«O cientificismo é o gnosticismo dos nossos dias», afirma O matemático e filósofo Olivier Rey, sobre o limite da razão: «A ciência moderna fracassou» O matemático e filósofo Olivier Rey denuncia o cientificismo como uma nova superstição Actualizado 27 de Outubro de 2013 Rodolfo Casadei / Tempi.it «A ciência moderna fracassou: ambicionava dar-nos a verdade sobre a natureza; mas por outro lado, afastou-nos dela». Outra: «Ser racionais não significa considerar que a razão é competente em tudo, mas sim reconhecer que tem os seus limites». São duas das ideias que coloca o filósofo e matemático Olivier Rey na sua entrevista em Tempi.it. As traduções que se atrasam Todos os ensaios que verdadeiramente vale a pena ler, todos os livros de ensaio estrangeiros que não há que deixar de ler, esses que estão destinados a converter-se num ponto de referência para todas aquelas pessoas que queiram debater e aprofundar sobre determinadas questões, na Itália traduzem-se dez anos depois da sua publicação, ou mais. O caso mais clamoroso é o de Karl Popper, cujo livro mais importante, A sociedade aberta e os seus inimigos, foi traduzido quase trinta anos depois da sua publicação em inglês. Itinerari dello smarrimento – E se la scienza fosse una grande impresa metafisica? (Itinerário do extravio – Sobre o papel da ciência na absurdidade contemporânea) de Olivier Rey, traduzido este ano de 2013 por edições Ares, dez anos depois da publicação do original francês (Itinéraire de l’égarement. Du rôle de la science dans l’absurdité contemporaine), confirma tudo o dito anteriormente. Raramente se pode ler uma crítica mais lógica da ciência moderna, uma refutação tão pontual dos seus mitos, da sua deriva ideológica, uma manifestação tão lúcida das suas contradições e seus limites. Mas os leitores italianos que não dominam a língua de Victor Hugo tiveram que esperar até este ano para ler passagens como esta: - «As estruturas matemáticas que a ciência de Galileu começa a trazer à luz apresentam-se como a verdade do mundo. Essas, sem dúvida, só revelam o seu esquema. Durante o progresso científico, os perfumes converteram-se em moléculas que se fixam nos receptores sensoriais das paredes nasais; as cores, numa excitação selectiva dos neurónios visuais segunda a energia dos fotões que incidem nelas; os sons, em ondas elásticas que fazem vibrar as membranas do ouvido interno. Perfumes que não cheiram, cores sem cor, sons mudos, que talvez se respondem mediante a comum excitação de alguma sinapse dentro do cérebro. A familiaridade com o mundo não é máxima, é nula. A razão é simples: habitar uma casa não é fazer uma medição precisa, nem conhecer os princípios de construção da mesma. É viver nela». Rey é um matemático e filósofo. Entrou em 1989 no CNRS (o equivalente francês ao CERN [ou o CSIC em Espanha]) na secção matemática, e em 2009 passou à secção filosófica. Escreve sobre filosofia da ciência desde a sua posição de cientista: sabe tudo sobre algoritmos, derivadas e o resto do “alfabeto matemático do mundo”, como também sobre as exigências da neurobiologia e a genética. Domina também os dogmas da tecnociência porque cresceu com eles. Ensinou Matemáticas durante quinze anos antes de ensinar filosofia na Universidade Paris 1. Esta é a razão do seu enfoque sem esse temor reverencial à criticidade da ciência moderna que, desde as suas páginas, se explica como esse grande logro: - que prometia revelar aos humanos a verdade e, pelo contrário, produziu abstracções; - que assegurava a liberdade e, pelo contrário, deu o determinismo absoluto; - que promovia a autonomia e, pelo contrário, elimina o sujeito mediante a sua objectivação; - que prometia uma humanidade mais forte e poderosa graças à tecnologia e, pelo contrário, junto ao poder, criou, com as armas nucleares e químicas em particular, e a contaminação e degradação ambiental em geral, as premissas para a autodestruição do planeta. A conclusão é impiedosa: hoje dispomos de muito mais informação que no passado, mas não possuímos mais conhecimento; somos mais ricos, vivemos mais e poderosos, mas não sabemos mais sobre o sentido da vida. E tudo isso não sucede pela inadequação do esforço científico, ou porque o caminho do progresso é muito longo: o problema é a essência mesma da ciência moderna. Como disse o mesmo Rey apresentando o seu livro no Meeting de Rimini: «Quando aparece a ciência moderna, um certo número de pessoas entusiasmase: finalmente poderemos, com o estudo matemático da natureza, descobrir o verdadeiro método para estudar a natureza e, portanto, para orientar-nos na vida! Sem dúvida, o estudo da natureza pode contribuir para orientar-nos na vida somente se se reconhece à natureza o seu valor moral, só se esta natureza é um cosmos. Agora, por princípio, a ciência moderna desnuda a natureza de todo o valor moral, pois não tem interesse nesta enquanto tal: dela só lhe interessam as suas estruturas matemáticas. As suas estruturas certamente podem ajudar-nos a manipular a natureza, mas não podem dizer-nos absolutamente nada sobre o que devemos fazer. E isto, repitamo-lo, não é devido ao facto de que a ciência ainda não está suficientemente desenvolvida, mas sim à essência mesma da ciência moderna». - Professor Rey, no seu livro descreve o itinerário do extravio da ciência moderna. Mas a maioria dos europeus crê ver melhor o triunfo da mesma: a ciência é poderosa e dá o seu poder aos seres humanos. As pessoas têm fé na ciência, do mesmo modo que antes tinham fé em Deus. Inclusive espera-se a vida eterna, hoje, como um dos êxitos tecnocientíficos. Que significa, então, que a ciência se extraviou? - A minha crítica não concerne à ciência como tal, mas sim ao lugar que ocupa no mundo e o pensamento moderno. O problema não é a ciência, mas sim o facto de que tende a captar em seu benefício um certo número de expectativas espirituais que, por definição, é incapaz de satisfazer. Na Europa o interesse científico pela natureza nasceu do facto de que esta era vista como uma criação divina. O estudo da natureza era um modo de dar graças ao Criador e de aprender algo sobre Ele. Mas, pouco a pouco, a ciência tornou-se autónoma, e desenvolveu-se independentemente de toda a preocupação espiritual. Falo de extravio porque no início dedicaram-se muitas energias à ciência precisamente porque se lhe reconhecia um valor espiritual, mas o modo como se praticou eliminou este aspecto espiritual. - Graças às matemáticas entendemos muitos acontecimentos do universo. Porque critica você a “matematização” da natureza? - Também neste caso, não é a “matematização” da natureza como tal o que causa o problema, mas sim o facto de que este enfoque tende a converter-se em exclusivo, desvalorizando qualquer outro enfoque da natureza enquanto não científico. A “matematização” permite-nos adquirir uma quantidade de conhecimentos que não seriam acessíveis de outra maneira, mas impede de aceder a outros, de outra ordem, igualmente importantes. A ciência moderna ambicionava dar-nos a verdade sobre a natureza; p elo contrári o, afastou-nos dela. Para explicar-me farei uma comparação: conhecer alguém não significa simplesmente conhecer o seu peso, a sua altura, a sua idade a as suas outras medidas, incluídos os testes cardíacos e respiratórios que se realizam num laboratório. Conhecer uma pessoa é outra coisa. Como pode ver, há formas de conhecimento distintas dos da ciência moderna. - Precisamente, você disse que a ciência moderna desarticulou o sujeito humano, destruindo a sua liberdade moral e espiritual. O homem converteu-se no resultado de forças anónimas. A ciência moderna trocou a liberdade humana pelo poder. Parece ser que a maioria das p e s s o a s já acha bem que isto seja assim. - Sim, existe esta tendência a dizer que graças à ciência e à técnica o homem é cada vez mais poderoso. Mas há que distinguir entre “o homem” e “os homens”. O crescente poder do homem caminha paralelo à crescente impotência dos homens. A expressão “o progresso não se detém” é angustiosa: dá a ideia de algo imparável e fora de controlo. Assim, a relação com a ciência converteu-se em algo ambíguo: estamos fascinados por tudo o que a ciência e a técnica permitem realizar, mas ao mesmo tempo nos damos conta de que cada pessoa é arrastada, individualmente, por um processo que ninguém consegue guiar. - Você distingue muito claramente entre a ciência antiga, que procurava a verdade, e a ciência moderna, que só trás conhecimentos exactos. Prevê um regresso a uma ciência mais próxima à antiga, quer dizer, fundada sobre a fé numa ordem cósmica? Ou mais simplesmente quer separar a ciência da posição na qual se colocou indevidamente? Qual é então a posição justa? - Creio que o primeiro que se deve fazer é colocar a ciência no seu justo lugar, que é certamente o de uma realidade capaz de dar-nos conhecimentos que só ela pode dar-nos, ajudando-nos a manipular a realidade; mas não é o de dizer-nos o que devemos fazer, ou fazer que a natureza nos seja mais familiar. Em segundo lugar, queria que ao lado desta ciência existissem outras práticas científicas, mais próximas às do mundo antigo, que não estejam orientadas à manipulação da natureza, mas sim ao seu conhecimento directo mediante uma experiência directa. - No livro você tenta explicar porque para alguns biólogos é tão importante demonstrar que o homem é só uma máquina neuronal cujo objectivo é garantir a sobrevivência dos seus genes, e a que aspiração comum respondem, por uma parte, o amor-paixão e, por outra, a ciência moderna. - Sim, muitos biólogos modernos e contemporâneos declaram-se monistas, quer dizer, para eles não existe nada mais que a matéria. Na realidade são uns dualistas empedernidos que romperam até tal ponto o vínculo entre espírito e matéria que não se dão conta de que o que lhes permite dizer que tudo é matéria é exactamente o espírito, o seu, totalmente externo à matéria. No mundo moderno por una parte se sustém que, baseando-se na visão científica, tudo está determinado e, ao mesmo tempo, segundo uma visão do mundo voluntarista, se diz que tudo está submetido à vontade. De facto, o cientificismo é o gnosticismo dos nossos tempos. Mas os antigos gnósticos pensavam que o espírito tinha que evitar o mundo material, que era malvado, enquanto os gnósticos modernos pensam que graças à ciência e à técnica é possível submeter completamente o mundo material à vontade. Como pode você ver, o determinismo e o voluntarismo são as duas caras da mesma moeda. Enquanto no terreno comum entre o amor passional tipo Tristão e Isolda e a ciência moderna, isso consiste numa certa forma de niilismo: a abolição da pessoa. No amor passional a pessoa desaparece na fusão amorosa; na ciência, a abolição da pessoa realiza-se com a sua absorção num funcionamento mecânico. A partir da época moderna o amor passional está considerado como a forma mais alta do amor. Mas sabemos que não é assim. Os gregos já tinham quatro termos diferentes para definir quatro tipos distintos de amor, e na Deus Caritas est Bento XVI explica que não se deve rejeitar o eros, a paixão amorosa, mas sim que este deve abrir-se a outras formas de amor. Eros é uma via até o ágape. - No final do livro você escreve que «o homem decai na medida em que diminui a sua vocação, que é o acolhimento do mistério essencial de cada coisa, e de si mesmo. O verdadeiro progresso é avançar no mistério, melhoria da alma». Que significa? - Referia-ma ao que expressa Pascal quando escreve que o último passo da razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que se lhe escapam. Portanto, ser racional não significa considerar que a razão é competente em tudo, mas sim reconhecer que tem os seus limites. E este é o motivo pelo qual não há oposição entre razão e Mistério, entre razão e fé, porque ser verdadeiramente racionais e razoáveis significa entender que a razão é soberana na sua ordem, mas que não o é noutras ordens. - O último parágrafo do último capítulo leva o título “Esperando Godot”, e pede ao homem «dar um passo de lado». Que significa? - Vivemos num mundo que nos dá muitíssimas liberdades, mas temos a tendência a esquecer que há liberdades muito reduzidas: frequentemente estamos obrigados a escolher só entre cosas da mesma ordem. Por exemplo, quando vamos ao supermercado temos tantíssimos produtos que podemos escolher. Mas o facto de ir ao supermercado converteu-se numa obrigação, não temos outra escolha se queremos comprar produtos alimentares. Portanto, a aparente liberdade pode ir paralela a uma forma de ausência de liberdade. O “passo de lado” sobre o qual escrevo consiste em voltar a propor a questão da liberdade em âmbitos onde já não se coloca. in