UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
GRADUAÇÃO DE PSICOLOGIA
PSICOLOGIA CLÍNICA: RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO
NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL PÚBLICA
1. RESUMO
No campo de saúde mental, com o entendimento da Reforma Psiquiátrica e em
relação à substituição do modelo hospitalocêntrico para atenção psicossocial em CAPS
(Centro de Atenção Psicossocial) é que perpassa esse relatório final de Estágio
Supervisionado II. Demonstraremos a partir desse relatório, em uma relação teóricoprática, a construção de um fazer profissional da psicologia clínica vivenciado em
Saúde Pública. Portanto, o intuito é de mostrar como se deu a atuação de um estagiário
de psicologia na atenção e cuidado a usuários do serviço substitutivo. Relataremos o
entendimento do projeto terapêutico do CAPS, bem como construções teóricometodológicas, em cooperação de trocas junto à equipe técnica do serviço.
Palavras-chave: Saúde Mental; Reforma Psiquiátrica; atenção psicossocial.
PSICOLOGIA CLÍNICA: RELATÓRIO FINAL DE ESTÁGIO
NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL PÚBLICA
AUTOR: VASCO GOMES DE ALBUQUERQUE CÉSAR
ORIENTADOR: BENEDITO MEDRADO-DANTAS
BANCA: LUIS FELIPE RIOS
RUBENILDA MARIA ROSINHA BARBOSA
2. INTRODUÇÃO
Antes de iniciar a explanação do serviço do Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) e a sua importância para a saúde mental faremos uma breve contextualização
sobre o modelo que trouxe a reflexão e subsidiou a criação da atenção a usuários em
saúde mental no modelo substitutivo dos hospitais psiquiátricos. Dessa forma,
buscamos refletir, também, a atuação da psicologia no CAPS, ponderar uma
compreensão da identidade profissional do psicólogo e delinear limitações e formas de
abordagem nesse campo. Então, é no contexto da Reforma Psiquiátrica que faremos
reflexões acerca da Saúde Mental.
A saúde mental esteve imersa num patamar em que se primava pela
hospitalização e medicalização como forma de “tratamento” – um modelo
hospitalocêntrico. Existiria, portanto, uma queixa a respeito da carência de transparência
da prática psiquiátrica. Sendo assim, a medicina se aproximava do louco como quem se
defronta com um inimigo que, além de perigoso, por isso sempre vigiado de perto,
carrega em si mesmo uma “natureza”, “instintos”, “impulsos”, ou seja, uma
“animalidade” que precisa ser domada (BOTEGA, 1995).
O “tratamento”, nessa perspectiva, se realizava no espaço da Instituição Total –
“locais estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si
mesmas e que são também uma ameaça à comunidade, embora de maneira não
institucional (...)” (GOFFMAN, 1974, p. 16). Nesse sentido, a visão da Psiquiatria em
prol da violência avisada e atemorizante do “louco”, e, em concomitância, a da
sociedade contra ele; o que gerava a perseguição e o estigma de periculosidade
instituído ao “doente mental”.
As obras referentes ao tratamento manicomial no modelo hospitalocêntrico
revelam, ademais, o conflito entre a necessidade de controle do comportamento
aberrante que existia por parte da sociedade e a responsabilidade clínica que deve existir
para uma devida atenção em saúde mental. E isto, numa perspectiva em que os serviços
de saúde se pautavam no entendimento do “louco” enquanto “coisa”. Perfaz, portanto, o
entendimento de doença mental com a reificação do sujeito, tratando este sob a etiqueta
manicomial que traduz o modelo asilar.
Quando percebemos o contexto em que a psiquiatria, que segundo Foucault
(2002), se caracteriza pelo trabalho especializado de “higiene pública”, passou-se a
refletir numa contraproposta de formulação de saberes e práticas voltadas para a
implementação da desinstitucionalização. Esta, que no Brasil contou com o apoio de
Franco Basaglia numa visita em 1979, fomentou reflexões acerca da nossa
psiquiatrização, sobretudo quanto ao cuidado com o dito “doente mental”1.
Entra-se, então, na visão da Reforma Psiquiátrica, a partir de movimentos sociais
pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, como traz o relatório da “Conferência
Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas”, em a
crítica ao modelo hospitalocêntrico, alavancado pelo “Movimento dos Trabalhadores
em Saúde Mental (MTSM)” de 1978.
Visando mudar o modelo hospitalocêntrico para uma atenção psicossocial foram
equipamentos substitutivos, dentre eles os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial).
Com isso, atenção a saúde mental refletida a partir de serviços de base comunitária que
proporcionam atenção às pessoas que sofrem de transtorno mental em momento de
“crise” – com transtorno severo e persistente; bem como territorializados por área de
atuação. No caso de Pernambuco, a partir da Lei nº. 11.064, de 16 de maio de 1994 que
surgiu a disposição para substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos por uma
rede de atenção integral à saúde mental.
Existe, portanto, uma correspondência com entendimento e planejamento da
saúde no Recife, segundo o Plano Municipal de Saúde – Recife, 2006-2009, aprovado
na 7ª Conferência Municipal de Saúde, que diz:
“O território do Recife é subdivido, desde 1988, em 94 bairros,
mediante Decreto n°. 14.452/88. Para efeito de planejamento e
gestão, a Cidade também é dividida espacialmente em 6 Regiões
Político-Administrativa (RPA), sendo cada uma destas subdivididas
em três Microrregiões (MR), que agregam bairros com maiores
1
Entendendo a doença mental segundo a visão de SZASZ (1978:19) como um conceito impreciso
e excessivamente abrangente, “livremente adaptáveis a quaisquer usos que deles queiram fazer o
sacerdote ou o médico”.
semelhanças territoriais. Na saúde cada RPA corresponde a um
Distrito Sanitário” (RECIFE, 2005, p. 09).
O art. 1º da Legislação em saúde mental (1990-2004) subdivide as modalidades
em ordem crescente, e respectiva, dependendo do porte, complexidade e abrangência
populacional. Com isso, a divisão do serviço resulta no seguinte: CAPS I
(compreendendo municípios com população de 20.000 a 70.000 habitantes), CAPS II
(em municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes) e CAPS III (tendo no
município uma população acima de 200.000 habitantes). Além de haver uma relação
com o quantitativo de turnos de funcionamento: CAPS I com um turno; CAPS II com
dois turnos; e CAPS III funcionando em três turnos.
A atenção oferecida pelo CAPS diz respeito a suplantar o modelo asilar, e como
traz o Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental (2002, p. 36), numa
“implantação de uma política de desospitalização/substituição progressiva dos leitos em
hospitais psiquiátricos, com a concomitante construção de uma rede substitutiva” 2. O
que demonstra a importância desse serviço por se propor a uma atenção de qualidade de
forma integral, com ações de cuidar e acolher abarcando a inclusão social e efetivando
uma reforma humanizada e no entendimento do controle social.
O CAPS José Carlos Souto, localizado no Distrito Sanitário II, atua com uma
equipe composta por profissionais de diversas áreas: uma gerente geral (psicóloga), uma
gerente clínica (psicóloga), dois agentes administrativos, quatro psicólogas, duas
assistentes sociais, três psiquiatras, um terapeuta ocupacional, duas enfermeiras e duas
auxiliares de enfermagem. Conta ainda, no quadro geral, com a equipe de profissionais
das seguintes áreas: uma arte educadora, um educador físico, e três funcionários de
serviços gerais.
No sistema de funcionamento do CAPS, e no serviço público como um todo, o
psicólogo ainda se depara com uma formação restrita no que diz respeito a uma atuação
em rede, articulando no serviço sua prática com os outros profissionais e instituições. O
2
Isso concernente com os pressupostos da Reforma Psiquiátrica em consonância com a Lei
Federal n.º 10.216/01 e Portaria/GM n.º 799/00.
profissional de psicologia deve entrar no campo da saúde mental visando uma atuação
em rede, ratificando a interdisciplinaridade e interespacialidade na atenção psicossocial.
Sobre o trabalho em rede e a forma de realizar essa práxis de intervenção clínica,
o psicólogo vê em questão sua identidade. No entendimento de Turato (2003) a clínica
está imersa no campo da saúde, tendo seu foco na inquietação dos significados e das
intencionalidades dos sujeitos, o que é inseparável dos seus atos, comportamentos,
relações e
estruturas sociais. Entende-se então a importância do psicólogo na
compreensão do sujeito e nas suas construções humanas significativas.
Percebemos a importância de uma intervenção na atenção à rede pessoal
significativa do usuário, que pode abranger a família, a vizinhança, etc. (VIEIRA
FILHO & NÓBREGA, 2004). No entanto, parece haver uma preocupação com a
limitação da psicologia nessa área de atuação e, segundo Vieira Filho (1998), se faz
necessário refletir as abordagens utilizadas pelos psicólogos clínicos na saúde mental,
visto que utilizam técnicas que não foram criadas dentro do contexto do referido campo
e no processo de desinstitucionalização. Com isso reflete-se a importância de uma visão
psicossocial da clínica nos CAPS.
A psicologia entra no serviço de atenção no CAPS dentro do projeto do SUS de
uma política de saúde. O que parece faltar, por exemplo, é uma apropriação teóricoprática do sistema de saúde por parte dos cidadãos e dos próprios profissionais de saúde,
visto que é um sistema que depende do Controle Social – diretriz do projeto do SUS. O
que fundamenta a atuação conjunta com a rede social, valorizando, como no exemplo
supracitado, a co-responsabilização sujeito, profissional e sociedade.
A atuação do psicólogo perpassaria no entendimento de uma empreitada que
“necessita do encontro, da troca entre todos os investigadores e universitários que
trabalham nestes domínios disjuntos e se fecham como ostras quando solicitados”
(MORIN, 1983, p. 33). Diante disso argüimos o projeto do SUS que solicita uma equipe
multiprofissional, visto que compreendemos essa atenção em saúde numa ordem de
transdisciplinaridade rompendo com a fragmentação do conhecimento. Pensamos numa
clínica ampliada, que pressupõe atuação na demanda da evidência, o que ocorre no
campo de trabalho.
Para ir de encontro à defesa dos espaços de atuação que os profissionais de
saúde traçam, Spink (2003) traz a importância de uma atuação transdisciplinar, dando
abertura a uma troca de competência e práticas num espaço de cooperação visando a
promoção de saúde e refletindo a importância das diversas e singulares formas de
“saberes”.
É dentro de uma visão no “saber” como inexistente sem uma prática discursiva
que pensamos a prática profissional. Um espaço no qual o psicólogo discorre sobre o
sujeito em atenção abalizado numa postura do seu olhar, um foco de transformação e
contínua
construção
teórico-vivencial
nas
suas
investidas
de
desempenho.
(FOUCAULT, 1987).
Diante do contato entre as diversas profissões e com a alteridade como um todo
(sujeito, profissional e sociedade) na saúde mental é que percebemos a contínua
construção do saber e fazer na saúde (COSTA, 1989). É dentro do entendimento de uma
clínica do social que pensamos a práxis da psicologia na saúde mental, o que aproxima
as diversas áreas de conhecimento e saberes. Não acreditando numa verdade única e de
espaço restrito a uma ou outra área.
Na realidade do serviço público de saúde, o universo que delimita esse relatório
de estágio, é que tomaremos como norte para o entendimento da atenção em saúde
mental. Partiremos da vivência, relacionando teoria e prática, do estagiário num CAPS,
serviço substitutivo dos hospitais psiquiátricos, criado dentro do contexto da reforma
psiquiátrica. Este relatório diz respeito à experiência de estagio no serviço substitutivo
de saúde mental – CAPS – especificamente CAPSII.
A escolha do CAPS, por sua vez, se deu pela implicação de experienciar um
serviço de saúde mental, no sistema público, em relação a pressupostos ideológicos.
Esses se atrelam e dizem respeito ao entendimento da realidade da saúde como: uma
atenção integral, um direito de todos e com faces para peculiaridades territoriais de uma
comunidade. Isso, tendo em vista construir uma formação numa prática reformista em
saúde mental.
O objetivo do relatório é explicitar as atividades desenvolvidas no estágio como
um todo, para então discutir numa relação teoria e prática o aprendizado e a construção
do fazer psicológico. Para tanto, traçamos como objetivos específicos uma busca e
reflexão teórica que dão luz às atividades práticas, bem como realizar no final desse
relatório uma avaliação com análise critica do estágio.
3. Local do Estágio
•
Nome da instituição: CAPS - Centro de Atenção Psicossocial José Carlos
Souto
•
Endereço: Rua Marechal Deodoro, nº. 235, Torreão, Recife-PE, CEP:
52030-170, Telefone: (81) 3232-7717
Período de Estágio I:
•
Início: setembro de 2007
•
Término: janeiro de 2008
•
Carga horária parcial: 210
•
Carga horária semanal: 16 horas (manhã e tarde – segunda-feira, terça-feira,
quarta-feira e sexta-feira – 8 às 12h – sendo também no turno da tarde na
segunda (UFPE) e na sexta (CAPS) – 14 às 18h)
Período de Estágio II:
•
Início: janeiro de 2008
•
Término: junho de 2008
•
Carga horária parcial: 300
•
Carga horária semanal: 20 horas (manhã e tarde – de segunda a sexta – 8 às
12h – sendo também no turno da tarde na segunda (UFPE) e na sexta
(CAPS) – 14 às 18h)
4. ATIVIDADES DE ESTÁGIO
O CAPS3 José Carlos Souto, em seu Projeto Técnico (2002), tem o
entendimento da “atenção” a cada usuário baseado na inserção social, respeito à
individualidade e exercício da cidadania que valoriza o sujeito, além de ações junto aos
familiares. Dessa forma, tendo como intuito maior à qualidade de vida e inclusão social
para os usuários em saúde mental, entendendo sua singularidade e contando com os
subsídios técnicos e interventivos de uma equipe multiprofissional.
A equipe trabalha por meio de gerenciamento de casos, com projetos
terapêuticos individuais (PTI), além de proporcionar atividades diárias aos usuários.
Vale salientar a peculiaridade de que a pessoa para ser admitida à atenção nesse serviço
deve estar em “crise”, ou seja, com transtorno severo e persistente.
O cuidado dá ênfase ao acolhimento do usuário. Esse cuidado terá a intensidade,
em relação à modalidade de “tratamento”, dependendo do quadro clínico do sujeito, e
não do turno ou da quantidade de turnos que a pessoa passa no serviço – podendo ser:
não-intensivo (até três dias no mês); semi-intensivo (até doze dias no mês); e intensivo
(com um cuidado diário de modo aturado).
Para entrar nessa atenção psicossocial em rede, o serviço de psicologia busca um
contínuo ensaio de construção de novas práticas e atividade para a atenção em saúde
mental. Isso possibilita uma atuação que reflete de modo constante as formas
“recicladas” de opressão, repressão e exclusão social do usuário (VIEIRA FILHO &
NÓBREGA, 2004) dos serviços públicos de saúde.
A apresentação das atividades desenvolvidas no estágio será analisada partindo
do relato teórico-prático qualitativo. Dessa forma podemos fazer a descrição das
atividades e discussão delas dentro de uma reflexão teórico-metodológica. Além de
refletir a participação nas atividades durante o estágio que é variável e pode perpassar
por uma compreensão do funcionamento do serviço.
3
O referido CAPS corresponde à modalidade de CAPS II (em municípios com população entre
70.000 e 200.000 habitantes), com dois turnos de funcionamento – manhã (I) e tarde (II).
4.1. Relato teórico-prático qualitativo
Nessa seção dividiremos os relatos nas seguintes categorias: atividades de
reunião, supervisão e estudos; e as atividades realizadas junto aos usuários. Isso com o
intuito de dinamizar a análise dos diversos momentos de estágio, que caminhou da
prática para a teoria de modo dialógico.
4.1.1. Atividades de reunião, supervisão e estudo
No início do estágio foi elaborado o Plano de Estágio, com a realização de uma
revisão bibliográfica contando com apoio da supervisora, relatando, dentre outras
coisas, as atividades a serem desenvolvidas e os objetivos do estágio.
Em relação à supervisão de estágio, contamos com a distribuição e comentários
de textos com a proposta de leitura dos modelos de anamnese utilizados pela instituição.
Como iniciar, os itens básicos de uma anamnese (identificação; queixa principal;
histórico da doença atual; antecedentes sociais, familiares e pessoais; e hipótese
diagnóstica) e quais questões abordar no atendimento inicial. Além de correção e
discussão sobre o relatório com a supervisora de estágio, discutimos a fundamentação
teórica e as atividades realizadas com maior ênfase.
Os textos propostos pela supervisão de estágio perpassaram por leituras e
estudos que eram tidos como abordagem utilizada pela supervisora de estágio do CAPS.
Foi lido e discutido o texto “O que é ouvir”, de Mauro Martins Amatuzzi, que traz o
entendimento de um ouvir clínico do psicoterapeuta. Pude refletir junto às vivências de
acompanhamento do próprio serviço, numa aproximação da teoria com a prática,
legitimando o estágio.
A supervisora do CAPS indicou um texto que trata do ato de cuidar: “O cuidar e
o sonhar – Por uma outra visão da ação terapêutica e do ato educativo” (VOLICH,
2000) para os técnicos. Com apoio no texto refletimos a questão da relação terapêutica
como um ato de cuidar embasado numa interface de relação necessariamente de ordem
transferencial. Sendo assim, com a necessidade de investir na compreensão “do que
perpassa pela representação de doença”, e concernente ao sofrimento da pessoa, bem
como a atenção para o aparelho psíquico deste.
A. Reunião de orientação
Nas atividades de orientação na UFPE pudemos trocar vivências em relação ao
estágio, com angústias, dúvidas, frustrações, etc. Essas reuniões foram realizadas a
partir da discussão de relatórios semanais produzidos pelos estagiários, com o intuito de
refletir a prática de modo sistemático.
Numa
das
orientações
contamos
com
uma
mesa
redonda:
“A
interdisciplinaridade na prática psicológica”. Como princípios da interdisciplinaridade,
discutimos a valorização da ação compartilhada, pluralidade, saber como criação,
autonomia da diferença. Isso no entendimento de uma clínica ampliada, existindo um
contraponto com a evidência das demandas que ocorrem no campo de modo
interdisciplinar.
Na mesa redonda, com a participação de profissionais convidadas, pudemos
discutir a interdisciplinaridade como práxis, como saber-fazer, numa gestão
compartilhada, política não centralizada. O que nos leva a refletir numa visão arendtiana
de que gestão é política como atividade de experimentação, de criar o novo. Esse fazer
política na interdisciplinaridade como algo essencialmente de valorização do espaço
público que não depende de ser institucionalizado, algo inclusive ruim. Gestão nesse
espaço como organizador da prática do lugar, que seja uma “gestão compartilhada”.
Ainda na UFPE, pudemos observar a apresentação de seminários de estágio
realizados por discentes que estão concluindo o estágio, bem como sua formação
acadêmica. Um momento com o poder de proporcionar trocas de conhecimentos entre
os formandos de psicologia.
B. Reuniões de estagiários
Foi discutido e acordado com a supervisora um dia para a reunião com os
estagiários para leituras e discussões sobre temas que se mostrarem mais
preponderantes. Discutimos a temática da “Escuta”, proposto pela gerente clínica do
CAPS. Um espaço importante no qual pudemos relatar nossa visão da instituição e o
papel da escuta na atenção psicossocial do CAPS. Na discussão refletimos que a dita
“Escuta” pode perpassar por construção de paradigmas (como os modelos científicos da
Física Clássica, Termodinâmica e Física Quântica; isso em relação ao modo de ver o
homem e o mundo, bem como a relação entre eles). Refletimos a importância do
entendimento da relação dialógica no espaço do CAPS para uma devida atenção
psicossocial.
Numa outra reunião de estagiários discutimos a necessidade de um
acompanhamento mais aproximado por parte do órgão gestor do estágio (DGT –
Diretoria Geral de Gestão de Trabalho da Secretaria de Saúde do Recife), o que
percebemos como de fundamental importância para a construção do estágio. Dessa
forma, poderíamos articular com a concepção de entendimento da instituição, como
“normas” que estruturam um grupo vindo de uma política da gestão e enquanto
estabelecimento e organização.
As atividades de estágio refletidas através da complexidade da instituição CAPS
como um projeto político de assistência a usuários em saúde mental, para uma
intervenção na instituição, no usuário e na comunidade, posto que: “A essência do
dilema é saber onde intervir” (SPINK, 2003, p.135). Além de refletir a nossa atuação no
serviço, pensando está de uma forma mais direcionada, visando uma observação clínica
de fato. Um espaço de discussão que possibilita críticas na atuação, até o momento e o
repensar para o “daqui em diante”.
C. Reunião de equipe
As reuniões de equipe são realizadas entre os técnicos de assistência de cada
turno para discutir casos novos e andamentos para a atenção aos usuários do serviço.
Participamos das reuniões da equipe técnica da manhã que ocorre semanalmente nas
terças-feiras. Geralmente a reunião é conduzida pela gerente clínica do CAPS.
Numa das reuniões discutimos, como temática, um comunicado feito pelo CAPS
Espaço Vida. Nele havia uma série de reclames sobre a situação de trabalho nos CAPS.
O que teve como gênese uma tentativa de agressão de um usuário a uma técnica. No
CAPS José Carlos Souto, um usuário ameaçou com faca uma técnica (a faca estava
escondida na sua cintura), fato este que foi contornado pela mesma e o usuário acabou
largando a faca.
Os encaminhamentos centraram-se numa mobilização dos técnicos do serviço
para reverem seus direitos por meio de documentos com assinaturas e de pactuações
internas, especialmente neste CAPS, para fixarem o entendimento do que é “admissão”,
para que o serviço não abarrote usuários sem a devida atenção psicossocial, já que como
relembramos na reunião: “as admissões devem ser de pacientes em crises severas e
persistentes”, segundo o próprio projeto técnico do CAPS. As discussões foram ricas e
promoveram um espaço de reflexões sobre: o serviço, a atuação dos técnicos e a
tentativa de não corroborar com o sistema que não dá a estrutura necessária (recursos
matérias e humanos) para o serviço.
Numa outra reunião discutimos três novos casos que resultaram na admissão e
concomitante aceitação de técnicos de referência. No entanto, observamos e
confrontamos as admissões com a situação atual do serviço, onde cada técnico está
como referência de em média treze usuários.
Foi refletida a condução das admissões que devem ser feitas de modo mais
criterioso, mas dando a devida atenção a contingência das pessoas que chegam para
triagem, a equipe percebe a necessidade de acolhimento para uma atenção diferenciada
em alguns casos. Discutimos a real atenção terapêutica aos usuários; com reflexão na
postura que o CAPS pode estar assumindo de depositário de “doentes”. Pensou-se em
fechar a triagem, mas percebe-se a impossibilidade devido à demanda semanal.
D. Reunião técnica
A reunião técnica é um momento de encontro entre todos os técnicos da
assistência no CAPS, que ocorre nas sextas-feiras à tarde. Ela tem o propósito de relatar
as admissões, com a definição de TRs (Técnicos de Referência); discutir os casos dos
usuários que estão sendo acompanhados mais de perto no momento, por motivo de alta
ou ciclagem de crises, por exemplo; e trocar conhecimentos de forma interdisciplinar
para atenção psicossocial.
Numa reunião a supervisora do CAPS, que orienta os técnicos diante de casos
clínicos e de questões da gestão de modo compartilhado, fez observações de ordem
psicanalítica em dois casos que foram apresentados, como possível fonte de
entendimento da dinâmica dos usuários. Um dos casos contou com a preocupação
relacionada ao abandono do tratamento de um usuário que se identifica com um TR em
uma ordem transferencial.
Um caso discutido na reunião do dia 21 de setembro de 2007 foi a admissão de
“Sv”, morador de rua, homossexual, HIV positivo, já apresentando doenças definidoras
de AIDS (Sarcoma de Kaposi, por exemplo), que passa por um momento de
“desorganização mental” e tentativas de suicídio (com histórico de suicídio do pai). Foi
delimitado
como
projeto
terapêutico
o
acolhimento
e
preparação
para
o
encaminhamento para infectologia da rede de atenção à saúde.
Numa outra reunião (dia 28 de setembro de 2007) foi discutido, dentre outros
casos, o de “At” que está na residência terapêutica e com problemas no seu processo de
curatela. A família não o aceita, o que proporciona nele um comportamento ansioso. A
técnica se preocupa por ele estar fazendo uso de álcool, mas o consumo não é diário,
acontecendo uma vez no mês quando o usuário recebe seu benefício. É preciso que a
equipe reflita com “At” acerca do consumo da bebida, contando com um pensamento
autonômico, ciente das suas responsabilidades, e do limite.
Um outro caso discutido foi o de “Vq”, que durante um atendimento foi
percebido a relação desta com sua mãe numa dimensão de “colagem” abundante. A mãe
a trata como um bebê e parece haver um “sufocamento” da usuária que tenta se mostrar
com vontades e aspirações futuras, mas a mãe abafa qualquer tentativa de expressão e
discurso de melhora do sofrimento e replica seus sintomas de forma desenfreada. Isso,
numa dimensão de benefício secundário com o sofrimento psíquico da filha. A TR diz
que dará atenção a essa dinâmica familiar e consultará o pai para realizar alguma
intervenção junto à família.
O caso discutido no dia 19 de outubro de 2007 foi o de “Dj”. O usuário foi
internado hoje no Hospital Ulysses Pernambucano (HUP). A discussão se deu em cima
de justificativas dessa internação, visto que a técnica o internou “à contra gosto”; isso
devido à vulnerabilidade social, família não acolher, não adesão ao tratamento. Para
“não o perder”, foi internado, apesar de antes ter tentado um espaço na residência
terapêutica (RT), mas estava sem vaga no mês de outubro; além de uma sensibilização
da família, tentativa frustrada. Estamos assistindo “Dj” na sua transferência para a
residência que abriu vaga no mês de maio e percebemos a ansiedade do usuário para ter
alta e ir para RT.
Tem-se que existir um cuidado, atenção e reflexão constante para que não se
replique o modelo asilar da psiquiatria. Isso se deu na discussão da Reunião Técnica,
que reflete a carência de mais espaços de atenção psicossocial (mais CAPS); e de
técnicos (de todas as áreas). Cogita-se a possibilidade de manutenção de alguns
hospitais psiquiátricos, já que o “radicalismo” da Reforma não coaduna mais com o
contexto atual (assegurando o ideal dentro da contingência social da rede de atenção a
saúde mental).
A reunião técnica do dia 09 de novembro de 2007 contou com a participação da
supervisora do CAPS, e discutimos o caso de “Fb” que inicialmente era agressiva,
conteúdo persecutório, com afeto comprometido, vários internamentos e não adesão
medicamentosa. Suas referências psíquicas parecem ser da ordem de um conteúdo
narcísico destrutivo, principalmente em relação à auto-imagem. A supervisora traça a
possibilidade de interpretação do aparelho psíquico de “Fb”. E pela questão do
“desamparo primitivo”, que estrutura sua personalidade, deve-se trabalhar sua
autonomia, os limites e o corte. A repetição de sintomas só acontece com uma
vinculação afetiva.
E. Encontro de CAPS
Participamos do I Encontro de CAPS do Recife com a temática “O Cuidado
Cotidiano no CAPS: Desafios e contextos”, realizado nos dias 02, 03 e 04 de abril de
2008, no Centro de Convenções de Pernambuco. O encontro contou com a organização:
da Gerência de Atenção à Saúde Mental do Recife, da Gerência Estadual de Saúde
Mental e da Gerência de Redução de Danos.
A abertura do evento se deu com a palestra de Antonio Beneti (psiquiatra e
psicanalista de Belo Horizonte - MG) com o título: O Campo do Cuidado em Saúde
Mental. Houve a fomentação da discussão durante o encontro em relação as
possibilidades de atenção para usuários em saúde mental, contando com o
questionamento do público sobre a importância da participação dos usuários nesse
evento que dizia respeito a eles. O que não aconteceu. Sendo assim, pensou-se tornado
em um Encontro dos Profissionais de CAPS.
Além desse tema houve discussões com a temática da toxicomania. O evento
contou, também, com o espaço de “Escola de Supervisores”; minicursos de préencontros e mesas redondas.
4.1.2. Atividades junto aos usuários
Em relação aos momentos vivenciados junto aos usuários traremos trechos de
algumas das atividades realizadas durante o estágio. Essas entendidas no alcance de
uma terapêutica com a devida atenção psicossocial proposta pelo próprio serviço.
O CAPS é um campo de saúde mental no qual podemos construir uma “prática
reformista”, e, portanto, é redundante a importância desse serviço em saúde mental.
Trazemos agora as atividades que legitimam, ou podem legitimar, o propósito de
existência do CAPS: um serviço substitutivo do modelo hospitalocêntrico de tratamento
asilar aos usuários.
A. Hora do Conto
O grupo “Hora do Conto” tem o intuito de estimular os usuários a expressar seus
conflitos inconscientes, bem como projetar seus conteúdos simbólicos, partindo da
reflexão junto à narrativa de contos e fábulas.
Um momento de realização do grupo contou com a sugestão da usuária “Cn”
que trouxe um livro infantil sobre o sofrimento e expectativa de vida. O conto alternava
momentos de explicitação e exemplificação de sentimentos ruins (tristeza, inveja, etc.) e
bons (alegria, amor, compaixão, etc.). Refletimos o significado das vivências dos
usuários que traz sua realidade psíquica e revela seu mundo do inconsciente e da
realidade, em que: “O passado, de um modo ou de outro, está sempre contido no
presente” (HORNEY, 1966, p. 126).
No entendimento da produção de sentido refletimos a não ênfase ao que é dado
pela Cultura e sim numa autonomia criadora do usuário que participa ativamente do
grupo e refleti acerca dos sentimentos trazidos pelo conto (RINALDI, 1996). Alguns
salientavam a dificuldade de “sair” dos sentimentos ruins, bem como o convívio com
sentimentos como o da agressividade. “Asl” relata suas experiências agressivas e que
está na busca de meios para exercer seu “autocontrole” perante situações de conflito; diz
usar o isolamento como defesa para evitar os impulsos agressivos. Dessa forma, numa
inquietação produtiva mesmo na angústia como espaço de criação e realidade de
liberdade (KIERKEGAARD, 1968).
B. Grupo Operativo
Uma psicóloga do CAPS facilita o grupo uma vez por semana. Nele os usuários
se apresentam e sugerem temas para discussão e troca de experiência. Sendo essa troca
a tarefa proposta pelo grupo. Isso, visto que o grupo operativo tem como objetivo o
desenvolvimento e realização de uma tarefa (RIVIÈRE in ZIMERMAN, 1997). Poderia
ser um também um grupo terapêutico, comunitário, e informativo.
Num grupo realizado, os usuários propuseram três temas: relação entre técnicos
e usuários, preconceito e discutir as atividades do CAPS. Este último foi escolhido e
houve a participação dos usuários, delimitando sugestões e críticas. Refletimos junto
aos usuários acerca da importância das atividades, bem como sobre sua “função”, que
seria de reinserção social, promoção de saúde, meio para interações psicossociais, etc.
A facilitadora percebeu uma dificuldade de conduzir o grupo visto que os
usuários trouxeram poucas falas, ou em participações apenas pontuais, então a técnica
estimulou os usuários durante atividade para a participação no grupo. Discutimos a
percepção dos grupos como modo de interação entre os usuários e o contexto
momentâneo, para a construção e reconstrução das interações sociais (ZIMERMAN,
1997), visto que ultimamente os usuários estavam se queixando das atividades do
CAPS.
C. Grupo Família
O Grupo Família é realizado semanalmente com a participação dos familiares
dos usuários que são convidados a participar. Entendemos família como a rede pessoal
significativa do usuário (VIEIRA FILHO & NÓBREGA, 2004), que fazem parte da
representação de cuidado com o usuário, sem necessariamente ter laços consangüíneos.
O grupo tende a valorizar as trocas de experiências entre os familiares e vivência dos
vínculos afetivos, em relação à reflexão da dinâmica dos usuários no contexto de
atenção interdisciplinar.
Como exemplo, temos o grupo que contou com a presença de quatro familiares
que espontaneamente trouxeram o mote da preocupação com o uso e a importância dos
medicamentos; bem como o relacionamento do remédio com a melhora do usuário.
Isso, na representação dos familiares, em relação ao “bom sono” e alimentação. Ou o
contrário, a piora relacionada ao não dormir, comer demais, etc. Estar, ou não,
“comportado” parece ser o interesse dos familiares. Só assim poderiam se enquadrar nos
padrões sócio-morais e conviver com o coletivo.
A discussão do grupo se fundamenta no discurso sobre a importância da
medicação e sobre a importância do funcionamento da rede de cuidados aos usuários:
família, igreja, CAPS, etc. A questão levantada pelos familiares foi a “obrigação” de
participarem do grupo semanal. Dentro da discussão trouxeram a reflexão de ser um
direito, e não só um dever.
D. Passeio Terapêutico
O Passeio Terapêutico visa atividade fora da instituição, possibilitando o
convívio social. Ocorre uma pré-seleção dos usuários para verificar o humor, sintomas
psicóticos, inter-relação entre os usuários, etc. Isso para avaliar a “adequação” com o
intuito de levá-los a atividade.
No dia 24 de outubro de 2007 levamos nove usuários para o passeio realizado no
Hospital Veterinário da Universidade Federal Rural de Pernambuco para conhecer o
atendimento, os animais e o serviço prestado nesse espaço. Os usuários aprenderam a
produzir sabonete, viram os animais em cuidado, e conheceram as instalações do
hospital.
Houve uma recepção calorosa, os usuários se sentiram acolhidos. Duas
estagiárias do hospital apresentaram e deram apoio durante o passeio. Os funcionários
do hospital organizaram um lanche para os usuários. O passeio foi extenso, o que
deixou os usuários cansados e dispersos no final. Na avaliação todos falaram e
demonstraram muita gratidão pelo passeio e em relação às estagiárias, explicitando
momentos do passeio e o que mais agradou. Foi um passeio que caminhou pelo viés de
reabilitação e reinserção social.
Os usuários puderam interagir com várias pessoas que circulavam no hospital:
alunos da UFRPE, funcionários, médicos veterinários e professores; vivenciaram
realmente o acolhimento no sentido inter-relacional. Isso num entendimento de
superação das condições farmacológicas e instituídas, em prol de uma “integração
social” numa intervenção “extramuro” (SARACENO, 1999).
E. “Convers(a)cão”
Essa atividade individual foi compreendida durante o estágio, visto que não
existe essa denominação no plano de estágio, muito menos no projeto técnico do CAPS.
Percebemos a demanda de solicitação do usuário de espaços de fala, bem como a
implicação clínica em proporcionar uma atenção psicossocial.
Nas implicações psicoafetivas o campo é vivenciado com uma observação ativa,
valorizando as interações psicossociais numa reflexão sobre seu envolvimento clínico
(VIEIRA FILHO & TEIXEIRA, 2003). Com fundamentos que primam por sujeitos
psicológicos, contextualizados (momento histórico), supondo a importância dos
significados de conteúdos do ser, valores simbólicos, etc.
Atividade, portanto, iniciada por meio de conversas informais e não
burocratizadas pelo serviço (como o constante, e único, aconselhamento psicológico em
relação à importância da medicação no “tratamento da doença”). Sendo assim, um
momento de ação terapêutica para o usuário na relação dialógica.
Em relação à ação terapêutica evidenciada pelo termo convers(a)ção partimos da
compreensão de que: “Para serem efetivas, elas devem, entretanto, considerar as
especificidades do desenvolvimento de cada sujeito, bem como o significado individual
dos desafios de normas, de padrões, e dos sintomas que ele manifesta” (VOLICH, 2000,
p. 237). Dessa forma, a ação terapêutica é compreendida na nuance de um compartilhar
de experiências, mobilizando conhecimentos para a compreensão do sofrimento do
outro, e com o interesse pela totalidade (ou complexidade) e singularidade do usuário ao
mesmo tempo. Isso, no que diz respeito ao sofrimento psíquico e numa relação
dialógica co-construída junto ao usuário.
Nesse sentido, no dia 25 de setembro de 2007 experienciamos o primeiro contato
mais próximo junto aos usuários. Até por partir de um momento de conversa informal,
de modo a possibilitar uma ação terapêutica em relação ao sofrimento do usuário.
Usaremos o termo “(siu)” para indicar quando a fala discorrida se deu “segundo
informações do usuário”.
Uma convers(a)ção surgiu após “Cn” oferecer um livro para leitura, algo que
sempre antecede todo discurso da usuária, que está no serviço após uma crise que
ocorreu durante o vestibular de medicina que tenta há quatro anos. Ela fala de livros,
indica leituras e a partir daí tecemos uma conversa sobre autores, pensamentos
filosóficos, mitos, etc. Em momentos pontuais fala com agressividade de que não
“deixam estudar para o vestibular” (siu), mas logo volta à conversa de modo cordial e
trazendo soluções para sua melhora.
Traz a contingência de pressão que o pai e a mãe imprimem e resvala no seu
comportamento, mas demonstrando seus desejos e aspirações. A usuária possui um
senso crítico da sua dimensão de sofrimento psíquico, da agressividade, da crítica
abundante as pessoas e coisas, do seu pedantismo com as pessoas. Produz textos durante
a conversa contendo cálculos e considerações filosóficas. Salienta-se uma abertura para
a temática no que concerne a sexo e a sexualidade, refletindo sobre preconceitos
homossexuais, escolhas sexuais e repressões sofridas pelos pais.
Percebemos a demarcação social da sexualidade como composição reprimida,
estando vinculada às transformações por que passam as normas morais. Essas estão em
constantes transformações, e em cada uma delas existe um desenvolvimento e
tratamento diferente no que diz respeito à sexualidade, que entendemos como um dos
dispositivos de sujeição antiga do indivíduo; considerando, sempre, o contexto cultural
ao qual estão submetidos (COSTA, 1989).
Numa outra convers(a)ção “Rz” falou da sua relação com o pai. Disse com uma
mímica muito tristonha, numa expressão de angustia, que sentia-se rejeitado pelo pai,
pois ele dizia que “Rz” não seria seu filho. O subestimavam em relação a estudo e
trabalho, e, pensando essa dimensão em relação ao entendimento de vazio, a “Rz” era
atribuído um lugar de incapacidade, descrédito, banalização da existência. O vazio
numa dimensão de passividade, apatia e desconhecimento perante a sociedade em
relação a si próprio; e vê-se que “seu verdadeiro problema é não ter uma experiência
definida de seus próprios desejos e necessidades” (MAY, 1980, p. 14).
Acompanhamos a triagem de “Am” que foi estudante de medicina (cursando até
o oitavo período). Na primeira crise tentou realizar uma cirurgia no próprio olho,
dizendo que o “demônio queria tirar a pureza dos meus olhos” (siu). Durante a triagem
pediu para o observador-estagiário sair por ser impuro, ter cabelos grandes e ser
afeminado. Idéias delirantes religiosas; discurso místico-religioso; mussitação da fala;
etc. Na convers(a)ção com “Am”, que pede constante espaço de escuta, mas de modo
ambivalente pede para sair e o deixar em paz com os ensinamentos de Jesus, o que não
o permite a conversa, por existir uma impureza percebe-se um processo defensivo que
parece haver nas reações de evitar o confronto com o diferente.
Conversamos, em outro momento, sobre como deve ser o comportamento de um
varão, dentro do seu discurso místico. No meio da conversa fomos interrompidos por
uma usuária. “Am” se põe a frente dela e nós “protege contra os pecados dela” (siu), e,
satisfeito com a saída da usuária continua seu discurso.
Dentro do conceito que considera a transferência como “respostas emotivas do
paciente como instrumento útil em vez de, simplesmente, utilizar a sua ligação afetiva
ou a sua sugestionabilidade como um meio de influenciá-lo” (HORNEY, 1966, p. 127)
realizei uma convers(a)ção com “Am” sobre a Bíblia, uma porta, dentro do discurso
místico delirante, para o diálogo em relação às práticas discursivas. Ele trouxe a leitura
de 1 Coríntios 12 (versículo 16), que diz: “E se o ouvido diz: “Eu não sou olho; logo,
não pertenço ao corpo”, nem por isso deixa de fazer parte do corpo”. E, dentro do
versículo pudemos perceber o sentido que existe no que diz respeito à relação dialógica,
posto que nas primeiras conversas não conseguisse o ouvir e discutindo sobre as
dinâmicas contextuais do usuário foi aberto um espaço de práticas discursivas e
dialógicas.
F. Evolução
A evolução é um procedimento técnico-burocrático de registro diário da
participação dos usuários nas atividades desenvolvidas, sua psicodinâmica e
comportamento em relação à interação psicossocial de cada usuário. Uma atividade
importante, visto que podemos estudar o andamento do caso de cada usuário.
Realizamos as primeiras evoluções contando com ajuda da técnica, evidenciando
a motivação do usuário e seu movimento e relacionamento psicossocial a participar
ativamente dos grupos (passeio terapêutico, arte educação, grupo operativo, Horas do
Conto, atividade cultural, etc.), a inter-relação com os demais usuários e equipe. Bem
como a não participação das atividades.
Traçamos nas evoluções a participação da família do usuário; o efeito da
medicação; psicodinâmica dos usuários nas atividades grupais, evidenciando a
necessidade de reavaliação, construção e composição do PTI do usuário.
4.2. Estudo de Caso
Esse estudo de caso se dá sob a reflexão da abordagem teórico-metodológica.
Refletimos nesse momento, no entanto, o entendimento da clínica na psicologia no
espaço da atenção em saúde mental. A clínica, nesse sentido, foi compreendida “como
um modo de análise e de ação na sociedade, às voltas com as questões que atravessam
atualmente nossas civilizações” (LEVY, 2001, p.28). Isso, visto que a temática da
atenção a pacientes do serviço de saúde mental se legitima num contexto de manejo e
construções profissionais que não devem cessar, trazendo uma formação dialógica e
contínua do profissional.
As trocas dialógicas possibilitaram obter vivências ricas para o estágio,
abordando os temas mais variados trazidos pelos usuários. Nessa interação a atuação
tem o objetivo de estar próxima dos sujeitos “acompanhando-os em situações
informais ou formais e interrogando-os sobre os atos e seus significados por meio de
um constante diálogo” (OLIVEIRA, 2005, p. 87).
Outra consideração inicial para o estudo de caso se dá acerca da implicação do
estagiário no campo específico de saúde mental no âmbito público e do valor
atribuído a dérmarche clínica que pressupõe “um posicionamento global em relação
ao outro, mas também em relação ao saber e a sua elaboração” (LEVY, 2001, p. 19).
Dessa forma, a postura junto aos usuários proporcionou contrapontos e associações
com a própria prática psicossocial para usuários em sofrimento psíquico.
Tomamos como base de intervenção os núcleos de sentidos apresentados pelos
usuários nos diálogos que pudemos fazer nas intervenções e em psicoterapia
individual, como traremos no caso discutido a seguir. Partiremos, inicialmente, da
anamnese realizada na admissão da usuária no serviço, para caminhar junto aos
conceitos psicodinâmicos mais recorrentes e em seguida sua relação com a
instituição.
A. Anamnese:
ÆIdentificação:
Cássia (pseudônimo), 43 anos de idade, solteira, nível superior completo, exerce
a função de professora readaptada no Estado.
ÆHistórico da doença:
A usuária diz ser bipolar e estar com perdas motoras, sente-se agitada, hostil e
intolerante. Não quer fazer higiene pessoal e se alimentar. Em outros momentos chora
e tem desejo de se matar, encenou suicídio na frente do médico, numa consulta e teme
fazer uma loucura com a própria vida. Traz como causa dessa crise um problema no
trabalho e, concomitante afastamento, mas como desejo primordial de voltar ao
trabalho, por mais que lhe demande sofrimento, pois precisa do salário para se manter.
ÆAntecedentes hereditários:
Primo andarilho, não sabe seu paradeiro. Pai e irmão alcoolista, sendo este
último heteroagressivo. A mãe faleceu após choque anafilático numa gravidez. Cássia
é a segunda filha de uma prole de cinco filhos.
ÆHistórico pessoal:
Na infância morou com a avó e um irmão alcoolista que a agredia muito e aos 18
anos começou a tomar medicação psicotrópica por causa dessa relação com o irmão.
Ainda na infância foi abusada sexualmente em três momentos diferentes: por um
amigo do pai, por uma colega e por uma prima. Foi casada três vezes. O primeiro
marido, com o qual teve um filho, tentou vários suicídios até concretizar, cortando a
femural. O segundo marido sofria de delírio de ciúme e chegou a colocar pessoas para
vigiá-la nos lugares que freqüentava. Teve um terceiro marido numa relação
conturbada, além de um relacionamento homossexual por 7 anos. Atualmente reside
com o filho de 16 anos.
ÆHipótese diagnóstica:
Transtorno bipolar tipo II – depressão com hipomania.
Transtorno de personalidade borderline.
ÆProjeto Terapêutico Individual:
Investigação diagnóstica;
Adesão ao tratamento e à medicação;
Oficina terapêutica;
Psicoterapia.
ÆExame mental:
Sintomas hipomaníacos e depressivos. Hiperexpressiva, humor hipertímico. Sem
idéias delirantes ou alucinações. Curso do pensamento normal, coerente e claro.
B. Estudo psicodinâmico:
Cássia inicia a psicoterapia, no sentido do acordo/contrato das sessões, no
horário e dia da semana marcados (das 8:20 à 9:05, nas quintas-feiras), bem como
atividades de grupo demarcadas para o seu projeto terapêutico. Ela apresenta
hiperespressividade facial nos momentos de fala e durante as sessões se mostra
humorada, bem vestida e vaidosa.
Cássia reflete sobre a preocupação com o trabalho (do qual está de licença
médica) e o desejo de “(...) voltar bem para lá” (siu).
Nesse sentido, fala da
dificuldade em seguir regras, fato que a incomoda no trabalho e em suas vivências de
relacionamentos interpessoais, apresentando instabilidade constante de humor. Ao
mesmo tempo, nesses relacionamentos diz portar-se com submissão, o que relaciona
ao amor que sempre é vivido por ela com exacerbação de emoções.
Explicita, por um momento, recortes dos seus relacionamentos maritais,
referindo que sempre tinha uma atitude de dependência e tolerância excessiva com os
parceiros. Salienta, nesse momento seus quatro casamentos e cita a tolerância,
exemplificada com o cuidado e atenção ao primeiro marido, numa entrega unívoca. O
que resultava na carência de cuidados com o filho: “(...) meu filho ficava de lado, eu
não cuidei bem dele, e é até hoje” (siu).
Durante o diálogo foram identificados os mecanismos de defesa mais
característicos ao falar das suas relações, dos sentimentos elaborados e emoções
vivenciadas. Percebe-se a prevalência de sublimações ao fazer considerações teórico-
filosóficas e se voltar para produção artística nos momentos de maior envolvimento
afetivo com pessoas, coisas e o próprio emprego: “(...) aí eu estudo, trabalho...” (siu).
Além de projeções, identificações e repressões.
Em seu caso, o ego parece se proteger contra impulsos por meio do mecanismo
da repressão. Cássia cria uma representação substitutiva do material reprimido diante
da ação contra o destino que lhe é sempre referenciado nos seus sintomas: ansiedade,
sensações somatizadas no corpo e angústia perante os momentos de volta a funções
habituais. O ego, nesse sentido, encontra-se ameaçado e lesado pelos sintomas,
desviando a lembrança psíquica traumática original. O que estrutura uma reflexão
sobre uma representação da ordem da neurose.
Diante do mecanismo da repressão, o ego legitima seu papel e configura uma
construção da relação com o superego, “seguindo ordens” advindas, por exemplo, das
vivencias no mundo externo. O que, em Cássia, perpassa pelas vivências repetidas nas
tentativas de se relacionar com substitutos, deslocando seu investimento afetivo para o
externo: relação familiar, de trabalho e amorosos. O seu ego, movimentando-se na
repressão, parece ter assumido essas relações com mais vigor, para não se aproximar
das cobranças instintuais do id. Dessa forma, existe o conflito entre ego, com aparato
do superego nas suas vivências, e id, o que acaba por nos fazer compreender uma
estrutura tipicamente de ordem neurótica.
O seu discurso apresenta conteúdos de sexualidade de forma direta:
masturbação, relaxamento de esfíncter e momentos de relações sexuais. O que faz
com o intuito de chocar. Com isso, expressa, também, seus relacionamentos atuais
como sendo, conscientemente, de uma dimensão intensa e impulsiva.
Salienta que mantém atitudes de chantagem nas relações, mas sente-se ridícula,
quando precisa “prender e atrair um homem” (siu). Classifica as mulheres de “burras
ou aproveitadoras espertinhas” (siu), se intitulando na categoria das burras por sentirse dependente e obsessiva nas suas relações. Apresenta hipersensibilidade e
impulsividade emocional com sentimentos de rejeição, de abandono, de egoísmo dos
outros em relação a ela.
Idealiza pessoas recém conhecidas, desenvolvendo admiração e desencanto, se
apaixona e desapaixona facilmente. Cássia atribui esse movimento de ter “vários
casos” (siu) como aventuras em relação ao sentimento de solidão, ao qual dá grande
importância.
A solidão a faz buscar os parceiros de modo replicante, mas mesmo nos
casamentos sentia-se só, carregando o matrimônio, diz: “Preciso voltar a ser virgem”
(siu), no sentido de recomeçar algumas coisas da vida, dos relacionamentos e do
emprego. Seus relacionamentos instáveis e intensos demonstram-se recorrentes e
perpassam por crises relevantes e catexizadas de afetos na sua psicodinâmica. O medo
de abandono aparece como uma necessidade constante de nunca se sentir só, rejeitada
e/ou sem apoio. A partir disso, atribui suas investidas na vida noturna, de bebedeiras
constantes e de “relações perigosas com pessoas desconhecidas que aparecem na
noite” (siu).
Dessa forma, o reprimido é asujeitado às leis do inconsciente. As novas
investidas experienciais seguirão de modo automático na compulsão à repetição, em
que as relações acabam por se reduzir a quantitatividade. Isso numa perspectiva de
relação regressiva com o impulso reprimido, obedecendo à compulsão à repetição. O
que evita o contato com o material reprimido levando na direção de “dificuldades na
vida real” que geram problemas significativos (FREUD, 1926 [1925]).
A partir disso, discutimos no caso dois conceitos psicanalíticos: a compulsão à
repetição e a neurose de destino. Dessa forma, refletimos no estudo a dimensão desses
conceitos na dinâmica de Cássia.
Na reflexão dos seus relacionamentos de vínculos amorosos, a usuária traz em
todos eles a dimensão de intensidade e instabilidade de forma prototípica e repetitiva,
apresentando crises emocionais nas latências de tais relacionamentos. Dessa forma,
refletimos a repetição supracitada a partir do conceito de compulsão à repetição como:
“(...) fator autônomo, irredutível em última análise a uma dinâmica conflitual onde
não interviesse senão o funcionamento conjugado do princípio do prazer e do
princípio da realidade.” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1986, p.125).
Nesse sentido, ela parece reproduzir, de maneira mais ou menos disfarçada,
certos elementos de um conflito passado, com tendências repetitivas que são
vivenciadas de modo ambivalente – dolorosas e agradáveis ao mesmo tempo, mas
nem por isso está fora do princípio do prazer. Nesse caso, como traz Freud (1933
[1932]) a compulsão à repetição sobrepõe, surpreendentemente, o princípio do prazer.
Com isso, a repetição acontece ininterruptamente, tendo como resposta reações iguais
e emendadas e sente-se perseguida por um destino insensível, mas que de fato ela que
causa a si esse destino.
Sendo assim, discutimos a dimensão de neurose a partir do que é dado como
sentido vivencial de Cássia em relação à compulsão a repetição. O que é percebido
nas suas relações interpessoais, com a vida e em relação a ceara profissional, onde
tudo que acontecia era direcionado para uma aceitação do destino que a vida lhe deu,
como um fardo carregado sempre e incondicionalmente.
Cássia atribui o sentido de suas vivências repetitivas como algo da dimensão de
ser seu destino irredutível. O que na teoria freudiana, perpassa pelo entendimento da
repetição como uma resposta a defesa neurótica. E tal dinâmica psíquica sinaliza a
estrutura de Neurose de Destino que, segundo Laplanche & Pontalis (1986, p. 389):
“designa uma forma de existência caracterizada pelo retorno
periódico
de
encadeamentos
idênticos
de
acontecimentos,
geralmente infelizes, encadeamentos a que o indivíduo parece estar
submetido como a uma fatalidade exterior, quando, segundo a
psicanálise, convém procurar as suas causas no inconsciente, e
especificamente na compulsão à repetição”
O Destino, dentro da compreensão da metapsicologia freudiana, se coloca como
substituto de algo que é significativo para o sujeito, podendo ser um familiar, um ente
parental, a religião, etc. No caso de Cássia não podemos aprofundar sobre esse
representante, mas o que ela simboliza é que esse “algo” parece fazer com que ela não
se sinta amada e objeto de desejo de alguém, o desejo fundamental. Por isso, sente-se
ameaçada por tudo que a faça reprimir a experiência original, concatenando a repetição
e atribuindo sentido e culpa ao Destino (FREUD, 1930 [1929]).
Cássia salienta, também, o quanto a temática da solidão se repete, a mobiliza e a
faz pensar e repensar posturas para tomar na vida. Traz, com ar de espanto, o
movimento de se questionar sobre suas atitudes e comportamentos, “(...) pensando em
mudar, oia?” (siu). Disse perceber que suas relações são “unificadas”. O que, segundo
Cássia, quer dizer que se coloca como igual em todas as suas relações (com maridos,
amigos, filhos, familiares, diretor da escola, etc.), confundindo e não diferenciando
seus papéis (de mulher, de amiga, de mãe, de filha, funcionária, etc.).
Refletimos a grande quantidade de conteúdos, com temáticas variadas, e, com
isso, seria importante, nesse momento (oitava sessão) da psicoterapia, que
traçássemos algo para construir terapeuticamente no espaço de tempo que teríamos
(mais oito sessões) até a sua alta e o tempo de estágio meu a cumprir. Com isso,
construímos conjuntamente o mote que investiremos: a dificuldade de exercer e se
relacionar com suas funções laborativas. Nessa medida, Cássia traz os conteúdos:
volta ao trabalho, mudança de perspectivas laborativas, licença sem vencimentos e
aposentadoria.
Ao elaborar os conteúdos, ela fala de como agia com as pessoas no trabalho,
perpassando por comportamentos e posturas de hostilidade e impulsividade. Reflete,
após intervenção, em como agirá a partir de agora com as pessoas que “soltam piadas
sobre a doença e a readaptação” (siu), de modo que está tentando elaborar um
caminho para se relacionar com os colegas de trabalho, mas não faz menção do modo.
A licença médica de Cássia acabou no início da semana e ela sente medo de
voltar ao trabalho. Além disso, traz a sensação dos “braços pesados”, da “cabeça
ácida” e do “corpo cansado”. Sente angústia e fica ansiosa com o movimento de
pensar: “(...) ir, ou, não ir” (siu). Como defesa, racionaliza, articulando motivos de
que não seria bom voltar ao trabalho; o filho está preocupado com ela, projetando seus
afetos. Reflete sobre a importância de estar em tratamento no CAPS, mas cuidamos
para que seja um aderir ao tratamento em co-participação, e que não perpasse pela
aderência, dependência do serviço (VIEIRA FILHO, 1998).
Existem três coisas que, segundo Cássia, são impedimentos de ir ao trabalho: o
trauma com uma diretora escolar que a humilhou perante os colegas de trabalho, o que
teria desencadeado sua angústia de ir ao trabalho; a acomodação pessoal, o fato de ser
confortável estar em casa; e “o não querer mesmo”, por não gostar das atribuições
exercidas. Fatores que a fazem repetir saídas e entradas em locações de trabalho
diferentes, dizendo que os gestores da escola são invejosos e maus por colocarem faltas
nos dias que ela falta. Após intervenção reflete que realmente é a função deles fazer
isso, mas que se sente mal.
Discutimos a importância da ininterrupção do tratamento e o planejamento da
continuidade da psicoterapia como fundamental para sua dinâmica de saúde mental.
Refletimos sobre o espaço de fala e elaboração psíquica feitos na ação terapêutica que
deve ser continuada para depois da sua saída do CAPS. O que é reforçado por Cássia no
sentido de ter percebido o espaço da psicoterapia como essencial. Dessa forma, espaço
de construção/reconstrução psíquica.
Refletimos, no caso de Cássia, os conceitos de compulsão a repetição e neurose
de destino. O que, numa dialética freudiana, se dá em relação à psicodinâmica e ao
comportamento do sujeito perante suas relações com o mundo. Com isso, trazemos a
partir do caso explicitado os referidos conceitos que coadunam com o conceito de
Compulsão de Destino.
A Compulsão de Destino, nesse sentido, pôde ser abordada a partir, mais
especificamente, de situações que: “a) Elas são repetidas apesar do seu caráter
desagradável” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1986, p. 390), o que ela refere como sendo
o tormento da sua vida, sem saída alguma. Dessa forma, suas experiências de frustração
com a realidade do tratamento, por exemplo, se configuram como uma perseguição que
“b) Desenrolam-se segundo uma encenação imutável, constituindo uma seqüência de
acontecimentos que pode exigir um longo desenvolvimento temporal” (LAPLANCHE;
PONTALIS, 1986, p. 390) de várias investidas. O que se completa com a característica
marcadamente de ser passiva diante das dificuldades de convívio com as pessoas, dessa
forma: “c) Surgem como uma fatalidade externa de que o indivíduo se sente vítima, e
parece que com razão” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1986, p. 390).
No andamento do caso as experiências repetidas por Cássia estiveram presentes
em todos os atendimentos e se mostraram, como traz Mezan (1987, p. 256), como um
“repetir”, na acepção de "(...) procurar ganhar o controle da situação, e também preparar
o indivíduo para resistir melhor a traumas futuros, dotando-o na capacidade de
desenvolver angústia e desta forma estar prevenido quando eles ocorrerem”.
Sendo assim, questionamos: A repetição serve a que propósito no caso de
Cássia? As repetições seriam tentativas de restaurar o controle das vivências,
mediante o desenvolvimento da angústia e do sofrimento psíquico, cuja ausência
acaba por configurar a estrutura de neurose de destino. Isso em um jogo de espelhos
onde a usuária freqüentemente refrata e busca meios de referir o sofrimento a
vivências singularmente significantes.
C. Reflexão do caso no contexto da instituição CAPS:
A reabilitação psicossocial fundamenta o entendimento da “integração social”,
mas num sentido de dar embasamento a uma intervenção “extramuro” (SARACENO,
1999, p. 31), que supere as condições farmacológicas e instituídas, como um todo, de
atenção mais aberta às variáveis de cada contexto singular do sujeito, de modo que o
psicólogo no CAPS necessita saber qual a ordem da demanda do atendimento.
No caso de Cássia percebemos a importância da relação dialógica com o sujeito,
respeitando, numa visão clínica, o contexto da relação terapêutica, até para trabalhar
em cima de um possível diagnóstico situacional. Deve desviar-se e vigiar-se, destarte,
para não ecoar o modelo hospitalocêntrico de tratamento, a partir de uma fazer
coletivo com o usuário. Dessa forma a atenção psicossocial perpassaria pelo
desenvolvimento de “(...) práticas pautadas em relações que potencializem a
subjetividade, a auto-estima, a autonomia e a cidadania e busquem superar a relação
de tutela e as possibilidades de reprodução de institucionalização e/ou cronificação”
(SUS, 2002, p. 24).
Cássia traz com importância substancial o seu labor na escola pública e
passamos a direcionar as sessões para essa temática, visto o tempo curto de
psicoterapia, e, dentro do que ela fomenta em relação ao sentir-se mal com isso e do
que é possível ser abarcado com a nossa proposta terapêutica construída em conjunto.
Em relação a essa temática percebemos que a sociedade é partícipe e que:
“O nosso ‘mal-estar’ na Cultura é, hoje, o da diluição das certezas,
da dispersão dos valores, da decadência de uma ‘determinada
ordem’. A discussão dessas questões em um terreno onde se cruzam
diferentes campos do saber ganha, portanto, uma importância
renovada” (RINALDI, 1996, p. 13).
Dessa forma, é no CAPS que podemos refletir numa visão de vários saberes –
interdisciplinaridade – construindo a atenção psicossocial mais pertinente para a
demanda da usuária. Com isso, discutimos a importância do entendimento de
Saraceno acerca da reabilitação, partindo de conceitos como: deficiência e
desabilitação. A deficiência seria um protótipo de resposta dada pela sociedade em
relação aos usuários “desabilitados” – com uma “limitação ou perda de capacidades
operativas produzidas por hipofunções” (SARACENO, 1999, p. 34). Então, trazemos
a reflexão da reabilitação psicossocial para as atividades laborativas como propostas
de intervenções que dêem atenção às condições de convívio do sujeito com sua
singularidade e com a sociedade.
Encontramos, no entanto, a preocupação com um entendimento de trabalho que
perpasse por um conjunto de funções de produção de sentido econômico, social e
psicológico. Salientamos que nessa volta ao trabalho, Cássia pode entrar em contato
com o de potencial produtora de ações com responsabilidade sobre seus atos e a
capacidade laborativa, por sua vez, como vértice da reabilitação.
Em relação à psicoterapia para a proposta de reabilitação devemos caminhar no
sentido de compreender a relação do usuário com a “doença”, com o “sistema de cura” e
com o serviço de saúde. Um espaço para reflexão/construção dos conceitos
estereotipados para elaboração dos usuários, para a produção de sentidos numa vertente
mais psicodinâmica e no que diz respeito ao entendimento de atenção psicossocial na
comunidade.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dos objetivos do estágio, explicitados no Plano de Estágio, discutimos
sobre o objetivo de proporcionar uma atenção a usuários em saúde mental no serviço
do CAPS. Isso, tendo como nuances o conhecimento e compreensão do projeto
terapêutico dos usuários, bem como uma atuação junto a rede social significativa do
mesmo, no entendimento da integralidade e dando importância a reabilitação
psicossocial.
Pudemos “peregrinar” pelo estágio em uma busca da compreensão dos processos
da instituição CAPS, como medida substitutiva do modelo hospitalocêntrico.
Discutimos normas que estruturam o serviço, como os princípios do SUS e a real
utilização prática dos mesmos. Além disso, trazemos a reflexão de que no serviço não
podemos primar por uma “psiquiatria burocrática”. Portanto, não costurando etiquetas
e fechando entendimentos exclusivistas de que a esquizofrenia é um panchreston
(explica-tudo), ao mesmo tempo em que os psicotrópicos de amplo espectro são o
“cura-tudo”.
A psicoterapia foi compreendida como espaço de ação terapêutica numa clínica
que preza por uma atenção ao conteúdo psíquico do sujeito. Dessa forma, diante do
entendimento de Lacan (1989, p.61): “Um diagnóstico de borderline não diz nada do
paciente, salvo que ele cria dificuldade, mas diz muito do praticante (...)”, é que
refletimos no sentido de que, por mais que exista um diagnóstico fechado, a relação da
prática profissional com a estruturação psíquica do sujeito se dá na relação
transferencial e em busca da verbalização catártica do sujeito. Com isso, ciente do
comportamento de instabilidade, alternância de amor e ódio, idealização e
desapontamento, bem como a sedução e impulsividade, é que deve ser dado
encaminhamento a esse processo terapêutico.
Avaliação do estágio
Percebemos a importância da constante reflexão de uma práxis reformista, com
vias para, por exemplo, a construção projeto do terapêutico de cada usuário. O projeto
não deve, portanto, ficar em segundo plano quando se é cobrado do profissional uma
gama de procedimentos burocráticos (como o preenchimento diário de prontuários
para descrever a “evolução” de cada usuário).
O projeto terapêutico dos usuários foi explorado no estágio, em relação à
pesquisa de prontuários no sentido de direcionar a atenção aos usuários. O PTI
(Projeto Terapêutico Individual) de cada usuário é discutido pelos profissionais nas
reuniões técnicas e de equipe. Sentimos a falta da discussão do projeto em conjunto
com os usuários e a própria gestão do serviço dos acordos delimitados entre os
técnicos – para uma efetiva ação interdisciplinar, e não meramente multiprofissional.
A atuação junto à rede social significativa do usuário acontece na dinâmica do
serviço e legitima um cuidado do usuário dentro dos pressupostos do modelo
substitutivo em saúde mental. Isso, no que diz respeito ao empenho da equipe para
uma atenção a família do usuário, entrada no território para integrar a comunidade no
serviço, bem como atividades na dimensão da inserção social.
Nos moldes de uma reforma radical, não vemos as práticas empenhadas pelo
CAPS, senão um modo peculiar e regional, especificamente na cidade do Recife, de
atenção em saúde mental. Refletimos, dessa forma, a prática e proposta do Sistema
Único de Saúde (SUS) para o público, mas com necessidades primordiais do exercício
de um saber-fazer visando uma transformação institucional. Propomos uma
reformulação do Projeto Técnico do CAPS pela equipe.
O estágio se fez como bom espaço de aprendizado de trabalho com grupos,
atividades de triagem, etc. Além da construção de uma compreensão de contato com
os usuários numa dinâmica de conversa, a qual chamamos de “convers(a)ção”.
Refletimos tal atividade em um cunho terapêutico no serviço.
Construímos o entendimento de que a “polimorfia” em uma prática reformista
perpassa pelo modo de operar, em que “[...] basta a compreensão da complexidade e
da diversidade e alguns subsídios para que essa busca possa ser concretizada”
(SPINK, 2003, p. 140). Portanto, o questionar constante das opressões sociais, bem
como a parcela de responsabilidade do sujeito, perfaz o nosso entendimento de uma
atenção psicossocial. Valoriza-se, nessa perspectiva, uma atenção integradora (biopsico-social).
Salientamos a frustração na participação dos seminários de estágio. Isso, por
percebermos um descaso com a graduação; a não participação dos docentes de modo
expressivo; o atraso no início; e, conseqüentemente o pouco tempo para discussão das
apresentações dos colegas concluintes.
Auto-avaliação
O estágio no CAPS é um universo no qual pude vivenciar uma prática que tem a
capacidade de proporcionar momentos de construção das minhas inquietações
ideológicas. Existe, dessa forma, uma ansiedade da minha parte para uma práxis
reformista, o que não é de fácil exercício, devido às barreiras institucionais e
estruturais.
Durante o curso busquei estudos, estágios, projetos e monografia dentro do
campo da saúde mental, e, especificamente, pública. Existe, portanto, uma implicação
teórico-prática, da minha parte, para atuar nesse campo do saber da Psicologia
Clínica, até então pouco explorado. Dentro dessa perspectiva, saliento a escassez de
produção de conhecimento da academia no referido campo de saúde mental. Isso,
sobretudo, no que diz respeito ao incentivo e o proporcionar de espaços de estudo e
pesquisa que auxiliem o estudante na sua escolha de direcionamento profissional. O
que só ocorre a partir da busca pessoal, e com muitas barreiras, que o discente
enfrenta.
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