Justiça, que tenho eu a ver com isso?
Quando se ouve falar de justiça, o que imediatamente surge no espírito de cada um
é “a justiça que temos”. Ou seja, a justiça que é feita ou não é feita pelos tribunais,
aplicando leis emanadas do poder político.
Porque, na verdade, há um serviço da justiça que o Estado deve proporcionar, há
um sistema de justiça que estabelece os moldes em que o serviço deve ser prestado,
há um aparelho de justiça que actualiza a prestação desse serviço, e onde se
integram os chamados operadores da justiça: magistrados, advogados, funcionários,
polícias, etc.
Associada a esta ideia de justiça surge logo a palavra crise. Então, cada vez mais o
nosso subconsciente colectivo faz da justiça um problema grave da sociedade, que
importa resolver, e muito rapidamente. A justiça é tratada como o pior serviço
prestado pelo Estado, e os magistrados descem vertiginosamente no que se diz
serem as sondagens sobre a credibilidade das profissões.
Já se fala há tantos anos de crise da justiça, e, aparentemente, são tão limitados os
progressos feitos para a melhorar, que é legítimo perguntar se aquilo a que
chamamos crise, não acaba por ser afinal o modo próprio da dita justiça funcionar.
Ou então, ao falar-se da crise da justiça, com uma conotação de conjuntura, sempre
interessava eleger a época que se considera como referência, e ver se, e porque é
que as coisas estão pior. Mas adiante voltaremos necessariamente ao assunto.
Ao lado desta realidade, é sem dúvida possível falar-se de outra, que não tem só,
nem tanto a ver, com as exigências feitas ao Estado, sobre o funcionamento da
justiça, mas com o contributo que cada um individualmente dá, para que as relações
entre as pessoas sejam mais justas, e, indirectamente, para que a necessidade de
recurso aos tribunais se mostre menos premente.
Estamos habituados a ver a justiça como qualquer coisa que se pede. Mas é possível
configurá-la como algo que se proporciona. Esquecemo-nos geralmente desta
vertente.
Assim, depois de uma passagem pela justiça que se solicita, pelos problemas que aí
afloram e convém não escamotear, passaremos a abordar a justiça que podemos
fazer. Portanto, o desafio individual que ela constitui, para cada um de nós,
enquanto virtude.
Justiça em benefício de cada um de nós, mas, também, justiça contributo de cada
um de nós.
A – A JUSTIÇA QUE SE PEDE
Na perspectiva da justiça a que temos que recorrer, e que é o trabalho dos tribunais,
qualquer abordagem tem que partir de uma constatação, qual seja a da inflação do
judiciário.
Importa que nos coloquemos numa perspectiva histórica, e, pelo menos a partir de
25 de Abril de 1974, os tribunais, pensados e organizados para tratar de certo
número e tipo de casos, viram-se gradualmente a braços com um número
exponencial de processos.
Houve, em primeiro lugar, uma conjuntura política e social que proporcionou esse
estado de coisas, e que teve que ver com a instauração do regime democrático.
É evidente que quanto mais policial se apresentar um regime politico mais os
conflitos se previnem. Pelo contrário, o maior exercicio das liberdades gera mais
conflitualidade, porque esse exercício se faz acompanhar de um défice lamentável
do sentido da responsabilidade, e portanto a autoridade do Estado será chamada a
intervir, geralmente "ex post", e em sede de tribunal.
Mais direitos, e melhor consciência deles, propicia maior recurso a tribunal.
Por outro lado, a instauração do Estado-de-Direito democrático imporia sempre
uma revisão do equilíbrio de poderes, a pender para o fortalecimento do judiciário.
Não nos podemos esquecer de que é próprio de regimes autoritários o ascendente
do executivo sobre os outros poderes, reservando-se os tribunais para a
conflitualidade entre particulares, só, e nem toda a conflitualidade.
Para além desta mutação política, toda a sociedade evolui num sentido que origina
o aumento de pendências:
 A complexização crescente e rápida das relações sociais levou à regulação
jurídica de áreas onde não era possível prever, antes, que surgissem conflitos.
Vivemos numa época de tolerância e individualismo onde cada vez menos
existem padrões éticos generalizadamente aceites, e à luz dos quais parte da
conflitualidade poderia ser amortecida. O corpo normativo operativo passou
a ser só o que se impõe a todos, igualmente, e pela força. Ou seja, o direito.
Assim, a conflitualidade que se ultrapassava antes informalmente é
transformada em litigiosa.
 A sociedade do bem estar dispõe ou quer dispor de serviços para resolver
todos os seus problemas. O serviço do judiciário passou a ter procura
banalizada. Tal como acontece com certos comités de ética os juizes vêemse, cada vez mais, a ter que se assumir como uma espécie de consciência
moral substitutiva. Tudo isto é patente por exemplo no domínio do direito
de família.
 Mas não se julgue que a inflacção de processos se restringe ao domínio
privatístico. A actividade do poder legiferante e da Administração são elas
também questionadas em tribunal. A actividade política é cada vez menos
orientada por ideologias e cada vez mais pragmática e competitiva. Nas
nossas democracias, a gestão da coisa pública não pode perder de vista o
trabalho das oposições, os escrutinios eleitorais seguintes, e sobretudo, a
influência dos meios de comunicação. Há uma procura de equilíbrios e
consensos que nem sempre permite a prossecução de objectivos de longo
prazo.
 Os administrados, por outro lado, sentem algum desinteresse pela coisa
pública e vêm o poder só como sistemático destino de reivindicações, o que
é mau. Por isso é que o Estado-de-Direito surge cada vez mais como um
Estado de garantia judiciária, o que é muito mau. Levando este estado de
coisas ao limite, chegar-se-ia ao retrato de Antoine GARAPON sobre a
realidade francesa, segundo o qual já não é tanto a observância da lei pelo
poder que funciona como garantia dos administrados. Estes vão-se
conformando com o facto de, pelo menos, poderem recorrer a uma instância
independente, onde façam valer aquilo que consideram as promessas não
cumpridas, da democracia. Segundo aquele autor, e no tocante à democracia
francesa, os tribunais transformaram-se nos locais da exigibilidade, e os
magistrados nos guardiões das promessas daquela democracia.
Será que a inflação do judiciário responde, só ela, pela tão apregoada crise?
É evidente que o sentimento de crise da justiça é entre nós um dado
sociologicamente irrefutável. Independentemente da atribuição de causas, das
incorrecções de análise, e até do papel da comunicação social em tudo isto, é certo
que os cidadãos estão mesmo insatisfeitos. Essa insatisfação não é uma ilusão,
embora possa corresponder a uma ideia induzida, ou a um sentimento de
contornos pouco claros.
Mas, a primeira pergunta que cumprirá fazer é a da dimensão da crise. Importa
apurar se a dita crise da justiça é só de hoje e, na negativa, porque é que dela se fala
agora como nunca antes tinha ocorrido.
 De um lado podemos ter a experiência pessoal de alguém cujo caso em
tribunal positivamente "não anda".
 Também pode haver a constatação de que tais casos pessoais se vão
generalizando assustadoramente.
 Mas, como realidade diferente, há uma convicção pessoal da crise que se vai
comunicando, crise que se não viveu, e cujos contornos reais se podem
desconhecer com precisão. Porque a dimensão da crise, enquanto grau de
insatisfação, também pode ser manipulável.
Ora, não pode esquecer-se que a insatisfação com a prestação dos tribunais pode
representar o sintoma de um acréscimo da qualidade material de vida. Assistimos
hoje de um modo geral, e felizmente, ao abaixamento do grau de tolerância às
injustiças. Há mais direitos e maior consciência deles. Há um maior poder
reivindicativo, pelo menos de certos grupos, já o dissémos.
Mas há, sobretudo, a verificação de uma regra que também no campo da justiça se
aplicará: quanto menos um mal existe mais custa suportar a que dele resta.
Ocorre ainda um fenómeno novo: os casos de justiça são notícia. E, sobretudo, os
casos de justiça penal passaram a ser frequentes nos órgãos de comunicação social.
Como é bom de ver, os crimes mais noticiados são geralmente os que envolvem
figuras com notoriedade pública, que podem ter uma investigação mais complexa, e
em que se esgotam todas as possibilidades processuais, com o consequente
protelamento do processo. Esses são os processos de que se fala, e os processos de
que mais se fala são os processos que mais demoram. Só que dos milhares de
processos que têm um tempo de duração razoável, e todos os dias terminam nos
nossos tribunais, pouco se diz, porque obviamente não são notícia.
Acresce que, na sociedade em que vivemos, há um constante apelo à aquisição de
mais e mais bens de consumo. Uma consequência disso é que muitas pessoas
vivem acima das sua possibilidades. Não se pode exigir que as pessoas renunciem a
padrões de bem estar, relativamente altos, que todos os dias nos oferecem como se
fossem perfeitamente acessíveis. O recurso ao crédito é uma saída incentivada por
fornecedores de bens e serviços, os quais acabam, frequentemente, por recorrer,
eles, ao tribunal, para cobrar as suas dividas. O que dá origem à chamada litigância
de massa, responsável por muitos problemas dos nossos tribunais cíveis.
Ao lado das queixas contra o serviço da justiça lento, há também um conjunto de
razões intrínsecas ao funcionamento da justiça que levam o cidadão a estranhar, a
desconfiar, e finalmente a rejeitar, o modo de proceder nas coisas da justiça.
Entrámos no século XXI imbuídos de uma cultura de eficácia e sobretudo de
rapidez. A produção de bens e serviços está dominada por uma mentalidade
científico-tecnológica. E assim nos fomos habituando a exigir precisão,
previsibilidade e meios de controlo. Familiarizámo-nos com a mecanização de
procedimentos e portanto com a uniformização de procedimentos.
Ora, o que é que se observa quanto ao modo de proceder dos tribunais?
1. Assiste-se à produção de decisões que formam uma juris prudência, não uma
juris ciência. Está-se portanto perante um tipo de rigor completamente
diferente do rigor matemático ou da ciência em geral.
2. Assiste-se a uma certa dose de imprevisibilidade quanto ao conteúdo das
decisões, e dai a expectativa em que se encontram normalmente os
interessados, ou quem acompanha um processo. A decisão jurisdicional não
depende só dos conhecimentos de quem a profere. Quem julga é uma
personalidade viva com um passado e uma mundividencia, que se investe
todo ele na decisão. Não uma máquina que debita soluções para problemas,
a partir dos dados que lhe são fornecidos.
3. Assiste-se a uma forma de controlo nos tribunais que também é própria. É
que os tribunais são órgãos sujeitos a uma fiscalização levada a cabo,
substancialmente, do interior do próprio sistema. As decisões dos tribunais
impõem-se, como se sabe, a todos os outros órgãos de soberania, e as
decisões que proferem só podem ser fiscalizadas, por via de recurso, através
de outros tribunais. Acresce que o escrutínio do trabalho dos magistrados é
feito por outros magistrado.
4. No limite, o controle das decisões desemboca no controle sobre o poder dos
magistrados, poder que não é obtido directamente pelo voto, e, em termos
democráticos, tão só indirectamente legitimado. Daí que, embora entre nós
não haja uma verdadeira alternativa a este estado de coisas, nem sempre o
poder dos tribunais é aceite facilmente, sobretudo se se sobrepõe a decisões
de órgãos eleitos, ou está em causa o julgamento de titulares de cargos, para
os quais foram eleitos democráticamente.
5. Nos nossos tribunais perduraram durante tempo demais métodos
ultrapassados. Escusado será dizer que o tempo e o espaço, na sua
correlação estreita, encurtaram em todo o lado. Há menos tempo para tudo e
as distâncias ficaram próximas. Durante décadas, os tribunais não
acompanharam essa evolução. Acordou-se tarde, mas ainda bem que se
acordou, pelo que a chamada falta de celeridade das instâncias judiciárias é
hoje uma preocupação sincera a que se procura pôr cobro.
6. Mas a justiça pode causar ainda, perplexidade, quanto ao seu funcionamento
interno, porque não acompanhou a simplificação de rituais, o apagamento
das distâncias entre as próprias pessoas, e, até, a dessacralização da
sociedade. O funcionamento da justiça, sobretudo no tocante à audiência,
mantém conotações cénicas, ou de um autêntico cerimonial litúrgico. A
justiça acolhe procedimentos cheios de cargas simbólicas. No ritualismo e no
simbolismo cria-se distância e a distância é em muitas situações funcional. Só
que isso nem sempre é compreendido.
Tecidas todas estas considerações, e a terminar, importa ver na crise da justiça
sobretudo uma crise de celeridade. Independência dos juízes e autonomia do MºPº,
imparcialide, competência e acessibilidade são exigências de um correcto exercício
da justiça que não têm sido objecto de críticas de maior. Do que as pessoas se
queixam é de que os processos demoram tempo demais. Têm razão, e por isso aí se
tem procurado combater a tão propalada crise.
B – A JUSTIÇA QUE SE PROPORCIONA.
Ao lado daquilo que o Estado nos deve dar, como serviço público da justiça, está
aquilo que eu posso fazer, em múltiplos sectores da minha actuação, em prol da
justiça. Porque se todos nós podemos ser vítimas de injustiças, também podemos
ser causadores de injustiças, e, na medida em que o procuremos evitar, pelo menos
damos um contributo para que haja menos processos nos tribunais.
Assume então importância para cada um de nós, como regra de actuação, a justiça
enquanto virtude moral. Começemos então por uma breve reflexão sobre a mesma.
A justiça pertence á ordem das realidades que funcionam para o homem como
critério de acção. Ou seja, pertence antes de mais nada ao mundo dos valores, e é,
dentro destes, uma virtude moral. Curiosamente, das quatro virtudes chamadas
cardeais, enunciadas já por Platão e adoptadas no Cristianismo, ela é, ao lado da
prudência, da temperança (ou moderação) e da coragem (ou fortaleza), a única que
vale absolutamente. A única que nunca peca por exagero, e, além disso… não pode
estar ao serviço do bem ou do mal. Está ao serviço de si própria. Sempre e só.
Piaget estudou a evolução do sentido de justiça na criança, e chegou à conclusão de
que até cerca dos 7, 8 anos, para a criança, a justiça identifica-se com a autoridade
parental. Até perto dos 12 anos, a justiça é sinónimo de igualdade, sem excepções,
mas, a partir dessa idade, passa a ser encarada como uma virtude que toma nota do
caso concreto, se aproxima, pois, da equidade, e conta com uma componente de
racionalidade.
Todos temos a experiência de reagirmos à actuação de cada qual, considerando
que ela não é justa. E no fundo, essa reacção derivará de se não ver explicação, ou
motivos, para que se tenha estabelecido uma diferença. Isto significa que há uma
primeira abordagem da justiça que assenta da verificação de uma igualdade de
tratamento. O mesmo é dizer, que o sentimento de injustiça será desencadeado por
situações de desigualdade, para que se não veja uma explicação razoável.
Paralelamente, uma outra noção de justiça coincide, simplesmente com a de
observância do direito. E não é raro que estas duas acepções se vejam confundidas.
É o que acontece sempre que reagimos, dizendo espontaneamente "não há direito!"
sem ter no espirito, obviamente.. qualquer norma jurídica.
Como refere COMTE-SPONVILLE "A justiça joga-se completarnente neste duplo
aspecto, da "legalidade", na cidade, e da "igualdade" entre os indivíduos". Ou,
como milhares de anos antes afirmava ARISTÓTELES, "O justo é o que está em
conformidade com a lei e respeita a igualdade".
Mas falamos aqui de igualdade de tratamento, e não obviamente igualdade de facto,
ou de características, embora as duas acepções tenham entre si uma ponte.
Existe uma igualdade de facto entre todos os homens, com o sentido de que os
homens normais, num certo núcleo essencial, são iguais. A igualdade de
"características" basta-se portanto com uma certa dose de similitude, e não aspira à
coincidência das características das pessoas.
Aconteceu porém que, para além disso, mas também por isso, se estipulou que
todos os homens deviam ser tratados como iguais. Deviam ser tratados, o que
significa que se abandonou o terreno descritivo, ou de realidade, e se deu o salto
para o âmbito axiológico, se quisermos, normativo. O tratamento "como igual"
socorre-se do princípio, também ele normativo, da igual dignidade da pessoa
humana. Ancorados naquela similitude fáctica reputada suficiente, e que une os
homens todos, a moral e o direito adoptaram o conceito operativo de "igual
dignidade humana", o qual acaba por funcionar, simultaneamente, como inspiração
e limitação. Tanto para o legislador ou para o aplicador do direito, como para o
cidadão em geral.
Poderia eleger-se como primeira máxima do justo que cada um obtenha o que lhe
for devido. Mas o que é que é devido a cada um?
Nada, numa perspectiva de puro estado de natureza. Leia-se, sem as implicações de
sociabilidade humana.
Como diz SPINOZA na sua Ética "Não há nada na natureza que possa ser
considerado coisa de um ou outro mas tudo pertence a todos; portanto, no estado
natural não se pode conceber nenhuma vontade de atribuir a cada um o seu, ou de
tirar a qualquer um o que lhe pertence; isto é, no estado natural não há nada que
possa ser considerado justo ou injusto". Quer como virtude moral a conduzir o
relacionamento de indivíduo para indivíduo, quer como
ideal organizativo da sociedade, a justiça pressupõe alteridade em termos humanos,
pressupõe vida em sociedade, e pressupõe cultura portanto.
A justiça é uma decorrencia da sociabilidade que atribui o poder de exigir
comportamentos, e impõe deveres ou obrigações. Obrigação vem do latim
“obligatio”. “Ob” é um prefixo que significa “o que está em frente de”, a que se
junta o termo “ligatio”, ligação. A sociedade liga-nos ao semelhante e a essa ligação
chamou-se obrigação.
 Ao procurar ser justo, posso encontrar-me numa relação de cidadão para
cidadão, ou de particular para particular. Fundamental, é não prejudicar o
semelhante evitando um mal que ele não tem que suportar, ou reparando o
mal que o fiz suportar. Estamos no domínio da justiça chamada comutativa,
do “alterum non laedere” dos romanos.
 Mas posso ser membro de uma comunidade, (organizada em Estado, numa
empresa, ou como família), e, enquanto tal, ficar investido de um poder
específico, portanto numa posição hierárquicamente superior. Caber-me-á
então, mais específicamente, e no âmbito das minhas competências, dar a
cada um o que lhe é devido. Fala-se aqui da justiça distributiva, do “suum
quique tribuere”
 Finalmente a relação comunidade - indivíduo pode estabelecer-se, tanto
desta para aquele, como no sentido inverso, do cidadão para com a
comunidade em que se integra. Se essa comunidade se organiza em Estado e
produz normas, a realização da justiça é inseparável da mediação do direito.
Assim, o que se pede ao cidadão como contributo para a realização da justiça
é sem dúvida o respeito pelas leis que lhe impõem comportamentos. Muitas
vezes justificamos a nossa desobediência à lei alegando que ela é injusta.
Mas, também geralmente, arvoramo-nos em críticos da lei, sem uma visão
global dos interesses em jogo e só centrados na conveniência própria. Mais
do que um convite à insurreição, a lei considerada injusta convida é à sua
substituição, o que, nos regimes democráticos de hoje se socorre de
mecanismos próprios.
Já os romanos falavam, a propósito deste ponto, do “honeste vivere”.
Claro que não é possível proceder agora à análise das áreas em que,
sociológicamente, o desprezo pela lei e a indiferença pelas situações de injustiça que
criamos, são mais alarmantes. Todos as conhecemos.
 No domínio privatístico, basta pensar na responsabilidade civil por acidentes
de viação. Tudo por causa da forma desastrada como conduzimos nas
nossas estradas, por causa da autêntica banalização em que se caiu, do
desrespeito generalizado do Código da Estrada.
 Em matéria de dívidas, o “compre agora e pague depois” é cada vez mais um
“compro agora e pago se puder”, com as inerentes consequências.
 No domínio das relações de família, as situações de violência saltam à vista.
Interessa porém estar também atento à simples prepotência e à
discriminação, mais ou menos encapotadas, e de que é vítima, no seu seio, o
elo mais fraco.
 Pense-se no que se passa em matéria de concursos públicos com os
favorecimentos indevidos, com a fuga escandalosa ao fisco, com os
empenhos, o tráfico de influências, a corrupçãozinha a que sistemáticamente
se fecha os olhos.
 Deixo de lado toda a problemática da insensibilidade social dos patrões, do
absentismo e falta de produtividade dos trabalhadores, ou da distibuição da
riqueza, em geral, que respeitam à justiça social.
Claro que a conflitualidade não vai desaparecer, mas pode ser minorada.
- Todos somos portadores de personalidades diferentes e todos nos queremos
livres.
- Alguns têm uma vontade de domínio que pode ser transformada, diria mesmo,
sublimada em poder legítimo, e que no limite deveria confundir-se com “serviço”.
-
Todos temos sentimentos egoístas, mais ou menos frequentes, e para os
combater é preciso esforço.
- Há quem tenha necessidades escandalosamente por satisfazer, e, face à escassez
dos bens, reclama partilha.
Como, com tudo isto, os conflitos não há-de nunca deixar de acompanhar a
convivência entre humanos, então, a pergunta a fazer, é como vencer esses
conflitos que existirão sempre, mas pagando, todos nós, o menor preço.
- Claro que a conflitualidade se ultrapassou, historicamente e em regra, com
recurso à força. Por essa via, os mais fortes dominam os mais fracos, ficando a
sociedade mais ou menos próxima da lei da selva. Nesse estado de coisas não há
valores, normas, justiça, etc.
Só que a lei do mais forte não caracteriza propriamente uma convivência
humanizada, civilizada, para já não dizer cristianizada. E não é em retrocessos que
estamos propriamente interessados.
- Claro que os conflitos têm que continuar a ser ultrapassados, evitando-se o
confronto directo entre os descontentes, e apelando para a decisão de um terceiro
que é em regra um tribunal. Estamos a falar do tal serviço de justiça que se pede ao
Estado.
- Mas não tenhamos dúvidas de que o sistema de justiça estará sempre aquém do
que é necessário para resolver todos os conflitos da sociedade. Em primeiro lugar,
porque só se ocupa de violações de normas jurídicas e muitos dos conflitos surgem
por outras razões. Em segundo lugar porque, mesmo no campo do direito, nunca a
oferta dos tribunais poderá acompanhar uma procura que está constantemente a
crescer.
Parece então indispensável que a conflitualidade se previna, e que quando surja se
possa resolver por composição de interesses. Se procurarmos ser mais justos nas
nossas próprias relações os avanços serão um facto. É esta a justiça que podemos
proporcionar.
Será tudo?
Poder-se-á ir bem mais longe, se instalarmos e aperfeiçoarmos uma cultura que
preze, antes do mais, uma convivência não só pacífica mas sobretudo solidária.
Uma cultura que seja de concórdia (não forçosamente de concordância), e de
fraternidade.
Liberdade todos a querem. Igualdade todos a defendem. Na fraternidade pouco se
fala.
E no entanto…
Pedindo-se alguma renúncia a todos, acabam por se obter vantagens para o maior
número. Com o sacrifício razoável da liberdade de cada um, estarão criadas as
condições para a felicidade possível de todos os demais.
Curiosamente, Portugal apresenta-se como um país que se reclama da religião
católica em termos altamente maioritários. E no entanto, se os princípios ditos
evangélicos fossem levados à prática, por certo que a conflitualidade diminuiria, e
talvez houvesse menos necessidade de recorrer aos tribunais. Talvez que se não
sentisse tanto a propalada crise da justiça.
“Krisis”, para os gregos, significava pensamento, e mais concretamente
pensamento crítico.
Um pensamento crítico sobre a justiça, nas duas acepções apontadas, é uma óptima
oportunidade para que se progrida, em coerência com os princípios de que nos
reclamamos.
Lisboa, 21 de Maio de 2009
José Souto de Moura
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V . “Justiça: Que tenho eu a ver com isso?”