1 A origem relacional da triangulação: condições de possibilidade desde a psicanálise, a filosofia da mente e outros discursos do mental. Carla Mantilla A ideia da mente como um teatro interior, transparente para o sujeito, inacessível para as outras mentes e alheia ao mundo externo, está representada historicamente pela tradição internalista de René Descartes. Frente a esta, o externalismo do mental sustenta que a mente surge no contato com outras mentes, sendo uma propriedade das relações humanas que nos permitem sermos intérpretes e atribuir estados mentais como crenças e desejos às ações próprias e alheias, com o fim de fazê-las compreensíveis (Cavell, 2006) 1. Esta capacidade interpretativa requer a presença de três componentes básicos: um eu, um tu e um mundo objetivo para ambos. De tal forma, o conhecimento de si mesmo, o relacionamento intersubjetivo e a vinculação com o mundo, são capacidades irredutíveis e de aparição simultânea na ontogênese. Tais requisitos, falam de uma triangulação que é logicamente possível e observavelmente evidente entre sujeitos falantes de uma linguagem, capazes de comunicar-se intencionalmente, distinguindo-se entre si e reconhecendo-se como parte de um mundo compartilhado sobre o qual se geraram distintas representações, baixo à luz da qual estas podem compartilhar-se, contrastar-se ou comprovar-se (Davidson, 2001) 2 . A triangulação implica a aquisição do que em primatologia e ciência cognitiva se conhece como “teoria da mente”, ou mentalização na proposta psicanalítica de Fonagy (2007)3. Esta conquista do desenvolvimento que se cristaliza entre os três e quatro anos de idade, implica o uso de explicações psicológicas baseadas na atribuição de estados mentais como os desejos e as crenças para interpretar as ações de um agente, é dizer, a atribuição de representações sobre a realidade objetiva, que ademais poderiam ser falsas. Agora bem, que tem que ver isto com a psicanálise? Acreditamos que na discussão interdisciplinaria sobre os processos mentais, a psicanálise tem a capacidade de mostrar evidencia a favor da existência de formas pré-verbais ou pré-reflexivas de triangulação, é dizer, do conhecimento objetivo, subjetivo e intersubjetivo. Assim mesmo, a triangulação é 1 Cavell, M. (2006). Becoming a subject. Nueva York: Oxford University Press Davidson, D. (2001). Subjetivo, intersubjetivo, objetivo. Madrid: Cáterdra. 3 Fonagy, P. (2008). The mentalization approach to social development. Em F. Bursch (Ed.). Mentalization. Theoretical considerations, clinical findings and research implications. East Sussex: The Analytic Press, p. 3-56. 2 2 capaz de oferecer um marco conceitual sobre o cenário vincular, nos quais estes três domínios da experiência, se desenvolvem e articulam tanto a nível pré-reflexivo, como a nível reflexivo. Localizaremos no vínculo do apego a origem da triangulação, e proporemos que um marco prévio de sua aparição na ontogênese está na capacidade de compartilhar atenção e nos complexos processos da “interafetividade” e referencia social que acompanham esse momento ao redor do primeiro ano de vida. Evolução, infância e apego. Se sustentarmos, junto com a psicologia evolucionista, que o desenho da mente é produto da evolução e olharmos mais além do passado histórico para tomar em conta o passado do qual é produto nossa espécie, poderíamos propor que determinados cenários foram selecionados para que na vida infantil se exponha o programa genético que dá lugar a nossas capacidades para o relacionamento e a cognição social. Sabemos que o cérebro humano nasce imaturo e que o seu desenvolvimento final e maduração se produzirão extrauterinamente. Para isso, é necessária a presença de um entorno que assegure as possibilidades de sobrevivência e o contato próximo com outro ser humano que lhe proporcione estímulo e calma. Esse ambiente que poderíamos entender como uma prolongação da vida intrauterina é o vínculo de apego, cenário no qual o cuidador é para a criança uma base segura da qual afastarse para explorar o mundo, e á qual voltar para restabelecer o equilíbrio interno e explorar protegidamente o mundo mental. Dito mundo mental é o estímulo básico para o desenvolvimento das próprias capacidades mentais, como a regulação de emoções e seus correlatos cerebrais (Schore, 2000)4. Siegal (1999)5, em relação ao vínculo do apego, comenta que o adulto cuidador é um modelo de regulação e um equalizador emocional para o bebê: amplifica suas emoções positivas aumentando o bem-estar, e minimiza as negativas reduzindo a angustia. As características da mente adulta do cuidador são um elemento de estudo central ao ser ele o referente mais básico para a aprendizagem do mundo social e emocional do infante. Recordemos que a criança nasce com um pacote de emoções básico, que se dispara 4 Schore, D. (2000). Attachment and the regulation of the human brain. Em Attachment & Human Development. Vol 2 No 1 April 2000, 23-47. 5 Siegel, D. (1999). La mente en desarrollo. Cómo interactúan las relaciones y el cerebro para moldear nuestro ser. Bilbao: Desclée de Brouwer. 3 automaticamente dentro de um número fixo de situações predeterminadas. Ao nascer, o bebê conta com um repertorio limitado sobre como sentir-se e como atuar perante determinadas situações. No entanto, sabemos que a vida social é diversa e complexa, e o êxito de um individuo está em poder navegar nessa diversidade. A infância prolongada é um centro de treinamento para poder lidar com dita variabilidade e aprender protegidamente acerca da mente dos demais e da própria. Para isso, não só é necessário um cuidador sensível aos sinais do bebê, que capte suas necessidades em um tempo prudencial. Também é igual de importante, que o cuidador seja capaz de transformar seu estado emocional automático, para oferecer-lhe formas distintas e variadas de sentir e agir. Dali que paulatinamente o bebê possa ir desenvolvendo maior conhecimento e consciência de seus estados emocionais, e ir construindo-se com um sentido básico de agencia (Gegerly 2007)6. Pankseep (2007)7, experto na evolução das emoções, sustenta que as habilidades sócio-emocionais mais precoces se desatam ante a vivencia de duas emoções básicas: a ansiedade e a alegria social. A primeira é detectada ante a separação e dispara condutas como o choro e a agitação motora, a segunda se detecta ante a reunião e provoca a resposta do riso e a disposição ao jogo. Estas experiências recreadas uma e outra vez no contexto vincular do apego, contribuirão ao afiançamento da relação com os pais e logo à construção prazerosa de vínculos amicais. Posteriormente, redundarão nas habilidades sócio-sexuais básicas para o desdobramento das estratégias reprodutivas. Como sinalam Flynn e Ward (2005) 8 ao longo do desenvolvimento infantil, se contará com um tempo suficiente para que a criança complexe suas capacidades cognitivas sociais a medida que se exponha a variedade de relações interpessoais, fora da dualidade. Isto favorecerá o desenvolvimento de outros sistemas cerebrais que lhe permitam experimentar e desenvolver estratégias sociais cada vez mais sofisticadas que redundem em sua adaptação às exigências do meio. As habilidades para a cooperação e a competência necessárias para o desenvolvimento ótimo no mundo social, são forjadas ao longo de milhões de anos, 6 Gegerly, G. (2008). The development of the unreflective self. Em F. Bursch (Ed.) Mentalization. Theoretical considerations, clinical findings and research implications. East Sussex: The Analytic Press, p. 57-102. 7 Panksepp (2007 ) The neuroevolutionary and neuroaffective psychobiology of the prosocial brain. Em R. Dunbar y T. Barrett (Eds). The oxford handbook of evolutionary psychology. Oxford: Oxfor university Press, p. 165-172. 8 Flynn, M. y Ward, C. (2005). Ontogeny and evolution of the social child. Em B. Ellis y D. Bjorklund (eds). Origins of the social mind. Evolutionary psychology and child development. London: The Guilford Press, p. 19-44. 4 requerem de um tempo e condições particulares para seres desenvolvidas e ensaiadas na historia individual. Deixamos exposto que a teoria psicanalítica do apego gerou um marco conceitual sólido, que ajuda a entender as particularidades do ambiente vincular que o bebê humano espera encontrar para o desdobramento do programa genético associado com as capacidades mentais que o converterão em um individuo capaz de interessar-se e desfrutar do intercambio psicológico com outros de sua espécie. La triangulação pré-reflexiva Assim como a aparição da triangulação Davidsoniana correlaciona na ontogênese com a consolidação da teoria da mente na criança de três ou quatro anos, o marco do desenvolvimento que articula a proposta de una triangulação pré-reflexiva é a capacidade de atenção conjunta cuja conquista se dá ao redor do primeiro aniversário (Eilan, 2005)9. Graças aos cada vez mais sofisticados estudos sobre a infância préverbal, a imagem do bebê humano tem mudado enormemente, e de ser um receptor passivo de estímulos, tem passado a ser visto como um agente que busca ativamente experiências e participa de situações sociais desde que nasce (Stern, 1985)10. Para isso, conta com capacidades muito específicas como a leitura de mentes e a motivação para compartilhar estados psicológicos com outros indivíduos, estas possibilitam o participar em atividades colaborativas e ter uma intencionalidade compartilhada, e requerem do vínculo social para o seu desenvolvimento. A atenção conjunta observável em crianças de 12 meses supõe a existência de períodos de tempo sustentados, onde o infante e o adulto compartilham um foco atencional de forma deliberada e manifesta (Eilan, 2005). Agora bem, se uma das condições da triangulação de Davidson é a noção de um mundo objetivo, se deverá revisar até que ponto a evidencia respalda a existência de uma vinculação diferenciada com o mundo físico e com os objetos sociais na etapa pré-verbal. Por exemplo, se sustenta que os bebês vêm pré-programados para fazer representações perceptuais do mundo físico às quais não são de ordem conceitual, nascem com uma sorte de princípios físicos 9 Eilan, N. (2005). Joint attention, communication and mind. Em 2005 N. Eilan, C. Hoert., T. Mc Cormack & J. Roessler (Eds) Joint attention: communication and other minds Oxford: oxford University Press, p. 1-33. 10 Stern, D. (1985). El mundo interpersonal del infante. Una perspectiva desde el psicoanálisis y la psicología evolutiva. Buenos Aires: Paidós. 5 básicos inatos e implícitos. Stern (1985) propõe que as propriedades perceptuais dos infantes são altamente sofisticadas e se organizam de forma amodal, isso lhes permite poder gerar representações integradas dos objetos sem necessariamente ter repetidos contatos com os mesmos. Em um nível social, os infantes são capazes de distinguir objetos inanimados de objetos animados desde muito cedo, e manifestam formas de interação sociais sumamente ricas com seus cuidadores como, por exemplo, as chamadas proto-conversações (Trevarthan, 1980 em Stern 1985) ou as capacidades imitativas (Meltzoff, 1981 em Stern 1985). Assim mesmo, a interafetividade descrita por Stern (1985) como o veiculo privilegiado que facilita que o infante utilize o afeto da mãe para “saber” como sentir-se ante uma determinada situação no mundo, seria a evidencia de sua capacidade para compartilhar conteúdos mentais e metas com um adulto. A referência social ou busca explícita de uma mensagem afetiva no rosto da mãe por parte da criança, implicaria usar intencionalmente ao adulto para regular o próprio estado afetivo, sobre tudo, frente a situações e novos entornos. Em um nível implícito, pré-reflexivo, a criança estaria interagindo de forma complexa e diferenciada entre ambos os domínios da experiência. Nesse marco, poderia a percepção ser então o estado mental básico que garantisse que o infante seja capaz de diferenciar entre ele, o adulto e os objetos do mundo? É a nível implícito que se estaria dando a capacidade de compartilhar conteúdos da experiência e a mutualidade? A atenção compartilhada seria o evento que articula visivelmente o mundo objetivo, subjetivo e intersubjetivo em um momento prévio á triangulação Davidsoniana? Propomos que esta triangulação pré-reflexiva baseada em estados mentais mais primitivos que a crença, tais como a percepção e a atenção, e na atribuição de metas ou planos de ação como protótipo das futuras intenções reflexivas, requer de um marco relacional que responda de forma sintonizada e contingente à curiosidade do infante e o ajude a fortalecer sua motivação por compartilhar estados psicológicos e explorar o mundo. Propomos que dito marco relacional está representado pelo vínculo de apego, cenário seguro e sensível para a exploração do intercambio significativo com os demais e com o mundo compartilhado.