácio para subir pela grande escada de mármore. Como a 99 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ escada não leva ao local do barulho, os dois andam por corredores e por dentro de outras salas, para satisfação de Guilherme que a cada quadro, pintura ou ornamento, comenta: - Nossa, que coisas perfeitas. Que mãos habilidosas para fazer essas esculturas. Olhe essas cabeças de leões! - Esses correspondem aos leões da Casa Real de Castela, representando a força da residência ou de seu proprietário, e em homenagem a Carlota Joaquina, avó do imperador. O vigia gosta de ver a admiração do rapaz e aproveita para repetir o que muitas vezes ouviu falarem dentro do Museu. Descreveu cada espaço, cada sala, cada obra de arte. Também, são anos de trabalho e como ouvinte atento das informações dos professores e estudiosos do Paço de São Cristóvão, antiga residência de monarcas. Finalmente chegam ao gabinete de estudos no segundo pavimento. À porta, as colunas que ornamentam tem o café e o tabaco como tema e a visão aguçada e curiosa do rapaz fazem os seus dedos passarem por sobre a delicada escultura. - O que são essas frutinhas e folhas? O vigia faz um som como se estivesse limpando a garganta e conta a história da reforma do segundo pavimento por D. Pedro II, com a colocação das colunas e pinturas que retratavam o período do auge do café e do tabaco no Brasil. Depois de quase meia hora de explicações e demonstração de parte do Museu, o vigia abre a porta da sala que tem os ruídos. 100 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas - Pronto! Chegamos. Agora você pode fazer o seu trabalho e acabar com essa barulheira de ratos. O rapaz primeiro olha demoradamente para as paredes, cortinas e mobiliário da sala. Coloca sua bolsa no chão e começa a fazer uma vistoria atrás dos móveis, nos cantos. Procura uma abertura por onde os ratos possam entrar na parede. - Vou deixar você trabalhar. Lembre-se: não pode destruir nenhum patrimônio do Museu. Caso tenha que abrir uma parede, terei que comunicar à Dra. Cláudia antes de começar. Anota aí o meu celular e me avisa caso precise fazer alguma coisa séria. Eu tenho que ficar lá em baixo, na porta. Afinal sou o vigia, tenho que vigiar. Guilherme anota o celular e continua na sua busca. Coloca o ouvido encostado na parede em vários locais. De repente, escuta algo na parede perto da janela. Passa a mão em toda a extensão da parede. Arrasta um armário com livros e avista uma pequena abertura no canto. - Achei a entrada! Ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego! Arrastou o enorme armário com todo o cuidado, para bem longe da parede. O quarto é pequeno, tem 27m² e serve atualmente como espaço de exposições. Neste dia está vazio, aguardando que o barulho seja extinto antes de receber um novo evento. Ele se agacha e introduz um bastão fino em forma de pinça no buraco. Retira de lá alguns dejetos de ratos e pequenos pedaços de papel roído. 101 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ - Ah! Seu safado. Está fazendo ninho aqui dentro. Você não me escapa. Aquele local é coberto por um pano como um papel de parede tão antigo como o prédio. Ele precisa avisar o vigia, pois terá que abrir mais aquele buraco para poder colocar o veneno e acabar com o ninho. - Oi Antônio. Achei a porta da casa dos pestes. Vou ter que abrir a parede pelo menos uns 50cm. Autoriza? O vigia entra em contato com a Dra. Cláudia e recebe a autorização para a pequena abertura para o trabalho. Guilherme pega seu equipamento e começa a obra. Descola como pode o papel de parede e quebra com todo cuidado um pedaço da parede. Incrível, mas achou um esconderijo e tanto naquele lugar. Com o celular ele filmou dentro da espessa parede e viu um emaranhado de canais e buracos. Nessas construções antigas usava-se o cimento importado da Europa e quando faltava, usavam o estuque para cobrir os tijolos. Estuque era a massa de cal, areia fina, pó de mármore e gesso, largamente usada na construção como cobertura. Apesar de fácil aplicação, o estuque mal misturado podia desmanchar, virando uma areia. No caso dessa parede, provavelmente o construtor usou um péssimo estuque, pois os ratos conseguiram roer a ponto de construírem canais compridos. Um verdadeiro formigueiro. O rapaz resolve fazer uma busca por outros buracos na parede e encontra um escondido embaixo da moldura de jacarandá da janela. Com todo o cuidado para não danificar a madeira, ras- 102 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas pou o reboco da parede e encontrou mais galerias, canais e buracos. Introduziu a pinça o mais fundo que pode e retirou muito papel picado. Um dos pequenos pedaços de papel chamou sua atenção. Estava amarelado, parecia antigo e tinha algo escrito em uma caligrafia estranha. Abriu mais o buraco e pode ver vários rolos pequenos de papel com as pontas roídas pelos ratos. Quando puxou, vieram alguns rolos enrolados em uma fita vermelha. Tirou todos e contou: 10 pequenos rolos amassados e amarelados. Ele estava muito curioso. Não resistiu e abriu um rolo. Uma letra infantil estava na carta, porém com traços firmes e muito difícil de entender pela maneira de se expressar e pelo português empregado. Era do tempo do Império! Querida mamãe, Saudades. Acaso cumpro eu uma penitência? Nasci Rei e encontro-me no pior dos castigos. Junto de mim, apenas escravos e prestam-me serviços. É só o que tenho. Nenhuma demonstração de afeto. Eu queria ser um escravo, assim poderia correr pelos belos jardins do Palácio. Fico feliz nas horas que encontro meu amigo. Só com ele posso ser apenas um menino. Queria que fosse de seu conhecimento esta minha amizade. A mais ninguém posso falar dele. O marquês com certeza o mandaria prender, pois não posso conversar com pessoas, apenas com os escravos, minhas irmãs e tutores. 103 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Quando vais voltar ao Brasil? Quero que conheças Mariano. Saudades, saudades. Seu filho do coração. D. Pedro 2º Paço de São Cristóvão, 22 de abril de 1834. - Mega massa! Carta de D. Pedro II quando era moleque. Quantos anos será que tinha esse figurinha? Deixa eu ver 1834... Ele nasceu quando mesmo? Já sei. Com o celular, ligou para o vigia Antônio: - Ô camarada, tudo em cima? Diga lá, cara que sabe tudo do Palácio: quando nasceu o D. Pedro II? - O único herói que o Brasil teve? Esta é fácil, nasceu a 2 de dezembro de 1825. O que mais quer saber? Sabe, eu era vigia de uma biblioteca, mas aqui está muito melhor que antes. Aqui eu vivo com a história todos os dias. E tenho todos aqueles livros para ler na folga. - Legal cara. Obrigado. Era só curiosidade. Estou fazendo umas contas aqui. Até... Guilherme fez as contas e descobriu que aquela carta foi escrita por um menino de pouco mais de 8 anos. Era um fato interessante um menino tão novo escrever tão bem. Nem o próprio Guilherme escrevia assim com essa idade. Curioso em saber mais sobre o amigo secreto do pequeno Imperador, o rapaz abre as outras cartas e faz grandes descobertas sobre um menino que vivia naquele Palácio. 104 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas As cartas cheias de amargura, tristeza e saudade eram de emocionar o leitor. Ele pedia à mãe que voltasse para o Brasil; que contasse histórias para ele; que fosse passear nos jardins. Algumas cartas eram mais dramáticas, outras apenas a tristeza imperava, outras ainda eram de extrema alegria. - Por que esconder as cartas? Querida mamãe, Hoje foi um dia feliz nesta minha vida solitária. Mariano passou a tarde toda comigo. Conversamos muito sobre o futuro. Ele sabe de muitas coisas importantes para o Império e está a ajudar-me nas artes, matemática, história e geografia. Ele diz que serei um grande Imperador e que meu nome será conhecido no mundo inteiro, por isso tenho que estudar muito todas as artes, todo o governo, todo o Brasil e conhecer todas as maravilhas da natureza. Mariano é um amigo muito culto. Disse que a biblioteca do Palácio é pequena, que eu devo colocar muitos livros nela até chegar a mais de 30.000. Achei um exagero, pois onde conseguirei tantos livros? Ele gosta das estrelas e sugeriu que eu estudasse astronomia. Tem muitos planetas e estrelas neste nosso céu esplendoroso à espera de alguém para encontrá-los. Posso ser um deles, vou pedir para o conselheiro Manuel Inácio, que compre um telescópio bem potente! De seu filho do coração. D. Pedro 2º Paço de São Cristóvão, 27 de maio de 1834. 105 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ O rapaz surfista ficou mais curioso sobre esse amigo Mariano. Quem seria? Será que era um dos tutores? Deveria ser alguém muito próximo e que estava ajudando o pequeno Imperador a gostar de estudar. Ele imaginava o menino estudando várias horas seguidas, sendo tão novo e com tanto lugar para brincar nesse Palácio. Outra curiosidade na carta: a biblioteca. Guilherme sempre gostou de ler, tanto que frequentemente escreve crônicas e tem vários romances começados no seu computador, só esperando que as garotas e o mar o deixem mais livre para terminar. - Ô amigo Antônio, tira aí mais uma dúvida. Ou melhor, mata minha curiosidade. Onde fica a biblioteca do D. Pedro II e quantos livros tem lá? E ele tinha um telescópio? Quero conhecer, posso? Antônio sobe para levar o rapaz até a biblioteca, ou o que restou dela. - O nosso erudito Imperador tinha um amor incondicional pelos seus livros e objetos de estudo. Quando foi exilado, doou parte de sua enorme biblioteca que continha mais de 36.000 livros além de outros objetos do seu Museu particular. Sua única condição? Que colocassem o nome de Imperatriz Teresa Cristina e Leopoldina nas coleções. Pensa que isto foi feito? Claro que não. A vontade de um ex-Imperador do Brasil não foi levada em conta. E quanto ao telescópio, sabia que a equipe do Imperador descobriu um planeta? 106 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas - Cara, estou impressionado. Você conhece muita coisa dessa casa. O meu serviço contra os ratos vai demorar muito, pois quero saber mais a respeito dessa história. Uma pergunta: quem era Mariano, o amigo do Imperador quando era criança? - Não existia “amigo do Imperador”. Ele era proibido de sair do Palácio e de relacionar-se com pessoas do povo ou mesmo da corte. Só sei de sua babá Mariana de Verna, mas era uma senhora portuguesa que o menino nascido rei chamava de “Dadama”. Ele gostava muito dela, inclusive ela contribuiu para a saída do tutor de D. Pedro, José Bonifácio, o Patriarca da Independência. Tinha também um escravo tutor, designado por D. Pedro I, mas chamava-se Rafael. - Gostei de saber disso, mas não é uma mulher. É provavelmente um jovem da corte de nome Mariano. - Onde você ouviu ou leu isso? Que eu saiba não tem ninguém com o nome de Mariano na corte. - Talvez eu tenha lido errado mesmo. Deixa então. Vamos lá, mostra aí a tal biblioteca. Nos próximos 30 minutos, o jovem surfista ouviu atento às informações sobre os livros daquela biblioteca. - Bem, agora eu tenho que descer. É domingo, mas nada impede que algum chefe apareça. Guilherme volta ao seu trabalho. Procura com mais afinco dentro da parede esburacada por mais cartas escondidas e encontra um outro lugar com mais algumas, porém muitas estavam com grande parte do papel roído 107 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ pelos ratos. Aproveita e coloca o veneno para os ratos nos buracos e senta-se perto da janela para ler o restante das cartas. Querida mamãe, Acordei com dores na barriga hoje. Dadama deu-me um depurativo e disse que se eu não melhorar até a tarde, vai chamar o médico. Sabe que eu sinto falta do conselheiro José Bonifácio? Ele sempre tinha respostas para minhas dúvidas. Manuel Inácio é bom também. Meu amigo Mariano falou hoje que tenho que estudar botânica e remédios. Disse que o meu país vai precisar de muito remédio para uma grande doença que vai se abater sobre o povo. Eu não entendi o que ele quis dizer com isso. Era uma doença amarela. Acho que as pessoas ficarão amarelas. Vou procurar nos livros sobre essa enfermidade. Seria muito bom que aqui se reunissem vários homens com saberes farmacêuticos. Nós rimos muito hoje. O meu amigo é muito divertido. Sabe do que ele chamou-me? De “Magnânimo”. Vou perguntar ao Senhor Cândido, meu professor de português o que quer dizer essa palavra. Depois ficava correndo atrás de mim dizendo que eu vou ser um herói para o Brasil e vão me chamar de Pai do Povo. Será que vou ter muitos filhos? Ele contou-me que a terra brasileira vai me acompanhar até o meu último dia de vida e primeiro da morte. Eu sei que serei o Imperador do Brasil até morrer, mas Mariano fala de uma forma poética. Parece que vou levar terra para o caixão. 108 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas “Você verá seu rosto colado no papel”, disse enquanto eu tomava meu chá. Novamente ele usa essa forma de falar que me confunde. Mas ao mesmo tempo fico imaginando o futuro. Porventura terei um pintor que fará meu retrato em pedaços de papel? De seu filho do coração, D. Pedro II Paço de São Cristóvão, 20 de novembro de 1934. - Epa, estou achando que este tal de Mariano é um vidente. Essa doença é a febre amarela e já teve muito no Brasil de antigamente e ainda existe por aí. E o rosto colado no papel com certeza é a fotografia. Já tinha fotografia no tempo do Império? Novamente o rapaz liga para o vigia-que-sabe-tudo-doPalácio e o enche de perguntas. Imediatamente Antônio traz as respostas às inocentes indagações que o pequeno Imperador escreveu na carta: .O Brasil teve uma epidemia de febre amarela por volta de 1850 . D. Pedro II foi patrocinador do Instituto Farmacêutico do Rio de Janeiro, local onde reuniam-se diversos homens relacionados aos remédios para a cura de enfermidades. . A fotografia foi trazida ao Brasil por um abade francês em 1850 e o Imperador foi a primeira pessoa a ter uma máquina fotográfica. Ele tinha 25.000 fotos no seu acervo. 109 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ . Quando morreu em Paris, D. Pedro foi enterrado juntamente com punhados de terra vindas de todas as províncias do Brasil. - Meu amigo Antônio. Você é o cara mais sabido que eu já conversei. E olha que eu achava o meu avô o sabichão da cidade. Cara, muito legal saber disso. Mas, escuta: de verdade que o Imperador quando era menino não tinha uma pessoa que ficava perto dele o tempo todo, tipo assim um guru, um guarda-costas, sei lá? - Com certeza não tinha. Os Regentes não permitiriam, porque poderiam influenciá-lo com desejos do povo. Satisfeito com as explicações de Antônio que decifraram a carta do menino Imperador, Guilherme volta a ler as demais cartas. Depara-se com a demonstração de uma infância solitária, carente e triste do menino que tornou-se um homem muito importante para o Brasil. Como ele conseguiu superar esse abandono afetivo da família? Ficou a imaginar um menino sem poder brincar, ter amigos, ter as irmãs como companheiras. Triste vida. Chegou à conclusão que ele escondeu as cartas com medo que alguém lesse e descobrisse o amigo secreto, que poderia ser um dos escravos ou alguém que entrava escondido no Palácio. - Ainda bem que ele tinha esse amigo vidente. Enrolou e amarrou todas as cartas como estavam e guardou nos canais dos ratos bem lá no fundo, cobrindo com pedaços de madeira e pedras depois de colocar o veneno. Aplicou um 110 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas spray de espuma que endurece rapidamente, especial para tapar buracos em construções. - Meu amigo pequeno Imperador, fique tranquilo, suas cartas ficarão em segurança no mesmo local que você as escondeu. Este segredo será só nosso. Depois do trabalho executado, juntou seu equipamento e desceu as escadas chamando pelo vigia. - Cara, estou impressionado com este lugar. Coitado do Imperador quando era pequeno né? Já pensou em um menino sem poder brincar, só estudando? É muito triste. - Sabe o que os historiadores escreveram? Que D. Pedro menino era acometido por alucinações. Ele era visto conversando com as paredes e encenando peças de teatro sozinho pelas salas de estudo. Tudo isso por conta da solidão. E, apesar disso, tornou-se um homem das letras, das artes, das pesquisas, humano, gentil e culto. O Pai do Povo, o Magnânimo. Se fosse hoje em dia, ele seria internado como psicótico, mesmo não tendo ainda 10 anos. Ao sair pelos portões do Paço de São Cristóvão, o surfista leva um segredo que ficará apenas entre ele, o Pequeno Imperador e os ratos. 111 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Ana Lygia dos Santos [Guaratinguetá, São Paulo] Nascida em Guaratinguetá, São Paulo, abandonou a engenharia mecânica às vésperas da formatura e abraçou a literatura. É formada em LetrasLiteraturas de Língua Portuguesa pela PUC/RJ. Pesquisa Literatura Brasileira e Cultura Popular, assuntos que lhe renderam publicações e prêmios na área. No ofício das letras é colunista da seção Grafias do Jornal O Lince, da Revista Benfazeja e da Revista SAMIZDAT, além de contribuir com outros veículos de comunicação. Mãe da Carolina, de dois cães e dois gatos. Não resiste à flor de vento, bolhas de sabão, empadinha e café. Adora cadernos artesanais, faz seus rascunhos a lápis e, apesar da produção constante, admite sentir preguiça de ter um blog. Um dia, longe ou perto, cria coragem para publicar um livro. Cantiga de leite e fé Cubatão, 24 de abril de 1831. Estimado Pedrinho, Venho por estas mal traçadas linhas demonstrar-te minha alegria ao saber da notícia da tua condição de príncipe regente da Coroa Portuguesa. Desculpo-me por não ser uma pessoa letrada, pouco sei, mas faço desse mínimo tudo o que posso para demonstrar à sua majestade minha devoção. Sinto-me honrada pelo fato de o futuro imperador ter sido alimentado pelo meu seio e meu amor. Lembro-me de quando vossa majestade esteve em nossa casa: vosso pai, o imperador, era amigo próximo de meu esposo e vinha em comitiva, como sempre fizera, para nossa cidade, antes de chegar à cidade de Santos, refazendo o mesmo trajeto na volta à Corte. A descida da serra era uma difícil muralha e a casa do meu honrado esposo, o senhor Miguel Francisco do Couto, era ponto de parada para recarregar as energias. Cansados da dura descida 112 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas da serra, a comitiva imperial aportava, matava a fome e a sede, descansava e seguia a viagem para Santos e de Santos para a Corte, no Rio de Janeiro. Só que, desta vez, o imperador trazia consigo D. Leopoldina e vossa mercê, ainda uma criança de peito, devendo contar poucos meses. O ano era o de 1825 e naquele episódio, a senhora sua mãe encontrava-se tristonha e angustiada, por achar-se incapaz de aplacar o apetite do futuro monarca. Seu leite secava e a aridez de seu seio só fazia crescer à medida que as tristezas tornavam seu coração pantanoso. Quando vossa majestade crescer, entenderá as razões do desalento da senhora imperatriz. Entretanto, o amor e respeito que eu recebia do senhor meu marido, fazia jorrar liquidamente o amor do meu peito. Vendo a angústia da senhora Leopoldina, que acreditava-se incapaz de retribuir à nação a responsabilidade de criar sua majestade, ofereci-me para alimentá-lo. Fiquei mui feliz quando sua majestade aceitou meu leite. Eu, uma descendente de índios dessa terra, alimentava sua majestade ao som de cantilenas entoadas por anos na tradição tupiguarani, mais uma vez a corte brasileira comungava com Portugal; mais uma vez a corte brasileira alimentava com leite e fé a coroa portuguesa. Tenho, pois, a ousadia de acreditar que foi o leite e a fé desta descendente de bugres que fez crescer o amor de vossa majestade por essa terra, nossa terra. Por dias ficaste conosco, a senhora D. Leopoldina tranquilizava-se com teu sono tranquilo e saciedade. O senhor seu pai, por sua vez, exigiu que 113 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ mudássemos para a Corte, mas perdoe-nos, meu pequeno, não poderíamos abandonar nossa vida aqui na Vila de Cubatão. Como uma esposa e mãe honrada, temia pela minha integridade e de minha família, acostumada à vida pacata na vila. Temor que se confirmou com a vinda truculenta das tropas do imperador seu pai, que intentava dar cabo à vida do senhor meu marido antes de capturar-me. Entenda, pequeno, precisamos fugir e ficamos escondidos na serra até que os ânimos se apaziguassem e só retornamos à nossa cidade após a volta do senhor seu pai às terras portuguesas. Não quero, pois, que entenda a minha recusa como afronta pessoal. Um dia vossa majestade será chefe de família, esposo amantíssimo e pai zeloso e compreenderá nossos motivos. Mais do que o alimento que vos dei no passado, hoje quero aconselhar-te para que seja um bom governante e um monarca amado pelo seu povo. Primeiramente, obedeça ao senhor Bonifácio, acredite-lhe nas boas intenções e esteja atento a todas as orientações; ele é o representante de vosso pai agora e tem como função conduzir vossa majestade pelas mãos; obedeça também à senhora dona Maria Carlota e o senhor Rafael. Tenho certeza de que eles zelarão para seu crescimento, educação e segurança. Não te feches às pessoas e seja cuidadoso com eventuais instabilidades dentro do governo. O homem é um bicho que tem fome de poder, mas só se sacia aquele que governa com humanidade. Então, esteja atento às alianças que se negam a atender aos 114 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas interesses do povo e do Brasil. Seja justo, íntegro e pacífico! E nunca perca de vista as necessidades dos seus súditos. Todas as pessoas são iguais, negros, índios e brancos e devem ser respeitadas em seus direitos. Essas três raças contribuem, sobremaneira, para a construção do país. Tenha certeza, meu querido filho de leite, que os livros serão seus melhores amigos. Seja incansável e busque sempre pelo conhecimento. Sempre sonhei em poder ter acesso aos estudos, mas pouco pude. Também pouco posso pela educação dos seus irmãos. Por isso, filho meu, peço-te que construa escolas, para que a educação, em todos os níveis, seja possível a todos. Construa, também, lugares próprios para o recolhimento e a preservação de todas as obras de arte, seja a literária ou a de quadros. Assim, manter-se-á o patrimônio cultural do nosso país, bem como a memória de seus principais artistas. Construa, também, uma economia forte e uma casa que possa responsabilizar-se pela cunhagem da nossa moeda. Nosso país é tão grande e rico, com tamanho vigor para transformar-se em uma grande potência mundial. Do mesmo modo que nossa riqueza cultural deve ser preservada, cuide, filho meu, para que a nossa nossas riquezas naturais, sejam salvaguardadas. Conforme disse o escrivão do rei, o senhor Pero Vaz, quando da descoberta do Brasil: “aqui, se plantando tudo dá”; cuide, pois, para que nossa fortuna vegetal seja preservada; cuide também da nossa agricultura, para que nenhum dos filhos dessa pátria sinta fome ou sede. 115 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Faça, pois, tudo o que lhe estiver ao alcance para ser um governante digno de respeito e de admiração pelos brasileiros. Deixe sua memória registrada na História como a de um governante magnânimo. Tenho plena convicção, meu filho de leite, que tuas mãos, que um dia segurei enquanto embalava teu sono, conduzirão este país e transformá-lo-ão em uma pátria soberana, respeitada, desenvolvida e pacífica. Beijo tuas mãos com respeito, admiração e orgulho materno. Sua serva, Maria Gertrudes Carmo do Couto. O menino Pedro ouviu a leitura da carta, feita com cerimônia, pelo senhor Bonifácio; aos seis anos, pouco poderia compreender daquele desejo expresso pela sua mãe de leite. Não havia restado nenhuma recordação daquela mulher descendente de bugres, de longos cabelos negros, olhos amendoados e beleza exótica, mas trazia no peito uma cantilena que por noites a fio embalaram seu sono, enquanto sua fome era saciada. Essa cantiga de amor e de leite, de colo e de sono, de leite e fé eram alento em seus momentos de dificuldade. Era um balbucio sempre repetido de forma inconsciente, em momentos de introspecção. Melodia de serenar, prenúncio de saciedade da alma e do coração. Certamente que ele obedeceria a tais conselhos: seria um bom governante, motivo de orgulho do pai distante e zelaria pelo progresso da nação brasileira. 116 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Após a leitura da missiva, o jovem monarca tomou a carta e encerrou-a numa caixinha de madrepérola, junto de chocalhos e soldadinhos, de peões e cavalinhos de madeira; auspícios futuros e pequenas recordações de sua breve infância. Aqueles conselhos que, mais do que orientar pediam, eram cantiga de alimentar realidades e sonhos, possibilidades de um país melhor. Pedro crescia rodeado de livros, fazendo deles seus fiéis companheiros, lia sobre os mais diversos assuntos e em vários idiomas e só via crescer sua curiosidade e fome de conhecimento; ao passo que desejava criar um espaço ao qual pudesse guardar todo o acervo de seus afetos. Tinha interesse pela botânica e pela história natural e, aos poucos, foi amadurecendo a ideia de construir um jardim botânico com muitas espécies vegetais e de replantar as mudas nativas retiradas para a plantação de café na floresta da Tijuca, além de construir um museu que guardasse objetos históricos. Os anos passavam e o infante poucos amigos tinha consigo, tornara-se um meninote tímido e circunspecto, devido à infância usurpada. No entanto, todas as noites, quando se recolhia e fechava os olhos, tentando afastar os problemas e a solidão, a velha cantilena era ouvida. Vinha miúda de não sei onde até cevar-lhe a alma e o coração, trazendo-lhe um sono de paz. A cantilena, música incidental de tempos remotos era brisa que soprava no rosto do jovem soberano em dias quentes e em noites sem lua, quando perdia-se em si a olhar os astros silentes. 117 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ A cantilena, prece comungada nas cordas da espineta durante os saraus do palácio, via crescer o potentado. Aos poucos, brinquedos eram deixados para trás em benefício de decretos e sanções, o país desabrochava em puberdade ao tempo que surgiam os primeiros pelos no rosto de Pedro, futuro idealizador do Imperial Observatório, do Museu Nacional, do Jardim Botânico, da Biblioteca Nacional e da Academia Imperial de Belas Artes; não por acaso substância de um pedido materno, retido nos escaninhos de seu coração. Quando foi decretada sua maioridade, o imperador retornou à caixinha de memórias e, tomando em mãos a correspondência materna, decide viajar a Cubatão para conhecer uma parte de seu passado. Ao chegar à cidade, antes mesmo de perguntar pela residência dos Couto, ouve a cantilena dos lábios de uma senhora, que lhe sorria. Numa explosão de estrelas pequeninas o coração do infante abrandou; não lhe restava dúvidas: abriu os braços e caminhou para o seio daquela que o acalentou enquanto dava de si como alimento. De volta ao seio materno, não se via coroa ou cetro real, tudo era gratidão e apreço entre um filho e sua mãe, ao som da cantiga de leite e fé. 118 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Grasiela Elenice Stoffel [Dois Irmãos, Rio Grande do Sul] Nascida em Dois Irmãos, Rio Grande do Sul, é professora formada em Língua Portuguesa pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Desde criança sempre gostou muito de ler e, por isso, as histórias surgem facilmente em sua cabeça. Contudo, nem sempre é fácil fazer a transcrição para o papel. Às vezes, o fato de ser Professora a torna tão crítica, fazendo-a acreditar não ser capaz de produzir um bom texto. Escrever “Leopoldina e o Imperador” foi um exercício de paciência e persistência. Leopoldina e o Imperador O suave arrulhar das cortinas, movimentadas pela brisa, e o cantar dos pássaros indicavam que mais um dia surgia no horizonte. Em poucos minutos, a rotina diária teria início e, mais uma vez, seria repleta de afazeres enfadonhos e pouco tempo para distrações e brincadeiras. O pequeno rapaz não sabia a que “distrações” os sábios conselheiros que tinham a tarefa de orientá-lo na ausência do pai se referiam e, portanto, não se ressentia de perdê-las. O mesmo, porém, não acontecia em relação às brincadeiras. Essas ele lamentava não poder praticar como qualquer outra criança. Lamentava, principalmente, não poder correr pelo gramado que se estendia além de seu quarto. Adoraria poder fazê-lo num dia de chuva, culminando com uma queda numa poça de lama que o cobriria dos pés à cabeça. O barulho na tranca da porta alertou-o para o fato de que Rafael estava vindo. Era muito estranho tê-lo como um dos tutores do jovem príncipe, afinal, se tratava de um negro. Podia ser um herói, como salientava Dom Pedro I, mas, ainda assim, um 119 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ negro. Essa situação era ainda mais bizarra se levássemos em consideração o fato de o Brasil ainda ser uma nação escravocrata. Só Deus sabia o que passara pela cabeça do Imperador, o Primeiro, ao designar Rafael como um dos responsáveis pelo Imperador, o Segundo, mas... Ordens eram ordens e sempre deveriam ser seguidas. Porém, Dom Pedro II ainda era uma criança e, por isso mesmo, tentava algumas traquinagens. Nos últimos dias, tentava enganar Rafael, que era responsável por despertá-lo todas as manhãs e prepará-lo para o café da manhã. Mal sabia ele que Rafael, como bom soldado que fora, conhecia os truques do jovem Imperador e, sempre que possível, deixava-o estender o tempo de permanência na cama o máximo que podia. Então, e só então, ralhava com o Comandante do Império, forçando-o a sair da cama. Assim foi naquela manhã. Rafael entrou no quarto do Imperador. Atrás dele vinham a serva responsável por trazer a água para a higiene pessoal e o pajem que auxiliava com os trajes imperiais. Os servos deixaram tudo onde deveria ficar e, depois que saíram, Rafael abriu as cortinas. O Pequeno Imperador, então, fingiu um pequeno gemido, como se tivesse sido perturbado em seu mais profundo sono e quisesse, com todas as forças, continuar lá. - Bom dia, Imperador. Está na hora de levantar. Hoje o dia está repleto de atividades - informou Rafael, parando-se ao lado da cama. 120 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas - Todos os dias são repletos de atividade, Rafael - disse o menino, sentando-se na cama e esfregando os olhos, como qualquer criança faria. - Não vejo o que isso tem de diferente hoje. - Tenho certeza de que hoje, diferente dos outros dias, será mais do Vosso agrado, Alteza - falou Rafael, ajudando o príncipe a sair da cama. O Imperador, então, fez sua higiene pessoal e, depois, vestiu-se. Seguiu para a sala que ficava ao lado do quarto, onde o café já estava aguardando-o. Havia de tudo sobre a mesa. Pães, frutas, geleias, sucos, café, leite. Geralmente, não havia tempo suficiente para desfrutar de todas aquelas opções e, muito menos, espaço suficiente em sua barriga para que pudesse experimentar todas elas. Certa vez, inclusive, perguntara para Rafael por que havia tantas opções se ele era apenas uma criança e jamais conseguiria comer tudo aquilo. - Um Imperador sempre deve ter opções - dissera Rafael. Porém, em relação a como passava os seus dias, o Pequeno Imperador tinha bem poucas opções. Foi uma refeição rápida e, logo depois, Dom Pedro, Imperador do Brasil, foi encaminhado para a sua primeira atividade do dia: aula de etiqueta. Foram momentos tortuosos, mas Dadama, ou melhor, a Condessa de Belmonte, encontrava-se ali. Dessa forma, Pedro sentia-se um pouco melhor. Era como se sua mãe, a Imperatriz Leopodina estivesse presente. 121 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ O Pequeno Imperador não se lembrava de sua mãe, pois ela morrera quando ele ainda era criança. Desde então, era criado pela Condessa de Belmonte, a quem chamava carinhosamente de Dadama. Contudo, gostaria de saber melhor como era sua mãe. Sempre ouvia os comentários sobre a grande Imperatriz que fora e mais um monte de informações protocolares, mas ninguém lhe falava como ela era como pessoa. Pedro ainda era jovem para entender isso, mas sabia que as pessoas nem sempre falavam com ele de forma livre e espontânea, pois ele era o Imperador do Brasil. Isso o deixava triste. Não o fato de ser o Imperador do Brasil, mas o fato de as pessoas não falarem com ele de forma livre e espontânea. Pedro acreditava que isso faria com que ele teria poucos amigos, o que, aliás, já vinha se confirmando, pois ele não conhecia ninguém a quem pudesse, de fato, chamar de amigo. A pessoa que mais se aproximava de um amigo era Rafael, mas ele não contava. Nem Dadama. Ambos haviam sido designados por seu pai para serem seus tutores. Apesar de não serem sempre tão formais quanto o Senhor Andrada, tanto Rafael quanto a Condessa de Belmonte eram, na verdade, apenas servos do Império a serviço do Imperador. Assim que a aula de etiqueta foi concluída, o Pequeno Imperador foi levado ao seu quarto para trocar de roupa para a aula de equitação. Ele acreditava que seria capaz de cavalgar com a roupa que estava usando, mas Dadama sempre dizia que um ca- 122 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas valheiro deveria, sempre que possível, vestir-se adequadamente. Isso significava que ele teria que usar roupas para equitação. Uma vez vestido, dirigiu-se ao pátio em que o professor de equitação o esperava com dois cavalos: um era o do Imperador e o outro para si próprio. Assim, Pedro percebeu que a aula seria um pouco mais leve, provavelmente com um passeio pela propriedade. O passeio serviu para o príncipe ser testado em todas as habilidades relacionadas a equitação até então aprendidas. Um grupo de outros cavaleiros acompanhou o professor e o pupilo, sempre admirando a maestria do Imperador Menino. Foi durante essa cavalgada que Pedro ouviu o nome. - Leopoldina! - chamou alguém, ao longe. - Leopoldina! Volte já aqui, menina! Uma das servas do palácio corria pelo pátio. Com certeza procurava pela menina que atendia pelo nome de Leopoldina. Porém, nenhuma menina era vista pelas proximidades. Um dos acompanhantes do grupo de cavaleiros afastou-se e interpelou a serva. Ao retornar, informou ao príncipe e aos demais. - Parece que a filha de Rafael acompanhou o pai ao palácio e está desaparecida no momento. O ar de seriedade fez com que todos ficassem preocupados. Contudo, Pedro ouviu uma pequena risadinha vinda da copa de uma das árvores ali perto. Curioso, sugeriu: - Talvez possamos nos dividir e ajudar a procurar. 123 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ - Não é adequado que alguém de Vossa posição auxilie nesse tipo de atividade, Alteza - disse o professor de equitação. - Então, enquanto os senhores auxiliam na busca, eu espero sob aquela árvore. Pedro podia ser apenas uma criança e seus tutores terem suas tarefas, mas ele era o Imperador do Brasil e suas palavras eram ordens a serem cumpridas. Assim, o grupo se desfez e iniciou a busca. O instrutor de equitação ficou por perto, afinal, não se podia deixar o Imperador sozinho, mas fingiu que procurava também. Quando chegou sob a copa, Pedro logo viu a mocinha que parecia ser o motivo de todo aquele alvoroço. Ela estava escondida em meio à copa da árvore e, por isso, não era vista pelos demais. Assustou-se com o olhar do Pequeno Imperador. - Alteza... - disse, sem saber como agir, uma vez que seu pai fora bem claro que, caso visse o Imperador em pessoa, deveria curvar-se para ele. - Fique onde está. Não precisa se entregar só porque a vi. Eu apenas queria saber quem era. - Bem... Obrigada, Imperador. Eu sou a Leopoldina. - Disseram que era filha de Rafael - disse Pedro, olhando inquisitivamente, esperando confirmação. - E sou. Meu pai permitiu que eu o acompanhasse a Corte, hoje. Decidi que queria ver seu passeio de cavalo, mas meu desaparecimento foi notado antes do previsto - disse, soltando um 124 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas suspiro. - Minha mãe sempre demora mais a notar a minha ausência. - Seu nome... - O que tem? - É o mesmo nome de minha mãe. - Sim. Meus pais o deram a mim em homenagem a ela. Deve ser muito legal ter uma mãe que é Imperatriz, não é?! - Não sei - respondeu o menino num tom tristonho. - Como não sabe?! Você é o filho dela! Antes que pudesse responder, o instrutor de equitação interrompeu a conversa dos dois. O esconderijo de Leopoldina fora descoberto, mas a travessura do Imperador Menino permaneceu oculta. - Ora! Parece que nosso Imperador encontrou a menina fujona - falou o instrutor, alertando os demais. - Creio que a senhorita deveria descer daí. Já causou rebuliço suficiente para está manhã. Poderia ser punida por ter atrapalhado o desenvolvimento da aula do Imperador, mas creio que o seu pai cuidará disso. Ao ouvir essas palavras, Leopoldina perdeu um pouco de sua cor. Com certeza, Rafael, o Pai, não era tão conciliador quanto Rafael, o Tutor do Imperador. A menina desceu da árvore e logo foi entregue às mãos da serva que a procurava. O grupo de cavaleiros retornou ao pátio principal, de onde Pedro foi, mais uma vez, até seu quarto para trocar de roupa. O almoço foi servido em seguida. Dadama o acompanhava e isso fez com que o pensamento de Pedro voltasse para sua mãe 125 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ e para as palavras de Leopoldina, Filha de Rafael. Após o almoço, a aula seria de caligrafia. Ao entrar no pequeno gabinete, todos os materiais de escrita já se encontravam sobre a escrivaninha. Papel, pena, tinteiro. Seria uma aula tediosa, mas uma ideia passou pela cabeça do menino. - Professor Assis, seria possível, hoje, redigir uma carta para treinar minha caligrafia? A ideia era estranha, mas, uma vez que vinha de Pedro, que demonstrava pouco interesse na atividade de caligrafia, pareceu ser uma oportunidade de estimular o garoto. Assim, rápidas orientações foram dadas e, então, o Imperador iniciou a sua missiva. Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1833. Ilustríssima Senhorita Leopoldina, Foi com imenso prazer que a conheci no dia de hoje, embora a situação fosse um pouco estranha e, talvez, a Senhorita venha a ser punida por seu pai por tal atitude. Contudo, espero que isso não aconteça, pois a Senhorita me fez uma pergunta que me deixou embaraçado. Nunca havia pensado, de fato, a respeito de minha mãe. Ela faleceu quando eu tinha apenas um ano de idade. Além disso, as pessoas não costumam falar sobre ela. Talvez porque ela fosse a Imperatriz ou talvez porque eu seja o Imperador. Sempre quis saber como seria ela e, ao ouvir o seu nome sendo chamado hoje, enquanto cavalgava com o meu instrutor de 126 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas equitação, pensei, por um instante, que se me virasse rápido o suficiente, encontraria ela sentada sobre o gramado, organizando um piquenique para me receber. Contudo, isso não aconteceu. Ao invés disso, não vi nada. Apenas ouvi sua risadinha vinda da copa da árvore e, tenho certeza, uma Imperatriz jamais se esconderia na copa de uma árvore. Sei disso porque eu mesmo sou proibido de fazê-lo, mesmo sendo Imperador. Enfim, não sei como é ser filho de uma Imperatriz. Porém, sei que gostaria que minha mãe fosse doce e suave, me abraçasse todas as manhãs e me acalentasse todas as noites. Essas tarefas couberam, em parte, a seu pai e a Dadama, digo, a Condessa de Belmonte. No entanto, sempre imagino os dois como pequenas partes de minha mãe, a Imperatriz. Sei que adoraria tê-la aqui para apertar minhas bochechas e bagunçar meus cabelos, como vejo algumas mães fazerem com seus filhos quando os trazem à Corte. Comigo, no entanto, ninguém ousa fazer tais demonstrações de carinho, pois, como sempre sou lembrado, sou o Imperador do Brasil. Tenho certeza, porém, de que se a Imperatriz quisesse apertar as bochechas de seu filho e lhe bagunçar o cabelo ninguém ousaria dizer que ela não pudesse fazê-lo, mesmo ele sendo o Imperador. Assim, nesses termos, acho que seria maravilhoso ser filho de uma Imperatriz. Tenho certeza de que poderia fazer algumas coisas um pouco mais divertidas do que faço hoje. Talvez não tanto quanto eu gostaria, mas, com certeza, teria um tempinho a mais para brincar. 127 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Dadama e Rafael, o seu pai, tentam me dar um pouco disso, mas eles, antes de tudo, são meus tutores. Foram designados por meu pai a se encarregarem da minha instrução. Sei que eles tentam me dar o seu amor também, mas eles nunca serão uma Imperatriz. Volto a dizer que foi muito bom conhecê-la, Senhoria Leopoldina. A aventura dessa manhã me fez, pela primeira vez, pensar em como seria ter a minha mãe ao meu lado. Desejo que a Senhorita fique bem e que volte a visitar a Corte o mais breve possível. Pedro Imperador do Brasil Encerrada a carta, Pedro levantou-se e entregou o texto para o Professor Assis. O tempo da aula havia se esgotado e a avaliação da carta ficaria para o dia seguinte. Pedro agradeceu a gentileza pela quebra da didática tradicional e seguiu para as próximas atividades do dia. A carta, porém, chamou a atenção do Professor Assis. O destinatário era incomum. Curioso, leu a carta escrita por Dom Pedro e, se não ficou profundamente emocionado, ficou, com certeza, tocado pela singeleza do desabafo do Imperador, que era, antes de tudo, apenas um menino. Além disso, embora detestasse as aulas de caligrafia, Dom Pedro era dedicado e esforçado. Por isso, a beleza da letra 128 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas chamou a atenção. As letras eram legíveis e, ao mesmo tempo, rebuscadas. Mais tarde, naquele mesmo dia, o Professor Assis encontrou-se com Rafael. Falaram sobre algumas generalidades e, em seguida, o Professor perguntou sobre o incidente ocorrido naquela manhã entre o Imperador e a filha de Rafael. Os dois sorriram das artimanhas da menina e do cavalheirismo do Imperador. Antes de se separarem, o Professor Assis entregou a Rafael uma carta. - É para sua filha. Foi escrita de próprio punho pelo Imperador. - O quê? Como? - perguntou Rafael, embaraçado. Será que sua filha havia feito ou dito algo desagradável ao Imperador? - Não se preocupe, Rafael. Creio que sua menina impressionou o Imperador e o fez se lembrar de uma coisa que muitas vezes nós, adultos, esquecemos. - E o que seria? - perguntou Rafael, enquanto pegava e analisava o envelope. - De que ele é apenas uma criança. Ao dizer isso, o Professor Assis deixou Rafael com o envelope nas mãos. Não sabia se a carta chegaria a Menina Leopoldina, mas achava que o contato da menina com o Imperador Menino fora muito saudável. Acreditava, inclusive, que o menino deveria ter mais tempo disponível para se relacionar com outras crianças da sua idade. Contudo, sabia que isso jamais aconteceria. 129 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Enquanto isso, Rafael voltou às suas atividades diárias, até que se encontrou com o Imperador uma última vez. Pensou em mencionar o incidente e a carta, mas, ao ver o rosto fatigado do menino, decidiu fazê-lo no dia seguinte. Assim, apenas ajudou o menino a se trocar e a ir para a cama. Depois, foi para casa, levando consigo a carta do Imperador Menino. Leopoldina recebeu a mesma e a leu com muita atenção. Rafael podia ser um negro, mas ser o tutor do Imperador trouxelhe algumas vantagens, como ser capaz de dar uma boa educação para a sua filha. Por isso, depois de ter concluído a leitura silenciosa da carta, Leopoldina fez questão de partilhas as palavras do Imperador com o restante da família. Rafael ficou encantado com as palavras de gentileza do Pequeno Imperador para com sua pessoa e pela preocupação que teve em relação ao possível castigo que Leopoldina receberia. O Imperador não sabia que era preciso algo muito mais grave do que isso para que a pequena Leopoldina recebesse um safanão. Na manhã do dia seguinte, um pouco antes do amanhecer, Rafael abriu a cortina do quarto do Imperador bem antes do horário habitual. Dessa vez, não havia fingimento no gemido de perturbação manifestado pelo menino. - Não sabia que eu deveria levantar mais cedo hoje, Rafael disse o Imperador, sentando-se, como sempre, e esfregando os olhos. 130 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas - Bem, Alteza, na verdade, não precisa. No entanto, eu queria lhe trazer uma surpresa. - Uma surpresa?! - Sim! - disse, gesticulando para a porta. Ao olhar para lá, Pedro viu uma menina, um pouco encabulada, entrando no quarto. Reconheceu-a como Leopoldina, a filha de Rafael. Ela trazia consigo uma pequena trouxa. - Sente-se aqui, minha filha - disse Rafael, indicando um dos cantos da cama. - Agora, enquanto vocês lancham, você pode contar ao Imperador o que eu lhe contei ontem. Rafael se afastou, arrumando algumas coisas pelo quarto. Leopoldina abriu a trouxa e revelou uma bandeja com pedaços de bolo de fubá. Estendeu o prato para Pedro, que pegou um pedaço e começou a comer, deliciado com o sabor. - Papai contou que esse foi um dos bolos que sua mãe mais gostou de comer quando chegou ao Brasil - começou Leopoldina. Aquela manhã foi diferente de qualquer outra. Embora tivesse que levantar mais cedo que o habitual, Dom Pedro II não lamentou. Leopoldina, a Menina, contou várias histórias sobre a Imperatriz. Essas histórias haviam sido contadas a ela pelo pai, Rafael. Eles resolveram contá-las ao Imperador para agradecer a singeleza da carta que ele escrevera. Pedro, como qualquer menino que perdera a mãe muito cedo, ouviu tudo com avidez. Podia não ter conhecido a sua mãe, a Imperatriz, mas a sentia ali, ao seu lado, todas as vezes que 131 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Leopoldina e Rafael o despertavam um pouco mais cedo para contar alguma coisa sobre ela. 132 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Isa Rita Polito Vita [Juiz de Fora, Minas Gerais] Nascida em Juiz de Fora, Minas Gerais, é formada em História pela Universidade Federal Fluminense. Com formação profissional voltada para a área educativa, trabalhou alguns anos em escola primária lidando de perto com crianças, o que a inspirou escrever contos infantis. Alguns de seus contos foram impressos em livros numa coleção chamada “Lições de Vida”. Trabalhou também como professora de História em Escola do Estado na cidade do Rio de Janeiro. Artista plástica, suas obras são feitas em óleo sobre tela, com vários premiações em cidades do Rio de Janeiro e Minas Gerais. É contista e poetisa com algumas premiações. Também é Comendadora na Associação Brasileira de Desenhos e Artes Visuais. Sou criança e não abro mão disso. Meu mui estimado tutor, hoje amanheci sem a mínima vontade de estudar. Pensei bastante e resolvi que chegou a hora de brincar, afinal sou criança e criança tem que brincar “mermo” ( sou carioca da gema). Resolvi, então, que vou sair por aí levando a vontade de aproveitar a vida, ao máximo! Essa vida que me impuseram está muito maçante, por isso, desde já, comunico a V. Sª que já entrei em contato com um amigo em Marte, aquele verdinho com anteninhas que piscam e com ele vou dar um “role”. Ele prometeu trazer para mim um aparelho que vai me dar a oportunidade de falar com seu irmão que, claro, mora em Marte. Ele disse que o nome do aparelho é computador e que através do facebook vou ver várias coisas do seu planeta. E não é só isso, não! Vai trazer também uma máquina que permite a comunicação direta com os marcianos. Ele disse que o nome desse equipamento é celular. Vou poder falar finalmente: “Alô! Alô! Marciano aqui quem fala é da Terra!”. “Morou?” 133 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ O dia de hoje promete ser muito “legal”, aliás, os dias que virão serão legais. Chega de matemática, afinal, eu não dou para a coisa. Muito menos de procurar estrelas, planetas e asteroides. Não quero ser astrônomo. Não me interesso por isso! E Etiqueta então, chega! Esse negócio de beijar a mão de toda mulher que chega e ter que fazer reverência aos outros : “cansei!”. Estou avisando: vou sair por aí “sem lenço, sem documento” com a viola de baixo do braço, tocando e dançando até me cansar! E tem mais, nem pense em me procurar, porque meu amigo marciano disse que vou me esbaldar. É, não é dar com baldes, não. É brincar pra valer! Meus passeios estão esquematizados. Não deveria lhe dar o relatório não, mas sabe como é: preciso deixá-lo curioso, preocupado e quem sabe com um dedinho de inveja, hein? Fala a verdade: vai dizer que nunca teve vontade de jogar tudo para o alto? “Curtir” a vida. “Fala sério!” Bem vamos lá: Primeiro eu vou entrar num aparelho que vai circular a cidade. O nome que ele deu a isso foi helicóptero. Ele disse que fica impressionado por ver que não se aproveita dos lugares interessantes que tem aqui, como por exemplo: o Pão de Açúcar, onde se vê parte da cidade, lá de cima. 134 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Depois vamos parar numa praia que é para, além de se banhar, poder surfar bastante. Ah! Antes que eu me esqueça, se você não sabe, surfar é divertido pois ficamos em pé em uma prancha e vamos ao sabor das ondas, até as areias de Copacabana, aquela que é chamada princesinha do mar. Vou aproveitar e mudar meu “look”, deixar este branco marca registrada e ficar moreno, da cor da canela. Sabe, que nem na novela Gabriela, cravo e canela. É isso aí! E não precisa ficar com essa cara emburrada, pois não lhe cai bem ficar assim. E eu vou me dar esse prazer de sentir a natureza aos meus pés. “Morou?” E tem mais. O meu amigo verdinho quer me ensinar a voar de asa delta, pulando da Pedra Bonita e aterrissando numa praia qualquer, aliás, eu sou o próprio menino do Rio, esqueceu? Apesar de viver sempre enclausurado, sem poder me arrojar, eu não sou medroso, tenho garra para fazer qualquer coisa “que me dê na telha”. Outra coisa importante que tenho para lhe dizer é que você já está me deixando tonto de tantas formalidades, de horários, de prazos, e é por isso mesmo que estou me dando uma carta de alforria: “liberdade ainda que tardia”. Conhece o lema? Então é isso: “livre, leve e solto”. Também está planejado escalar a Pedra da Gávea e de lá tirar muitas fotos para mandar para Marte, pelo computador. Não que eu queira me especializar em fotografias. Ser fotógrafo não 135 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ me atrai nem um pouco, mas afinal eles precisam ver a beleza da nossa terra. Aqui no Palácio da Quinta da Boa Vista, aliás que vista é essa! Muita grama, lago, plantas que me delicio! Mas apesar disso, é sempre a mesma “mesmice” passa dia e passa noite e tudo é exatamente como um relógio suíço: precisão. Você não acha que isso é muito monótono? Bem, se não acha, eu acho, e ponto final! Como eu já disse, vou me divertir muito. Sei que estou repetitivo, mas isso faz parte da minha alegria, do meu despertar para a vida. Estou até pensando em aceitar o convite desse meu amiguinho marciano que quer me levar, através da espaçonave dele, até Marte, para tomar sorvete e voltar em seguida. Ele disse que isso será muito rápido, mais rápido que falar Pindamonhangaba. É, parece ser muito legal: ir igual ao Flash Man e voltar para aqui, o planetinha Azul. Falo isso porque assim é que eles conhecem o planeta Terra. Eu acredito nele. Amigo meu não mente, viu? Antes de ir lá tomar sorvete, acho que vou deslizar na neve ali na Avenida Paris, pois já estamos no inverno e em Paris cai neve, “né?” Ah! Outra coisa que vou fazer é andar de patins. Para seu governo, patins é uma espécie de calçado com rodinhas, mas o que ele vai me dar é diferente pois vai ter um motor que vai possibilitar que eu vá até Minas Gerais, passear em Juiz de Fora, num piscar de olhos. 136 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Lá vou ter oportunidade de visitar fazendas, tomar leite puro da vaca, comer queijo e goiabada, o famoso gato de botas. Além disso, vou me entrosar com as pessoas de lá que são muito hospitaleiras e que falam uma língua diferente do restante do país: o mineirês. Quer um exemplo? Quando eles dizem, po po pó, você sabe o que é? Significa: pode pôr pó? (esse pó é café, que fique bem claro aqui). E a resposta é, po po poquim. Que quer dizer: pode pôr um pouquinho. Eles se chamam de mineirim, aliás, o diminutivo lá, é o que há de mais usual, como: baixim, gostosim e etc. Se chamam de carioca do brejo, pode? Lá tudo é trem, e tem o trem bão, também. Tem uai, que quer dizer uai, uai! O povo é hospitaleiro como eu já disse, mas é um bocado desconfiado. Mineiro é calado e fica só observando você e não acredita em tudo que “escuita” não. Quer um exemplo? Meu amigo desceu lá e se apresentou como marciano. Você acha que eles acreditaram? “Na na ni na não”. E jogaram um balde d’água nele e disseram: larga de ser besta, sô! Vai tirar essa tinta, agora! É desse jeito. Dentro dos passeios que meu amigo marciano está programando tem também a ida ao seu planeta só para eu andar de metrô. Já sei que você vai ficar matutando no que é o metrô, por isso vou logo explicando, porque eu já sei o que é: é um trem que 137 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ anda debaixo da terra, é rápido e silencioso. Depois que eu “curtir” essa viagem, eu lhe conto como é. Sabe uma coisa que meu amiguinho verdinho me contou? É que lá em Marte não existe preconceito de forma alguma. Isso se deve a um físico chamado Albert Einstein, um marciano genial que desenvolveu uma teoria que acabou fazendo a cabeça do pessoal quando ele disse: - “Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo, do que um preconceito”. Os verdinhos (aqui não vai nenhum preconceito ) refletiram sobre essas palavras e resolveram acatar a ideia desse gênio e simples assim: os preconceitos acabaram. Não é legal isso? Precisamos trazer esse tal de Einstein para cá. Quem sabe se ele com esse “papo cabeça” resolve o problema daqui? Quem sabe? Mas não quero ficar filosofando, o que eu quero mesmo é sair por esse mundão afora e quando eu digo isso, é mundão mesmo, ou seja, o Universo. Esse meu amigo é que sabe das coisas e com ele vou me dar bem. Com ele me levando daqui para lá e de lá para cá, vou poder cantar: “na verdade eu sou assim, navegador dos sete mares”, ou melhor, de todos os mundos. “Taí”, uma coisa interessante que as pessoas não se ligam: o Universo conspira a nosso favor, é só saber aproveitar. Essa é a 138 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas minha teoria, fique sabendo. Não pense que copiei de alguém, “tá?” Esse meu passeio não tem data para acabar, só para começar, que é já. E tem mais, esse negócio de Chefe de Estado não é para mim. Só quero deixar claro que de agora em diante eu vou organizar a minha agenda e nela só vai constar aquilo que eu quero fazer. Ah! Já ia me esquecendo de dizer que V. Sª não precisa ficar preocupado em fazer um relatório para os outros sobre essa decisão minha. Afinal, quem manda em mim, sou eu! Tenho dito! Nada de protocolo, nada de estudar línguas, Ciências Naturais, que é muito chato e História, pior ainda. Por falar em história, não me venha com história que eu tenho que aprender esgrima, dança, poesias e fazer leituras edificantes e tudo o mais. Sabe o que eu vou fazer? Vou ler “meu pasquim, vou fazer Sudoku e palavras cruzadas”, ler piadas e tudo mais. Vou até pular amarelinha. “É isso aí, bicho. Morou na filosofia da Maria?” Eu pretendia escrever um bilhetinho dando apenas um tchau e mais nada, mas sabe como é, me empolguei e é por isso que esta carta está ficando enorme e se não lhe der canseira para ler, já está me dando canseira de escrever. Por isso, para terminar , diga ao povo que “ fui...” 139 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Letícia Magalhães Pereira [Poços de Caldas, Minas Gerais] Nascida em Poços de Caldas, Minas Gerais, é historiadora e pósgraduanda na área de comunicação. Desde cedo mostrou interesse pela escrita, ganhando vários concursos e tendo seus trabalhos publicados em antologias. Lançous dois livros através de autopublicação (“Escritos de Garota – Contos, Crônicas e Poemas dos 7 aos 17” e “Crítica Retrô – Apontamentos de uma Jovem Cinéfila”). Atualmente mantém os blogs Crítica Retrô, sobre cinema clássico, e Diário de uma Quase-Escritora, sobre o difícil mundo da literatura. Ainda, é colunista dos sites Leia Literatura, Ambrosia e Filmes e Games. Entre cartas e diários 1831 A ama ficou surpresa quando encontrou o menino de sete anos debruçado sobre uma folha de papel. Ela mesma, que sempre havia cuidado do garoto, lhe ensinou a escrever, mas a grande surpresa veio quando ela leu o escrito. Não eram as palavras soltas que o menino repetia sempre nos exercícios de fixação. Eram palavras bem concatenadas que, juntas, tentavam resumir a saudade infantil e ao mesmo tempo expressar o mais polido anseio. O pequeno Pedro escrevera para seu pai: “Que nosso Senhor derrame bênçãos sobre o Imperador do Brasil para que os problemas sejam resolvidos logo, e vossa Majestade possa voltar despreocupado ao alegre convívio familiar. Do teu primogênito, Pedro.” 140 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas O menino esperava ansioso por uma reação enquanto a ama lia. Quando ela dobrou a carta, ainda sem saber o que dizer, ele pediu: - Poste-a, Dadama! Faça-a chegar até Portugal! A resposta nunca veio. Um ano se passou sem que o pequeno Pedro escrevesse uma única carta. Era dedicado aos estudos, às atividades em geral, gostava de brincar pelo palácio e andar de carruagem, mas era um menino introvertido. Entretanto, mostrava grande interesse pelo que acontecia no mundo, e pedia que José Bonifácio lhe trouxesse diariamente a Gazeta para ler as notícias. As novidades na ciência eram o assunto favorito do menino, e ele não pôde conter a euforia ao descobrir que uma importante expedição científica inglesa atracaria no Nordeste do Brasil. A bordo do navio Beagle, um jovem de 22 anos estava com o rosto deitado em uma mesa no convés. Ele se lembrava de como fora difícil convencer o pai a deixá-lo embarcar naquela viagem arriscada e louca, mas que poderia trazer grandes descobertas científicas de volta à Inglaterra. Ele mal sabia da existência do pequeno príncipe regente do Brasil, mas eles já haviam compartilhado de muitos sentimentos: a insegurança de Darwin ao deixar a família foi muito semelhante à do pequeno Pedro quando este viu seu pai voltar para Portugal e deixá-lo só; eles também compartilhavam do novo entusiasmo que agora tomava conta de ambos, entusiasmo este causado por uma mesma coisa, que ambos amariam até o final de suas vidas: o conhecimento. 141 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Pedro queria saber a todo custo o que a expedição procurava no Brasil. Ansioso, escreveu assim a um de seus tutores: “Caro professor Luís, Ouviste sobre uma comitiva científica a caminho do Brasil? Sabes o quê estariam pesquisando? Por obséquio, ensine-me tudo o que souber sobre os cientistas ingleses e a que passo está a ciência deles. Deve haver algo ainda muito importante a ser descoberto no Brasil que atraia a atenção destes exploradores. Teu pupilo, Pedro.” A possibilidade de haver tantas coisas desconhecidas no país que ele estava se preparando para governar ao mesmo tempo desconcertava e animava o pequeno Pedro. Era curioso e, querendo ou não, compensava o excesso de proteção por parte de José Bonifácio com sua imensa imaginação, curiosidade e gosto pela leitura. Dois dias depois o tutor chegava com livros de história natural e as novas Gazetas que mencionavam a expedição. O menino ficou emocionado ao saber que os cientistas acabavam de desembarcar na Bahia. Ah, Bahia, local que primeiro foi pisado pelos descobridores portugueses e onde Dom João VI, avô do pequeno Pedro, havia também posto os pés quando chegou ao Brasil. Sabendo que a comitiva ficaria algumas semanas na região, Pedro quis enviar uma carta de todo jeito. Poderia ir assinada por um dos regentes, por José Bonifácio, por qualquer um, mas ele 142 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas queria ditar o conteúdo que desejava boas-vindas aos ingleses. Nunca é cedo para praticar a diplomacia. “À expedição científica inglesa a bordo do H. M. S. Beagle, A Família Real Brasileira está honrada pela presença de ilustres cientistas interessados em nossa rica fauna e flora. Estamos dispostos a auxiliar no que for preciso para que nossos recursos naturais possam contribuir para o avanço da ciência. Inclusive deixamos à disposição nosso Museu Nacional, referência em ciência ao sul do Equador, com sede na capital da nação.” O garoto, em êxtase, entregou a carta à ama. Ela, curiosa, leu o conteúdo e compartilhou-o com José Bonifácio. Os dois não tiveram dúvida: aquela ingênua e solícita mensagem de boasvindas deveria ir para a gaveta. Pedro podia estar felicíssimo no Rio de Janeiro, mas o sorriso de Charles Darwin se dissipava a cada passo dado em território brasileiro. Sem seu entusiasmo característico, suando e muito cansado, Charles sentou-se sob a luz de um lampião logo após a primeira exploração em terras brasileiras e escreveu em seu diário: “O atraso é patente aonde quer que se olhe. A cada esquina havia um negro com a pele marcada por açoites, e faziam de tudo: carregavam sacas de mantimentos, tentavam vender tecidos, acompanhavam damas “de sociedade”. É vergonhoso o tratamento dado a eles e muito me espanta que ainda nestas terras a escravidão seja vista como normal.” 143 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Pedro devorou os livros de história natural. Durante dias ele dispensou seu tempo de descanso e leu sem parar. Sua ama chegou a repudiar o ato, dizendo que o jovem imperador iria estragar os olhos com o excesso de dedicação aos livros. Empolgado, o menino escreveu a seu tutor: “Caro professor Luís, Aconteceu algo que jamais imaginei que poderia ocorrer: estou ainda mais apaixonado por este país que um dia hei de governar. Já amava os habitantes deste chão, embora infelizmente não tenha muito contato direto com eles, e agora amo cada dia mais nosso patrimônio natural. Cada ilustração do livro de biologia e botânica do Brasil que me enviaste causou em mim profunda emoção. Fiquei longos minutos admirando cada pequeno detalhe, e estou convencido de que temos tudo para sermos o país mais rico do mundo – em qualquer área que quisermos. Seria possível trazer mais notícias impressas sobre esta atual expedição inglesa e seus objetivos? Teu pupilo, Pedro” Essa carta, ao contrário das outras, foi postada e chegou às mãos de seu destinatário. E foi com alegria que o professor leu as palavras de seu ilustre aluno, que a cada dia se mostrava mais interessado e dedicado. Como havia certo sigilo com relação à expedição inglesa, o professor decidiu mostrar a Pedro os resultados de outra comitiva exploratória europeia: a missão artística 144 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas francesa que veio no governo de Dom João. E, de fato, toda a opulência da natureza brasileira estava lá registrada. Ver os registros da missão artística deixou em êxtase o pequeno Pedro. Mas seu momento de maior emoção ainda estava por vir. Sim, a expedição iria para o Rio de Janeiro. Pedro não podia conter a animação. Queria muito receber a tripulação, afinal, ele não era o soberano do país? Não havia recebido resposta de sua carta de boas-vindas, mas agora poderia dá-las pessoalmente. Melhor: poderia conhecer aqueles bravos cavaleiros do saber, em especial um que era sempre citado na Gazeta: Charles Darwin, de apenas 22 anos, o naturalista da expedição. Charles também estava animado ao embarcar: “Tenho agora a oportunidade de dissipar a má impressão que tive no primeiro contato com os brasileiros. Melhor que isso, tenho à frente uma exploração da Floresta da Tijuca, sobre a qual ouvi muitos elogios.” Mas a alegria de ambos foi-se embora rapidamente. Ao descobrir que Vossa Majestade desejava ir receber a tripulação do navio Beagle no porto, José Bonifácio ficou possesso. Essa ideia era muito arriscada. Ainda havia ânimos exaltados entre os habitantes do Rio de Janeiro e sempre existia a possibilidade de algum fanático ameaçar a vida do jovem herdeiro do trono. Vetou a ideia de Pedro no ato. Pobre menino! Pedro ficou arrasado ao descobrir que José Bonifácio lhe havia proibido de recepcionar os cientistas ingleses, fosse no porto ou no palácio. Iracundo, colocou estas palavras no papel: 145 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ “Professor Luís, Como José Bonifácio pode interferir de tal maneira em minha vida? Sei que meu pai o deixou como meu tutor-mor, entretanto a cada dia que passa ele me trata mais como um bibelô, tentando proteger minha fragilidade e desconsiderando minhas habilidades. Conversar com os cientistas ingleses é outra oportunidade que ele agora me tira, uma oportunidade única na vida mesmo de um futuro Imperador. Aliás, não houve momento em que sentisse mais raiva de minha sina. Não sei se será um fardo governar o Brasil, mas por enquanto ser o futuro Imperador tem me trazido mais dissabores que alegrias. Ah! Por que não posso ser um simples e sábio professor como o senhor? Do teu pupilo, Pedro”. O garoto guardou o escrito dentro de um dos livros que o tutor lhe havia trazido. Com o passar dos dias, Pedro se esqueceu da carta. Para sua frustração, Darwin chegou ao Rio de Janeiro durante o Carnaval. O cientista inglês, além de não ter gingado, queria apenas sossego para estudar as espécies da fauna e flora brasileiras. Mas o que encontrou foi muito barulho, música alta e multidões nas ruas: “É muito difícil manter a dignidade ao andar pelas ruas. O povo louco, no calor da 'folia', jogando água de cheiro em quem passa. Vi algumas pessoas serem atingidas nos olhos, mas 146 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas pareciam hipnotizadas pelos batuques da festa. À noite, os ruídos me impediram de ouvir o canto das cigarras. Pelo menos me foi dito que há cigarras na mata vizinha. Também me foi dito que hoje foi só o primeiro dos três dias desta festa tresloucada”. Felizmente, Darwin aproveitou o resto do Carnaval adentrando na Floresta da Tijuca, e ficou embasbacado com o que viu: “Delícia é pouco para descrever a sensação de pisar em uma floresta brasileira. Fiquei inebriado com a profusão de cores, formas e aromas que pude perceber assim que adentrei a Tijuca. Pousei meus olhos em algumas espécies de plantas e animais pela primeiríssima vez. Coletei amostras diversas e amanhã as enviarei para Londres. Mas é voltar para as ruas e me volta a tristeza. Vejo escravos por todos os lados, pelo menos em cada esquina há um com o lombo em carne viva. Estou realmente impressionado com os contrastes entre as riquezas naturais do Brasil e a pobreza no tratamento dos negros.” Nos dias que se seguiram, Pedro tentou muitas vezes convencer a ama a deixá-lo convidar os ingleses para uma visita ao palácio. Ela era, também, irredutível. Os modos cabisbaixos e desanimados do menino chamaram a atenção do professor Luís que, desavisado, havia encontrado e lido a carta-desabafo de seu pupilo. Era hora de ser mais que um professor para seu brilhante aluno. E para isso lhe escreveu um bilhete em tom de confidência: “Caro Pedro, Sinto muitíssimo que esteja impossibilitado de conhecer os integrantes da expedição científica inglesa. Entretanto, estou 147 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ certo de que não lhe faltarão oportunidades para se encontrar com gênios da nossa época e se aprofundar nas descobertas da ciência moderna. Tens educação e recursos que a minoria do seu povo tem, e necessitas ser grato por isso. Tens também excelente personalidade e inteligência privilegiada, dois atributos que lhe garantirão sucesso em qualquer empreendimento – seja como Imperador ou professor. Sinceramente, Teu servo e tutor Luís”. Dias depois, “por acaso”, Pedro encontrou o bilhete, que havia sido deixado estrategicamente dentro do mesmo livro em que estava a carta do menino. Ao lê-lo, Pedro sentiu um misto de emoções: vergonha por ter esquecido a carta em meio ao livro, raiva de si mesmo, e ao mesmo tempo uma profunda gratidão pela resposta discreta e verdadeira de seu professor. O pequeno Pedro e o professor Luís jamais trocaram uma palavra sobre aquelas cartas. Mas não era preciso: a cumplicidade entre eles era tamanha que só uma troca de olhares já expressava toda a gratidão e admiração entre aluno e professor. Darwin passou quase um mês no Rio de Janeiro. Dividiu seu tempo entre a descoberta de espécies da floresta tropical, o registro de suas impressões no diário e algumas discussões com seus colegas de tripulação que viam a escravidão como algo normal. Além de naturalista, era também humanista. 1851 148 Cartas do Pequeno Imperador – Vol 1: feito por Elas Passaram-se já dez anos que Dom Pedro II foi coroado Imperador do Brasil. O meninote inexperiente, porém muito sensato, era agora um monarca respeitado por sua vasta cultura e por suas decisões conciliadoras. Foi feito um grande banquete em comemoração à primeira década de reinado do Imperador. Pedro brindou com os convidados, dialogou com eles, ouviu queixas de alguns, propostas de outros, de tal forma que ficou exausto no final do evento. Além de exausto, nostálgico. Olhou ao redor e sentiu falta de pessoas tão importantes em sua criação, que já não estavam mais com ele: José Bonifácio, Dadama, o professor Luís. Findo o banquete, recolheu-se ao seu gabinete e se entregou às memórias. Remexia em sua escrivaninha, procurando fotos daqueles queridos que já haviam partido. De repente, encontrou papéis amarelados bem no fundo da última gaveta. Desdobrou-os, leu seu conteúdo e percebeu horrorizado que se tratavam das cartas escritas por ele mesmo aos oito anos de idade, e endereçadas à tripulação do navio Beagle e a Charles Darwin. Ficou pasmo. As cartas entusiasmadas do imperadorcriança jamais foram enviadas. Darwin jamais havia lhe respondido por que sequer havia recebido a correspondência! A partir daí, ele soube que nada mais poderia impedi-lo de dialogar com as principais mentes brilhantes do mundo. Começou a escrever cartas para cientistas e escritores americanos e europeus, e ficava em êxtase toda vez que recebia uma resposta. 149 Vários autores série ‘Glorioso Império do Brasil’ Não, a riqueza de império algum poderia se igualar à riqueza do saber que ele só encontrava naquelas cartas. Com o tempo, Pedro perdoou Dadama e José Bonifácio. Sabia que eles haviam arquivado as cartas e protegido o garoto apenas pensando no bem dele. Entretanto, guardou com mais carinho recordações do professor Luís, e sempre afirmou que, se não fosse imperador, seria professor. E, em 1859, Pedro recebeu, afinal, uma carta de Charles Darwin, sem nenhuma menção às frustrações do que ele viu em sua passagem pelo Brasil, e junto com uma edição autografada de seu novo livro, “A Origem das Espécies”. O sonho do pequeno Pedro fora, finalmente, realizado. 150 Sobre o organizador Eber Josué nasceu no dia 29 de junho de 1985, na cidade de Rio Claro, interior paulista. É militar das Forças Armadas e autor de livros infanto-juvenis, além de participar em diversas antologias de contos e poesias. É membro de entidades acadêmicas no Brasil e no exterior, dentre as quais: Divine Académie Française des Arts, Lettres et Culture, Núcleo Acadêmico de Letras e Artes de Buenos Aires, Associação Internacional de Escritores e Artistas etc. http://facebook.com/gloriosoimperiobrasil