ENSAIO
Vicissitudes do processo de amadurecimento em filhos
de alcoolistas: o desafio da individuação
Vicissitudes of the Aging Process in Children of Alcoholics:
The Challenge of Individuation
Eliana Mendonça Vilar Trindade1
Liana Fortunato2
1
Escola Superior de Ciências da Saúde –
ESCS/FEPECS da Secretaria de Estado de
Saúde do Distrito Federal.
Brasília-DF, Brasil
2
Universidade de Brasília – UnB.
Brasília-DF, Brasil
RESUMO
Trata-se de ensaio que busca realizar reflexão acerca das vicissitudes do
processo de amadurecimento de adolescentes filhos de alcoolistas, considerando as questões de gênero e aspectos associados à dinâmica familiar. A análise do sofrimento gerado pelo alcoolismo paterno teve como
foco a relação entre adolescentes e o pai abusador de álcool. Fazemos
referência a pesquisas com referencial sistêmico com filhos de alcoolistas onde o alcoolismo presente em um dos membros representa um sintoma denunciador de desequilíbrios do sistema familiar. As questões de
gênero permeiam a própria gênese do alcoolismo, bem como sua progressão e representam fatores dificulta dores do processo de individuação em filhos de alcoolistas. As mulheres ainda são as principais vítimas
de homens embriagados. As filhas de alcoolistas sofrem de forma diferente dos filhos de alcoolistas, e talvez sacrifiquem mais suas escolhas
afetivas, enquanto os meninos sacrifiquem mais o próprio corpo, já que,
sintomas como dependência química e delinqüência são mais afeitos ao
mundo masculino. O percurso traçado nos permite afirmar que o foco
no conceito de individuação se mostrou bastante fértil e elucidativo
para a construção de uma perspectiva positiva sobre os filhos de alcoolistas e para análise da questão de gênero. A abordagem na perspectiva
de gênero representa grande desafio epistemológico, pois implica em
mudança de compreensão dos conflitos com familiares de alcoolistas.
Palavras-chave: Filhos de alcoolistas; Gênero; Individuação.
Correspondência
Eliana Mendonça Vilar Trindade
SMPW Quadra 26, conjunto 03, lote 2
casa G - Park Way, Brasília-DF.
71745-603, Brasil
[email protected]
Recebido em 01/novembro/2011
Aprovado em 25/janeiro/2012
ABSTRACT
This article is essays that seeks to make a reflection and discuss on the
vicissitudes of the maturation process of adolescent children of alcoholics, considering gender issues and issues related to family dynamics.
The analysis of the suffering caused by parental alcoholism, focused on
the relationship between parent and adolescent alcohol abuser .We refer
to systemic research with reference to children of alcoholics who show
that alcoholism is present in one of the members is a telltale symptom
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of imbalances in the family system. Gender issues permeate the very
genesis of alcoholism, as well as its progression and represent factors
that complicate the process of individuation in children of alcoholics.
Women are still the main victims of drunken men. The daughters of
alcoholics suffer differently from children of alcoholics, and perhaps
sacrifice their choices more emotional, while boys more sacrifice their
own bodies, since symptoms such as substance abuse and delinquency
are more accustomed to the male world. The set route allows us to state
that the focus on the concept of individuation has proved very fruitful
and enlightening for the construction of a positive outlook on the children of alcoholics and analysis of the gender issue. The gender perspective in the approach represents an epistemological challenge, since
it implies changing the understanding of the conflicts in the families of
alcoholics.
Keywords: Suns of alcoholics; Gender; Individuation.
INTRODUÇÃO
A proposta deste ensaio é realizar uma reflexão
acerca das vicissitudes do processo de amadurecimento de adolescentes filhos de alcoolistas, considerando as questões de gênero e aspectos associados à dinâmica familiar, por meio de revisão
da literatura sobre o tema. Foi realizado levantamento bibliográfico, considerando-se as bases de
dados PubMed/Medline, Lilacs, Scielo e PsicoInfo
de artigos e foram incluídos livros das áreas de:
Alcoologia , Teoria Sistêmica e Terapia Familiar de
Alcoolistas.
neste texto nosso empenho é de mostrar que, apesar da vivência óbvia de sofrimento, esse grupo
apresenta grandes potenciais de saúde psíquica a
serem estimulados. Tomamos como referência a
pesquisa de Trindade (2007)1 que buscou realizar
uma crítica conceitual de grande parte da literatura existente referente a filhos de alcoolistas, já
que neste âmbito os adolescentes filhos(as) de alcoolistas estão sempre associados a múltiplos sintomas psicológicos e psiquiátricos, sendo vistos
como indivíduos deficitários.
Nosso ponto de partida é a pesquisa de Trindade
20071, que aborda o sofrimento gerado pelo alcoolismo paterno, e teve como objeto a relação entre adolescentes e o pai abusador de álcool, e não
contemplou os efeitos patogênicos do alcoolismo
materno na família. Este objeto foi investigado a
partir do referencial sistêmico, que concebe o alcoolismo presente em um dos membros como um
sintoma denunciador de desequilíbrios do sistema familiar, surgindo quando a família apresenta
dificuldades no seu processo de desenvolvimento
ao longo do seu Ciclo de Vida2,3.
O pensamento sistêmico ganha impulso e ascensão na década de 1950. A abordagem sistêmica
acerca do alcoolismo surge a partir de evidências
clínicas - como a constatação de que o sintoma
dos pacientes alcoolistas reaparecia ao voltar para
a casa, a complexidade dos vínculos do sujeito alcoolista com sua família de origem, a interação do
indivíduo na sua relação de casal. Segundo esta
concepção, todas as pessoas que compõem a unidade familiar têm um papel na maneira como a
família se relaciona, como se relacionam os membros com cada um dos outros e na forma como,
finalmente, o sintoma irrompe2. Visto como um
sintoma, o alcoolismo representa uma disfunção
no contexto familiar e social e familiar, pleno de
significados em relação aos dois grupos4.
Observamos que, de modo geral, a literatura mais
abundante neste tema é caracterizada por uma visão pessimista e patologizante, quando trata dos
problemas dos filhos (as) de alcoolistas1. Porém,
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Além disso, considerando o ponto de vista do autor1 reconhecemos que a constituição da própria
subjetividade representa processo frágil e vulnerável para filhos(as) de alcoolistas considerando
que o alcoolismo paterno representa fator agravante para o processo identificatório e organizador
do sujeito1. O autor1 parte do pressuposto de que
o fator intrapsíquico e o interpsíquico representam dimensões cruciais se o desafio é compreender a vivência subjetiva de adolescentes filhos de
alcoolistas. Estes fatores podem ser visualizados
na forma como os adolescentes enfrentam e conotam o alcoolismo paterno e na intensidade do
sofrimento vivido em relação a esta situação. Sem
querer criar dicotomias entre o mundo interior e o
mundo relacional do adolescente, observa-se que
a dimensão psíquica deve ser focalizada na medida em que é determinante para os processos de
saúde e doença na adolescência.
A possibilidade de que filhos(as) de alcoolistas
não necessariamente tenham que reproduzir modelos patológicos transmitidos transgeracionalmente, representa o grande eixo norteador deste
texto e de seu texto base1. O autor1 ressalta a importância de investirmos em enfoques mais salutogênicos que apostem em possíveis reações mais
resilientes e saudáveis por parte dos adolescentes
filhos de alcoolistas.
Adolescente, família e alcoolismo
Entendemos que este indivíduo está imerso em
uma rede de relações marcada pelo jogo patológico, em que o abuso do álcool denuncia uma dinâmica familiar vulnerável que converge para a figura de um paciente identificado. Trata-se de um
tipo de família com muitas dificuldades de admitir
sua desestruturação, depositando no dependente
químico todos os seus traumas e muitas vezes alimentando a dependência do usuário5.
Não podemos negar que o sofrimento aumenta
e potencializa o poder desestruturador de famílias, que podem ser consideradas disfuncionais na
construção da subjetividade de seus descendentes, que por sua vez sofrem influências deste sistema. Tal conceito de disfuncionabilidade é relativo
e passível de crítica se considerarmos o potencial
de saúde, a dinamicidade do ciclo vital e o potencial de resiliência dos adolescentes1, porém ele se
justifica na medida em que denuncia as dificuldades e fragilidades observáveis nestes tipos de famílias. Como uma das características e atrativos de
qualquer dependência é a capacidade de mascarar
a dor, de afastar uma realidade insuportável, sua
importância é tal que passa a ser o centro da vida
da pessoa, em detrimento de outras prioridades
– como a relação com os filhos. Através de uma
circularidade disfuncional o sistema familiar deixa de ser ninho de acolhimento e passa a ser um
grande nó a ser desatado1.
O papel dos fatores familiares na etiologia do alcoolismo, descrevendo o impacto de um pai passivo e de uma mãe dominadora devem ser ressaltado6. De fato, observa-se clinicamente que o perfil
de família mais característico envolve vínculos de
dependência simbiótica, indefinição hierárquica,
ausência de limites e de diálogo, pai ausente ou
omisso e mãe superprotetora, controladora e hiperfuncionante7. Dentro desta perspectiva, uma
das características fundamentais de um sistema familiar funcional é a aliança existente entre os pais,
que, unidos, trabalham em prol da resolução dos
conflitos e para a satisfação das necessidades de
seus filhos7. Por outro lado, em um sistema familiar considerado mais vulnerável, o que ocorre é a
transformação dos filhos em depositários das necessidades dos progenitores. Tal fenômeno engendra em seu âmago um relacionamento abusivo em
vários aspectos – afetivo, intelectual, emocional e
muitas vezes sexual, o que dificulta o processo de
individuação da personalidade1.
Filhos de alcoolistas desempenham alguns papéis
específicos neste sistema marcado pela codependência8. O ‘herói’ da família é geralmente o papel
desempenhado pelo filho mais velho. Tem uma
conduta exemplar, cuida dos irmãos mais novos,
é bom aluno, apresenta-se aparentemente feliz.
Com alguma freqüência, logo que alcança autonomia, desliga-se da família. O ‘bode expiatório’
é aquele filho que se responsabiliza em desviar a
atenção do alcoolista através de comportamentos
desajustados9. A “criança perdida” é o filho solitário, geralmente o mais novo que comumente sente-se rejeitado1.
A identidade é uma construção relacional e dinâmica, envolvendo o indivíduo, sua família e o seu
meio social2,10,11 . A compreensão dos processos
psicossocial subjacentes à crise da adolescência é
fundamental, se considerarmos que a identidade
nunca é estabelecida na forma de uma armadura de uma personalidade estática e imutável12. Ao
contrário, é um processo contínuo de busca que
se inicia no “encontro” da mãe com o bebê e só
termina quando dissipa o poder de afirmação mútua do homem, sendo que cada idade tem a sua
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própria “identidade”. Segundo estes autores, a forma como os adolescentes irão se confrontar com
a crise de identidade dependerá da maneira pela
qual integraram os diferentes elementos da identidade na infância e internalizaram adequadamente
as figuras parentais12.
A individuação é um processo definido como a
capacidade do indivíduo se perceber como distinto e separado do contexto familiar, social e cultural. A impossibilidade de realizar este processo
leva o indivíduo a se fusionar com o grupo, perdendo as noções do limite e das fronteiras entre si
mesmo e os outros, o que pode gerar um grau maciço de identificação com os outros e uma grande
dependência das outras pessoas13. A adolescência
é, portanto, uma fase crucial no processo de socialização e de construção identitária10,11.
O conceito de individuação foi bastante utilizado
por Bowen 19742, que mostrou existir uma tendência, na família de alcoolistas, a uma precária
diferenciação de ego. Este autor foi o precursor da
utilização deste conceito, que acabou sendo adotado por autores posteriores13. Uma boa diferenciação de ego permite à pessoa o desenvolvimento
de habilidades para manter um coerente senso de
self durante as relações afetivas com as pessoas13.
A possibilidade de interagir e de vivenciar um nível de intimidade com outros indivíduos, sem se
tornar fusionado, dependente ou superidentificado, representa um importante aspecto da personalidade a ser desenvolvido durante a adolescência.
É importante assinalar que a literatura tem negligenciado a aplicação deste conceito para adolescentes oriundos de famílias alcoólicas13.
A gravidade da questão do alcoolismo denunciada pelos dados epidemiológicos, que estimam que
11,2% da população brasileira, cerca de 5 milhões
de pessoas, sejam dependentes de álcool14 justifica
o esforço reflexivo proposto por este ensaio diante deste grave problema de saúde pública. Se considerarmos a prevalência de dependência, os dados revelam que 5,2% dos adolescentes (de 12 a
17 anos) já são dependentes15. Dados mais recentes16 denunciam Considerando nossa experiência
clínica com alcoolistas e seus familiares, desenvolvida na Coordenação do Programa de Tratamento
Hospitalar de Alcoolistas na Secretaria de Saúde do
Distrito Federal, é notório o processo de transmissão geracional do sofrimento em diferentes contextos, por meio de uma profunda lealdade inconsciente perpetuadora de um conflito. Tal sofrimento
parece ser perene e perpetua-se ao longo da idade
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adulta já que compromete o processo de amadurecimento dos adolescentes, hipertrofiando aspectos
negativos da vida e das interações humanas4.
A importância da elaboração dos conflitos
na adolescência: a questão da individuação
A adolescência constitui-se em uma fase marcada por mudanças e conflitos intrapsíquicos e interpessoais, como a própria etimologia da palavra
implica: adolescere significa “crescer”, em latim17.
Para lidar com esta fase do crescimento, é preciso saber não reprimir tais conflitos e ao mesmo
tempo conseguir canalizá-los e ressignificá-los.
Nesta passagem da vida infantil para a vida adulta os conflitos envolvendo papéis, e a construção
de uma nova identidade compatível com as necessidades do momento vivido, são inevitáveis. O
adolescente encontra-se preso entre o passado e
o futuro, entre infância e idade adulta17. Às vezes,
permanece um sentimento de luto e de lamento
por perdas, o que pode parecer uma expressão
de insegurança em assumir uma identidade mais
condizente com suas demandas internas por novas experiências.
A busca de identidade é um aspecto essencial da
experiência de adolescer e os problemas relativos à identidade com freqüência constituem uma
zona de conflito importante18. É dentro do contexto familiar que os adolescentes realizam esta busca
de identidade. Muitas situações dentro da família
podem provocar uma crise de identidade, como
uma crise conjugal ou o fato de um membro da
família ter uma doença crônica. A maturidade na
adolescência é adquirida dentro do contexto de
uma progressiva e mútua definição da relação entre pai e filho18. O papel de um profissional que
esteja trabalhando com a família é o de incentivar
negociações entre as gerações, e neste processo de
negociação o adolescente constrói um conceito de
si mesmo e uma confirmação de respeito mútuo.
Os limites interpessoais definem e separam os
membros da família, promovendo a identidade
individual e o funcionamento autônomo. As famílias com bom funcionamento tendem a manter limites claros entre os membros19. Em famílias
mais vulneráveis, os limites tendem a ser indistintos e confusos, com os membros invadindo espaço pessoal e a privacidade um do outro. O desenvolvimento de identidade e de autonomia bem
diferenciadas é importante para o reconhecimento
das competências individuais e familiares no inter-relacionamento.
Vicissitudes do amadurecimento em filhos de alcoolistas
É necessário que pais, professores e grupos sociais
fiquem alerta para o risco de uso de álcool e de
drogas na adolescência, principalmente se estivermos lidando com jovens que provêm de famílias alcoolistas. Muitas destas famílias certamente
contam com pais alcoolistas. Observamos que a
carência afetiva de adolescentes cria vulnerabilidades e desestrutura a vivência de papéis na família, gerando alianças, coalisões e parentalizações12.
Em função das dificuldades de alguns pais e mães
assumirem seus papéis parentais junto aos filhos,
estes criam imagens que os permitam nomear e
lidar com a realidade, que vivem junto à família.
Muitas vezes o filho (a) parentalizado (alçado à
condição de “marido” da mãe) se vê preso no paradoxo entre o sofrimento de deixar a mãe e a dificuldade de continuar convivendo com ela, e recorre à droga como saída12.
“Aqui as mães são nomeadas pelos filhos como sofredoras, vítimas e trabalhadoras, necessitando do
filho ao seu lado. Os pais, por sua vez, são descritos num duplo papel, ora violentos, ora indiferentes aos filhos e à esposa” (Penso & Sudbrack,
2004, p. 44).
A questão do uso abusivo de drogas em uma família compreende uma relação particular de interdependência na qual há um padrão de contato
em que os membros se aproximam e se afastam simultâneas e subseqüentemente20. O pai alcoolista
muito provavelmente iniciou sua trajetória de uso
abusivo na adolescência.
O lugar do jovem na família é aquele de quem
introduz a alteridade na família, por meio de novos discursos que abalam seu discurso oficial, seja
pela ruptura ou pela inversão, ou mesmo pela reafirmação deste discurso21. Reações diversas de fechamento ou de abertura frente a esses estranhos
serão decisivas para as relações familiares e, particularmente, para o lugar do jovem em busca de
uma identidade própria que se constrói pelas várias alteridades com as quais enfrenta a vida.
“Crescer significa, precisamente, poder relativizar as referências familiares, desnaturalizando-as, o que permite o processo de singularização,
tanto das famílias frente aos modelos, quanto do
sujeito diante das imposições familiares” (Sarti,
2004, p. 19).
O alcoolismo paterno representa um fator de dificuldade para o processo de crescimento, no entanto não se constitui como um impedimento com
caráter definitivo, já que as famílias e seus adolescentes possuem grandes potenciais de superação, pela dimensão lúdica da vida, pela presença
do humor, do estabelecimento de relações fora da
família, do namoro, dos esportes, entre outros aspectos1. O ponto de vista do autor1 ressalta a importância dos testemunhos de adolescentes, tanto
do sexo masculino como do feminino, de perspectiva de esperança, crença no futuro, valorização da
vida em família, projeto de formação profissional,
que são aspectos que falam a favor de uma perspectiva de fortalecimento do poder de construção
de um projeto de vida1.
O impacto da insegurança existencial
na visão de mundo de filhos de alcoolistas
A insegurança existencial desses adolescentes representa aspecto marcante da subjetividade dos
adolescentes filhos(a) de alcoolistas, e se espalha
e contamina várias áreas da vida1. Este traço fóbico sem dúvida foi construído e agravado pela própria intensidade dos acontecimentos, da violência,
do ciclo embriaguez e sobriedade. Adolescentes
filhos(as) de alcoolistas refere-se ao medo do pai
alcoolista, analisando que o fato de ter sentido tão
cedo na vida medo de alguém tão importante acabou gerando uma postura de muito fechamento,
excessiva preocupação e desconfiança1.
Neste contexto, o jovem se afirma opondo-se, fazendo do conflito um instrumento tão necessário
quanto imprescindível em seu processo de tornar-se sujeito, na família e no mundo social21.
“Desta forma, a família configura um cenário onde
o conflito é intrínseco e, sendo assim, o trabalho
com famílias pode se dar no sentido de pensar os
limites do que é ou não negociável nas relações familiares, a partir da indagação sobre o que constitui conflito para a própria família e não como uma
definição externa” (Sarti, 2004, p.24).
Considerando a perspectiva do autor1, a falta de
tempo para lidar com os conflitos próprios da
adolescência sugere as possíveis dificuldades de
construção de uma identidade, neste contexto. Os
adolescentes, em busca de uma identidade adulta, reproduzem, imitam ou estabelecem conluios
conscientes e inconscientes, como forma de contestação e de autoafirmação. O pai alcoolista pode
assumir o papel de um modelo caótico ou idealizado de identificação negativa12.
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A presença de mecanismos problemáticos usados
pelos filhos de alcoolistas em seus relacionamentos é ressaltada pela literatura22. O autoconceito
negativo formado pelas mensagens recebidas pela
família, pelos amigos e a sociedade, deflagra um
círculo vicioso onde as próprias percepções de si
são alimentadas pela percepção dos outros. O autoconceito negativo contribui para aumentar a dificuldade do adolescente em se separar do sistema
familiar, o que compromete seu processo de individuação, tão necessário à construção de sua identidade. Cabe lembrar, que para a Teoria Sistêmica
este processo é dinâmico e que a superação de um
autoconceito negativo representa um desafio inerente ao movimento de autonomização do adolescente, o que acaba refletindo e interferindo nos
mitos familiares23,24.
Os processos interpessoais e comunicacionais
como ferramentas para a construção da identidade
Em relação ao alcoolismo, à identidade e à comunicação, algumas pesquisas22, as quais examinaram diferentes dimensões de competência comunicativa em filhos de alcoolistas, depressivos
e bebedores sociais concluíram que os filhos de
alcoolistas apresentavam déficits em todas as dimensões de competência comunicativa, como clareza comunicativa e autorreferência. Outros estudos25 indicam que alcoolistas ajustam ou modificam suas identidades a partir de metanarrativas.
Este estilo de falar de suas vidas como alcoolista
denominou-se “autogenerativo” ou “autorreflexivo”. A metanarrativa permite aos participantes de
reuniões de Alcoólicos Anônimos reverem os roteiros de suas vidas e iniciarem o movimento de
mudança retornando à sociedade, uma vez que ela
funciona como uma mensagem auto-reflexiva25.
O estudo de Hill e cols.22 propõe realizar uma análise semiótica de relatos em filhos de alcoolistas,
concluindo que as seqüelas decorrentes dessas vivências familiares perduram durante longos períodos. Verificou-se que os filhos adultos de alcoolistas formam conclusões intencionalmente errôneas,
como: não falar com pessoas de fora da família
sobre o pai alcoolista, entender que o problema
é só seu e que ninguém mais se preocupa com
isso, sentir-se constantemente constrangido com
a situação e se sentir pouco respeitado pelos professores, temendo que sua vida possa ser igual à
de seus pais e parentes. Constatou-se que a metamensagem é de desconfiança. Percebe-se que a
confiança desses indivíduos em si mesmos e em
sua família é danificada ou destruída. Estes resul174
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tados são elucidativos da extensão e durabilidade
do sofrimento em filhos de alcoolistas, e enfatizamos a importância de intervenções terapêuticas
que resgatem a autoconfiança e a capacidade narrativa destes adolescentes.
Por exemplo, vivências de medo intensas desencadeadas por situações de agressão reais se infiltram no mundo afetivo desses adolescentes, o que
gera muita insegurança1. Esta insegurança é aumentada com o clima de grande instabilidade familiar associada a uma fragilidade na homeostase
e a grande volatividade dos humores. Vivências
de vergonha desencadeadas pelo forte estigma ao
alcoolismo explicam o silêncio e o mutismo de
filhos(as) de alcoolistas que acabam não falando
sobre o problema e desta forma perdem a oportunidade de ao encontrar bons interlocutores superarem a dimensão traumática desta vivência. A
culpa permeia a dimensão psicológica de muitos
filhos(as) de alcoolistas, na medida em que é profunda e reativada por conflitos em relação à figura
paterna1.
A perspectiva sistêmica e a dinâmica familiar de
filhos de alcoolistas
As situações familiares desorganizadas produzem
sentimentos de inadequação, confusão e falta de
autoestima, e este processo depende também do
gênero. A subjetividade percorre e perpassa várias
dimensões da vida psíquica dos adolescentes. A
baixa autoestima dificulta e bloqueia a iniciativa de busca de novos futuros. Estudos26 têm demonstrado que viver em um “ambiente alcoolista”
afeta negativamente os descendentes de alcoolistas. Crianças filhas de alcoolistas experimentam
tensão e competitividade com seus colegas, as
crianças mais velhas têm dificuldades em construir e manter amizades. Por outro lado, o modelo
oferecido por pai ou mãe alcoolista pode distorcer
o processo de socialização da criança, que passa
a adotar, intencionalmente ou não, mecanismos
inadequados ao lidar com relacionamentos interpessoais27.
Segundo o estudo de Trindade (2007)1, os adolescentes encaravam tanto o pai quanto a mãe como
modelos positivos em alguns setores da vida, ou
seja, até mesmo o pai alcoolista era alvo de admiração em algum aspecto. O alcoolismo paterno
não foi visto como totalmente impeditivo do processo de identificação dos filhos(as) com o modelo
paterno. Ampliar a visão dos adolescentes de forma que eles possam se assegurar da importância
Vicissitudes do amadurecimento em filhos de alcoolistas
dos pais representa uma forma de conotação positiva dos valores familiares. Esta pesquisa foi fundamentada em experiência ambulatorial, onde foi
possível perceber a magnitude do desafio inerente
ao tratamento familiar de alcoolistas1.
A carência afetiva
e o desenvolvimento da subjetividade
A carência afetiva acaba por delinear aspectos de
personalidade em filhos de alcoolistas, tais como:
a dependência afetiva, o traço fóbico e a passividade. Em geral, as crianças que vivem com um
alcoolista não recuperado obtêm pontuação inferior nas mensurações de coesão familiar, orientação intelectual, cultural, recreacional e independência. Elas normalmente experimentam maiores
níveis de conflito dentro da família28.
A triangulação dos filhos de alcoolistas e a parentalização do sistema filial é sintomática da intensidade dos conflitos conjugais, que precisam ser expressos e rebalanceados. Nestas famílias, os filhos(as)
são parentalizados, isto é, passam a cuidar dos pais
que na verdade trazem fortes pendências emocionais transgeracinais. Os filhos(as) parentalizados
são carentes porque não recebem a carga de afeto
necessário, nem tão pouco o suporte fundamental
para o processo de adolescimento. A triangulação
ocorre quando um terceiro membro da família é
envolvido pelo casal numa rede de conflitos, passando a ser um elemento estabilizador do conflito conjugal. Esta dinâmica familiar tem impactos
diferenciados nos filhos(as) sofrendo influência de
muitos fatores, inclusive do gênero9.
Processos de individuação, identidade e gênero
O conceito de gênero é uma construção sociológica relativamente recente e responde à necessidade
de diferenciar o sexo biológico de sua tradição social em papéis sociais e expectativas de comportamentos femininos e masculinos, tradução demarcada pelas relações de poder entre homens e mulheres vigentes na nossa sociedade29. A questão do
gênero é um elemento constitutivo das relações
sociais30. O conceito de gênero é tanto um construto sociocultural quanto um aparelho semiótico,
um sistema de representação que atribui significado a indivíduos da sociedade. Desta maneira, o
conceito atual de gênero centra mais sua focalização nas relações de poder entre homem e mulher.
O termo gênero passa a ser empregado para designar os comportamentos, os papéis e os padrões de
expectativas, tanto para homens como mulheres,
sendo elementos que são construídos dentro de
um contexto cultural, e não dados naturalmente30.
O conceito de gênero comporta a permanente interdependência entre o biológico e o psicossocial
em cada cultura específica. O sexo social, ou seja,
o gênero é uma das relações estruturantes que situa o indivíduo no mundo e determina ao longo
de sua vida, oportunidades, escolhas, trajetórias,
vivências, lugares e interesses31. As inserções de
classe social e gênero em uma mesma sociedade,
ao configurarem contextos de interação específicos, repercutem de forma substancial nos processos de subjetivação de cada pessoa, delineando
possibilidades e limitações. Desta forma, as implicações de estrutura de gênero vigente sobre as relações e as formas de viver das pessoas nos diferentes grupos sociais vêm sendo, gradativamente,
estudadas. O feminino e o masculino são construídos, interpretados e internalizados, portanto
personalizados, dependendo das características
específicas da sociedade em que homens e mulheres vivem do ciclo de suas vivências subjetivas
como homens e mulheres que pertencem a uma
raça, etnia e classe social determinada. As relações
interpessoais representam grande foco e fonte de
prazer e preocupação para meninos e meninas.
Note-se que pensar o gênero feminino e masculino remete-nos a questões intimamente ligadas
às representações sociais, sobre o conceito de feminino e masculino, que vai diferir sobremaneira
em função dos tipos de famílias, das regiões de
origem, do momento histórico e da classe social31.
O alcoolismo não deixa de ser um grave problema
de saúde contemporâneo que expressa às questões de gênero29. A identificação das meninas com
a mãe, educadas para a submissão e para a docilidade, nos ajuda a compreender porque tantas
meninas, de filhas de alcoolistas casa-se com outro alcoolista. A identificação dos meninos com os
pais alcoolistas é facilitada e organizada por valores associados ao álcool à virilidade, à potência e
ao poder. As meninas por sua vez ficam aprisionadas em modelos disfuncionais nestes sistemas1.
A feminilidade e a virilidade estariam simbolicamente presentes no álcool. O álcool em sua dimensão inflamável (masculina) se contrapõe à
mansidão (feminina) da água31. O simbolismo do
fogo implicado no álcool está bastante associado ao “fogo” inerente à sexualidade humana. Por
exemplo, podemos considerar o efeito do alcoolismo sobre a violência. O Brasil viveu um dos maiores aumentos na taxa de consumo de álcool na
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América Latina e Caribe, além do abuso de bebidas alcoólicas serem significativamente maior entre homens do que entre mulheres, o que revela a
influência do fator gênero29.
O cotidiano da família é fortemente influenciado
pela organização de gênero que, vigorando para
além do espaço doméstico, manifesta-se de forma
marcante nas relações entre familiares31.
A relação interpares representa uma importante fonte de socialização para os adolescentes de
uma forma geral. A adolescência pode ser considerada uma etapa chave, de definição de um
habitus social entendido como o universo simbólico que gera o estilo de peculiar de pensar e
de agir individual31.
Nas últimas décadas, temos assistido que valores e crenças sobre masculinidade e feminilidade,
supostamente cristalizadas, passaram a ser questionados e desconstruídos, sobretudo pelas mulheres, na intenção de se estabelecerem relações
mais igualitárias32. Os movimentos feministas
contribuíram de forma significativa para a transformação de valores e práticas sociais nas relações de gênero32.
Nas últimas décadas, temos assistido que valores
e crenças sobre masculinidade e feminilidade, supostamente cristalizadas, passaram a ser questionados e desconstruídos, sobretudo pelas mulheres, na intenção de se estabelecerem relações mais
igualitárias33. Os movimentos feministas contribuíram de forma significativa para a transformação
de valores e práticas sociais nas relações de gênero33. O movimento passou a ser identificado pelo
seu esforço histórico, individual e coletivo, formal
e informal, de se opor à subjugação da mulher
ao homem. Numa convergência histórica, o movimento pelos direitos civis, que impulsionou um
consenso moral contrário à escravidão, foi acompanhado pelo movimento pacifista e pelo movimento das mulheres, desencadeando um debate
sobre a liberdade que incluía libertar-se de ideais
arraigados de masculinidade e feminilidade34.
Nestes contextos, o processo de identificação do
menino, com o pai alcoolista, é carregado de simbolismos culturais associados à ingestão de bebida
alcoólica. Observa-se, entretanto que as meninas,
em função das questões de gênero, apresentam
uma maior tendência de investirem mais intensamente nas relações afetivas, o que cria uma maior
vulnerabilidade psicológica nas meninas, se estas
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relações forem fontes de sofrimento devido a decepções, frustrações, desconfiança ou mágoas1.
Famílias de alcoolistas apresentam evidências de
uma maior vulnerabilidade em termos de nível
de impulsividade, considerando que a dependência alcoólica apresenta um claro componente
familiar. Estes autores35 concluem que a história
paterna de alcoolismo afeta intensamente as filhas de alcoolistas que apresentam altas taxas de
impulsividade. O estudo encontrou taxas de impulsividade entre filhos e filhas de alcoolistas. O
baixo nível de tais efeitos nos filhos homens sugere diferentes mecanismos de enfrentamento do
problema em função do gênero35.
O papel de gênero reúne as expectativas e os modelos de comportamento social apropriado para
pessoas de um e outro sexo é estabelecido pela
estrutura social como se fosse natural de cada um
dos gêneros36. A formação de estereótipos está associado às expectativas culturais rígidas acerca do
que se espera da feminilidade e da masculinidade
de seus membros.
Os conflitos não parecem gravitar em torno da
figura materna e algumas mães são vistas como
heroínas de forma bastante idealizada, em decorrência da capacidade de tolerar tanto sofrimento
de forma crônica, o que confirma o imaginário
cultural acerca do gênero feminino. A construção
de traços marcantes na subjetividade dos adolescentes poderia ser pensada através da relação
de alguns adolescentes com a figura materna, já
que em muitos, observa-se um afastamento do
pai permeado por medo, ressentimento, vergonha e culpa1.
Filhos de alcoolistas, em geral, apresentam opiniões mais negativas em termos de sentimentos,
opiniões acerca do casamento do que jovens sem
antecedentes familiares de alcoolismo37. Os resultados sugerem que meninos filhos de alcoolistas
apresentam dificuldades nos relacionamentos interpessoais com o sexo oposto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As questões de gênero permeiam a própria gênese
do alcoolismo, bem como sua progressão e representam fatores dificultadores do processo de individuação em filhos de alcoolistas, segundo o ponto de vista do autor1.
Vicissitudes do amadurecimento em filhos de alcoolistas
A presença do pai alcoolista é perturbadora, mas é
uma presença, traz um significado a ser construído. Significa um caminho, abre espaço para esperanças, mobilizam sofrimento e ações, desperta
posturas humanistas e preconceituosas, mas, sobretudo, gera movimento. O indivíduo é convidado a participar precocemente deste drama e dilema familiar. Os adolescentes buscam ativamente
o seu papel dentro deste núcleo. Em contrapartida, a falta absoluta do referencial paterno gera um
grande silêncio, um mutismo mais difícil de ser
transcendido. É importante, entretanto, assinalar
os riscos de assumir tantos papéis na adolescência. O desempenho de todos estes papéis impede este adolescente de individuar-se e caminhar
rumo à construção de uma identidade própria, já
que enfrenta um terrível conflito entre o status e
o estatuto38.
O percurso traçado nos permite afirmar que a
perspectiva do autor1 ao situar o foco da problemática de filhos de alcoolistas no conceito de individuação se mostrou bastante fértil e elucidativa
para a construção de uma perspectiva positiva sobre os filhos de alcoolistas, na medida em que promoveu a elucidação dos obstáculos sistêmicos a
serem superados. Trata-se de uma questão interacional e sistêmica e, portanto, passível de mudança. Este foco permite fortalecer um olhar e uma
hipótese que ultrapassa uma visão patologizante
e deficitária de filhos de alcoolistas, permitindo
uma compreensão além dos sintomas deste grupo.
Em função da lacuna de publicações nesta área
específica sugerimos que sejam realizados mais estudos sobre a temática abordada e que consigam
integrar múltiplas áreas do conhecimento, escapando aos reducionismos tradicionais. Estes estudos irão permitir a efetivação de ações de fato preventivas ao sofrimento e ao adoecimento de filhos
de alcoolistas.
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Este texto foi retirado da Tese de Doutorado “Filhos de Baco: Adolescência e Sofrimento Psíquico
Associado ao Alcoolismo Paterno” realizada pela primeira autora, orientada pela segunda autora, e
defendida em maio de 2007 perante o Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura da
Universidade de Brasília.
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