Por que Keynes não participou do
debate sobre o cálculo econômico socialista?
Tiago Camarinha Lopes1
Rafael Galvão de Almeida2
Resumo
Considerando que Keynes foi um interlocutor ativo de Hayek e que se
envolveu politicamente com as questões ligadas às novas formas de condução
econômica que emergiram com o fim do laissez-faire, o artigo explora
possíveis motivos que explicam a não participação formal do economista inglês
no debate sobre o cálculo econômico socialista. A tese é a de que Keynes não
entrou no debate de maneira explícita, pois isto o obrigaria a decidir-se por
uma de duas formas antagônicas de economia, cuja combinação era justamente
sua meta teórica e prática.
Palavras-chave: cálculo econômico socialista, Keynes, Hayek
JEL: B00, B51, B53
Abstract
Considering that Keynes was an active speaker of Hayek and that he was
politically engaged with issues related to new forms of economic coordination
that emerged with the end of laissez-faire, the article explores possible reasons
that explain his non-participation in the debate about the socialist economic
calculation. The thesis is that Keynes did not enter the debate explicitly,
because this would force him to decide for one of two antagonistic forms of
economy, while their combination was precisely his goal in theory and
practice.
Key-words: socialist economic calculation, Keynes, Hayek
JEL: B00, B51, B53
1. Introdução
Poucos debates controversos na história do pensamento econômico são
também pouco conhecidos. O debate sobre o cálculo econômico socialista é um desses
tópicos que ao mesmo tempo em que gera posições radicalmente contrárias, tem sérias
dificuldades em se firmar como uma questão permanente na memória do economista.
Apesar de ser uma discussão altamente abstrata e que atrai mais diretamente autores
próximos à perspectiva austríaca, ela tem ligações concretas muito visíveis que se
revelam nos nítidos embates políticos que derivam do problema.
Três anos após a Revolução Russa, evento de proporção histórica singular que,
de acordo com a análise de Lenin ([1918] 2010), dava continuidade ao processo que já
havia gerado a Comuna de Paris em 1871 e cuja motivação era a construção da
sociedade socialista, foi publicado um artigo científico que pretendia demonstrar a
impossibilidade da organização econômica socialista.3 O autor, Ludwig von Mises, um
1
Doutorando em Economia e professor temporário do Instituto de Economia da Universidade Federal
de Uberlândia, MG. [email protected].
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal de São Carlos em
Sorocaba, SP. [email protected].
3
O artigo ficou conhecido com o título em inglês: Economic Calculation in the Socialist
Commonwealth. Ver Mises ([1920] 1935).
1
dos fundadores da Escola Austríaca, corrente completamente alinhada e em sintonia
com a ideologia liberal mais pura, sustentou que a alocação racional dos recursos em
um sistema sem preços seria impossível. De acordo com sua perspectiva, como a
propriedade privada não existe na economia socialista, o sistema de regulação das
trocas que se opera pela igualação do valor acordado para a transação, ou seja, o preço,
simplesmente não funciona, pois o acordo de troca pressupõe a propriedade privada.
A provocação foi aceita por economistas socialistas, que se puseram a trabalhar
em modelos teóricos para refutar a tese de que a organização econômica socialista não
pudesse alocar os recursos de maneira racional. Mesmo o nível de análise sendo
altamente abstrato, os modelos que são formulados ao longo das disputas entre
economistas austríacos e socialistas terão repercussões práticas sobre as técnicas de
planejamento em diversas circunstâncias, tanto na URSS quanto em outras economias
que irão operar sistemas mistos ao longo do século XX.4 A recuperação, portanto, do
debate, não é apenas um exercício de história do pensamento ou de teoria econômica
pura. Suas aplicações concretas mostram que um entendimento mais adequado deste
ponto será fundamental para a construção de uma sociedade consciente, que utiliza os
recursos naturais de modo pensado e que projeta uma convivência social específica e
desejada por sua população.
A lógica do sistema capitalista após 1917 e, com mais veemência, após 1929,
foi uma em que o livre mecanismo de preços, como idealizado pelos austríacos,
certamente não existiu. Seja por sua modificação via Estado ao esforço de Guerra,
seja, por sua manipulação devido aos mecanismos de proteção setoriais de Estados
desenvolvimentistas, a alocação de recursos não foi livre durante boa parte do século
XX. Agora, desde os anos 1970, e de novo, com maior intensidade e sem
ambiguidades depois da queda do muro de Berlim e desmanche da economia soviética
em 1989, a economia capitalista avançou no sentido de diminuir toda aquela estrutura
política que operava sobre o sistema de preços. Estariam as ideias de Friedrich von
Hayek, seguidor de Mises, voltando com força e substituindo as ideias (mesmo que
razoavelmente modificadas na prática, como muitos argumentam) de John Maynard
Keynes, que reinaram absolutas na Era de Ouro do capitalismo? Ou a crise do final
dos anos 2000 assegurou o retorno do Master?
A descrição exata do pensamento político e econômico de Keynes é uma tarefa
árdua, ainda mais com toda divulgação midiática por conta dos abalos recentes nos
mercados financeiros. Diversos comentadores buscaram sintetizar aquilo que virá a ser
a doutrina keynesiana, mas nesse processo, a vulgarização das ideias, ao mesmo tempo
que as modifica devido à necessidade de popularização, gera correntes distintas dentro
do keynesianismo. Mas existem alguns pontos sobre os quais há concordância. Keynes
acreditava, por exemplo, que o capitalismo pudesse ser moldado de tal forma que seus
principais problemas seriam solucionados. O intento de criar um sistema econômico
baseado na propriedade privada e ao mesmo tempo sem os percalços normais da
reprodução do capital, expressas em todas as crises, parece ser um dos elementos
sólidos para caracterizar a economia política de Keynes. E é neste ponto que se pode
partir para tentar vincular sua teoria econômica às perspectivas de organização social
em conflito a partir do declínio de hegemonia britânica entrou em declínio: o fascismo,
o socialismo e o capitalismo coordenado. Enquanto os autores mais fiéis à ideologia
liberal pura pensavam ser possível uma ordem capitalista liberal, como Hayek, Keynes
acreditava que essa utopia era irrealizável, haja visto que tal sistema nunca existiu na
prática mesmo durante a era do padrão ouro sob liderança de Londres. Por isso a
4
Para uma introdução histórica dos modelos econométricos utilizados nos diferentes sistemas, ver
Lange (1962).
2
solução seria um capitalismo específico, onde a dinâmica de decisão individual sobre
o uso do dinheiro estaria enquadrada em um ambiente adequadamente ordenado pelo
Estado para que os investimentos racionais ocorressem de forma contínua e crescente.
A disputa política entre Keynes e Hayek foi amplamente divulgada pela
oposição direta entre as propostas de intervenção estatal (ou controle do Estado sobre
investimentos, políticas adequadas para efetivação de demanda, etc.) e as de
liberalização, condizentes com um Estado mínimo. Sem desmerecer a relevância deste
embate para a elucidação dos problemas de economia política do presente,
acreditamos que a análise da contradição entre keynesianos e austríacos é insuficiente
para identificar o fundamento teórico da economia de Keynes. Para desvendar este
ponto, além de considerar as batalhas políticas e ideológicas em que se envolveu (e
Keynes acreditava muito no poder de persuasão das ideias), é preciso mostrar como
Keynes refutou, no plano teórico, tanto a proposta dos economistas socialistas quanto
a dos economistas austríacos. Ou seja, não basta asseverar, corretamente como
Plumptre (1947) o faz, que uma das lições mais importantes de Keynes foi a de que “o
fim do liberalismo não era necessariamente o começo do comunismo” ou mesmo do
começo do caminho para a economia autoritária do fascismo e nazismo. É preciso
também fundamentar a base teórica econômica desta posição política. Nosso
argumento é que isso só pode ser feito se sua posição no debate sobre o cálculo
econômico socialista for trazida para o estudo.
Infelizmente, Keynes não participou deste debate. Por quê? Este artigo levanta
a hipótese de que dois motivos explicam tal fato: primeiro, o nível abstrato e distante
de políticas econômicas em que o debate era conduzido tornavam o tema
desinteressante para Keynes e segundo, a aproximação do debate o obrigaria a se
expor em relação à bifurcação entre dois sistemas excludentes, que ele acreditava ser
possível combinar.
Uma nota metodólogica parece ser pertinente antes de mais nada. Questões do
tipo “por que algo que aparentemente deveria ter acontecido de certa forma não
aconteceu?” (Caldwell, 1998)5 escondem algumas dificuldades, tanto para
historiadores quanto para historiadores do pensamento, no caso, econômico. Pois,
primeiramente, se um evento ocorreu é porque uma infinidade de outros eventos não
ocorreu e, segundo, ele deve fazer com que a roda do tempo gire em na direção
contrária para entender como poderia ter ocorrido. Comumente, quanto mais evidência
se tem para um aspecto do problema, menos se tem para outro, e o fato de que muitos
detalhes são subjetivos, não recordados em meios escritos, não ajuda a descobrir a
verdade. Assim, a resposta à indagação será sempre uma condicionada a certa
probabilidade, conforme os arquivos permitam fazer apenas uma inferência, e não uma
constatação direta.
Para realizar, portanto, esta inferência, o artigo tem três partes além desta
introdução: uma descrição histórica do debate que explica sua relevância para a
história do pensamento econômico, em seguida, a posição implícita de Keynes no
5
Caldwell refere-se ao fato de que Hayek não escreveu uma resenha da Teoria Geral, e também cita
outros episódios na história da economia, como por que Adam Smith não destruiu um punhado
específico de escritos, por que Carl Menger não usou seu marginalismo nas suas aulas particulares de
economia para a família real austríaca o que certamente teria feito com que o marginalismo ficasse
popular mais rapidamente, e porque Paul Samuelson não usou um modelo de Liapunov, que certamente
melhoraria seu próprio modelo.
3
debate é tateada por meio da reconstrução de sua atuação nos debates e de sua relação
com os outros participantes durante a década de 1930 e a conclusão, faz um balanço
final.
2. O debate sobre o cálculo econômico socialista
Partindo da análise da história do pensamento em geral, é possível dizer que o
debate é muito mais antigo do que se imagina. Platão, em sua utopia, acreditava que
toda atividade econômica e não-econômica deveria ser estritamente regulada, o que
provavelmente implicaria em preços administrados por um Estado controlador, em
uma sociedade que muitos comentadores identificariam como ‘comunista’.
Aristóteles, em sua crítica a Platão, foi um dos primeiros a estabelecer uma relação
entre valor e preço e que a existência de uma sociedade não-comunista requer a
existência de trocas. Aqui, a barganha seria o método para realizá-las e,
consequentemente, a moeda, por ser um meio de troca e medida de valor, emergiria
quase que espontâneamente, como qualquer livro-texto sobre moeda pode explicar
(Schumpeter, 1954, p. 53-66).
Em primeiro lugar, deve-se definir por que o debate é importante para o
socialismo6. Roberts (1971), partindo da noção de alienação em Marx, explica que
esta é uma realidade necessária que decorre de uma economia de mercado
desenvolvida. O processo de produção de mercadorias faz com que o trabalhador se
distancie de tal forma do resultado de seu trabalho que a sociedade mercantil coincide
com uma sociedade em que os homens atuam de forma inconsciente para satisfazer
suas necessidades. Desta perspectiva, a sociedade socialista requer uma forma de
organização distinta do mercado e onde a economia é completamente subordinada à
regras estabelecidas que indicam a direção dos valores de uso ao longo do processo de
reprodução material da comunidade.7
Logo, a adoção de um sistema de planejamento econômico seria a melhor
alternativa para eliminar o problema básico da sociedade mercantil, porque substituiria
o sistema descentralizado em um sistema de trocas em que a sociedade se comportaria
como uma grande fábrica ao mesmo tempo em que solucionaria outros problemas
presentes no pensamento marxista, como o controle dos meios de produção.
Concomitantemente, esta forma de organização econômica aproveitaria as virtudes do
mercado reconhecidas pelos socialistas, como, por exemplo a capacidade de expandir
a produção e criar uma quantidade de riqueza material elevada, que permitiria um
6
Para a diferenciação entre socialismo e socialismo científico (corrente socialista que deriva da teoria
de Karl Marx), consultar Engels ([1891] 1975) e o material referente que aplica ao movimento
comunista a dissolução da filosofia clássica e utópica.
7
“Em Marx, alienação é um fenômeno definido como sendo inerente em uma economia de mercado
desenvolvida. Não é um resultado da propriedade privada, divisão do trabalho, mais-valia, ou
exploração, mas surge nas relação de troca do mercado, em um sistema definido por Marx como
‘produção de matérias-primas’. Ele argumentou que, como resultado [desse processo] o homem se
alienava de seu próprio trabalho e sua própria consciência. Assim, o socialismo marxista requer um
sistema de organização diferente do mercado pela qual a economia poderia ser integrada” (Roberts
(1971)). Neste sentido, a economia socialista em Marx é necessariamente uma economia planificada, e
não espontânea ou inconsciente como se organiza a economia de mercado.
4
certo grau de bem-estar de cada indivíduo. Como consequência dessa nova forma de
organização da economia, o conceito distributivo socialista de ‘para cada um de
acordo com sua necessidade’ seria transformado em realidade, inicialmente com o
Estado provendo a cada indivíduo, a cada fábrica, a quantia exata de produtos e
insumos, com o que o problema da alienação e da exploração do trabalho seriam
progressivamente eliminados com o próprio definhamento do Estado do proletariado.8
No fim, o objetivo comunista de uma sociedade sem classes seria atingido.
O debate sobre o cálculo econômico socialista é especialmente importante para
os adeptos do socialismo científico porque ele revela um problema econômico real no
processo de construção do modo de produção comunista não-primitivo. Oskar Lange
(1936) (de forma irônica e séria) deu um grau de relevância científica ao desafio de
Mises que justificaria inclusive a construção de uma estátua em homenagem ao
austríaco em um eventual ministério do planejamento da sociedade socialista. Os
problemas práticos da planificação central na URSS foram estudados com a base
teórica do problema do cálculo, embora o detalhamento disto estar ainda muito
distante para o economista teórico do Ocidente que tem a leitura do debate. Barbieri
(2004) cita que, na URSS, a tentativa de fazer uma economia sem preços
imediatamente após a Revolução de 1917 fracassou de tal forma que tiveram que
‘regredir’ (de um ponto de vista socialista) para uma economia de mercado, com a
Nova Política Econômica em 1921.
Os economistas socialistas, aos quais Mises ([1920] 1935) dirigiu seu trabalho,
acreditavam que podiam estabelecer esse ideal. Tudo começou quando Mises
argumentou que os socialistas, na ânsia de atingir esta economia de não-mercado,
acabaram por ignorar problemas de ordem prática. A presença de preços, destacou
Mises, dava a capacidade de calcular projetos por meio da comparação entre custos e
retornos. Em sua visão, por meio do mercado é possível que o processo produtivo
encontre a solução de uso de recursos adequada que atinge a produção demandada da
forma mais eficiente possível. Todos trabalham com preços de mercado e com
comparação entre custos e benefícios, inclusive os consumidores. Portanto, “quando
não há mercado livre, não há mecanismo de precificação; sem um mecanismo de
precificação não há cálculo econômico” (Mises, 1920), com o que, de acordo com a
teoria austríaca, não há como ter uma economia eficiente que consiga trazer bem-estar
às pessoas9. É interessante ressaltar que o argumento central de Mises não deixa de ser
uma defesa ideológica do liberalismo, mas seu enfoque é de cunho técnico. Na
8
O princípio “de cada de acordo com sua capacidade, para cada um de acordo com sua necessidade”
resume a regra de produção e distribuição comunista de forma muito sintética: cada membro trabalha e
acrescenta ao produto da sociedade aquilo que consegue e consome aquilo que necessita. A frase foi
cunhada por Karl Marx em sua crítica aos projetos socialistas em debate na Alemanha que tinha o título
de Crítica ao Programa de Gotha. Este é um dos textos em que Marx se expressa de forma mais nítida
e direta sobre o comunismo, abordando as questões de transição.
9
Mises tinha em mente uma das propostas de Otto Neurath, que afirmava que o planejamento
econômico dos tempos de guerra poderia ser levado adiante em tempos de paz, através de um sistema
de “contas nacionais” (não relacionado com o conceito atual) que faria com que atendesse
objetivamente as necessidades de cada pessoa, física ou jurídica; em tal situação, o dinheiro seria
dispensável e uma economia poderia funcionar sem moeda (Almeida & Fernández, 2011).
5
verdade, a escola austríaca tem uma filosofia política liberal mais extrema do que os
liberais mais pragmáticos e que é denomina libertarianismo.10
Mas o debate do cálculo econômico socialista é importante também para a
Escola Austríaca porque ele demonstrou que a análise de mercado tinha que se afastar
dos modelos de equilíbrio geral quando os problemas reais de informação e adaptação
eram contemplados. Isto popularizou a percepção do mercado como um processo de
descoberta, onde os agentes interagem usando sua informação em um contexto de
escassez. As ideias de função dos preços, bem-estar e metodologia foram igualmente
consolidadas por conta do esforço austríaco no debate, segundo Kirzner (1988).
Barbieri (2004) resume a importância do debate para os austríacos devido à
diferenciação que conseguiram estabelecer em relação aos neoclássicos. O debate é de
fato um ponto de apoio muito importante para a própria formação e existência da
aproximação austríaca enquanto uma escola de pensamento econômico.
Após Mises lançar seu argumento, vários autores tentaram responder a ele11.
Durante esse tempo, autores socialistas procuraram demonstrar que “através do
modelo walrasiano, poder-se-ia calcular quantidades e preços ótimos em qualquer
economia, tanto socialista quanto capitalista. O problema, então, do planejador central
era simplesmente montar o modelo” (Caldwell, 1997). Haveria então uma
equivalência entre o modelo walrasiano tanto para uma economia de planejamento
central quanto uma de mercado livre. Mas a resposta definitiva só viria a ser publicada
em 1936, com Oskar Lange. Em seu artigo On the economic theory of socialism, ele
argumentava que se os preços fossem entendidos como custos de oportunidade, isto é,
“termos nos quais alternativas são fornecidas”, a fixação de preços não seria apenas
uma peculiaridade do sistema capitalista. Então, numa economia socialista, os preços
seriam dados por um “comitê de planejamento central”. Com isso, as firmas não
existiriam para maximizar lucros, senão para fornecer bens à sociedade seguindo o
critério “a cada um segundo sua necessidade”, e o mecanismo de entrada e saída de
firmas seria emulado por meio de expansão ou contração da atividade. Problemas na
fixação de preços seriam corrigidos por meio de tentativa-e-erro. Haveria também um
mercado de bens de consumo livre, mas um mercado de bens de capital controlado, o
que eliminaria a desigualdade de renda.
A resposta mais conhecida ao desafio de Lange foi dada por Hayek. Ele
demonstrou a dificuldade de se obter a informação necessária para tal
empreendimento, apontou para as dificuldades a respeito de como formular as
equações e de como o sistema era incapaz de se adaptar. Na interpretação de Hayek,
seria um esforço completamente infrutífero tentar fazer um modelo walrasiano
completo da economia para criar artificialmente um sistema socialista de preços que
fosse justo para a nação. Em dois artigos, Economics and Knowledge (1937) e The Use
of Knowledge in Society (1945) ele argumenta que nenhum planejador central tem
informação suficiente para decidir o que é melhor para a sociedade, porque, “o
10
Sobre a diferença entre liberalismo e libertarianismo, ver Freeman (2001). De modo resumido, o
liberalismo é uma corrente muito mais abrangente do que libertarianismo, que seria a vertente mais pura
dos ideais de liberdade individual.
11
Parte dessa seção também usa bastante parte da seção 2 de Almeida & Fernández, 2011.
6
conceito de equilíbrio [geral] é de nenhuma significância” (Hayek, 1937, p. 36), Em
outras, as relações econômicas e são dinâmicas e dignas de análise porque ocorrem
fora do equilíbrio. O problema surge com a expressão “informação dada”, que é um
conceito relevante para modelos teóricos, mas não se aplica à realidade. Então, Hayek
começou a desenvolver uma teoria com ausência de um equilíbrio geral na economia.
Faltaria ao planejador central não só saber as informações necessárias para o cálculo,
mas também não teria como determinar quais delas seriam as efetivamente relevantes.
O saldo do debate foi que, tomando emprestado o jargão militar, o socialismo
obteve uma vitória tática porque demonstrou que não há diferença entre uma economia
gerida por um planejamento central e conduzida por um mercado livre e foi assim
visto como vencedor do debate por um bom tempo. Mises havia sido derrotado na
teoria, com a demonstração de que a economia socialista poderia funcionar sim. O
problema era apenas a praticidade de tal forma de organização da produção e
distribuição: como construí-la na prática? Esta questão aberta, que já era tateada pelos
socialistas se torna extremamente relevante a partir daqui. Assim, seria precipitado
anunciar a derrota dos austríacos aqui, pois eles obtiveram uma vitória estratégica que
se revelou com o colapso da União Soviética e eventualmente selando o debate.
Em termos de progressão de programas científicos, o debate sobre o cálculo
econômico socialista pode ser visto como o precursor de muitos paradigmas que
inexistiam antes do fim da Economia Política Clássica. Por exemplo, o programa de
pesquisa em econometria (em que Lange se tornou um dos precursores da combinação
de métodos quantitativos desenvolvidos no Ocidente com estratégias de planificação
do Leste, e da teoria da programação aplicada à economia), o desenvolvimento da
teoria do valor objetiva em uma forma mais moderna (que se tornou evidente com a
contribuição de Sraffa), a definição de complexidade em economia (a adoção de
modelos dinâmicos com ordem espontânea e estudos com modelos fora de um
equilíbrio), os problemas agente-principal (o que fazer com o homem que controla a
informação?) foram desenvolvidos como ramificações de problemas não solucionados
no debate sobre o cálculo. Por conta dos inúmeros aspectos téoricos das ciências
econômicas do século XX remontarem ao desafio de Mises, não seria inadequado
pensar na questão da transição do cálculo realizado no capitalismo para o cálculo a ser
efetuado na economia socialista como o problema teórico mais abstrato na fronteira da
ciência econômica.
Mas o principal feito do debate sobre o cálculo econômico socialista foi ter
traçado uma linha divisória muito nítida entre dois grupos que correspondiam às
transformações econômicas reais que se abririram conforme a hegemonia britânica
acabou e o mundo entrou na bárbarie da Primeira Guerra Mundial. De um lado, os
economistas que acreditavam na organização da produção e distribuição socialista, de
outro, aqueles que eram contra tal meandro econômico e apontavam muito
refinadamente os problemas teóricos de uso dos recursos em um ambiente sem
mercado, sem preços e sem propriedade privada. Aqui, o alto nível de abstração
possibilitou inclusive, como já foi dito, o uso dos modelos neoclássicos pelos
socialistas para a construção de seu argumento de que, analiticamente, as economias
centralmente planejadas e de mercado seriam idênticas. Barbieri (2004) destaca que as
7
três escolas envolvidas no debate sobre o cálculo (a marxista, a austríaca e a
neoclássica) encontravam pontos de contato e diálogo, visto que tinham um objeto
definido em comum, mas que a linha de divisão sempre era mercado versus
planejamento, cuja contradição mais elevada era capitalismo versus socialismo. Neste
embate de grupos muito claros, onde entraria Keynes? Estaria ele ao lado dos
austríacos, que se esforçavam por mostrar que a construção da economia planificada
era uma tarefa errada e impossível ou do lado dos socialistas, que lutavam para
assimilar os métodos analíticos enquanto ferramenta que tornava o planejamento
econômico nacional uma realidade?
3. Keynes entre Hayek e Lange
Keynes era um polemista nato, apesar de considerar que a controvérsia com
Hayek “era apenas mais uma das várias tarefas que ele sustentava como se fosse
malabarismo, tanto nacional quanto internacional, público ou privado.” (Wapshott
(2011), p. 94). Keynes era não somente um acadêmico de formação vasta e profunda,
mas principalmente um homem público que se envolveu por inteiro na vida política da
época. Apoiador do Partido Liberal, várias vezes era convidado para visitar a Downing
Street, residência oficial e sede do chefe do governo do Reino Unido, para expor suas
ideias. Quando o Partido Conservador assumiu o poder em 1932, suas ideias de
política heterodoxa fez com que o governo parasse de consultá-lo, embora o
distanciamento já tivesse iniciado a partir da posição crítica de Keynes no Tratado de
Versalhes em relação às imposições feitas pela Inglaterra e demais vencedores sobre a
Alemanha após a Primeira Guerra Mundial.12 A diminuição de sua importância
política fez com que ele voltasse sua atenção para a preparação de um novo livro. Em
uma carta dirigida a Hayek, ele escreveu que “Eu estou tentando reformar e melhorar
minha posição central, e provavelmente há uma melhor maneira de usar meu tempo do
que em uma controvérsia” (Wapshott (2011), p. 139). E essa posição culminaria com a
publicação da Teoria Geral do Juro, do Emprego e da Moeda (TG), depois da escrita
de diversos artigos e panfletos, como o The End of Laissez-Faire e o A Treatise on
Money, que sistematizou seus pensamentos em torno de uma unidade teórico e que
entrava no debate sobre a noção de capital. A reação de Hayek a essa obra é a
primeira tentativa de empurrar Keynes para os problemas de teoria econômica pura.
Podemos verificar que, depois da controvérsia do capital com Hayek, Keynes
não se envolveu em nenhuma discussão acadêmica extensiva e investiu seu tempo na
preparação da TG. Foi seu modo de desenvolver e promover a sua filosofia,
basicamente armando a revolução keynesiana que encontrava condições objetivas
muito claras de sucesso com o fim do laissez-faire. De fato, a única controvérsia
teórica em que se envolveu no período foi sobre a relevância da econometria com
Tinbergen, em 1939. Considerando a ênfase prática de Keynes em solucionar
problemas concretos e políticos oriundos da ameaça, tanto do nazismo em potencial,
quanto da já formada União Soviética, podemos tatear como Keynes se posicionaria
no debate sobre o cálculo se abordarmos sua interlocução com dois dos mais
proeminentes antagonistas do problema do cálculo econômico socialista: Friedriech
Hayek e Oskar Lange.
12
O texto crítico The Economic Consequences of the Peace sobre os acordos no Tratado de Versalhes
contém as razões de Keynes para abandonar seu posto no governo (no British Treasury e como membro
do conselho econômico). Sobre isso, ver Szmercsányi (1978).
8
A relação entre Keynes e Hayek é uma das mais discutidas em economia.
Wapshott (2011), por exemplo, escreveu um livro inteiro detalhando a relação entre
eles, no nível profissional e pessoal. Aqui, é necessário focar essa relação tentando
estabelecer um elo entre os autores para que se possa fazer alguma conexão com o
debate do cálculo socialista. Em sua análise do embate que acredita ser o mais
importante entre economistas do século XX, Wapshott (p. 47) relata que Keynes e
Hayek se encontraram pela primeira vez em 1928. Discutiram logo no primeiro
encontro o papel da taxa de juros na economia e estavam mutuamente interessados nas
ideias do outro. Formaram uma amizade sem problemas, mesmo com as diferenças de
abordagem. Posteriormente, Lionel Robbins convidou o austríaco para a London
School of Economics com o intuito de fazer com que ele elaborasse uma alternativa a
Keynes, cujas ideias estavam começando a tomar forma em algo diferente da
ortodoxia fiel à doutrina liberal mais pura. Isto resultou em uma série de palestras e
eventual admissão de Hayek no quadro de professores desta faculdade em 1931.
O primeiro debate real foi quando Hayek publicou uma resenha contrária ao
livro A Treatise on Money e que iniciou a controvérsia sobre o capital com Keynes e
Sraffa em Cambridge. Os observadores argumentam que a controvérsia foi
inconclusiva, mas parece que Hayek acabou levando a pior. Isso se tornou claro
quando Keynes publicou a Teoria Geral. A resposta de Hayek, aguardada por toda a
comunidade de economistas do Reino Unido, nunca veio, e especular porque sua
réplica não ocorreu dá margem a um debate próprio13.
Hayek trabalhou durante muito tempo em um modelo alternativo ao de Keynes,
que só viria a ser publicado em 1941, com o título de The Pure Theory of Capital.
Com a Segunda Guerra Mundial acontecendo, além do fato da revolução keynesiana
estar ganhando fôlego e deste livro conter problemas de edição, a alternativa de Hayek
foi considerada operacionalmente insuficiente para a solução dos problemas
econômicos em jogo. Posteriormente, quando Keynes faleceu, Hayek afirmou que
para bem ou para mal, Keynes havia se tornado o economista mais influente da época.
A admiração parece realmenter ter sido recíproca: antes de morrer, de acordo com
Lambert (1963), Keynes escreveu uma carta a Hayek comentando o livro Caminho
para Servidão de 1944 em que afirmava que “moralmente e filosoficamente”
concordava com a obra de seu adversário intelectual. Mas em relação à ideia de que o
planejamento não poderia ser eficaz, Keynes discordava claramente da posição do
austríaco ao escrever que “você [Hayek] subestima a praticalidade do meio-termo
[entre mercado e planejamento]” (Keynes apud Lambert (1963) e Letiche (1971), p.
448, tradução própria). De fato, Hayek vai dedicar suas obras The Constitution of
Liberty e Law, Legislation and Liberty a responder a esse questionamento, isto é, o de
formar uma teoria que coloque um papel determinado para o Estado.
Em relação à resenha ao Treatise, um ponto nos interessa: ao responder a
crítica de Hayek, Keynes afirmou categoricamente que ele mesmo não acreditava em
várias ideias contidas naquele livro devido ao fato de que o Treatise era um livro cujas
ideias estavam ainda em desenvolvimento. De fato, quando Hayek fez sua resenha
crítica, Keynes já havia abandonado e modificado muitos pontos. Além do mais,
houve diversas falhas de comunicação e de interpretação também por causa do texto
não ser definitivo em termos teóricos. Isso abriu naturalmente muitos espaços para a
construção de falácias e desentendimentos no debate conseguinte conforme Wapshott
(2011), (p. 96-101).
13
Ver Caldwell (1998) e Howson (2001).
9
O debate que se seguiu ao Treatise continha, porém, um ponto crítico
levantado por Hayek muito importante. E Keynes não tinha contornado tal problema.
Pelo contrário, ele está bastante presente na Teoria Geral: a agregação de variáveis.
Ao criticar o conceito de Keynes sobre lucro, Hayek afirma que a definição de lucro
de Keynes “serve bem para lucros individuais, mas se torna errônea quando é aplicada
para os empreendedores como um todo” (Hayek, 1931). Isto porque na Teoria Geral,
parece que o desencaixe estrutural entre os investimentos individuais e a reprodução
física total do sistema são solucionados de antemão pelo uso de agregados.
É interessante notar que a questão da justificativa metodológica da agregação
das variáveis não se tornou o foco do debate posterior, nem no debate subsequente
entre Hayek e Sraffa. Talvez por isso a solução imediata do problema da agregação
tenha se tornado um dos pilares da macroeconomia tradicional: o tratamento das
variáveis consumo, investimento, como agregados permite a fácil formulação de
esquemas econômicos abstratos para a elaboração de políticas econômicas14. E,
curiosamente, essa prática agregativa acaba sendo um recurso metodológico relevante
na elaboração de um planejamento central rigoroso, como atestam os diversos
modelos de programação econômica em nível alto de abstração, apresentados por
exemplo, no clássico Linear Programing and Economic Analysis de Dorfman,
Samuelson e Solow (1958).
Outro ponto a se destacar era também a base metodológica de cada um, e que
muito provavelmente gerava um “diálogo de surdos”. Hayek usava um framework
microeconômico, em que o foco era o indivíduo e como ele poderia influenciar a
economia. Keynes, por outro lado, encaminhava justamente para a inovação
mencionada (desconsiderando a perspectiva da Economia Política Clássica e partindo
do paradigma da já estabelecida Neoclássica): ele estava analisando a economia de um
ponto de vista ‘de cima para baixo’, em que se a análise consiste em ver a oferta e a
demanda como agregados sólidos influenciando a economia como um todo. E é a
partir daqui que ocorre o descolamento da macroeconomia da microeconomia, que vai
ser completado com o advento da revolução keynesiana.15
Em resumo, Keynes e Hayek incorporaram posições antagônicas em relação à
teoria econômica, mas partilhavam de valores semelhantes, como liberdade individual
e racionalidade. Em específco sobre o planejamento econômico nacional, como foi
afirmado acima, é notório que enquanto Keynes achava ser possível, desejável e
positiva sua realização, Hayek imaginava que sua implementação seria o início do fim
da sociedade livre que fora formada com tanto custo ao longo de séculos de
civilização. Expressando-se diretamente em relação a este ponto, Keynes, no dia 14 de
14
Garrison (2005) demonstra que a macroeconomia austríaca argumenta que é possível fazer modelos
‘desagregados’, que demonstram as mudanças estruturais da economia e considera a identidade
poupança-investimento uma perversidade (p. 503). O problema da agregação, eixo central para a
formulação básica do conceito de renda ou riqueza abstrata encaminhou para ser solucionado
idealmente pelo modelo de Sraffa (1960) com a construção da mercadoria-padrão, anos após o debate
inicial. Esta é uma linha que já se afasta do campo de debate analisado neste artigo.
15
Avaliamos que a separação entre micro e macroeconomia foi um movimento de retrocesso da ciência
econômica que dificultou ainda mais o retorno à Economia Política Clássica e prosseguimento correto
dos economistas ao materialismo histórico. Piero Sraffa, diferente de Keynes neste ponto, encaminhou
os economistas de volta para aquele ponto de fronteira científica antes da consolidação da teoria
marginalista. A separação entre micro e macroeconomia também é resolvida pelos austríacos de acordo
com Garrison (2005).
10
Março de 1932, como participante de uma série sobre Estado e indústria em um
programa radiofônico, fala sobre o conceito de “planejamento estatal” e tenta explicar
esta nova ideia que está no ar causando tanto medo entre os adeptos do mundo livre:
“É chamado de planejamento - planejamento estatal [...] Não é socialismo, não é
comunismo. Podemos aceitar a vantagem e até mesmo a necessidade de planejamento
sem ser um comunista, um socialista ou um fascista.” (Keynes (1932)).
Portanto, Keynes se esforça para afastar o planejamento da ideia de fim do
capitalismo e para construir uma noção de liberalismo alinhada com a economia
mundial que tomou o caminho da Guerra em 1914 e enterrou o laissez-faire clássico
que condizia com a hegemonia britânica. Sucintamente, Keynes, diferente de Hayek,
acreditava que o Estado tinha um papel maior para garantir aquele tipo de liberdade
que ambos autores almejavam e defendiam. O alerta principal do economista britânico
era o de que, sem esse quadro institucional que regrasse adequadamente a lógica de
mercado, a sociedade baseada na propriedade privada e nas trocas estaria fadada ao
declínio.
Já em relação ao antagonista de Hayek no debate sobre o cálculo econômico na
sociedade socialista, Oskar Lange nunca se encontrou pessoalmente com Keynes.
Porém eles chegaram a trocar cartas durante a controvérsia sobre métodos
econométricos, em que o autor da Teoria Geral “tinha uma opinião moderadamente
boa” do polonês segundo Louçã (1999). Adepto confesso do materialismo histórico,
Oskar Lange esteve razoavelmente envolvido em interpretar o keynesianismo. Lange
tentou elaborar um modelo keynesiano da economia, um ano após Hicks ter desenhado
o IS-LM, em um artigo intitulado The Rate of Interest and the Optimum Propensity to
Consume16. Ele também fez interpretações contestáveis da obra de Keynes, afirmando
que o conceito de preferência pela liquidez já estava presente em Walras (algo que a
maioria dos economistas parece não concordar). Embora seu modelo e suas
observações fossem publicados após o IS-LM, sua visão da teoria de Keynes poderia
ser considerada um modelo semelhante à síntese neoclássica. Por isso, o “Keynes de
Lange” poderia estar sendo divulgado “sem um entendimento completo da ruptura de
Keynes com a ortodoxia” (Olesen, 2006). Essa maneira de se apropriar do pensamento
econômico keynesiano pode ter ocorrido porque Lange estava mais interessado, ao que
tudo indica, em fazer com que a teoria de Keynes se adaptasse aos seus próprios
escritos17.
16
Louçã (1999) escreve que “muitos economistas compartilhavam da visão da TG e tentavam
formalizar em um modelo exato, ignorando as hesitações de Keynes em relação à formulação
matemática de teorias econômicas.” Para os pós-keynesianos, este tipo de leitura da teoria de Keynes
eliminou todo conteúdo revolucionário contido na refutação da lei de Say, tanto na Teoria Geral, quanto
em outros textos mais claros sobre esse ponto, como por exemplo no A Monetary Theory of Production
e The distinction between a co-operative economy and an entrepreneur economy.
17
Para mais detalhes ver Olesen (2006) e Toporowski (2012). Joan Robinson, ao comentar sobre o
artigo de Lange, escreveu que “[era] tolice [tentar adaptar Keynes à teoria clássica, não o contrário],
mas formalmente correto”. Schumpeter, por outro lado argumenta consoante a Lange que “a análise
keynesiana da Teoria Geral não passa de um caso especial da teoria geral de Walras.” (Schumpeter,
1954, p. 1082). A ruptura de Keynes com a tradição ortodoxa que trabalha com o aceite da Lei de Say é
extremamante enfatizada pelos pós-keynesianos. Este seria o elemento mais revolucionário da teoria de
Keynes e que é sempre encoberta e esquecida quando se tenta juntar Keynes com a escola neoclássica,
justamente o feito de Hicks, arqui-inimigo da corrente pós-keynesiana. Segundo Letiche (1971), Lange
também acreditava que a teoria keynesiana do desemprego poderia explicar as teorias neo-marxistas de
imperialismo.
11
Aparte dessa tentativa de Lange de dar um viés walrasiano à teoria de Keynes
(da mesma forma que ele fez com o planejamento econômico) houve outra
controvérsia em que eles se envolveram. Keynes não era simpático ao nascente
desenvolvimento da econometria18. Segundo Toporowsky (2012), Keynes
argumentava que “métodos estatísticos não podiam refutar teorias, porque sempre
havia uma possibilidade que um teste qualquer de correlação fosse erroneamente
especificado.” A economia política de Oskar Lange faz um uso bem extensivo dos
métodos quantitativos sem que a análise qualitativa seja posta de lado. Aliás, Oskar
Lange parece ser um dos poucos economistas que capturou a problemática da
qualidade e quantidade da teoria do valor, algo que começou a ser resolvido por Karl
Marx e que permitiu o avanço do programa da Crítica da Economia Política em
direção à formulação do materialismo histórico.
Com isso, é possível concluir que o diálogo de Keynes com Lange não se
relacionava com o problema do cálculo diretamente, mas sim como uma faceta da
controvérsia principal com Tinbergen sobre a validade de métodos econométricos.
Curiosamente, os austríacos têm também certa aversão à econometria devido à sua
crítica ao equilíbrio geral e ao reducionismo neoclássico e à sua ênfase na
complexidade das ciências sociais, que tornariam relações econométricas mais
espúrias, principalmente em relação à previsões, de acordo com Rizzo (1978).
Diferente com Keynes: para ele, a limitação das análises e modelos de previsão de
demanda estão completamente infundados devido ao processo circular de
determinação da dinâmica econômica. A incerteza enquanto elemento central da
economia monetária da produção torna impossível fazer cálculos. Este parece ser, para
efeitos de conclusão, o vínculo mais óbvio sobre onde colocar Keynes no debate sobre
o cálculo econômico socialista.
4. A eliminação do cálculo em Keynes
Keynes foi um economista que também tinha uma sólida formação estatística e
que possuía uma teoria própria sobre probabilidade (ver seu livro A Treatise on
Probability). Para ele, era claro o quanto a incerteza poderia influenciar a economia e
que expectativas de longo prazo não podiam ser racionais, ou seja, “ele não acreditava
que empreendedores podiam simplesmente fazer uma lista contendo cada
possibilidade futura, atribuir uma probabilidade para cada item da lista e então calcular
um valor esperado” (Butos & Koppl, 1997). Os animal spirits, expressões genuínas
dos desejos últimos dos investidores em busca de lucros, estão presente nas estruturas
de produção e tornam o mercado inerentemente instável. Esta visão do agente que faz
a decisão do investimento retira completamente a base de cálculo ou de estudo das
condições objetivas da demanda: para Keynes, o possuidor de dinheiro não está
preocupado em conhecer as condições do mercado. O detentor da riqueza abstrata, do
dinheiro, da liquidez absoluta, do poder social último de conversão de valor em mais
valor não busca se esclarecer sobre a demanda que efetivará seu ciclo de expansão.
18
A controvérsia Keynes-Tinbergen se iniciou quando Keynes publicou uma resenha criticando o livro
publicado por Tinbergen sob os auspícios da Liga das Nações, A Method and its Application to
Investment Activity de 1938. Keynes critica o método de Tinbergen para estabelecer correlações entre
variáveis, pois elas não permitiriam estabelecer relações de causalidade ou rejeição estatística sem
esbarrar em vários problemas metafísicos, de ordem filosófica insolúvel. Estes problemas seriam
aqueles referentes à incerteza e subjetivismo. A discussão sobre como responder ao questionamento de
Keynes influenciou os métodos econométricos contemporâneos. Sobre isso, ver Louçã (1999) e Jolink
(2000).
12
Isto seria um problema do Estado. Neste sentido, podemos perceber que o problema
do cálculo em Keynes não se coloca para o indivíduo, mas para a instância
responsável por manter um certo nível de demanda.
Como para Keynes, a taxa de juros decorre do próprio espírito positivo do
investidor, parece que não existem condições objetivas que permitem o cálculo de
ajuste individual às demandas sociais. Na perspectiva usual, o investidor é tido como
um analista que coleta as informações sobre o mercado em que quer atuar, faz alguns
cálculos baseados nesta análise conjuntural e aí sim se decide sobre o investimento.
Para Keynes, ao contrário: não há porque coletar informações, o primeiro passo é a
realização do investimento enquanto puro e simples salto da liquidez para uma posição
menos líquida, cuja contrapartida seria um retorno maior que a taxa de juros referente
ao ativo líquido vendido. A única tarefa é a comparação entre a taxa de juros e a
eficiência marginal do capital em questão. A efetuação do investimento em sua
determinação concreta, ou seja, em sua expansão produtiva e resultante em uma oferta
específica, não é uma função do investidor, mas do Estado. É por aqui que se pode
perseguir a noção de socialização dos investimentos em Keynes: um capitalismo
coordenado de determinada maneira, com o que o problema do cálculo para o produtor
individual desaparecia necessariamente.
Admitindo que a incerteza é insuperável, Keynes não chega a entrar no debate
do cálculo pois parece embutir em sua teoria um Estado responsável por evitar a
frustração dos investimentos individuais. Com isso, parece que existe, além dos dois
motivos políticos levantados na introdução como explicação para a ausência de
Keynes no debate, um terceiro ponto, que se sustenta na base teórica de seu
pensamento econômico. Este terceiro ponto precisaria ser estudado com mais cuidado,
visto que é desenvolvido a partir do enfoque pós-keynesiano, mas não se pode negar
que é muito fiel ao intento geral de Keynes de elaborar uma visão própria sobre a
economia.
Afinal, por que Keynes não participou do debate sobre o cálculo econômico
socialista? O levantamento da pesquisa aqui iniciada aponta para uma resposta tripla,
que parece fornecer a primeira base para a busca de maiores detalhamentos sobre a
noção de planejamento econômico em Keynes:
Primeiro, o debate foi aberto dentro de uma tradição à qual Keynes se opunha,
qual seja, a escola austríaca. Para participar do debate, precisaria portanto usar uma
linguagem específica, além do que o alto nível de abstração tornava o debate muito
distante das questões política relevantes do momento. Nos anos 1920, Keynes
preparou sua teoria sem se preocupar com questões demasiadas técnicas: tratava-se
apenas de dar algum respaldo ao Estado nascente do fim do liberalismo clássico e por
isso percebeu que o problema do cálculo econômico socialista posto pelo arcabouço
austríaco não teria influência prática sobre os pontos que julgava importante.
Segundo, a participação no debate demandava que todo participante tivesse
uma posição muito clara em relação à viabilidade da economia socialista planejada:
apesar do debate ser técnico, a técnica estava subordinada à política e os debatentes
tinham que tomar uma posição. Keynes se esforçou justamente para evitar os extremos
em confronto, a economia liberal pura e a planificação central, criando uma síntese
entre mercado e controle sem lastro teórico rigoroso. Politicamente, era relevante
permanecer “em cima do muro”, visto que a social democracia já era vista como a via
vencedora sobre os revolucionários do Ocidente e o caminho do meio ou reformismo
abria a possibilidade da modificação do capitalismo sem sua superação.
Terceiro, o conceito de incerteza ressaltado pelos pós-keynesianos parece
explicar porque o pensamento econômico de Keynes resolve de antemão o problema
13
do cálculo econômico individual: a questão de se pautar em dados sobre os mercados
para tomar decisões corretas não faz parte da perspectiva do investimento keynesiano.
Aqui, o investidor tem a tarefa apenas de colocar à disposição seus recursos privados,
que serão utilizados publicamente por um agente que saiba operar os investimentos
produtivos que garantam o retorno monetário. Neste sentido, o problema que deveria
ser solucionado encontra-se já resolvido pela descrição de Keynes sobre a socialização
dos investimentos, algo que deveria ser melhor explorado dentro da teoria do
economista mais influente do século XX.
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