Universidade Federal do ABC BC 0004 Bases Epistemológicas da Ciência Moderna Prof. Valter A. Bezerra Introdução à Disciplina Produção de píons de 16 GeV na primeira câmara de bolhas com hidrogênio líquido do CERN, 1970. Objetivos A disciplina de Bases Epistemológicas da Ciência Moderna visa possibilitar aos alunos o atingimento de três objetivos principais. Familiarizar os alunos com noções que serão aplicadas e terão importância ao (I)longo de todo o curso de graduação, tais como: qual é a natureza do conhecimento científico; o que são teorias científicas, modelos, hipóteses e leis científicas; quais são as funções desempenhadas pelas teorias científicas e modelos e de que maneira isso é feito; o papel da indução e da dedução na ciência; a função da observação e do experimento; qual é a relação entre ciência, matemática e lógica; as implicações sócio-culturais da ciência, da técnica e da tecnociência. 2 Funcionar como um tipo de “mapa” conceitual para ajudar o aluno a orientar-se (II)diante do complexo sistema do conhecimento científico moderno e a ter uma atitude crítica frente a ele. 3 algumas noções sobre os principais períodos históricos da evolução (III)daFornecer ciência, e identificar alguns dos principais personagens dessa evolução, mostrando como a história da ciência instancia os conceitos mencionados em (I), e de que forma a história da ciência ilumina a análise conceitual da ciência. 4 Nas páginas anteriores: (1) Centro de controle do acelerador de partículas LHC no CERN; (2) Espaguete de fios; (3) John Wright of Derby — Experimento em uma bomba de vácuo com um pássaro, 1768. 5 Programa da disciplina 1. O conhecimento e suas muitas formas: ciência, conhecimentos não-científicos, senso comum. 2. Ciência “moderna” e ciência da Modernidade; características gerais da Modernidade. 3. Prelúdio aos sistemas conceituais: inferência dedutiva e indutiva, formalismo e interpretação, representação, verdade e validade, consistência, axiomatização, coerência; a tendência moderna à matematização da ciência. 4. Os conceitos de teoria e modelo. 5. Lei, explicação, predição e hipótese científica. 6. Observação, evidência, teste, experimentação, a dicotomia teórico/observacional e a impregnação teórica da observação. 7. Confirmação, refutação e o caráter conjectural da ciência; a descoberta científica, invenção teórica, intuição e justificação; os valores epistêmicos atendidos pelas teorias e modelos. 8. Racionalidade e progresso, revoluções científicas e relativismo. 9. A dimensão metafísica do conhecimento científico. 10. O papel dos valores no conhecimento científico e a dimensão ética da ciência; o valor do controle da natureza na Modernidade e a construção da objetividade. 11. Ciência, tecnologia, tecnociência e sociedade; a ciência como construção cognitiva e social. 6 http://sites.google.com/site/filosofiadacienciaufabc/ http://filosofiadacienciaufabc.wordpress.com 7 Ciência — Uma proposta de definição Um sistema de estruturas abstratas, que por sua vez utilizam conceitos (os quais são usados para formular idéias)... ...visando formular representações de certos aspectos (i.e. não todos os aspectos possíveis ou imagináveis) de determinados domínios da realidade (i.e. não de toda a realidade, mas regiões dela)... ...que sejam testáveis e empiricamente adequadas (i.e. dêem conta dos fenômenos)... ...apesar de serem inevitavelmente indiretas (i.e. mediadas por várias “camadas”, sem acesso às “coisas em si”) e falíveis (i.e. sujeitas a erros)... ...e tentando cognitivos. atender a diversos valores 8 Que valores cognitivos são esses? Na época atual, dentre os principais, podemos mencionar: Obrigatoriamente: • • Testabilidade Adequação empírica Preferencialmente: • • • • • • • • • • • • Coerência Simplicidade Abrangência Precisão Rigor Formalização Poder preditivo Poder explicativo Capacidade de solução de problemas Aplicabilidade tecnológica Compatibilidade com outros conhecimentos aceitos etc... 9 Ciência (...) conceitos (...) Conceitos Sistema conceitual Conceitos (...) Relação com a realidade Mediação / Construção / Interpretação REALIDADE [SEMPRE MEDIADA] DOMÍNIO A CONJUNTO DE ASPECTOS α CONJUNTO DE ASPECTOS γ CONJUNTO DE ASPECTOS β DOMÍNIO B 10 Bases Epistemológicas Epistemológico = Relativo à Teoria do Conhecimento — também conhecida como Epistemologia, um ramo da Filosofia — do grego Episteme = Conhecimento 11 “Moderno” e “Modernidade” Eslarecendo os diferentes usos dos termos Nas Humanidades (História, Filosofia, Sociologia, etc) CLÁSSICO (Antiguidade) Até séc. V MEDIEVAL RENASCIMENTO Séc.XIV—XV MODERNO Séc. XVI—XVIII CONTEMPORÃNEO Séc. XIX—XXI CLÁSSICA MODERNA Nas ciências Na cultura em geral MODERNIDADE 12 Nesta disciplina, entenderemos a expressão “Ciência Moderna” como referindo-se a toda a Ciência da Modernidade. 13 Modernidade 14 Na página anterior: (1) Raffaello Sanzio, A escola de Atenas (1510 ou 1511). As figuras de Platão e Aristóteles estão no centro (o primeiro carregando o Timeu, seu diálogo sobre cosmologia, e o segundo segurando a sua Ética a Nicômaco). Inúmeros pensadores de importância capital na cultura são representados. Por exemplo, do lado esquerdo, Pitágoras, o matemático, está sentado escrevendo no livro, ao passo que Averróis, o grande filósofo árabe, representado de turbante, se inclina para a frente. Parmênides (o filósofo defensor da permanência) está sentado com o cotovelo apoiado na mesa, e Heráclito (o filósofo defensor da perpétua mudança) aparece de pé apontando para o livro. Do lado direito, aparecem dois cientistas (usamos aqui esse termo de maneira flexível) cujas idéias desempenhariam papel central nos séculos seguintes: Ptolomeu, o astrônomo (de costas, com o globo), e Euclides, o geômetra (curvado, usando o compasso). (2) Uma paródia contemporânea da Escola de Atenas, agora com as celebridades de Hollywood. Modernidade Na próxima página: À esquerda: J. S. Bach (1685-1750), Concerto para cravo e orquestra BWV 1052 em Ré Menor, início do terceiro movimento — Allegro À direita: Iannis Xenakis, Metastaseis para orquestra (1953), pág. 6 – uma das primeiras peças compostas por computador, baseada em processos estocásticos (matrizes de probabilidades de transição e distribuições de velocidade) 15 16 Uma típica usina de geração de energia (“Kraftwerk” em alemão)... 17 Kraftwerk, o grupo (aqui representado pelos seus robôs) — imensamente influente na música e também um excelente representante do otimismo tecnológico bem característico da Modernidade... 18 À esquerda — Uma “Kraftwerk” (usina) transformada em uma região proibida do planeta: Chernobyl logo após o desastre. Abaixo — vista atual do “Sarcófago”, estrutura de concreto que recobre o reator No. 4 de Chernobyl. 19 Perguntas que você talvez estejam se fazendo: • • Por que não estudar em BECM somente a ciência do século XXI? Qual o interesse de considerar também a ciência dos séculos XIX, XVIII e XVII? Porque — para o bem ou para o mal — somos, em muitos aspectos, herdeiros daquele pensamento, daqueles conceitos, daquelas reflexões, daquelas categorias de pensamento. A ciência de hoje não seria o que é se não fosse o resultado de um acidentado processo evolutivo que atravessas os últimos quatro séculos. Nesta disciplina vamos analisar formalmente a ciência atual e também vamos colocá-la em sua perspectiva histórica. 20 Características da modernidade — Tendências gerais No esquema a seguir procura-se representar os conjuntos de idéias que correspondem aos períodos históricos conhecidos como: (A) Primeira Modernidade — i.e. final do século XVI e século XVII, (B) Iluminismo, (C) Século XIX e (D) Séculos XX e XXI. Em cada período, as teses são separadas em componentes denominados: (1) Filosofia, (2) Ciência, (3) Sociedade & Cultura. Esses conjuntos de idéias são pensados como sucessivamente inclusivos (i.e. A ⊂ B ⊂ C), e os componentes 1, 2 e 3 também são inclusivos ao longo dos quatro períodos. Ou seja, por exemplo: Filosofia (A) ⊂ Filosofia (B) ⊂ Filosofia (C), e assim por diante. A idéia é que as “camadas” sucessivas preservam em grande parte o teor das camadas anteriores. Certas características fundamentais da Era Moderna funcionam como um “núcleo” que é preservado no Iluminismo (segundo ato da Modernidade), e as características centrais da Era Moderna e do Iluminismo, juntas, funcionam como um “núcleo” para o Século XIX (último ato da Modernidade). Somente o item 4 de cada período (denominado “Eventos específicos”) diz respeito exclusivamente àquele período. Note que, com este esquema, não estamos sugerindo que haja uma cumulatividade total: pode haver alguns outros elementos que foram abandonados de um período para outro. Estamos interessados, aqui, em ressaltar apenas aqueles elementos que se conservam ao longo das quatro etapas. 21 (A) Primeira Modernidade (B) Iluminismo (Século XVIII) (C) Século XIX (D) Séculos XX e XXI 22 (A) Era Moderna (Fase inaugural: final do século XVI e século XVII) 1 — Filosofia • Dicotomia sujeito / objeto • Primado do método • Crença na possibilidade do conhecimento e da racionalidade • Universalidade da razão • Complementaridade ciência-filosofia • Debate empirismo-racionalismo • Construção da subjetividade 3 — Sociedade & cultura • Capitalismo mercantilista • Surgimento da burguesia moderna • Sociedades científicas / culturais (Accademia dei Lincei, Royal Society, Académie des Sciences, Académie Française) • Expansão marítima e comercial européia 2 — Ciência • Revolução científica (séc. XVI e XVII) • Matematização, momento I (geometria) • Mecanicismo • Valorização do controle da natureza • Valorização da inteligibilidade • Causalidade eficiente; Determinismo • Distinção entre qualidades primárias e secundárias; Rejeição das qualidades ocultas 4 ⇒ Eventos característicos do período • Renascimento (tardio); Barroco • Reforma; Contra-reforma • Monarquias absolutistas • Revoluções inglesas • Obras fundadoras ciência e filos. modernas • Edições da Lógica de Port-Royal 23 (B) Iluminismo (Século das Luzes) — século XVIII 1 — Filosofia • Ideal de unificação do saber (enciclopedismo) • Ideal de difusão do saber (enciclopedismo) • Ciência moderna como paradigma • Debate empirismo-racionalismo (cont.) • Questão do estatuto da metafísica • Noção de progresso / perfectibilidade 3 — Sociedade & cultura • Secularização crescente • Consolidação da burguesia 2 — Ciência • Primado da ciência newtoniana • Síntese clássica • Matematização, momento II (cálculo diferencial e integral, análise real) • Apogeu da metodologia indutivista • Valorização do controle da natureza 4 ⇒ Eventos característicos do período • Rococó; Neoclassicismo • Arquitetura fantástica: Piranesi, Boullée • Despotismo esclarecido • Revolução francesa • Revolução industrial (início) 24 Sistema Walschaerts de comando de válvulas em máquina a vapor ferroviária (inventado em 1844). 25 (C) Século XIX 1 — Filosofia • Institucionalização do saber • Aceleração do processo de fragmentação do saber • Debate empirismo-racionalismo (cont.) • Idealismo (hegeliano e não-hegeliano) 2 — Ciência • Ligação com a revolução industrial • Lugar privilegiado da tecnologia • Valorização do controle da natureza • Crise da síntese clássica da ciência (i.e. crise do mecanicismo, emergência da probabilidade, etc) • Reabilitação do método hipotético • Sementes da revolução: psicanálise, marxismo, evolucionismo, nova física 3 — Sociedade & cultura 4 ⇒ Eventos característicos do período • Aceleração do modo de vida • Revolução industrial (consolidação) • Colonialismo / imperialismo • Era Vitoriana • Produção mecanizada de bens em série • Positivismo; Liberalismo; Utilitarismo • Eclosão do conflito de classes e • Socialismo; Anarquismo; Revoluções de 1848 formulação de propostas revolucionárias • Romantismo; Pré-Rafaelitas • Vanguardas históricas (fim do XIX e início do XX) • “Redescoberta” do Oriente pela Europa 26 27 28 29 Nas páginas anteriores: (1) O ENIAC (1946), primeiro computador totalmente eletrônico (i.e. sem elementos eletromecânicos envolvidos no processamento em si), de uso geral e programável (via hardware, i.e. pela fiação). (2) O túnel subterrâneo do acelerador de partículas SPS (super-protonsíncrotron) do CERN. (3) Os motores do primeiro estágio do foguete russo Proton-Soyuz. 30 (D) Séculos XX e XXI 1 — Filosofia • “Crise da razão” (problematização do sujeito, crítica à verdade, descoberta da ideologia) • Logicismo / “Filosofia formal” • Fortalecimento do relativismo • Aproximação com a teoria do discurso e da narrativa • Grande voga do “Pós-moderno” 2 — Ciência 3 — Sociedade & cultura • Virtualização • Desterritorialização • Nacionalismos • Automação / barateamento dos produtos • Melhoria da expectativa e qualidade de vida, porém com bolsões de aprofundamento da exclusão social • Tecnologia difundida em todos os âmbitos do cotidiano 4 ⇒ Eventos característicos do período • Big Science (aceleradores, sequenciamento de genomas completos, energia) • Consolidação das alternativas à ciência clássica (relatividade, mec. quântica, biol. molecular, teor. de sistemas complexos, neodarwinismo) • Tecnociência • Apogeu da modelagem / modelização • Relação umbilical com a computação • Influência dos interesses da indústria farmacêutica, química e militar • Apogeu e crise do valor de controle da natureza • Segunda Revolução Industrial (comunicações e computação) / Sociedade da informação • Guerra fria / Corrida especial • Unificação européia • Revoluções políticas / Guerras civis • Crises pós-revolucionárias / Crises do comunismo e do capitalismo • Crise da sustentabilidade • Redefinição das utopias sob novas roupagens • Apogeu e crise das vanguardas / “Pós-modernidade” • Recrudescimento da cisão entre culturas • Aumento extraordinário no consumo de energia 31 32 Na página anterior: Projeções de vários cenários de desenvolvimento tecnológico com base na escala de Kardashev (proposta em 1964) de classificação de civilizações inteligentes no cosmos em termos de um índice que depende da utilização de energia pela civilização em questão. A Terra se encontra presentemente no índice 0,72 (em 2010), o que significa que ainda lhe falta um tanto para ser uma civilização de Kardashev Tipo I plena – i.e. que fosse capaz de utilizar toda a energia fornecida pelo seu planeta de origem. As civilizações de Kardashev de Tipo II são capazes de utilizar toda a energia disponível em sua estrela central, e as civilizações de Tipo III são capazes de extrair toda a energia disponível em sua galáxia. Pode-se extrair cenários hipotéticos acerca das possibilidades de detecção de civilizações que despendem tanta energia no cosmos. À medida que as civilizações avançam na classificação de Kardashev, suas capacidades tecnológicas, científicas e de astroengenharia também supostamente devem crescer, e sua detecção por nós deveria ser, em certo sentido, facilitada. Uma crítica que foi feita à escala de Kardashev é que, em sua forma original, ela não premia as civilizações que aprenderam a utilizar a energia de forma mais eficiente, e que portanto necessitam despender menos energia. Outras medidas para o desenvolvimento tecnológico de civilizações foram propostas, envolvendo, por exemplo, a quantidade de informação. Uma pergunta filosófica de caráter especulativo: Como seria a ciência de uma civilização inteligente diferente da terrestre? Teria que ser necessariamente uma ciência com características semelhantes às da nossa? Ou poderia apresentar diferenças, até mesmo diferenças radicais, em relação à ciência produzida pela humanidade? 33