UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMI-ÁRIDO
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ANIMAIS
CLÍNICA MÉDICA DE PEQUENOS ANIMAIS
OSIRIS MARQUES FRANCO
DIÁLISE PERITONEAL EM PEQUENOS ANIMAIS:
RELATO DE CASO
SÃO PAULO – SP
2012
OSIRIS MARQUES FRANCO
DIÁLISE PERITONEAL EM PEQUENOS ANIMAIS:
RELATO DE CASO
Monografia apresentada à Universidade Federal Rural
do Semi-Árido – UFERSA, como exigência final para
a obtenção do título de especialização em Clínica
Médica Veterinária de Pequenos Animais
Orientador: MSc Paulo Felipe Izique Goiozo
SÃO PAULO – SP
2012
OSIRIS MARQUES FRANCO
DIÁLISE PERITONEAL EM PEQUENOS ANIMAIS:
RELATO DE CASO
Monografia apresentada à Universidade Federal Rural
do Semi-Árido – UFERSA, Departamento de Medicina
Veterinária, para a obtenção do título de Especialista
em Clínica Médica Veterinária de Pequenos Animais
APROVADA EM ___/___/___
BANCA EXAMINADORA
_______________________________
Profo.
Presidente
________________________________
Profo.
Primeiro Membro
_________________________________
Profo.
Segundo Membro
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha esposa Márcia, companheira de todos os momentos, e à Yasmin, nossa
filha querida cuja chegada mudou e alegrou nossas vidas.
À minha mãe, fonte de amor e doação incondicional.
Ao Dr. Paulo Goiozo, pela orientação e apoio.
À equipe da Clínica Bontratto.
RESUMO
A diálise peritoneal (DP) é uma técnica de substituição renal utilizada na Medicina,
dependendo do país, por aproximadamente 10 a 30% dos pacientes em tratamento para
doença renal crônica em estágio terminal. Em Medicina Veterinária ainda é pouco conhecida
e pouco aplicada. A DP compreende a utilização da membrana do peritônio para realizar
trocas de solutos e água entre o compartimento sanguíneo e o meio externo, conseguindo
assim a redução sanguínea de impurezas como a uréia e a creatinina, e a reposição de
potássio, lactato e aminoácidos. Devido a seu custo baixo e fácil acesso, comparada à
hemodiálise (HD), se apresenta como um importante recurso em casos de insuficiência renal
aguda ou crônica, em intoxicações, distúrbios eletrolíticos e ácido-básico e de temperatura
corporal. Este trabalho tem por objetivo relatar um caso atendido na Clinica Veterinária
Bontratto, em Jacareí - SP, no mês de outubro de 2011. Foi tratado um canino com
insuficiência renal aguda (IRA) consequente a leptospirose, que apresentava anúria e sinais
clínicos de uremia. O animal foi submetido a tratamento com diálise peritoneal, além de
fluidoterapia e tratamento medicamentoso. O tratamento com DP foi realizado durante dois
dias, quando ocorreu a obstrução do cateter. O canino apresentou redução dos níveis séricos
de uréia e creatinina, recuperação da anúria e teve alta após duas semanas. O resultado
endossa a literatura de que a DP é uma técnica eficaz para a redução da azotemia e pode ser
aplicada mais amplamente na clínica de pequenos animais.
Palavras-chave: Diálise Peritoneal, Insuficiência Renal Aguda em Cães, Insuficiência Renal
Crônica em Cães.
ABSTRACT
The peritoneal dialysis (PD) is a renal replacement technique used in the Medicine, depending
on the country, by approximately 10 to 30% of patients in treatment for chronic kidney
disease in end-stage. In Veterinary Medicine it is still little known and little applied. The PD
includes the use of the peritoneum membrane to perform the exchange of solutes and water
between the blood compartment and the external environment, thereby reducing blood flow of
impurities such as urea and creatinine, and the replacement of potassium, lactate and amino
acids. Due to its low cost and easy access, compared to the hemodialysis (HD), presents itself
as an important tool in cases of renal failure, acute or chronic, in intoxications, electrolytes
and acid-base disturbances and of body temperature. This work aims to report a case assisted
in the Bontratto Veterinary Clinic, in Jacareí – SP, in October, 2011. It was treated a dog with
acute renal injury (ARI) caused by leptospirosis, which showed anuria and clinical signs of
uremia. The animal was submitted to treatment with peritoneal dialysis, and fluid and drug
treatment. PD treatment was conducted for two days, occurring clogging of the catheter. The
dog showed a decrease in serum urea and creatinine, anuria recovery and was discharged after
two weeks. The result corroborates the literature that the PD is an effective technique for
reducing azotemia and can be applied more widely in the clinic of small animals.
Key words: Peritoneal Dialysis, Acute Renal Injury in Dogs, Chronic Kidney Disease in
Dogs.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1a – Estrutura do peritônio ...........................................................................................13
Figura 1b – Modelo dos três poros ...........................................................................................13
Figura 2 – Taxa de entrada de uréia, creatinina e vitamina B12 na solução de diálise deixada
no abdome. Os resultados são expressados como a razão entre D:nível no dialisato e P: nível
no plasma. São mostradas razões D/P típicas para a uréia aos 40 minutos, às 2 horas e às 4
horas..........................................................................................................................................15
Figura 3 – Possibilidades de combinações entre a parte IP e EP dos cateteres .......................18
Figura 4 – Principais vasos sanguíneos da região abdominal. Os quadrados em branco
indicam a região mais segura para fixação do cuff interno nos procedimentos de implantação
cirúrgica. Os quadrados pretos indicam o ponto mais adequado para a colocação às cegas ou
por peritonioscopia....................................................................................................................19
Figura 5 – Colocação do cateter de Tenckhoff, com os pontos de fixação do cuff interno na
parede abdominal e do cuff externo no subcutâneo..................................................................20
Figura 6 – Procedimentos de drenagem, infusão e permanência de dialisato no abdome .......23
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Exames de hemograma, uréia, creatinina, fosfatase alcalina, alanina transferase
(ALT) e proteínas totais do animal Laika no dia 07/10/2011...................................................27
Tabela 2 - Exames sanguíneos de uréia, creatinina, fosfatase alcalina e alanina
transferase do animal Laika no período de 07/10/11 a 18/10/11..............................................29
LISTA DE ABREVIATURAS
aa – Aminoácidos
BUN – blood urea nitrogen (uréia sanguínea nitrogenada)
Ca – cálcio
Cl – cloro
DP – Diálise Peritoneal
DPAC – Diálise Peritoneal Ambulatorial Contínua
DRC – Doença Renal Crônica
EP – Extraperitoneal
EUA – Estados Unidos da América
Fig. – Figura
HD – Hemodiálise
ICC – Insuficiência Cardíaca Congestiva
IP – Intraperitoneal
IRA – Insuficiência Renal Aguda
IV – Intravenosa
K – potássio
Mg – magnésio
mOsm – miliosmol
Na – sódio
nm – nanômetro(s)
PVC – Pressão Venosa Central
RL – Ringer Lactato
SC – Subcutâneo(a)
SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE TABELAS
LISTA DE ABREVIATURAS
1 INTRODUÇÃO
10
2 REVISÃO DE LITERATURA
12
2.1 FISIOLOGIA DA DP
12
2.2 INDICAÇÕES DA DP
15
2.3 CONTRA-INDICAÇÕES DA DP
16
2.4 CATETERES E SUA COLOCAÇÃO
16
2.5 SOLUÇÕES DE DIALISATO
20
2.6 TÉCNICA E PROCEDIMENTOS PARA INFUSÃO
22
2.7 MONITORAÇÃO
24
2.8 COMPLICAÇÕES
24
3 RELATO DE CASO
27
4 DISCUSSÃO
31
5 CONCLUSÕES
33
REFERÊNCIAS
10
1 INTRODUÇÃO
A diálise peritoneal (DP) é uma técnica de substituição renal utilizada na medicina
humana desde 1923. Com a introdução da diálise peritoneal ambulatorial contínua (DPAC) há
quase três décadas sua popularidade aumentou muito, principalmente por causa de sua
simplicidade, conveniência e custo relativamente baixo. A DP é utilizada atualmente, no
mundo, por aproximadamente 120.000 pessoas (BLAKE; DAUGIRDAS, 2010).
Do total de pacientes renais crônicos em tratamento com terapias renais
substitutivas, a DP representa 12% nos EUA (PENDSE et al., 2010), de 20 a 30% no Canadá
(PENDSE et al., 2010) e 9,3% no Brasil (BUI, 2007).
A principal indicação da DP em pacientes humanos é a doença renal crônica
(DRC) em estágio terminal, já que para a insuficiência renal aguda (IRA) e intoxicações, a
hemodiálise (HD) apresenta melhores resultados. Vários estudos em diversos países foram
realizados no intuito de determinar a eficiência da DP e a comparação entre a DP e a HD. A
eficiência da DP mostra-se equivalente a HD na maioria dos casos, exceto em populações
especiais como pacientes mais idosos e diabéticos. A maioria dos estudos aponta para a
integração entre as duas técnicas, analisando qual a melhor indicação para cada caso em
particular (ALLOATTI et al., 2000, HARRIS et al., 2002, VONESH et al., 2006, SANABRIA
et al., 2008 e HUANG et al., 2008).
Os pacientes que são frequentemente beneficiados pela DP são: lactentes ou
crianças muito pequenas, pessoas com doença cardiovascular grave, pacientes com acesso
vascular difícil e pacientes que desejam maior liberdade para viajar (PENDSE et al., 2010).
Em medicina veterinária a maior indicação da DP é na IRA, já que na maioria dos
casos não se dispõe de um centro de hemodiálise de fácil acesso, além de ser uma técnica
mais dispendiosa.
É com o mesmo raciocínio que se usa a DP para tratamento de
intoxicações como, por exemplo, etanol, etilenoglicol e barbituratos (COOPER; LABATO,
2011). Outras aplicações importantes da DP são nos casos de hipotermia, hipertermia,
hiperidratação, hipercalemia e outros distúrbios eletrolíticos (COOPER; LABATO, 2011).
11
Existem relatos sobre o uso da DP em cães e gatos (CRISP et al.,1989, DORVAL;
BOYSEN, 2009 e COOPER; LABATO, 2011b). Embora o resultado final tenha variações,
todos apontam a eficácia da DP na redução da azotemia e aprovam a aplicação da técnica na
IRA.
Em contrapartida, o emprego da DP na DRC ainda parece não despertar o
interesse dos profissionais veterinários. Entretanto, é crescente a exigência dos proprietários
de animais de estimação pela sobrevida e qualidade de vida de seus animais em doenças
crônicas e terminais. Devido a essa procura, temos hoje especialidades como cardiologia,
oncologia e endocrinologia mantendo os pacientes com boa qualidade de vida e com maior
sobrevida. A DP pode ser uma ferramenta importante para colocar a nefrologia entre estas
especialidades.
Este trabalho tem por objetivo relatar um caso clínico de IRA consequente à
Leptospirose onde foi empregada a técnica da DP e confrontar os dados obtidos com a
literatura disponível sobre a DP em pequenos animais.
12
2 REVISÃO DE LITERATURA
2.1 FISIOLOGIA DA DP
O peritônio é a membrana serosa que envolve a cavidade abdominal. É dividido
em duas partes: o peritônio visceral, que envolve todos os órgãos abdominais e que representa
cerca de 80% da superfície peritoneal; e o peritônio parietal, que representa 20% da área total
e circunda as paredes da cavidade abdominal. Este último é o mais importante na DP
(BLAKE; DAUGIRDAS, 2010). Numa pessoa adulta a área total de superfície do peritônio é
aproximadamente igual à área de superfície corpórea, de 1 a 2m2. Em crianças a área
peritoneal é proporcionalmente maior (BLAKE; DAUGIRDAS, 2010).
A membrana peritoneal é composta por uma monocamada de células mesoteliais
que possuem microvilosidades e produzem um filme de glicosaminoglicanas com a função de
lubrificar e proteger o abdome (FLESSNER, 2009 e COOPER; LABATO, 2011). Sob o
mesotélio fica a camada intersticial, constituída por uma matriz de mucopolissacarídeos com
fibras de colágenos, capilares peritoneais e linfa (Fig. 1a). Entre o mesotélio e o interstício
existe uma membrana basal composta por colágeno tipo IV. O interstício é descrito como um
sistema de duas fases, onde é intercalada uma fase rica em água-pobre em colóide com uma
fase rica em colóide-pobre em água (FLESSNER, 2009 e COOPER; LABATO, 2011). Todas
estas estruturas agem como barreira entre o fluido instilado na cavidade peritoneal e a
superfície endotelial dos capilares (COOPER; LABATO, 2011).
O modelo dos três poros (Fig. 1b) sugere que o capilar peritoneal é a barreira
crítica ao transporte peritoneal. O transporte de água e solutos é mediado por poros de três
tamanhos diferentes: poros grandes, com raio de 20-40nm, presentes em pequena quantidade,
são responsáveis pelo transporte de macromoléculas como proteínas, através do mecanismo
de convecção; poros pequenos, com raio de 4-6nm e presentes em grande quantidade, são
responsáveis pelo transporte de pequenos solutos, como uréia, creatinina, potássio e sódio, em
associação com água; ultraporos, com raio <0,8nm são responsáveis somente pelo transporte
de água e correspondem ao aquaporin-1 presente nos túbulos renais e hemácias (BLAKE;
13
DAUGIRDAS, 2010). O transporte nos ultraporos é determinado pelo gradiente osmótico, em
contraste com os poros pequenos, que são afetados principalmente por fatores não osmóticos
(COOPER; LABATO, 2011).
Figura 1a) estrutura do peritônio. Figura 1b) modelo dos 3 poros
(Fonte: FLESSNER, 2009)
O transporte peritoneal compreende três processos diferentes: difusão,
ultrafiltração e absorção de fluidos. Difusão é o mecanismo mais importante no transporte de
solutos; através dele, solutos com alta concentração no sangue como uréia, creatinina e
potássio são carreados para o dialisato, enquanto o bicarbonato e lactato presentes no líquido
14
peritoneal migram para a corrente sanguínea, corrigindo distúrbios ácido-base (BLAKE;
DAUGIRDAS, 2010).
A ultrafiltração é o movimento da água ao atravessar uma membrana
semipermeável. É regulado pelas forças hidrostática e osmótica. Na DP, um dialisato
altamente osmolar (glicose) faz com que a água passe do sangue para o dialisato por osmose.
Ao atravessar a membrana peritoneal, a água carrega pequenas moléculas, uréia e creatinina,
num processo chamado convecção (BLAKE; DAUGIRDAS, 2010). A importância clínica da
ultrafiltração é que através dela controlamos o aporte de fluido no paciente (COOPER;
LABATO, 2011).
A absorção de fluidos ocorre através dos vasos linfáticos; pequena parcela pelos
vasos linfáticos subdiafragmáticos e o restante pelo peritônio parietal, onde passa para os
tecidos da parede abdominal e posteriormente os linfáticos locais (BLAKE; DAUGIRDAS,
2010).
Em humanos existe grande variação individual na taxa de transporte de solutos.
Altos transportadores têm boa difusão e baixa ultrafiltração. Baixos transportadores têm alta
ultrafiltração e baixa difusão. Utiliza-se o teste de equilíbrio peritoneal (peritoneal
equilibration test – PET) para avaliação deste transporte. Em pequenos animais não há
estudos sobre as variações individuais (COOPER; LABATO, 2011).
Apesar da grande variação individual na taxa de transporte de solutos é possível a
determinação de uma curva para determinada a taxa de entrada de solutos conforme ilustrado
na Fig. 2.
15
Figura 2 Taxa de entrada de uréia, creatinina e vitamina b12 na solução de diálise deixada no abdome. Os
resultados são expressados como a razão entre D: nível no dialisato e P: nível no plasma. São mostradas razões
D/P típicas para a uréia aos 40 minutos, às 2 horas e às 4 horas.
(Fonte: BLAKE; DAUGIRDAS, 2010).
2.2 INDICAÇÕES DA DIÁLISE PERITONEAL
Existem diversas indicações para a DP em pequenos animais. Na doença renal o
principal uso é na IRA anúrica ou oligúrica, não responsiva a fluidoterapia e medicamentos
vasodilatadores renais (LUCENA; MANNHEIMER, 2005). Pode ser ainda utilizada em casos
de IRA não anúrica com sintomas de uremia severa, onde a uréia está acima de 100mg/dL e a
creatinina acima de 10mg/dL. Em humanos o principal uso da DP é na DRC em estágio
terminal. Em pequenos animais existem poucos relatos sobre esta aplicação, a maioria
referindo-se a DRC agudizada (COOPER; LABATO, 2011).
A DP pode ainda ser utilizada em uroabdome e obstrução do trato urinário
anteriormente à anestesia e cirurgia (COOPER; LABATO, 2011). A DP tem grande utilidade
nas intoxicações por produtos dializáveis como etanol, etilenoglicol, barbitúricos, propoxifeno
e hidantoína (LUCENA; MANNHEIMER, 2005 e COOPER; LABATO, 2011). Também está
indicada na correção de distúrbios eletrolíticos (hipercalemia, hipercalcemia ) (LUCENA;
MANNHEIMER, 2005 e COOPER; LABATO, 2011. Nestas duas situações a HD é a técnica
mais indicada, sendo que a DP tem uma eficiência de 1/8 da HD na remoção de solutos do
16
sangue e ¼ da eficiência da HD na remoção de fluidos. Apesar da eficácia menor,
considerando que a DP tem uma atuação contínua, num período de 24 horas de terapia
consegue-se atingir o mesmo nível de filtração que a HD, que pode ser realizada no máximo 4
horas por dia (COOPER; LABATO, 2011).
No que concerne à hipotermia, o dialisato é aquecido na temperatura de 42 a
o
43 C, instilado no abdome com o objetivo de reaquecer por volta de 1 a 2 oC por hora. Nos
casos de hipertermia maligna utiliza-se o dialisato em temperatura ambiente (COOPER;
LABATO, 2011).
A DP pode ser aplicada em casos de insuficiência cardíaca congestiva (ICC)
refratária a tratamento medicamentoso e que apresentam sobrecarga de volume sanguíneo.
Nestes casos utiliza-se um dialisato hiperosmótico (glicose a 4,5%) (LUCENA;
MANNHEIMER, 2005 e COOPER; LABATO, 2011).
2.3 CONTRA INDICAÇÕES DA DP
A DP está contraindicada em processos onde ocorre a inflamação da parede
abdominal e possível fibrose do peritônio, tais como cirurgias extensas, adesões peritoneais,
fibroses e metástases. Também não é indicada em cirurgias recentes, principalmente
gastrointestinais, pelo risco de deiscência dos pontos e extravasamento de líquido pelo local
da incisão. Outra contraindicação é nos casos de queimaduras extensas ou pacientes em
estado nutricional muito debilitado, pelo risco de perda protéica, já que uma das complicações
da DP é a ocorrência de hipoproteinemia (LUCENA; MANNHEIMER, 2005, COOPER;
LABATO, 2011).
2.4 CATETERES E SUA COLOCAÇÃO
O cateter ideal deve permitir fluxos interno e externo eficientes, ser
biocompatível, resistente à infecção do peritônio e túnel subcutâneo e impedir o
17
extravasamento de fluido no local de sua saída do peritônio (LUCENA; MANNHEIMER,
2005 e ROSS; LABATO, 2007).
Na DP aguda, onde a expectativa de uso é de até três dias, são utilizados cateteres
mais simples, constituídos de uma extremidade intraperitoneal (IP) com vários furos e outra
extremidade extraperitoneal (EP) sem furos. São desenvolvidos para ter o implante mais fácil,
com o paciente acordado, somente com uso de anestesia local. Sua colocação é percutânea,
com o uso de trocarte ou fio guia metálico. Empregando-se técnica asséptica, o cateter é
introduzido por uma incisão de 3-5 cm lateralmente ao umbigo, em direção à pelve. O trocarte
é introduzido vários centímetros no tecido subcutâneo, através dos músculos abdominais, ao
abdome. Em seguida o cateter é introduzido pelo trocarte até alcançar a cavidade abdominal.
É realizada uma sutura em bolsa para fixar o cateter à musculatura, e um esparadrapo tipo
borboleta para prendê-lo à pele do abdome lateral (ROSS; LABATO, 2007).
Na DP crônica existem vários modelos, todos eles objetivando promover uma
aderência maior e evitar a infecção e o extravasamento. A maioria dos modelos é fabricada
com cuffs de Dacron. O objetivo principal dos cuffs é promover o crescimento de fibroblastos
provocando uma aderência à musculatura abdominal e no subcutâneo, evitando assim a
infecção e o extravasamento. Para tanto é desejável um período de repouso de 10 a 14 dias
entre a colocação e o início da diálise. Isto é facilmente conseguido em pacientes humanos
onde já se programa a DP. Em pacientes veterinários comumente não se tem esse tempo.
Pode-se diminuir a incidência de extravasamento introduzindo nos primeiros três dias cerca
de um quarto a metade do volume ideal de dialisato (COOPER; LABATO, 2011).
A fig. 3 ilustra as combinações possíveis entre a parte intraperitoneal (IP) e
extraperitoneal (EP) do cateter, originando assim diversos modelos.
18
Figura 3 Possibilidades de combinações entre a parte IP e EP dos cateteres
(Fonte: ASH, 2008)
O modelo mais usado na medicina humana é o cateter de Tenckhoff. Trata-se de
um tubo de silicone, reto ou levemente encurvado, fenestrado na extremidade distal, com um
ou dois cuffs. Permite bom influxo, mas apresenta problemas no efluxo e devido a esta
desvantagem foram desenvolvidos os novos modelos. Ainda não foi determinado o grau de
melhora dos novos cateteres sobre os cateteres de Tenckhoff e estes continuam sendo o
padrão para novos desenhos (ASH; DAUGIRDAS, 2010).
Outro modelo que tem apresentado bons resultados é o cateter em formato de T ou
cateter canelado (Advantage Ash fluted T cateter). Este modelo apresenta volume de efluxo
mais uniforme e com menos falha, menos aderência ao omento, menos hérnia pericateter e
não apresenta extrusão do cuff profundo e superficial. Os pequenos orifícios nas junções
19
podem coagular e necessita atenção (ASH; DAUGIRDAS, 2010 e COOPER; LABATO,
2011).
O cateter Missouri ou swan-neck (“pescoço de cisne”) apresenta um arco em “V”
pré-formado com 120º entre os dois cuffs. Este recurso visa a diminuir a contaminação do
sistema (ASH; DAUGIRDAS, 2010 e COOPER; LABATO, 2011).
O cateter de Toronto-Western utiliza dois discos de silicone perpendiculares para
manter o omento e o intestino longe dos orifícios de saída. Possui também um cuff
modificado para assegurar o posicionamento da extremidade intraperitoneal (ASH;
DAUGIRDAS, 2010 e COOPER; LABATO, 2011). Sua implantação é um pouco mais difícil
que os modelos anteriores.
O ponto de introdução do cateter no abdome obedece à anatomia dos vasos
sanguíneos e dos músculos abdominais, conforme demonstrado na fig.4.
Figura 4 Principais vasos sanguíneos da região abdominal. Os quadrados em branco indicam a região mais
segura para fixação do cuff interno nos procedimentos de implantação cirúrgica. Os quadrados pretos indicam o
ponto mais adequado para a colocação às cegas ou por peritonioscopia.
(Fonte: ASH, 2008).
20
A implantação do cateter de DP crônico pode ser através de peritonioscopia ou
cirurgia, com animal sob anestesia ou sedação mais anestesia local. O cuff interno é colocado
no músculo reto do abdome, e o cuff mais externo é posicionado no túnel subcutâneo. É
aconselhável a omentectomia para se evitar a obstrução do fluxo. Para evitar a aderência de
fibrina é aplicado um flush de heparina (1000UI) com solução salina imediatamente após a
inserção (ASH; DAUGIRDAS, 2010).
Figura 5 Colocação do cateter de Tenckhoff, com os pontos de fixação do cuff interno na
parede abdominal e do cuff externo no subcutâneo.
(Fonte: ASH, 2008).
2.5 SOLUÇÕES DE DIALISATO
Na medicina humana estão disponíveis diversas formulações comerciais de
dialisatos, a maioria delas acondicionada em bolsas de 1,5, 2,0, 2,25, 2,5 ou 3,0L dependendo
do fabricante. Existe diferença entre as soluções no que diz respeito a eletrólitos, base
geradora de bicarbonato e agente osmótico (HEIMBURGER; BLAKE, 2010).
A base geradora de bicarbonato mais utilizada é o lactato (HEIMBURGER;
BLAKE, 2010). O efeito tampão do lactato é gerado através de seu metabolismo no fígado
pelo ciclo de Krebs ou via gliconeogênese, gerando como produto final o bicarbonato.
Entretanto, estudos mostram que o lactato combinado ao baixo pH das soluções de diálise é
tóxico para as células mesotelias (COOPER; LABATO, 2011).
21
As soluções de bicarbonato tem pH normal, portanto causam menos desconforto
na infusão do que as soluções a base de lactato. Teoricamente são mais biocompatíveis e
espera-se que melhorem a longevidade da membrana peritoneal. Entretanto ainda não há
evidências de bons resultados em longo prazo (HEIMBURGER; BLAKE, 2010). As soluções
de bicarbonato vêm acondicionadas em duas bolsas que são misturadas imediatamente antes
da infusão, para evitar a precipitação do cálcio e magnésio e a caramelização da glicose
devido ao pH alto (HEIMBURGER; BLAKE, 2010). Soluções a base de acetato foram
utilizadas inicialmente, mas foram abandonadas devido ao pH baixo causar muito desconforto
durante a infusão (COOPER; LABATO, 2011).
Soluções de dialisato comercialmente disponíveis contem Na, Mg, Ca e Cl em
concentrações variadas. Geralmente o K não está incluído, mas pode-se adicionar em
pacientes com hipocalemia (COOPER; LABATO, 2011).
Os agentes osmóticos podem ser agrupados em agentes de baixo peso molecular
ou alto peso molecular. Agentes com baixo peso molecular incluem glicose, aminoácidos (aa),
glicerol, sorbitol, xilitol e frutose. O agente osmótico mais utilizado é a glicose. Nas soluções
de dialisato está disponível em três concentrações: 1,5%, 2,5% e 4,25%. Para a DP onde o
objetivo é remover toxinas urêmicas utiliza-se a concentração de 1,5%. Concentrações mais
altas são reservadas para pacientes hiperidratados (COOPER; LABATO, 2011). A DP pode
ser realizada com as formulações comerciais ou adicionando dextrose a uma solução de
Ringer Lactato (RL). Adicionando 30 ml, 50 ml e 85 ml de glicose 50% a 1 litro de RL
obtêm-se respectivamente uma solução de 1,5%, 2,5% e 4,25% de glicose (ÁVILA et al.,
2008). As vantagens da utilização da glicose são: é segura, efetiva, barata e facilmente
disponível. Desvantagens de seu uso: distúrbios de hiperglicemia, hiperlipidemia,
hiperinsulinemia e obesidade. Além disso, a glicose é tóxica ao endotélio e está envolvida
com a neoangiogênese peritoneal, que causa a perda da ultrafiltração e do gradiente osmótico
(COOPER; LABATO, 2011).
Como alternativa ao uso da glicose tem-se investigado outros agentes osmóticos.
Solução de aminoácidos a 1,1% funciona osmoticamente similar à solução de glicose a 1,5%.
É uma alternativa interessante quando se quer melhorar o estado nutricional do paciente.
Entretanto esta solução só pode ser infundida uma vez ao dia, devido ao risco de aumentar o
nível de uréia e piorar a acidose (COOPER; LABATO, 2011).
22
A icodextrina é um agente osmótico de alto peso molecular que vem sendo
utilizada na medicina humana principalmente na sessão de diálise noturna ou diurna longa,
sobretudo em pacientes com falha na ultrafiltração (HEIMBURGER; BLAKE, 2010). Tratase de um polímero da glicose com peso molecular de 16.800, isosmolar (285 mOsm/kg) e que
produz ultrafiltração via efeito oncótico. A icodextrina produz a ultrafiltração através dos
grandes poros via efeito oncótico colóide, ao contrário das soluções de dextrose que
promovem a ultrafiltração através dos pequenos e microporos. A absorção da icodextrina
ocorre via sistema linfático, o que mantem seu efeito oncótico muito mais prolongado. Em
humanos tem-se relatado peritonite estéril devido a seu uso. Em veterinária não se tem
estudos sobre o uso da icodextrina (ROSS; LABATO, 2007).
2.6 TÉCNICA E PROCEDIMENTOS PARA INFUSÃO
O emprego de técnica asséptica é fundamental durante a infusão do dialisato, a
fim de minimizar o risco de peritonite, já que sua maior causa é a contaminação dos
conectores da bolsa. Cada conexão do equipo deve ser recoberto com gaze estéril umedecida
com povidona-iodo ou clorexidina (ROSS; LABATO, 2007).
A solução deve ser previamente aquecida a 38-39oC. O método de aquecimento
ideal é com bolsa de aquecimento. Aquecimento da solução em banho-maria deve ser evitado
devido ao risco de contaminação. O uso de micro-ondas pode superaquecer a solução e
induzir a caramelização e consequente inativação da glicose, além de ser potencialmente
sujeita a acidentes (ROSS; LABATO, 2007).
Nas primeiras 24 a 48 horas após a colocação do cateter o volume de dialisato
deve ser de ¼ a ½ do volume ideal calculado, a fim de avaliar o grau de distensão abdominal,
o efeito na função respiratória e o possível extravasamento do dialisato. Depois deste período
o dialisato é infundido num volume de 30 a 40 ml/kg, durante o período de 10 minutos. Em
seguida tem-se o período de permanência do dialisato na cavidade peritoneal durante 30 a 40
minutos e então é drenado por gravidade em uma bolsa coletora durante 20 a 30 minutos.
Espera-se a recuperação de 90 a 100% do dialisato (HEIMBURGER; BLAKE, 2010).
23
O uso de sistema de fluxo fechado em “Y” está associado a menor índice de
infecção comparado ao sistema de infusão reto (COOPER; LABATO, 2011). No sistema de
tubos em “Y” a bolsa de dialisato é colocada numa altura acima do paciente e um recipiente
de drenagem é colocado abaixo do paciente. As duas bolsas são conectados no sistema Y e ao
paciente. (fig. 7). Inicialmente é injetada uma pequena quantidade de solução diretamente da
bolsa nova para a bolsa de drenagem; em seguida a cavidade peritoneal é drenada; após a
drenagem faz-se a infusão do dialisato novo. Este procedimento reduz muito a ocorrência de
peritonite em pacientes humanos (ROSS; LABATO, 2007).
A DP na IRA tem por objetivo primário a estabilização hemodinâmica do paciente
e o equilíbrio ácido-base e de eletrólitos. A redução da azotemia é conseguida num período de
24 a 48 horas, buscando atingir valores de BUN menores de 60-100mg/dL (30-50mg/dL de
uréia) e creatinina de 4-6mg/ dL. Os ciclos de diálise são realizados de forma contínua até se
atingir os níveis desejados, quando então o paciente pode ser submetido a protocolo de DP
crônica, onde são realizados ciclos com duração de 3 a 6 horas, e quando restabelecida a
função renal passa-se a três ou quatro trocas por dia. (COOPER; LABATO, 2011).
Figura 6 Procedimentos de drenagem, infusão e permanência de dialisato no abdome.
(Fonte: COOPER; LABATO, 2011).
24
A diálise peritoneal ambulatorial contínua (DPAC) é o protocolo mais adotado em
pacientes humanos. Existem variantes em relação ao número de trocas e tempo de espera;
opções entre espera “cheia” e espera “seca” e a opção da troca ser realizada por máquina
(automatizada). A opção por determinada modalidade considera o estilo de vida, aspecto
econômico e acesso ao hospital e equipamentos. A DPAC em pacientes humanos tem a
vantagem de tratamento ambulatorial, buscando que o paciente retome suas atividades o mais
próximo do normal possível. Na medicina veterinária ainda não se tem a adesão de muitos
profissionais a esta modalidade e não se tem relatos de experiência (COOPER; LABATO,
2011).
2.7 MONITORAÇÃO
Os volumes de dialisato infundido e retirado do abdome durante cada permuta
devem ser anotados cuidadosamente. Nas primeiras trocas o volume retirado é menor que o
volume infundido. No decorrer da diálise o volume drenado deve se aproximar ou ultrapassar
o infundido (ROSS; LABATO, 2007).
O peso corpóreo e grau de hidratação devem ser verificados antes de cada sessão.
A frequência cardíaca e respiratória deve ser monitorada a cada 2 horas, sendo a pressão
arterial sistêmica medida a cada 6 a 8 horas e a pressão venosa central (PVC) a cada 4 a 6
horas. Volume urinário deve ser mensurado a cada 4 horas. A função renal, proteínas totais e
albumina, eletrólitos e parâmetros ácido-base devem ser determinados a cada 4-6 horas no
início, e assim que o paciente estabilizar, diariamente. Magnésio deve ser checado a cada três
dias (COOPER; LABATO, 2011).
2.8 COMPLICAÇÕES
As complicações na DP são frequentes, porém se detectadas precocemente são
possíveis de correção. As complicações mais comuns na DP incluem a oclusão do cateter,
25
extravasamento subcutâneo de dialisato, distúrbios eletrolíticos, hipoalbuminemia e peritonite
(CRISP et al, 1989 e LUCENA; MANNHEIMER, 2005).
A retenção do dialisato ocorre pela oclusão do cateter devido à aderência do
omento ao cateter e à deposição de fibrina. Como medida preventiva indica-se a
omentectomia e a infusão de heparina (250-1000UI/L) nas primeiras infusões. Quando da
suspeita de obstrução pode-se tentar um flush de solução salina com adição de 15000 UI de
uroquinase ou estreptoquinase (ROSS; LABATO, 2007).
O extravasamento de dialisato para o subcutâneo está associado ao início de
diálise imediatamente após a colocação do cateter. Em medicina humana isto pode ser evitado
respeitando o intervalo de 2 a 4 semanas antes da instituição da DP (COOPER; LABATO,
2011).
Hipoalbuminemia tem sido relatada com grande variação (CRISP et al, 1989).
Vários fatores contribuem: perda para o dialisato, baixa ingestão proteica devido à anorexia,
perdas gastrointestinal e renal e perdas devido a doenças intercorrentes. Uma sessão de DP
com aminoácidos uma vez ao dia contribui para a suplementação nutricional, além de se fazer
uso da nutrição parenteral e enteral. Distúrbios eletrolíticos são encontrados sendo importante
o monitoramento para sua correção (CRISP et al, 1989 e COOPER; LABATO, 2011).
Peritonite é diagnosticada quando o animal apresenta dois dos três seguintes
critérios: dialisato efluente turvo; mais que 100 células inflamatórias /ml ou cultura positiva; e
sinais clínicos de peritonite. O meio mais comum de contaminação é durante o procedimento
de troca do dialisato e, portanto a adoção de técnica asséptica e o uso do sistema em “Y”
diminuem o seu risco. A peritonite pode ainda ser de outra origem, como hematógena ou
intestinal. Para o tratamento deve-se fazer cultura e antibiograma, utilizando antibióticos via
sistêmica com ou sem antibióticos via intraperitoneal e a lavagem peritoneal (CRIPS et al,
1989 e COOPER; LABATO, 2011).
Efusão pleural e dispnéia são incomuns e normalmente são associados à
hiperidratação ou hérnia pleuroperitoneal. A monitoração cuidadosa do paciente pode evitar
este problema. No caso de hérnia pleuroperitoneal a DP está contraindicada e deve ser
suspensa. O desequilíbrio dialítico é raro na DP, sendo mais comum na HD, e se apresenta
como uma vantagem da DP sobre a HD (COOPER; LABATO, 2011).
26
Na medicina humana considerável parcela dos pacientes desenvolve a perda da
ultrafiltração devido a mudanças na membrana peritoneal. Tal condição não é relatada em
animais. Não se sabe ainda se ela não é encontrada em nossos pacientes, se a sobrevida curta
deles não permite o desenvolvimento da condição ou se, ao aprimorarmos a técnica e os
métodos de avaliação de eficácia da DP, começaremos a detectar esta condição em nossos
pacientes (COOPER; LABATO, 2011).
27
3 RELATO DE CASO
Em outubro de 2011, foi atendido na Clínica Veterinária Bontratto, em Jacareí,
estado de São Paulo um paciente canino, nome Laika, fêmea castrada, com seis anos de idade,
onde havia a indicação de DP e o proprietário autorizou o uso da técnica.
O paciente foi atendido dia 07/10/11 com quadro de prostração severa, anorexia,
vômitos, diarréia sanguinolenta e dor abdominal acentuada. Histórico de contato recente com
ratos. No exame clínico constatou-se febre (temperatura de 40,0ºC), mucosas congestas e
ictéricas, desidratação, dor abdominal intensa e bexiga vazia.
A suspeita clínica foi de
Leptospirose e coletou-se amostra de sangue para exames.
Os exames laboratoriais foram realizados na própria clínica através de
equipamentos automáticos, Coulter para hemograma e Bioplus para exames de bioquímica
(uréia, creatinina, fosfatase alcalina, alanina transferase-ALT e proteínas totais). Também
foram realizados no Tecnovet, em São José dos Campos-SP, o laboratório externo de apoio.
Imediatamente após a coleta de sangue instituiu-se fluidoterapia intravenosa com
Ringer Lactato, administração de analgésicos (cloridrato de tramadol e dipirona), antiemético
(metoclopramida), inibidor H2 (ranitidina) e antibiótico (ampicilina). O animal foi submetido
à sondagem uretral, com a drenagem de 50 ml de urina, e manteve-se com a sonda de espera
para acompanhar a diurese. Os exames iniciais apontaram para sérias lesões renal e hepática
conforme a tabela 1.
Tabela 1- Exames de hemograma, uréia, creatinina, fosfatase alcalina, alanina transferase (ALT) e proteínas
totais do animal Laika no dia 07/10/2011.
Hemácias:
6,82 milhões/mm3
Hematócrito:
46,5 %
Volume corpuscular médio: 68,2 u3
Plaquetas:
44 mil/mm3
Leucócitos:
12.100 células/mm3
Uréia:
109 mg/dL
Creatinina:
3,9 mg/dL
Fosfatase alcalina: 1766 U/L
Alanina transferase: 607 U/L
Proteínas totais: 7,0 g/dL
Fonte: Acervo do autor
28
O resultado dos exames foi entregue uma hora após a coleta. Adicionou-se ao
tratamento complexo B e ornitina. Após 6 horas de fluidoterapia o animal se apresentava em
anúria e foi iniciado tratamento com medicamento vasoativo renal (dopamina) em infusão
contínua.
Após 24 horas de tratamento com fluidoterapia e medicamento vasoativo renal, o
animal continuava em anúria e com sinais de acidose severa, com hiperventilação, taquipnéia,
além de vômitos não responsivos ao tratamento e muito desconforto. Os exames mostraram
um aumento importante nas concentrações sanguíneas de uréia e creatinina do dia 08/10/11,
numa amostra coletada imediatamente anterior ao início da DP, conforme a Tabela 2.
O proprietário autorizou a utilização da DP. A primeira tentativa foi a implantação
do cateter com o uso somente de anestesia local, aplicando-se 2 ml de lidocaína na pele e
subcutâneo, procurando aprofundar até a musculatura. Porém o animal apresentou dor logo no
início do procedimento e optou-se pela anestesia geral.Como medicação pré-anestésica foi
aplicado morfina via IM, seguido de indução anestésica com propofol IV, intubação e
manutenção da anestesia com isoflurano. O procedimento de implante do cateter foi realizado
no centro cirúgico, sendo respeitadas as normas de assepsia do veterinário e auxiliar, bem
como do paciente e campo cirúrgico. Com o animal em plano anestésico, assumindo a posição
ventro-dorsal, foi realizada a incisão na linha Alba, dois centímetros caudalmente à cicatriz
umbilical. A incisão foi praticada na pele, subcutâneo e musculatura abdominal, ganhando o
espaço intraperitoneal, com um corte longitudinal de um centímetro, o suficiente para a
introdução do cateter. Como cateter foi utilizado uma sonda uretral número 10, com a
confecção de vários furos em sua extensão intraperitoneal. Para o fechamento da musculatura
foi realizada sutura em bolsa com fio de nylon, fixando este ao cateter. Seguiu-se o
fechamento do subcutâneo com ponto simples e fechamento da pele com sutura em bolsa,
sendo que neste último se fez a continuidade do ponto no cateter e sutura do fio no mesmo
com ponto de bailarina, para a fixação mais eficaz do cateter à pele.
Após a fixação do cateter já foi iniciada a primeira infusão de dialisato. A solução
utilizada foi RL, na forma de bolsas disponíveis para fluidoterapia intravenosa. A solução foi
aquecida em forno micro-ondas até a temperatura de 38ºC. Após o aquecimento foi acrescido
à solução o agente osmótico, neste caso a glicose a 50%, na dose de 15 ml para um frasco de
RL de 500 ml, obtendo-se assim um dialisato de glicose a 1,5%.
29
O volume de dialisato infundido inicialmente foi de 40 ml/Kg. Foram realizadas
trocas de dialisato num intervalo de 3 a 4 horas durante um período de 24 horas. Na primeira
drenagem foi obtido um volume de 20 ml/Kg, ou seja, 50% do volume infundido, e nas
drenagens seguintes já se obteve um volume de 90 a 100% do volume infundido. Ao término
de 24 horas do início da DP o animal já apresentava um quadro clínico estável, com a
recuperação da diurese, redução da dor e apatia, ainda com vômitos e os exames ainda não
indicaram a redução da azotemia (tabela 2).
Tabela 2 - Exames sanguíneos de uréia, creatinina, fosfatase alcalina e alanina
transferase do animal Laika no período de 07/10/11 a 18/10/11.
Ureia (mg/dL)
Creatinina (mg/dL)
Fosfatase alcalina (U/L)
Alanina transferase (U/L)
07/10
08/10
109
3,9
1766
607
170
6,0
-
09/10
10/10
164
5,7
-
106
1,9
-
11/10
55
1236
261
13/10
18/10
30
663
256
29
845
251
Fonte:Acervo do autor
Após 24 horas de DP, devido à ocorrência de extravasamento de dialisato para o
subcutâneo, o intervalo de troca do dialisato foi espaçado para cada 6 horas, durante mais 24
horas. Após 48 horas do início da DP ocorreu a retenção de dialisato, foi realizado manobra
de “flushing” de solução fisiológica com heparina, porém sem sucesso, e foi necessário a
interrupção da DP.
O cateter não foi retirado imediatamente devido à necessidade de anestesiar o
animal, que ainda se apresentava em estado crítico. O cateter foi mantido e foi retirado cinco
dias depois, quando o animal já se apresentava melhor e pôde ser anestesiado. Para a anestesia
foi utilizado o mesmo protocolo do momento da colocação do cateter, com morfina de
medicação pré-anestésica, propofol para indução, intubação do animal e manutenção com
isoflurano. Utilizando-se técnica asséptica foi aberta a sutura da pele e subcutâneo, cortado o
fio que prendia o cateter à musculatura, retirado o cateter, reparado o espaço deixado na
musculatura com dois pontos simples e refeita a sutura do subcutâneo e pele com ponto
simples separado.
30
Como mostra a tabela 2, após 48 horas de DP houve decréscimo significativo das
concentrações sanguíneas de uréia e creatinina (dia 10/10/11). O animal já apresentava o
restabelecimento da função renal e diurese adequada. Nos dias seguintes o animal foi
monitorado com as medições de uréia, fosfatase alcalina e ALT, sendo que a creatinina não
foi mais utilizada devido à icterícia do soro, que se tornou muito acentuada e não fornecia
resultado confiável pelo método utilizado.
Apesar do restabelecimento da função renal o animal ainda apresentava anorexia,
vômitos (com menor frequência) e apatia. O quadro clínico foi atribuído à insuficiência
hepática que se intensificou conforme mostrado na tabela 2 pela mensuração da fosfatase
alcalina e ALT.
O animal continuou o tratamento de fluidoterapia com RL IV, ampicilina,
tramadol, metoclopramida, complexo B e ornitina. Devido ao jejum prolongado foi
acrescentado infusão IV de aminoácidos e glicose. Após 10 dias de internação o animal
começou a se alimentar voluntariamente e teve alta no 12º dia de internação.
31
4 DISCUSSÃO
A melhora nos sintomas clínicos da uremia obtida neste caso, bem como a
redução significativa dos níveis sanguíneos da uréia e creatinina, se assemelham a resultados
obtidos por Crisp et al. (1989) e Dorval; Boysen (2009). A IRA consequente à leptospirose é
um dos tratamentos com DP com resultados mais favoráveis segundo Crisp et al. (1989). Na
experiência do autor, onde o tratamento para estes casos era apenas com fluidoterapia e
medicamentos vasoativos, observava-se alto índice de mortalidade entre os animais anúricos
há mais de 24 horas, portanto credito parte do sucesso à utilização da DP.
A utilização de um cateter simples está previsto na literatura (ASH;
DAUGIRDAS, 2010) e por ter a colocação mais rápida, pôde ser aplicado mesmo num
paciente muito crítico. No presente relato o animal demonstrou dor na tentativa de
implantação apenas com o uso de anestésico local, no momento de acesso à musculatura, não
sendo possível a utilização da técnica descrita por Lucena; Mannheimer (2005). Foi
necessária a anestesia do animal, sendo bem tolerada apesar do estado crítico do paciente,
como utilizada por Crisp et al (1989).
A incisão abdominal ventral é a técnica descrita para pequenos animais
(LUCENA; MANNHEIMER, 2005, ROSS; LABATO, 2007 e COOPER; LABATO, 2011) e
tem sua origem na analogia com o modelo humano descrito por Ash (2008). Entretanto,
devido à posição quadrúpede, esta linha fica sujeita à ação da gravidade, facilitando o
extravasamento de dialisato. Na opinião do autor, a abordagem abdominal medial ou dorsomedial poderia evitar o extravasamento de dialisato.
Outra possível causa para o extravasamento do dialisato é a ausência de cuff no
cateter utilizado. Entretanto, o benefício do cuff no impedimento do extravasamento de
dialisato é obtido somente após a aderência e proliferação de fibroblastos, cerca de 10 a 14
dias após a inserção do cateter (ASH; DAUGIRDAS, 2008).
A diminuição do dialisato recuperado em cada drenagem, seguido da obstrução
total do cateter, também foi observado por Crisp et al (1989), no período de dois dias após a
implantação do cateter. Neste trabalho (CRISP et al, 1989) os animais não foram
32
omentectomizados. No presente relato, a razão para não se realizar a omentectomia foi a
preocupação com a demora do tempo anestésico. Outros autores citam a necessidade ou
vantagem em realizar a omentectomia (LUCENA; MANNHEIMER, 2005, ASH;
DAUGIRDAS, 2008 e COOPER; LABATO, 2011).
O intervalo de trocas de dialisato escolhido inicialmente foi de 4 horas. Este
intervalo foi determinado considerando-se a viabilidade de manejo na clínica, devido à
disponibilidade de pessoas treinadas para fazer o procedimento. Analisando a Fig. 2, descrita
por Blake; Daugirdas (2010), o tempo de 4 horas é o período onde é atingido a
isoconcentração de uréia e creatinina entre o dialisato e o plasma sanguíneo. Após 24 horas de
DP fez-se necessário o espaçamento para 6 horas devido ao extravasamento de dialisato.
33
5 CONCLUSÕES
A DP mostrou-se uma técnica efetiva para tratamento de doença renal aguda
consequente à leptospirose.
A DP é acessível tecnicamente, bastando um preparo mínimo da equipe e o
domínio da técnica. Não exige alto investimento em equipamentos e pode ser realizada em
qualquer clínica com centro cirúrgico básico.
A DP é uma técnica de diálise barata em relação a custos materiais. Em
contrapartida, a DP é uma técnica muito laboriosa, elevando os custos em honorários, o que
torna o custo final para o proprietário considerável, apesar de aquém dos custos da HD.
A aplicação da DP exige dedicação do veterinário e proprietário. Se não for
cumprida esta exigência o resultado pode ser frustrante.
O uso da DP na DRC é subestimado na medicina veterinária. Muitos pacientes
veterinários com DRC poderiam ser beneficiados por essa técnica. Não existem protocolos de
DPAC para animais, nem exames para avaliação de possíveis candidatos a seu uso. A DPAC
mostra-se viável, mas há necessidade de selecionar muito bem o caso: o animal deve ser dócil
e permitir fácil manejo; e o proprietário deve ter disponibilidade de tempo e habilidade para
praticar os cuidados de enfermagem.
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