Políticas de Interiorização do
Médico Brasileiro
1
Hélio Angotti Neto
Coordenador do Curso de Medicina do Centro Universitário do Espírito Santo - UNESC. Diretor da Mirabilia
Medicinæ, publicação em Humanidades Médicas. Doutor em Ciências Médicas pela USP. Médico
oftalmologista.
Contato: [email protected]
Conceitos Iniciais e Metodologia
Como avaliar a estratégia governista para a interiorização do médico? Quando se fala de
estratégia, fala-se de um plano arquitetado para alcançar um fim, que neste caso é a
interiorização do médico. É necessário buscar a fundamentação desta estratégia.
Quanto ao médico que vai ao interior, deve-se compreender que o mesmo possui certas
características básicas, que atendem à vocação de médico da família e de médico da
comunidade que necessita de atenção primária. Algo que, apesar do nome, pode ser
extremamente complexo.
Para avançar na análise conceitual serão utilizadas ferramentas clássicas aristotélicas.
Embora, na medicina, sejam utilizadas de forma mais comum as ferramentas matemáticas
como a estatística e a bioestatística, de cunho mais pragmático e descritivo, o foco deste
trabalho é avançar na análise filosófica, incluindo também ferramentas derivadas de
conhecimentos históricos e das ciências sociais.
1
Trabalho apresentado no Fórum: As Políticas de Saúde e os Desafios da Medicina Brasileira. 06 de novembro
de 2013, Vitória – ES. Realização: AMES e AEMED-ES. Foram feitas adaptações durante a transcrição e a
edição para publicação escrita. Enviado para publicação na Revista Ibérica e no Portal Defesa do Centro de
Pesquisas Estratégicas Paulino Soares de Souza da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Perguntas Básicas
As perguntas básicas que devem ser feitas para começar a análise constam na “Metafísica” de
Aristóteles2. São as quatro causas metafísicas3.
Para que serve o PROVAB? Isto é, a causa final ou essencial.
Como foi feito? Esta é a causa formal.
Com o que é feito? É a causa material.
E por fim, a causa eficaz, que fala por quem foi feito. Abordaremos com maior profundidade
a causa final e a causa eficaz, revelando agentes causadores, a genealogia das medidas de
governo que incluem o PROVAB e possíveis intenções dos agentes envolvidos.
A causa material consiste em dinheiro público, derivado de impostos e taxas, investido no
PROVAB e em outras políticas de interiorização como o “Mais Médicos”.
A causa formal inclui a duração de um ano, ou mais, e incentivos ao fazer uma prova de
especialização (residência médica)4, além de uma bolsa de R$ 8.000,00 que subiu para R$
10.000,00 após alguma controvérsia5. E já se analisa uma interação entre o PROVAB e
demais ações governamentais, como o programa “Mais Médicos”, dentro da estratégia
política em saúde do governo brasileiro6.
Falando da causa final ou essencial, pergunta-se: para quê foi feito? Há também a necessidade
de se perguntar qual a modalidade de causa final: explícita, implícita, discreta ou secreta. E o
que foi explicitado é promover a interiorização do médico para o atendimento básico. Mas
existem alguns pressupostos ao se evocar a figura do médico de interior, atuando na atenção
primária, ou básica, conforme alguns.
O médico no interior deve se integrar à comunidade. Meta improvável de se obter com apenas
um ano ou dois de convivência. A duração do programa contrapõe-se à meta do mesmo.
2
Cf. Aristóteles (2005).
Para uma introdução ao estudo de Aristóteles e das Causas Metafísicas, um estudo introdutório pode ser
encontrado em Adler (2010).
4
Cf. Edital nº 3, de 09 de janeiro de 2013 no Diário Oficial da União e a Resolução nº 3, de 16 de Setembro de
2011 da Comissão Nacional de Residência Médica.
5
Como pode ser observado no Diário Oficial da União: Edital nº 51, de 20 de agosto de 2013.
6
Portal da Saúde: Programas PROVAB e Mais Médicos (2013).
3
O médico do interior deve estar interessado em atuar nos locais mais carentes ou afastados, na
área de atenção primária ou básica à saúde. Mas o programa atrai justamente aqueles
interessados por programas de especialização médica, e uma grande maioria destes busca
áreas de grande especialização, fugindo das cadeiras básicas de necessidade mais urgente7.
Se o objetivo real do PROVAB fosse realmente beneficiar a saúde como é anunciado pelos
órgãos governamentais, necessariamente haveria de se ter maior coerência entre objetivos e
métodos. A forma evidentemente desconexa como foi organizado o programa, mesmo que
amparado por anúncios persuasivos e pelo reforço de marketing eleitoral8, sugere outro fim
específico de modalidade discreta: o fim político.
Médicos se especializam em discutir saúde, mas é preciso compreender que a discussão no
caso de incoerência tão óbvia precisa focalizar temas majoritariamente políticos e filosóficos
para ser proveitosa e almejar realmente o cerne do problema. É óbvio que aspectos de saúde
pública e de caráter técnico entram no estudo e na discussão, mas o aspecto principal está
claramente no escopo da história e da filosofia política.
Imaginário Cultural Político
Ao se perguntar por quem o PROVAB e outras medidas contemporâneas em saúde pública
foram criados, é preciso recorrer ao estudo da genealogia de idéias e dos atos políticos. E
nesse campo os médicos infelizmente carecem de estudo e treino.
Os conhecimentos necessários derivam da história do pensamento político ocidental, da
história da política externa do Brasil, da estratégia política e revolucionária e da história
política interna recente do Brasil, evidenciado nexos muito prováveis de causalidade que
ajudarão a interpretar os eventos aparentemente incoerentes observados pelos brasileiros ao se
deparar com as propostas do governo.
No aspecto mais geral possível é preciso compreender que o imaginário cultural político
variou muito conforme os séculos passaram.
7
Conforme informações cedidas pela médica Irene Abramovich e apresentadas no mesmo evento, derivadas de
concursos de residência médica no estado de São Paulo.
8
O governo brasileiro, no ano anterior às eleições, já aumentou de forma astronômica a alocação de recursos em
publicidade. De 2003 a 2012, as verbas da saúde destinadas à publicidade triplicaram, conforme divulgado em:
PSDB. Mais Médicos: Gomes de Matos quer informações sobre gastos (2013).
As raízes políticas da civilização ocidental estão na visão grega clássica, conforme Platão e
Aristóteles, que via a política como instrumento para tornar o cidadão mais virtuoso9.
É claro que, mesmo num ambiente de busca de qualidade política movida por ideais e
especulações tão nobres e elevadas, havia políticos medíocres como se observa no diálogo
platônico “A República”, quando Sócrates obtém duas definições curiosas e estranhamente
contemporâneas do que seria a justiça. Polemarco definia justiça como ajudar os amigos e
prejudicar os inimigos; Trasímaco, por outro lado, afirmava que justiça era o prevalecimento
da vontade do mais forte10. É preciso tomar cuidado com generalizações. Falo do imaginário
político da época em termos de ideais. E o ideal clássico eram tornar os cidadãos virtuosos e
capazes de ação política adequada na Polis. Mesmo que as ações contrariassem os ideais,
estes permaneciam incrustados nas justificativas para a ação política e no discurso público.
O imaginário político passou por pensadores cristãos como Agostinho, bispo de Hipona, e
Tomás de Aquino, na Idade Média. Ali se almejava a aproximação de um mundo perfeito, da
Cidade de Deus, por meio da fé e da racionalidade, embora se soubesse que imperfeições
sempre existiriam na Cidade dos Homens11. Com todas as dificuldades vividas pela derrocada
da civilização e pela invasão da barbárie, o imaginário político e as justificativas intelectuais
explícitas ainda eram de uma grande riqueza moral, mesmo que a experiência de políticos
hipócritas existisse necessariamente.
Com o decorrer do tempo, os ideais e o discurso mudaram. O horizonte de busca moral e
intelectual do político mudou, tornando-se decerto muito medíocre. Embora ainda existam
políticos idealistas que tentam evitar um horizonte tão devastado como o contemporâneo.
O problema parece começar na modernidade, com pensadores como Maquiavel12, quando a
função declarada e explícita da política se torna a busca e a retenção do poder, isto é, a
hegemonia. É claro que o político continua prezando um bom discurso para fins de
convencimento da massa, mas o seu imaginário agora será centralizado em questões de
hegemonia como fim, e não como meio. Esta virada trágica da política inevitavelmente
contribuirá sobremaneira para a mediocrização da vida política em geral, incluindo também a
mediocrização moral dos cidadãos de nossas democracias.
9
Em “A Política, de Aristóteles (1995).
Cf. PLATÃO (2006).
11
Cf. Julián Marías (2004).
12
Cf. Nicolau Maquiavel (2010).
10
Quando a briga por poder vira um ideal despudorado, quando um meio vira um fim declarado,
é inevitável que a qualidade intelectual e moral de nossos cidadãos e políticos decaia13.
Logo, é preciso interpretar a política atual compreendendo que o fim primeiro da política é
aumentar o poder da própria ação política do partido no governo. Após esta prioridade, outras
situações serão avaliadas por aqueles que detêm o poder. Entre beneficiar a população e
prejudicar a população, qual será a decisão tomada? Sem dúvida nenhuma aquela que gerar
maior capital político positivo, isto é, aquela que promover a hegemonia.
A involução idealística da política não para, e hoje é evidente um quadro intelectual político
dominado por figuras como Antônio Gramsci, antigo presidente do Partido Comunista da
Itália, que defendia a hegemonia do partido político como o novo príncipe. Mas desta vez o
“Príncipe” busca a hegemonia cultural antes da hegemonia política e econômica, isto é,
dominar mentes antes de corpos14. Entra-se na derrocada final da política.
Por isso é que apelos a truques psicológicos e neurolinguísticos de baixa qualidade abundam
na forma de slogans, frases de efeito, palavras de ordem e repetições semiconscientes de
falsos conceitos de apaziguamento e distorção da situação concreta; sem crítica reflexiva
alguma da situação real que nos move15. O uso irresponsável de tais técnicas aliadas a
manipulações sociais claramente voltadas para a hegemonia16 é uma mistura perigosa e muito
preocupante.
É do interesse político resolver o problema de saúde pública que acomete a população mais
carente do Brasil? Sim, de forma razoável se pensa que sim. Mas, ocasionalmente, pode ser
tão ou ainda mais interessante manter a população cerceada, num estado de busca e de
carência moderada, para que seja manobrada de forma eficaz em véspera de eleições por meio
de medidas visualmente impactantes, mesmo que completamente contraditórias como o
PROVAB e, recentemente, o “Mais Médicos”.
A Política Externa Brasileira
13
Para uma visão histórica da tragédia da escalada da busca pelo poder, um clássico de filosofia política,
previsivelmente pouco conhecido no Brasil, é O Poder, de Bertrand de Jouvenel (2010).
14
Cf. Olavo de Carvalho: A Nova Era e a Revolução Cultural.
15
O atual slogan do partido governista (País Rico é País sem Pobreza) é um claro exemplo do nível de
boçalidade que contamina o imaginário pobre do Brasil.
16
Para compreender melhor as manipulações sociais de busca da hegemonia, dois livros são essenciais: Regras
para Radicais, de Saul Alinski, mentor de Barack Hussein Obama, e Hegemonía y Estratégia Socialista, do
argentino Ernesto Laclau, que ensinam como utilizar a ideologia e a estratégia política para o domínio da
sociedade e das massas incautas.
Compreendendo o pano de fundo histórico amplo e geral da história do pensamento político
ocidental, ou pelo menos de alguns de seus grandes patamares de ascensão ou declínio,
podemos chegar ao panorama internacional das últimas décadas.
Buscando um ponto inicial de referência, é possível partir da redemocratização do Brasil, após
o término do governo militar. As fronteiras brasileiras se abriam no MERCOSUL, um projeto
de integração predominantemente econômico. E por anos o Itamaraty, instrumento de nossa
política externa, prosseguiu mantendo um patamar pragmático de ação política fundamentada
na expectativa de ganhos econômicos estratégicos para o Brasil17.
Mas nos governos do Partido dos Trabalhadores o que se observa é um claro desvio à
esquerda no espectro ideológico nas atitudes do Itamaraty. Isto pode ser facilmente percebido
ao se verificar a decadência, senão completa obsolescência, do MERCOSUL, enquanto outros
órgãos e alianças internacionais de ação claramente política e revolucionária à esquerda, e
secundariamente econômica, adquirem foro privilegiado na política brasileira. Além disso, a
tentativa de se criar um Conselho de Política Externa para o Ministério das Relações
Exteriores na forma de um poder partidário paralelo à tradição diplomática brasileira acena,
tristemente, para um intenso aparelhamento do Itamaraty18.
Tais alianças e órgãos de forte viés ideológico podem ser exemplificados no BRICS, na
UNASUL e no Foro de São Paulo, que ganharam muito mais atenção e poder de nossos
políticos do que o combalido MERCOSUL19. Nesses foros privilegiados são trocados favores
políticos, são traçadas estratégias de curto, médio e longo prazo, são expedidas resoluções e
são firmados compromissos internacionais. Presidentes de diversos países se encontram ao
lado de organizações guerrilheiras, narcotraficantes e demais agentes políticos mais ou menos
radicais, funcionando como verdadeiro Estado-Maior.
Compromissos internacionais que irão superar ou suprimir muitas vezes os interesses
nacionais de um povo que ainda amarga uma verba inadequada para a saúde, e mesmo
17
Cf. Amado Luiz Cervo (2011).
Conforme pode ser observado pelos comentários do excelente diplomata brasileiro Paulo Roberto de Almeida,
um verdadeiro seguidor da tradição honrosa do Barão do Rio Branco, ao que parece, em extinção atualmente.
Disponível em <http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2010/03/1731-ainda-o-conselho-de-politica.html>.
Acesso em 24 nov. 2013.
19
Para uma compreensão adequada do tema, sugiro a leitura das seguintes fontes: Bolívar Lamounier (2005),
Amado Luiz Cervo (2008), Paulo Diniz Zamboni (2008) e Heitor de Paola (2008).
18
inadequada, ainda sofre com a inépcia administrativa, o que leva a uma perda de recursos por
falta de planejamento20.
Os compromissos internacionais ficaram acima do compromisso de nossos governantes com a
saúde do povo brasileiro. Basta notar a constante evasão de recursos, como a filial da
Petrobrás arremessada no colo de Evo Morales junto com investimentos diversos e
ininterruptos21. Ou o esquema internacional de injeção de recursos na ditadura castrista de
Cuba utilizando o programa “Mais Médicos” como disfarce, por meio de uma curiosa
triangulação via Organização Pan-Americana de Saúde22.
Política Interna do Brasil
Finalmente se chega à política interna do Brasil dentro desse contexto internacional de
compromissos e estratégias ideológicas.
Há dez anos, Arlindo Chinaglia do Partido dos Trabalhadores, angariando para o lado do
governo os órgãos de grande peso no ambiente médico, como o Conselho Federal de
Medicina e a Comissão Nacional de Residência Médica, lançou uma proposta de lei23 que
defendia os seguintes pontos, num tom quase alarmista:
1 – Sobram médicos no Brasil, ao ponto de ser prejudicial à saúde do brasileiro;
2 – Não somente há médicos demais como a curva de crescimento da população de médicos
supera em muito a curva de crescimento da população em geral, agravando ainda mais a
expectativa de excesso de médicos no Brasil;
3 – Não devem ser abertas novas escolas de medicina no Brasil, assim como não se deve
aumentar o número de vagas nos cursos de medicina do Brasil, o que poderia favorecer uma
indústria de diplomas;
4 – Devem ser tomadas medidas adequadas para a revalidação de diplomas médicos
estrangeiros.
A proposta foi colocada para dez anos. E durante dez anos aconteceram fatos dignos de
destaque:
20
Como foi proferido na palestra do médico Diogo Leite Sampaio, no mesmo evento deste trabalho.
UOL Economia. Petrobras volta a investir na Bolívia 7 anos após 'perder' refinarias no país, diz jornal.
22
Coluna do Ricardo Setti. “Mais Médicos”: Estava tudo combinado - Um jeitinho de levar dinheiro para Cuba.
23
Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 65/2003. Autor: Arlindo Chinaglia (PT/SP).
21
1 - Envio de militantes para estudar medicina no exterior (Cuba), qualificados por filiação
partidária e não por mérito intelectual24. O que deve ser compreendido no contexto de
compromissos internacionais pactuados à distância da consciência nacional;
2 - Evasão de divisas nacionais por causa desses mesmos pactos políticos;
3 - Sucateamento do interior do Brasil em termos de saúde, com o fechamento de milhares de
leitos hospitalares e desperdício de verbas públicas;
4 - Médicos explorados por prefeituras do interior, sem contrato fixo, sem plano de carreira ou
estabilidade profissional, submissos à política da hora e incapazes de prestar boa assistência.
Após dez anos qual seria o resultado esperado? Poucos médicos migraram para o interior com
o fim de prestar assistência primária, o que gerou uma enorme carência.
E dez anos depois, com esse resultado, é chegada a hora de pagar a dívida política articulada.
Militantes comprometidos com o governo e com a ideologia revolucionária da esquerda sulamericana retornam ao Brasil ao lado de militantes estrangeiros “liberados” por Cuba, entre
outros.
Quando se tem milhares de militantes, médicos ou profissionais ligados à saúde em geral,
inseridos no interior do Brasil às vésperas de uma eleição, o resultado político é muito
previsível. É fácil compreender a influência concreta de um médico sobre a população de uma
pequena cidade no interior do Brasil. E é ainda mais fácil perceber a estratégia hegemônica
que transparece nessas medidas.
Povo nas Ruas e Ajuste de Contas. Exemplos de Estratégia Política
Em 2013 uma grande agitação política brotou nas ruas brasileiras, levando milhares de
pessoas a protestar. Foram movimentos inicialmente desencadeados por militantes
profissionais e agitadores bem treinados, mas que progressivamente perderam o controle da
massa25. As ruas cederam espaço a demandas tidas como conservadoras e exigências de mais
saúde para o Brasil, tirando o foco agradável à liderança esquerdista. Chegou-se ao ponto em
24
Blog do Aluízio Amorim. Jornalismo Politicamente Incorreto. VÍDEO: ESTUDANTES QUE VÃO PARA
CUBA FAZER MEDICINA SÃO SELECIONADOS PELO MST E CONVERTIDOS EM MILITANTES
COMUNISTAS.
25
RIBEIRO, Bruno; FILHO, Luciano Bottini. Agência Estado. Passe Livre se retira de manifestações.
que militantes portando bandeiras e camisas de determinados partidos, como o governista
Partido dos Trabalhadores, foram expulsos da manifestação de forma violenta26.
E no momento em que a pressão sobre o governo aumentava, o foco das ações políticas recaiu
sobre a saúde, na votação de projetos de grande apelo emocional e de fácil manipulação
política como a do Ato Médico. Após anos de discussão, o projeto de lei que versava sobre o
Ato Médico é vetado pela presidente do Brasil27 e é utilizado para gerar uma divisão entre a
classe médica e as demais classes de profissionais da saúde28.
E é preciso compreender um pouco de estratégia para visualizar o benefício político obtido
com a fragmentação dos profissionais que deveriam pressionar junto ao governo em prol de
melhorias palpáveis. Maquiavel já preconizava que aliados utilizados para a escalada no poder
deveriam ser destruídos logo após o controle do poder29. Sun Tzu advogava a técnica do
Dividir e Conquistar, embora seja pouco provável que ele estendesse o uso de sua estratégia
como ferramenta de um general ou líder contra seu próprio povo30.
Subitamente, no meio de toda a agitação social, os médicos foram tachados como opressores
no mercado de trabalho e inimigos dos demais profissionais, com a utilização de uma
linguagem intensamente anacrônica na qual o médico parecia se tornar aos olhos dos mais
exaltados um tipo de “burguês reacionário inimigo do proletário da saúde”.
E a classe médica, politicamente a mais forte entre todas as da área da saúde dentro do
congresso brasileiro, subitamente perdeu seus aliados comuns. Divididos em partes mais
fracas, os profissionais da saúde já não representam forte ameaça ao governo.
E surge o programa “mais Médicos”, o descrédito da revalidação de diplomas de estrangeiros,
e outras medidas no horizonte político prenunciando tempos incertos para a medicina no
Brasil.
Estratégias Políticas
26
iG São Paulo. Participação do PT em ato em São Paulo termina com briga e fuga.
G1 Política. Congresso mantém vetos de Dilma a Ato Médico, FPE e mais dois projetos Apuração parcial do
Senado assegurou pontos defendidos pelo Planalto.
28
Sul 21. Após vetos, ato médico segue dividindo médicos e outros profissionais de saúde.
29
Cf. Nicolau Maquiavel (2010). Para uma visão filosófica de boa metodologia e profundidade acerca da obra de
Maquiavel, é imprescindível a leitura do livro Maquiavel ou a Confusão Demoníaca, de Olavo de Carvalho
(2011).
30
Cf. SUN TZU e SUN PIN (2009).
27
Todo o ocorrido é politicamente compreensível e explicável. É claro que os fenômenos
políticos não são monolíticos. Não há uma causa, um objetivo ou somente um desejo político
por trás das ações. Há diversas tensões e desejos políticos que concorrem para gerar todo o
quadro da saúde no Brasil. Uma das mais prováveis linhas causas, se não for a mais provável,
foi citada neste trabalho.
Outras linhas de ação e causalidade concorreram para que tudo isso acontecesse. Alguns
políticos auxiliaram na execução de todas essas medidas com a firme crença de que faziam
um bem ao povo brasileiro. Na linguagem clássica do movimento revolucionário são os
chamados “companheiros de viagem”, utilizados e descartados quando não mais úteis à causa.
Antônio Gramsci falava dos intelectuais orgânicos, aqueles que arquitetam e estão conscientes
da estratégia de busca hegemônica do poder, e daqueles intelectuais secundários que atuariam
como reforço cultural de idéias implantadas por seus superiores estratégicos, mesmo que
pouco conscientes de tal realidade.
E é isso que os médicos foram há dez anos: companheiros de viagem. Agora são bodes
expiatórios do repetitivo ciclo de expurgo dialético revolucionário. Como aliados de
considerável poder político, os médicos inevitavelmente seriam alvejados.
Foi assim entre mencheviques e bolcheviques31, e ainda continua assim, sob a égide da cultura
de uma política maquiavélica, marxista, gramscista e destrutiva. A classe médica perdeu
prestígio social, poder político, poder econômico e influência junto às demais categorias da
saúde. Os resultados políticos foram perfeitos no aspecto moderno da política.
Os profissionais de saúde, que poderiam e já iniciavam uma frente de pressão para forçar o
governo a tomar medidas reais em benefício da saúde, foram fragmentados e afastados do
palco político.
Quanto ao PROVAB, claramente se encaixa numa série de medidas populistas, eleitoreiras e
diversionistas. Deve ser analisado não somente em relação aos seus resultados, mas também
em relação ao que se poderia chamar de dialética revolucionária32.
Independentemente do resultado pragmático, a política poderá utilizar o PROVAB de forma
positiva.
31
Cf. Antônio Paim (2009).
Algo sem dúvida nenhuma ofensivo à proposta de dialética na obra aristotélica ou na obra tomista, que
enxergavam nela uma eficaz ferramenta de busca da verdade. Ver Olavo de Carvalho (2013).
32
Se o PROVAB gerasse a interiorização do médico, seria divulgado que o governo estava certo
todo o tempo e que sua estratégia fez a diferença. O Brasil realmente precisava de mais
médicos para o interior conforme anunciado, e a classe médica nacional foi incapaz de
providenciar aquilo que o governo agora providencia. O capital político é positivo,
obviamente.
E se o PROVAB não funcionar, como de fato não funcionou? A culpa é dos médicos, pois a
classe médica boicota o governo33. Logo, a culpa da falha do PROVAB ou de outras medidas
é dos médicos, jamais do governo. Será reforçada a teoria da necessidade de interiorização e a
incapacidade do médico brasileiro em suprir a carência, o que pode ser imediatamente
capitalizado para reforçar outras medidas como o programa “Mais Médicos” 34.
Há ganho politico com a vitória ou com a derrota das medidas, graças a essa forma “dialética”
de absorver os resultados e gerar percepções dirigidas por meio discursivo. E funciona graças
a falta de estudo político da sociedade e da classe médica neste caso em específico e em geral.
Observando a reação da classe médica diante dos fatos, fica ainda mais claro o amadorismo
político. Buscou-se amenizar os bônus do PROVAB, reajustando a pontuação dada em provas
de residência médica e premiando menos as especialidades e mais as áreas básicas35. Tal
medida, se aprovada, é defendida por alguns órgãos médicos como um grande ganho36. Nada
mais longe da verdade.
Há que se citar a estratégia das tesouras, conforme descrita por Joseph Stálin37, que preza a
não existência de uma opção A e outra B, mas somente a disponibilização de uma opção A e
outra A+, onde B simplesmente não aparece, não é disponibilizada politicamente. Dessa
forma a sociedade é manipulada e levada para onde a elite política hegemônica deseja.
Quando os médicos caem na estratégia das tesouras, eles reforçam a estratégia governista. O
PROVAB, por definição, está completamente mal formulado, completamente equivocado.
Não há o que trabalhar “dentro” do PROVAB, uma das lâminas da tesoura. Há que se
33
Como de fato o governo e blogueiros governistas já anunciam. Embora, na realidade, já seja afirmado que
quem realizou o calote foi o governo, atrasando o pagamento dos médicos do PROVAB. Cf. O blog dos peritos
do INSS. CALOTE NO PROVAB - QUE VERGONHA, PRESIDENTE DILMA.
34
O que de fato já acontece, como a previsão de médicos evadindo o PROVAB para aderir ao Mais Médicos, cf.
PORTAL DA SAÚDE. Ministério da Saúde reforça checagem de documentos de inscritos no Mais Médicos.
35
5% para áreas básicas como Saúde da Família, Clínica Médica, Cirurgia, Ginecologia e Obstetrícia e Pediatria;
2,5 % para as especialidades.
36
Como se observa no portal do CFM onde modificações sugeridas no PROVAB são exibidas quase que na
categoria de valiosos troféus na “luta” pela classe médica.
37
Cf. Olavo de Carvalho em: A Mão de Stálin está sobre nós (2002).
oferecer a proposta da classe médica para a interiorização do médico no Brasil: o plano de
carreira, o aumento de recursos para aprimoramento da estrutura física do interior, etc. Aceitar
uma proposta e permanecer preso no âmbito da mesma não é uma atitude política aceitável,
muito menos é atitude aceitável em termos de saúde.
E ainda há a técnica denominada Porta na Cara (Door in the Face), descrita há algumas
décadas, que preza o seguinte: quando uma proposta absurda é feita, gerando uma repulsa
imediata, a chance de se obter aceitação com uma forma atenuada da mesma proposta
aumenta consideravelmente, mesmo que antes de um estímulo intenso o alvo provavelmente a
recusasse por completo38. Isto é, impõe-se à sociedade um PROVAB e um “Mais Médicos”;
mesmo que renegados pelas classes da saúde, a aceitação atenuada dos mesmos ainda é uma
importante vitória política e arrasta a classe médica para o local onde o governo deseja situála.
É necessário que o médico estude política e estude a melhor forma de responder às demandas
da sociedade brasileira, sem cair em estratégias políticas já antigas, porém extremamente
eficazes por causa do desconhecimento geral. O médico está capacitado a tratar da saúde, e
deve priorizar a abordagem da saúde pública brasileira sem o ideal de hegemonia de poder
que habita a mentalidade política contemporânea.
É claro que todas as medidas benéficas serão capitalizadas positivamente por facções
políticas, mas isso não impede em nada que medidas verdadeiramente qualificadas possam ser
tomadas. Porém, aceitar de forma pouco inteligente as medidas governamentais ou trabalhar
num horizonte pré-determinado pelas mesmas é atestar a inépcia da classe médica em
assuntos políticos.
Quais medidas devem ser tomadas?
O que o médico deve fazer diante de tudo o que foi exposto? O primeiro passo é praticar a boa
medicina. Amar o paciente, ser caridoso, ter compaixão. O segundo passo é estudar
profundamente, não somente para tratar o paciente de forma técnica, mas também para se
tornar um grande humanista. É necessário estudar medicina, filosofia, história, ciências
sociais em geral, etc. Na concepção do grande médico humanista Gregório Marañón, “o
38
A técnica Door in the Face e outras utilizadas na política atual podem ser conhecidas no livro de Pascal
Bernardin (2012).
médico que somente sabe medicina, nem medicina sabe”. Essa frase de Marañón precisa ser
apreendida pela classe médica.
O esquecimento dessa frase é um dos fatores que permitiu que o Brasil chegasse ao atual
estado lamentável da saúde pública. Infelizmente a classe médica está à beira do colapso
moral, assim como a classe política. Porém, é em momentos de crise que a Filosofia viceja.
Não é permissível que profissionais médicos continuem subestimando a política, ou
ignorando-a em larga escala como a medicina já faz há décadas. Atualmente todos são
instruídos a mudar a sociedade, mas poucos atentam para um fato inescapável: quem não
compreende a sociedade a fundo - com muito tempo dedicado ao estudo da situação cultural,
filosófica e política -, não passará de massa de manobra.
Fontes
AGÊNCIA ESTADO. Passe Livre se retira de manifestações. Disponível em
<http://www.estadao.com.br/noticias/geral,passe-livre-se-retira-demanifestacoes,1045645,0.htm>. Acesso em: 10 nov. 2013.
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Diplomatizzando: Ainda o Conselho de Política Externa.
Disponível
em
<http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2010/03/1731-ainda-o-
conselho-de-politica.html>. Acesso em: 24 nov. 2013.
BLOG DO ALUIZIO AMORIM. Jornalismo Politicamente Incorreto: Vídeo – Estudantes
que vão para Cuba fazer medicina são selecionados pelo MST e convertidos em
militantes
comunistas.
Disponível
em
<http://aluizioamorim.blogspot.com.br/2013/05/video-estudantes-que-vao-paracuba.html>. Acesso em: 10 nov. 2013.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 65/2003. Autor: Arlindo Chinaglia (PT/SP).
Disponível
em
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=84D30C
25945826F162E9E79F9AFD04B6.node1?codteor=113882&filename=TramitacaoPL+65/2003>. Acesso em: 10 nov. 2013.
COLUNA DO RICARDO SETTI. “Mais Médicos”: Estava tudo combinado - Um jeitinho de
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