O REAL MAIS QUE REAL EM “O REI DE HAVANA”, DE
PEDRO JUAN GUTIÉRREZ
DANIELE RIBEIRO DOS SANTOS
O rei de Havana
“E ninguém jamais ficou sabendo de nada”. Assim Pedro Juan
Gutiérrez finaliza seu romance “O rei de Havana”, que narra a história de Reynaldo. Tudo aconteceu de forma banal. Rey viveu e morreu como apenas mais um no meio da multidão. Ninguém se importou, a ninguém interessou sua história e ninguém soube que ele morreu – nem os poucos que o conheciam.
Nascido num bairro pobre de Havana, Rey era fruto de uma
família totalmente desestruturada. Vivia com a mãe, o irmão Nelson
e a avó, num pedaço imundo de uma cobertura. Sua mãe “era manca
da perna direita e um pouco limítrofe ou tonta. Não era boa da cabeça. Desde menina” (Gutiérrez, 1999, p. 8). Muito velha, a avó já não
falava, não comia e vivia em condições degradantes, coberta de sujeira. O pai havia sumido no mundo e o irmão era como Rey: um
menininho esquálido e insignificante – mais um no meio daquela
gente miserável e sem perspectivas.
Nelson e Rey sofriam várias humilhações por parte da mãe,
que costumava trancá-los num armário escuro, sem água e sem comida. Quase não iam à escola. Para quê, se podiam passar o tempo se
masturbando ou vendendo pombos para faturar um troco?
A vida continuava como de costume (pobreza e pasmaceira),
quando depois de uma confusão, Nelson, sem querer, acabou matando a mãe e, desesperado, se atirou da cobertura. Chocada com a cena,
a avó, que praticamente já não se mexia, sofreu um ataque cardíaco
fulminante e morreu.
Escondido no galinheiro, Rey ficou sem fala. Nem quando a
polícia veio e o culpou por tudo, o menino não conseguiu reagir.
Apenas riu e se deixou levar e ser trancafiado num reformatório, sem
jamais se defender ou responder sequer uma pergunta.
Passaram-se três anos e Rey conseguiu fugir. A prisão o tinha
endurecido ainda mais, alheando-o do mundo e privando-o de qualquer sentimento. Começou a levar uma vida de andarilho, fazendo
pequenas falcatruas (mendicância, prostituição, roubo, tráfico de
drogas etc.) para sobreviver – além de sexo, muito sexo. Aliás, por
causa de seu desempenho sexual passou a ser conhecido como o “Rei
de Havana”.
Aos 16 anos, Reynaldo era um tipo que se guiava somente pelos instintos: comia somente quando tinha fome, batia quando sentia
raiva, fazia sexo ou se masturbava quando sua libido pedia e largava
tudo quando se enfastiava, sem olhar para trás. Gostava de sujeira,
gostava de sentir os cheiros acres das mulheres, de se sentir suado, de
dormir e acordar sem se mover, de andar sem destino, de se deixar
levar, numa existência tediosa, letárgica e sem sentido.
Reynaldo era um homem de várias mulheres. Mas foi por
Magdalena que se apaixonou e, juntos, viveram um romance sórdido,
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violento e trágico, em meio à miséria e à precariedade (Id., Ibid., p.
121):
“Magda abriu a porta. Quase não se viam. Às cegas, Magda o abraçou, beijou-o como uma louca, e mal controlando os soluços,
apertou-se contra ele:
— Rey, pensei que estava preso, meu amor! Ai, Rey, pelo amor
de Deus que bom que voltou!
Rey não disse nada. Pela primeira vez na vida sentiu dentro de si
algo incrivelmente bonito, absolutamente inexplicável. Um sentimento desconhecido, mas belíssimo que crescia dentro dele. E
sua resposta foi uma ereção formidável, alegre, total. A ereção
mais risonha e feliz de sua vida. E treparam como dois selvagens,
se amando como nunca antes havia ocorrido com eles, orgasmo
atrás de orgasmo até o amanhecer. Então ficaram dormindo, assim, bem porcos, empapados de suor e sêmen e cascão e fuligem.
Dormiram como dois leitões felizes sobre aquela enxerga asquerosa”.
Magda, assim como Rey, era uma desvalida. Uma pária da sociedade que vendia o corpo por qualquer trocado. Descuidada, andava por Havana oferecendo amendoins e se prostituindo. Reynaldo se
enfurecia quando percebia que não podia fazer nada para dominá-la –
até porque se sustentava com o dinheiro que a companheira conseguia.
O desenrolar da trama é acompanhado por uma crescente desagregação física e moral dos personagens. A violência se torna cada
vez mais banal, assim como a fome e o sexo. Em meio a encontros e
desencontros, idas e vindas, Rey e Magda ficam cada vez mais sujos,
mais miseráveis, mais degradados. Mantêm relações sexuais de forma bastante promíscua e vivem arranjando confusões.
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Mesmo quando surge uma oportunidade de reverter esse quadro, Rey prefere voltar “para a lama”. Em determinado momento da
narrativa, Rey conhece Daisy, uma vidente que se apaixona por ele e
lhe oferece casa, boa comida e roupa lavada todos os dias. No começo, Reynaldo se farta de vitamina de manga, come arroz com feijão à
vontade. Sente-se verdadeiramente tratado como uma pessoa – e isso
nunca tinha lhe acontecido antes.
Mas aos poucos vai se cansando daquela rotina. O protagonista tem dificuldade em fazer sexo com Daisy, porque a considera muito limpa e o que agrada o personagem é a sujeira, os cheiros fortes.
Por isso, passa a beber e a fumar, até que, depois de se envolver com
uma vizinha, resolve fugir e procurar Magda novamente.
Na sua reta final, o romance parece tomar a direção de um abismo. Desmoronam o lugar em que Magda e Rey moram, assim
como suas esperanças ou qualquer vestígio de perspectiva de melhora. Com a perna machucada, Rey vaga pelas ruas, acompanhado de
Magda. Acabam parando num antigo vagão, onde o protagonista
costumava se esconder quando fugiu do reformatório.
Passam a viver ali. Rey descansando, tentando curar a ferida, e
Magda indo e voltando, sumindo por vários dias, causando ódio e
desespero em seu companheiro. Cansada de tanta miséria e do comodismo de Reynaldo, ao regressar pela última vez, ela confessa que
está grávida e que estava com o pai de seu outro filho (uma criança
que abandonou e com quem ela nunca havia se importado), deixando
Rey enlouquecido e humilhado (Id., Ibid., p. 217):
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“— Estava com o pai do meu filho! Esse, sim, é homem. Que
cuida de mim, me dá roupa, comida, dinheiro, me leva pra passear. Esse negrão sim é que é homem!
Rey a esbofeteou mais, cego de fúria:
—
E eu sou o quê, puta de merda?
— Você é um morto de fome! Um inútil. Um cagão. Me esperando aqui, veado. Eu gosto é de homem, não de menino feito
você... frouxo de merda!
— Você é uma puta!
— Puta, mas com o macho que eu gosto! Esse negrão me comeu
três dias em seguida. Sem parar. Você é um menino perto dele. E
se eu estou grávida é dele. Isso é pra você saber e não se meter a
besta. Vou ter mais um filho dele!
Ao ouvir isso, Rey ficou totalmente louco. Pegou a faquinha e de
um golpe só lhe rasgou a face esquerda, da orelha até o queixo.
Um corte tão profundo que pôs à vista os ossos, os tendões, os
dentes. Gostou de vê-la assim, desfigurada, com o rosto rasgado e
o sangue correndo pescoço abaixo.”
Nesse momento, Rey começa a desferir golpes cada vez mais
fortes, que culminam com a morte de Magda. Numa narrativa vertiginosa, os fatos se sucedem rapidamente e o rei de Havana chega ao
máximo da degradação. Ele se excita com a morte da companheira,
praticando necrofilia e continua a viver ali, próximo ao corpo da
mulher. Só depois de um tempo (quando os urubus percebem a presença de carniça), resolve se livrar do cadáver de Magda, atirando-o
num depósito de lixo. Lá é atacado pelos ratos, que se alimentam de
sua ferida, aprofundando-a ainda mais.
Depois de seis dias e seis noites, Reynaldo sucumbe e tem
uma morte terrível, sendo devorado lentamente pelos urubus. “E
ninguém jamais ficou sabendo de nada”. Rey nasceu como morreu:
sem que ninguém soubesse nem se importasse. Apenas mais um
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cubano que lutou, em vão, para sobreviver e acabou sendo tragado
pela miséria e pela degradação.
Alguma semelhança com a vida real?
O escritor e suas circunstâncias e o “mais real do que o real” do
como se
Afirma Ortega Y Gasset (San Martín, 1998, p. 123): “Yo soy
you y mis circunstancias”. De fato, não se pode separar um ser humano, principalmente, um escritor das circunstâncias que o cercam.
Ao escrever, é impossível se desvencilhar totalmente da realidade.
Ainda que uma obra descreva os mais fantasiosos e improváveis dos
mundos, sempre terá um pouco da vida de seu autor: seu contexto
sempre estará presente, pois o texto, invariavelmente, revela “algo
em que estamos metidos” (Iser, 1996b, p. 139).
De acordo com Wolfgang Iser, “os textos literários sempre se
relacionam com contextos”, havendo uma “relação recíproca que o
texto e o contexto entretêm” (Idem, 2002, p. 940). As convenções
sociais, as normas e os valores de uma época acabam influenciando o
escritor no seu fazer literário.
Segundo o filósofo, o repertório de texto (sistema de sentido
dentro de um texto ficcional) pode extrair componentes não só da
literatura de outras épocas, como também das normas sociais e históricas, do contexto sócio-cultural, das convenções e das tradições.
Entretanto, um repertório de um texto ficcional não pode ser entendido como simples cópia da realidade: “no texto, como ambiente
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novo, os segmentos selecionados estão isolados daquele contexto no
qual os insere o saber social, tornando-se disponíveis, portanto para
combinações com segmentos do conhecimento que até então lhes
eram distantes” (Id., Ibid., p. 948).
Dessa forma, a ficção sempre dá origem a um conteúdo novo, diverso da realidade em que se baseia. Na ficção, o mundo pode
ganhar cores mais vivas, mais fortes, ou até mais opacas, mais áridas.
As convenções, por exemplo, que para alguns não passam de mera
formalidade, podem se transformar em verdadeiras barreiras, potencializando o que na realidade é quase nada. É por isso que realidade e
ficção não são termos opostos. Para Iser:
A relação opositiva entre ficção e realidade retiraria da discussão
sobre o fictício no texto uma dimensão importante, pois, evidentemente, há no texto ficcional muita realidade que não só deve
ser identificável como realidade social, mas que também pode ser
de ordem sentimental e emocional. Estas realidades por certo diversas não são ficções, nem tampouco se transformam em tais pelo fato de entrarem na apresentação de textos ficcionais. (Iser,
1996a, p. 14)
Assim, a ficção não é um espelho fiel da realidade. Ainda
que um escritor tente retratá-la exatamente como é, sempre estará
criando uma outra instância – diversa daquela em que vive. A realidade não se esgota num texto ficcional. Segundo Iser, sua repetição
(da realidade) acaba se configurando num ato de fingir, através do
qual surgem outras finalidades que não pertencem originalmente a
ela. É nesse momento, desse ato de fingir, que emerge um imaginário
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“que se relaciona com a realidade retomada pelo texto” (Id., Ibid., p.
14).
Por sua vez, esse imaginário acaba adquirindo atributo de realidade, na medida em que é potencializado pela ficção. Ao escrever
uma história, o autor estabelece um pacto com o leitor: a partir daquele momento, a descrença ficará suspensa e o irreal será lido e
entendido como se fosse real. Para Iser, através do como se – expressão fundamental em sua teoria –, o mundo representado na ficção
torna-se realmente um mundo: “a representabilidade daquilo que é
provocado pelo como se significa que nossas capacidades se põem a
serviço desta irrealidade, para, no processo de irrealização, transformá-la em realidade” (Id., Ibid., p. 28).
O leitor vai esquecer que vive num mundo que parece mais
fictício que a ficção – em que pessoas são mortas por balas perdidas,
em que os indivíduos trabalham incessantemente, como se fossem
máquinas e, muitas vezes, não conseguem obter o suficiente para sua
sobrevivência –, e embarcará para um outro universo. O mundo real
e o próprio texto serão colocados entre parênteses para formar um
“real mais real do que o real” (Krause, 2003):
O texto, para se realizar, para alcançar o caráter de acontecimento, deve irrealizar convertendo o imaginário em experiência, vale
dizer, conduzindo o leitor a vivenciar o imaginário como real –
ou até mesmo mais-real-do-que-o-real (...) Ainda quando o texto
literário tenta copiar o mundo presente, ao repeti-lo o altera e o
excede.
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A ficção é capaz de despertar emoções muito mais fortes que a
realidade. O cotidiano, mesmerizado pelas obrigações que o trabalho
e a economia nos impõem, acarreta, muitas vezes, a sensação de
tédio, de indiferença, de banalidade e alienação. Muitos de nós vivemos como Reynaldo: seguimos em frente porque temos que seguir,
sem nunca nos perguntar o sentido da existência.
Entretanto, ao penetrarmos no mundo do rei de Havana, somos
capazes de nos chocar com a degradação, com a miséria, com a capacidade do personagem de sentir prazer em meio a tanta falta de
perspectiva. Mas por quê, se de certa maneira, vivemos a realidade
de Rey? Não passamos todos os dias por mendigos que vasculham
latas de lixo ou que vivem sob os viadutos em condições absolutamente precárias? E por que nos impressionamos com Reynaldo e não
nos abalamos com a realidade? Talvez seja pelo poder que a ficção
tem de parecer realmente mais real do que o real e pela capacidade
de nos aproximar do que é distante e nos distanciar do que é próximo.
A ficção irrealiza o real, colocando-o sob suspeita, e realiza o
imaginário. Também possibilita uma reformulação da realidade –
muitas vezes excedendo-a –, a compreensão do mundo e a experimentação de novas sensações. O texto literário não se encarcera em
si mesmo, mas interage com tudo o que o cerca, problematizando ou
confirmando o status quo: “o mundo com que ele se relaciona não é
simplesmente nele repetido, mas experimenta ajustes e correções”. O
ficcional pode tanto acentuar componentes da realidade, como mini9
mizá-los, “pode tanto acentuar os problemas pendentes nos sistemas
contextuais do texto, quanto afirmar estruturas sociais ou os valores
estéticos” (Iser, op. cit., p. 942).
Mas a tarefa de confirmar ou problematizar a realidade, muitas
vezes, pode caber mais ao leitor que propriamente ao autor. Um escritor pode elaborar todo uma crítica à sociedade, mas se o leitor
encarar a trama apenas como uma história, ela será isso e nada mais.
Na verdade, todo texto literário apresenta lacunas que devem ser
preenchidas por quem o lê. É o leitor que vai dar sentido ao que está
codificado no texto.
Wolfang Iser acredita que “o texto é um potencial de efeitos
que se atualiza no processo da leitura” (Idem, 1996b, p. 15). Portanto, sem o leitor este potencial não se realiza. Para concretizá-lo, é
necessário que haja uma interação do leitor com o texto, “na qual o
leitor ‘recebe’ o sentido do texto ao constituí-lo” (Id., Ibid., p. 51).
De acordo com Iser, nesse processo estão implicadas não só
as condições do texto, como também as disposições do leitor. Nesse
sentido, “a obra literária se realiza então na convergência do texto
com o leitor; a obra tem forçosamente um caráter virtual, pois não
pode ser reduzida nem à realidade do texto, nem às disposições caracterizadoras do leitor” (Id., Ibid., p. 50). Assim, o texto só atinge
seu sentido pleno quando seus potenciais são atualizados e concretizados pelo leitor.
O romance “O rei de Havana” pode ser lido de várias maneiras, dependendo do leitor: a triste história de um menino abandona10
do; a curta trajetória de um inútil, cujo maior objetivo na vida, era
manter relações sexuais com quantas mulheres aparecessem; uma
metáfora da degradação social e econômica de Cuba.
Afinal, quem é ou o que é “O rei de Havana”?
Criador e criatura: o “realismo sujo” de Pedro Juan Gutierrez
“Yo soy yo y mis circunstancias”. Recorro novamente a Ortega Y Gasset para lembrar que um escritor não é somente ele e as
circunstâncias que o cercam, mas que tais circunstâncias devem
sempre ser relativizadas. Relativizando o que me cerca, posso relativizar não só a mim mesmo e ao mundo, como também à minha obra.
Uma leitura superficial de “O rei de Havana” pode nos levar à
vontade de classificar o romance como a metáfora da decadência de
Cuba. Reynaldo seria o jovem cubano, que vive na miséria, sem
perspectiva de vida e sem acesso aos bens culturais. Teria sido esta a
intenção do autor?
Grande parte dos textos teóricos dificilmente recorre ao autor
da obra analisada para saber o que ele realmente pensa e qual foi seu
objetivo ao estruturar a trama. Mas, nesse caso, criatura e criador se
confundem de tal forma, abordando uma realidade tão contundente,
que achei pertinente deixar falar o escritor. É também uma maneira
de ver, na prática, como todo o embasamento teórico que foi utilizado até aqui, pode ser aplicado à obra “O rei de Havana” e ao seu
autor, Pedro Juan Gutiérrez.
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O escritor cubano também acredita que sua literatura não pode
ser separada das circunstâncias em que vive. “Meus livros são resultado de quatorze anos de vida num bairro muito marginal, numa das
áreas mais pobres de Havana” (Soares, 2001, p. 16), afirma ele.
Como Reynaldo, Gutiérrez vive numa zona humilde de Havana e convive com mendigos, bêbados e prostitutas. Ele relata que a
pobreza sempre foi um dos principais temas de seus livros. E não só
a miséria, como toda a realidade em que vive serve de material para
sua carpintaria literária (Clark, 2003):
Estou me referindo a um ambiente, a uma atmosfera e a um tipo
de gente que às vezes eu mesmo me assombro com as coisas que
descubro. Às vezes, eu mesmo me assombro com a capacidade
de cinismo que essa gente ardilosa daqui desenvolve para sobreviver. São implacáveis. O que fazem por dois ou três dólares não
se pode imaginar. E, às vezes, desde que são menininhas, desde
os nove ou dez anos estão nas ruas e às onze ou meia-noite estão
trocando sexo por dinheiro. E depois você escreve um conto e te
dizem: “Olha o que o indecente, o grosseiro, o selvagem está inventando”. Mas que tudo isso eu vi, garotas de dez ou onze aninhos dizendo para alguém: “Ei, eu te masturbo por cinco pesos.
Vem aqui na escada”.
Seu primeiro livro de ficção publicado no Brasil, “Trilogia suja de Havana” é considerado autobiográfico e uma espécie de catarse
para um momento difícil que estava atravessando – acabara de sair
de um divórcio traumático, no qual teve que se separar dos filhos, e
todo país e o projeto político em que acreditava tinham entrado em
crise. “Quando começo a escrever a Trilogia necessitava de uma
catarse e por isso esses contos são tão duros. Escrevi com muito ran12
cor, com muita fúria dentro de mim” (Soares, op. cit., p. 16), relembra.
Pedro Juan Gutierrez utiliza a realidade que o rodeia como
matéria-prima para criar sua ficção – “A literatura é, antes de tudo,
um exercício de pensamento e de reflexão, mas não a partir de uma
abstração. Não sou abstrato. Estou certo de que Homero quando criou a Ilíada ou a Odisséia partiu de coisas reais” (Silva, 2003, p. 24).
Mas engana-se quem pensa que seu objetivo é fazer uma cópia da
realidade ou um simples retrato do povo cubano (Soares):
O que acontece é que a gente sabe organizar as coisas de maneira
que não se vejam as costuras entre ficção e realidade (...). Dostoievski e seu Crime e Castigo são o melhor exemplo do que penso
a esse respeito. Se ele tivesse decidido centrar sua narrativa na situação terrível que a Rússia vivia naquele momento, teria escrito
um panfleto político, nada mais. No entanto, construiu um personagem maravilhoso, o Rashkolnikov, e a partir dele fez um romance fantástico, um clássico da literatura universal. Ressalvando-se a diferença entre mim e o gênio que é Dostoievski, trato de
usar o momento e o espaço em que vivo para fazer literatura. Se
quisesse fazer política, teria uma coluna num jornal, um programa de rádio ou algo assim. A literatura tem que ser mais universal, mais atemporal. (Soares, 2001, p. 17)
Gutiérrez faz de sua literatura o que Iser chamou de “ato intencional dirigido a um mundo”, realizando “um balanço de um
mundo problemático” (Iser, 2002, p. 942) e indo muito além de seu
contexto. Segundo o escritor cubano, seus textos estão baseados em
fatos e pessoas reais e escritos na melhor tradição do chamado realismo sujo, o qual ele acredita que seja “uma maneira de chegar sempre ao limite da literatura, ao limite dos personagens”, de não escon13
der nada a respeito deles. Para o autor, muito mais do que uma simples descrição da realidade, a literatura “é um ato de reflexão, de
análise, de exploração na vida e de sinceridade” (Clark, op. cit.).
Através de sua obra, o autor cubano reformula o real, apresentando um mundo com cores fortes e chocantes, e tão incômodo que
nenhuma editora de seu país se dispôs a publicar qualquer título seu.
Em seus livros, os personagens seguem somente seu instinto.
Apanham e batem até morrer, porque a vida não tem mesmo muito
valor. E a morte nunca é sagrada, mas pode ser muito mais que temida, pode ser nojenta, asquerosa (Gutiérrez):
“Por fim morreu. Seu corpo já estava apodrecendo por causa das
úlceras feitas pelos ratos. O cadáver se corrompeu em poucas horas. Chegaram os urubus. E o devoraram pouco a pouco. O festim
durou quatro dias. Foi devorado lentamente. Quanto mais apodrecia, mais gostavam daquela carniça”. (Gutiérrez, 1999, p.
224)
Em relação a “O rei de Havana”, Pedro Juan Gutiérrez afirma
que todos os personagens são reais e ele só teve o trabalho de modificar seus nomes. O livro (Clark, op. cit.):
se baseia em situações que fui observando ao longo dos anos. Os
dois protagonistas do romance são pessoas reais: a garota continua a vender amendoim a quatro quadras daqui e o rapaz continua vivendo aqui. O final eu inventei, é claro. Mas ele continua
vivendo aqui, nós podemos ver. Agora abrimos a janela e eu posso te dizer: ‘Olha, este é o protagonista de O rei de Havana’. E
são analfabetos, deixaram a escola quando tinham cinco ou seis
anos, e a mãe tem síndrome de down.
14
Entretanto, Gutiérrez deixa claro que não pretendeu fazer de
seus personagens um emblema da juventude cubana, nem um estudo
sociológico ou antropológico. Em “O rei de Havana”, criou um mundo particular, mais real do que o real. Os personagens tomaram vida
própria e um rumo que fez seu próprio autor sofrer – “escrever “O rei
de Havana” foi muito doloroso. Quando descobri que estava escrevendo um romance que o final tinha que ser tão terrível, porque não
havia outra saída, passei os últimos três dias chorando” (Id., Ibid.).
Talvez, com esse livro, Pedro Juan Gutiérrez tenha potencializado possibilidades. Com a vida que levam, talvez o caminho dos
verdadeiros protagonistas Reynaldo e Magda seja mesmo o abismo.
Talvez, a história só revele o lado mais podre, mais sórdido, que a
vida real, mesmo com todos os seus dissabores, insiste em tornar
opaco e invisível o que está lá escondido, latente, apenas esperando
por um catalisador.
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Referências Bibliográficas
CLARK, Stephen. El Rey de Centro Habana: conversación con Pedro Juan Gutierrez. In: www.librusa.com. Acessado em 2003.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. A teoria do efeito estético de Wolfang
Iser. In: COSTA LIMA, Luiz (Org.). Teoria da literatura em suas
fontes: volume II. Tradução de Ingrid Stein. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
GUTIERREZ, Pedro Juan. O rei de Havana. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ISER, Wolfgang. Problemas da teoria da literatura atual: O imaginário e os conceitos-chave da época. In: COSTA LIMA, Luiz
(Org.). Teoria da literatura em suas fontes: volume II. Tradução de
Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
______. O fictício e o imaginário: Perspectivas de uma antropologia
literária. Tradução de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: Eduerj,
1996.
______. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético – volume I.
Tradução de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.
KRAUSE, Gustavo Bernardo. Como se. In: http://paginas.terra.com.
/arte/dubitoergosum/editor16.htm. Acessado em 2006.
SAN MARTÍN, Javier. Fenomenología y cultura en Ortega: ensayos
de interpretación. Madrid: Tecnos, 1998
SILVA, Maria Augusta. Um escritor nunca é inocente. In: Diário de
notícia. Lisboa: 26 jul 2003.
SOARES, Lucila. Política nem pensar. In: Veja. São Paulo: 16, mai
2001.
16
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O real mais que real em “O Rei de Havana”