FILOSOFIA E CIÊNCIA MODERNA Ricardo Vélez Rodríguez Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino soares de Sousa”, da UFJF. [email protected] Pensar a ciência. Essa é uma das tarefas básicas da filosofia na modernidade. Essa tarefa é tanto mais importante, quanto que no contexto cultural luso-brasileiro vingou, a partir do século XVIII, forte tradição praticista e cientificista, que identificava a ciência como saber aplicado, como techne, e a este reduzia o arcabouço do conhecimento. Esse era, sem dúvida, o ponto central do empirismo mitigado que inspirou as reformas pombalinas, cuja influência recebemos através da instauração do ensino superior, no início do século passado, pautado pelo modelo profissionalizante [cf. Paim, 1982]. As dificuldades com que hoje se debate a Universidade brasileira, às voltas com a perda crescente de identidade num mundo em que a formação profissional passou a ser feita, em boa medida, fora das academias, decorrem, certamente, dessa pesada tradição, que levou Anísio Teixeira a pronunciar, em 1935, o seguinte desabafo: "Este é o país dos diplomas universitários honoríficos, é um país que deu às suas escolas uma organização tão fechada e tão limitada que substituiu a cultura por duas ou três profissões práticas, é o país em que a educação, por isso mesmo, se transformou em título para ganhar um emprego. Haverá, por acaso, demasiado ensino superior no Brasil? Não. O que há são demasiadas escolas de certo tipo profissional, distribuindo anualmente diplomas em número maior que o necessário e o possível, no momento, de se consumir. Entre essas escolas e as escolas de que precisa o país para formar o seu quadro de intelectuais, de servidores da inteligência e da cultura, de professores, escritores, jornalistas, artistas e políticos, há todo um mundo a transpor" [apud Paim, 1983: 99]. Desse vício secular do praticismo calcado no cientificismo, que constitui, do ângulo epistemológico, a denominada por Ortega y Gasset [1984] "barbárie do especialismo", não escapa, nos dias que correm, a própria filosofia, transformada em filologia profissional, hermética e asséptica dos textos clássicos, no seio da moda analítica que campeia nas Universidades brasileiras. Talvez por isso seja importante analisarmos a forma em que pensadores do século XX se debruçam sobre a ciência moderna, valorizando a especificidade da filosofia em relação a esta e, de outro lado, destacando as profundas relações que as unem. É bom lembrar que esses pensadores são ora eminentes cientistas, ora filósofos de renome. Mencionemos, por exemplo, apenas para ilustrar o primeiro caso, o ensaio do Prêmio Nobel de Física Max Born [1983], intitulado "Símbolo e Realidade", em que o mestre de Heisenberg e Oppenheimer, partindo das premissas de Kant na Crítica da Razão Pura, procura mostrar que as experiências sensoriais do indivíduo transformam-se em conhecimento objetivo, por intermédio dos símbolos, como parte essencial do método. Outro exemplo que poderia ser aqui lembrado é o da instigante análise que o historiador da ciência Gerald Holton [1984] faz acerca da influência sofrida pelo físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962), na formulação do seu conceito de "complementariedade", a partir da filosofia espiritualista de Sören Kierkegaard (1813-1855). É meu propósito neste texto abordar esse pensar a ciência, seguindo as pegadas de dois importantes pensadores no século XX: o historiador da ciência Alexandre Koyré (1892-1964) e o filósofo Karl Popper (1902-). O primeiro, representante típico da abordagem da ciência do ângulo da perspectiva realista ou transcendente (que pressupõe a possibilidade de apreensão da substância do real pelo conhecimento). O segundo, seguidor da perspectiva crítica ou transcendental (que parte do pressuposto de que o conhecimento não tem o condão de apreender a substância da realidade, mas apenas sua aparência). Dividirei a minha exposição em dois itens: em primeiro lugar, pensar a ciência a partir de Platão: a proposta de Alexandre Koyré. Em segundo lugar, pensar a ciência a partir de Kant: a proposta de Karl Popper. Pensar a ciência a partir de Platão: a proposta de Alexandre Koyré.O pensador russo, nascido em Taganrog, é considerado como o pai dos historiadores profissionais da ciência [cf. Solís, 1994: 9]. É aparentemente paradoxal que seja um platônico de carteirinha o fundador da historiografia contemporânea da ciência. O curioso é que Koyré ostenta esse título, justamente por ser discípulo de Platão. Afinal de contas, como veremos, o pensador russo professa um realismo matemático inspirado nos arquétipos platônicos, que lhe permite explicar a revolução efetivada pela ciência moderna, em termos de adaptação dos fenômenos observados ao mundo das idéias matemáticas. Como se dá, para Koyré, a relação entre filosofia e ciência, no seio do pensamento moderno? Segundo ele, não há dúvida de que as grandes revoluções científicas são possíveis graças a prévias modificações essenciais no plano das concepções filosóficas. "Estou profundamente convencido -- escreve Koyré [1994: 47-48] -- de que o papel dessa sub-estrutura filosófica tem sido de grande importância e de que a influência das concepções filosóficas sobre o desenvolvimento da ciência tem sido tão grande como o das concepções científicas no desenvolvimento da filosofia (...)". Os grandes inovadores no terreno da ciência moderna, Newton, Leibniz, Einstein, alicerçaram as suas novidades epistémicas não no terreno da experimentação pura e simples, mas no background metafísico que lhes possibilitou uma outra concepção de universo. "Está fora de dúvida --escreve Koyré [1994: 67]-- que foi uma meditação filosófica a que inspirou a obra de Einstein, de quem se poderia dizer que, como Newton, foi filósofo tanto quanto físico. É perfeitamente claro que a sua firme negação, inclusive apaixonada, do espaço absoluto, do tempo absoluto, do movimento absoluto, negação que, em certo sentido, prolonga a que Huygens e Leibniz opuseram antigamente a esses mesmos conceitos, está alicerçada num princípio metafísico". No prefácio à sua obra intitulada Do mundo fechado ao Universo infinito, assim descreve Koyré [1979: 7; cf. 1966: 11-16] essa estreita imbricação entre ciência e filosofia na modernidade: "Vezes sem conta, ao estudar a história do pensamento científico e filosófico dos séculos XVI e XVII (na verdade, estão de tal forma entrelaçados e vinculados que, separados, se tornam ininteligíveis) vi-me forçado a reconhecer, como muitos outros antes de mim, que durante esse período o espírito humano, ou pelo menos o europeu, sofreu uma revolução profunda, que alterou o próprio quadro e padrões de nosso pensamento, e da qual a ciência e a filosofia modernas são, a um só tempo, raíz e fruto". A base filosófica diferente explicaria, inclusive, posições científicas contrapostas, como as de Newton e Leibniz em relação à concepção física do Universo. A respeito, escreve Koyré: "(...) Seria fácil, ou ao menos possível, mostrar que a grande batalha que domina a primeira metade do século XVIII, a batalha entre Leibniz e Newton, resulta em última instância de uma oposição teológico-metafísica, e que não é uma oposição de duas vaidades ou incluso de duas técnicas mas, mesmo que isso pareça impossível, de duas filosofias". É a convicção da fundamentação filosófica da ciência a que leva o pensador russo a afirmar que "(...) hoje, como nos tempos de Descartes, um livro de física começa com um tratado de filosofia. Pois a filosofia (talvez não seja mais a que é ensinada hoje nas faculdades, mas isso acontecia já nos tempos de Galileu e Descartes) voltou a ser a raíz cujo tronco é a física e o fruto a mecânica" [Koyré, 1994: 68-69]. O nosso pensador não duvida em considerar que o nascimento da ciência moderna origina-se da adoção, pelo homem da Renascença, de uma nova atitude filosófica. "O nascimento da ciência moderna -- frisa a respeito Koyré [1994: 58-59] -- é concomitante de uma transformação (mutação) da atitude filosófica, de uma inversão do valor atribuído ao conhecimento intelectual comparado com a experiência sensível, da descoberta do caráter positivo da noção de infinito. Daí que seja totalmente pertinente que a infinitização do Universo (...) fosse obra de um filósofo, Giordano Bruno, e que, por razões científicas (empíricas) fosse violentamente combatido por Kepler" [cf. Bruno, 1984]. Das anteriores reflexões, Koyré [1994: 51-52; 54] tira quatro conclusões: a) o pensamento científico nunca esteve inteiramente separado do pensamento filosófico; b) as grandes revoluções científicas sempre foram determinadas por comoções ou mudanças de concepções filosóficas; c) o pensamento científico (as ciências físicas, especificamente), não se desenvolve no vazio, mas sempre se encontra no interior de um quadro de idéias, de princípios fundamentais, de evidências axiomáticas que habitualmente foram consideradas como pertencentes à filosofia; d) a Revolução científica do século XVIII pode ser caracterizada por dois traços marcantes: de um lado, destruição do cosmo, ou seja, substituição do mundo finito e hierarquicamente ordenado de Aristóteles e da Idade Média por um universo infinito, tornado coeso graças à identidade de seus elementos componentes e à uniformidade de suas leis; de outro lado, geometrização do espaço, ou seja, substituição do espaço concreto (conjunto de "lugares") de Aristóteles, pelo espaço abstrato da geometria euclidiana, considerada doravante como real. Em outras palavras, consiste na substituição da concepção do movimento-processo pela do movimentoestado. Koyré destaca, aliás, não sem certa dose de pessimismo filosófico, a dificuldade toda especial que experimenta o ser humano para mudar as suas concepções profundas. "O homem -- escreve [Koyré, 1994: 98] -- é um animal preguiçoso que, apesar de Aristóteles, nada detesta tanto como o exercício do pensamento. Porisso (com apenas umas poucas exceções) só pensa quando verdadeiramente não pode fazer outra coisa". Isso explicaria em parte, aliás, o retardamento que houve em relação à mudança dos parâmetros epistémicos e metafísicos que possibilitaram o surgimento da ciência moderna, embora a antigüidade conhecesse uma epistéme desvinculada da téchne [cf. Koyré, 1994: 99 seg.]. Em que consiste o realismo matemático de Koyré, sobre o qual o pensador russo pretende ancorar o edifício da ciência moderna? O cosmo aristotélico tinha-se baseado numa filosofia da natureza alicerçada nas noções de substância e de motor imóvel. O universo newtoniano fundamentou-se, por sua vez, numa noção metafísica: Deus como fundamento do espaço e do tempo absolutos. O universo einsteniano procurou, ao ser relativizada a concepção deísta newtoniana, um fundamento não menos metafísico: a noção de natureza com leis de valor absoluto. A respeito, escreve o nosso autor: "(...) O tempo absoluto como o espaço absoluto, realidades que Newton aceitou sem duvidar (porque ele podia apoiá-las em Deus e alicerçá-las em Deus), convertem-se, para Einstein, em fantasmas sem consistência e sem significação, não já, como se tem dito às vezes, porque é impossível apoiá-las no homem (parece-me que a interpretação kantiana é tão falsa quanto a positivista), mas porque são marcos vazios, sem nenhuma relação com o que há dentro. Para Einstein, como para Aristóteles, o tempo e o espaço estão no Universo e não o Universo neles. Posto que não há ação física imediata a distância (nem Deus que possa suprir a sua ausência), o tempo está ligado ao espaço e o movimento afeta as coisas que se movimentam. Mas se a medida de todas as coisas tal como são já não é Deus, também não é o homem, é a natureza. Por isso a teoria da relatividade (de nome tão pouco feliz) afirma precisamente o valor absoluto de leis da natureza que são tais (e devem ser formuladas de tal maneira) que sejam cognoscíveis e verdadeiras para todo sujeito cognoscente. Sujeito, bem entendido, finito e imanente ao mundo, e não sujeito transcendente como o Deus de Newton" [Koyré, 1994: 67-68]. Para Koyré não há dúvida da preeminência da ordem do ser sobre o conhecer. Referindo-se à física de Newton, o pensador russo escreve: "(...) Não são as condições do saber as que determinam as condições do ser fenomênico dos objetos desta ciência (ou dos entes) mas, pelo contrário, a estrutura objetiva do ser a que determina o papel e o valor das nossas faculdades de saber. Ou, para utilizar uma velha fórmula de Platão: na ciência newtoniana e no mundo newtoniano, a medida de todas as coisas não é o homem, é Deus. Os sucessores de Newton puderam esquecer, puderam acreditar que não tinham necessidade da hipótese Deus, doravante andaime inútil de uma construção que se sustentava por si mesma. Erraram. Privado de seu suporte divino, o mundo newtoniano revelou-se instável e precário. Tão instável e tão precário como o mundo de Aristóteles, que tinha substituído" [Koyré, 1994: 61-62]. A posição do pensador russo é clara: os princípios científicos ancoram, na modernidade, na ordem do ser. Ora, essa ordem é traduzível tanto nos conceitos metafísicos, quanto na linguagem matemática. Isso, aliás, já tinha sido salientado por Leibniz [cf. 1981: 27; 1982: 56 seg.; Gueroult, 1967]. O espírito humano busca sem cessar essa fundamentação do saber na ordem do ser. As aparentemente inúteis questões metafísicas sempre estão no fundo da sua indagação intelectual. A atitude positivista é mal passageiro. A razão busca o seu fundamento no ser. O alicerce da ciência não é a experiência dos fenômenos. Esse fundamento é constituído pela intuição de uma ordem necessária. É isso que Koyré denomina de realismo matemático. A respeito, o nosso autor escreve: "Portanto, creio que é possível concluir, provisoriamente ao menos, que a lição da história nos mostra que: a) A renúncia (a resignação) positivista não é mais do que uma posição de retirada temporal e que se o espírito humano, na busca do saber, assume periodicamente essa atitude, não a aceita jamais (...) como definitiva e última; cedo ou tarde deixa de fazer da necessidade virtude e de se alegrar na sua derrota. Cedo ou tarde volta ao trabalho, e põe-se de novo a buscar uma solução inútil ou impossível de problemas declarados despojados de sentido, tratando de encontrar uma explicação causal e real das leis estabelecidas e aceitas por ele. b) A atitude filosófica que a longo prazo demonstra que é boa não é a empirista positivista ou pragmatista, mas, pelo contrário, a do realismo matemático. Em resumo, não a de Bacon ou de Comte, mas a de Descartes, Galileu e Platão" [Koyré, 1994: 66]. O divisor de águas entre a ciência antiga e a moderna situa-se, no sentir do filósofo russo, na matematização da natureza. A ciência antiga não pressupunha tal matematização que constituiu, pelo contrário, a peça-chave da nova ciência. "A concepção aristotélica -- frisa a respeito Koyré [1994: 55-56] -- não é uma concepção matemática. Essa é a sua debilidade. Essa é também a sua força: é uma concepção metafísica. O mundo de Aristóteles não é um mundo que possua uma curvatura geométrica; está, se pudermos dizé-lo assim, metafisicamente curvado. Os cosmólogos contemporâneos, quando tratam de nos explicar a estrutura do mundo einsteniano ou póseinsteniano, com o seu espaço curvo e finito, embora sem limites, habitualmente dizemnos que aí há concepções matemáticas bastante difíceis e que aqueles de nós que carecem da formação matemática necessária não serão capazes de compreendé-las como é necessário (...)". Poderíamos nos perguntar, a esta altura, por que a ciência antiga não chegou à matematização da natureza, efetivada pela ciência moderna. Essa indagação se torna mais empolgante, se levarmos em consideração que os antigos cientistas conheciam (desde os pitagóricos, no caso grego) os números e que, para Aristóteles, havia dois tipos de conhecimento que poderiam se relacionar, embora indiretamente, a epistéme e a téchne A resposta dada por Koyré é bastante original e clara: não foi possível, no seio da ciência antiga, a matematização da natureza, porque faltava o elemento prático para realizar essa conversão: a transformação da epistéme em téchne que deu ensejo à máquina. Na classificação aristotélica do saber, aliás, epistéme e téchne não eram conversíveis, só podendo se relacionar indiretamente na dinâmica global do conhecimento, presidida pela Sofia. No seio do pensamento moderno de Galileu e de Newton, é possível essa conversão. Talvez a razão de fundo seja que, neles, o mundo foi totalmente dessacralizado, tornando possível a aplicação das leis da mecânica, vigentes nos movimentos sobre a terra, à totalidade do Universo. Para o pensamento moderno não haveria mais região sublunar contraposta à supralunar (em que tinha vigência o movimento perfeito). O Universo é, na modernidade, um único âmbito, passível de ser representado metafísica e matematicamente. Ao passo que o número, para os pitagóricos, exprimia algo de sagrado, desligado deste mundo das aparências, para o pensamento moderno seria a língua em que está escrito o livro da natureza. Vale a pena lembrar, a respeito, o clássico texto de Galileu, no seu Ensaiador [1987: 21], de nítido sabor neoplatônico: "(...) A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são os triângulos, circunferências, e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto". Para Koyré é claro que foi Descartes quem, pela primeira vez, deu o passo para converter a epistéme em téchne, abrindo destarte o caminho para a matematização da natureza. A respeito, escreve o nosso pensador: "Mas enquanto Bacon conclui (...) que a inteligência deve-se limitar ao registro, à classificação e a colocar em ordem os fatos do senso comum, e que a ciência (...) não é, ou não deve ser, mais do que um resumo, generalização ou prolongamento do saber adquirido na prática, Descartes, por sua vez, tira uma conclusão exatamente oposta, ou seja, a possibilidade de fazer penetrar a teoria na ação, ou seja, a possibilidade da conversão da inteligência teórica no real, a possibilidade, ao mesmo tempo, de uma tecnologia e de uma física. Possibilidade que encontra a sua expressão e a sua garantia no fato mesmo de que o ato da inteligência que, decompondo e recompondo uma máquina, compreende a sua disposição, assim como a estrutura e o funcionamento de suas múltiplas engrenagens, é exatamente análogo àquele pelo qual, decompondo uma equação nos seus fatores, compreende a sua estrutura e a sua composição. Ora, Descartes espera os progressos que tornarão o homem dono e senhor da natureza, não do desenvolvimento espontâneo das artes industriais de parte dos que as praticam, mas da conversão da teoria na prática". Koyré conclui assim, destacando a índole teórica e operacional do pensamento cartesiano e da revolução científica por ele ensejada: "Da minha parte, creio que a história, ou melhor a pré-história da revolução técnica dos séculos XVII e XVIII, confirma a concepção cartesiana: a máquina paleotécnica transformou-se na máquina moderna (...), como conseqüência da conversão da epistéme em téchne, pois é essa conversão, dito em outros termos, é a tecnologia nascente a que deu à segunda o que constitui o seu caráter próprio e a distingue radicalmente da primeira, e isso não é outra coisa do que a precisão" [Koyré, 1994: 123-124]. Pensar a ciência a partir de Kant: a proposta de Karl Popper Para o pensador austríaco, naturalizado britânico, a dinâmica da ciência situa-se num contexto mais amplo: o das exigências críticas da razão que são, em última instância, as responsáveis pelas modificações categoriais. Dessa concepção distancia-se, hodiernamente, como espécie de preguiça filosófica, o vício do especialismo filológico. A respeito e se referindo ao estudo dos pré-socráticos, escreve Popper [1983: 125]: "(...) expresso-me como um apreciador, como um admirador da belíssima história dos pré-socráticos. Não sou especialista ou perito; sinto-me completamente perdido quando um perito começa a discutir sobre as expressões e palavras que Heráclito poderia ter ou não poderia ter empregado. E, no entanto, quando um perito substitui uma história linda, baseada nos textos mais antigos que possuímos, por uma que (ao menos para mim) já não faz nenhum sentido, acho que até um amador pode levantar-se e defender uma tradição antiga. Assim, ao menos, vou examinar os argumentos do perito e (testar) sua coerência. Isto parece-me ser uma atividade inofensiva; e se um especialista ou qualquer outra pessoa se preocupasse em refutar a minha crítica, sentir-me-ia grato e honrado". Popper não tem dúvida em considerar a especialização como uma grande tentação para o cientista e como um grande pecado para o filósofo, que termina por estiolar a sadia curiosidade de querer indagar acerca do nosso conhecimento do mundo. "Para mim, escreve, tanto a filosofia como a ciência perdem toda sua atração quando abdicam dessa busca, quando se tornam especializações e deixam de ver e de se admirar com os enigmas de nosso mundo. A especialização pode ser uma grande tentação para o cientista, mas para o filósofo é um pecado mortal" [Popper, 1983: 125]. Superados os limites desse estreito especialismo, Popper considera que, na sua origem, pesquisa científica e indagação filosófica estão unidas num ponto comum: tratar de compreender o mundo. A respeito, afirma o nosso pensador: "Existe, ao menos, um problema filosófico no qual todos os homens pensantes se interessam: o problema de compreender o mundo em que vivemos; e conseqüentemente nós mesmos (como parte desse mundo) e nosso conhecimento dele. Acredito que toda ciência seja cosmologia e, para mim, o interesse da filosofia, assim como o da ciência, reside exclusivamente em sua audaciosa tentativa de acrescentar (algo) ao nosso conhecimento do mundo e à teoria do nosso conhecimento do mundo. Wittgenstein, por exemplo, interessa-se não tanto por sua filosofia lingüística, mas por seu Tractatus ser um tratado cosmológico (apesar de tosco) e porque sua teoria do conhecimento estava intimamente relacionada à sua cosmologia" [Popper, 1983: 125]. O que está na base da atividade epistemológica do espírito humano, tanto na filosofia quanto na ciência, é, para Popper, a dinâmica da razão, que busca sempre explicações condizentes com idéias claras e distintas e que só se satisfaz com a diáfana transparência das evidências. Nesse contexto, pouco tem a nos dizer a epistemologia de cunho experimental. Em relação a esse ponto, frisa Popper [1983: 126]: "A epistemologia empirista e a historiografia tradicional da ciência são ambas profundamente influenciadas pelo mito de Bacon de que toda ciência se inicia na observação para depois, vagarosa e cautelosamente, avançar até teorias. O estudo dos présocráticos nos conduz a conclusões muito diferentes. Encontramos neles audaciosas e fascinantes conclusões, algumas das quais são curiosas e contundentes antecipações de resultados modernos, enquanto muitos outros (aspectos) permanecem completamente sem sentido para nosso ponto de vista moderno; mas a maioria dessas idéias, e as melhores dentre elas, nada têm a ver com a observação (...)". O nosso pensador considera que os avanços realizados pelos pré-socráticos na explicação do mundo, prendem-se a essa exigência inata da razão. Para Tales de Mileto, por exemplo, a Terra é sustentada pela água, sobre a qual navega como se fosse um barco. Os terremotos explicam-se pelo fato de a Terra ser sacudida pela água. É evidente, considera Popper, que Tales observou os terremotos e o movimento dos barcos antes de formular a sua teoria. "Mas o ponto crucial -- acrescenta --, era explicar a suspensão ou o suporte da Terra, e também os terremotos, pela conjetura de que a Terra bóia na água; e para esta conjetura, que curiosamente antecipa a moderna teoria da deriva dos continentes, não poderia ter se baseado em suas observações" [Popper, 1983: 126]. O progresso realizado pelo discípulo de Tales, Anaximandro, no que tange à concepção do mundo, explica-se por uma dinâmica semelhante. A respeito, escreve o nosso autor: " (...) A teoria da suspensão da Terra de Anaximandro é ainda muito intuitiva, mas já não usa analogias derivadas da observação. Na realidade, pode ser descrita como antiobservação. Segundo a teoria de Anaximandro, a Terra não é sustentada por nada, mas permanece estacionária devido ao fato de estar igualmente distante de todas as demais coisas. Seu formato é semelhante ao de um tambor. Nós caminhamos sobre uma das suas superfícies planas, enquanto a outra está do outro lado. É claro que o tambor é uma analogia derivada da observação. Mas a idéia da livre suspensão da Terra no espaço e a explicação de sua estabilidade não têm nenhuma analogia em todo o campo dos fatos observáveis" [Popper, 1983: 126]. Anaximandro tratava de ser fiel às exigências da razão, sem se deixar seduzir pelos fatos observáveis. Aí, no sentir do pensador austríaco, estaria a sua originalidade. Nessa coragem de ousar a aventura do espírito, é onde tem origem o chamado por Popper de "Mundo 3 humano" [cf. Popper, 1977: 205 seg.]. Anaximandro, ao ousar seguir as pegadas da sua razão, deu ensejo à criativa idéia cosmológica que seria seguida por Aristarco e Copérnico, entre outros. Em relação a esse ponto, escreve Popper [1983: 126]: "Acredito que esta idéia de Anaximandro seja uma das mais audaciosas, mais revolucionárias e mais prodigiosas idéias em toda a história do pensamento humano. Tornou possíveis as teorias de Aristarco e Copérnico. Mas o passo dado por Anaximandro foi ainda mais difícil e audacioso que aquele dado por Aristarco e Copérnico. Conceber a Terra como livremente equilibrada no espaço e afirmar que permanece imóvel por causa de equilíbrio e eqüidistância (conforme Aristóteles parafraseia Anaximandro), antecipa de certa forma até mesmo a idéia de Newton sobre as forças imateriais e invisíveis da gravidade". Sintetizando, o nosso autor considera que Anaximandro chegou à sua teoria criticando a teoria de Tales. Essa modalidade crítica é, aliás, a forma típica de construção, pelo nosso entendimento, do "universo humano". Eis a forma em que na sua Autobiografia intelectual, Popper [1977: 205] caracteriza essa ação criativa do espírito, que não se restringe aos produtos abstratos da razão, mas que se alarga a todo o universo da cultura: "Generalizamos a idéia do mundo 3 humano, de sorte que esse mundo 3, em sentido lato, compreende não apenas os produtos de nosso intelecto, a par das imprevistas conseqüências que deles emergem, como também os produtos de nosso espírito em termos de maior abrangência, incluindo, por exemplo, os produtos de nossa imaginação. Até mesmo as teorias, produtos de nosso intelecto, resultam da crítica aos mitos, que são produtos de nossa imaginação: elas não seriam possíveis sem os mitos; e, por outro lado, a crítica não seria possível sem a descoberta da diferença entre fato e ficção, ou verdade e falsidade. Tal o motivo por que mitos ou ficções não devem ser excluídos do mundo 3. E, dessa maneira, somos levados a incluir nele a arte e, na verdade, todos os produtos humanos em que tenhamos injetado algumas de nossas idéias e que incorporem o resultado da crítica (em sentido mais amplo do que a crítica meramente intelectual). Nós próprios podemos ser incluídos nele, por termos absorvido e criticado idéias de nossos predecessores e por termos procurado formar-nos; e no mundo 3 podem também ser incluídos nossos filhos e discípulos, nossas tradições e instituições, nossos modos de vida, nossos propósitos e nossas finalidades". A ciência é formulada, no sentir de Popper, no seio dessa mais ampla ação criadora do espírito, que enseja, como vimos, o "mundo 3 humano". Ora, nessa reflexão acerca da ciência, o nosso pensador deixa clara a sua inspiração em Kant, embora critique ao gênio de Königsberg ter exagerado a validade do conhecimento a priori, deixando de lado a corroboração das hipóteses pela experiência -- ponto no qual, aliás, Popper [cf. 1977: 111-112] desenvolve a sua teoria das "tentativas de refutação" --. Eis a forma em que o nosso pensador explicita a sua inspiração em Kant, no que tange à reflexão sobre a ciência: "Nossas teorias, a começar dos mitos primitivos e até chegar às teorias da Ciência, são indiscutivelmente um produto humano, como disse Kant. Tentamos impô-las ao mundo e sempre podemos aderir a elas dogmaticamente, se assim o desejarmos, ainda que sejam falsas (como o são, ao que parece, a maioria dos mitos religiosos, mas também a teoria de Newton, que era a que Kant tinha em mente). Embora tenhamos a princípio de apegar-nos a nossas teorias -- sem teorias não podemos nem mesmo começar, pois não há outra coisa capaz de guiar-nos -- cabe, com o tempo, adotarmos uma atitude mais crítica em relação a elas. Podemos tentar substituí-las por algo melhor, se tivermos aprendido, com o auxílio delas, em que ponto deixam de nos ser úteis. E surgirá assim a fase científica ou crítica da reflexão, necessariamente precedida por uma fase não-crítica. Kant, julgava eu, acertara ao afirmar ser impossível que o conhecimento fosse, por assim dizer, uma cópia ou impressão da realidade. E acertara ao afirmar que o conhecimento é geneticamente ou psicologicamente a-priori, mas errava ao admitir que um conhecimento pudesse ser válido a-priori. Nossas teorias são invenções nossas; mas podem não passar de conjecturas mal-fundadas, conjecturas audaciosas, hipóteses. A partir delas, criamos um mundo: não o mundo real, mas nossas próprias redes, nas quais procuramos colher o mundo real" [Popper, 1977: 66-67]. Pensar a ciência seguindo as abordagens de dois importantes pensadores contemporâneos, Koyré e Popper: essa foi a finalidade perseguida neste trabalho. Da análise do pensamento de ambos os autores, fica claro que a primeira condição para realizar essa tarefa é superar os velhos esquemas do positivismo e do cientificismo, que faziam da ciência compartimento estanque totalmente divorciado da meditação filosófica e que entendem hoje esta última, na moda analítica, como filologia altamente especializada dos textos, ceifando o seu horizonte hermenêutico e a sua dimensão crítica. A lição dada por Koyré e por Popper restabelece o diálogo vivo entre filosofia e ciência, destacando as mútuas influências e mostrando que esse diálogo é uma via de mão dupla, que pode partir da ciência (como no caso de Koyré), ou da filosofia (como no de Popper), e que pode se inserir ora na clássica perspectiva do realismo metafísico, ora na perspectiva transcendental aberta por Hume e por Kant. BIBLIOGRAFIA BORN, Max [1983]. "Simbolo e realidade". In: Humanidades, Brasília, I, no. 2: pgs. 160-169. BRUNO, Giordano [1984]. Acerca do infinito, o universo e os mundos. (Tradução, notas e Bibliografia de A. Montenegro; introdução de V. Matos e Sá). 3ª edição. Lisboa: Calouste Gulbenkian. GUEROULT, Martial [1967]. Leibniz, dynamique et metaphysique. Paris: Aubier-Montaigne. HOLTON, Gerald [1984]. "As raízes da complementariedade". In: Humanidades, Brasília, II, no. 9: pgs. 49-71. KOYRÉ, Alexandre [1966]. Études galiléennes. Paris: Hermann. KOYRÉ, Alexandre [1979]. Do mundo fechado ao universo infinito. (Tradução de D. M. Garschagen). São Paulo: Edusp. KOYRÉ, Alexandre [1994].Pensar la ciencia. (Introdução de C. Solís; tradução ao espanhol de de A.. Beltrán Marí). Barcelona: Paidós Ibérica; Instituto de Ciencias de la Educación de laUniversidad Autónoma de Barcelona. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm [1981]. Sistema nuevo de la naturaleza. (Tradução ao espanhol de E. Pareja). 3ª edição. Buenos Aires: Aguilar. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm [1982]. Discurso de metafísica. (Tradução ao espanhol de A. Castaño Piñán). 6ª edição. Buenos Aires: Aguilar. ORTEGA Y GASSET, José [1984]. "A barbárie do especialismo". In: Humanidades, Brasília, II, n. 6: pgs. 147-149. PAIM, Antônio [1982]. Organizador. Pombal na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro / Fundação Cultural Brasil-Portugal. PAIM, Antônio [1983]. "As humanidades e a Universidade brasileira: proposta para obtenção de novo consenso". In: Humanidades, Brasília, I, no. 2: pgs. 99-108. POPPER, Karl [1977]. Autobiografia intelectual. (Tradução de L. Hegenberg e O. Silveira da Mota). São Paulo: Cultrix / Edusp; Brasília: Universidade de Brasília. POPPER, Karl [1983]. "De volta aos pré-socráticos". In: Humanidades, Brasília, I, no. 2: pgs. 125-137. SOLÍS, Carlos [1994]. "Alexandre Koyré y la historia de la ciencia". In:Alexandre Koyré, Pensar la ciencia. (Tradução ao espanhol de A. Beltrán Marí). Barcelona: Paidós Ibérica; Instituto de Ciencias de la Educación de la Universidad Autónoma de Barcelona pgs. 9-43.