DA MÍSTICA RENASCENTISTA À RACIONALIDADE
CIENTÍFICA PÓS-MODERNA
(A propósito da articulação entre Ciência,
Filosofia e Misticismo em Nicolau de Cusa)
JOÃO MARIA ANDRÉ
Introdução
1. O homem é hoje convidado a interrrogar-se na sua relação com a
natureza a partir de múltiplos lugares, de pontos perdidos em diversificados caminhos em que se enredou a nossa ligação ao mundo e
simultaneamente o nosso afastamento dele. E dessa interrogação despertam
diferentes olhares e díspares sentimentos: por um lado o reconhecimento
do triunfo da razão científico-técnica que realizou o sonho de Descartes
de tornar o homem dono e senhor da natureza concretizado através do
projecto de F. Bacon de identificação entre saber e poder; por outro lado,
o empobrecimento resultante dessa realização vislumbrado num desencanto perante a fria realidade quantitativa e numérica em que se
transformou a terra, que, de nossa morada e habitação, passou a objecto
manipulável num tempo vazio e num espaço reduzido às linhas, superfícies
e volumes, únicas letras constitutivas do alfabeto com que Galileu e
Newton, acompanhados por Descartes e os seus mais ou menos anónimos
discípulos a procuraram ler e conhecer. Nesta dupla sensação de assombro
e empobrecimento adivinha-se uma dupla ruptura com a qual nos vemos
confrontados no final deste Século XX: em primeiro lugar, a ruptura entre
a natureza e a cultura, em que aquela se reifica perante o símbolo do
humano que é a segunda, e, depois, entre cultura e tecno-ciência, em que
esta se desenvolve e autonomiza como a mão manipuladora da primeira,
que assim parece permanecer limpa e livre de contaminações pragmáticas
e utilitaristas e desenvolver-se na promoção do humano na sua integridade
e plenitude.
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A vocação do saber, inscrito na ciência, a transmutar-se em acção dominadora é, segundo alguns, uma marca que lhe é inerente desde a aurora
do pensamento ocidental, a filosofia helénica, que encontraria na técnica
a realização da sua essência e da sua oculta vontade de poder, sobretudo
a partir da mutação operada entre o Século XVI e o Século XVII 1, quando
se articula a especificidade matemática do ente como coisa 2 com a sua
representabi 1 idade susceptível de uma orientação investigativa teórica e
prática 3. Assim se foi gerando o mundo-máquina de Newton e, com ele,
a percepção de uma natureza sem profundidade nem densidade, onde o
novo não irrompe, subjugada que parece estar à omnisciência determinística do demónio de Laplace 4, símbolo da razão instrumental da
Modernidade e do alcance desmesurado da noção de progresso, com que
ela atravessa as Luzes, a Revolução Industrial e a aurora do Século XX 5.
Mas, a esta crença nas possibilidades do homem e da razão, sucede-se a
fragmentação, a suspeita de uma técnica que escapa ao controle humano,
a insegurança face ao rosto invisível do poder tecnocrático, a incerteza, a
dúvida e a angústia perante um tempo em que se cruza a decadência do
consumismo externo, com a pobreza, a fome, a guerra e os flagelos que
planetariamente atravessam o mundo, o qual de abrigo se tornou um perigo
e de lar se transformou em exílio do homem sedento de outros valores,
de maiores certezas e de fundadas esperanças. Tal situação facilmente
degenera em terreno fértil para o florescimento dos mais diversos fundamentalismos, com origens e sinais tão opostos como os que caracterizam
o crescimento de novas seitas religiosas, o desvio totalitarista de troncos
religiosos já existentes, a coloração ecológica de dogmatismos tecidos
num pseudo-respeito pelos valores da terra, ou outras derivações neomitológicas desenvolvidas a partir de algumas racionalidades em crise 6.
É fácil em tais momentos, confundir o místico com o mágico, na medida
em que é o mistério que alimenta tanto uma atitude como a outra. Só que
na derivação mágica do comportamento místico é a manipulação que se
1 Cf. M. HEIDEGGER, "Die Frage nach der Technik", in: IDEM, Vortrdge und
Aufsãtze, Neske Verlag, 1959, pp. 13-44.
2 Cf. IDEM, Qu'est-ce qu'une chose? Trad. de J. Reboul e J. Taminiaux, Paris,
Gallimard, 1971, p. 115.
3 Cf. IDEM, Holzwege, Frankfurt am Main , Vittorio Klostermann, p. 80.
4 Cf. I. PRIGOGINE e I. STENGERS, La nouvelle alliance . Métamorphose de Ia
science, Paris, Gallimard, 1986, pp. 61-69 e 127-132.
1 Cf. M. B. PEREIRA, Modernidade e Tempo. Para uma leitura do discurso moderno,
Coimbra, Livraria Minerva, 1990, pp. 75-88.
6 Cf. IDEM, "Modernidade, Fundamentalismo e Pós-Modernidade", Revista Filosófica
de Coimbra, 1/2 (Out. de 1992), pp. 205-263.
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impõe à racionalidade dando origem ao que se poderia chamar mistificação 7. Em contrapartida, na sua acepção mais autêntica, a experiência
mística, longe de se opor à racionalidade, alimenta-a e alimenta-se dela,
num cruzamento dialéctico entre o efável e o inefável, remetendo para uma
experiência de plenitude que o discurso apenas simbolicamente pode
traduzir.
Mas ao lado desta irrupção dos fundamentalismos, que se traduzem
sempre na negação da diferença e na anulação da racionalidade perante o
dogma, devem ainda assinalar-se três outros fenómenos extremamente
significativos na renovação mística do final do nosso século.
Em primeiro lugar, as experiências proporcionadas pela generalização
dos alucinogéneos a partir da década de 60, que vulgarizaram as experiências transracionais da realidade, dando frequentemente origem a
teorizações de um outro acesso à felicidade, fora dos caminhos trilhados
pela racionalidade científica e mecanicística da Modernidade e pela
sociedade de consumo a que esses caminhos conduziram.
Em segundo lugar, e na sequência dessas experiências, a aproximação operada com os quadros conceptuais do Oriente, quer no aspecto
mais exterior e folclórico, como o domínio do corpo a partir de exercícios físicos enraizados nessas tradições, quer no seu aspecto mais
interior, como as técnicas de meditação e domínio da mente, mais
caracterísiticas das diferentes formas do Budismo, do Confucionismo ou
do Taoísmo.
Finalmente, deve acrescentar-se todo o desenvolvimento de uma
literatura inspirada nos novos caminhos da cientificidade, nomeadamente
no campo das Ciências da Natureza e, mais especificamente, da Física,
cuja inadequação aos traços mais característicos da inteligibilidade
ocidental ao longo da Modernidade é bem manifesta, inclusivamente pelo
testemunho dos seus próprios protagonistas.
Entretanto, não deixa de ser interessante e significativo articular
esta procura de fundamentos para a nova ciência no misticismo oriental
com a inspiração mística de algumas tentativas de desconstrução da racionalidade moderna no campo estritamente filosófico e metafísico, tentando,
com essa desconstrução, inverter a história do "esquecimento do ser" e
abrir novas clareiras de plenitude para a serenidade a que existencialmente
se aspira e para a harmonia com o Uno inefável que transcende infinitamente as suas concretizações nos coisificados entes da nossa sociedade
7 Cf. H. ATLAN, Com razão ou sem ela. Intercrítica da ciência e do mito, trad. de
F. L. Gaspar e C. Gaspar, Lisboa, Instituto Piaget, 1994, p. 85.
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tecno-científica 8. É na elaboração de uma síntese filosófica que se
encaminha nesta direcção que Heidegger parece antever a superação da
crise da metafísica ocidental , mas uma reflexão séria sobre os traços
dominantes do modelo de inteligibilidade científica que, à falta de melhor
termo , podemos continuar a designar "pós-moderno", proporciona-nos
igualmente a possibilidade de estabelecer uma outra ponte , não meramente
ao nível desconstrutivista ou no quadro ético da procura de um outro chão
para a harmonia serena da presença do ser, mas também ao nível das traves
positivas de sustentação de uma visão da realidade mais consentânea com
a racionalidade científica actual e claramente pertencente à nossa tradição
filosófica ocidental . O que pretendemos afirmar é que se é importante o
encontro com o pensamento dos povos orientais, o seu misticismo não é
o único que proporciona um quadro mental adequado a certas formas da
racionalidade científica pós - moderna , já que , mergulhando nas nossas
raízes mais autênticas , subvertidas pelos múltiplos "ismos" florescentes
entre o Século XVII e o Século XX, é-nos possível reencontrar veredas
perdidas que nos teriam conduzido a uma outra relação com o ser e
com os entes e vias para a reabertura de um diálogo interrompido
pela colonização exercida sobre o Oriente que ainda hoje teima em
ocidentalizar- se no que de mais viciado a Europa e a América têm para
lhe oferecer.
É evidente que não há, no horizonte em que se situam as reflexões
propostas, qualquer confusão entre o âmbito da mística e o campo das
ciências : uma é a experiência mística do mergulho na fonte originária
do ser, outra é a experimentação científica construída no quadro de
uma pesquisa sobre os fenómenos naturais . São efectivamente " dois jogos
de discurso e de silêncio", em que, como diz H. Atlan, "os limites do
discurso científico são o não dito desse discurso" e "os limites do discurso
místico residem precisamente no próprio discurso, no dito do discurso",
"pois, por definição o que há para dizer não pode ser dito ." 9 No entanto,
não nos parece, como as palavras deste mesmo autor sugerem, que a
sua complementaridade seja de procurar apenas ao nível da vivência
8 É neste sentido que M. B. Pereira, em artigo publicado recentemente
nesta Revista
("Hermenêutica e desconstrução", Revista Filosófica de Coimbra, 111/6 (Out. de 1994),
pp. 229-292), entende uma certa presença de Mestre Eckhart ao longo de todo o
desenvolvimento da filosofia de Heidegger ( Idem, ibidem , pp. 255-283), bem como a
respectiva articulação com algumas tradições místicas orientais , mais acentuada nos últimos
anos da sua vida ( Idem, ibidem , pp. 283-292).
' H. ATLAN, op. cit., p. 215.
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ética 10. O que julgamos estar em questão é a dimensão macro-paradigmática ou os suportes dos grandes quadros de inteligibilidade do
real. É aí, nessa dimensão mais profunda em que se geram as formas de
olhar para a realidade, que a reflexão sobre os pontos de cruzamento da
ciência com a mística pode ser fecunda (sem com isso pretendermos
afirmar que o objecto específico da racionalidade científica é comum ao
da espiritualidade mística), porque é daí que fluem as linhas lógicas da
percepção última da realidade.
Isto é tanto mais pertinente quanto a mística que vamos enfrentar não
é uma pura mística do indizível, que investiria mais nos sentimentos, nos
afectos e na vontade do que na mente humana, mas é antes uma "mística
do logos" que faz justamente do discurso e do conhecimento a via
privilegiada de acesso ao fundo mais denso que se joga na sua dialéctica
da ocultação e da desocultação. Ela desenvolve-se na Europa na transição
da Idade Média para a Idade Moderna e se, em muitos aspectos, prenuncia
traços constitutivos da Modernidade, em muitos outros ultrapassa a
racionalidade determinista que esvaziou, ao longo desta época histórica,
a natureza e a realidade do seu encanto e da sua complexidade.
2. Tendo em conta estas considerações já esboçadas, o percurso que
iremos iniciar será constituído por dois momentos relativamente distintos.
Em primeiro lugar, procuraremos ver em que medida é que é possível
especificar e caracterizar um quadro mental, com contornos claramente
místicos, na transição do pensamento medieval para a racionalidade
científica moderna, ou seja, em que medida é que a passagem do "cosmos
medieval" para o "universo moderno" foi aberta por intuições enraizadas
no misticismo renascentista , nomeadamente em Nicolau de Cusa como
foco de irradiação desse misticismo. Em segundo lugar, preocupar-nos-emos em articular a mundividência subjacente às grandes conquistas do
Século XX e a mudança macro-paradigmática por ela implicada, com
concepções nucleares do mesmo misticismo, o que nos permitiria concluir
que ele, afinal, conteria em si próprio sementes que só muitos séculos
10 IDEM, ibidem, p. 222: "Assim, a eventual união destas duas formas de conhecimento
- místico tradicional resultante numa ética , e científico resultante num domínio
tecnológico - não pode ser da ordem de um conhecimento formulado, de uma metateoria
que as englobaria a ambas, mas da ordem da vivência individual e social e da prática dos
homens que a ela se entregam". É também numa direcção idêntica que vão as relações
entre ciência e religião na opinião de M. Planck, segundo o testemunho de Heisenberg
(cf. W. HEISENBERG, Diálogos sobre Física Atómica, trad. de J. C. Ferreira, Lisboa,
Editorial Verbo, 1975, pp. 117-118).
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depois parecem estar a germinar. Para tal, não iremos forçar os autores a
dizer o que efectivamente não disseram nem escreveram, mas procuraremos descobrir tão-só o potencial que as suas "conjecturas" eventualmente
comportavam e a actualidade de que ainda hoje se revestem.
O pensamento de Nicolau de Cusa e a Revolução Científica
do Século XVII
3. Nicolau de Cusa é uma figura controversa nos alvores da Ciência
Moderna. Se há autores que não hesitam em reconhecer-lhe o lugar de
pioneiro de alguns traços mais característicos da nova visão do mundo,
outros há que afirmam peremptoriamente a sua insignificância como
homem de ciência. Assim, Maurice de Gandillac, por exemplo, na sessão
da "Société Française de Philosophie" realizada a 20 de Março de 1965,
afirmava em termos bastante explícitos: "Levando às suas consequências
extremas as considerações ockhamistas sobre a unidade da mecânica
celeste e da mecânica `sublunar', ao mesmo tempo que os contributos
de um estudo sobre o `infinito', prosseguido de diversas formas pelos
doutores da via moderna, o autor da Douta ignorância é o primeiro
filósofo, parece, que aplica à `machina mundi' a velha fórmula pseudo-hermética da esfera infinita, cujo centro está em toda a parte e a
circunferência em parte alguma. O universo perdeu todo o ponto fixo e
pode estender-se sem limites. É ao espírito que compete dar-lhe forma e,
neste trabalho, a matemática desempenha um papel menos místico e
simbólico que propriamente instrumental." 11 Idêntica posição adoptam
outros autores, como, por exemplo, F. Nagel, que considera o Cardeal
alemão como um verdadeiro precursor de Galileu, mesmo no campo da
ciência experimental 12, ou Rombach, que proporciona a fundamentação
das primeiras páginas da obra de Nagel, admitindo explicitamente que a
obra cusana é um marco importantíssimo na passagem de uma ontologia
11 Maurice de GANDILLAC, "Actualité de Nicolas de Cues", Bulletin de Ia Société
Française de Philosophie, Scéance de 20 Mars 1965, LIX (1966), p. 2. A sobredeterminação instrumental da utilização das matemáticas por Nicolau de Cusa merece-nos
algumas reservas que, mais adiante, teremos oportunidade de explicitar.
12 F. NAGEL, Nicolaus Cusanus und die Entstehung der exakten Wissenschaften,
Münster, Aschendorff, 1984, p. 3: "Ohne daB Cusanus über das notwendige experimentelle
und mathematische Rüstzeug verfügt, entwirft er hier [in De staticis experimentis] die
Idee einer Kombination von Mathematik und funktionaler Naturwissenschaft. Erst
hundertfünfzig Jahre spãter wird Galileo Galilei diesen Ansatz aufgreifen und ihn mit seiner
Erfindung der experimentellen Methode in seiner scienza nuova vollenden."
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substancialista para uma ontologia funcionalista , substrato da moderna
racionalidade científica 13. Já as considerações de Karl Jaspers, quando se
trata de responder a esta questão , não deixam qualquer margem para
dúvidas: "O Cusano não pertence aos fundadores directos da Ciência
Moderna." 14
Mais ponderadas e menos radicais nos parecem as posições de R.
Haubst e de Thomas McTighe , que, sem excluírem articulações específicas
entre o pensamento deste filósofo e a nova ciência que tardava em emergir,
admitem sobretudo que ele teria esboçado um horizonte conceptual bem
mais compatível com as futuras descobertas científicas do que aquele que
era oferecido pela filosofia aristotélico - tomista. O primeiro sublinha a
abertura que o pensamento filosófico - teológico deste autor proporcionou
ao progresso das Ciências da Natureza 15; o segundo entende que "embora
ele tenha dado poucas contribuições ao empreendimento da nova ciência,
a sua obra comporta um grande significado no que se refere à teoria da
ciência." 16
É também em tal quadro que, ao longo desta primeira parte das nossas
reflexões , pretendemos movimentar- nos. O que significa que nos interessa
fundamentalmente explicitar em que medida é que considerações e
trabalhos mais científicos deste místico renascentista são determinados, na
sua base filosófico - epistemológica, por uma atitude e um travejamento
conceptual de natureza mística , fora dos quais perderiam todo o seu
sentido . Neste âmbito, interessam-nos especialmente três domínios: a
matemática , a cosmologia e as ciências experimentais , pois foram justamente estes os domínios mais salientados por aqueles que colocam este
pensador no número dos precursores da Ciência Moderna.
13 Cf. H . ROMBACH , Substanz, System und Struktur. Die Ontologie des Funktionalismus und der philosophische Hintergrund der modernen Wissenschaft , 1, Freiburg,
München , 1965, pp . 173-179.
14 X. JASPERS , Nikolaus Cusanus , München, Piper & Co ., 1964, p . 138. E na mesma
página justifica autor a sua afirmação com estas palavras : " Er hat keine empirische
Untersuchung methodisch durchgeführt , hat keine einzige wirkliche Entdeckung gemacht.
Insofern hat er keinen Ort in der Geschichte irgend einer Wissenschaft."
15 R. HAUBST, Nikolaus von Kues und die moderne Wissenschaft, Trier, Paulinus
Verlag, 1963, p . 16: "Es [das Beispiel des Cusanus ] hat vielmehr positiv demonstriert, wie
ein tief fundiertes philosophisch - theologisches Denken prinzipiell für alie Fortschritte der
Naturerkenntnis offen seio kann und mula unter Umstãnde sogar die exakte Forschung aus seiner hóheren oder weiteren Perspektive - mit neuen Impulsen vorantreiben kann."
16 Thomas McTICHE , " Nicholas of Cusa's theory of science and its metaphysical
background ", in: Nicolà Cusano agli inizi del mondo moderno, Firenze Sansoni Editore,
1970, p. 319.
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4. O Renascimento poderia caracterizar-se, sob o ponto de vista
da articulação entre discurso, razão e linguagem, por dois fenómenos
sintomáticos, de sentido aparentemente divergente, mas susceptíveis de
uma síntese unificadora a um nível mais profundo: por um lado, devido
à desagregação dos grandes impérios medievais, com a consequente
irrupção de tendências conducentes à formação de Estados nacionais,
verifica-se uma grande implementação das línguas naturais, como plastificação discursiva desse nacionalismo, o que determina progressivamente
a cunhagem de conceitos em termos novos e nem sempre adequados a essa
transformação; por outro lado, o desenvolvimento e quantificação das
Ciências da Natureza, com a subsequente subalternização de perspectivas
mais qualitativas, bem como a aspiração a uma linguagem exacta que
traduzisse essa mesma quantificação , conduzem a um aperfeiçoamento da
Matemática, cuja importância como nova linguagem e instrumento
conceptual se vai impondo progressivamente 17. E no cruzamento destas
duas tendências, às quais se poderia juntar a renovação do interesse por
um uso perfeccionista das línguas clássicas, que Nicolau de Cusa mostra
a sua fecundidade e, ao mesmo tempo, a liberdade e independência com
que vive criativamente as marcas do seu tempo. Com efeito, não deixa de
escrever em latim, mas, ao mesmo tempo, o latim que escreve permite-nos conjecturar que terá pensado mais em alemão do que na língua
de Cícero. Por outro lado, a matemática merece-lhe uma atenção tal
que o conhecimento que dele se teve ao longo dos primeiros séculos
da Modernidade será mais um resultado do interesse que os seus escritos matemáticos terão despertado, do que consequência da sua obra
filosófica 18.
17 E. CASSIRER, "Die Bedeutung des Sprachproblems für die Entstehung der neueren
Philosophie", in: Festschrift Meinhof, Hamburg, L. Friedrichen, 1927, p. 510: "Je mehr
diese [Natur] Erkenntnis in sich selbst erstarkt, um so mehr ist sie auch bemüht, sich eine
selbstãndige Sprache zu schaffen und deren Eigenrecht zu vertreten. Aus Bestrebungen
dieser Art, aus der Forderungen des technischen Wissens und der mathematischnaturwissenschaftlichen Erkenntnis, entfaltet sich das Verlangen nach einen sprachlichen
Instrument, das beweglich und bildsam genug ist, um sich jedem Schritt des Gedankens
auf diesem neuen Wege anzupassen. [...] Techniker und Künstler, Mathematiker und
Naturforscher, Mãnner wie Bruneleschi und Alberti, wie Leonardo und Galilei sind an
diesem ProzeB der Entwicklung eines neuen sprachlichen und eines neuen ' Stills' beteiligt."
18 Cf. S. MEIER-OSER, Die Prãsenz des Vergessens. Zur Rezeption der Philosophie
des Nikolaus Cusanus von 15. bis 18. Jahrhundert, Münster, Aschendorff, 1989, pp. 43 e
ss. Cf. também F. NAGEL, op. cit., p. 140: "Sehr viele Mathematiker und Fachgelehrter
waren darüber hinaus auch mit dem Inhalt der mathematischen Schriften des Cusanus im
UmriB, meist aber sehr viel ausführlicher vertraut."
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O que torna, entretanto, exemplarmente importante a relação de
Nicolau de Cusa com a Matemática, no momento de transição do Pensamento Medieval para a Ciência Moderna, é o facto de ele proporcionar
os fundamentos para a percepção e afirmação da sua superioridade
cognitiva e da sua exactidão, mas, ao mesmo tempo, não a entronizar
como a linguagem expressiva por excelência da plena transparência do real
à razão (base fundamental do novo racionalismo e da nova matematização
das Ciências da Natureza).
É verdade que o Cardeal alemão foi um matemático insigne do seu
tempo e que os seus interesses por essa ciência se foram aprofundando
desde o conhecimento travado com Paolo Toscanelli, aquando da sua
estadia em Pádua, com o qual manterá um estreito contacto até à hora da
sua morte. A atestar esses interesses está a quantidade de escritos sobre a
ciência dos números e das figuras, redigidos entre 1445 e 1459, e que
ultrapassam mais de uma dezena. No entanto, não menos importante que
constatar esse facto, é compreender-lhe o sentido. E, neste quadro, torna-se claro que o seu interesse matemático só através da sua transposição
para a actividade filosófica é que ganha plenamente sentido. A justeza
desta interpretação manifesta-se em várias afirmações do autor, como
quando explicita a sua divisão tripartida da actividade especulativa,
colocando precisamente a Matemática como uma ciência intermédia entre
a Física e a Teologia: "Deves pressupor, abade, aquilo que outras vezes
ouviste de mim, ou seja, que são três as formas de investigação especulativa. A mais baixa é a Física, que trata da natureza e considera as
formas não abstractas e sujeitas ao movimento [...1. Outra forma de
especulação é a que trata da forma absoluta e do todo estável, ou seja, da
forma divina. Ela é abstraída de qualquer alteridade, pelo que é eterna,
sem mudança e variação.[...] Há, enfim, um tipo de especulação média,
que olha as formas não abstractas mas todavia imóveis e chama-se
especulação matemática." 19
No entanto, esta situação intermédia da Matemática não significa uma
desvalorização do grau de certeza que nela é possível atingir, já que,
19 NICOLAU DE CUSA, De possest, H. XI2, n° 62 e n ° 63, pp. 73-74 ( as obras de
Nicolau de Cosa serão citadas a partir da edição crítica da Academia de Heidelberg - sigla
H, seguida do respectivo volume -, à excepção das que ainda não foram publicadas em
tal edição e que serão citadas de NIKOLAUS VON KUES, Philosophisch- theologische
Schriften, III, Hrsg . v. L. Gabriel, Wien, Herder , 1967 - sigla SCHR. III - ou de alguns
escritos matemáticos que citaremos a partir da Edição de Paris de 1514, publicada pela
Minerva, de Frankfurt , em versão fac-similada , em 1962 - Sigla PARIS). Para a inspiração
aristotélica subjacente a esta divisão tripartida cf. ARISTÓTELES, Metaphysica , E, n° 1,
1026 a, 18-19 e K , n° 7, 1064 b, 1-3.
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subjacente a toda a gnoseologia cusana e à sua passagem de uma
metafísica do ser para uma metafísica do sujeito ou da mente 20, há a
aceitação de que o homem pode conhecer de modo preciso aquilo que
brota exclusivamente do seu pensamento, como é o caso dos entes
matemáticos: "Com efeito, as entidades matemáticas, que procedem da
nossa razão e que experimentamos em nós como no seu princípio, são
conhecidas por nós de modo preciso como entes da nossa razão, ou seja,
com a precisão racional da qual procedem, tal como os entes reais são
conhecidos de modo preciso com aquela precisão divina com que vêm ao
ser." 21 O conhecimento matemático é, assim, uma explicação da própria
mente humana. É evidente que pareceria possível estabelecer um paralelo
entre esta afirmação e a distinção operada por Galileu entre "conhecimento
intensivo" e "conhecimento extensivo": "Convirá recorrer a uma distinção
filosófica e referir que o entendimento se pode tomar com dois sentidos,
intensive ou extensive. Extensive significa que em relação à multiplicidade
dos inteligíveis, que é infinita, o entendimento é praticamente nulo, ainda
que lhe fosse possível compreender mil proposições, dado que mil em
relação ao infinito é equivalente a zero; mas se o termo entendimento,
tomado na acepção intensive, significa a compreensão intensiva, isto é,
perfeita, de uma proposição, direi então que o entendimento humano
compreende algumas proposições tão perfeitamente e alcança uma certeza
tão absoluta quanto a própria natureza. Tal é o caso, por exemplo, das
proposições das ciências matemáticas puras, a saber, a geometria e a
aritmética; o intelecto divino conhece um número delas infinitamente
maior, dado que as conhece todas, mas, se o intelecto humano conhece
poucas, julgo que o conhecimento que delas tem iguala, em certeza
objectiva, o conhecimento divino, porque chega a compreender a sua
necessidade, e esse é o mais alto grau de certeza." 22 Há, todavia,
subjacente a estas considerações de Galileu, o projecto de uma plena
20 Cf. K.-H. VOLKMANN-SCHLUCK, "Die Philosophie des Nicolaus von Kues.
Eine Vorform der neuzeitlichen Metaphysik", Archiv für Philosophie, 3 (1949), p. 380.
21 Cf. NICOLAU DE CUSA, De possest, H. X12, n° 43, p. 52. E o autor acrescentará
de imediato: "Et non sunt illa mathematicalia neque quid neque quale sed notionalia a
ratione nostra elicita, nine quibus non posset in suum opus procedere, scilicet aedificare,
mensurare et cetera. Sed opera divina, quae ex divinu intellectu procedunt, manent nobis
uti sunt praecise incognita, et si quid cognscimus de illis, per assimilationem figurae ad
formam coniecturamur." (IDEM, ibidem, pp. 52-53). Sobre o estatuto ontológico das
entidades matemáticas em Nicolau de Cusa, num confronto com Platão e Aristóteles, cf.
F. NAGEL, op. cit., pp. 35-61.
22 GALLILEO GALILEI, Dialogo dei massimi sistemi, Giornata prima, in: IDEM,
Opere, a cura di F. Flora, Milano, Riccardo Ricciardi Editore, 1953, pp. 461-462.
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matematização da ciência, nomeadamente da Física, cuja perfeição e
verdade estariam garantidas pela perfeição e pela verdade da linguagem
utilizada. Mas Nicolau de Cusa está ainda longe de tal ideal científico,
embora se situe nas suas fronteiras, que não chega propriamente a
franquear.
Com efeito, nele a Matemática continua ao serviço de um projecto
filosófico-teológico que visa criar as condições de possibilidade para uma
"symbolica investigatio" sobre o infinito (e daí que a noção de inifinito seja um dos factores de potencialização das suas especulações
matemáticas). É por isso que se podem circunscrever a três ou quatro
questões os seus estudos matemáticos, salientando-se, entre elas, a questão
da quadratura do círculo e a questão das transmutações geométricas.
O motivo dessa opção não é difícil de descortinar: elas são, na verdade,
aquelas que estão mais ligadas aos seus interesses filosóficos 23. O próprio
Nicolau de Cusa frequentemente se refere às suas investigações matemáticas como uma forma de pôr à prova o seu princípio da "coincidência dos
opostos" 24, tendo plena consciência de que, dessa forma, não só abria vias
filosófico-teológicas ainda por explorar, como também inaugurava uma
nova arte no domínio das Matemáticas, susceptível de permitir uma
resolução de problemas que o primado do aristotélico princípio de não-contradição até aí não permitira equacionar devidamente 25.
Compreende-se, assim, que, após ter concluído o seu De mathematicis
complementis, se sinta impelido a redigir o Complementum theologicum,
cujo objectivo fundamental se traduz numa tematização da "utilidade
transcendente" da Matemática, relativamente à consideração do infinito em
termos teológicos 26. Todas estas considerações nos permitem concluir
23 Veja-se F. NAGEL, op. cit., p. 61: "Diese Beschrankung der Themenwahl in den
mathematischen Schriften ist kein Zufall. Sie hãngt vielmehr mit der speziellen
Problemstellung jener Aufgaben zusammen, die nach Ansicht des Nicolaus Cusanus seinen
philosophischen Interessen in besonderer Weise entgegen kommt."
24 Cf., por exemplo, o seu De mathematica perfectione, PARIS, II, Fol. 101 r, onde
afirma explicitamente: "Intentio est oppositorum coincidentia mathematice venari
perfectionem."
25 Cf. IDEM, De geometricis transmutationibus, PARIS, II, Fol. 33 r.
26 Pode, pois, ler-se nas primeiras linhas do Complementum theologicum (Cap. 1,
SCHR. III, p. 650): "Scripseram proxime de mathematicis complementis ad pontificem
nostrum Nicolaum V, dignissimum atque doctissimum papam. Visum autem est mihi non
decere opusculum illud promulgari, quasi de mathematicis in meo ordine ac tanta aetate
mihi licuerit ad ecclesiae rectorem scribere nisi adiciam illius utilitatem transcendenter in
theologicis figuris." Veja-se também a carta do autor ao Abade e aos Monges de Tegernsee,
datada de 14 de Setembro de 1453: "Scripsi his diebus De mathematicis complementis
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que "a nova arte das matemáticas" ensaiada por Nicolau de Cusa só
ganha sentido no enquadramento no seu pensamento místico-teológico,
como, aliás, o demonstra a sua utilização, no De docta ignorantia, no De
coniecturis, e no Complementum theologicum.
5. Um segundo domínio em que o pensamento deste autor tem vindo
a ser resgatado do esquecimento diz respeito às suas afirmações
cosmológicas, que inaugurariam a passagem de "um mundo fechado" ao
"universo infinito" 27. No entanto, e na sequência da interpretação da
relação entre misticismo e ciência que temos vindo a desenvolver, seria
erróneo desarticular as revolucionárias fórmulas cusanas da inspiração
místico-teológica que as suporta e que também, de certo modo, as limita.
Assim, essas suas teorias são sobretudo desenvolvidas nos capítulos
11 e 12 do segundo livro do De docta ignorantia. E o que deve ser
salientado é que o capítulo 11 aparece precisamente subordinado ao título
"Corolários sobre o movimento", o que significa que é das anteriores
considerações filosóficas e místicas que se deduzem os novos princípios
cosmológicos. Daí que essas primeiras afirmações resultem simplesmente
do reconhecimento da expressão da Trindade divina no universo e da
presença de Deus em tudo: "Do que dissemos, sabemos que o universo é
trino; que não há universo algum que não seja uno pela potência, o acto
e o movimento da conexão. Nenhum deles pode subsistir absolutamente
sem o outro, pelo que é necessário que existam em todas as coisas segundo
os graus mais diversos. [...] É impossível, portanto, que a máquina do
mundo tenha um centro fixo e imóvel (seja ele a terra sensível, o ar o fogo
ou outro), se se considerarem os diversos movimentos das esferas celestes.
No movimento não se chega ao mínimo simples, isto é, ao centro imóvel,
porque o mínimo coincide necessariamente com o máximo. O centro do
mundo coincide portanto com a circunferência." 28 E, a confirmar o que
libellum ad S. d. Nicolaum papam, qui rarissimus est, nam omnia actenus incognita
manifestat in mathematicis; in cui libello adiunxi allium De theologicis complementis
in quo transtulli mathematicas figuras ad theologicam infinitatem." (In: E.
VANSTEENBERGHE, "Autour de Ia docte ignorance. Une controverse sur Ia théologie
mystique au XV siècle", Beitrâge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters, XIV
(1955), p. 116).
27 Alexandre Koyré (Du monde cios à l'univers infini, Paris, Gallimard, 1973, p. 19)
afirma, a propósito desta transição o seguinte : "Et pourtant ce fui Nicolas de Cues, le
dernier philosophe de Ia fin du moyen ãge déclinant , qui, le premier, rejeta Ia conception
médiévale du Cosmos e à qui, bien souvent , est attribué le mérite, ou le crime, d'avoir
affirmé 1'infinité de l'Univers."
28 NICOLAU DE CUSA, De docta ignorantia, L. 11, Cap. 12, H. 1, pp. 99-100.
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acima dissemos , afirma- se igualmente algumas linhas depois: "Logo, como
não é possível que o mundo esteja encerrado entre um centro corpóreo e
uma circunferência , o mundo não é inteligível , sendo Deus o seu centro
e a sua circunferência ." 29 E para quem pensar que é a infinitude do
universo que aqui se supõe, tal questão é clarificada, de imediato, com
as seguintes palavras: "E porque o mundo não é infinito , não pode contudo
ser concebido como finito, já que carece de limites , dentro dos quais possa
estar encerrado." 30
É um passo grande aquele que aqui é dado relativamente ao fim da
noção de cosmos medieval , mas concordamos com a interpretação de
Koyré , quando afirma que "só podemos compreender [ esta concepção]
como uma tentativa para exprimir e sublinhar a falta de precisão e de
estabilidade do mundo criado." 31
Este passo acentua- se com o reconhecimento de dois outros elementos
extremamente importantes para a nova visão do universo: por um lado, a
afirmação de que também a terra se move 32 e, por outro lado, a consciência de uma certa homogeneidade entre a terra e os outros astros, na
composição dos quais entram , embora em proporções diversas , idênticos
elementos 33 . Importa , no entanto , sublinhar que estas afirmações, se em
alguns pontos podem ultrapassar a própria teoria copernicana, pela
adivinhada destruição do cosmos antigo e medieval , por outro lado, não
traduzem nada que se pareça com uma perspectiva heliocêntrica , dado que
se reconhece que a Terra , embora se mova , descreve um círculo mínimo,
estando por isso muito mais perto do repouso do que qualquer outro
astro 34. Não há , no entanto , qualquer dúvida de que, sobre este chão
místico , é uma nova cosmologia que começa a emergir 35
29 IDEM , ibidem , p. 100.
30 IDEM , ibidem.
^1 A. KOYRÉ, op. cit. p. 25.
32 NICOLAU DE CUSA, De docta ignorantia , L. II, Cap. 12, H. 1, p. 103: "Iam nobis
manifestum est terram istam in veritate moveri , licet nobis hoc non appareat."
33 IDEM , ibidem , p. 103: "Considerato enim corpore solis , tunc habet quandam quasi
cerram centraliorem et quandam luciditatem quasi ignilem circunferentialem et in medio
quasi aequam nubem et aërem clariorem, quem admodum terra ista sua elementa."
34 Cf. IDEM , ibidem , p. 102. Veja-se também, a este propósito , D. MAHNKE,
Unendliche Sphüre und Allmittelpunkt , Stuttgart , Friedrich Frommann Verlag, 1996 (rep.
fac-similada da edição de Halle de 1937), pp. 90 e 96.
35 Estamos , pois, de acordo com a opinião do autor referido na nota anterior, quando
afirma ( p. 86): "Im zweiten Buche seines ersten Hauptwerkes dagegen schlãgt er einen
võllig nenen Weg ein, indem er die geometrischen Symbole vom gõttlichen Jenseits
auf das gottentsprungene Dieseits übertrágt und mit ihrer Hilfe eine immanent-
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6. Ainda no que se refere à relação de Nicolau de Cusa com o(s)
paradigma(s) científico(s) da Modernidade, merece especial atenção o
quarto diálogo do Idiota, intitulado precisamente De staticis experimentas.
Alguns autores pretendem ver neste texto um dos primeiros esboços de
uma ciência quantitativa e experimental que só séculos depois atingiria
alguma maturidade. É nessa linha que se situa Maurice de Gandillac, que
afirma explicitamente: "Em relação às antigas matematizações platónicas
ou neopitagóricas, as fórmulas do Cusano - mais nitidamente ainda do
que as de um Oresme - têm o incontestável mérito de escapar ao pressuposto qualitativista, sem com isso sucumbir à magia simbolista, de sentir
o valor das medidas experimentais sem regressar ao culto das ideias-números, à atracção das `harmonias místicas- 36.
É certo que neste escrito são avançadas hipóteses extremamente
significativas sobre as possibilidades de uma ciência experimental baseada
nos pesos conseguidos através duma minuciosa utilização da balança, sem
descurar, sobretudo, as aplicações utilitárias que daí poderiam advir. Fala-se, por exemplo, no peso das águas das diferentes fontes 37, no peso das
urinas de sãos e doentes em ordem a um mais correcto diagnóstico 38, fala-se, até, no próprio peso do ar inspirado e expirado 39. Sugerem-se
experiências para distinguir metais e pedras preciosas 40, para pesar a força
de um íman 41, para avaliar o estado higrométrico da atmosfera 42 e medir
a resistência do ar à queda dos corpos de diferentes formas e volumes 43
Tudo isto demonstra efectivamente uma grande atenção aos dados experimentais e à respectiva quantificação a partir do seu peso.
Parece-nos, no entanto, que para situar correctamente estas audazes
intuições é necessário ter em conta três pontos que se nos afiguram
fundamentais.
Em primeiro lugar, todas estas considerações se apoiam numa inspiração bíblica, como o próprio texto, logo no início, refere: "Um profeta
naturwissenschaftliche Einsicht von entscheidender Bedeutung gewinnt: aus dem Geiste
der mathematischen Mystik wird hier níimlich die moderne, exakte Kosmologie geboren,
oder wenigstens eine für sie grundlegende Erkenntnis : die der unendlichen
mittelpunktslosen Ausdehnung der Sternenwelt."
36 Maurice de Gandillac, art. cit., p. 14.
37 Cf. NICOLAU DE CUSA, Idiota de staticis experimentis, n° 163, H.V, p. 222.
31 Cf. IDEM, ibidem.
39 Cf. IDEM, ibidem, n° 165, pp. 223-224.
411 Cf. IDEM, ibidem , nIa 172-174, pp. 227-229.
41 Cf. IDEM, ibidem , n° 175, p. 229.
42 Cf. IDEM, ibidem , n°179, pp. 231-232.
43 Cf. IDEM, ibidem , n°180, p. 232.
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disse que o peso e a balança são o juízo de Deus que tudo criou no
número, no peso e na medida, equilibrou as fontes da água e mediu a
quantidade da terra - como escreve o Sapiente." 44 Idêntica afirmação já
havia surgido no De docta ignorantia, quase no final do segundo livro:
"Com admirável ordem os elementos foram constituídos por Deus, que
criou todas as coisas no número, no peso e na medida." 45 No entanto, este
ponto de partida para constatar "a admirável arte divina na criação do
mundo e dos elementos" não pode ser lido fora do seu contexto, como se
fosse uma incursão pré-galilaica na legibilidade matemática do mundo
natural. O contexto em que ele surge é inquestionavelmente estético e
místico, tendo a ver com a concepção de proporção e harmonia com
profundas raízes medievais e origens pitagóricas. Com efeito, no mesmo
capítulo daquela obra, afirmava-se algumas linhas antes: "Deus na criação
do mundo serviu-se da Aritmética, da Geometria, da Música e da Astronomia em conjunto, disciplinas das quais nos servimos também nós quando
indagamos as proporções das coisas, dos elementos e dos movimentos.
Com a Aritmética reuniu-as; com a Geometria deu-lhes uma figura de tal
maneira que, de acordo com as suas condições, tivessem solidez, estabilidade e mobilidade; com a Música deu-lhes proporções tais que não
houvesse mais terra na terra que água na água, ar no ar e fogo no fogo,
de tal maneira que nenhum elemento fosse completamente resolúvel no
outro." 46 E logo a seguir à afirmação anteriormente citada, apressa-se a
esclarecer que "o número diz respeito à Aritmética, o peso à Música e a
medida à Geometria." 47 Neste quadro, devem entender-se as experiências
com a balança, imaginadas, feitas ou apenas sugeridas, como uma forma
que, sem deixar de ter as suas repercussões práticas, não pode ser
desligada da pesquisa da harmonia musical que preside à constituição
dos seres a partir dos seus mais simples elementos, o que nos permite
concluir que, mais do que uma ciência quantitativa, o que tais considerações têm como horizonte é a descoberta da música que soa no mundo
e no universo.
Entretanto e em segundo lugar, deve ainda ter-se em conta que, à
semelhança do que se passa nas suas considerações sobre a linguagem,
em que as palavras concretas surgem como expressões exteriores de um
44 IDEM, ibidem, n° 162, p.
Provérbios, 16, 11 e Sabedoria, 11,
45 IDEM, De docta ignorantia,
46 IDEM, ibidem, pp. 110-111.
47 IDEM, ibidem, pp. 110-111.
n° 94, pp. 139-140.
222. A propósito da inspiração bíblica, veja-se
21.
L. II, Cap. 13, H. I, p. 111.
Cf. também IDEM, Idiota de mente, Cap. 6, H. V,
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nome natural que mais não é do que o símbolo de um verbo indizível,
fundamento transcendental de todo o discurso 48, também no que se
refere à matemática e ao número se verifica uma distância claramente
afirmada entre o número humano e o número divino, do qual o primeiro
não é senão uma longínqua aproximação: "Conjecturando simbolicamente
a partir dos números racionais da nossa mente, sobre aqueles [números]
mais inefáveis da mente divina, dizemos que o primeiro exemplar das
coisas, no espírito do criador, foi o número, do mesmo modo que o número
do mundo, que é feito à sua imagem, brota da nossa razão." 49 Isto
demonstra a clara distância que separa Nicolau de Cusa de Galileu, já
que admitida esta diferença entre os dois tipos de número, nunca o
primeiro poderia dizer que o entendimento humano atingiria uma certeza
idêntica à do entendimento divino na compreensão de uma proposição
matemática.
Esta nota remete-nos, finalmente, para uma outra característica de
todas as afirmações do Idiota de staticis experimentas, que impede de ver
nesse diálogo cusano o nascimento do projecto de uma ciência exacta e
quantitativa do mundo empírico. Com efeito, a regra da "douta ignorância"
nunca é relegada para segundo plano pelo autor desse diálogo, o que
transforma toda e qualquer afirmação feita numa simples conjectura que
é, de acordo com a definição do De coniecturis, "uma afirmação positiva
que participa, na alteridade, da verdade tal como ela é.1150 Só assim se
pode compreender que no diálogo em questão não se encontre uma única
afirmação que permita concluir pela possibilidade de realização de uma
cientificidade precisa. Pelo contrário, quase todas as conclusões fazem
questão em sublinhar a natureza conjectura( dos resultados que uma ciência concebida nesses termos permite obter. Assim se deve entender a frase
com que o "Idiota" abre o diálogo: "Ainda que neste mundo nenhuma coisa
possa atingir a precisão, sabemos, todavia, por experiência, que o juízo
da balança exprime uma maior verdade e é aceite em qualquer lugar." 51
as Cf., a este propósito, IDEM, Idiota de mente, Cap. 2, H. V, n° 64, pp. 98-99, que
se deve articular com o que é dito no mesmo diálogo e no mesmo capítulo, n° 68, p. 104.
Sobre este assunto já nos debruçámos em J. M. ANDRÉ, "O problema da linguagem no
pensamento filosófico-teológico de Nicolau de Cusa, Revista Filosófica de Coimbra, 11/4
(Out. 93), pp. 391-397.
49 NICOLAU DE CUSA, De coniecturis, L. 1, Cap. 2, H. III, n° 9, p. 14. Sobre a
distância e a relação entre o número humano e o número divino, cf. também, IDEM, Idiota
de mente, Cap. 6, H. V, n 88 e 95, pp. 133 e 141.
50 IDEM, De coniecturis, L. 1, Cap. 11, H. III, n° 57, p. 58.
51 IDEM, Idiota de staticis experimentis, H. V, n° 161, p. 221.
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Confirmam esta afirmação as repetidas vezes com que é invocado o
conceito de conjectura ao longo de todo o diálogo 52.
Com estas considerações não pretendemos, de modo algum, desvalorizar o mérito que Nicolau de Cusa possa ter tido para a instauração da
moderna ciência da natureza. Pretendemos antes radicar todas as suas
preocupações científicas no chão do seu misticismo, uma vez que é ele
que as alimenta e lhes dá contornos específicos face aos seus contemporâneos e aos verdadeiros pais da Revolução Científica do Século XVII.
O que demonstra que, neste caso, o misticismo não só não é incompatível
com a nova ciência em processo emergente, mas contribui para esboçar
um quadro conceptual em que ela se integra, mas que ao mesmo tempo
revela os seus limites no que se refere a uma plena transparência dos
fenómenos naturais à racionalidade humana matemática que progressivamente se vai afirmar nas suas certezas e nas suas conquistas.
Traços Filosófico-Epistemológicos duma racionalidade científica
pós-moderna face a alguns traços místico-filosóficos
do pensamento cusano
7. Ao longo do Século XX tem vindo a desenvolver-se, em diversos
domínios, um modelo de inteligibilidade do real, cujos contornos ainda
não são muito claros na sua positividade, mas que sobressaem fundamentalmente pela superação de algumas dicotomias instauradas pela
revolução científica do Século XVII, nomeadamente no que se refere à
contraposição entre sujeito e objecto de conhecimento, matéria e espírito,
determinismo e liberdade, fragmentação especializadora e totalidade
integradora, análise e síntese, natureza e cultura. Entretanto, o que torna
extremamente interessantes os adivinhados contornos deste novo macro-paradigma é a possibilidade da sua articulação com os esboços conceptuais inerentes a outras áreas de experiência do real diferentes daqueles
que são objectivamente definidos pela sede reducionista da experimentação
com a consequente manipulação da natureza. E, por mais estranho que
possa parecer, tais esboços conceptuais são justamente encontrados nos
caminhos de que a Ciência do Século XVII se quis afastar: o fundo inesgotável da percepção mística e, em alguns casos, alquímica, da realidade.
Não é, por isso, de estranhar que um Físico como Wolfgang Pauli, num
ensaio sobre a relação entre a ciência e o pensamento ocidental, afirme
52 Cf., por exemplo , IDEM, ibidem , n° 162, p . 222: "Per ponderum differentiam
arbitror ad rerum secreta verius pertingi et multa sciri posse verisimiliori conjectura."
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que o seu inovador futuro estará na articulação entre o pensamento místico
e o pensamento crítico-racional 53. Tal articulação não deverá ser concebida como uma mera justaposição de perspectivas diferentes, mas como
uma síntese definidora de um solo comum em termos de unidade conceptual 54, que exige a inscrição e a percepção da racionalidade do mistério
numa Pós-modernidade que seja efectivamente capaz de superar a unidimensionalidade racionalista da Modernidade , como diz Miguel B. Pereira:
"Na discussão sobre Modernidade e Pós-Modernidade é a essência da
razão que se interroga e, com ela, a racionalidade do transracional e do
mistério . A diferença na sua pluralidade mítica, científica , filosófica e
teológica põe em risco a sua inteligibilidade, quando se cristaliza numa
transversal idade pura e heterogénea sem traça de unidade , pois, ao contrário do diverso , o diferente eclode de um fundo relacional , que, ao perfazer-se num processo de perfeição , se pluraliza ." 55 É nesta interrogação sobre
a racionalidade da Pós-modernidade e sobre as suas concretizações
científicas e as suas tematizações meta- científicas que nos parece fecundo
o repensamento de alguns traços característicos da mística pré-renascentista
e renascentista , e, nomeadamente , do misticismo especulativo de Nicolau
de Cusa, cujo fundo, em muitos aspectos , comporta alguns contornos
susceptíveis de articulação com a nova racionalidade emergente neste final
do Século XX. Para esse repensamento , interessam - nos, sobretudo, dois
níveis relativamente distintos : por um lado , as considerações que se refe-
53 W. PAULI, "Die Wissenschaft und das abendlãndische Denken", in: H.-P. DÜRR
(Hrsg.), Physik und Transzendenz, Bern/München/Wien, Scherz, 1986, p. 195: "Ich glaube,
daB es das Schicksal des Abendlandes ist, diese beiden Grundhaltungen, die kritisch
rationale, verstehen wollende auf der einen Seite und die mystisch irrationale, das erlosende
Einheitserlebnis suchende auf der anderen Seite, immer wieder in Verbindung miteinander
zu bringen."
Sa Cf. IDEM, ibidem, p. 203 e, sobretudo, p. 204, em que a aspiração a essa síntese,
baseada na penumbra da nova Física, é evidentíssima: "Im Lichte unserer schon aus ãuBeren
Grunden übermãBig knapp zusammengedrãngten historischen Übersicht künnen wir sagen,
daB die heutige Zeit wieder einen Punkt erreicht hat, wo die rationalistische Einstellung
ihren HShepunkt überschritten und ais zu eng empfunden wird. AuBen scheinen alie
Gegensãtze auBerordentlich verschãrft. Das Rationale führt einerseits wohl zur Annahme
einer nicht direkt sinnlich wahmehmbaren, durch mathematische oder andere Symbole aber
erfaBbaren Wirklichkeit, wie zum Beispiel das Atom oder das UnbewuBte. Die sichtbaren
Wirkungen dieser abstrakten Wirklichkeit sind aber andererseits so konkret wie atomare
Explosionen und keineswegs notwendig gut, sondem zuweilen das extreme Gegenteil."
55 M. B. PEREIRA, "Presença da Filosofia Antiga no Pensamento Contemporâneo",
in: As Humanidades Greco-latinas e a Civilização do Universal -Actas do Congresso
Internacional, Coimbra, Faculdade de Letras, 1988, p. 308.
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rem aos pressupostos gnoseológico-epistemológicos da nova discursividade
científica, e, por outro lado, as que se referem aos pressupostos físico-cosmológicos desta nova mentalidade ainda em construção.
8. Uma das consequências do desenvolvimento da História das
Ciências na segunda metade deste Século foi a percepção de que o
conhecimento científico da realidade não é uma representação objectiva
e precisa da mesma, mas sim uma criação do espírito humano que se deixa
estruturar pela situação histórica e social dos investigadores e se vê
sobredeterminada por aquilo a que Thomas Kuhn designou por "paradigmas" ou "matrizes disciplinares", que proporcionam os princípios de
organização e percepção dos próprios factos científicos 56. Reconhecê-lo
é reconhecer que o conhecimento humano é sempre um conhecimento
perspectivístico da realidade que capta a partir de determinados pontos de
vista e a partir de determinados filtros, que, segundo a concepção de
S. Toulmin, pertencem ao campo do que se poderia chamar as "concepções
ideais da ordem natural" 57. Kuhn não hesita mesmo em recorrer a um
vocabulário com profunda carga religiosa e mística para falar daquilo a
que chama revoluções paradigmáticas e tematizar as suas consequências ao nível de cada investigador, ao utilizar explicitamente o termo
"conversão" 58.
Ora, sem pretendermos introduzir problemáticas estranhas e temporalmente desfocadas do horizonte gnoseológico do Séc. XV, parece-nos
interessante constatar que, na já referida viragem operada por Nicolau de
Cusa da Metafísica do Ser para a Metafísica do Sujeito ou da Mente 59, e
no seu aprofundamento do conceito de "douta ignorância" e da dimensão
necessariamente conjectural do nosso conhecimento, está já presente a percepção de que conhecer é criar os contornos de um mundo configurado pela
mente humana na alteridade em que se move relativamente à verdade 60.
5` Cf. THOMAS KUHN, The strucutre of scientific revolutions, 2a ed., Chicago,
University Press, 1970. As mesmas ideias aparecem desenvolvidas e, em certos casos,
ligeiramente corrigidas na obra do mesmo autor, The essential tension, Chicago, University
Press, 1976 (já traduzida para português nas Edições 70, Lisboa, 1989).
57 Cf. S. TOULMIN, L'explication scientifique, trad. de J. Lecercle, Paris, Armand
Colin, 1973.
58 Cf. Thomas KUHN, The structure of scientific revolutions , p. 204.
59 Cf. supra, nota 20.
60 Sobre esta aproximação entre o mundo conjectural de Nicolau de Cusa e os
paradigmas de T. Kuhn, cf. S. SCHNEIDER, "Cusanus ais Wegbereiter der neuzeitlichen
Metaphysik?", Mitteilungen und Forschungsbeitrãge der Cusanus Gesellschaft, 20 (1992),
pp. 205-210.
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Só assim se podem compreender as afirmações com que abre o 1 ° capítulo
do De coniecturis: "As conjecturas devem ter origem na nossa mente como
o mundo real tem origem na razão divina infinita. Quando a mente
humana, nobre imagem de Deus, participa segundo as suas possibilidades
da fecundidade da natureza criadora, ela extrai de si própria, enquanto
imagem da forma omnipotente , entes racionais à semelhança dos entes
reais. A mente humana é forma conjecturai do mundo, como a divina é a
forma real. Por isso, como a entidade divina absoluta é tudo aquilo que é
em qualquer coisa que é, assim a unidade da mente humana é a entidade
das suas conjecturas"'i1. $ claro que a dimensão sociológica da concepção
de paradigma de Kuhn está ausente desta reflexão, mas não o está, de
modo algum , a dimensão perspectivística , que é acentuada quando se trata
de definir o que se deve entender efectivamente por conjectura. Com
efeito, quando o autor declara que todas as afirmações dos sábios não são
senão conjecturas , recorre ao seguinte exemplo para ilustrar a sua tese:
"Quando tu, padre, olhas com os teus olhos a face do Sumo Pontífice, o
nosso santíssimo senhor papa Eugênio IV, fazes dela uma descrição
positiva que consideras exacta de acordo com o olhar. Quando depois te
voltas para a raiz de que deriva a distinção dos sentidos, ou seja, para a
razão, compreendes que o sentido da vista participa da função distintiva
[da razão] na alteridade contraída do órgão. Assim intuis a deficiência que
te afasta da precisão, porque não havias visto esta face tal como é, mas
na alteridade segundo o ângulo dos teus olhos, diferente de todos os outros
olhos dos seres viventes." 62 O conhecimento humano, na sua finitude, está
assim contraído ao ponto de vista e à perspectiva a partir da qual se
realiza, como aliás o documenta também o seu De visione Dei,
nomeadamente nos capítulos introdutórios 63
Daí, a consciência permanente de que o nosso conhecimento é um
conhecimento como que num espelho e por enigmas 64. A alteridade
que marca o conhecimento limita-lhe a precisão e transforma-o, consequentemente, em conhecimento simbólico. Por isso, não deixa de ser
interessante constatar que um Físico, como W. Heisenberg, recorra a uma
expressão praticamente idêntica para falar do próprio conhecimento
científico no quadro das suas investigações em Mecânica Quântica: "Desta
61 NICOLAU DE CUSA, De coniecturis , L. I, Cap. 1, H. III, n° 5, pp . 7-8 (sublinhado
por nós).
12 IDEM , ibidem, L. 1, Cap. 11, H. III, n° 57, p. 58.
" Cf. IDEM, De visione Dei, SCHR . III, pp. 94-100.
64 Cf. IDEM, De docta ignorantia
, L. I, Cap . 11, H. 1, p. 22, inspirado na Carta de
Paulo aos Romanos, 1, 20 e na Primeira Carta aos Coríntios , 13, 12.
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maneira, a Mecânica Quântica é um exemplo maravilhoso de que se pode
ter compreendido com toda a clareza o conteúdo de uma coisa, sabendo-se ao mesmo tempo, no entanto, que só se pode falar de tal conteúdo
através de imagens e comparações" 65. Idêntica expressão utiliza também
Sir James Jeans, matemático e astrofísico inglês, que, depois de comparar
o nosso conhecimento matemático do mundo com "as sombras da Caverna
de Platão", considera a nossa "re-construção" do mundo empírico como
criações abstractas do nosso espírito 66 e a totalidade do mundo como a
actividade de um puro matemático 67. Não seria difícil encontrar no
desfasamento, tematizado por Nicolau de Cusa, entre o número humano
e o número divino um parentesco, ainda que longínquo, com estas
considerações.
Do mesmo modo, a humildade com que a ciência se aproxima da
realidade física desde a formulação do princípio de incerteza de Heisenberg, segundo o qual é impossível determinar simultaneamente a posição
e o momento de uma partícula, não pode deixar de evocar também o
princípio da "douta ignorância" e a natureza conjectural do conhecimento
humano que lhe está associada.
9. Um segundo aspecto em que parece interessante o paralelo com o
pensamento de Nicolau de Cusa, mantendo-nos ainda no âmbito epistemológico, mas já com consequências que ultrapassam o domínio do
conhecimento e do discurso, diz respeito à dupla lógica por ele tematizada
na prossecução da verdade. Por diversas vezes se refere este místico
quatrocentista à necessidade de superar a lógica de não-contradição, como
instrumento da razão para a percepção do mundo empírico quotidiano, pela
lógica da coincidência dos opostos, mais adequada para uma penetração, ainda que incompreensível, na natureza da infinito. Entretanto, os
domínios a que as investigações quer da astrofísica, quer da microfísica
nos abrem são justamente os domínios do que poderíamos considerar como
65 W. HEISENBERG, Diálogos sobre Física Atómica, p. 295 (sublinhado por
nós).
66 James JEANS, "In unerfoschtes Gebiet", in: H.-P. DÜRR, op. cit., p. 52: "Wir
kônnen nur weiterkommen, indem wir die Gesetze erórtern, die die Verànderungen der
Dirige beherrschen und so die Erscheinungen der Auf3enwelt erzeugen. Diese kõnnen wir
mit abstrakten Schüpfungen unseres eigenen Geistes vergleichen."
67 IDEM, ibidem: "Auf die gleiche Weise hat das wíssenschaftliche Studium der
Tãtigkeit des Weltalis zu einer Schluf3folgerung geführt, die, obschon sehr roh und durchaus
unzulanglich, weil unsere Sprache nur von irdischen Begriffen und Erfahrungen hergeleitet
ist, in der Feststellung zusammengefaf3t werden kann, daf3 das Weltall von einem reinen
Mathematiker erdacht worden zu sein scheint."
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o tendencialmente infinitamente grande e o tendencialmente infinitamente pequeno, ou seja, os domínios que se aproximam daquilo a que
Nicolau de Cusa chamou o Máximo e o Mínimo. Ora, relativamente a este
aspecto, uma das primeiras conclusões a que o conjunto de cientistas que
esteve na origem da Nova Física chegou foi a de que a lógica e a
linguagem utilizadas na Física Clásica eram insuficientes e inadequadas
para a compreensão das novas descrições da estrutura da matéria. É, mais
uma vez, Heisenberg quem nos dá conta desta constatação nos seus
Diálogos: "Penso que todo este complexo conjunto de inter-relações se
tornou mais acessível ao pensamento com o conhecimento da teoria
quântica, pois nesta, graças à linguagem abstracta das matemáticas,
logramos formular ordens unitárias acerca de domínios muito amplos;
porém, ao mesmo tempo, damo-nos conta de que, quando queremos
descrever em linguagem corrente os efeitos destas ordens, temos de acudir
às comparações, aos pontos de vista complementares, que implicam
paradoxos e contradições aparentes." 68 Também numa linha idêntica e
numa linguagem verdadeiramente paradoxal, que faz lembrar muitas
das expressões igualmente paradoxais do Cardeal alemão, afirma J. R.
Oppenheimer: "Se perguntarmos, por exemplo, se a posição de um electrão
permanece invariável temos de responder `não', se perguntarmos se a
posição do electrão se altera com o tempo, temos de responder `não'; se
perguntarmos se o electrão se encontra em repouso, temos de responder
`não'; se perguntarmos se se encontra em movimento, temos de responder
,não'." 69 E, comentando esta afirmação, diz Fritjof Capra: "Energia e
matéria, ondas e partículas, movimento e repouso, existência e não-existência - estes são alguns dos conceitos opostos ou contraditórios
que são transcendidos na Física moderna. De todos estes pares, o último
parece ser o fundamental, e, no entanto, em Física atómica, temos de
alcançar ainda mais longe do que os conceitos de existência e não-existência." 70
Esta reformulação da harmonia dos opostos, que aparece postulada
pelos autores acabados de citar, parece estar também presente, de certo
modo, no conhecido princípio de complementaridade, formulado por Niels
Bohr, para dar conta do dualismo entre a imagem de ondas e a imagem
6" W. HEISENBERG, op. cit., p. 302 (sublinhado por nós).
611 J. R. OPPPENHEIMER, Science and the Common Understanding, London, Oxford
University Press, 1954, pp. 42.-43, apud F. CAPRA, O Tao da Física. Uma exploração
dos paralelos entre a Física moderna e o misticismo oriental, Trad. de M. J. Q. Dias e J.
C. Almeida, Lisboa, Presença, 1989, p. 129.
70 F. CAPRA, op. cit., p. 129.
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de partículas como dois aspectos distintos , que aparentemente se excluem,
mas que afinal se complementam 71.
10. Um terceiro aspecto , mais de natureza físico-cosmológica, em que
o pensamento do Cardeal alemão poderá oferecer um possível horizonte
para a compreensão da nova racionalidade científica emergente neste final
do Século XX, diz respeito à sua visão do Universo, que não hesitaríamos
em considerar como sendo sobredeterminada por um paradigma sistémico,
relacional e holístico, desenvolvido a partir de uma filosofia da unidade
que não nega a diferença, mas a implica como elemento fundamental para
a sua constituição. Com efeito, a representação da multiplicidade dos entes
como um conjunto de relações condensa-se, no pensamento cusano, no seu
conceito de Universo e no conceito de contracção que lhe está associado.
O Universo é, por um lado, o máximo contraído, e, por outro, a contracção , em unidade , de tudo o que existe "explicado" empiricamente. Por
isso, é identidade na diferença e unidade na pluralidade como o evidencia
a respectiva etimologia : "Universo significa universalidade, ou seja,
unidade de várias coisas." 72 Todavia, o Universo não existe onticamente
enquanto tal, mas só tem existência contraído na pluralidade das coisas 73.
Esta ideia é desenvolvida através da retomada e da reinterpretação da
fórmula de Anaxágoras , segundo a qual "qualquer coisa está em qualquer
coisa" 74 tal como "tudo está em tudo". A realidade é um conjunto de entes
que só se entende a partir da sua intrínseca e total relacional idade, tanto
numa perspectiva vertical, como numa perspectiva horizontal 75, e tanto
numa perspectiva espacial como numa perspectiva temporal. No ser
concreto de cada ente se contraem todos os outros entes 76 no que são, no
71 Cf. W. HEISENBERG , op. cit ., p. 113. Veja-se também, de N. BOHR , o texto
"Einheit des Wissens ", na antologia de H.-P DÜRR , já anterormente citada, em que ele
afirma expressamente ( p. 147): "Wie gegensàtzlich solche Erfahrungen auch erscheinen
mógen , wenn wir den Verlauf atomarer Prozesse mit klassischen Begriffen zu beschreiben
versuchen , müssen sie in dem Sinne ais komplementíir betrachtet werden, da13 sie
gleichermaBen wesentliche Kenntnis über atomare Systeme darstellen und in ihrer
Gesamtheit diese Kenntnis erschõpfen."
72 NICOLAU DE CUSA, De docta ignorantia , L. 11, Cap. 4, H. I, p. 74.
73 IDEM , ibidem , Cap. 5, p. 76: "Non est autem universum nisi contracte in rebus,
et omnis res actu existens contrahit universa, ut sint actu, id quod est."
74 Cf. IDEM, ibidem , Cap. 5, p. 76.
75 IDEM , ibidem , Cap. 5, p. 76: "Nam cum manifestum sit ex primo libro Deum ita
esse in omnibus , quod omnia sunt in ipso, et nunc constet Deum quasi mediante universo
esse in omnibus , hino omnia in omnibus esse constat et quodlibet in quolibet."
76 IDEM , ibidem , Cap. 5, p. 76: "In qualibet enim creatura universum est ipsa
creatura , et ita quodlibet recipit omnia , ut in ipso sint contracte."
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que foram e no que serão, como se contrai o próprio passado e o próprio
futuro desse mesmo ente e também dos outros. O mundo de Nicolau de
Cusa não é, assim, um aglomerado de indivíduos tomados na sua atómica
singularidade, mas uma teia de relações, em que tudo tem a ver com tudo,
como o postula também a própria metáfora do organismo em que o autor
reinscreve a sua perspectiva sistémica 77. Isto coloca-nos na "órbita do
pensamento holístico", para utilizar uma expressão com que Miguel B.
Pereira pretende caracterizar o paradigma emergente neste final de século,
já que "na Física Quântica desaparece a fragmentação", "sem qualquer
separação entre observador e observado, que são aspectos de uma
realidade única e indivisível." 78 Com esta perspectiva sistémica do
universo se pode articular plenamente a "Bootstrap Theory" no quadro da
teoria da Matriz S, desenvolvida por Geoffrey Chew. Segundo Capra, que
se faz eco desta concepção ao apresentar os traços configuradores do
paradigma da Nova Física, a visão das partículas subatómicas que emerge
da "Bootstrap Theory" pode ser sintetizada na expressiva frase que afirma
que "cada partícula consiste em todas as outras". Isso não deve, contudo,
levar a imaginar que cada uma contém todas as outras num sentido
clássico, estático. "As partículas subatómicas não são entidades separadas,
mas padrões de energia num processo dinâmico de vai-e-vem." 79. Daí que
a imagem do universo seja a de um "todo dinâmico, cujas partes estão
essencialmente inter-relacionadas, apenas podendo ser entendidas como
padrões de um processo cósmico." 80
77 IDEM, ibidem, Cap. 5, p. 78: "Postquam enim oculus non potest esse manus et
pedes et alia omnia actu, contentatur se esse oculum, et pes pedem; et omnia membra sibi
mutuo conferunt, ut quodlibet sit meliori modo, quo potest, id quod est. Et non est manus
nec pes in oculo, sed in oculo sunt oculus, inquantum ipse oculus est immediate in homine;
et ita omnia membra in pede, inquantum pes immediate in homine, ut quodlibet membrum
per quodlibet immediate sit in homine et homo sive totum per quodlibet membrum sit in
quolibet, sicut totum in partibus est per quomlibet in qualibet."
78 M. B . PEREIRA, Modernidade e Tempo. Para uma leitura do discurso moderno,
p. 229.
79 F. CAPRA, The turning point. Science, society and rising culture, London, Fontana
Paperbacks, 1983, p. 86. A propósito da "Bootstrap theory" de G. Chew, cf. também L.
SFEZ, Crítica da comunicação, trad. de S. Ferreira, Lisboa, Instituto Piaget, 1994, pp. 183-185.
10 IDEM, ibidem, p. 83. E o autor conclui: "At the subatomic leve) the interrelations
and interactions between the parts of the whole are more fundamental that the parts
themselves." Com esta caratcerística se poderia relacionar também um dos traços que B.
S. Santos atribui ao novo paradigma emergente, ao afirmar que, nele, "todo o conhecimento
local é simultaneamente total." (Cf. B. S. SANTOS, Um discurso sobre as ciências, 4a
ed., Porto, Afrontamento, 1990, pp. 46-49).
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Não causa, pois , qualquer estranheza que os intérpretes do pensamento
cusano que mais se debruçaram sobre a sua possível articulação com
alguns quadros da ciência contemporânea tenham encontrado nesta
relacionalidade um dos traços bastante significativos para tal aproximação.
Já fizemos referência à forma como Rombach concebe a transição da Idade
Média para o Renascimento como a passagem de uma ontologia da
substância para uma ontologia da relação (embora a sua equiparação da
noção de relação à noção de função não nos pareça plenamente compatível
com o pensamento cusano 81). E também importante assinalar que no
Colóquio organizado pela Assembleia Espanhola de Filosofia Medieval em
1964, Wolfgang Strobl dizia muito significativamente: "O pensamento das
ciências contemporâneas é rigorosamente estrutural e relacional. Todos
os elementos do Cosmos estão numa relação universal, e determinados por
leis estruturais numa ordem ascendente de configurações e confirmações. Por issso, uma filosofia que considera e reconhece a relação como
categoria transcendental, adapta-se muito bem às exigências que requer
uma filosofia das ciências dos nossos dias. Este é o caso, sem dúvida, do
pensamento nitidamente estrutural e relacional do Cardeal de Cusa." 82
11. Uma outra dimensão susceptível de ser considerada nesta aproximação do chão filosófico do misticismo cusano com os pressupostos
igualmente de natureza filosófica da Física Contemporânea diz respeito
ao carácter dinâmico do fundo estrutural de toda a realidade. Se alguma
metafísica podemos ver em Nicolau de Cusa subjacente à sua concepção
da realidade, para além de holística e sistémica, ela é também dinâmica
como integralmente dinâmicas são interpretadas as camadas mais
81 Rombach aceita que Nicolau de Cusa não chega a formular o conceito de função,
mas admite que ele nos proporciona o respectivo pensamento (op. cit., p. 207). Julgamos
que para admitir isso seria necessário reduzir à quantificação matemática o conceito de
relação, o que não acontece, nem explícita, nem implicitamente, no pensamento cusano.
Pensamos, no entanto, que o próprio Rombach desenvolveu um certo alargamento da sua
perspectiva ao longo dos últimos anos, de tal maneira que tem vindo a sublinhar mais a
dimensão estrutural da nova ontologia da Modernidade (num sentido de estrutura diferente
daquele que caracterizou o estruturalismo francês das décadas de sessenta e setenta),
reconhecendo até que o sentido original dessa ontologia deveria ser recuperado para um
encontro de culturas e um diálogo do mundo ocidental com o mundo oriental. Cf., a
propósito, H. ROMBACH, "L'ontologie structurale et le dialogue des mondes", Revue
Philosophique de Louvain, 1994, pp. 459-473.
82 W. STROBL, "El pensamiento de Nicolás de Cusa y Ias ciencias contemporaneas",
in: Nicolás de Cusa en el V Centenário de su muerte (1464-1964), Madrid, Instituto "Luís
Vives" de Filosofía, 1967, p. 103.
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profundas sobre as quais se apoia a actual leitura dos fenómenos físicos.
Em Nicolau de Cusa, esse dinamismo transparece de dois aspectos
relativamente distintos. Em primeiro lugar, ele está subjacente às últimas
considerações sobre o princípio fundante de todas as coisas e sobre o
mundo que nele tem a sua fonte. É assim que , depois de ter caracterizado
o princípio de tudo como "possest ", ou seja, como a actualidade de todas
as possibilidades 83 e depois de ter caracterizado o ser das criaturas como
o poder ser feito ("posse fieri") 84, uma espécie de átrio de toda a
actualidade 85, este autor concentra a sua visão desse mesmo princípio
(undante única e simplesmente no seu poder ( com o duplo sentido de
possibilidade e de energia que gera a actualidade de qualquer facto):
" Compreendi então que a hipóstase ou a subsistência das coisas é o poder.
E porque pode ser, sem o ` poder- ele-próprio ' [posse ipso] não pode ser.
Como poderia sem o poder ? Por isso , o `poder- ele-próprio ' [posse ipsum]
sem o qual nada pode ser o que quer que seja , é aquilo relativamente ao
qual nada pode haver de mais subsistente ." 86 O posse ipsum aparece,
assim , como o princípio de toda a actividade, do qual os poderes visíveis
não são senão " aparições " 87 e a realidade é, deste modo, concebida a
partir do seu pleno dinamismo.
Entretanto, não é só esta articulação da realidade com o seu
fundamento teológico-metafísico que a impregna de uma dimensão
dinâmica e transformadora . Vimos já anteriormente como toda a sua
cosmologia é postulada e parte do pressuposto de que tudo neste mundo
deve estar em movimento , que não é senão o nexo ou a união construída
nos entes empíricos do seu posse com o seu esse. Mas, igualmente
importante para entender essa perspectiva dinâmica do real é o seu par
de conceitos complicatio/explicatio. Esta fórmula, que radica no verbo
grego zcX$xsty, que significa dobrar, visa exprimir a pertinência mútua
entre identidade e diferença no pensamento cusano . Assim, a complicatio,
normalmente atribuída ou à realidade divina como fundamento de todas
as coisas , ou à mente humana como unidade dos seus conhecimentos,
significa a identidade na sua máxima plenitude e riqueza , anterior a
qualquer oposicionalidade e a qualquer alteridade, que de algum modo pré-contém , enquanto a explicatio é a diferenciação em múltiplas expressões
83 Cf. NICOLAU DE CUSA, De possest, H. XI2, n° 7, n°8 e n° 14, pp. 8-9 e 17-18,
entre outros passos significativos da exploração deste conceito.
84 Cf. IDEM, De venatione sapientiae , Cap. 3, H. XII, n° 7, pp. 9-10.
85 Cf. IDEM, ibidem , Cap. 7, n° 3, p. 10
"R Cf. IDEM, De apice theoriae , H. XII, n° 4 , p. 119.
x7 Cf. IDEM, ibidem , n° 9, p. 123.
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visíveis dessa identidade originária , plena e oculta 88. Esta força criadora
do trânsito da complicatio para a explicatio surge bem evidente num breve
texto da Apologia doctae ignorantiae: "Na verdade, na medida em que
Deus é a complicação de todo o ser, assim ele criando explicou o céu e a
terra." 89 No De coniecturis este modelo da complicatio/explicatio aparece
reescrito a partir do esquema de Proclo das quatro unidades (o uno
originário, a unidade intelectual, a unidade racional da alma, e a unidade
material do corpo 90 ), e no De visione Dei é aplicado ao nascimento e
desenvolvimento de uma nogueira, em cujas sementes se encontram complicadas toda a árvore e todas as nozes, sendo tais sementes a "virtude"
contraída da árvore e dos seus frutos91. Rudolph Haubst , num interessante
artigo publicado já em 1964, tira partido do tratamento cusano deste par
de conceitos para defender aquilo que em termos actuais se poderia chamar
um evolucionismo cristão e que encontraria algum paralelo na concepção
cosmogénica de Theilhard de Chardin 92.
Neste contexto, assume especial importância a sua definição da
natureza como "uma espécie de complicação de todas as coisas que
acontecem através do movimento " 93 Tal movimento traduz-se num
processo ascensivo das unidades inferiores para as unidades superiores
cruzado com um processo descensivo das unidades superiores para as
RN Veja-se como BEIERWALTES (ldentitiit und Differenz, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann , 1980, pp. 123-124 ) desenvolve esta interpenetração da complicatio e da
explicatio : "Gerade das Verhãltnis von complicatio und explicatio macht den Bezug dieses
Gedankens zum Verhãltnis von Identitãt und Differenz deutlich : complicatio meint die vor
aller Gegensiitzlichkeit Seiende coincidentale Fülle des Seins, Identitüt des absoluten Seins
und Denkens mit sich selbst , explicatio dagegen beschreibt die Differenzierung dieser
absoluten Identitit in den Bezug von ldentitiit und Differenz, der in je verschiedener
Intensitãt , d. h. mehr oder weniger von Identitãt ( Einheit) oder Differenz bestimmten
Graden das `Universum ' des Seins konstituiert."
89 NICOLAU DE CUSA, Apologiae doctae ignorantiae, H. 11, p. 28.
`')0 Cf. IDEM, De coniecturis, L. 1, Caps. 4-8, H. III, n° 12-36, pp. 18-42.
91 Cf. IDEM, De visione Dei, Cap. 7, SCHR. III, pp. 116-122.
92 Cf. R. HAUBST, "Der Evolutionsgedanke in der cusanischen Theologie" (1964)
republicado na antologia de ensaios deste grande impulsionador dos estudos cusanos
Streifzüge in die cusanische Theologie, Münster, Aschendorff, 1991, p. 216-239. Também
S. SCHNEIDER ( art. cit., p . 212), atento a este aspecto, conclui em termos bastante
explícitos: "Die seinsdynamische Struktur im Weltbild des Cusanus, das Prinzip der
innerkosmischen Verknüpfung sind geeignet mit den dynamischen und evolutiv-transformistischen Perspektiven heutiger Naturwissenschaft in einem fruchtbaren Dialog
eintreten zu künnen . Dieselbe hat erkennt , wie sehr das komische Gewebe in universellen
Netz der Zusammenãnge in stãndiger Bewegung ist."
93 NICOLAU DE CUSA, De docta ignorantia , L. II, Cap. 10, H. 1, p. 97.
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unidades inferiores, estando todas elas ligadas por uma mútua presença e
ínterconexão condensada no conceito de contractio 94, mas simultaneamente todas elas atravessadas por uma dinâmica interna, de forma a
realizarem-se do melhor modo que lhes é possível 95.
Todos estes elementos que acabámos de referir e sublinhar como
aspectos importantes do quadro filosófico de que emerge a compreensão
mística da natureza em Nicolau de Cusa encontram o seu paralelo em
determinados parâmetros sem os quais não seria fácil compreender
alguns elementos subjacentes à ciência contemporânea . Quer a Mecânica
Quântica, quer a Teoria da Relatividade , tanto nos seus primeiros desenvolvimentos , como nas suas mais recentes tematizações configuram uma
perspectivação profundamente dinâmica do universo num sentido bem
diferente do mecanicismo clássico. Assim, importa ter em conta que
"o aspecto dinâmico da natureza surge, na teoria quântica, como uma
consequência da natureza ondulatória das partículas subatómicas" 96, que
nos proporcionam, pois, a ideia de um universo em permanente devir. Do
mesmo modo, não pode esquecer-se que a célebre equação de Einstein,
E=mc2, estabelece em termos inequívocos uma equivalência entre massa
e energia, pelo que a energia está contida na massa de um objecto e a
sua lei fundamental é a da transformação , caracterizando-se, consequentemente, o mundo das partículas subatómicas por uma dimensão
intrinsecamente dinâmica.
Entretanto, avançando no cruzamento destas duas teorias, cuja articulação parece ter sido conseguida no foral dos anos quarenta 97 , deparamo-nos com a noção de "teoria quântica dos campos relativista", segundo a
qual, recorrendo às palavras de I. Bogdanov, "os objectos que nos rodeiam
não são senão conjuntos de campos (campo electromagnético, campo de
gravitação, campo protónico, campo electrónico)", de tal modo que "a
realidade essencial, fundamental, é um conjunto de campos que interagem
v, Cf. sobre toda esta articulação IDEM , De coniecturis , L.I1, Caps . 10 e 11. H. 111,
n'5- 120-130, pp. 115-126.
95 Nota -se, por exemplo, como esta perpectiva dinâmica se articula com a perspectiva
sistémica do autor nas seguintes afirmações (IDEM . De docta ignorantia , L. 11, Cap. 10,
H. 1, p. 98 ): " Nam dum omnia moventur singulariter, ut sint hoc , quod sunt , meliori modo
et nullum sicut aliud aequaliter, tamen motum cuiuslibet quodlibet suo modo contrahit et
participa[ mediate aut immediate - sicut motum coeli elementa et elementata et motum
cordis omnia membra - ut sit unum universum . E[ per hunc motum sunt res meliori
quidem modo , quo possunt."
F. CAPRA, O Tão da Física, p. 161
v7 Cf. P. DAVIES, Superforça. Em busca de uma teoria unificada
da natureza, trad.
de P. 1. Teixeira, Lisboa, Gradiva , 1988, pp . 139-140.
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permanentemente entre si." 98 Por outras palavras , isto significa que
o dinamismo subatómico , patente nas chamadas partículas portadoras
ou mensageiras como os fotões , os gravitões , as partículas W e Z e os
gluões 99 , constitui o fundo da própria existência material.
Terá sido , no entanto , D. Bohm aquele que, mediante o aprofundamento desta concepção dinâmica da realidade física, mais avançou nos
pressupostos filosóficos que ela implica e , por isso mesmo , talvez seja ele
que mais facilidade e disponibilidade manifesta para um diálogo com o
misticismo oriental . É assim que no seu texto " Fragmentação e totalidadeavança para uma concepção de matéria como " fluxo universal ": "O que
propomos para esta nova forma geral de observar é que toda a matéria é
desta natureza . Ou seja: há um fluxo universal que não se pode definir
explicitamente , mas que se pode conhecer só de forma implícita, como o
indicam as suas formas e as suas estruturas explicitamente definíveis,
umas estáveis e outras não estáveis , que podem ser abstraídas do fluxo
universal ." 100 Para entender esta perspectiva através da qual Bohm procura
superar a fragmentação característica da Física Clássica, modelada pelo
paradigma cartesiano e galilaico - newtoniano do primado das singularidades e da fragmentação 101, é necessário ter em conta o seu conceito de
ordem implicada com a sua correspondência dinâmica na noção de
holomovimento . De acordo com tal perspectiva, a realidade é vista como
um conjunto de subtotalidades de ordens implicadas em movimento de
inter- relação que se repercute no todo e, assim , modifica a sua face ou
figura . São, no fundo , os conceitos de complicatio e de explicaiio que
ecoam neste modelo de inteligibilidade do real subordinado à lei do
holomovimento, que é vida implícita e o fundamento tanto da vida
explícita como da matéria inanimada 102 Mais ainda : é a própria cons9R 1. BOGDANOV. in: J. GUITTON. G. e 1. BOGDANOV, Dieu ei ia science, Paris.
Grasset. 1991. pp . 114-115.
vv Cf. P. DAVIES. op. cif., pp. 142-143.
ltxl D. BOHM , La roialidad y el orden implicado , trad. de J. Apfelbáume . Barcelona.
Editorial Kairós , 1987. p. 33.
101 IDEM, ibidem , pp. 27- 28: "Más bien debería decirse que es Ia totalidad to que
es real , y que Ia fragmentación es Ia respuesta de esta totalidad a Ia acción dcl hombre.
guiado por una pereepción ilusória y deformado por un pensamiento fragmentario. En otras
palabras , es precisamente porque Ia realidad es un todo por to que el hombre . con su modo
fragmentario de acercarse a cila, encontrará inevitablemente Ia correspondiente respuesta
fragmentaria . Por ello , to que necessita el hombre es tener en cuenta su costumbre de
pensar fragmentariamente y, así. terminar con cila La aproximación dei hombre a Ia
realidad debe , pues , ser total . y así su respuesta será también total."
1112 Cf. IDEM. rbidem , p. 270.
Revira Filomjrca de Couebru - x * 7 - w, L 4 ( 1995 )
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ciência que se assume , neste processo de holomovimento , pois , como diz
F. Capra, "para compreender a ordem implicada, Bohm julga necessário
olhar a consciência como uma configuração ideal do holomovimento e tê-la explicitamente em conta nesta teoria . Ele vê a mente e a matéria como
sendo interdependentes e correlacionadas, mas não causalmente ligadas.
Elas complicam mutuamente projecções de uma realidade mais elevada
que não é matéria nem espírito." 103
Entretanto , numa entrevista ainda mais recente com R . Weber, D.
Bohm , para além da ordem implicada , fala de uma outra ordem situada
a um nível de maior profundidade , que seria a ordem super- implicada,
que organiza as ordens implicadas na sua dinâmica complexidade
estrutural 104
Que não é forçada esta aproximação que procuramos fazer entre as
concepções de D. Bohm e as de Nicolau de Cusa, demonstra-o o facto de
o primeiro invocar precisamente o segundo na entrevista que acabámos
de referir . Por um lado, para retomar a ideia de que "a eternidade se
explica no tempo" 105 e, depois, para se confrontar com a equivalência
entre tempo e espaço na experiência mística ao nível de profundidade de
penetração na "ordem implícita" 106.
Entretanto , I. Prigogine, que vem insistindo há já alguns anos na
dimensão criadora da natureza e na irreversibilidade temporal dos seus
processos, tendo como ponto de partida a noção de que o tempo é
sempre criação do novo , manifestando algumas reservas relativamente
à ordem implicada de D. Bohm, por a achar demasiado conserva-
103 F. CAPRA, The turning point, p. 88.
114 Cf. D. BOHM , in: R. WEBER , Dialogues avec des scientifiques et des sages. La
quête de l'unité, Monaco, Éditions du Rocher, 1988 , p. 70: "Si vous appliquez ce modèle,
l'enveloppement appara?t à deux niveaux : tout d'abord, un ordre replié du vide qui produit
des ondulations sur ce qui se développe ; et ensuite , un champ de super- formation de
l'ensemble de I'univers , un ordre super- implicite qui organise le premier niveau en diverses
structures et est capable d'un prodigieux développement de structure ." O autor reclama-se, algumas páginas depois (pp. 75-76), da própria autoridade de De Broglie , para fundamentar as suas propostas aparentemente tão imaginativas : " En parlant d'ordre super-implicite, je n'émets pas d ' hipothèse sortant du cadre de Ia physique contemporaine. Dês
que nous étendons ce modèle de De Broglie au champ mécanique quantique au lieu de le
limiter à Ia seule particule , l'image qui émerge est immédiatement celle de l'ordre super-implicite."
ins Cf. IDEM, ibidem, p. 67.
1 "' Cf. IDEM, ibidem , pp. 67-68
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dora 107, não deixa, contudo, de acentuar o dinamismo criador inerente aos
mais simples ou elementares processos naturais. Daí que ele possa afirmar,
na sua Nova aliança, que "a ciência dos processos irreversíveis reabilitou
no seio da Física a concepção de uma natureza criadora de estruturas
activas e proliferantes" 108
Se do mundo da Microfísica passamos ao universo da Astrofísica,
deparamo-nos com a mesma concepção dinâmica como estruturadora da
percepção e da compreensão dos seus fenómenos a partir de um "Big-Bang" inicial. A teoria geral da relatividade bem como as descobertas de
Hubble e a lei que é conhecida com o seu nome mostram-nos que o
universo é um conjunto de galáxias em expansão permanente a partir do
seu impulso inicial que teria acontecido há cerca de 15.000 milhões de
anos 109
Verifica-se assim que, apesar das diferenças entre os múltiplos modelos
propostos para a compreensão da realidade física, todos eles assentam em
determinados princípios cujo correlato filosófico, ao nível do dinamismo
que os impregna, não seria difícil de encontrar na mística alemã dos
alvores do Renascimento.
12. Um último ponto que gostaríamos de sublinhar para concluir este
cruzamento entre o quadro filosófico que suporta as intuições místicas de
Nicolau de Cusa e o travejamento conceptual subjacente às novas
concepções da Física Contemporânea diz respeito à dimensão estética que
os atravessa.
Assim, é interessante verificar que o Cardeal alemão, na linha, aliás,
de uma scientia laudis que se desenvolve desde a Idade Média, conclui o
seu 2° livro do De docta ignorantia enaltecendo "a admirável arte de Deus
na criação do mundo e dos elementos", e sustentando que, em tal arte, ele
se serviu da música para estabelecer a proporção e a harmonia de umas
partes em relação às outras 110. É por isso que quase sempre que se vê
107 I. PRIGOGINE, in: R. WEBER, op. cit., p. 301: "Mon sentiment à chaque fois
que je 1'entends [D. Bohm] ou que je le lis est que sa vision est relativement conservatrice,
en ce sens qu'iI accorde une trop grande importance à l'enveloppement et au
développement. Selon moi, l'enveloppement et le développement sont des notions aussi
conservatrices que sa conception des variables cachées."
108 I. PRIGOGINE, e 1. STENGERS, La nouvelle alliance. Métamorphose de Ia
science, p. 40.
109 Cf. R. CLARKE, Do universo ao homem, trad. de L. V. de Lima, Lisboa, Edições
70, 1986, pp. 9-12.
110 Cf. supra, p. 81 e n. 47.
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obrigado a utilizar metáforas para falar da criação, recorre a símbolos
artísticos, sendo de destacar, de entre eles, o símbolo da música, de tal
modo que o universo é apresentado como uma melodiosa harmonia
resultante da conjugação de sons diferentes 111.
Tal metáfora virá a ecoar em alguns investigadores dos fenómenos
naturais e astronómicos que também não hesitam em recorrer à mesma
simbologia para exprimir o movimento das partículas e dos astros. É assim
que Sir James Jeans nos fala dos processos da natureza e do movimento
dos átomos como idênticos a uma criação musical 112. Do mesmo modo,
F. Capra, quase a concluir um capítulo significativamente intitulado "a
dança cósmica", afirma em termos bastante expressivos: "A Física
moderna veio revelar que toda a partícula sub-atómica não só entra na
dança da energia como também é uma dança de energia: um processo
pulsante de criação e destruição." 113 Por seu lado, G. Bogdanov, ao
invocar a noção de vazio quântico caracteriza-o com estas palavras:
"O vazio quântico é assim o teatro de um incessante ballet de partículas,
que aparecem e desaparecem num tempo extremamente breve, inconcebível à escala humana." 114
Parece instaurar-se, assim, a um nível quase inconsciente, a ideia de
que um dos modelos que melhor permite compreender o universo da Nova
Física é, afinal, o modelo estético, com também o subentende I. Prigogine,
quando, ao responder à pergunta de R. Weber sobre qual o modelo com
o qual substituiria, no Século XX, o símbolo do relógio do Século XVII
e do motor térmico do Século XIX, propõe o modelo da arte, afirmando
que "a arte é essencialmente a expressão de uma pulsão fundamental na
111 NICOLAU DE CUSA, Idiota de mente, Cap. 6, H. V, n° 92, pp. 137-138: "Agit
enim mens aeterna quasi ut musicus, qui suum conceptum vult sensibilem facere. Recipit
enim pluralitatem vocum et ilias redigit in proportionem congruentem harmoniae, ut in
illa proporcione harmonia dulciter et perfecte resplendeat, quando ibi est ut in loco suo,
et variatur harmoniae resplendentia ex varietate proportionis harmoniae congruentis, et
desinit harmonia aptitudine proportionis desinente." Cf. também, a propósito da
importância da música no quadro filosófico-teológico de Nicolau de Cusa, W. SCHULZE,
Harmonik und Theologie bei Nikolaus von Kues, Wien, Braumüller, 1983, esp. pp. 77-79.
112 James JEANS, "In unerforschtes Gebiet", in: H.-P. DÜRR, op. cit., p. 55: "Mich
erinnern die Gesetze, denen die Natur gehorcht, weniger an jene, denen eine in Bewegung
befindliche Maschine gehorcht, ais an jene, denen ein Musiker gehorcht, wenn er eíne
Fuge, oder ein Dichter, wenn er ein Sonett schreibt. Die Bewegungen von Elektronen und
Atomen ãhneln nicht so sehr den Bewegungen der Teile einer Lokomotive, ais denen der
Tãnzer in einem Kotillon."
113 F. CAPRA, O Tão da Física, p. 203 (sublinhado por nós).
114 G. BOGDANOV, in: J. GUITTON, 1. e G. BOGDANOV, op. cit., p. 51.
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natureza. Na arte, vemos a irreversibilidade e a imprevisibilidade. Estas
são as características que gostaríamos de atribuir hoje ao universo, tanto
quanto a uma obra de arte." 115
É, pois, também nesta redescoberta da dimensão artística da natureza
que o conhecimento dos cientistas de hoje parece aproximar-se significativamente das intuições dos sábios de outrora.
Conclusão
13. Terminamos este estudo introdutório sobre a articulação entre
misticismo, filosofia e ciência, conscientes de que outras hipóteses se
poderiam colocar (e alguns têm já colocado) para abrir diferentes vias para
o seu aprofundamento. Assim, há quem pense 116 que o conceito de
unidade que constitui o horizonte em que se movimenta a experiência
mística (nomeadamente a de origens orientais ou a de heranças neoplatónicas) poderia ser comparado à tentativa deste final de Século e à
aspiração de tantos Físicos que, desde Einstein, trabalham no sentido de
unificar numa única superforça as quatro grandes forças que regem todos
os fenómenos da natureza (a força da gravidade, a força electromagnética,
a força nuclear forte e a força fraca) 117, proporcionando assim as bases
para uma teoria unificada dos fenómenos naturais. Pensamos, no entanto,
que a unidade buscada através da experiência mística não se situa ao
mesmo nível que a "teoria unificada" procurada na racionalidade científica, e articulá-las neste contexto seria forçar uma aproximação de duas
experiências diferentes e confundir os planos em que os saberes da
realidade e na realidade se movimentam.
Igualmente os discursos de alguns Físicos sobre a natureza última da
realidade seria susceptível de oferecer outra plataforma de apoio. O texto
de Schriõdinger também incluído por H.-P. Dürr na sua antologia e
intitulado "O que é real? - Fundamentos para a eliminação do dualismo
de pensamento e ser ou de espírito e matéria" 118, marcado por um
115 I. PRIGOGINE, in: R. WEBER, op. cit., p. 305.
116 Cf., por exemplo, R. WEBER, op. cit., pp. 40-41.
117 Sobre estas tentativas, veja-se J. GRIBBIN, À procura do Big-Bang. Cosmologia
e Mecânica Quântica, trad. de M. H. Picciochi, Lisboa, Editorial Presença, 1988, pp. 237-268.
118 Cf. E. SCHRõDINGER, "Was ist wirklich? - Die Gründe für das Aufgeben des
Dualismus von Denken und Sein oder von Geist und Materie", in: H.-P. DÜRR, op. cit.,
p. 184-188.
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acentuado espiritualismo , apresenta - nos um caminho nessa direcção, tal
como algumas considerações de D. Bohm sobre o papel da consciência
na compreensão das dimensões do universo 119 nos sugere pistas para um
reencontro do monismo de G. Bruno , na sua radicalização do pensamento
cusano . Mas pensamos também que esse caminho , embora fácil, não se
enquadra nos critérios em que procurámos apoiar-nos ao longo das páginas
anteriores.
Com efeito, o que procurámos fazer foi demonstrar, em primeiro lugar,
como as incursões científicas de Nicolau de Cusa eram incompreensíveis
sem o suporte metafísico e místico em que se baseavam , e, em segundo
lugar , como esse mesmo suporte era susceptível de proporcionar um
quadro conceptual adequado aos fundamentos filosóficos dos mais recentes
paradigmas científico - naturais . Um projecto inteiramente diferente é ver
em que medida é que alguns investigadores científicos procuraram
complementar, através de textos de natureza filosófica , mística ou
religiosa , a sua investigação física . Nesse âmbito, o que está em causa é
superar a dimensão estritamente científica através da crença religiosa ou
mística , que qualquer Físico, como pessoa humana , pode legitimamente,
de acordo com os imperativos da sua consciência , conceptualizar . Assim,
estamos de acordo com R . Weber, quando afirma que "a ciência procura os limites da natureza , o misticismo a sua infinitude ; a ciência a
gotícula do oceano, o misticismo a onda . A ciência esforça-se por
explicitar o mistério do ser, o misticismo por experimentá - lo." Mas,
quando a mesma autora afirma logo a seguir que " a ciência e o misticismo partilham, todavia , a mesma busca da realidade , porque cada
uma deseja encontrar a verdade fundamental relativamente à matéria
e à sua fonte " 120, especificaríamos que, em nossa opinião, o tipo de
realidade que cada uma busca é diferente , e o âmbito epistemológico desse
desejo de encontrar a verdade fundamental relativa à matéria e à sua fonte
não é, de maneira alguma , o mesmo . O que não quer dizer que não seja
possível encontrar em pressupostos filosóficos subjacentes à ciência e ao
misticismo padrões de racionalidade semelhantes e cujo desvelamento se
nos afigura extremamente fecundo. E , para isso, não é só o misticismo
oriental tantas vezes invocado que pode oferecer- nos um plano de
frutuosas aproximações . Por mais importante que seja esta redescoberta
do Oriente , e é-o na perspectiva de um ecumenismo universalista e de
um pensamento dialógico não euro - cêntrico que urge instaurar, não é
menos importante consciencializarmo - nos de que na transição para a
119 Cf. D. BOHM , La totalidad y el orden implicado , esp. pp . 80-103 e 240-295.
120 R. WEBER , op. cit ., p. 30.
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Modernidade perdemos pistas que só agora, timidamente, voltamos a
interpretar.
E por tal motivo que, cinco séculos depois de formuladas as intuições
cosmológicas, filosóficas e místico-teológicas de Nicolau de Cusa, elas nos
parecem susceptíveis de um repensamento novo e original à luz dos
paradigmas emergentes na nova racionalidade científica.
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