BREVES REFLEXÕES SOBRE A IDENTIDADE FEMINNA MOÇAMBICANA:
NIKETCHE, UMA HISTÓRIA DE POLIGAMIA
Vera Elizabeth Prola Farias*
Sílvia Helena Niederauer*
O ritmo das Canções de Lamento pode às vezes ser rápido –
como o passado projetivo –outras vezes pode ser lento como o
entre-tempo.O que é crucial nessa visão do futuro é a crença de
que não devemos simplesmente mudar as narrativas de nossas
histórias, mas transformar nossa noção do que significa viver,
do que significa ser, em outros tempos e espaços diferentes,
tanto humanos como históricos.
Homi Bhabha.
O homem é aquele por quem todos os sinos dobram.
Paulina Chiziane
Resumo:
Niketche, uma história de poligamia é um romance publicado em 2002, de autoria da escritora
moçambicana Paulina Chiziane. Rami, primeira mulher de Tony, depois das continuadas ausências do
marido, decide investigar a realidade de seu casamento.Começa, assim, um percurso de encenação das
múltiplas possibilidades identificatórias da nação que se revela marcada pelos significados do processo
colonial.As mulheres representam a pluralidade cultural das identidades moçambicanas e as
consequências do silenciamento que lhes foi imposto. O romance aponta, então, para a reconstrução
identitária de moçambique e a necessidade de recontar sua história sob a visão prismática da diferença.
Palavras- chave: Identidade; Diferença; Feminino moçambicano.
Pensar a cultura Moçambicana implica pensar a diferença na diferença tantas
suturas históricas tem tecido seus contornos identitários e marcado o complexo mosaico
de suas representações.Daí a tensão metodológica que sempre ronda os que aventuram
um olhar “de fora” - mesmo que na direção ética da consciência da incompletude do”
achamento”- aos conteúdos dessas representações, já que a representação atua
simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações no seu interior (Hall,2004)).
Ao que acrescentamos a citação de Inocência Mata
[...] o discurso crítico sobre a literatura, apoiado em formulações teóricas
diversas, será sempre uma tentativa de compreensão do lugar do literário na
construção da imagem da comunidade representada. Numa zona de diálogo
com outros saberes... Isso convida -ou obriga - à integração do discurso
crítico sobre a literatura numa zona de diálogo com outros saber obra (Mata,
2003, p.295).
*
Professoras Doutouras do Curso de Letras do Centro Universitário Franciscano- UNIFRA
Assim, para facilitar a evidência de nexos ideológicos e histórico culturais na
análise é preciso buscar as marcas que se configuram nas visíveis contradições da vida
social, especialmente em função dos conflitos históricos estabelecidos , que instados por
categorias de identidade, colonialismo e gênero-- enquanto categorias construídas pelo
discurso-- colocam-se imperativas na geografia e na história de Moçambique.
Sob essa perspectiva e no entendimento de que a afirmação das identidades
nacionais é historicamente específica, com frequência marcada pela dominância de um
paradigma de gênero masculino - o que impele os homens a construir posições de
sujeito para as mulheres “ tomando a si próprios como referência (Woodward in
SILVA,2004) -é que Niketche, uma história de poligamia (2008), de Paulina Chiziane
se constitui uma narrativa organizada a partir de
conflitos recorrentes na cultura
moçambicana e que (des)velam a ideologia que lhe está subjacente.Narrada por uma
voz feminina que permite descobrir seus ecos autorais, a narrativa apresenta
a
constituição de uma mulher que pari , de seus elementos constituintes culturais, um
protagonismo de confronto com a história travestida de sina.E mais, estrategicamente
vai deslocando seus conflitos e contradições para a nação moçambicana.
Rami, a personagem principal, é casada há mais de vinte anos com Tony, um
alto funcionário da polícia, com quem tem vários filhos.Descobre que seu marido é
polígamo e que em seu casamento ela é apenas uma das personagens.Daí decorre
seqüência actancial que, partindo do sentimento de desamparo de uma mulher “de lugar
nenhum”
A minha vida é um rio morto.No meu rio as águas pararam no tempo e
aguardam que o destino traga a força do vento.No meu rio, os antepassados
não dançam batuques nas noites de lua.Sou um rio sem alma, não sei se a
perdi e nem sei se alguma vez tive uma. Sou um ser perdido, encerrado na
solidão mortal (CHIZIANE, 2008, p.20).
Anuncia um discurso singular de uma subjetividade atravessada por signos
espaciais e temporais, que no decorrer da história, se revelarão como dispositivos
necessários de força significativa.Também é possível prever que o conteúdo dramático e
desesperado de Rami contaminará sua trajetória evidenciando a configuração de
identificações identitárias previamente estabelecidas.A partir de seu drama pessoal
Rami articula a situação da mulher e a história de Moçambique num sofisticado
entrelaçamento entre o público e o privado que aponta para um tempo em espaço
determinados , desregulando a tradição e seus correlativos culturais e sociais.
Isso implica a deliberada opção narrativa de ultrapassagem dos contornos
ficcionais e a busca da compreensão das materialidades de interações intensas e
complexas quer durante a situação colonial de Moçambique quer nos novos contextos
da pós-independência. É imperativo olharmos, ainda que de forma simplificada, os fios
que teceram os eventos históricos responsáveis pelo processo de construção e
negociação das identidades de gênero: Moçambique foi descoberto por Vasco da Gama
em 149 8 e os portugueses tomaram posse da região costeira em 1505. No século XX,
após séculos de colonização, o movimento nacionalista surge na década de 50 e ganha
impulso em 1962, com a criação da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), de
orientação marxista, sob liderança de Eduardo Mondlane. A Frelimo inicia guerrilha
contra os portugueses e, em 1964, conquista o norte do país. Mondlane é assassinado
em 1969, no exílio, e substituído por Samora Machel. O avanço da guerra anticolonial
nos territórios portugueses da África reforça a crise da ditadura salazarista em Portugal.
Com a Revolução dos Cravos, em abril de 1974, a administração colonial portuguesa
desmorona. Moçambique obtém independência total em 1975, sob o governo marxista
da Frelimo, chefiado por Machel. Nesse espaço de luta dos colonizados a questão
identitária se faz visível, ou seja, somente quando a soberania portuguesa - e com ela a
idéia de uma cultura superior - é questionada é que se abre uma fenda, no interior da
cultura, permitido o resgate de signos “apagados”pelo discurso colonial, segundo
Bhabha (2005) “O discurso colonial, é um aparato de poder - da colonização - que
reconhece e repudia a diferença cultural, criando ‘povos-sujeitos’ e legitimando os
estereótipos do colonizador e do colonizado.
O sujeito dominado e o dominador estão estrategicamente colocados no interior
do discurso colonial, o qual organiza e mantêm assimetrias de posicionamento social.
Sua constituição põe em circulação significações que se projetam e persistem no
período posterior à situação colonial quando acontece a ruptura formal com regimes ou
instituições.
Os discursos coloniais, também aprofundaram a separação dos papéis de gênero,
fomentando uma sociedade racialmente segregada onde os homens trabalhavam no
espaço público, enquanto as mulheres eram relegadas para a esfera doméstica. De fato,
os papéis de gênero são formas de articular identidades.Através destes discursos de
identidade cultural, homens e mulheres são levados a comportar-se de forma
considerada culturalmente aceitável; especialmente as mulheres, na ordem social
moçambicana, são submetidas a forças que as subalternizam duplamente.
É desse “lugar minado” de significações que circulam para colocar em
desvantagem os grupos ainda subordinados que surge a voz potente de Paulina
Chiziane, mostrando realisticamente na sua escritura um espaço devastado, decorrência
do colonialismo e das subseqüentes lutas de libertação; e a possibilidade de criação de
um discurso que investe no anúncio de novos processos de significação da identidade,
notadamente, da identidade feminina em Moçambique. A questão identitária permeia e
potencializa a moderna literatura moçambicana como testemunha Almiro Lobo:
Niketche é a manifestação mais nova da necessidade de tal como acontece
em literaturas de afirmação recente como a nossa,revisitar os contornos com
que se formata a nossa identidade cultural.E esta atitude, não sendo
inovadora na literatura moçambicana arrasta consigo o caudal volumoso da
herança... De facto, a modernidade literária moçambicana elegeu, como
assunto privilegiado, a questão da identidade cultural (2006, p. 77 e 78).
Niketche, dança de amor e erotismo, tece ritualisticamente os passos entre
tradição e modernidade num lugar em que se movem personagens que questionam, o
tempo todo, o mundo alicerçado na visão patriarcal. Nessa perspectiva, Niketche é mais
do que uma história de poligamia; é uma coreografia que pressupõe uma conexão
orgânica entre os signos configurativos do passado, do presente e do futuro, que começa
a ser tecido.Assim
Dançar.Dançar a derrota do meu adversário.Dançar na festa do meu
aniversário. Dançar sobre a coragem do inimigo.Dançar no funeral do ente
querido.Dançar à volta da fogueira na véspera do grande combate. Dançar é
orar. Eu também quero dançar.A vida é uma grande dança (CHIZIANE,
2008, p.18).
Na dança, o posicionamento da protagonista Rami põe em circulação, na
narrativa, os contornos culturais de Moçambique mediados pela conflitiva das relações
homem\mulher.Deslocam-se nessas relações os códigos culturais do norte e do sul,
estabelecendo eixos históricos de contraposições que justificam o questionamento
identitário: Rami é do sul de Moçambique, onde a cultura hegemônica da metrópole se
impôs de forma mais efetiva do que no norte e sabe que “a pressão do regime colonial
foi mais forte no sul do que no norte” (p.39). As mulheres de Tony se inserem num
“circuito da cultura” que partindo das identidades pessoais apontam para as tensões
sociais de gênero e implicam no (des)velamento nas práticas de significação e nos
sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos (Hall,2004).
Rami , na busca desesperada de reconquistar Tony, agencia um processo pedagógico de
descobrimento de si mesma e de Moçambique ,em cada uma das mulheres do
marido.Esse passo impulsiona a dança de libertação e contamina a narrativa da nação.
Mas, a partir disso, os significados estratificados de poder vão se desmoronando
ao ritmo da degradação de Tony e do investimento de Rami em signos cambiantes do
arcaico e do moderno que circulam entre os do “norte” e os do “sul”, numa dança
potencialmente redentora.Rami fortalece o discurso feminino na dramática explicitação
da sua diferença – apagada na homogeneidade cultural imposta pelo processo colonial,
Amar um homem? Nunca mais. Hei-de arranjar um que me ame a mim. Heide ser segunda esposa de alguém, tal como dizia a Lu. Nunca mais a
primeira. Quero ser tudo: vento, peixe, gota de água, nuvem branca,
qualquer outra coisa menos mulher (CHIZIANE, 2008, p.18).
Às demandas de Rami correspondem, geometricamente, às contradições de
Tony, e com ele àquelas de uma cultura autenticada pelo poder patriarcal, legitimada
pelo discurso colonial que aprofundou a separação dos papéis de gênero, fomentando
uma sociedade racialmente segregada onde os homens usufruíam do espaço público,
enquanto as mulheres eram relegadas ao espaço doméstico. Rami afasta-se do discurso
dominante na medida que consegue assumir uma posição, em relação a Tony, em
relação ao que não é, quebrando a relação de poder existente.Nesse movimento opera-se
um deslizamento de sentido para todo o sistema social moçambicano: numa erótica
dialética a descoberta dos contornos e potência de seu corpo, Rami descobre a geografia
cultural de Moçambique, emoldurada por uma história que precisa ser recontada.
Referências
BHABHA, Homi. O Local da Cultura.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
CHIZIANE, Paulina. Niketche,uma história de poligamia. Editorial Caminho, 2008.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós- modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
2005.
LOBO, Almiro “.Niketche, uma história de poligamia: a moçambicanidade revisitada”.
In.CHAVES, Rita; MACEDO, Tania. Marcas da diferença: as literaturas africanas de
língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.
MATA, Inocência. “O crítico como escritor: limites e beligerâncias”. In: CHAVES,
Rita; MACEDO, Tania. Marcas da diferença:as literaturas africanas de língua
portuguesa.São Paulo: Alameda, 2006.
SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Identidade e Diferença – a perspectiva dos Estudos
Culturais. Petrópolis: Vozes, 2004.
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