Cia de Cigarros Souza Cruz: Senhora, Vítima ou Algoz de seu Declinante Destino? Autoria: Paulo Roberto Esteves Grigorovski, Denise L. Fleck O estudo histórico sobre a centenária Souza Cruz buscou identificar de que maneira a empresa respondeu aos desafios surgidos ao longo dos anos, verificando se a mesma desenvolveu propensão à autoperpetuação. A empresa apresentou mostras de ter sido Senhora, Vítima e Algoz de seu destino. Durante as 7 primeiras décadas, competentemente neutralizou e dominou a concorrência, tendo sido Senhora de seu destino de estrela em ascensão. A seguir, tornou-se Vítima do crescente processo de deslegitimação do hábito de fumar no mundo contemporâneo. Na tentativa de tomar as rédeas de seu destino tornou-se Algoz de seu destino, tendo empreendido um desastrado programa de diversificação e respondido de maneira contraproducente à liberação de preços, estimulando o mercado ilegal, que se tornou importante competidor de seus produtos. A história da Souza Cruz sugere que a gestão competente dos desafios que enfrenta uma empresa em crescimento constituiria uma condição necessária para alcançar a longevidade saudável. No entanto, questões de legitimidade das operações da empresa constituem condições suficientes para provocar seu ocaso, que pode ser até certo ponto revertido via diversificação relacionada que tenha por base capacitações desenvolvidas pela empresa ao longo de sua história. 2003 2001 1999 1997 1995 1993 1991 1989 1987 1985 1983 1981 1979 1977 1975 1973 1971 Em 2004, a Souza Cruz completou 101 anos de atividades no Brasil, passando a integrar um seleto grupo de empresas que conseguiram sobreviver por mais de um centenário a intensas mudanças ocorridas no ambiente. Ao longo de sua existência, a empresa cresceu aceleradamente, tornando-se a líder de mercado e assumindo a posição de firma dominante na indústria de cigarros. Foi a pioneira na implantação do cultivo de fumos claros e no desenvolvimento do sistema integrado de produção, ocupou a primeira posição no ranking das maiores empresas privadas da Revista Exame Melhores e Maiores (M&M) e foi classificada como a maior exportadora de fumo em folhas do mundo. Seus empregados ultrapassaram 18.000 e chegou a vender mais de 140 bilhões de cigarros em um ano. Em resumo, sua história confunde-se com o desenvolvimento da indústria de fumo no País. Contudo, tais conquistas não refletem plenamente a situação presente da empresa e de seus negócios. Em 2003 a Souza Cruz ocupou a 24ª posição no ranking das 500 maiores empresas privadas brasileiras da Revista Exame M&M (vide figura 1). Seus funcionários reduziram-se para pouco mais de 4.200. O volume de vendas de cigarros decresceu a cada ano, passando de 140 bilhões em 1986 a 74,3 bilhões em 2004 – uma queda expressiva de 47%. Com relação às exportações de fumo, a Souza Cruz passou a ocupar a terceira posição mundial. Embora continue líder e dominante, sua participação de mercado em 2004 – 75,2% – é a menor dos últimos 30 anos. 1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23 25 1 Figura 1 – Posição da Souza Cruz entre as 500 maiores empresas privadas Fonte: Edições da Revista Maiores e Melhores A partir dos anos 70, a participação de suas vendas no Produto Interno Bruto (PIB) decresceu progressivamente, queda esta acelerada nos anos 90 até 2003 (vide figura 2). No ano de seu centenário, a Souza Cruz possuía uma representatividade no PIB inferior à de 1957, a despeito do crescimento da economia e da população brasileiras. Enquanto isso, as vendas da Souza Cruz não têm conseguido acompanhar na mesma proporção o aumento da população e do PIB brasileiros. Pelo contrário, o volume de vendas de cigarros, por exemplo, assumiu uma trajetória decrescente desde 1987. 1,60 Receita da Souza Cruz / PIB 1,40 1,20 1,00 0,80 0,60 0,40 0,20 2002 1999 1996 1993 1990 1987 1984 1981 1978 1975 1972 1969 1966 1963 1960 1957 0,00 Figura 2 – Trajetória de crescimento da Souza Cruz no período 1957-2003 Fonte: Relatórios de Administraçao da Souza Cruz e IBGE Na década de 90, o ambiente que cerca a empresa tornou-se extremamente inóspito, com pressões de vários stakeholders. O governo, que ao longo das décadas sempre elevou a carga de impostos, passou ainda a assumir um forte papel regulador sobre a indústria de fumo, sancionando pesadas leis restritivas sobre a venda, consumo e propaganda de cigarros. Ainda em janeiro de 2004, a Justiça brasileira concedeu a inversão do ônus da prova no caso da ação civil promovida pela Associação de Defesa da Saúde do Fumante, cabendo agora aos fabricantes provar quais são os efeitos do cigarro. Em fevereiro, a Souza Cruz e a Philip Morris foram condenadas – em primeira instância - a pagar indenizações aos fumantes, cujo total foi estimado em R$ 37,5 bilhões. (Lafis, 2004; p.15). O ambiente restritivo que se configurou nos anos 90 somado à perda de dinamismo do negócio de cigarros ao longo das décadas, levanta sérias dúvidas sobre o futuro – e quem sabe até a sobrevivência – da Souza Cruz. Tal situação de ameaça à continuidade da existência de uma empresa, que por muitas décadas brilhou no cenário brasileiro de negócios, e hoje apresenta sinais de viver seu ocaso, inspirou a investigação da seguinte questão: Em que medida a Souza Cruz é Senhora, tão somente Vítima do inóspito ambiente ou, ao contrário, Algoz de seu declinante destino? REFERENCIAL TEÓRICO Segundo Barnard (1971), a capacidade de sobrevivência de uma empresa é a mais verdadeira medida de seu sucesso. O estudo do sucesso das organizações tem sido realizado segundo complementares perspectivas: de um lado, a ação do ambiente é vista como determinante do destino da organização (Hannan & Freeman, 1977; Pfeffer & Salancik, 1978; 2 Porter, 1980); de outro, as ações da empresa são majoritariamente vistas como edificadoras de seu destino (Penrose, 1980; Chandler, 1977; Barney, 1991; Teece et al., 1997). Enquanto a perspectiva centrada no ambiente sugere que a sobrevivência da empresa está condicionada a sua capacidade de adaptação às regras impostas pelo ambiente, o que a torna de certa maneira vítima das circunstâncias, a segunda enfatiza a atitude pro-ativa da empresa na construção de seu destino. Nesta perspectiva, em caso de infortúnio, a empresa seria em grande parte algoz de seu triste destino. A agregação dessas duas perspectivas sugere que experimentar uma longevidade organizacional saudável requer um conjunto variado de habilidades por parte da empresa, as quais contemplam tanto seu funcionamento interno, como seu relacionamento com o ambiente. Uma abordagem que integra essas duas perspectivas foi desenvolvida no estudo indutivo de Fleck (2001; 2004a). Nele a autora identificou um conjunto de habilidades organizacionais que alimentam a propensão a autoperpetuação da empresa em qualquer ambiente, favorável ou inóspito. Tal condição no entender de Chandler (1977) consiste em experimentar crescimento contínuo e a existência continuada. Além disso, Fleck identificou um conjunto de comportamentos organizacionais que favoreceriam o desenvolvimento de uma propensão à autodestruição organizacional, definindo autodestruição como o declínio organizacional provocado pela inabilidade da empresa de responder aos desafios do crescimento, e não pelo ambiente pura e simplesmente. Sugere Fleck (2001) que o estado de autodestruição pode permanecer latente na organização enquanto as condições ambientais são benignas, vindo a se manifestar somente a partir de alterações que tornam adverso o ambiente. Aplicada ao estudo da história da Souza Cruz, a abordagem integradora de Fleck permite investigar a questão em estudo, qual seja em que medida a Souza Cruz é Senhora, Vítima do inóspito ambiente ou Algoz de seu declinante destino. Autoperpetuação e autodestruição da firma Segundo Fleck, uma organização desenvolve uma propensão à autoperpetuação quando suas ações ajudam-na a nutrir uma propensão a sobreviver a seus membros. Já o desenvolvimento de uma propensão à autodestruição ocorre quando suas ações enfraquecemna tornando-a não só vulnerável à implosão pela desagregação de suas partes, como incapaz de antecipar-se a e neutralizar as pressões ambientais. A autora identificou 7 tipos de desafios que enfrentam as empresas no decorrer do processo de desenvolvimento: • Empreendedorismo – refere-se à capacidade da empresa vislumbrar e perseguir novas oportunidades, buscando minimizar os riscos envolvidos (Penrose, 1980); • Motivações para expansão – diz respeito aos motivos que inspiram e fundamentam os movimentos de expansão (Chandler, 1977). Em sendo produtivos, a expansão favorece o crescimento contínuo, o que não ocorre se forem meramente defensivos ou simplesmente visando a expansão de império; • Gestão da mudança – concerne as respostas estratégicas da empresa ao ambiente podendo variar de simples aquiescência a manipulação (Oliver, 1991), nelas incluindo a gestão de dependência de recursos (Pfeffer & Salancik, 1978), a utilização de recursos VRIO (Barney, 1991) e a gestão das forças atuantes na indústria (Porter, 1980); • Diversidade – corresponde a fomentar relações de integração das tão diversificadas partes (Stickland, 1998): compartilhamento de recursos para aspectos homogêneos, e combinação ou intercâmbio de recursos para os aspectos heterogêneos da firma; • Complexidade – compreende a resolução de problemas administrativos de complexidade crescente de forma a não comprometer a organização como um todo com base em avaliações parciais das questões envolvidas (Selznick, 1957); 3 • Alocação de recursos – consiste em prover uma adequada coordenação dos recursos disponíveis para uma organização sujeita a crescentes conflitos de interesses (Cyert & March, 1963; Selznick, 1957); • Necessidades de talentos gerenciais – em virtude do crescimento, aumentam as demandas por talentos gerenciais, que se não atendidas podem estancar o processo de crescimento (Penrose, 1980), e que podem contribuir para o esfacelamento da organização no caso de contratação de elevado número de pessoas externas (Selznick, 1957). Os desafios acima descritos afetam as duas condições apontadas por Chandler (1977) como necessárias ao desenvolvimento da propensão à autoperpetuação. A figura 3 ilustra a cadeia de relacionamento entre desafios e autoperpetuação. DESAFIOS EMPREENDEDORISMO MOTIVAÇÃO PARA EXPANSÃO GESTÃO DA MUDANÇA Oportunidades (internas) CRESCIMENTO CONTÍNUO Oportunidades (externas) CN PROPENSÃO À AUTOPERPETUAÇÃO PERPETUA ÇÃO DIVERSIDADE Ameaças externas CN COMPLEXIDADE EXISTÊNCIA CONTINUADA + CONFLITOS DE PRIORIDADES Ameaças internas NECESSIDADE DE SKILL GERENCIAL Figura 3 – Desafios do crescimento e impacto na propensão à autoperpetuação Fonte: Fleck (2004b) As respostas aos desafios que estimulam o crescimento contínuo e a existência continuada alimentam a propensão da empresa à autoperpetuação. Já as respostas da empresa que carecem de estimular o crescimento contínuo e a existência continuada, alimentam a propensão da empresa à autodestruição. Na medida em que a empresa exibe um comportamento consistente em suas respostas a um desafio do ambiente, diz-se que ela desenvolveu um traço organizacional, o qual resulta das regras, rotinas, procedimentos burocráticos, políticas organizacionais e sistemas de controle intitucionalizados. Estudos longitudinais permitem a identificação da dinâmica dos traços, conforme se mantenham estáveis ou se alterem ao longo do tempo. A estabilidade de um determinado traço indicativo de autoperpetuação/ (autodestruição) indicaria uma propensão da empresa à autoperpetuação/ 4 (autodestruição) no período de tempo analisado. Já a identificação de respostas sinalizando alternadamente a autoperpetuação e a autodestruição indicaria uma situação de indefinição. A tabela 1 detalha os tipos de resposta aos desafios e suas implicações para a empresa. Desafios associados a aspectos internos Naturaza do desafio Natureza da tensão associada Ênfase nas semelhanças Organização Aumenta o grau de diversidade Aumentam os Alocação de recursos conflitos de prioridade Resolução de problemas Desenvolvimento de hierarquia gerencial Desafios associados a aspectos externos Aumenta a complexidade (torna-se mais difícil entender as questões) Aumenta a demanda por talentos gerenciais Naturaza do desafio Ênfase nas diferenças Processo deliberado de alocação de recursos Processo emergente de alocação de recursos Identificação minuciosa de evidências, buscando descrever com precisão os problemas Busca de soluções imediatas à medida que surgem os problemas Investimento de recursos (tempo e dinheiro) na formação interna de gestores Recrutamento rápido de gestores no mercado na medida da necessidades Natureza da tensão associada Otimização de retornos e riscos Empreendedorismo Motivações para crescimento Gerenciamento de mudanças Fomento de iniciativas empreendedoras Subotimização de retornos na empresa e/ou riscos Fundamentação do movimento de expansão Identificação e atuação nas fontes de mudança que podem beneficiar ou prejudicar os negócios da empresa Desenvolv. de domínios com produtividade crescente e eventual defesa dos mesmos Defesa de domínios existentes ou conquista de novos domínios que não aumentam a produtividade global da empresa Identificação geralmente custosa e demorada de possíveis fontes de mudança, buscando poder moldar o ambiente Identificação de mudanças ocorridas, buscando o melhor e mais rápido ajuste da empresa ao ambiente Pólos da tensão (modos de resposta ao desafio) Integração via busca de sinergias Fragmentação via busca de autonomia das partes Forte coordenação da alta direção Fraca coordenação da alta direção Implicação dos pólos no longo prazo Autoperpetuação Autodestruição Autoperpetuação Autodestruição Modo sistemático de resolver problemas Autoperpetuação Modo ad hoc (casuístico) de resolver problemas Autodestruição Desenvolvimento de gestores: cedo e Autoperpetuação de forma deliberada Desenvolvimento de gestores: pobre e de forma emergente Pólos da tensão (modos de resposta ao desafio) Metas audaciosas com níveis de risco compatíveis Metas apenas satisfatórias ou metas audaciosas com níveis de risco exagerados Autodestruição Implicação dos pólos no longo prazo Autoperpetuação Autodestruição Híbrido ou produtivo Autoperpetuação Defensivo ou nulo Autodestruição Manuseio das fontes de mudança a favor da empresa Autoperpetuação Adaptação às Autodestruição mudanças ocorridas Tabela 1 – Desafios gerenciais, modos de resposta e implicações organizacionais 5 Fonte: Fleck (2001) À luz da perspectiva de Fleck, a determinação da condição de senhora, vítima ou algoz de seu destino será obtida da seguinte forma: em condições de crescimento, o desenvolvimento de uma consistente propensão à autoperpetuação ao longo do tempo, seria indicativo da condição de senhora de seu glorioso destino. Em condições de declínio da trajetória de crescimento, uma consistente propensão à autoperpetuação sugeriria ser a empresa durante vítima do ambiente. Finalmente, o declínio na ausência de uma consistente propensão à autoperpetuação, indicariaa condição de algoz de seu destino. MÉTODO DE PESQUISA O estudo realizado é de natureza histórica (Yin, 1989), tendo buscado descrever e explicar (Snow & Thomas, 1994) a trajetória de crescimento da Souza Cruz ao longo de seus 101 anos de existência. Para descrever a trajetória de crescimento, utilizou-se um indicador de crescimento relativo à economia do país (Fleck, 2002). Este é obtido calculando-se o porcentual que o faturamento anual representa do PIB do respectivo ano. Para explicar a trajetória, buscou-se nas histórias da Souza Cruz e do setor de fumo e cigarros evidências de constituição de desafios e das respectivas respostas fornecidas pela empresa. A coleta de dados foi iniciada em outubro de 2003 e encerrada em outubro de 2004. Foram visitadas instituições de pesquisa e bibliotecas no Rio de Janeiro, além de se conseguir dados através do Departamento de Assuntos Corporativos da Souza Cruz, e de pesquisa na internet. Por fim, também foram realizadas duas entrevistas. As principais fontes consultadas estão organizadas na tabela 2. Unidade de análise Albino de Souza Cruz Principais fontes de dados coletadas Livros históricos comemorativos dos 80 e 100 anos da empresa. Registros de patentes da empresa no Arquivo Nacional. Registro de fundação e contrato social da empresa no Arquivo Nacional. Relatórios de Administração para os exercícios de 1957 a 2003. Livros históricos comemorativos dos 80 e 100 anos da empresa. Souza Cruz Empresas coligadas e controladas pela Souza Cruz. Indústria de Fumo/Cigarros Indústrias de empresas coligadas e controladas Artigos da Revista Exame e Melhores e Maiores em 296 edições, compreendendo 35 anos (1969-2003). Documentos internos da Souza Cruz no site da University of California-UCSF. Registros de patentes da empresa no Arquivo Nacional. Registro de fundação e contrato social da empresa no Arquivo Nacional. Marcas registradas pela empresa no INPI. Artigos da Revista Exame e Melhores e Maiores em 296 edições, compreendendo 35 anos (1969-2003). Documentos internos da Souza Cruz no site da UCSF. Relatórios da ABIFUMO sobre o perfil da indústria. Artigos sobre o setor, elaborados por pesquisadores e Consultorias. Edições de ¨O Auxiliador da Indústria Nacional¨ sobre o surgimento da indústria de fumo no País. Patentes registradas pela indústria na coleção Privilégios Industriais do Arquivo Nacional. Artigos e indicadores de edições da Revista Exame Melhores e Maiores. Artigos e indicadores de edições da Revista Exame Melhores e Maiores. Tabela 2 - Principais fontes de dados coletadas segundo as unidades de análise As etapas de análise compreendem os seguintes passos: 6 • • • • Organização dos dados coletados – criou-se uma planilha com 1.300 eventos descritiva da história da empresa; Periodização – após várias leituras em busca de marcos delimitativos, identificou-se quatro principais períodos na existência da empresa (Langley, 1999). Tal procedimento tomou como base eventos e estratégias adotadas pela empresa ao longo de sua história; Análise dos investimentos – analisou-se os principais processos de investimento ocorridos em cada período: em produção, em distribuição, em pesquisa e desenvolvimento, em recursos humanos e diversificação. Análise dos desafios - criou-se uma nova ferramenta de análise, através da qual foram identificadas ações que evidenciassem desafios gerenciais ao crescimento e os modos de resposta da Souza Cruz aos respectivos desafios. Foram desenvolvidas sete planilhas, de mesmo formato, uma para cada tipo de desafio, e cada uma delas distinguindo os 4 períodos. Nelas foram registrados eventos que evidenciavam os desafios propriamente ditos (por exemplo, entrada de novo concorente), assim como como os modos de resposta da Souza Cruz (por exemplo, lançamento de nova marca de cigarro para combater novo entrante). DISCUSSÃO DOS RESULTADOS A análise histórica da Souza Cruz indicou que durante as seis primeiras décadas de sua existência, as respostas da companhia aos desafios que se apresentaram alimentaram a propensão à autoperpetuação. Já durante o período de diversificação não relacionada (19681989), notou-se a existência de modos de resposta que alimentavam tanto a autoperpetuação como a autodestruição. Configurou-se, portanto, uma situação de indefinição em relação aos traços organizacionais, que conforme sugere Andrade Filho (2003), pode ser característica de uma fase de transição. No período mais recente (1990-2004), a empresa voltou a apresentar modos de resposta aos desafios gerenciais que, à exceção da gestão de mudança, fomentavam a propensão à autoperpetuação. A tabela 3 sintetiza os resultados obtidos. Desafios 1903-1913 Organização Alocação de Recursos Resolução de Problemas Formação de Hierarquia Gerencial Empreendedorismo Motivação para a Expansão Gestão da Mudança 1914-1967 Integração Forte coordenação de topo Forte coordenação de topo Sistemática Sistemática Desenvolvida cedo Desenvolvida cedo Metas audaciosas e Metas audaciosas e riscos compatíveis riscos compatíveis Híbrida Híbrida Moldagem Moldagem 1968-1989 Integração Fragmentação Forte coord. de topo Fraca coord. de topo Sistemática Caso a caso Desenvolvida cedo Desenvolvida pobre Metas audaciosas riscos compatíveis Metas satisfatórias Híbrida Nula Moldagem Adaptação 1990-2004 Integração Forte coordenação de topo Sistemática Desenvolvida cedo Metas audaciosas e riscos compatíveis Híbrida Moldagem Adaptação Tabela 3 – Configuração dos traços organizacionais da Souza Cruz –1903/2004 Período 1903-1913: O surgimento e o crescimento no Rio de Janeiro Organização: as poucas evidências encontradas no período sobre o traço organização indicaram que a Souza Cruz respondeu ao aumento de diversidade, enfatizando semelhanças. 7 A quantidade pequena de colaboradores permitiu que o próprio fundador, Albino de Souza Cruz, fornecesse os treinamentos necessários para a fabricação dos produtos. Como Albino era o sócio gestor e cuidava tanto dos assuntos operacionais como estratégicos, sua forte coordenação, associada à sua presença entre os funcionários, possivelmente contribuiu para disseminar uma visão única entre os mesmos, construindo uma firma integrada. Por fim, quando importou novas máquinas, ele adquiriu uma nova instalação industrial, transferindo todas as atividades da empresa para essa nova instalação. A presença de todos os funcionários em um único local possivelmente facilitou o controle e a manutenção da unidade da empresa. Alocação de recursos: a maioria das evidências encontradas durante o período indicou para uma situação de forte coordenação da alta direção da empresa, através da figura de seu fundador. O contrato social de fundação da Souza Cruz já evidenciava que a gerência da empresa era competência do sócio chefe, Albino de Souza Cruz. E as informações coletadas indicaram que Albino atuou nas diversas áreas da companhia, tendo sido o responsável pelas decisões mais importantes tomadas durante o período. Foi o próprio fundador que treinou as funcionárias da empresa. Além disso, ele cuidava também das máquinas, aperfeiçoando as mesmas para aumentarem a produtividade. Foi Albino ainda quem registrou a marca da empresa, visando protegê-la de possíveis plágios, além de ter registrado privilégios industriais (patentes) relativos a embalagens e a novos métodos de produção que, por sua vez, proporcionaram vantagens à Souza Cruz perante seus concorrentes. Resolução de problemas: Albino contratou professores para que lhe ensinassem ortografia, sintaxe, composição literária, ciências naturais e economia. Como a firma dependia das decisões por ele tomadas, o seu desenvolvimento intelectual o preparava para melhor avaliar as situações de negócio, de forma a evitar que decisões ruins viessem a comprometer toda a organização. Antes de fundar a empresa, Albino registrou a marca da companhia na Junta Comercial. Além disso, os sucessivos registros de privilégios industriais demonstram que a empresa identificou duas formas de competição, desde cedo, na indústria de fumo: por custo (eficiência produtiva) e por diferenciação (marca, embalagens). O registro de embalagens desenvolvidas, bem como de novos métodos de produção, são exemplos disso. Por fim, vale ressaltar, que só foram encontrados registros de privilégios industriais de duas das cinco maiores firmas produtoras de cigarros do Rio de Janeiro e a Souza Cruz foi uma delas. Esse fato indica que a firma, além de preocupada com as maneiras de deter vantagens sobre os rivais, estava preocupada também em manter essa vantagem ao longo dos anos. Formação de hierarquia gerencial: poucas foram as evidências com relação a esse traço. Identificou-se somente que Albino treinou suas funcionárias iniciais e que o mesmo investiu fortemente em seu próprio desenvolvimento, através da contratação dos melhores mestres da época para o ensino da língua portuguesa e ciências. Empreendedorismo: desde o início de sua carreira, Albino não se contentou com a posição de trabalhador. Juntou dinheiro e tornou-se sócio minoritário da fábrica de fumos onde trabalhava. Mais tarde, almejou uma meta bastante audaciosa: abrir uma firma da qual fosse dono – a Souza Cruz. O fundador minimizou os riscos dessa nova empreitada de várias formas. Primeiro, através dos seus conhecimentos sobre o negócio de fumo e em segundo lugar, por fazer uso dos instrumentos de proteção à propriedade industrial existentes na época. O crescimento inicial da Souza Cruz foi marcado por metas audaciosas com níveis de risco compatíveis. A firma procurava atender à demanda, lançando novos produtos e investindo em produtividade e ao mesmo tempo se protegia de possíveis plágios de concorrentes, registrando as marcas e patentes que lhe proporcionavam vantagens competitivas. 8 Motivações para a expansão: a Souza Cruz realizou investimentos que aumentaram a produtividade da empresa, visando a atender ao crescimento da demanda. A importação de máquinas, a modernização do maquinário existente, bem como o treinamento das operárias, ilustram estratégias produtivas realizadas pela empresa no período. Além disso, a empresa buscou se proteger de possíveis ações de concorrentes. Para tanto, foram feitos registros de marcas e patentes, o que configura estratégias defensivas e, em alguns casos específicos, estratégias híbridas. Os registros de patentes das embalagens, além de restringirem o acesso à concorrência, introduziram um novo método que diminuía o emprego de recursos (tempo, matéria-prima, etc.) na fabricação das mesmas. A firma desde cedo compreendeu o ¨jogo competitivo¨ a passou a direcionar seus investimentos visando à redução do custo de seu produto e ao aumento da diferenciação dos mesmos. Ao fazer isso, desenvolveu a lealdade dos consumidores, o que proporcionou o seu acelerado crescimento. Gestão da mudança: as evidências encontradas indicam situações de moldagem do ambiente. A firma desenvolveu e patenteou inovações, protegendo seu mercado dos concorrentes. Ao executar essas ações, a empresa estava justamente identificando e atuando sobre as fontes de mudança e se beneficiando das mesmas. Período 1914-1967: O domínio do mercado de cigarros brasileiro Organização: durante o período, a Souza Cruz realizou o seu primeiro movimento de diversificação, através da integração vertical tanto para trás como para frente da sua posição na cadeia produtiva. Percebeu-se que a empresa passou a buscar ganhos de produtividade e a minimizar os riscos de fornecimento, através do controle de outras etapas da cadeia produtiva de cigarros. Assim, a empresa cresceu em um mesmo negócio fim, a produção de cigarros, mantendo seu foco. Isso, por sua vez, facilitou a ênfase em semelhanças, o controle das operações, e consequentemente o crescimento de maneira integrada. Com a multiplicação das unidades da empresa, a Souza Cruz modificou sua estrutura, criando novos departamentos, para facilitar o controle e a integração entre as suas diversas partes e negócios. Alocação de recursos: nesse período notou-se um crescente controle da diretoria eleita pela BAT e menor centralização do poder nas mãos de Albino. Ao longo dos anos, foi montada uma diretoria composta por ingleses vindos de diversas empresas do Grupo BAT no mundo, que passaram a tomar as principais decisões. No início do período, Albino foi o principal responsável pelo lançamento de várias marcas encarteiradas com figuras de mulheres. Contudo, as decisões mais importantes foram tomadas pela diretoria da empresa, como por exemplo, a substituição do sistema de distribuição via tração animal por automóveis e o desenvolvimento do sistema integrado de produção. Notou-se forte coordenação da BAT, principalmente em relação a este último fato, através do envio de mão-de-obra especializada. Resolução de problemas: verificou-se que a complexidade aumentou bastante, mas ao mesmo tempo, a empresa soube responder a esse desafio, identificando os principais problemas que poderiam frear o seu crescimento e executando ações, de maneira deliberada, para conseguir a expansão almejada. Primeiro, criou as bases para o fornecimento regular de insumos para a fabricação de cigarro. Nesse sentido, desenvolveu o sistema integrado de produção no Sul do País, instalou unidades de processamento do fumo produzido e adquiriu uma litografia, que produzia embalagens e material de propaganda para os cigarros. A partir de então, começou a inaugurar fábricas em diversas regiões e fortalecer a sua rede de distribuição. Outras ações importantes foram desenvolvidas com relação ao setor de pesquisa e desenvolvimento. A Souza Cruz realizou investimentos contínuos para possuir os melhores insumos e o melhor 9 produto final, o que garantia à empresa boas possibilidades de crescimento, via lealdade do consumidor, e protegia a mesma de ações de concorrentes. Formação de hierarquia gerencial: a empresa enfrentou desafios no período que aumentaram significativamente a demanda por talentos gerenciais. A maioria das evidências localizadas indicou que a Souza Cruz respondeu a esses desafios, investindo recursos na formação interna de seus funcionários, de maneira deliberada, o que criou as condições para o desenvolvimento de gestores cedo na empresa. A principal delas foi a criação de um programa de aprendizes para cargos administrativos. Através do mesmo, a empresa captava recursos valiosos, geralmente profissionais entre 18 e 26 anos, recém-saídos da universidade, que depois de treinados, prestavam importantes serviços produtivos na empresa, podendo se tornar gestores em início ou meio de carreira. Em resumo, verificou-se que a empresa realizou investimentos necessários para capacitar seus profissionais de vários escalões. Além disso, com o desenvolvimento de um programa de aprendizes, a Souza Cruz criou as bases para a sua renovação. Empreendedorismo: a venda do controle da Souza Cruz para a BAT representou metas audaciosas como também foi uma forma de minimizar os riscos. A BAT era uma das maiores empresas de cigarros internacionais, possuidora de know-how e recursos extremamente úteis para os planos de crescimento da Souza Cruz: alcançar o domínio do mercado de cigarros no Brasil. No período em questão, a Souza Cruz criou uma rede de produção e distribuição inexistente no País e imensamente superior à de qualquer concorrente nacional. A forma de crescimento da empresa, ao mesmo tempo em que, buscava a maximização dos retornos, também minimizava os riscos intrínsecos à respectiva empreitada. A empresa crescia de maneira integrada, passando a produzir os insumos intermediários necessários para a fabricação do cigarro e a realizar atividades posteriores à sua posição na cadeia, como a distribuição direta e a fabricação de material de propaganda. Motivações para a expansão: notou-se que o processo de expansão da Souza Cruz no período em questão foi fundamentado pelo desenvolvimento de domínios com produtividade crescente e pela defesa dos mesmos. A empresa fez uso de estratégias híbridas, produtivas e defensivas, que permitiram o seu crescimento e protegeram os domínios existentes. A Souza Cruz auferiu vantagens de custos com a realização das atividades relativas ao sistema integrado de produção e à integração vertical da etapa de processamento do fumo e ao mesmo tempo, criou barreiras à entrada de novos concorrentes, pois os mesmos teriam que realizar investimentos similares para usufruírem de uma estrutura de custos compatível. Gestão da mudança: notou-se que a Souza Cruz identificou as fontes de mudança e fez uso das mesmas de maneira a beneficiar seus negócios e evitar prejuízos. Contudo, houve algumas evidências de adaptação. Dentre as ações que representam moldagem do ambiente, pode-se citar a criação do sistema integrado de produção e de um sistema de distribuição nacional. Além disso, o pioneirismo associado aos investimentos em distribuição, marketing e P&D garantiram as condições para a moldagem do ambiente e a conquista e manutenção da lealdade do consumidor. Já, para enfrentar os efeitos da pesada carga tributária, a Souza Cruz buscou aumentar sua eficiência. Em relação às evidências de adaptação passiva ao ambiente, podem ser citadas a substituição tardia do sistema de distribuição de tração animal por automóveis e o lançamento de seu primeiro cigarro com filtro dois anos após a firma pioneira. Tais reações tardias, no entanto não se concretizaram em enfraquecimento dos negócios, pois a empresa soube reverter a situação em seu benefício. 10 Período 1968-1989: O aumento da competição e a estratégia de diversificação Organização: houve evidências de modos de resposta que fortaleceram tanto a fragmentação como a integração da empresa. Dentre os exemplos de integração, destacam-se a criação do Departamento de Serviços Gerenciais, do Departamento de Administração por Objetivos, além da reestruturação do Departamento de P&D, centralizando-se as atividades em um único centro de pesquisas, no RJ. A construção da fábrica de cigarros de Uberlândia, também revela integração, pois para coordenar tais esforços, foi criado um grupo de trabalho, composto por funcionários de diferentes áreas. Além disso, foram criadas empresas para prestar apoio e serviços a todo o Grupo. Contudo, houve também evidências de que a empresa não soube lidar com o aumento brusco da diversidade em seus negócios. Com a diversificação, foram adquiridas firmas simplesmente pelas perspectivas de crescimento de vendas e de lucratividade, o que enfatizava diferenças. A Souza Cruz foi dona de fazendas de piscicultura, lavouras de abacaxi, laboratórios de biotecnologia, fábricas de sucos, etc não havendo evidências de aproveitamento da diversidade para a obtenção de economias de escopo. Alocação de recursos: foram encontradas evidências tanto de forte como de fraca coordenação de atividades. Ao ampliar a quantidade de negócios e enfatizar diferenças, a empresa enfrentou problemas na coordenação das atividades. O grande número de negócios aumentou a diversidade e a complexidade na tomada de decisões, realizada pela direção da Souza Cruz. Sem experiência em vários dos negócios adquiridos, a diretoria passou a delegar a gestão aos sócios ou a outros grupos empresariais e, em alguns casos, a colocar funcionários de carreira ou aposentados para tentar gerir as suas diversas atividades. Em vários casos, os resultados não foram positivos e as empresas apresentaram problemas de gestão. Todavia, existiram também evidências de forte coordenação. A BAT continuou exercendo intensa influência na Souza Cruz, através da indicação de sua diretoria e da elaboração de guidelines e ações a serem implementadas por sua subsidiária no Brasil. Outra evidência de forte coordenação refere-se ao projeto de construção da fábrica de Uberlândia. Além disso, identificou-se a aprovação pela diretoria de vários projetos de investimento na área fabril. Resolução de problemas: a empresa passou a apresentar evidências de resolução casuística (ad hoc), além das evidências de resolução sistemática. A Souza Cruz soube responder a alguns dos problemas enfrentados de uma maneira precisa, identificando minuciosamente os passos necessários à eliminação dos entraves. Por exemplo, a empresa criou as bases para a exportação de fumo em folha, tornando-se a maior exportadora mundial desse produto. Além disso, criou as condições para o atendimento da demanda crescente por seus produtos no mercado doméstico. No final dos anos 70, por exemplo, a maior e mais moderna fábrica da América Latina foi implantada pela empresa. Contudo, à medida que a Souza Cruz diversificou para campos de atuação completamente diferentes, ficou mais difícil entender o jogo competitivo intrínseco a esses negócios e a enfrentar os desafios e problemas surgidos ao longo do tempo. A Souza Cruz supergeneralizou seu objetivo e superestimou sua capacidade. Essa utopia gerou conseqüências negativas nos negócios e no desempenho da empresa. Formação de hierarquia gerencial: a firma cresceu e seus domínios foram expandidos para além dos negócios de fumo e cigarros. Os negócios que a empresa adquiriu ou desenvolveu diferiam do setor cigarreiro em várias dimensões: a demanda não era tão estável, a elasticidade-preço não era baixa, os competidores e stakeholders não eram os mesmos. Consequentemente, a necessidade de talentos gerenciais aumentou. A empresa precisava de gestores que compreendessem jogos competitivos diferentes daqueles que contumavam jogar. Percebeu-se que a Souza Cruz intensificou suas atividades de treinamento no período, 11 contudo, com foco na renovação dos gestores e demais funcionários relativos ao negócio de cigarros. Não foram encontradas evidências sobre treinamentos específicos sobre os outros setores para os quais a empresa tinha direcionado sua diversificação. Essa conclusão indicou que a empresa gerava as bases para a renovação de seu negócio central, contudo, não garantia a sustentabilidade em relação à gestão dos novos negócios adquiridos ou criados. Empreendedorismo: verificou-se que a Souza Cruz fomentou iniciativas empreendedoras ao longo do período, possuindo uma ampla carteira de negócios em sua maioria, composta por empresas não relacionadas com sua atividade fim. Contudo, notou-se também que a Souza Cruz desenvolveu atividades relacionadas ao seu negócio principal e ainda outras atividades de suporte às empresas do Grupo. Em resumo, pode-se dizer que foram encontradas evidências de otimização e sub-otimização de riscos e retornos das iniciativas empreendedoras desenvolvidas pela empresa ao longo do período. Motivação para a expansão: durante as duas fases anteriores, a Souza Cruz tinha executado estratégias híbridas, com a sucessão de ações produtivas e defensivas, nas quais a empresa buscava ganhos de escala e escopo e ao mesmo tempo defendia os domínios que eram criados. No período em questão, a empresa continuou realizando tais ações, contudo, verificou-se também um predomínio de estratégias nulas, através das quais a Souza Cruz conquistou novos domínios que não aumentaram sua produtividade global. A razão do aparecimento de estratégias nulas reside na orientação do seu processo de diversificação, focando em negócios com boas perspectivas de crescimento e rentabilidade, independentemente da existência de relações com a sua atividade principal. A Souza Cruz passou a deter características que a assemelhavam mais a um conglomerado do que a uma empresa de crescimento orgânico, cuja atividade principal era a fabricação de cigarros. Gestão da mudança: a Souza Cruz soube identificar as fontes de mudança, contudo, existiram situações em que moldou o ambiente e outras em que apenas se adaptou. As atividades de pesquisa de mercado foram intensificadas e a empresa lançou várias marcas, renovando as de sucesso. Contudo, não assumiu um papel de pioneira. Os challengers, como a Philip Morris, adotaram uma postura de first-to-market, tentando explorar tendências e lançar produtos novos. A Souza Cruz se adaptou à situação, fazendo uso dos investimentos que realizara em distribuição, marketing, produção e P&D e lançando produtos que combatiam com eficiência os lançamentos dos concorrentes. No que diz respeito ao governo, embora tenham feito parte de seu Conselho políticos importantes e até ministros, a Souza Cruz teve que se adaptar ao processo de aumento dos impostos e o controle dos preços imposto pelo CIP, tendo intensificado os investimentos na ciranda financeira e trabalhando para ganhar no fluxo de caixa entre o período de recebimento das vendas e o de pagamento dos impostos. Período 1990-2004: A concentração nos negócios de fumo e cigarros em um ambiente cada vez mais restritivo Organização: aos poucos a Souza Cruz vendeu ou incorporou as empresas compradas e criadas ao longo das décadas de 70 e 80. Ao fazer isso, deixou de enfatizar diferenças e passou novamente a buscar as semelhanças e sinergias das atividades relacionadas aos seus principais negócios. A empresa sofreu um brusco enxugamento, passando de um total de quase 16.000 funcionários em 1990 para aproximadamente 4.000 em 2003. Além disso, de todas as fábricas que possuía em 1990, apenas a de Uberlândia foi mantida. Essas medidas foram decorrentes da estratégia de concentração das operações no Sul e Sudeste do País. A Souza Cruz saiu de uma situação de descentralização administrativa e fragmentação, com a 12 existência de várias subsidiárias integrais, para outra situação diferente, na qual passou a ser uma empresa focada em dois negócios complementares com um número bem menor de unidades administrativas, concentradas em um espaço físico menor. Alocação de recursos: com a venda dos negócios não relacionados e a incorporação das demais atividades, a direção da empresa passou a exercer novamente forte coordenação sobre todas as suas atividades e negócios. Foram encontradas evidências da realização de planos de revisão da estratégia da empresa e de ações a serem empreendidas pela mesma para entrar em consonância com a estratégia de concentração das atividades em cigarros e negócios financeiros, realizada pelo Grupo BAT. Além disso, com a concentração das atividades, a estrutura administrativa foi alterada e o número de gestores foi reduzido, centralizando as decisões em um número menor de pessoas pertencentes à diretoria da Souza Cruz. Os documentos encontrados indicam que a Souza Cruz apresentou uma diminuição dos conflitos de prioridade com a redução dos seus campos de atuação e que isso acabou facilitando a coordenação realizada pela alta direção. Além disso, tais relatórios e planos evidenciaram um processo deliberado na alocação de recursos, planejado e aprovado pela direção. Resolução de problemas: a Souza Cruz diminuiu de tamanho, deixando de possuir outras empresas e negócios e passando a vender menos e a diminuir o número de unidades administrativas e funcionários. Consequentemente, a complexidade, que era elevada, reduziuse bruscamente, e a Souza Cruz pôde concentrar suas atenções novamente nos negócios nos quais possuía experiência. Foram localizadas evidências que indicaram a existência de uma maneira sistemática de resolver os problemas. As estratégias de concentração das atividades e de fabricação de cigarros no Sul e Sudeste do Brasil refletem um modo sistemático de resolução de problemas, pensando no longo prazo e em uma estratégia sustentável que permitisse a redução da complexidade da gestão e dos custos da empresa. Outros exemplos de identificação minuciosa de evidências e resolução sistemática de problemas são o processo ¨Souza Cruz do Futuro¨, a criação do Portal Agrega, do Interaction Center, do Instituto Souza Cruz, da Universidade Souza Cruz e da fábrica de cigarros de Cachoeirinha. Formação de hierarquia gerencial: o número funcionários, gestores e diretores foi drasticamente reduzido no período. Com esse enxugamento, a Souza Cruz continuou desenvolvendo, qualificando e aprimorando seus funcionários, aumentando a produtividade dos mesmos e mantendo sua política de formação interna. Em 1992, a companhia inaugurou o seu Centro de Treinamento, em Piraí (RJ) para a realização de seminários e cursos aos seus colaboradores. A empresa manteve as suas iniciativas relativas à contratação de estagiários e trainees. O lançamento da Universidade Corporativa Souza Cruz foi outra iniciativa que contribuiu para o aumento da qualificação e para o aprimoramento dos funcionários. A Souza Cruz desenvolveu ainda um programa de coaching e cursos de pós-graduação em administração, gestão e estratégia, tendo como público-alvo os níveis gerenciais. Empreendedorismo: com a concentração, a empresa focou suas atividades em negócios que conhecia e cujos riscos de uma má gestão eram pequenos. Em relação à exportação de fumo em folha, a empresa dobrou o volume exportado. No que diz respeito à exportação de cigarros, houve um crescimento explosivo até 1997. Apesar das vendas domésticas de cigarros terem diminuído e de a empresa ter racionalizado suas operações, a Souza Cruz realizou investimentos na fábrica de Uberlândia além de construir uma das mais modernas fábricas do mundo em Cachoeirinha (RS). Mesmo diminuindo sua estrutura, reduzindo o número de funcionários e fechando várias das suas fábricas, a empresa apresentou metas ambiciosas. Por fim, realizou investimentos para a construção de uma fábrica em Cuba para a 13 produção e exportação de cigarros especiais de alta qualidade. A empresa possui 50% de participação na joint venture com o governo cubano. Motivação para a expansão: a empresa apresentou um conjunto de estratégias produtivas e defensivas, tendo eliminado as expansões nulas de expansão de império que predominaram no período anterior, através da venda e absorção das empresas que não possuíam ligação com os negócios principais. A Souza Cruz investiu na modernização da fábrica de Uberlândia e construiu o maior e mais moderno centro de processamento de fumo do mundo no RS. A empresa implantou o Sistema de Informações Agrícolas (SIA), um sistema de picking automático, criou um portal de compras pela internet e criou Centrais Integradas de Distribuição (CID), o que aumentou sua produtividade. As estratégias defensivas foram caracterizadas pela política de redução de preços para combater o mercado ilegal, o registro de marcas no INPI, , além das exportações para América Latina, buscando combater o crescimento da Philip Morris. Outra estratégia defensiva, diz respeito ao seu ingresso no Instituto ETCO (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial), no intuito de fortalecer o combate à concorrência desleal. Gestão da mudança: a Souza Cruz apresentou ações que refletiram tanto moldagem como adaptação ao ambiente. A empresa conseguiu identificar mudanças ocorridas e manuseou algumas a seu favor, contudo, novamente conseguiu tão somente adaptar-se às ações do governo que impactavam seus negócios. Foram encontradas evidências de ações pioneiras no mercado brasileiro, na América Latina e até mundialmente, como a utilização do picking automático, a construção da fábrica de Cachoeirinha (RS), do Centro de Processamento de Fumo de Santa Cruz do Sul (RS), e da Central de Distribuição de SP. A empresa continuou investindo fortemente em P&D e como resultado recebeu dois prêmios da FINEP na categoria inovação. Contudo, suas ações contribuíram para o crescimento do seu principal competidor na atualidade, o mercado ilegal de cigarros. Ao elevar os preços após a liberação do CIP, abriu espaço para que competidores ilegais colocassem no mercado marcas de menor preço e conquistassem consumidores. Em concomitância, intensificou suas exportações para países da América Latina, visando a combater o crescimento da Philip Morris. Tais exportações possivelmente reingressaram no território brasileiro a preços mais competitivos, na forma de contrabando, tendo contribuído para o crescimento acelerado do mercado ilegal de cigarros. Nesse perído, a empresa foi submetida a pressão adicional resultante da rigorosa regulação na comercialização, produção, propaganda e consumo de seus produtos, da criação da Anvisa e das conseqüentes leis, decretos e resoluções. CONCLUSÃO Através da análise dos modos de resposta da Souza Cruz ao longo dos anos, pôde-se observar padrões de comportamento e entender ações e estratégias tomadas. Conseguiu-se verificar que as respostas da empresa à maioria dos desafios gerenciais surgidos ao longo de seu processo de crescimento contribuíram para o desenvolvomento de uma propensão à autoperpetuação. Durante as duas primeiras fases de crescimento da empresa que compreendem o período 1903-1967, foram identificados modos de resposta que indicaram propensão à autoperpetuação no longo prazo. A fase posterior, 1968-1989, foi uma exceção, tendo sido identificados modos de resposta que alimentaram tanto a autoperpetuação como a autodestruição, configurando uma situação de indefinição e de transição para a Souza Cruz. Já na última fase de crescimento, 1990-2004, a empresa conseguiu reverter essa configuração, à exceção das respostas aos desafios associados à gestão da mudança. Tal exceção, todavia, traz sérias implicações, pois diz respeito à capacidade da empresa lidar com o ambiente. 14 Em diversos aspectos, a Souza Cruz desenvolveu competências ao longo de sua história que a colocam na posição de Senhora de seu destino. Dentre elas, destacam-se a capacidade de pesquisa e desenvolvimento em biotecnologia agrícola para a cultura de fumo, sua excelente rede logística e o know-how técnico em relação a equipamentos industriais. Se devidamente exploradas no desenvolvimento de novos negócios, poderiam colocar em marcha motores de crescimento contínuo (Fleck, 2003). Já com relação à gestão das pressões ambientais, a empresa apresentou mostras de ter sido Senhora, Vítima e Algoz de seu destino. A competente maneira pela qual enfrentou e venceu os desafios ao longo das 7 primeiras décadas, neutralizando e dominando a concorrência, é um indicativo de que foi Senhora de seu destino de estrela em ascensão. Já o crescente processo de deslegitimação do hábito de fumar no mundo contemporâneo poderia sugerir uma situação de Vítima das circunstâncias, já que seu principal – pode-se dizer único – negócio está sendo atacado em todo o mundo. O hábito de fumar que ao longo das décadas foi reforçado pela ausência de contra-indicações e por estar associado a um simbolismo social positivo, passou a ser combatido fortemente pelos governos e sociedades de diversos países do mundo. Essa cruzada mundial contra o fumo se intensificou ao longo da última década com a imposição de pesadas leis restritivas sobre seu consumo, produção, propaganda e comercialização, aumentando o risco de sobrevivência da Souza Cruz. Um movimento que coloca a empresa em situação de sujeição às forças externas – como Vítima, portanto, de seu declinante destino . No entanto, evidências reunidas no estudo indicam que a suposta vítima tentou tomar as rédeas de seu destino, antecipando-se às ameaças que se esboçavam no horizonte. Tanto assim, que empreendeu um programa de diversificação durante as décadas de 1970 e 1980. Não só fracassou na gestão do diversificado conglomerado, como respondeu à liberação de preços e à intensificação da concorrência nos anos 1990 de maneira contraproducente. Suas ações acabaram por estimular o mercado ilegal, que se tornou importante competidor de seus produtos. Ou seja, os desacertos de suas ações colocaram-na na posição de Algoz de seu destino. O estudo histórico retratando a ascensão e declínio de uma importante empresa na economia brasileira permitiu identificar acertos e erros estratégicos nas respostas aos diferentes desafios do crescimento e gestão de grandes empresas. A história da Souza Cruz sugere que a gestão competente dos desafios que enfrenta uma empresa em crescimento constituiria uma condição necessária para que a mesma possa experimentar uma longevidade saudável. No entanto, questões relativas à legitimidade das operações da empresa constituem condições suficientes para provocar o ocaso da firma, o qual pode ser até certo ponto revertido através de diversificação relacionada que tenha por base capacitações desenvolvidas pela empresa ao longo de sua história. REFERÊNCIAS ABIFUMO. Perfil da Indústria do Fumo. Rio de Janeiro. Várias edições. ANDRADE FILHO, N. M. de. Vetores estratégicos para a autoperpetuação da empresa. 2003. Dissertação (Mestrado em Administração) – UFRJ/COPPEAD, Rio de Janeiro. ARQUIVO NACIONAL. Inventário de Privilégios Industriais. Rio de Janeiro. 1995. BARNARD, C. I. As funções do executivo. São Paulo: Atlas, 1971. BARNEY, J. B. Firm resources and sustained competitive advantage. Journal of Management, v.17, n. 1, p. 99-120. 1991. BRITISH AMERICAN TOBACCO. Vários relatórios e documentos internos. Disponível em <http://www.library.ucsf.edu/tobacco/batco>. 15 CHANDLER JR., A. D. The visible hand: managerial revolution in American business. Cambridge: Harvard University Press, 1977. CYERT, R. M. ; MARCH, J. G. A behavorial theory of the firm. Englewoods Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, Inc., 1963. EXAME MELHORES E MAIORES. São Paulo: Editora Abril. Edições de 1974 a 2004 FLECK, D. L. The dynamics of corporate growth. 2001. Tese (Doutorado em Administração) – Faculty of Graduate Studies and Research, McGill University, Montreal, 2001. ______. Growth trajectories of firms. 26º ENANPAD, Salvador, 22-25 setembro. 2002. ______. Dois motores do crescimento corporativo. Revista de Administração de Empresas (RAE), v. 43, n. 4, p. 10-24. 2003. ______. Crescimento, domínio continuada e declínio da empresa: insights das histórias da General Electric e Westinghouse. Revista de Administração Contemporânea (RAC), v. 8, Edição especial, p. 79-106. 2004a. ______. Capacitações organizacionais para a autoperpetuação da empresa. Conferência da Sociedade Latinoamericana de estratégia (SLADE), Itapema, SC, Brasil, 28-30 abril. 2004b. HANNAN, M. T. & FREEMAN, J. The population ecology of organizations. American Journal of Sociology, v. 82, n.5, p. 929-964. 1977. IBGE. Estatísticas do século XX. Disponível em http://www.ibge.gov.br. Pesquisa realizada em 09 de agosto de 2004. LAFIS CONSULTORIA, ANÁLISE SETORIAL E DE EMPRESAS. 2004. Brasil – Alim., bebidas e fumo: indústria do fumo. 2004. LANGLEY, A. Strategies of theorizing from process data. Academy of Management Review, v.3, n.4, p.691-710. 1999. MEYER, M.W. & ZUCKER, L.G. Permanently failing organizations. Sage Publications. 1989. MORAIS, F. Souza Cruz 100 anos: um século de qualidade. São Paulo. DBA Artes Gráficas. 2003. OLIVER, C. Strategic Responses to Institutional Processes. Academy of Management Review, v. 16, n. 1, p. 145-179. 1991. PENROSE, E.T. The theory of the growth of the firm. Oxford Basil Blackwell, 1968. PFEFFER, J. & SALANCIK, G.R. The external control of organizations: a resourcedependence perspective. Harper & Row Publishers. 1978. PORTER, M. Estratégia competitiva. 1980. SELZNICK, P. A liderança na administração: uma interpretação sociológica. Trad. De Arthur Pereira e Oliveira Filho. Rio de Janeiro. 1971. SNOW, C. C. & THOMAS, J. B. Field research methods in strategic management: contributions to theory building and testing. Journal of Management Studies. July. 1994. SOUZA CRUZ. Relatórios anuais de atividades de 1957 a 2004. STICKLAND, F. The Dynamics of Change. New York, NY, Routledge. 1998. ____________ . Histórico da Souza Cruz, aniversário de 80 anos. Rio de Janeiro, 1983. TEECE D., G. PISANO, G. & SHUEN, A. Dynamic Capabilities and Strategic Management. Strategic Management Journal, v. 18, n.7, p. 509-533. 1997. YIN, R.K. Case study research: design and methods. Sage Publications Inc. 1989. 16