A INSUSTENTABILIDADE DA PAZ SOCIAL NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS Estevão Machado Athaydes,1 Romeo Nedel2 RESUMO Este artigo aborda as razões para a insustentabilidade da paz social pelo estado nas sociedades contemporâneas, bem como as possíveis causas da sujeição passiva dos cidadãos brasileiros perante o alto nível da violência nas grandes metrópoles e, logo, o sucesso do crime organizado sobre o poder estatal. Palavras-chave: Estado, contrato social, sociedade contemporânea, criminalidade, Hans Kelsen. INTRODUÇÃO A temática deste trabalho gira em torno de uma matéria um tanto controvertida: o fracasso do Estado em cumprir o seu papel, ou seja, prover uma subsistência multidimensional a seus membros. No capítulo 2: Das razões para a insustentabilidade da paz social pelo estado nas sociedades contemporâneas, trata-se, com base nos trabalhos de Rousseau, Montesquieu, de proposições relevantes à formação da sociedade como tal e do sistema de governo democrático, traçando-se um paralelo de como, cerca de trezentos anos após os escritos destes filósofos, as sociedades complexas e megapopulosas põe em prática a democracia representativa. Nesse capítulo, ainda, é colocado em questão se existe realmente a democracia representativa, ou se ela, nos moldes atuais, é mais um democracia aristocrática. No Subcapítulo 2.1: Do ideário sobre o que é justo e das possíveis causas da sujeição dos indivíduos em relação a outros na sociedade brasileira, é feito um recorte a partir do fenômeno da sociedade brasileira, propõem-se sobre possíveis bases ideológicas da sociedade, dialogando-se, principalmente, com Platão, sob a ótica de Hans Kelsen, com a finalidade de extrair inferências sobre como o cidadão brasileiro enxerga a si, ao outro e ao sistema, e, logo, constrói sua ideologia sobre o que é justo e injusto. 1 Acadêmico do curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil, campus de Guaíba Orientador. Professor Mestre do Curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil, campus de Guaíba. 2 2 O subcapítulo 2.2, Do sucesso dos poderes paramilitares e sua formação, retoma Rousseau e tenta propor hipóteses, baseadas no Contrato Social, do porquê do êxito do crime organizado, principalmente, nas favelas e comunidades de alto risco social. A lógica da associação roussoniana, aliada de forma dialética às proposições do subcapítulo anterior, são aplicadas para tentar explicar o fenômeno social da criminalidade e sua tolerância passiva pelo restante da população. No capítulo 3, Considerações finais, é feito uma retomada de todo o trabalho, salientado os pontos chaves e conclusões obtidas. Por fim, o capítulo 4 cita as referências bibliográficas utilizadas neste artigo. 2. DAS RAZÕES PARA A INSUSTENTABILIDADE DA PAZ SOCIAL PELO ESTADO NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS Quando Rousseau3 disse, no século XVIII, que o homem abria mão do seu estado natural de vontade para viver a liberdade; e, a partir dessa proposição - mesmo que subjacente no ideário das primeiras sociedades – foram constituídas as associações humanas primitivas, não era possível prever o grau de complexidade que as sociedades humanas alcançariam e que, ao obter tamanha proporção este ente abstrato, o Estado, que é a soma individual das forças e propriedades de seus membros, iria se transformar, exatamente pelo seu tamanho abstrato descomunal, em um provedor de desigualdades. Ora, a própria constituição da sociedade, como mencionado (união de forças e propriedades), traz consigo o embrião de sua fragilidade, pois abre espaço para seletividade e criação da Aristocracia4, aqui empregada no sentido dado por Montesquieu, haja vista que os indivíduos que podem contribuir com mais, tanto com força, quanto propriedades, acabam tomando, para sua pessoa, posições de mando na coletividade, em detrimento a outros que recebem somente o básico para manutenção de sua existência. Logo, em sociedades complexas e superpopulosas, cujos membros não mais se conhecem - entenda-se conhecer por viverem próximos, mantendo relações 3 Rousseau, Jean-Jacques, Do Contrato Social: O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o tenta e pode alcançar; “que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. 4 Montesquieu, Charles de, Do Espírito das Leis: Na aristocracia, o poder soberano está nas mãos de certo número de pessoas. São elas que elaboram as leis e que mandam executá-las; e o resto do povo está para elas, no máximo, como os súditos estão para o monarca, numa monarquia. Nela, não se deve dar o sufrágio por sorteio; só se teriam os seus inconvenientes. Com efeito, num governo que já estabeleceu as mais tristes distinções, ainda que os cargos fossem escolhidos por sorteio, isso não seria menos odioso: é do nobre que se tem inveja, não do magistrado. 3 sociais básicas - toda democracia representativa acaba por se tornar aristocracia. Outrossim, é da natureza de uma megasociedade que cada indivíduo tome para si um papel e, ao se ocupar desse, delegue as outras funções aos demais membros da sociedade. Contudo, tal atitude diminui extremamente a força de certas classes, em geral as operárias, que, no contrato implícito da sociedade contemporânea, devem contribuir para coletividade com sua força de trabalho e, não, com sua capacidade administrativa, uma vez que seu preparo não é para tal função. Não obstante, ao delegar o cuidado do que é de todos para pessoas que não mais conhecem os anseios particulares, ainda seguindo a ótica de Montesquieu, vai se construindo uma barreira mais forte, a qual separa a vontade geral da vontade de todos; ou seja, há uma heterogeneidade na sociedade atual, tanto pelo seu contingente de membros, quanto por sua acelerada transformação, marca do século XX e XXI, que torna impossível administrar a contento, mantendo a igualdade, sacrificando ao mínimo a liberdade individual e protegendo o interesse coletivo. Como, para Rousseau, seria o objetivo do contrato social e o porquê da vida em sociedade: Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindose a todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente.'' Tal é o problema fundamental cuja solução é dada pelo Do Contrato Social. (ROUSSEAU, 2008, P.33) Em consonância com essa proposição, entende-se que: se os mecanismos que foram criados para que funcione a sociedade contemporânea, tão imbricados e burocráticos, dificultam o entendimento e a participação na própria sociedade por todos os seus membros, ou por grande parte deles, fazendo com que esses: ou aceitem passivamente todos os mandos, ou entrem em lide contra o sistema, o que, em ambos os casos,5 pode fazer com que o indivíduo encare o Estado como não cumpridor de seus deveres e, logo, em maior ou menor proporção, abalando a crença no contrato social, fomentando o individualismo e a autotutela6, os quais vão se sobrepujando sobre a fé na sociedade organizada e na capacidade desta de provedora da digna subsistência e da paz social. 5 No livro II, capítulo I, Rousseau teoriza sobre a importância da fé do povo nos atos dos governantes para a existência da sociedade: Se o povo, portanto, promete simplesmente obedecer, dissolve-se em conseqüência desse ato, perde sua qualidade de povo; no instante em que houver um senhor, não mais haverá soberano, e a partir de então o corpo político estará destruído. 6 GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri, in Dicionário Técnico-Jurídico: A autotutela é um dos três métodos de solução de conflitos, conjuntamente com a autocomposição e a jurisdição, sendo a mais primitiva, nascida com o homem na disputa dos bens necessários à sua sobrevivência, representando a prevalência do mais forte sobre o mais frágil. 4 Nos subcapítulos posteriores, em que se delimitará, pelo caráter do trabalho, o foco na sociedade brasileira, irá se analisar a formação das microssociedades dentro da sociedade, como é o caso das favelas, em que verdadeiras milícias paramilitares, defendem os ideais e modo de vida de seus lideres. E, desse fenômeno, propor-se-á encontrar o porquê deste quadro dentro do Estado. Entretanto, agora, basta dizer que: a insustentabilidade da paz social pelo Estado, nas sociedades contemporâneas, dá-se porque os indivíduos sentem que o este não está cumprindo o seu papel de mantenedor da sociedade; igualmente, pela falta de, pelo menos, resposta, por parte do sistema instituído, quanto às necessidades, de determinado nicho da população, que não estão sendo supridas. Em verdade, de acordo com o grau de complexidade do aparelho burocrático de um dado Estado, a sociedade não sabe, nem ao menos, qual caminho eficaz a tomar, a fim de buscar um ouvidor para suas queixas e opiniões. 2.1 DO IDEÁRIO SOBRE O QUE É JUSTO E DAS POSSÍVEIS CAUSAS DA SUJEIÇÃO DOS INDIVÍDUOS EM RELAÇÃO A OUTROS NA SOCIEDADE BRASILEIRA. Uma das funções do Estado é manter a paz social, e essa só pode ocorrer se, dentro de certas proporções, houver o equilíbrio entre as relações dos indivíduos. Basicamente, um indivíduo se sente injustiçado, quando se sente lesado em suas vontades e interpreta que isso é uma perda a si ou ao seu patrimônio, em outras palavras, a injustiça é interpretado por uma pessoa quando essa acha que foi lhe feito um mal e este mal não foi corrigido, ou, pelo menos, punido. Nossa sociedade, dada a historicidade de sua formação e influenciada por valores judaico-cristãos, tem, em sua base ética e moral, os princípios filosóficos de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, estes, por sua vez, influenciados por Platão e Aristóteles; assim, podemos tomar o discurso platônico sobre o dualismo bem e o mal como fontes para as hipóteses dos valores de justiça assumidos pela sociedade Brasileira. A influência do pensamento clássico grego, na filosofia jurídica contemporânea, não é, de forma alguma, pioneira neste trabalho, em vista que Hans Kelsen, em sua obra, A Ilusão da Justiça, esmiúça a biblioteca plantônica, a fim de formular hipóteses sobre problemas atuais, ou melhor, universais, atemporais, em relação à justiça e ao Direito. 5 Em sua obra, República, a alma terrena é comparada por Platão com o aspecto do deus marinho Glauco, cujo corpo e face foram desfigurados pelas conchas, corais, algas e demais acúmulos do fundo do mar. Lembrando-se que o filósofo enxergava a alma como o verdadeiro aspecto humano, a bondade, e o corpo como a corruptela e cárcere da emanação da verdadeira luz, a maldade. Ou seja, pode se aferir, com base neste pensamente que: o homem é formado, em sua essência, pela bondade, mas é natural, que, por viver no mundo, seja parte dele também a maldade. Vejamos que o pensamento de Kelsen encontra diálogo com o deste trabalho, ao relacionar os mitos platônicos com o ideário ético e moral: Seria decerto um exagero afirmar que as diversas oposições com as quais a filosofia platônica opera não possuem outro sentido que não o ético. Se não é o único, esse sentido ético é, no entanto, o sentido primordial do dualismo platônico, a camada mais profunda de seu pensamento, na qual como no solo que o nutre, tudo o mais deita raízes. O dualismo ético do Bem e do Mal é, por assim dizer, o mais interior dos anéis, circundado pelos dualismos epistemológicos e ontológicos que nele se emaranham e dele brotam. (KELSEN, 2008, p.7) Esse salvo conduto dado por Platão, sobre a natureza da alma humana, que, depois, foi interpretado por Santo Agostinho, e muito bem aplicado e alicerçado pela máxima: ‘povo santo e pecador’, no ideário coletivo dos povos que detêm como valores morais a ética católico-cristã, abre um grande espaço para o individualismo sobre o coletivismo, ou sobre a aristocracia sobre a democracia, pois permite aos homens acreditarem que é de sua natureza não serem virtuosos, é de sua natureza a astúcia sobre a bondade. Outro mito que foi transferido e implantado no ideário é o mito da criação, contido no Timeu7, que estabelece as dádivas que a alma recebe de acordo com seus méritos e, se está em uma condição inferior é devido aos seus próprios deméritos. Tanta na visão clássica grega, quanto na católica, quem julga os méritos e deméritos é um ser supremo, ou seja Deus. Logo, aquele que recebe a autoridade, recebe por merecimento divino. Essa visão, pode-se supor, foi aceita quando havia a monarquia, e a colônia brasileira obedecia, sem discutir, ao rei português, depois, ao imperador brasileiro no império, ao presidente na república. Portanto, o povo do Brasil, está, historicamente, acostumado a aceitar o status quo, mesmo que isso o faça passar dificuldades. Em resumo, é natural, e justo, devido à condição humana, que o ser humano não seja digno sempre, mas é dever aceitar o que faz aquele que está no poder, afinal, se está no poder isso é um mérito, e os méritos são consequências não só da capacidade, mas do 7 Escrito por volta de 360 a.C, Timeu é um tratado teórico de Platão na forma de um diálogo socrático. Na obra são apresentadas especulações sobre a natureza do mundo físico 6 julgamento divino. Cabe salientar que essas considerações, como disse Kelsen, estão nos anéis mais profundos, nas motivações mais implícitas e subconscientes da lógica coletiva, em alguns em maior, outros em menor proporção. 2.2 DO SUCESSO DOS PODERES PARAMILITARES E SUA FORMAÇÃO. Nas grandes metrópoles brasileiras, como nas megalópoles do mundo inteiro, a violência, tanto quanto sua banalização e aceitação são as marcas dos últimos trinta anos. O grande número de favelas, ou zonas onde a criminalidade é a regra sobre o poder estatal para suprimir essas ações, é um fenômeno social e político que não pode deixar de ser notado e estudado, haja vista suas proporções e influência sobre a sociedade em geral. Faz-se, entretanto, retomar Rousseau, cujo texto define que o único contrato social é o da associação, por assim dizer, é de se unir com outros indivíduos a fim de garantir a sua subsistência. Existe apenas um contrato no Estado, é o da associação, e este exclui por si só qualquer outro. Não se poderia imaginar nenhum contrato público que não fosse uma violação do primeiro. (ROUSSEAU, 2008, p 110) Com base nessa afirmação, infere-se que quando a pobreza e a desigualdade social no Brasil obrigaram um grande número de pessoas a morar nas favelas, e o poder público não teve como, ou não quis fazer nada, - não é razão deste trabalho entrar no mérito dessa questão - a população cria outra comunidade, ou melhor, faz outra associação, a que melhor lhe convir, que, neste trabalho denominamos sociedade dentro da sociedade, pois: de outra forma, seria como aceitar somente os deveres e não os lucros da sociedade, logo, isso consistiria em se colocar na posição de escravo e, nenhuma pessoa, se coloca nesta posição por vontade própria. No entanto, nem todas as pessoas que moram nas favelas, ou comunidades com alto índice de criminalidade, entrar para essa outra sociedade, mas toleram e vivem nela, dentro do possível, devido, talvez, aos fatores ideológicos já explorados no subcapítulo 2.1 deste trabalho, ou seja, não desrespeitam as leis sociais do Estado, mas também respeitam a tutela do poder paramilitar das comunidades onde vivem. 7 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse artigo fora escrito somente com base em tópicos, os quais, baseados nos filosofias de Platão, Santo Agostinho, Rousseau, Montesquieu, e Kelsen, tentam criar pequenas proposições sobre um tema tão abstrato e complexo quanto às possíveis causas do fracasso do Estado Brasileiro como provedor de uma sociedade igualitária e livre a seus membros. A partir deste trabalho, infere-se que os problemas estruturais da formação da sociedade brasileira, parecem superiores aos gerencias. Ponto de contato que necessita de um dialoga aberto entre as Ciências Socias, Jurídicas e Políticas, a fim da criação de medidas que possibilitem o fim da violência, da tensão entre as classes, buscando a real paz social, em um primeiro momento e, em seguida, pensar soluções eficazes para prover a igualdade e os demais direitos previstos na Constituição Federal. 4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Técnico-Jurídico. São Paulo: Ridel, 2010. 13ª ed. KELSEN, Hans. A Ilusão da Justiça. São Paulo : Martins Fontes, 2008. 4ª ed. MONTESQUIEU, Charles de. Do Espírito das Leis. São Paulo : Martin Claret, 2004. PLATÃO. A República. Disponível on-line em: www.dhnet.org.br/direitos/anthist/.../hdh_platao_a_republica.pdf. Acesso em: 12 de set. 2010. PLATON. Timeo, o de la naturaleza. Santiago, Chile : Universidad Arcis. Disponível on-line em: http://temqueler.wordpress.com/. Acesso em: 12 de set. 2010. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Porto Alegre: L&PM, 2008.