UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS – CEJURPS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA –
PPCJ
CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA – CMCJ
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO
UNIVERSIDADE DO MINHO – UMINHO
ESCOLA DE DIREITO
PÓS-GRADUAÇÕES
MESTRADO EM DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
A EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO E O TRATAMENTO ADEQUADO DAS AÇÕES
REPETITIVAS NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS: perspectiva brasileira e
europeia
ANTONIO AUGUSTO BAGGIO E UBALDO
Itajaí-SC/Braga-PT
Junho/2015
A EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO E O TRATAMENTO ADEQUADO DAS AÇÕES
REPETITIVAS NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS: perspectiva brasileira e
europeia
Dissertação submetida à Universidade do Vale
do Itajaí – UNIVALI e à Universidade do Minho
- UMINHO, para o Curso de Mestrado
Acadêmico em Ciência Jurídica e em Direito da
União Europeia.
Trabalho realizado sob a orientação do
Professor Doutor Serafim Pedro Madeira
Froufe, da UMINHO, e sob a orientação do
Professor Doutor Zenildo Bodnar, da
UNIVALI.
Itajaí-SC/Braga-PT
Junho/2015
DECLARAÇÃO
Nome: Antonio Augusto Baggio e Ubaldo
Endereço electrónico: [email protected] Telefone: + 55 (48) 9600 1000
Número do Bilhete de Identidade: 1.708.505-5
Título dissertação: A efetividade da jurisdição e o tratamento adequado das
ações repetitivas nos juizados especiais cíveis: perspectiva brasileira e
europeia
Orientador UNIVALI: Professor Doutor Zenildo Bodnar
Orientador UMINHO: Professor Doutor Serafim Pedro Madeira Froufe
Ano de conclusão: 2015.
Designação do Mestrado: Ciência Jurídica (Univali) e Direito da União Europeia
(Uminho)
Nos exemplares das teses de doutoramento ou de mestrado ou de outros trabalhos
entregues para prestação de provas públicas nas universidades ou outros
estabelecimentos de ensino, e dos quais é obrigatoriamente enviado um exemplar
para depósito legal na Biblioteca Nacional e, pelo menos outro para a biblioteca da
universidade respectiva, deve constar uma das seguintes declarações:
1. É AUTORIZADA A REPRODUÇÃO INTEGRAL DESTA TESE/TRABALHO
APENAS PARA EFEITOS DE INVESTIGAÇÃO, MEDIANTE DECLARAÇÃO
ESCRITA DO INTERESSADO, QUE A TAL SE COMPROMETE;
2. É AUTORIZADA A REPRODUÇÃO PARCIAL DESTA TESE/TRABALHO,
APENAS PARA EFEITOS DE INVESTIGAÇÃO, MEDIANTE DECLARAÇÃO
ESCRITA DO INTERESSADO, QUE A TAL SE COMPROMETE;
3. DE ACORDO COM A LEGISLAÇÃO EM VIGOR, NÃO É PERMITIDA A
REPRODUÇÃO DE QUALQUER PARTE DESTA TESE/TRABALHO
Universidade do Minho, junho de 2015.
Assinatura:_______________________________________________
4
DECLARAÇÃO
Nome: Antonio Augusto Baggio e Ubaldo
Endereço electrónico: [email protected] Telefone: + 55 (48) 9600 1000
Número do Bilhete de Identidade: 1.708.505-5
Título dissertação: A efetividade da jurisdição e o tratamento adequado das
ações repetitivas de pequeno montante. Perspectiva brasileira e europeia
Orientador UNIVALI: Professor Doutor Zenildo Bodnar
Orientador UMINHO: Professor Doutor Serafim Pedro Madeira Froufe
Ano de conclusão: 2015.
Designação do Mestrado: Ciência Jurídica (Univali) e Direito da União Europeia
(Uminho)
Declaro que concedo à Universidade do Minho e aos seus agentes uma licença nãoexclusiva para arquivar e tornar acessível, nomeadamente através do seu repositório
institucional, nas condições abaixo indicadas, a minha tese ou dissertação, no todo
ou em parte, em suporte digital.
Declaro que autorizo a Universidade do Minho a arquivar mais de uma cópia da tese
ou dissertação e a, sem alterar o seu conteúdo, converter a tese ou dissertação
entregue, para qualquer formato de ficheiro, meio ou suporte, para efeitos de
preservação e acesso.
Retenho todos os direitos de autor relativos à tese ou dissertação, e o direito de a
usar em trabalhos futuros (como artigos ou livros).
Concordo que a minha tese ou dissertação seja colocada no repositório da
Universidade do Minho com o seguinte estatuto (assinale um):
1. Disponibilização imediata do conjunto do trabalho para acesso mundial;
2. Disponibilização do conjunto do trabalho para acesso exclusivo na Universidade
do Minho durante o período de 1 (um) ano, sendo que após o tempo assinalado
autorizo o acesso mundial.
3. Disponibilização do conjunto do trabalho para acesso exclusivo na Universidade
do Minho.
Universidade do Minho, junho de 2015.
Assinatura:_______________________________________________
5
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí
e a Universidade do Minho a Coordenação do Curso de Mestrado em Ciência
Jurídica e a Coordenação do Curso de Mestrado em Direito da União Europeia, a
Banca Examinadora e os Orientadores de toda e qualquer responsabilidade acerca
do mesmo.
Itajaí/Braga, junho de 2015.
ANTONIO AUGUSTO BAGGIO E UBALDO
Mestrando
6
DEDICATÓRIA
A Helena, Andrea, Edson e Vâni.
7
A EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO E O TRATAMENTO ADEQUADO DAS AÇÕES
REPETITIVAS NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS: perspectiva brasileira e
europeia
RESUMO
As ações repetitivas fundadas em interesses individuais homogêneos se avolumam
nos juizados especiais cíveis estaduais brasileiros, afetando a sua efetividade e o
direito fundamental de amplo acesso à justiça que ensejaram sua criação. O modelo
processual da Lei nº 9.099/95 é inadequado ao processamento de ações de massa.
O direito pressuposto correspondente ao direito posto, no tocante aos juizados
especiais cíveis estaduais, continua existindo, porém o desvirtuamento da norma,
com a recepção e o processamento das ações de massa no sistema especial, gera
risco à sua efetividade e, portanto, à sua própria legitimidade. É possível evitar o
risco de perda de legitimidade dos juizados especiais cíveis, pelo desvirtuamento da
sua lei de regência, com alterações no direito posto, excluindo-se expressamente de
sua competência as demandas baseadas em interesses individuais homogêneos. A
efetividade das agências reguladoras é fator preponderante para a efetividade dos
juizados especiais cíveis. O processo europeu para ações de pequena monta,
sobretudo no seu desapego à oralidade, contém elementos que serviriam ao
tratamento das ações repetitivas nos juizados especiais cíveis estaduais brasileiros.
Palavras-chave: Ações repetitivas. Ações de massa. Juizados Especiais Cíveis.
Acesso à Justiça. Efetividade.
8
THE EFFECTIVENESS OF JURISDICTION AND THE PROPER TREATMENT OF
REPETITIVE ACTIONS IN CIVIL SMALL CLAIMS COURTS: Brazilian and
European perspective
ABSTRACT
The repetitive actions based on homogeneous individual interests have been
accumulating over small claims courts, affecting their effectiveness and the
fundamental right of access to justice that gave rise to its creation. The procedural
model of Law No. 9.099/95 is inappropriate to process mass actions. The
presupposed right corresponding to the law, as regards the small claims courts,
continues to exist, but the distortion of the law, with the reception and processing of
mass actions in the special system generates risk to its effectiveness and therefore
to its own legitimacy. You can avoid the risk of loss of legitimacy of the small claims
courts, by distortion of its corresponding law, with little change in it, expressly
excluding its jurisdiction to demands based on homogeneous individual interests.
The effectiveness of government agencies is a major factor in the effectiveness of
the Small Claims Courts . The European process for small claims, especially in his
detachment to orality, contains elements that serve the handling of repetitive actions
in Brazilian states civil Small Claims Courts.
Keywords: Repetitive actions. Mass Actions. Civil Small Claims Courts. Access to
Justice. Effectiveness.
9
A vida do direito não tem sido a lógica; tem sido a
experiência. As necessidades sentidas em cada época,
a moral e as teorias políticas dominantes, as intuições
da política pública expressas ou inconscientes, mesmo
os preconceitos que os juízes partilham com os seus
concidadãos têm contado mais do que o silogismo na
determinação das leis pelas quais os homens devem
ser regidos. O direito incorpora a história do
desenvolvimento de uma nação ao longo de muitos
séculos e não pode ser tratado como se contivesse
apenas os axiomas e as regras de um livro de
matemática. Para sabermos o que ele é temos de saber
o que ele foi e o que ele tem tendência a ser no futuro.
(Oliver Wendell Holmes Jr., in”The Common Law”)
10
ROL DE CATEGORIAS
Categorias estratégicas à compreensão do presente trabalho, com seus respectivos
conceitos operacionais nele empregados:
Ações repetitivas: conjunto numeroso de ações individuais com a mesma parte
demandada ou, se mais de uma, com similaridade de atividade econômica, e
versando sobre o mesmo objeto, cuja natureza e conteúdo permitissem, em tese,
seu julgamento conjunto em uma única ação coletiva.
Acesso à justiça: direito fundamental a uma ordem jurídica justa, a qual deve
garantir o acesso materialmente igualitário de todos ao sistema jurídico e à obtenção
de soluções adequadas, efetivas e em prazo razoável aos conflitos.
Agências reguladoras: órgãos fiscalizadores da prestação de serviços públicos
praticada pela iniciativa privada.
Conselho Nacional de Justiça (CNJ): instituição pública que visa aperfeiçoar o
sistema judiciário brasileiro, principalmente no que diz respeito ao controle e à
transparência administrativas e processuais.
Efetividade: concretização, no plano real, dos efeitos desejados ou finalidades de
algo.
Incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR): instrumento a ser
utilizado para solucionar demandas que versando sobre questões jurídicas comuns,
de maneira que essas questões sejam decididas de modo uniforme.1
Juizados especiais cíveis: órgãos da Justiça Ordinária brasileira competentes para
a conciliação, processo, julgamento e execução das causas cíveis de menor
complexidade.
1
RIBEIRO, Rodrigo Pereira Martins. O futuro do Processo Civil no Brasil: Uma análise crítica ao
projeto do novo CPC.
11
Processo europeu para ações de pequeno montante: processo e procedimentos
previstos no Regulamento (CE) nº 861/2007.
Questões unicamente de direito: questões em que a controvérsia é apenas de
natureza jurídica, sem controvérsia fática.
Razoável duração do processo: lapso temporal suficiente para adequada
resolução da controvérsia, sem prejuízo do próprio direito objeto do litígio e evitando
a perda superveniente da utilidade do provimento final para os envolvidos,
observados os trâmites inerentes ao devido processo legal (due process of law) e
considerando as peculiaridades específicas de cada relação jurídico-processual2.
2
ZANON JR, Orlando Luiz. Razoável duração do processo: a celeridade como fator de qualidade
na prestação da tutela
jurisdicional. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/12483/razoavelduracao-do-processo/1>. Acesso em: 27 jun. 2015.
12
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Números do 1º Juizado Especial Cível da Capital-SC em 2013 ............................................... 48
Tabela 2: Números do 1º Juizado Especial Cível da Capital-SC em 2014 ............................................... 48
13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 15
CAPÍTULO 1 ........................................................................................................................................... 18
1
ACESSO À JUSTIÇA E RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO ........................................................ 18
1.1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................................................... 18
1.2
O DIREITO FUNDAMENTAL DE ACESSO À JUSTIÇA ................................................................ 19
1.3
A NECESSÁRIA DISTINÇÃO ENTRE ACESSO À JUSTIÇA E ACESSO AO JUDICIÁRIO ................. 25
1.4
A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO ................................................................................. 31
1.5
A INDISSOCIABILIDADE ENTRE O ACESSO À JUSTIÇA E A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO
PROCESSO: EFETIVIDADE .................................................................................................................. 37
1.6
SÍNTESE DO EXPOSTO ............................................................................................................ 38
CAPÍTULO 2 ........................................................................................................................................... 40
2
AS AÇÕES REPETITIVAS E O RISCO DE PERDA DA LEGITIMIDADE DOS JUIZADOS ESPECIAIS
CÍVEIS.....................................................................................................................................................40
2.1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................................................... 40
2.2
OS PRINCÍPIOS ORIENTADORES DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ........................................ 41
2.3
OS JUIZADOS ESPECIAIS E O ACESSO À JUSTIÇA .................................................................... 47
2.4
AS AÇÕES REPETITIVAS NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ..................................................... 50
2.5
A INADEQUAÇÃO DA LEI Nº 9.099/95 ÀS AÇÕES REPETITIVAS: O RISCO DE PERDA DE SUA
LEGITIMIDADE ................................................................................................................................... 56
2.6
O JULGAMENTO LIMINAR NAS AÇÕES REPETITIVAS ............................................................. 62
2.7
O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO
CIVIL 70
2.8
A IMPORTÂNCIA DAS AGÊNCIAS REGULADORAS NA PRESERVAÇÃO DA EFETIVIDADE DOS
JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ............................................................................................................... 73
2.9
SÍNTESE DO EXPOSTO ............................................................................................................ 78
CAPÍTULO 3 ........................................................................................................................................... 80
3
O PROCESSO EUROPEU PARA AÇÕES DE PEQUENO MONTANTE............................................... 80
3.1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................................................... 80
14
3.2
O REGULAMENTO (CE) Nº 861/2007 ..................................................................................... 82
3.3
PERSPECTIVAS DE APROVEITAMENTO DE ELEMENTOS DO PROCESSO EUROPEU PARA
AÇÕES DE PEQUENA MONTA NO TRATAMENTO DAS AÇÕES REPETITIVAS NOS JUIZADOS ESPECIAIS
CÍVEIS BRASILEIROS ........................................................................................................................... 97
3.4
SÍNTESE DO EXPOSTO .......................................................................................................... 102
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................. 103
4
REFERÊNCIAS............................................................................................................................. 106
15
INTRODUÇÃO
As ações repetitivas fundadas em interesses individuais homogêneos
têm-se avolumado nos juizados especiais cíveis de todo o Brasil, gerando
dificuldades
ao
funcionamento
adequado
dessas
unidades
judiciárias
e
comprometendo o amplo acesso à justiça pretendido quando da criação do sistema
de juizados especiais.
O volume de processos é tanto que os juizados especiais, embora ainda
constituam o ramo do Judiciário em que o brasileiro mais confia, correm o risco de
perder sua legitimidade e cair em descrédito semelhante ao que ensejou seu
nascimento.
Nos quase vinte anos de existência dos juizados especiais tem-se visto
esse fato repetir-se com inquietante frequência. Assim ocorreu, por exemplo, com as
questões envolvendo assinatura básica de telefonia e planos econômicos.
Recentemente, mais especificamente no ano de 2013, houve o
ajuizamento repentino de milhares de ações questionando o sistema de scoring de
crédito. Apenas nos dois juizados especiais cíveis centrais do foro central de
Florianópolis, Santa Catarina, a explosão de litigiosidade foi de tal monta que em
pouquíssimos meses o acervo de cada uma dessas unidades judiciárias subiu de
aproximados 4.500 (quatro mil e quinhentos) processos para cerca de 50.000
(cinquenta mil) processos. Esse expressivo aumento ocorreu somente em razão da
discussão dessa única questão, que poderia ter sido posta em apenas um processo
de natureza coletiva, em vez de mais de 100.000 (cem mil) processos individuais3.
Não existe na Lei nº 9.099/95, nem em outros diplomas legais brasileiros
vigentes na data de conclusão da pesquisa, nada que possa impedir o manejo
individual dessas ações. Também nada há que permita ao juiz de primeiro grau
reuni-las para tratá-las como apenas um processo coletivo. Tampouco para
suspender o andamento de todas menos uma até que houvesse nessa uma decisão
judicial definitiva e irrecorrível. Resta, logo, aos magistrados, aos servidores do
Judiciário e à estrutura deste, a princípio, apenas enfrentar o acervo todo, tratando
cada processo desses como se versasse sobre um direito individual típico.
3
Os números exatos do 1º Juizados Especial Cível de Florianópolis-SC (foro central) foram
verificados e se encontram em tabela constante do Capítulo 2.
16
Com isso, ocupando desnecessariamente toda uma força e estrutura de
trabalho que poderiam estar dedicadas à finalidade para a qual os juizados especiais
cíveis estaduais foram criados, que é solucionar de modo simples e rápido as
causas de menor complexidade, assim classificadas, em tese, em razão do seu valor
(pequenas causas ou causas de pequeno montante) ou, por exceção legal, de sua
natureza (v.g., danos decorrentes de acidentes de trânsito), nas quais não haja
necessidade de produção de prova complexa e versando sobre direitos individuais
típicos.
O aumento desproporcional no número de processos ocasionado pelas
ações repetitivas sobre direitos individuais homogêneos está comprometendo
seriamente a celeridade e, portanto, a razoável duração do processo nos juizados
especiais cíveis. Assim, afeta substancialmente a efetividade da prestação
jurisdicional.
Pela pesquisa que culminou na presente dissertação pretendeu-se
estudar tal fenômeno e algumas de suas nuances, na tentativa de encontrar não
exatamente soluções, as quais são complexas como a natureza do problema e
envolvem fatores outros que não apenas o jurídico, como por exemplo o econômico,
o cultural, o político. Buscou-se singelamente encontrar ideias na seara jurídica que
fossem hábeis a, de alguma maneira, auxiliar no tratamento das ações repetitivas
nos juizados especiais cíveis.
Para tal fim, foram revisitados os direitos fundamentais afetados
diretamente pelo fenômeno citado, quais sejam, o acesso à justiça e a razoável
duração do processo, os quais convergem na efetividade da prestação jurisdicional.
Foram abordados os juizados especiais cíveis e a razão de sua
implantação. Também o advento das ações repetitivas nesses juizados e se o
modelo de prestação jurisdicional previsto na Lei nº 9.099/95 seria ou não adequado
ao enfrentamento desse tipo de processo.
Examinou-se se a efetividade das agências reguladoras afetaria a
efetividade dos juizados especiais de algum modo.
A pesquisa, realizada visando a titulação em mestrado tanto pela
Universidade do Vale do Itajaí, de Itajaí-SC, Brasil, como pela Universidade do
Minho, de Braga, Portugal, acabou conduzindo à busca de conhecimento sobre a
União Europeia e o tratamento por esta dispensado às pequenas causas no âmbito
17
da integração europeia. Com isso, estudou-se o Regulamento (CE) nº 861/2007, que
estabelece o processo europeu para ações de pequeno montante, procurando-se
cotejá-lo à Lei nº 9.099/95.
O tema central deste trabalho, portanto, embora constitua um problema
recorrente no Brasil e tenha surgido dessa preocupação com os juizados especiais
cíveis brasileiros, é abordado também sob uma perspectiva europeia, procurando-se
estabelecer elementos de conexão e aproveitando-se, no que se mostra possível, o
que o direito de integração europeu tem a contribuir.
A presente dissertação, deste modo, está estruturada em três capítulos.
No primeiro capítulo cuida-se do direito fundamental de acesso à justiça,
da razoável duração do processo e da indissociabilidade entre ambos, que converge
na efetividade da prestação jurisdicional.
Em seguida, no segundo capítulo, são abordadas as ações repetitivas e o
risco de perda de legitimidade dos juizados especiais cíveis, perquirindo-se sobre a
possível inadequação da Lei nº 9.099/95 ao trato das ações repetitivas. Também se
aborda a importância da efetividade das agências reguladoras para a efetividade dos
juizados especiais cíveis.
O processo europeu para ações de pequeno montante é o objeto do
terceiro capítulo. Nele é primeiramente examinado, na parte pertinente à pesquisa
proposta, o Regulamento (CE) 861/2007, que estabelece e disciplina o referido
processo.
Em
seguida,
procura-se
estabelecer
algumas
perspectivas
de
aproveitamento de elementos do processo europeu para ações de pequena monta
no tratamento das ações repetitivas nos juizados especiais cíveis brasileiros.
Por derradeiro, este trabalho não tem por finalidade, repete-se, esgotar os
temas de que trata nem formular soluções, menos ainda milagrosas, para a
preocupação que lhe deu origem.
18
CAPÍTULO 1
1
1.1
ACESSO À JUSTIÇA E RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Serão examinados neste capítulo o acesso à justiça e a razoável duração
do processo. Ainda, a distinção necessária entre acesso à justiça e ao Judiciário. Por
fim, a indissociabilidade entre o acesso à justiça e a razoável duração do processo.
É certo que os assuntos tratados neste capítulo já foram largamente
examinados pela doutrina nacional e estrangeira. Sob os contornos atuais, muito
particularmente após o advento da Constituição Federal de 1988 e a obra de Mauro
Cappelletti e Garth Bryant, Acesso à Justiça, traduzida por Ellen Gracie Northfleet e
publicada também em 19884.
Mesmo, contudo, que o tema “acesso à justiça” tenha sido praticamente
esgotado em seu aspecto teórico, o que se percebe na prática, decorridos mais de
25 anos, é até certo ponto um paradoxo. Por um lado, ainda se está longe de obter o
amplo acesso à justiça que se deseja para o cidadão, pois o volume de demandas
se agiganta em escala geométrica, afetando a capacidade do Estado de prestar a
jurisdição. De outro, justamente pela facilidade de acesso ao Judiciário, em especial
ao Sistema dos Juizados Especiais, já se fala no que até o momento se
convencionou chamar de “excesso de acesso à justiça”.
Conforme já constataram Adriana Goulart de Sena Orsini e Luiza Berlini
Dornas Ribeiro:
A expressão “Excesso de Acesso à Justiça” tem sido utilizada por
doutrinadores contemporâneos para indicar a litigância habitual perante o
Poder Judiciário, que ocupa o sistema judicial com processos similares em
5
larga escala e repercute em um congestionamento da via jurisdicional .
Fenômeno relativamente recente, para sua melhor compreensão é
necessário revisitar o que a seguir se verá, ainda que sem a amplitude e as minúcias
já alcançadas pela doutrina, tendo em vista que o foco do presente produto
acadêmico não é o acesso à justiça nem a razoável duração do processo em si
4
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.
ORSINI, Adriana Goulart de Sena; RIBEIRO, Luiza Berlini Dornas. A litigância habitual nos juizados
especiais em telecomunicações: a questão do “excesso de acesso”. In: Revista do Tribunal
Regional do Trabalho da 3ª Região, v. 55, n. 85, p. 21-46. Belo Horizonte: Tribunal Regional do
Trabalho da 3ª Região, 2012, p. 22.
5
19
considerados.
1.2
O DIREITO FUNDAMENTAL DE ACESSO À JUSTIÇA
Conceitos de acesso à justiça há muitos e variados. Existe, contudo, um
consenso nos dias de hoje, ou pelo menos uma ideia visivelmente majoritária, de
que o acesso à justiça é um direito fundamental e vai muito além da singela
facilidade de ajuizar demandas e, deste modo, provocar o Estado a solucionar
conflitos através de sua máquina judiciária.
Vê-se-o, mais, como a própria obtenção dessa solução, negativa, positiva
ou parcialmente positiva para o autor (vice-versa para o réu, pois). E, ainda além,
entende-se-o pleno e garantido apenas quando a solução é proferida em prazo
razoável, de modo adequado, e é concretizada no plano real (efetiva).
Mauro Vasni Paroski atesta em tal sentido:
O acesso à justiça há algum tempo tem figurado nos catálogos de direitos
fundamentais, assim reconhecidos pelas constituições e por declarações de
direitos nacionais e internacionais, em sentido bastante amplo, e não como
mero direito de acesso ao Poder Judiciário. O acesso à justiça pode ser
visto de mais de um ângulo (e muitas concepções sobre ele se pode ter) e
seu significado certamente sofrerá variação conforme o ordenamento
jurídico constitucional concreto em que for situado. Na doutrina nacional
predomina nos últimos quinze ou vinte anos , pelo menos, o entendimento
de que o acesso à justiça não significa somente mero acesso aos tribunais,
mas, sim, obter concretamente a tutela jurisdicional quando se tem razão,
que tanto pode ser prestada ao autor (procedência da demanda) como ao
réu (improcedência da demanda). Mas não basta, ainda assim, em grande
parte dos casos, a obtenção de solução jurisdicional para os conflitos de
6
interesses, pois, esta nem sempre é adequada, tempestiva e efetiva .
O referido consenso se verifica a partir de muitos conceitos operacionais
já formulados sobre a categoria acesso à justiça.
Mauro Cappelletti e Bryant Garth assim se posicionam:
De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido
como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e
sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na
ausência de mecanismos para sua reivindicação. O acesso à justiça pode,
portanto, ser encarado como requisito fundamental – o mais básico dos
direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que
7
pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos .
6
PAROSKI, Mauro Vasni. Direitos fundamentais e acesso à justiça na constituição. São Paulo:
LTr, 2008, p. 138.
7
CAPPELLETTI, Mauro, e GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Fabris, 2002, p.12.
20
Fernando Pagani Mattos segue a mesma linha:
A expressão ‘acesso à justiça’ pode ser reconhecida hoje como condição
fundamental de eficiência e validade de um sistema jurídico que vise a
garantir direitos. Assim, calcado em modalidades igualitárias de direito e
justiça, tal instituto deve ser considerado o básico dos direitos fundamentais
do ser humano. Não é por outra razão que a incapacidade do Estado em
promover a integração efetiva de parcelas marginalizadas da população
tem-se mostrado como um dos grandes obstáculos à efetivação das
promessas da democracia. Outro aspecto relevante é a exclusão econômica
da qual decorre a exclusão jurídica resultante da incapacidade do Estado de
garantir ao cidadão o acesso e a efetivação dos direitos humanos
8
constitucionalmente garantidos .
Pedro Manoel Abreu traça uma completa e alentada análise das visões
conceituais de acesso à justiça e, ao final de sua obra, conclui:
1. O acesso à justiça insere-se dentro das grandes preocupações da
sociedade contemporânea. A par do enfoque jurídico, notadamente do
processo civil como instrumentos de resolução de conflitos, avulta a
repercussão política e social do tema, essencial no esquema mais amplo
da democracia e do Estado Social de Direito.
2. O acesso efetivo à justiça tem sido progressivamente reconhecido como
sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais,
A titularidade de direitos é destituída de sentido na ausência de
mecanismos para sua efetiva reivindicação. Neste tocante, pode ser
entendido como o mais básico dos direitos humanos de um sistema
jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir e não apenas
proclamar os direitos de todos.
3. A jurisdição, o acesso à justiça e o processo devem ser focados na
perspectiva do Estado Democrático de Direito: a jurisdição visando à
realização dos fins do Estado; o acesso à justiça objetivando a
superação das desigualdades; o processo, com uma participação
paritária de armas, possibilitando a participação do cidadão na gestão do
bem comum – um dos escopos da jurisdição.
4. O acesso à justiça revela-se não apenas um direito social fundamental,
crescentemente reconhecido, mas também, necessariamente, o ponto
central da moderna processualística. Seu estudo é pressuposto de uma
ampliação e aprofundamento dos objetivos e métodos da ciência jurídica
coetânea.
5. O acesso à ordem jurídica justa é uma questão de cidadania. A
participação na gestão do bem comum por meio do processo cria o
paradigma da cidadania responsável: responsável pela sua história, a do
9
país e a da coletividade .
Parece possível questionar se de fato o acesso à justiça deve ser
qualificado como o mais básico dos direitos fundamentais. Aqui, contudo, basta a
constatação de que se trata de um direito fundamental de primeira grandeza, a ser
contemplado de forma concreta pelos ordenamentos jurídicos e sistemas judiciais.
8
MATTOS, Fernando Pagani. Acesso à justiça: um princípio em busca de efetivação. Curitiba:
Juruá, 2011, p. 70.
9
ABREU, Pedro Manoel. Acesso à justiça e juizados especiais: o desafio histórico da consolidação
de uma justiça cidadã no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 251-2.
21
Com efeito, sem o acesso à justiça, não há como garantir todos os demais direitos
fundamentais.
Igualmente, não é do propósito deste trabalho a discussão avançada
sobre o enquadramento do acesso à justiça no rol dos direitos fundamentais e/ou
dos direitos humanos, menos ainda a diferenciação entre uma e outra categoria.
Com efeito, interessam mais a sua efetivação e os meios para tanto do que a sua
classificação.
É certo, contudo, que no âmbito territorial em que a pesquisa foi
realizada, trata-se inequivocamente de uma garantia constitucional positivada. José
Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira o tratam como “direito geral à proteção
jurídica”
10
e o primeiro o inclui entre os que chama de direitos fundamentais
formalmente constitucionais11.
O mesmo J. J. Gomes Canotilho em outra passagem de seus fartos e
importantes ensinamentos, assim se manifesta sobre o acesso à justiça:
Em termos gerais – e como vem reiteradamente afirmando o Tribunal
Constitucional na senda do ensinamento de Manuel de Andrade -, o direito
de acesso aos tribunais reconduz-se fundamentalmente ao direito a uma
solução jurídica de actos e relações jurídicas controvertidas, a que se deve
chegar em prazo razoável a com garantias de imparcialidade e
independência
possibilitando-se,
designadamente,
um
correcto
funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das
partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas
provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e
12
resultado de causas e outra .
No Brasil, o acesso à justiça se encontra positivado constitucionalmente
no inciso XXXV do art. 5° da Constituição da República, o qual estabelece que “A lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
O direito de ação refletido no Texto Constitucional pode ser exercido
independente da qualificação jurídica do direito material a ser por ele protegido. Com
isso, “tanto o titular do direito individual, quanto o do direito meta-individual (difuso,
coletivo ou individual homogêneo) têm o direito constitucional de pleitear ao Poder
Judiciário a tutela jurisdicional adequada”.13
10
CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. V.
I. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 409.
11
CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6. ed.
revista. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 528.
12
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed.
Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 433.
13
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 133.
22
Se a lei não pode subtrair da apreciação do Poder Judiciário qualquer
lesão ou ameaça a direito, daí se segue que o direito de ação está consagrado como
direito fundamental do indivíduo no Direito Constitucional brasileiro. 14 Desde que
alguém alegue ter sofrido dano que afete direito subjetivo, não se lhe pode negar
direito de pedir a tutela jurisdicional para a defesa desse direito. E nisso consiste o
direito de ação, ou direito ao processo, o qual a lei não pode suprimir porque defeso
na Constituição.15
Neste contexto, tendo ou não razão o indivíduo, sempre haverá de ser
propiciada a discussão judicial sobre qualquer tema.16
Afinal,
não se pode aprioristicamente vedar o acesso jurisdicional. Claro que a
jurisdição é imaginada para quem tenha razão; mas não se pode saber de
antemão quem seja efetivo merecedor da intervenção judicial. Então,
defere-se livre e incondicionalmente o debate em juízo, impondo-se ao
17
Estado o dever de a todos ouvir, dando em cada caso solução.
Contudo, não basta garantir o acesso à justiça para a proteção ao direito
violado ou simplesmente ameaçado. É imprescindível “a adoção de providências
necessárias para afastar o risco de prejuízo irreparável ou da inutilidade da
prestação jurisdicional a posteriori”.18
Neste prisma, a essência do princípio reside no fato de o jurisdicionado
ter o direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada.19
Nery Júnior observa:
O fato de as partes constituírem convenção de arbitragem não significa
ofensa ao princípio constitucional do direito de ação. Isto porque somente
os direitos disponíveis podem ser objeto de convenção de arbitragem, razão
porque as partes, quando o celebram, estão abrindo mão da faculdade de
fazerem uso da jurisdição estatal, optando pela jurisdição arbitral. Terão,
portanto, sua lide decidida pelo árbitro, não lhes sendo negada a aplicação
20
da atividade jurisdicional.
14
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil, p. 125-126.
15
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil, p. 125-126.
16
PEREIRA, Hélio do Valle. Manual de direito processual civil: roteiros de aula – processo de
conhecimento. Florianópolis: Conceito Editoral, 2007, p. 51.
17
PEREIRA, Hélio do Valle. Manual de direito processual civil: roteiros de aula – processo de
conhecimento. Florianópolis: Conceito Editoral, 2007, p. 51.
18
MEDEIROS, Luiz Cezar. O formalismo processual e a instrumentalidade, p. 172.
19
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 133.
20
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal, p. 133.
23
Em Portugal, igualmente, a Constituição da República, em seu artigo 20º,
prevê formalmente o acesso à justiça:
Artigo 20.º
Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos
seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça
ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao
patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante
qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de
decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura
aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e
prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra
ameaças ou violações desses direitos.
Note-se que a Constituição da República Portuguesa, diferentemente da
brasileira - que embora também o abrigue, assim não declara de modo expresso adota explicitamente o conceito de acesso à justiça que se viu antes, incluindo a
efetiva tutela jurisdicional, e não apenas o fácil acesso às cortes.
Estão ambas, portanto, em consonância com a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, que consagra o acesso à justiça em seu Artigo VIII, completado
pelos Artigos X e XI, n. 1. Confira-se:
Artigo VIII
Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes
remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe
sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.
[...]
Artigo X
Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública
audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir
sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação
criminal contra ele.
Artigo XI
1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser
presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de
acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido
21
asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa .
Igualmente positivado se encontra o acesso à justiça na Convenção
Europeia de Direitos Humanos, nos moldes em que bem observa Danielle Annoni:
O art. 6º é complementado pelo art. 13 que concede direito de petição ao
21
Disponível em: <http://www.dudh.org.br/wp-content/uploads/2014/12/dudh.pdf>. Acessado em:
26/06/15.
24
indivíduo. Segundo esse dispositivo, o indivíduo tem o direito a um recurso
efetivo ante uma instância nacional imparcial e dentro de um tempo
razoável. O conceito de processo eqüitativo se completa com o art. 7º, que
garante o direito ao duplo grau de jurisdição na esfera penal, o direito à
indenização pelo erro judiciário, o direito a não ser julgado ou penalizado
duas vezes pela mesma infração.
[...]
Com efeito, a originalidade e importância da Convenção Européia reside
justamente no mecanismo coletivo de proteção aos direitos humanos, que
se baseia na existência de um órgão de investigação e conciliação
(Comissão Europeia de Direitos Humanos, existente até novembro de
1998), além de um órgão político de aferimento da responsabilidade
(Conselho de Ministros do Conselho da Europa) e de um órgão judicial de
22
responsabilização dos Estados (o Tribunal Europeu de Direitos Humanos) .
A
Convenção
Americana
de
Direitos
Humanos,
proposta
pela
Organização dos Estados Americanos em San José, Costa Rica (e, por isso,
correntemente chamada de Pacto de San José da Costa Rica), também contempla o
acesso à justiça em seu texto. A respeito, prossegue Danielle Annoni:
A Convenção Americana de Direitos Humanos também é resultado da
influência exercida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, da
ONU. Assinada em 22.11.1969, foi proposta pela OEA em uma Conferência
Intergovernamental em San José, Costa Rica, mas somente entrou em vigor
em 18.07.1978, quase dez anos depois, quando o 11º instrumento de
ratificação foi depositado.
Devido às particularidades dos países da América Latina, os direitos
assegurados na Convenção Americana são essencialmente os direitos de
primeira geração, àqueles relativos à garantia de liberdade, à vida, o direito
à privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito de
participar do governo, o direito à igualdade e o direito à proteção judicial,
dentre outros.
[...]
Além desse preceito, a Convenção traz disposições a respeito do princípio
da inocência, e garantias para que todas as pessoas tenham acesso ao
duplo grau de jurisdição. A Convenção Americana, ainda, assegura aos
acusados o direito à prestação jurisdicional dentro de um prazo razoável
(art. 8º, §1º) e de não serem obrigados a depor contra si e, nem de se
declararem culpados (art. 8º, alínea g). Cabe ao Estado, onde a pessoa está
sendo processada, proporcionar-lhe um defensor.
Se a pessoa não compreender ou não falar o idioma do juízo ou Tribunal, o
Estado deverá providenciar, de forma gratuita, um tradutor ou intérprete (art.
8º, §2º). [...]
[...] No Capítulo IV, a Convenção trata da suspensão de garantias,
23
interpretação e aplicação de procedimentos judiciais .
Há que se ressaltar a especial proteção judicial internacional existente em
relação à Convenção Europeia de Direitos Humanos, cujo órgão judicial de garantia,
o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, é acessível mediante direito de petição
22
ANNONI, Danielle. Direitos humanos e acesso à justiça no direito internacional:
responsabilidade internacional do estado. Curitiba: Juruá, 2003, p. 76-77.
23
ANNONI, Danielle. Direitos humanos e acesso à justiça no direito internacional:
responsabilidade internacional do estado. Curitiba: Juruá, 2003, p. 88 e 90-1.
25
direto do cidadão. Essa é uma característica juridicamente essencial quando se trata
de acesso à justiça, por empoderar o cidadão, e decorre nitidamente do caráter
comunitário, muito mais do que de direito internacional tradicional, que a referida
corte possui, ante o avanço da União Europeia e o atual estágio de desenvolvimento
do direito comunitário europeu.
Já não é o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos, que
muito claramente não tem a mesma força e efetividade de sua simétrica europeia. A
uma, porque o direito comunitário ainda encontra dificuldades no continente para
avançar além do pouco que até hoje existe. A duas, porque o direito internacional
público tradicional não comporta os instrumentos hábeis que o direito comunitário
possui para, além das soberanias dos Estados, instituir meios de acesso direto do
cidadão às garantias do pacto e impor diretamente a efetividade das decisões
tomadas em seu âmbito.
Por fim, basta a constatação direta da ausência de adesão concreta de
dois dos mais importantes países americanos, os Estados Unidos, que assinaram,
mas não ratificaram o pacto, e o Canadá, que nunca o assinou24.
De todo modo, observa-se que o acesso à justiça encontra-se abrigado,
como direito fundamental, nas normas internacionais, comunitárias e constitucionais
a que tanto Brasil como Portugal e os demais países da União Europeia estão
vinculados.
1.3
A NECESSÁRIA DISTINÇÃO ENTRE ACESSO À JUSTIÇA E ACESSO AO
JUDICIÁRIO
A preocupação com o acesso à justiça é tão antiga quanto a própria
existência da História e do Direito. Como é fácil concluir, as razões para isso nunca
colimaram necessariamente garantias individuais ou direitos inerentes ao ser
humano. Ao contrário, historicamente sempre visaram, e em parte ainda visam, a
necessidade de manutenção da ordem social e política.
No momento em que o homem se organizou social e politicamente,
transferiu a um soberano, em maior ou menor grau e em benefício da coletividade, o
poder-dever de equacionar conflitos.
24
Disponível
em:
<http://www.oas.org/dil/esp/tratados_B32_Convencion_Americana_sobre_Derechos_Humanos_firmas.htm>. Acessado em: 26/06/15.
26
Nesse exato momento, embora isso talvez não fosse então claro como
hoje, surgiu a necessidade de se garantir o acesso à justiça, agora entendida como
o meio oficial de regular conflitos, ainda que este fosse apenas a vontade e a palavra
do soberano.
Tanto é assim que o mais antigo documento jurídico de que se tem
notícia, o Código de Hamurabi, já o contemplava de algum modo.
A propósito, veja-se o que diz Pedro Manoel Abreu:
Entretanto, para efeito de mero relato histórico, registra-se que desde os
primórdios do direito escrito, de inspiração divina, fundado na religião, havia
a preocupação do legislador em oferecer garantias especiais ao
hipossuficiente, ou, ao menos, para evitar a opressão do mais forte,
assegurando a proteção às viúvas e aos órfãos. O Código de Hamurabi
incentivava o oprimido a procurar o soberano para que este solucionasse a
questão. O acesso à justiça, por isso mesmo, dependia do acesso à
25
religião. .
É, porém, apenas quando se consolida o Estado contemporâneo, ou
Estado Democrático de Direito, nos primórdios do século XX, que surge a
preocupação com a igualdade real, não mais meramente formal. E com ela o
interesse pelo acesso à justiça, que evoluiu até seu estágio e contornos atuais.
Mauro Vasni Paroski elucida tal ponto:
Nos primeiros anos de consolidação do Estado contemporâneo, mais
propriamente nas primeiras décadas do século XX, passa a ser necessária
a intervenção do Estado para assegurar direitos, caracterizando-se uma
importante fase na história dos países desenvolvidos, particularmente na
Europa, que primeiro viveram as experiências do Estado liberal e seu
princípio de não-intervenção, de abstenção quanto aos negócios privados,
identificando as deficiências dessa concepção política e levando as
reflexões visando à implantação de modificações. A partir dessa tomada de
consciência, ao contrário do que pregava o Estado liberal, a intervenção
estatal torna-se indispensável não mais para garantir a igualdade
meramente formal imaginada pelas revoluções que deram origem ao
modelo de Estado liberal. Desconsiderando as diferenças que há entre
pessoas e classes sociais, mas sim a igualdade material, real, concreta,
como forma que se apresentava fundamental para o acesso dos menos
favorecidos economicamente, ou que tinham algum tipo de particularidade
que os tornavam merecedores de tratamento jurídico conforme suas
especiais necessidades, aos meios de satisfação dessas e, até mesmo, a
alguns direitos fundamentais, como a educação, a cultura, a saúde, a
26
participação política etc .
Pedro Manoel Abreu confirma:
25
ABREU, Pedro Manoel. Acesso à justiça e juizados especiais: o desafio histórico da
consolidação de uma justiça cidadã no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 46.
26
PAROSKI, Mauro Vasni. Direitos fundamentais e acesso à justiça na constituição. São Paulo:
LTr, 2008, p. 163-4 .
27
No início do século XX, a questão do acesso passou a ter maior interesse,
na onda dos novos direitos sociais e o surgimento das constituições
dirigentes, havendo reiteradas denúncias do funcionamento insatisfatório da
justiça na Alemanha e na Áustria, pela incapacidade de atendimento da
demanda judicial, sendo várias as tentativas de minimizar o problema,
protagonizadas tanto pelo Estado como por setores organizados das
27
classes sociais mais débeis .
Ainda conforme Pedro Manoel Abreu28, desde a década de 1960 já há
consciência, em nível internacional, dos obstáculos do sistema formal de justiça às
pequenas causas, sobretudo em relação aos autores individuais pobres. Na mesma
década instala-se a crise de administração da justiça e as lutas sociais aceleram a
transformação do Estado liberal em Estado-providência. A partir de então, aumentam
o número e a complexidade dos direitos e os sistemas jurídicos democratizam-se.
É, pois, com o advento dessa democratização dos sistemas jurídicos, do
aumento dos direitos e de sua consciência, agregados a outros diversos fatores de
ordem, v.g., econômica e demográfica, que se inicia o fenômeno que mais tarde se
reconhecerá como explosão de litigiosidade.
A preocupação maior, entretanto, naquele momento, era diminuir os
entraves para que os titulares dos novos direitos pudessem individualmente estar em
juízo, com paridade de armas processuais, ou seja, garantir o acesso à proteção
estatal, judicial, e concreta, dos seus direitos.
Tem-se aí situado historicamente o acesso à justiça em sua acepção hoje
mais simples, ou seja, como sinônimo de acesso ao sistema judicial, de acesso ao
judiciário.
No Brasil, a explosão de litigiosidade vai se verificar principalmente após
o advento da Constituição da República de 1988, que reinaugura o Estado
democrático, juntamente com a posse de um civil na Presidência da República em
1985.
A nova Constituição aumenta significativamente o rol de direitos, dando
azo a novas legislações sobre inúmeras matérias, sendo de especial menção para o
tema deste trabalho o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078, de 1990.
A par disso, é geométrico o progresso tecnológico desde então verificado
e, consequentemente, também nas relações de consumo. Nas três últimas décadas
27
ABREU, Pedro Manoel. Acesso à justiça e juizados especiais: o desafio histórico da
consolidação de uma justiça cidadã no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 47.
28
ABREU, Pedro Manoel. Acesso à justiça e juizados especiais: o desafio histórico da
consolidação de uma justiça cidadã no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 48-9.
28
passou-se do tempo em que se aguardava anos para obter uma linha telefônica fixa
e caríssima para o tempo em que cada indivíduo da população possui, em média,
mais de uma “linha” de telefone celular em que, muitas vezes, o aparelho não é
sequer cobrado em moeda corrente, mas oferecido em troca de um período de
fidelidade à empresa. E se cada indivíduo possui pelo menos um telefone celular em
funcionamento, isso significa no mínimo que cada um deles mantém um contrato
com uma operadora de telefonia, o qual gera direitos e obrigações a ambas as
partes.
O número de linhas aéreas, por exemplo, e o acesso a elas pela
população em geral, também aumentou significativamente. E a cada passageiro que
adquire um bilhete aéreo – há meras três décadas coisa de poucos abastados –,
tem-se um contrato de transporte que inclui a pessoa e sua bagagem, sujeitos a
todos os tipos de transtornos que poderão exigir a intervenção do Estado, por sua
face judiciária.
O crescimento da estrutura judiciária, por sua vez, não acompanhou o
mesmo ritmo. A evolução processual tampouco. O Código de Processo Civil
brasileiro de 1973, por exemplo, continua em vigência no momento em que a
presente dissertação é redigida, apesar das reformas pontuais que sofreu e de já
sancionado o novo CPC, que entrará em vigor em breve.
A Lei nº 9.099/95, que instituiu os juizados especiais cíveis e criminais,
está completando 20 anos sem que até hoje a estrutura necessária ao seu bom
funcionamento tenha sido implantada em muitas unidades da federação brasileira.
Ora, é do senso comum que o maior desejo de quem ingressa no sistema
judicial é dele sair o quanto antes.
A solução tardia, sobretudo quando se trata de pequenas causas, não
interessa à dinâmica da vida de ninguém, tem o condão, muitas vezes, apenas de
fazer com que a pessoa recorde o dissabor vivido, não lhe interessando mais,
àquela altura, a reposição do bem da vida buscado ou sua compensação.
E é a partir disso que o conceito de acesso à justiça evolui para o sentido
amplo que impera hoje, ou seja, mais do que acesso amplo aos tribunais, ao
cidadão deve ser garantido o direito ao que Kazuo Watanabe chama de ordem
jurídica justa. Confira-se:
A problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados
limites dos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar
29
o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso
à ordem jurídica justa. Uma empreitada assim ambiciosa requer, antes de
mais nada, uma nova postura mental. Deve-se pensar na ordem jurídica e
nas respectivas instituições, pela perspectiva do consumidor, ou seja, do
destinatário das normas jurídicas, que é o povo, de sorte que o acesso à
Justiça traz à tona não apenas um programa de reforma como também um
29
método de pensamento, como com acerto acentua Mauro Cappelletti .
Em seguida, afirma os elementos constitutivos do acesso à justiça:
São seus elementos constitutivos: a) o direito de acesso à Justiça é,
fundamentalmente, direito de acesso à ordem jurídica justa; b) são dados
elementares desse direito: (1) o direito à informação e perfeito
conhecimento do direito substancial e à organização de pesquisa
permanente a cargo de especialistas e ostentada à aferição constante da
adequação entre a ordem jurídica e a realidade sócio-econômica do país;
(2) direito de acesso à justiça adequadamente organizada e formada por
juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de
realização da ordem jurídica justa; (3) direito à preordenação dos
instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos;
(4) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso
30
efetivo à Justiça com tais características .
Ada Pellegrini Grinover31 segue a mesma linha de Kazuo Watanabe.
Mauro Vasni Paroski traça de modo bastante elucidativo o atual alcance
conceitual do acesso à justiça:
Quando se fala em acesso à justiça, com toda razão, pensa-se em primeiro
lugar na possibilidade de ingresso em juízo, através de uma demanda, que
ensejará o nascimento de uma relação processual, ou, simplesmente, do
processo, meio técnico pelo qual, observando um procedimento
previamente estabelecido em lei, deságua na solução de desavenças e
controvérsias, traduzidas em litígios da mais variada ordem. O acesso à
justiça, todavia, tem conceito e significação mais amplos, envolvendo
também a prevenção de litígios, além da própria realização do direito
material, mesmo que não haja controvérsia de natureza jurídica alguma a
ser resolvida. É altamente recomendável que a ordem jurídica propicie
resultados justos (individual e socialmente), não apenas quando o órgão
estatal encarregado de dizer o direito no caso concreto o faz na consecução
de sua atividade, mas também quando ainda não há litígio, e muitas vezes
sequer haverá, mas que se fazem necessárias certas providências para que
o direito seja exercido, como se sucede, em alguns casos, ainda, com a
partilha de bens causa mortis, na conversão da separação judicial em
divórcio ou em diversas situações em que hoje tem lugar o que se
denomina de jurisdição voluntária. Sob esse enfoque, facilitar o acesso da
população em geral, em particular as camadas mais pobres, à justiça não é
apenas colocar à sua disposição os instrumentos indispensáveis para que
submeta determinada demanda à apreciação judicial, mas alcança também
a eliminação das causas que provocam a controvérsia, quando isso é
possível; a simplificação de procedimentos; a diminuição de despesas
29
WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: Participação e processo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 128.
30
WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: Participação e processo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 128.
31
GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1996, p. 115.
30
processuais ou mesmo a criação de formas mais céleres de exercício de
diretos [sic], muitas vezes sem a intervenção judicial, ou, ainda que haja
32
esta intervenção, através de meios mais simples, informais e econômicos .
Pedro Manoel Abreu diferencia os sentidos da expressão “acesso à
justiça”:
Ante a vagueza do termo, normalmente a doutrina tem atribuído duplo
sentido à expressão ‘acesso à justiça’. No primeiro, conferindo ao
significante ‘justiça’ o mesmo sentido e conteúdo de Poder Judiciário, torna
sinônimas as expressões ‘acesso à justiça e ‘acesso ao Judiciário’. No
segundo, a partir de uma visão axiológica da expressão ‘justiça’, interpreta o
acesso a ela como o ingresso a uma ordem de valores e direitos
fundamentais para o ser humano. Esse último, de conteúdo mais amplo,
33
estaria a englobar, no seu significado, o primeiro .
Depreende-se, portanto, que o conceito de acesso à justiça, no atual
momento histórico de sua evolução, difere muito do mero acesso ao Judiciário. Este
é apenas parte do conteúdo daquele.
A justiça, valor que é, pode e deve ser obtida principal e inicialmente
pelas condutas voluntárias dos indivíduos e das coletividades. O raciocínio é
simplório, mas nem por isso menos verdadeiro: se cada indivíduo e cada
coletividade agisse sempre de modo justo, a existência de tribunais seria
desnecessária, pela inexistência mesma de conflitos.
Por óbvio esse é um quadro ideal e irreal. Os conflitos, e as próprias
avaliações sempre mais ou menos subjetivas, e por isso muitas vezes
incoincidentes, do que é ou não justo, existem. Com eles, a necessidade de
solucioná-los em nome da pacificação social.
Entretanto, disso parte-se para outras constatações.
A primeira delas é a de que a autocomposição pacífica e privada é
sempre a melhor, pois pressupõe partes antagônicas do conflito que, de modo
pacífico, desenvolvido e civilizado, sem a necessidade de intervenção um terceiro,
seja ou não o Estado, encontram consensualmente a própria solução. Ou seja,
acabam por exercer uma espécie boa de “justiça com as próprias mãos”, que não se
confunde com exercício arbitrário das próprias razões.
A segunda é a de que, se idealmente é melhor que as partes encontrem
autocomposição pacífica do que a imposição de uma solução estatal, a atuação
32
PAROSKI, Mauro Vasni. Direitos fundamentais e acesso à justiça na constituição. São Paulo:
LTr, 2008, p. 183-4 .
33
ABREU, Pedro Manoel. Acesso à justiça e juizados especiais: o desafio histórico da
consolidação de uma justiça cidadã no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 40.
31
oficial deve privilegiar de modo incisivo os meios não-adversariais de solução de
conflitos e resguardar a intervenção impositiva como exceção.
Claro que isso dependeria de uma gama de outros fatores, inclusive de
ordem pedagógica, de mudança de uma cultura jurídica eminentemente voltada ao
litígio e ao paternalismo estatal para uma que se concentre na consciência plena de
direitos e deveres em igual escala e que amadureça a ponto de se ter em mente,
antes de mais nada, as próprias responsabilidades em vez de se as transferir a um
estado-pai.
Disso decorre que, se a melhor forma de justiça é outra, que não a
impositiva estatal, o mero acesso ao Judiciário não só não deve se confundir com o
acesso à justiça, como muito provavelmente não é sua face mais importante.
E, se a melhor forma de justiça é aquela em que as partes cumprem a
tempo e modo suas obrigações, ou seja, o exercício livre e voluntário do justo, toda
e qualquer intervenção estatal impositiva deve antes de mais nada buscar e se
aproximar o máximo possível disso.
E é nesse ponto em que o acesso à justiça encontra sua face de razoável
duração do processo e, pois, de efetividade da prestação jurisdicional, que em
seguida serão vistas.
De qualquer maneira, resta esclarecido que o acesso ao Judiciário e o
acesso à justiça não se confundem. Aquele é apenas um dos enfoques deste.
O acesso à justiça, porém, vai muito mais além e contempla, como antes
mencionado, a própria obtenção de uma solução, negativa, positiva ou parcialmente
positiva para uma das partes (vice-versa para seu antagonista, pois). E, ainda,
entende-se-o pleno e garantido apenas quando a solução é proferida em prazo
razoável, de modo adequado, e é concretizada no plano real (efetiva). Por fim, ainda
contempla uma terceira face, que é a de acesso a meios alternativos de solução de
conflitos, designadamente não-adversariais e pré-processuais.
Em termos algo distintos, é o que conclui Antônio Herman Benjamin34.
1.4
34
A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO
BENJAMIN, Antônio Herman. A insurreição da aldeia global contra o processo civil clássico:
apontamentos sobre a opressão e a libertação judiciais do ambiente e do consumidor, Textos.
Ambiente e Consumo, Centro de Estudos Judiciários, I volume, 1996, p. 74-5.
32
O acesso à justiça encontra alguns obstáculos à sua consecução. O tema
tem sido objeto de estudo pelos doutrinadores, como Mauro Cappelletti e Garth
Bryant35, Pedro Manoel Abreu36 e Luiz Guilherme Marinoni37, entre outros.
As classificações são diferenciadas. Opta-se aqui pela de Luiz Guilherme
Marinoni, segundo o qual o acesso a uma ordem jurídica justa encontra como
obstáculos: a duração do processo; seu custo; o problema cultural de
reconhecimento dos direitos; questão psicológica; litigantes eventuais ante os
habituais; necessidade de reestruturação do processo civil individual para a
efetividade dos conflitos de massa38.
Para este tópico, interessa-nos a duração do processo.
Como já afirmado anteriormente, é do senso comum que o maior desejo
de quem ingressa no sistema judicial é dele sair o quanto antes.
As soluções tardias, em especial no âmbito das pequenas causas, não
interessam a ninguém. Essas, se não resolvidas logo, acabam tendo alguma
relevância apenas para a estatística judicial.
Não são raros os casos em que a parte simplesmente abandona o
processo ao impulso oficial, muitas vezes até se esquecendo de seu ajuizamento. E
quando isso ocorre, significa que o Estado falhou. Significa que a parte que tinha
razão simplesmente desinteressou-se da efetivação do seu direito, em razão da
demora. Que aquele prejuízo, material ou imaterial, foi absorvido em algum
momento como percalço da vida e arquivado em sua mente no “escaninho” das
injustiças sofridas.
Tal sentimento é irrecuperável, por mais que se intime o indivíduo de uma
decisão que lhe é completamente favorável, porém tardia. No mais das vezes, aquilo
que em algum momento foi importante e ensejou a busca do Judiciário já perdeu a
importância na dinâmica da vida. O bem da vida, material ou imaterial, perdeu a
relevância, mas permanecerá a sensação adquirida de injustiça pela falta de solução
tempestiva.
Paulo Henrique dos Santos Lucon sobre o tema afirma:
35
CAPPELLETTI, Mauro, e GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Fabris, 2002.
36
ABREU, Pedro Manoel. Acesso à justiça e juizados especiais: o desafio histórico da
consolidação de uma justiça cidadã no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
37
MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
38
MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2000,
p. 25-37.
33
É papel do direito processual fazer atuar as normas substanciais do modo
mais efetivo possível e no menor espaço de tempo É senso comum que a
efetividade do processo está estreitamente relacionada com o seu tempo de
duração. Mais ainda: a efetividade do próprio direito material também
depende da efetividade do processo. O processo, como método de solução
dos conflitos, é dinâmico e, como consequência, encontra no fator tempo
um de seus elementos característicos e naturais. Por isso, quando se pensa
em efetividade, tem-se em mente um processo que cumpra o papel que lhe
é destinado, qual seja, conceder a tutela a quem tiver razão, no menor
tempo possível. Portanto, há uma estreita relação entre a efetividade da
tutela jurisdicional e a duração temporal do processo, que afeta diretamente
os interesses em jogo. A prestação jurisdicional intempestiva de nada ou
pouco adianta para a parte que tem razão, constituindo verdadeira
denegação de justiça; como efeito secundário e reflexo, a demora do
processo desprestigia o Poder Judiciário e desvaloriza todos os envolvidos
na realização do direito (juízes, promotores de justiça, procuradores e
advogados). O processo com duração excessiva, além de ser fonte de
angústia, tem efeitos sociais graves, já que as pessoas se veem
desestimuladas a cumprir a lei, quando sabem que outras as descumprem
reiteradamente e obtêm manifestas vantagens, das mais diversas
39
naturezas .
Conforme já se viu mais cedo, a Constituição da República Portuguesa
erige à categoria de garantia constitucional a duração razoável do processo, mais
especificamente em seu art. 20º, n. 4.
Igualmente, a Constituição da República Federativa do Brasil passou a
fazê-lo a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, a qual incluiu o inciso LXXVIII
no art. 5º, com o seguinte texto: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são
assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade
de sua tramitação”.
Tanto a Convenção Europeia quanto a Convenção Americana de Direitos
Humanos, segundo já visto em transcrições acima, preveem em seus textos a
duração razoável do processo.
Orlando Luiz Zanon Jr. adverte sobre a dificuldade de conceituar a
duração razoável do processo, haja vista sua dependência ao caso concreto:
Com efeito, cada processo, além do procedimento legal respectivo, envolve
diversas peculiaridades e características, de modo a inviabilizar a adoção
de um critério geral para cada tipo de ação, como aquele estipulado na
legislação pátria. Como situações que alteram a duração do processo, cabe
citar o número de partes, eventuais dificuldades de citação, greves dos
serviços judiciários ou correios, férias do juiz titular com cumulação de
unidades jurisdicionais pelo respectivo substituto, necessidade de produção
de provas, dificuldade para convocação da testemunha, ausência de perito
especialista na área necessária, intempéries que impeça eventual inspeção
39
LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Duração razoável e informatização do processo judicial. In:
Panóptica,
ano
1,
n.
8.
Vitória,
p.
368-9.
Disponível
em:
<http://www.panoptica.org/seer/index.php/op/article/download/224/236>, acesso em 27 de junho de
2015.
34
judicial, alteração brusca no número de entradas de processos decorrentes
de ondas esporádicas de litigiosidade (casos em que há aumento da
demanda em razão do surgimento de nova tese jurídica), controvérsia
quanto à eventual decisão judicial a ser resolvida após contraditório entre as
partes, apresentação extemporânea de documentos relevantes, diligências
posteriores, recursos de interlocutórias, alternância dos juízes e servidores
encarregados de dar andamento aos feitos, eventual falecimento das partes,
suspensão dos prazos a pedido das partes ou no aguardo de definição
quanto à constitucionalidade de preceito prejudicial, inexistência de
precedentes jurisprudenciais para orientar os postulantes e o magistrado,
dentre muitas outras circunstâncias imprevisíveis. Outrossim, não há como
superar, no atual estágio evolutivo do sistema jurisdicional, a indefinição
semântica do conceito de "razoável duração do processo", haja vista que a
interpretação de tal expressão só pode alcançar ares de objetividade em
cada caso concreto, exatamente por consubstanciar preceito de baixa
densidade (princípio constitucional). Ou seja, caberá analisar cada caso
para verificar se ocorreu atraso injustificado no andamento processual, com
relação a um ou mais atos do procedimento. E, acaso constatado o atraso,
aferir se ocorreu algum prejuízo relevante para as partes em razão de tal
40
morosidade .
Justamente pela percepção de tal relevante circunstância é que se opta
pelo seu conceito operacional no presente trabalho. Segundo Orlando Luiz Zanon
Jr.,
Incorporando tal entendimento, é possível conceituar a razoável duração do
processo como o lapso temporal suficiente para adequada resolução da
controvérsia, sem prejuízo do próprio direito objeto do litígio e evitando a
perda superveniente da utilidade do provimento final para os envolvidos,
observados os trâmites inerentes ao devido processo legal (due process of
law) e considerando as peculiaridades específicas de cada relação jurídico41
processual .
E como saber qual o tempo suficiente para a solução adequada da
controvérsia?
A resposta mais óbvia e direta parece ser o tempo da soma dos prazos do
procedimento previsto para o caso em questão.
Seria correto responder desse modo à indagação se o Judiciário fosse
como um laboratório, em que criadas artificialmente as condições ideais. Quem dera
fosse tão simples o problema. A realidade, contudo, sempre ela, acaba por interporse aos ideais.
João Paulo dos Santos Melo tratou do assunto especificamente,
afirmando:
40
ZANON JR, Orlando Luiz. Razoável duração do processo: a celeridade como fator de qualidade
na prestação da tutela
jurisdicional. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/12483/razoavelduracao-do-processo/1>. Acessado em: 27/06/2015.
41
ZANON JR, Orlando Luiz. Razoável duração do processo: a celeridade como fator de qualidade
na prestação da tutela
jurisdicional. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/12483/razoavelduracao-do-processo/1>. Acessado em: 27/06/2015.
35
Em contrapartida, a falta de densidade normativa e a grande liberdade de
conformação são pontos que geram problemas no desenvolvimento e na
efetivação judicial das normas constitucionais, especialmente quando estas
normas estão enunciadas em princípios, como no caso da duração
razoável. No entanto, a falta de densidade normativa só pode ser
considerada obstáculo instransponível quando há a necessidade de se
recorrer a elementos não-textuais, como, por exemplo, políticas públicas.
[...] No caso específico do preceito da duração razoável do processo, há,
com efeito, elementos textuais transponíveis pelo juiz e elementos nãotextuais intransponíveis pelo Judiciário. [...] Dentro dos elementos não
textuais, intransponíveis pelo Judiciário, encontra-se um dos pontos
esquecidos mais nos debates acadêmicos: o custo dos direitos. No caso
específico da duração razoável do processo, o fator é de extrema
importância, porquanto, tal preceito exige uma atuação positiva do Estado,
com dispêndio de recursos financeiros [...] Tendo em mira que todos os
direitos custam, o orçamento passa a ser o instrumento utilizado como fator
decisivo para pacificação social. É ele o responsável pela destinação e
organização das políticas públicas com objetivos relevantes e politicamente
42
determinados .
O problema não é só brasileiro. O próprio João Paulo dos Santos Melo
cita Jorge Miranda:
A efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais não depende
apenas da aplicação das normas constitucionais concernentes à
organização económica. Depende, também, e sobretudo, dos próprios
factores económicos, assim como – o que nem sempre é suficientemente
tido em conta – dos condicionalismos institucionais, do modo de
organização e funcionamento da Administração Pública e dos recursos
43
financeiros .
Em suma, existe a reserva do possível a incidir diretamente na razoável
duração do processo, como de modo amplo também no acesso à justiça.
Não obstante, Pedro Manoel Abreu ressalta:
A lentidão do processo, diga-se, não é fenômeno brasileiro, mas admite
tratamento apropriado, a partir da consciência do juiz. A despeito da falta de
estrutura material e da multiplicação de demandas, o magistrado pode
conferir celeridade aos processos, desde que se sirva adequadamente dos
fundamentos constitucionais e confira ao feito sua destinação instrumental.
Especialmente a lentidão da justiça civil, ao contrário do que se possa
imaginar, é manejada no interesse de alguns. Pondera Marinoni que uma
evolução adequada do sistema de distribuição de justiça equivaleria à
predisposição de procedimentos adequados à tutela dos novos direitos.
Nessa esteira, o direito de acesso à justiça teria como corolário o direito à
44
preordenação de procedimentos adequados à tutela dos direitos .
Por derradeiro, é prudente trazer a lição de Mauro Vasni Paroski, no
sentido de que razoável duração do processo não é necessariamente sinônimo de
42
MELO, João Paulo dos Santos. Duração razoável do processo. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 2010, p. 201-3.
43
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo II, 5. ed. Coimbra: Coimbra, 2003, p.
438.
44
ABREU, Pedro Manoel. Acesso à justiça e juizados especiais: o desafio histórico da
consolidação de uma justiça cidadã no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 66.
36
processo rápido:
A razoável duração do processo, a despeito de ser garantia constitucional,
não é necessariamente sinônimo de processo rápido, até pela diversidade
de opinião que pode suscitar quanto ao tempo que deve ser considerado
para a conceituação dessa celeridade processual. Não é desarrazoado,
certamente, admitir restrições a algumas garantias processuais em
benefício de um bem maior, mas jamais será legítima sua supressão ou
mesmo limitação de modo a torná-las inócuas, gerando decisões injustas e
45
o descrédito do próprio Judiciário .
O que se almeja é que o processo atinja seu “ideal com o menor desgaste
possível. Por isso, não se quer um procedimento que seja necessariamente
alongado (o que não traz garantia alguma de um processo justo).” 46
A razoável duração do processo, sob a perspectiva do presente estudo,
não pode ser analisada isolada, posto que se vincula diretamente com o princípio da
economia processual e com a garantia do devido processo legal.
O desvirtuamento da atividade processual com a realização de atos
onerosos, prescindíveis e desnecessários entrava a rápida solução do litígio, o que,
sem dúvidas, delonga a prestação jurisdicional.
Ademais, “os protagonistas do embate devem qualificar o processo como
meio, não como fim, evitando a prática de atos exageradamente burocratizados e
procrastinatórios, exigindo-se originalidade do operador do direito”.47
Com prioridade anota o saudoso mestre Rui Barbosa: “Mas justiça
atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta, porque a dilação
ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e, assim, as lesa no
patrimônio, honra e liberdade.” 48
Justiça tardia, repita-se, é justiça denegada.
Em suma, talvez não seja possível encontrar nenhuma boa resposta à
indagação formulada.
É certo, contudo, que a ideia de razoável duração do processo exclui
qualquer dilação injustificada, inclui a superação, pelo juiz, dos elementos textuais e
não textuais transponíveis e, em caso de atraso por insuficiência de recursos
adequados ao enfrentamento das demandas, sejam materiais ou humanos, exige,
45
PAROSKI, Mauro Vasni. Direitos fundamentais e acesso à justiça na constituição. São Paulo:
LTr, 2008, p. 273 .
46
PEREIRA, Hélio do Valle. Manual de direito processual civil, p. 54.
47
MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de direito processual civil, p. 42.
48
BARBOSA, Rui. Oração aos moços / Rui Barbosa; edição popular anotada por Adriano da Gama
Kury. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997, p. 52.
37
respeitada a reserva do possível, sua implementação pela Administração.
Igualmente, exige o aperfeiçoamento normativo, quando necessário, pelas casas
legislativas competentes.
1.5
A INDISSOCIABILIDADE ENTRE O ACESSO À JUSTIÇA E A RAZOÁVEL
DURAÇÃO DO PROCESSO: EFETIVIDADE
O acesso à justiça pressupõe, de acordo com o que já se viu, quando se
trata de seu enfoque jurisdicional, a prestação da tutela em prazo razoável.
São, portanto, garantias constitucionais e direitos fundamentais que
interagem e se completam, tendendo-se a considerar a razoável duração do
processo como integrante ou derivada do amplo acesso à justiça.
Do ponto de vista das normas constitucionais positivas, já se constatou
que o art. 20º da Constituição da República Portuguesa, o qual trata do “acesso ao
direito e tutela jurisdicional efectiva” inclui a razoável duração do processo em seu n.
4, o que denota tal tendência.
Na Constituição da República Federativa do Brasil as garantias
encontram-se em dois incisos distintos do mesmo artigo 5º, sem sequência ou
ordem de subordinação aparente. Contudo, sua interdependência também é
evidente.
De acordo com João Paulo dos Santos Melo, “...a duração razoável do
processo toca de forma clara e profunda no princípio do amplo acesso à justiça,
porquanto, amplia a tutela jurisdicional, tornando o processo mais rápido, portanto,
mais efetivo49.”
E é aí, precisamente, onde reside o ponto de convergência entre os dois
direitos: na efetividade da prestação jurisdicional.
Segundo Humberto Theodoro Jr., “por efetividade entende-se a aptidão
de um meio ou instrumento para realizar os fins ou produzir os efeitos para que se
constitui”50.
O processo é instrumental, serve a um fim maior, que é a consecução do
direito material. Assim, sua efetividade se verifica quando a solução que por ele se
49
MELO, João Paulo dos Santos. Duração razoável do processo. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 2010, p. 40.
50
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direito e processo. Rio de Janeiro: Aide, 1997, p. 34.
38
obtém é a mais próxima, sob todas as circunstâncias, da situação correspondente à
prestação voluntária de tal direito, no modo e tempo previstos, por quem devia
prestá-lo.
Para que a prestação jurisdicional se revista de efetividade, portanto, é
necessário que, em prazo razoável (quanto mais próximo do tempo em que o direito
devia ter sido satisfeito voluntariamente, melhor), a parte com razão obtenha a
íntegra do bem da vida, material ou imaterial (ou, na impossibilidade, a
compensação correspondente) a que tinha direito.
É igualmente necessário que tenha facilidade de demandar ao Estado
que imponha à contraparte a satisfação desse direito.
Logo, a efetividade da prestação jurisdicional é o valor jurídico ao qual as
garantias do acesso à justiça e da razoável duração do processo servem.
1.6
SÍNTESE DO EXPOSTO
Neste capítulo foram revisitados os direitos fundamentais de acesso à
justiça e de razoável duração do processo, bem como a indissociabilidade de ambos
entre si.
Viu-se que há um consenso nos dias de hoje, ou pelo menos uma ideia
visivelmente majoritária, de que o acesso à justiça é um direito fundamental e vai
muito além da singela facilidade de ajuizar demandas, significando o direito a uma
ordem jurídica justa, com a prestação jurisdicional entregue em prazo razoável, de
modo adequado, e concretizada no plano real (efetiva).
Constatou-se em que normas se encontra positivado o direito, no âmbito
territorial da pesquisa.
Observou-se a morosidade da justiça como um obstáculo ao acesso e a
dificuldade de conceituar a razoável duração do processo sem que haja uma
conexão ao caso concreto.
Ficou claro, contudo, que a ideia de razoável duração do processo exclui
qualquer dilação injustificada, inclui a superação, pelo juiz, dos elementos textuais e
não textuais transponíveis e, em caso de atraso por insuficiência de recursos
adequados ao enfrentamento das demandas, sejam materiais ou humanos, exige,
39
respeitada a reserva do possível, sua implementação pela Administração.
Igualmente, exige o aperfeiçoamento normativo, quando necessário, pelas casas
legislativas competentes
Por fim, foi visto como o acesso à justiça e a razoável duração do
processo são direitos que interagem e se complementam e que a tendência
doutrinária, com reflexo normativo na Constituição da República Portuguesa, é de se
considerar o segundo como integrante ou derivado do primeiro, eis que
componentes e voltados à consecução do mesmo valor jurídico, o da efetividade da
prestação jurisdicional.
40
CAPÍTULO 2
2
AS AÇÕES REPETITIVAS E O RISCO DE PERDA DA LEGITIMIDADE DOS
JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS
2.1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As ações repetitivas fundadas em interesses difusos homogêneos têm-se
avolumado nos juizados especiais cíveis de todo o Brasil, gerando dificuldades ao
funcionamento adequado dessas unidades judiciárias e comprometendo o amplo
acesso à justiça pretendido quando da criação do sistema de juizados especiais.
Este capítulo se ocupará da inadequação dos juizados especiais cíveis ao
trato dessas ações repetitivas, de como estas afetam o acesso à justiça e a razoável
duração do processo e criam risco de perda de legitimidade das normas de
regência.
De início, aborda-se a garantia constitucional de acesso à justiça como
finalidade da criação dos juizados especiais, constatando-se que não a vêm
atendendo plenamente.
Em
seguida,
mencionando-se
exemplo
relativamente
recente
de
Florianópolis-SC, valendo-se o autor das fontes primárias a que tem acesso direto,
destaca-se que os juizados especiais cíveis não têm condições de suportar o volume
de ações individuais repetitivas versando sobre direitos individuais homogêneos,
evidenciando-se a inadequação do modelo processual previsto na Lei nº 9.099/95
para o processamento de tais demandas.
Prossegue-se com a constatação da pouca adaptabilidade do modelo
processual da Lei nº 9.099/95 à necessidade de solução de milhares de
controvérsias envolvendo interesses individuais homogêneos, abordando-se o
desvirtuamento do direito posto em relação ao direito pressuposto correspondente,
com o risco de perda de legitimidade da norma e, pois, dos próprios juizados
especiais cíveis.
Após abordam-se os institutos previstos no art. 285-A do Código de
Processo Civil vigente, bem como o incidente de resolução de demandas repetitivas
previsto no novo Código como instrumentos de efetivação da razoável duração do
processo.
41
Ao final, conclui-se pela possibilidade de se evitar o risco de perda de
legitimidade dos juizados especiais cíveis, mantendo-se o direito posto que o
contempla de acordo com o direito pressuposto correspondente.
2.2
OS PRINCÍPIOS ORIENTADORES DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS
A ciência processual moderna fixou preceitos fundamentais que orientam
toda a ordem jurídica. Alguns desses vetores aplicam-se a todos os sistemas,
enquanto outros vigem apenas em determinados ordenamentos.
A Lei n. 9.099/95, no artigo 2º, dispõe: “Art. 2º O processo orientar-se-á
pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e
celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.”
Sobre a redação do dispositivo, Amaral e Silva questiona: critérios ou
princípios? E em seguida anota:
Filosoficamente, temos critérios como uma “regra para decidir o que é
verdadeiro ou falso, o que se deve fazer ou não, etc.” […] Outrossim, “está
claro que toda filosofia, ainda quando não elabora uma doutrina específica a
respeito, tende sempre a apresentar ao homem um critério para dirigir sua
opções, especialmente as que têm importância decisiva em sua vida. Kant
usou em vez de C., a palavra cânon (v)”. […]
de seu turno, explica o dicionarista referido que princípio é “ponto de partida
e fundamento de um processo qualquer” […] Acrescenta o autor que “talvez
caiba outro significado: como ponto de partida e causa, o P. às vezes é
assumido como o elemento constitutivo das coisas ou dos conhecimentos”.
Fixadas as premissas filosóficas, nos parece que estamos diante de
princípios, pois que diversas regras legais, tanto na Lei 10.259/01 quanto na
Lei 9.099/95, traduzem concretamente o princípio elencado nas normas, ou
seja, “o elemento constitutivo das coisas ou dos conhecimentos” […]. Isto
significa que os princípios assumiram aspecto palpável nas normas, não
cabendo mais qualquer opção para o intérprete, a qual seria papel dos
51
critérios indicar. Assim, os princípios antecedem aos critérios .
Como anotado, embora o legislador tenha utilizado a expressão critérios
orientadores dos Juizados Especiais, estamos diante de verdadeiros princípios
gerais.
Princípios processuais são um complexo de todos os preceitos que
originam, fundamentam e orientam o processo. Esses princípios podem ser
doutrinariamente divididos em duas espécies: informativos e gerais. Os
informativos representam o caráter ideológico do processo, como objeto
principal de pacificação social, influenciando jurídica, econômica e
socialmente, e transcendem a norma propriamente dita, à medida que
51
SILVA, Antônio Fernando Schenkel do Amaral e. Juizados Especiais Federais Cíveis:
competência e conciliação. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007, p. 42-43.
42
52
procuram nortear o processo pelo seu fim maior e ideal precípuo .
Nessa toada, o disposto no artigo 2º da Lei 9.099/95, porque aponta
princípios norteadores, deve ser obedecido, não apenas observado.
Ressalte-se que todos os demais princípios dirigentes da ordem
processual que estejam em harmonia com o espírito dos Juizados Especiais, porém
não arrolados no art. 2º, devem ser aplicados ao sistema.
Atinente à oralidade, verifica-se que é tendência em manifesto
crescimento. Não significa que os atos processuais não serão documentados ou
registrados, mas sim que haverá atenuação da forma escrita, como a hipótese de
mandato verbal, a formulação oral do pedido inaugural, a contestação e pedido
contraposto orais e a viabilidade de instauração da execução mediante pedido
verbal, hipóteses previstas expressamente na Lei n. 9.099/9553.
Ronaldo Frigini anota que o princípio da oralidade é um conjunto de ideias
que é transmitida pela parte ao funcionário da justiça, onde se encontra toda a causa
da pretensão reclamada. Não se perde tempo com longas dissertações, mas se
concentra o necessário, com o mínimo de elementos tendentes a garantir a ampla
defesa e o conhecimento do litígio pelo juiz, como também para aproximação das
partes pelos conciliadores54.
Acrescenta Figueira Júnior:
No que tange ao princípio da oralidade, também chamado de viga mestra da
técnica processual, preconizado com ênfase absoluta neste dispositivo e
refletido com intensidade em todo o texto legislativo, podemos aplicar os
mesmos ensinamentos do processo comum, porquanto o princípio enfocado
nada mais significa do que a exigência precípua da forma oral no tratamento
da causa, sem que com isso se exclua por completo a utilização da escrita,
o que, aliás, é praticamente impossível, tendo em vista a imprescindibilidade
na documentação de todo o processado e a conversão em termos no
mínimo, de suas fases e atos principais, sempre ao estritamente
indispensável. Ademais, processo roal não é sinônimo de processo verbal.
[…]
A verdade é que “a experiência resultante da história nos permite afirmar
que o processo oral é, sem sombra de dúvida, o melhor e o mais de acordo
com a natureza e as exigências da vida moderna, visto que sem ponto
comprometedor; mas, em vez disso, melhor garante a boa índole intrínseca
da decisão, a qual é fornecida mais economicamente, com mais
52
TOURINHO NETO, Fernando da Costa. FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais
Estaduais Cíveis e Criminais: comentários à Lei n. 9.099/1995. 7. ed. rev., atual. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2011, p.75.
53
SODRÉ, Eduardo. Juizados Especiais Cíveis: processo de conhecimento. Rio de Janeiro:
outubro, 2005, p. 5.
54
FRIGINI, Ronaldo. Comentários a Lei dos Juizados Especiais Cíveis. 3. ed. Leme: JH Mizuno,
2007, p. 86.
43
simplicidade e prontamente. E no tocante à celeridade do processo oral, ele
55
dura três ou quatro vezes menos tempo do que o processo escrito” .
O princípio da oralidade traz em seu bojo quatro vetores complementares.
Segundo Chiovenda, a atuação de qualquer um deles é necessária para a efetiva
realização do processo oral: a concentração dos atos processuais, a identidade
física do juiz, a irrecorribilidade das decisões interlocutórias e a imediação. Rocha
analisa cada um desses itens em separado e a sua incidência nos Juizados
Especiais:
a) concentração dos atos processuais: os atos processuais precisam ser
concentrados em um único momento ou, pelo menos, em poucos
momentos, próximos uns dos outros, para que a palavra oral possa
prevalecer. Se o processo for muito longo, sem a documentação tradicional,
quando for o momento de se proferir a sentença, elementos importantes
poderão ter-se perdido. A Lei nº 9.099/95, em seus artigos, faz cumprir esse
preceito, estabelecendo apenas duas audiências, uma de conciliação e
outra de instrução e julgamento, que deverão ocorrer em sequência e reunir
quase todos os atos do processo (conciliação, defesa, instrução e
julgamento).
b) identidade física do juiz: significa dizer que o juiz que diretamente colheu
as provas no processo, identificando-se fisicamente com elas, fica vinculado
para julgar a causa. Apesar de ser identificado com característica essencial
do princípio da oralidade, é preciso reconhecer que o direito brasileiro não
possui tradição de observar com rigor a identidade física. A Lei dos Juizados
Especiais, apesar de não falar em momento algum na identidade física do
juiz, estabelecer que o juiz deve sentenciar ao final da audiência de
instrução e julgamento (art. 28). Assim, se essa determinação for cumprida,
não tendo ocorrido o adiamento da audiência (por exemplo, na hipótese do
art. 31, parágrafo único), a identidade física estará assegurada.
c) irrecorribilidade das decisões interlocutórias: como bem resume Arruda
Alvim Netto, a irrecorribilidade das decisões interlocutórias “representa a
impossibilidade de usar, para as decisões proferidas No curso do processo
(precisamente durante a instrução oral), de um recurso que paralise o
mesmo”. Apesar de sempre ter sido colocada como uma característica do
princípio da oralidade, a irrecorribilidade das decisões interlocutórias
proferidas, por não precluírem, podem ser impugnadas junto com a
sentença, através de um recurso próprio (chamado de “recurso inominado”).
Por isso, na maioria das vezes é possível prescindir do recurso em faze das
decisões interlocutórias.
d) imediatismo: o imediatismo é o dever que tem o juiz de coletar
diretamente as provas, em contato com as partes, seus representantes,
56
testemunhas e peritos .
Observa-se que a oralidade revela-se nos Juizados Especiais Cíveis
como importante instrumento de efetivação do acesso à justiça, evitando
55
TOURINHO NETO, Fernando da Costa. FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais
Estaduais Cíveis e Criminais: comentários à Lei n. 9.099/1995. 7. ed. rev., atual. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2011, p.76-77.
56
ROCHA, Felipe Borring. Manual dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais: teoria e prática. 6.
ed. São Paulo: Atlas, 2012, p.26-27.
44
prolongamento desnecessário do procedimento, assim como facilita a aproximação
das partes.
A simplicidade pode ser identificada com a objetividade, porquanto ser
simples é ser objetivo.
Simplicidade quer dizer que os atos processuais devem ser praticados
informalmente, sem apego a formas e ritos que comprometam a sua finalidade.
Mesmo porque, os atos processuais, respeitado o teto previsto no artigo 9º da Lei
9.099/95, são praticados pela própria parte, podendo sê-lo pela forma oral, e, se o
forem por escrito, não dispõe ela de conhecimentos técnicos para peticionar57.
Do ponto de vista literal, temos que simplicidade, conforme ensinam os bons
dicionários, é a qualidade daquilo que é simples. Portanto, parece-nos que o
legislador pretendeu enfatizar que toda atividade desenvolvida nos Juizados
Especiais deve ser externada de modo a ser bem compreendida pelas
partes, especialmente aquelas desacompanhadas de advogado. Seria,
assim, a simplicidade uma espécie de princípios linguístico, a afastar a
utilização de termos rebuscados ou técnicos, em favor de uma melhor
compreensão e participação daqueles que não têm conhecimento jurídico.
Um exemplo dessa concepção é o comando contido no § 1º do art. 14 da
Lei, que estabelece que a petição inicial deverá ser feita “de forma simples e
58
em linguagem acessível” .
Deve-se afastar do sistema dos Juizados Especiais peças processuais
longas e rebuscadas, com citações extensas e irrelevantes à defesa do bem da vida
almejado. Os litigantes devem buscar o uso de linguagem acessível, com a
exposição concisa dos fatos. De igual forma a sentença deve ser simples, clara e
objetiva, inclusive com a dispensa do relatório prevista no artigo 38 da Lei 9.099/95.
O princípio da simplicidade ainda encontra amparo no que tange à prova,
admitindo-se todos os meios de provas moralmente legítimos, ainda que não
especificados em lei, assim como impedindo a realização de prova pericial, permitido
apenas exame técnico.
Ainda, a lei regente dos Juizados Especiais Cíveis veda qualquer
intervenção de terceiros ou assistência, privilegiando-se mais uma vez a
simplicidade.
Esclareça-se, de início, que o princípio da informalidade não se confunde
com o da simplicidade, visto que se refere às formas processuais:
57
ALVIM, J. E. Carreira. Juizados Especiais Cíveis Estaduais: Lei 9.099, de 26.09.1995. 2. ed.
Curitiba: Juruá, 2005, p. 18.
58
ROCHA, Felipe Borring. Manual dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais: teoria e prática. 6.
ed. São Paulo: Atlas, 2012, p.28.
45
As atividades das partes e dos órgãos jurisdicionais, mediante as quais a
lide procede do princípio para a definição, e ao conjunto das quais se aplica
a denominação de procedimento, têm-se de submeter-se a determinadas
condições lugar, de tempo, de meios de expressão: tais condições se dizem
formas processuais em sentido estrito. Em acepção mais ampla e menos
própria, entende-se por formas as próprias atividades necessárias no
processo, na medida em que, sendo coordenadas à atuação de um direito
59
substancial, apresentem caráter de forma com respeito à substância .
Nessa esteira, o princípio dispensa o apego às formas sacramentais do
ordenamento, e nisso é que a Lei 9.099/95 avança, garantido a informalidade, que
consiste na ausência de formas preestabelecidas.
O procedimento da lei dos Juizados Especiais, que é mais flexível do que
os desenhados no processo civil tradicional, encontra fundamento na Constituição
da República Federativa do Brasil, que determina textualmente a observância ao
princípio da oralidade, do qual decorrem os subprincípios da informalidade e
simplicidade.
Sobre a informalidade, com propriedade arremata Amaral e Silva:
A informalidade, elevada a princípio processual, é uma resposta ao
esquizofrênico culto pela forma, à valorização da forma em detrimento da
substância, do esquecimento do verdadeiro valor do processo: o homem.
À medida que dispensamos, ainda que timidamente, o apego às
formalidades, valorizamos o fim último do processo: a pacificação social.
Neste sentido, Passos (1999, p. 101) expõe que “Nós, juristas, incidimos em
outro erro, talvez até de mais nefastas conseqüências. Esquecemo-nos de
que o Direito é medicamento com que procuramos restabelecer a saúde da
60
convivência social” .
O trabalho de administrar a justiça, que o Estado se reservou com
exclusividade, em termos de monopólio, é um serviço que contém alta densidade de
utilidade pública. Por isso é necessária a efetivação da economia processual como
um dos princípios informativos do processo.
A economia processual consiste “em se obter o máximo resultado
processual com um mínimo de dispêndio, para que o processo seja menos oneroso
às partes”61. Além disso, o processo civil deve-se inspirar no ideal de proporcionar às
partes uma Justiça barata e rápida, do que extrai a regra básica de que “deve tratar-
59
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução J. Guimarães
Menegale. São Paulo: Acadêmica/Saraiva, 1998, p. 5-6.
60
SILVA, Antônio Fernando Schenkel do Amaral e. Juizados Especiais Federais Cíveis:
competência e conciliação. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007, p. 42-43.
61
RIBEIRO, Pedro Barbosa; BARBOSA, Paula Maria Castro. Curso de direito processual civil, p.
434.
46
se de obter o maior resultado com o mínimo de emprego de atividade processual”62.
O operador do direito deve tirar o máximo de proveito de um processo e
torná-lo efetivo.
Nessa linha, a Lei 9.099/95 efetiva o princípio em estudo na possibilidade
de realização imediata da audiência, na formulação de pedido contraposto na própria
contestação, na análise do pedido contraposto em única sentença, na intimação da
sentença na própria sessão de julgamento, na possibilidade de a sentença ser
confirmada, em sede de recurso, pelos seus próprios fundamentos, entre outros.
O processo deve-se sustentar em dois pilares, a rapidez e a segurança,
traduzindo-se no princípio da celeridade.
O princípio da celeridade importa em reprimir o fator tempo no processo, ou
seja, afastar os efeitos deletérios da demora jurisdicional para o autor. Isso
não significa que o réu seja aquinhoado com a delonga, pois, para ele, a
solução rápida da lide poderá ser favorável em face dos custos que
representam o acompanhamento do processo na justiça. De outro lado, a
demora faz aumentar o peso dos juros moratórios e da correção monetária
sobre eventual débito. Assim, a rapidez é positiva para os dois polos da
63.
demanda
Sempre que possível os atos processuais devem ser praticados a permitir
uma atividade processual mais rápida e ágil, sem, contudo, afastar a segurança
jurídica.
Ademais, a celeridade na composição dos litígios permite a cicatrização
da ferida que a contenda significa no seio da sociedade o mais rapidamente
possível64.
Por fim, o artigo 2º da Lei 9.099/95 reafirma o compromisso de buscar
alternativas de pacificação dos conflitos fora da sentença, estimulando a conciliação
e a transação.
A lei busca efetivar tal comando tanto no processo de conhecimento como
na execução de título extrajudicial com a designação de audiência exclusivamente
de conciliação.
Há que se distinguir transação de conciliação, visto que não foram
utilizadas as expressões pelo legislador como sinônimas.
A transação é o “negócio jurídico bilateral pelo qual as partes interessadas,
62
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, p. 35.
SILVA, Antônio Fernando Schenkel do Amaral e. Juizados Especiais Federais Cíveis:
competência e conciliação. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007, p. 52.
64
SODRÉ, Eduardo. Juizados Especiais Cíveis: processo de conhecimento. Rio de Janeiro:
outubro, 2005, p. 3-4.
63
47
fazendo-se concessões mútuas, previnem ou extinguem obrigações
litigiosas ou duvidosas”, enquanto a conciliação significa a composição
amigável sem que, necessariamente, se verifique alguma concessão por
quaisquer das partes a respeito do pretenso direito alegado ou extinção de
obrigação civil ou comercial (renúncia ao direito, reconhecimento do pedido,
65
desistência da ação) .
A lei busca efetivar tal comando tanto no processo de conhecimento como
na execução de título extrajudicial com a designação de audiência exclusivamente
de conciliação.
Ao arremate, com propriedade Figueira Júnior acrescenta que a verdade
é que todo juiz, antes de ser julgador, é um pacificador social cuja missão
harmonizadora transcende a composição da lide por meio de uma sentença de
procedência ou improcedência do pedido, o que, de qualquer maneira, representa
sempre um ato impositivo de violência simbólica praticado pelo Estado no exercício
da jurisdição (dizer e, se necessário, fazer exercer o direito do vencedor)66.
2.3
OS JUIZADOS ESPECIAIS E O ACESSO À JUSTIÇA
Os juizados especiais foram criados como uma das expressões mais
democráticas de toda a história do Judiciário brasileiro. A ideia fundamental, quando
de sua criação, foi a de tornar virtualmente absoluto o acesso à justiça, fornecendo
ao cidadão uma estrutura e um rito com ênfase na composição e dedicados à célere,
fácil, desburocratizada solução dos litígios ditos de menor complexidade. Mas sua
grande virtude não foi apenas a redução do rito, senão a quebra dos paradigmas
processuais tradicionais, com o surgimento de um sistema novo, regido por
princípios (celeridade, informalidade, simplicidade, entre outros) distintos do sistema
processual de 1973 e com uma nova filosofia na forma de tratar os conflitos de
interesses.
A Exposição de Motivos da Lei nº 7.244/84, que tratava dos Juizados
Especiais de Pequenas Causas, os quais evoluíram para os Juizados Especiais
Cíveis e Criminais com o advento da Lei nº 9.099/95, é bastante elucidativa sobre o
65
TOURINHO NETO, Fernando da Costa. FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais
Estaduais Cíveis e Criminais: comentários à Lei n. 9.099/1995. 7. ed. rev., atual. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2011, p. 83.
66
TOURINHO NETO, Fernando da Costa. FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais
Estaduais Cíveis e Criminais: comentários à Lei n. 9.099/1995. 7. ed. rev., atual. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2011, p. 86.
48
tema:
Os problemas mais prementes, que prejudicam o desempenho do Poder
Judiciário no campo civil, podem ser analisados sob pelo menos três
enfoques distintos, a saber: a) a inadequação da atual estrutura do
Judiciário para a solução dos litígios que a ele já afluem, na sua concepção
clássica de litígios individuais; b) tratamento legislativo insuficiente, tanto no
plano material como no processual, dos conflitos de interesses coletivos ou
difusos que, por enquanto, não dispõem de tutela jurisdicional específica; c)
tratamento processual inadequado das causas de reduzido valor econômico
e conseqüente inaptidão do Judiciário atual para a solução barata e rápida
desta espécie de controvérsia (item3). A ausência de tratamento judicial
adequado para as pequenas causas – o terceiro problema acima enfocado
– afeta, em regra, gente humilde, desprovida de capacidade econômica
para enfrentar os custos e a demora de uma demanda judicial. A garantia
meramente formal de acesso ao Judiciário, sem que se criem as condições
básicas para o efetivo exercício do direito de postular em Juízo, não atende
a um dos princípios basilares da democracia, que é o da proteção judicial
dos direitos individuais (item4). A elevada concentração populacional nas
áreas urbanas, aliado ao desenvolvimento acelerado das formas de
produção e consumo de bens e serviços, atua como fator de intensificação
e multiplicação de conflitos, principalmente no plano das relações
econômicas. Tais conflitos, quando não solucionados, constituem fonte
geradora de tensão social e podem facilmente transmudar-se em
comportamento anti-social. Impõe-se, portanto, facilitar ao cidadão comum o
acesso à Justiça, removendo todos os obstáculos que a isso se antepõem.
O alto custo da demanda, a lentidão e a quase certeza da inviabilidade ou
inutilidade do ingresso em Juízo são fatores restritivos, cuja eliminação
constitui a base fundamental da criação de novo procedimento judicial e do
próprio órgão encarregado de sua aplicação, qual seja o Juizado Especial
67
de Pequenas Causas (item 6) .
O conceito cappellettiano de justiça coexistencial foi incorporado
fortemente aos juizados especiais cíveis, que, demais disso, dispensam pagamento
de custas em primeiro grau de jurisdição. Assim, além de privilegiarem os meios
autocompositivos de conflitos (mediação, conciliação), os juizados especiais cíveis
também contemplam meio compositivo não-adversarial (arbitragem) e multiplicam os
meios de solução imposta, na medida em que permitem a instrução e proposição de
sentenças por juízes leigos. Portanto, o acesso à justiça, nos juizados especiais
cíveis, é maximizado não só em seu aspecto econômico, mas sobretudo em sua
principal expressão, que é a de proporcionar uma solução rápida e justa aos litígios.
A Lei 9.099/95 representou um grande avanço e é, por si, praticamente
irretocável do ponto de vista da doutrina que a inspirou e dos valores que procura
garantir, em especial o amplo acesso à justiça. Tanto é assim que o Poder Judiciário
deve boa parte da credibilidade que ainda conserva ao sistema de juizados
especiais.
67
apud ABREU, Pedro Manoel. Acesso à justiça e juizados especiais: o desafio histórico da
consolidação de uma justiça cidadã no Brasil. 2 ed. Florianópolis: Conceito, 2008, p. 188-189.
49
Por outro lado, os juizados especiais cíveis não têm alcançado
plenamente, na prática, o fim de garantir o amplo acesso à justiça, em seu aspecto
essencial
e
prático
de
solucionar
os
conflitos
rapidamente.
Mostram-no
especialmente as fontes primárias, mas também a produção acadêmica recente que
se vem avolumando em torno da matéria.
A respeito, a constatação de Adriana Goulart de Sena Orsini e Luiza Belini
Dornas Ribeiro:
Atualmente, a procura pelos Juizados Especiais tem se elevado
consideravelmente. Conforme análise realizada por Leslie Shérida Ferraz
(2010, p. 67) entre os anos de 2003 e 2005, com base em dados do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ‘a taxa de congestionamento dos
Juizados é expressiva, em torno de 40% a 50% na média nacional.’ Essa
taxa mede a capacidade das Cortes em finalizar os processos, o que nos
impele à conclusão de que a ampliação dos Juizados pode chegar a
comprometer a qualidade dos serviços prestados, interferindo na
credibilidade que a sociedade deposita no Judiciário e, especialmente, no
68
provimento jurisdicional célere e efetivo que essa sociedade tem direito .
Igualmente, a constatação de Ricardo Torres Hermann:
Os Juizados Especiais Cíveis contam hoje com o reconhecimento do meio
jurídico, mas também, e o que é mais difícil, da população. Constituem-se,
sem qualquer margem de dúvida, no meio de acesso à Justiça mais
prestigiado do país. Recente pesquisa, divulgada pela Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB) em setembro de 2007, revelou que os
juizados especiais se consubstanciam na instituição judicial com maior
reconhecimento popular, com índice de confiabilidade de 71,8%. Contudo, é
inegável que as principais virtudes que apresentam: de rápida solução de
litígios, de simplicidade, informalidade, de valorização das formas de
autocomposição – como a conciliação e a mediação – só têm condições de
subsistir se não forem, os Juizados Especiais, soterrados por milhares de
ações envolvendo demandas de massa, que ingressam atualmente em tais
69
unidades jurisdicionais .
Os juizados especiais cíveis trilham atualmente, portanto, o lento e
perigoso caminho rumo à perda de sua capacidade de efetivação prática do direito e,
pois, da sua essência, inclusive como norma. A respeito, Rudolph von Ihering, já no
século XIX, advertia:
A essência do direito consiste na sua efetivação prática. A norma jurídica,
que ficou pairando e nunca se efetivou, ou que perdeu essa efetivação,
perde o caráter de norma, transformando-se em roda emperrada do
mecanismo jurídico, e que por essa inércia, em nada contribui para seu
funcionamento, podendo, pois, ser suprimida, sem que isso produza
68
ORSINI, Adriana Goulart de Sena e RIBEIRO, Luiza Berlini Dornas. A litigância habitual nos
juizados especiais em telecomunicações: a questão do “excesso de acesso”. In: Revista do Tribunal
Regional do Trabalho da 3ª Região, v. 55, n. 85, p. 21-46. Belo Horizonte: Tribunal Regional do
Trabalho da 3ª Região, 2012, p. 26.
69
HERMANN, Ricardo Torres. O tratamento das demandas de massa nos Juizados Especiais
Cíveis. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Artes
Gráficas, 2010, p.19.
50
70
qualquer prejuízo .
Mas onde residiria o descompasso com a realidade, se, em termos
normativos, o sistema é reconhecidamente efetivo?
2.4
AS AÇÕES REPETITIVAS NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS
É certo que o “soterramento” dos juizados especiais, para usar a
expressão de Ricardo Torres Hermann71, se deve a causas variadas, que incluem
até mesmo fatores locais, como a realidade econômica de cada unidade da
federação, a maior ou menor alocação orçamentária, pela administração dos
tribunais, ao sistema dos juizados especiais, e a correlação entre a população e o
número de unidades judiciárias do sistema especial.
A análise minuciosa de todos os fatores, gerais e locais, não caberia nas
modestas pretensões do presente trabalho. Entretanto, qualquer rápido correr de
olhos nos dados estatísticos de qualquer unidade de juizado especial cível de
médias e grandes comarcas do país, chama a atenção para um fenômeno já
descrito em trabalhos acadêmicos, entre os quais os dos já citados Ricardo Torres
Hermann72, Adriana Goulart de Sena Orsini e Luiza Belini Dornas Ribeiro 73, estas
especificamente em relação às telecomunicações. Trata-se da repetição fracionada,
individual, de demandas de consumo fundadas em direitos individuais homogêneos,
a imensa maioria incluindo pedido de indenização por danos morais, contra grandes
empresas, destacando-se, em regra, bancos, empresas de telefonia, companhias
aéreas, seguradoras e empresas de tv por assinatura.
Recentemente, de início nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do
Sul, empresas mantenedoras de cadastros ditos de proteção ao crédito, até então
70
IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. 7 ed. revista da tradução de J. Cretella Jr. e Agnes
Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 79.
71
HERMANN, Ricardo Torres. O tratamento das demandas de massa nos Juizados Especiais
Cíveis. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Artes
Gráficas, 2010, p.19.
72
HERMANN, Ricardo Torres. O tratamento das demandas de massa nos Juizados Especiais
Cíveis. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Artes
Gráficas, 2010.
73
ORSINI, Adriana Goulart de Sena; RIBEIRO, Luiza Berlini Dornas. A litigância habitual nos juizados
especiais em telecomunicações: a questão do “excesso de acesso”. In: Revista do Tribunal
Regional do Trabalho da 3ª Região, v. 55, n. 85, p. 21-46. Belo Horizonte: Tribunal Regional do
Trabalho da 3ª Região, 2012.
51
demandadas freqüentes como os antes mencionados, passaram a ocupar posição
de ponta entre os demandados. Isso se deve à multiplicidade de ações ajuizadas em
pouco tempo sustentando a ilegalidade dos chamados sistemas de scoring de
crédito, em que cada indivíduo inscrito no Cadastro de Pessoas Físicas da Receita
Federal (CPF), mesmo que nunca antes tenha figurado em qualquer listagem dita
negativa, recebeu uma pontuação de zero a mil. Tal pontuação corresponderia,
grosso modo, a maiores ou menores chances de haver pagamento da dívida
correspondente a eventual concessão de crédito.
O mérito de tais demandas, para o presente trabalho, importa bem menos
do que o efeito produzido por seu volume súbito nos juizados especiais cíveis,
afetando direta e expressivamente a celeridade e, pois, a razoável duração do
processo e o acesso à justiça.
Os juizados especiais cíveis têm experimentado freqüentes ondas de
litigância semelhantes a essa, embora com volumes menos expressivos, a exemplo,
entre outras, das ações em que se discutia a assinatura básica de telefonia fixa.
Tome-se o exemplo dos dois juizados especiais cíveis centrais de
Florianópolis-SC, Brasil.
Antes de 2013, ambos os juizados especiais cíveis do Fórum
Desembargador Eduardo Luz (centrais) contavam com acervo de aproximadamente
4.500 feitos em tramitação, recebendo, via distribuição, entre 400 a 500 novos por
mês74. A partir da disseminação da notícia das primeiras sentenças, reconhecendo,
na imensa maioria dos casos, a ilegalidade do cadastro e o direito a indenização por
danos morais (as poucas sentenças de improcedência de modo geral fundaram-se
em insuficiência probatória ou alguma circunstância específica do caso), e de sua
confirmação pela Primeira Turma de Recursos de Santa Catarina, houve uma
verdadeira explosão de demandas de igual teor, tendo sido ajuizadas mais de
noventa mil novas ações em poucos meses.
Isto significa em média dezoito mil por mês ou pouco menos de
novecentos por dia útil. Ou seja, cada um dos dois juizados especiais cíveis centrais
de Florianópolis passou a receber, por dia, o número de novos processos que
recebia por mês, com um incremento de acervo, em meio ano, de 1.000 %.
74
Os dados, assim como os que se seguem quanto ao exemplo dado, são de conhecimento primário
do autor, em razão das funções que exerce como Juiz de Direito titular do 1º Juizado Especial Cível
da Comarca da Capital-SC.
52
E os números só não são mais expressivos porque, em outubro de 2013,
os cadastros foram suspensos, cessando-se a realização de novas consultas até
que o mérito da demanda foi julgado, em recurso repetitivo, pelo Superior Tribunal
de Justiça, em 12 de novembro de 2014.
Os números exatos de 2013 e 2014, tão somente do 1º Juizado Especial
Cível, encontram-se nas seguintes tabelas:
53
Tabela 1: Números do 1º Juizado Especial Cível da Capital-SC em 2013
2013
Inicias
Total de
Inicias
Inicias
ajuizadas
Inicias
processos ajuizadas
Total de
ajuizadas em face de ajuizadas
ajuizados
em face
processos
em face de empresas
em face
SEM
de
ajuizados
empresa de
de
de plano
Sistema instituição
telefonia
transporte de saúde
Scoring
bancária
aéreo
Total de
iniciais
envolvendo
relação de
consumo
Janeiro
117
110
19
26
6
1
62
Fevereiro
155
139
32
26
4
1
74
Março
202
147
11
21
11
-
54
Abril
230
219
20
38
11
6
86
Maio
229
159
14
16
4
8
56
Junho
363
212
18
19
16
4
81
Julho
884
168
25
17
10
1
68
Agosto
478
90
11
17
4
4
41
Setembro
512
116
18
14
6
3
52
3.106
140
20
14
5
20
67
Novembro
182
127
16
9
2
4
46
Dezembro
13.573
70
8
9
-
4
28
1.697
212
226
79
56
715
Outubro
TOTAL
20.031
Fonte: Do autor (2015).
Tabela 2: Números do 1º Juizado Especial Cível da Capital-SC em 2014
2014
Janeiro
Inicias
Total de
Inicias
Inicias
ajuizadas
Inicias
processos ajuizadas
Total de
ajuizadas em face de ajuizadas
ajuizados
em face
processos
em face de empresas
em face
SEM
de
ajuizados
empresa de
de
de plano
Sistema instituição
telefonia
transporte de saúde
Scoring
bancária
aéreo
Total de
iniciais
envolvendo
relação de
consumo
34.393
326
50
29
14
14
204
Fevereiro
320
134
15
14
6
1
72
Março
165
122
15
11
7
8
77
Abril
278
141
21
30
10
2
97
Maio
308
165
72
20
9
3
153
Junho
365
177
68
18
12
-
132
Julho
238
217
93
16
17
7
167
3.627
464
122
64
22
9
217
Setembro
989
366
55
28
10
3
152
Outubro
714
206
74
27
6
4
138
Novembro
231
186
50
29
4
2
110
Dezembro
148
145
26
16
14
6
80
2.649
661
302
131
60
1.599
Agosto
TOTAL
41.776
Fonte: Do autor (2015).
54
Os números do 2º Juizado Especial Cível são muito próximos, haja vista
que ambas as unidades possuem exatamente a mesma competência, realizando-se
a distribuição, como regra, via sorteio.
É claro que as partes passivas, em tais casos, eram poucas e repetidas,
mas, a realizar-se a tradicional conta de pelo menos duas pessoas litigando por
processo, uma no polo ativo, outra no passivo, é como se todos os habitantes da
área de jurisdição abrangida pelos dois juizados especiais cíveis centrais de
Florianópolis estivessem neles litigando, muitos em mais de um processo.
Inclusive a Pontifícia Universidade Católica do Paraná realizou pesquisa
relevante encomendada pelo CNJ por meio do Edital 01/2009, apresentando
documento final denominado “Causas do progressivo aumento de demandas
judiciais cíveis repetitivas no Brasil e propostas para a sua solução”.
No corpo da pesquisa procedeu-se à coleta de dados para identificar
demandas cíveis repetitivas no Brasil e entender suas causas e com os resultados
foram apresentadas propostas de solução para as demandas judiciais cíveis
relacionadas ao sistema de crédito.
A coleta de dados foi realizada nas capitais Manaus, Aracaju, Recife, Rio
de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, além do Distrito Federal e das comarcas de
Eldorado do Sul (RS) e Taguatinga (DF).
Os dados coletados também apontaram uma concentração de feitos
relacionados à concessão e tomada de crédito, e discussões jurídicas decorrentes
desta realidade.
Na análise dos dados a equipe observou a impossibilidade da obtenção
de informações padronizadas e da coleta de dados baseada na Tabela de Classes e
Assunto do CNJ.
Os dados coletados foram analisados e, ao final, apontaram forte
demanda repetitiva em ações que tinham por objeto contratos bancários. Para sua
solução foram apontadas demandas extraprocessuais e processuais, propostas de
alteração legislativa, medidas de política judiciária e de administração da justiça que
integraram o relatório.
A equipe estabeleceu as seguintes premissas para a pesquisa:
[...] houve um aumento de demanda da justiça cível no Brasil, em especial
de demandas repetitivas; as soluções para o aumento da demanda devem
ocorrer de forma a não comprometer direitos constitucionalmente
garantidos, associando-se à ampliação do acesso a uma justiça eficaz; o
55
acesso à justiça não se confunde e não se resume ao acesso ao Poder
Judiciário; soluções para o problema devem contemplar formas de solução
de conflito externas ao Judiciário.
Pois bem. Alguém poderia dizer que as ações são iguais e, assim, todas
podem ser movidas “em bloco” como se fossem uma só, em especial porque
tramitam em meio eletrônico. Contudo, a realidade não se mostra tão simples.
Primeiramente, a sobrecarga no cartório distribuidor, apesar das medidas
emergenciais tomadas pela Direção do Foro, 1º e 2º Juizados Especiais Cíveis e
Tribunal de Justiça de Santa Catarina, comprometeu os bons serviços daquele setor
em mais de seis meses, afetando não só os juizados especiais cíveis, mas as
demais unidades sujeitas ao mesmo distribuidor. É fácil imaginar a incompreensão e
a justa insatisfação do jurisdicionado, que, esperando ter a solução do seu caso em
60 ou 90 dias, em seis meses sequer havia tido sua petição inicial distribuída.
Não fosse isso, cada novo ato dos processos, mesmo que se tratasse
apenas de repetição em bloco – e não se tratava – exigia um tempo enorme para ser
cumprido em todos, considerado o volume. Basta imaginar que, apenas para o
magistrado simplesmente acionar a assinatura digital em bloco para cada
movimentação processual em todos os processos, o sistema digital tem capacidade
de processar, no tempo do expediente forense, hardware e software considerados,
entre duas a três mil assinaturas digitais por dia75, o que significa cerca um mês útil
apenas para processar as assinaturas digitais. Nem se mencione o exame de cada
inicial e sua documentação, e o tempo de elaboração dos despachos e sentenças,
além da movimentação cartorária, mesmo que em bloco.
Pior, contudo, quando se pensa na pauta de audiências, no tempo que se
levaria e no número de conciliadores que se ocuparia para realizar audiência de
conciliação (prevista como obrigatória no rito, constituindo marco de resposta)
individualmente em cada um dos processos, em casos nos quais absolutamente
nenhum acordo ocorreu, notadamente pela própria natureza e volume das
demandas e o temor dos réus de abrir precedentes. Seria algo para vários anos de
comprometimento da pauta de audiência, pondo por terra a razoável duração do
processo e, pois, o acesso à justiça.
75
De acordo com simulações e movimentações reais realizadas em bloco pelo autor no equipamento
disponível em seu gabinete. Os dados variaram conforme a data e horário do ato, possivelmente de
acordo com o maior ou menor tráfego de dados no sistema e a carga em ocupação do servidor de
informática no mesmo momento.
56
Esse exemplo é dado para que se tenha a real dimensão do quanto esse
tipo de demanda é capaz de comprometer o bom funcionamento de um juizado
especial cível, por melhor dimensionados que sejam sua estrutura e seus recursos.
Exemplos semelhantes poderiam ser citados, de diferentes partes do Brasil.
O fenômeno é de tal importância para a própria existência eficiente dos
juizados especiais que o Fórum Nacional dos Juizados Especiais, entidade que
congrega magistrados estaduais integrantes do sistema de juizados especiais, emitiu
o Enunciado Cível nº 139, com o seguinte teor:
A exclusão da competência do Sistema dos Juizados Especiais quanto às
demandas sobre direitos ou interesses difusos ou coletivos, dentre eles os
individuais homogêneos, aplica-se tanto para as demandas individuais de
natureza multitudinária quanto para as ações coletivas. Se, no exercício de
suas funções, os juízes e tribunais tiverem conhecimento de fatos que
possam ensejar a propositura da ação civil coletiva, remeterão peças ao MP
76
para as providências cabíveis .
Nada obstante se entenda que a questão merece aperfeiçoamento
normativo no sentido do Enunciado Cível nº 139 do FONAJE, não há, juridicamente,
como concordar com o teor do referido enunciado.
Com efeito, não se vislumbra nada na redação vigente da Lei nº 9.099/95
que permita excluir da competência dos juizados especiais cíveis ações propostas
por pessoas físicas capazes, tão somente pelo fato de estarem fundamentadas em
interesses individuais homogêneos. Mais ainda quando se tem em foco a finalidade
da lei, de ampliação do acesso à justiça.
Constatado que os juizados especiais cíveis, mesmo quando bem
estruturados e funcionando nos moldes da lei de regência, não têm condições de
suportar o volume de ações individuais repetitivas versando sobre direitos individuais
homogêneos, evidencia-se a inadequação do modelo processual previsto na Lei nº
9.099/95 para o processamento de tais demandas.
2.5
A INADEQUAÇÃO DA LEI Nº 9.099/95 ÀS AÇÕES REPETITIVAS: O RISCO
DE PERDA DE SUA LEGITIMIDADE
A Lei nº 9.099/95, quando criada, sem dúvida correspondia integralmente
à realidade que a justificava. Uma das maiores necessidades sociais, à época, com
a então ainda infante Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, era a
76
Disponível em: <http://www.fonaje.org.br/site/enunciados/>. Acessado em: 30/01/2014.
57
de colocar em prática meios de efetivar as garantias previstas no texto
constitucional, entre elas a do amplo acesso à justiça.
A luta de então era pela criação do direito de qualquer um estar em juízo
quando necessário, destruindo as barreiras econômicas (com, v. g., a isenção de
custas e a dispensa de assistência por advogado em causas de valor igual ou
inferior a vinte salários-mínimos), e garantindo, em causas de menor complexidade,
um processamento rápido, desburocratizado, alcançando-se uma solução justa,
preferencialmente autocomposta, com celeridade.
Pouco se cogitava, à época, mesmo porque até então ainda relativamente
incipientes no Brasil as normas e o manejo das ações coletivas, da utilização dos
juizados especiais como solução para os conflitos versando sobre interesses
individuais homogêneos.
O modelo então adotado derivava, porém mais completo e ampliado, da
Lei nº 7.244/84, que criava e disciplinava os Juizados Especiais de Pequenas
Causas, inspirados em grande parte, por sua vez, nas small claims courts norteamericanas, destinadas essencialmente à composição de conflitos individuais típicos
de menor complexidade e valor.
Sendo um modelo processual voltado aos meios autocompositivos de
solução de conflitos, privilegia a oralidade, exigindo a presença pessoal das partes,
sem a qual as chances de solução consensual diminuem significativamente.
É fácil não só de concluir, como de constatar, que, em milhares de ações
semelhantes versando sobre interesses individuais homogêneos e figurando
grandes empresas no polo passivo, a relação interpessoal exigida para a conciliação
fica prejudicada, seja pela impossibilidade de seu estabelecimento (de hábito quem
comparece pela empresa é algum preposto nomeado de última hora, sem qualquer
conhecimento dos fatos e sem capacidade ou autorização sequer para conversar
sobre termos de eventual acordo), seja porque, para quem figura no pólo passivo,
não se trata de resolver um conflito individual típico com um consumidor, mas de
ínfima parte de um problema maior, envolvendo milhares de consumidores, sobre o
qual a posição jurídica por si adotada deve considerar o volume total das ações.
O próprio rito processual, que contempla a realização de audiência em
todos os casos e a prevê inclusive como marco da resposta, tentando-se
inicialmente a conciliação, denota que a Lei nº 9.099/95 não foi criada para a
58
solução de ações de massa versando sobre interesses individuais homogêneos.
Trata-se de modelo processual, portanto, pensado e elaborado com o
intuito claro de facilitar o acesso à justiça e solucionar o problema da litigiosidade
antes contida em relação a ações tipicamente individuais de menor valor e
complexidade.
Sua evidente finalidade é a solução de conflitos individuais típicos,
inclusive os de consumo, desde que não tratem de interesse individual homogêneo,
como nos clássicos exemplos do eletrodoméstico que apresenta algum defeito de
funcionamento ou da fatura da conta telefônica que ocasionalmente consignou
chamadas não realizadas.
Assim, a falta de correlação entre a solução criada para resolver
problemas de outra natureza e a dificuldade depois surgida (manejo de ações de
massa nos juizados especiais), bem como a decorrente pouca adaptabilidade do
modelo processual vigente à necessidade de solução de milhares de controvérsias
envolvendo interesses individuais homogêneos, levam à nítida conclusão de que os
juizados especiais cíveis não são o nicho adequado para as ações repetitivas ou de
massa.
A matéria, porém, não é nova. Foi tratada em detalhes por destacados
juristas, entre os quais Ricardo Torres Hermann77.
Incomoda, contudo, outra faceta dessa inadequação, que é o risco de
deslegitimação da norma.
Segundo Eros Grau:
[...] o direito é um produto cultural, uma invenção do homem, sendo as
realidades sociais o elemento desde o qual se processa a sua invenção. E
prossegui afirmando que, assim como a sociedade inventa sua cultura,
valora situações objetivas e, diante delas, adota determinados princípios e
ideias das quais defluem sentidos admitidos e consentidos como
convenientes à convivência social. A luta pela criação do direito positivo –
prossegui, ainda – é processada sobre a consideração de tais sentidos. Vale
dizer: a sociedade inventa sua cultura e, a partir dela, sob a pressão das
forças sociais, o legislador cria o direito positivo, que resultará legítimo ou
ilegítimo. Logo, concluí: podemos afirmar que a norma jurídica é legítima –
dotada de legitimidade – quando existir correspondência entre o comando
nela consubstanciado e o sentido admitido e consentido pelo todo social, a
partir da realidade coletada como justificadora do preceito normatizado. A
legitimidade é um conceito material, ao passo que a legalidade é um
conceito formal.
3. Quanto a isso, pouco tenho a alterar, Em verdade, o que posso fazer é
77
HERMANN, Ricardo Torres. O tratamento das demandas de massa nos Juizados Especiais
Cíveis. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Artes
Gráficas, 2010, p. 32-37.
59
simplificar o quanto afirmei, dizendo agora, de outra forma, que dotado de
78
legitimidade é o direito posto que corresponde ao direito pressuposto. [...] .
Rudolph von Ihering, anteriormente, referindo-se à relação entre o direito
subjetivo e o direito objetivo, lecionava:
Creio reproduzir fielmente a ideia corrente, ao dizer que a mencionada
relação existe reside no fato de que o direito objetivo é condição ou
pressuposto do direito subjetivo. O direito concreto, ou subjetivo, só pode
efetivar-se quando estão presentes os pressupostos dos quais o direito
abstrato necessita para existir. Conforme a teoria dominante, esse vínculo
abrange as relações entre os dois tipos de direito, mas esse modo de ver o
mundo jurídico é, sem dúvida, unilateral, pois ressalta apenas a
dependência do direito concreto, ou subjetivo, em relação ao direito
abstrato, ou objetivo, omitindo, além disso, o fato de que tal relação de
dependência se forma com igual intensidade em sentido inverso. O direito
concreto recebe não somente vida e força do direito abstrato, como também
79
lhe devolve esses elementos .
Conforme acima se afirmou, e ora se repete, a Lei nº 9.099/95, quando
criada, e pelos primeiros anos que se seguiram, correspondia integralmente à
realidade que a justificava. Sem dúvida era dotada de legitimidade plena e estava
visceralmente concorde com a necessidade e o anseio sociais.
Apesar do fenômeno das ações de massa nos juizados especiais, estes
seguem correspondendo ao admitido, consentido e esperado pelo todo social, tanto
que ainda gozam de credibilidade popular. Portanto, a Lei nº 9.099/95 ainda não
perdeu sua legitimidade nem, a adotar-se o critério de IHERING acima transcrito,
sua efetividade e, pois, seu caráter de norma.
Mas até quando, a persistir a geometricamente crescente sobrecarga dos
juizados especiais cíveis com ações de massa, estes terão efetividade? Até quando
continuará a existir a mútua alimentação de força e vida entre o direito concreto e o
direito abstrato? Até quando persistirá a legitimidade – conceito material, conforme já
se viu na passagem de Eros Grau acima citada – da Lei nº 9.099/95? Até quando o
direito pressuposto corresponderá ao direito posto?
A permanecer o agigantamento das ações de massa nos juizados
especiais sem que adaptações normativas sejam feitas, sua deslegitimação, ou
perda de legitimidade, é certa.
Pense-se, por exemplo, numa ação versando sobre um acidente de
78
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8. ed. rev. e ampl. São Paulo:
Malheiros, 2011, p. 85-86.
79
IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. 7. ed. revista da tradução de J. Cretella Jr. e Agnes
Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 79.
60
trânsito de pouca monta que tenha sido aforada imediatamente após o ajuizamento
de dezenas de milhares de ações versando sobre os mesmos interesses individuais
homogêneos. A seguir-se o critério cronológico, e dependendo da estrutura da
unidade judiciária e número de conciliadores de que disponha, a ação tipicamente
individual, tratando do acidente de trânsito, caso evidente de adequação ao modelo
processual dos juizados especiais, teria sua primeira audiência marcada para anos à
frente, prejudicado o seu trâmite por milhares de feitos que, a rigor, deveriam estar
condensados em ação coletiva única no juízo ordinário.
O amplo acesso à justiça, em seu aspecto de célere e justa solução ao
conflito, razão mesma da criação e existência dos juizados especiais, terá sido
sepultado.
A desburocratização, a rapidez, a simplicidade, a facilitação da
autocomposição, em causas cíveis de menor complexidade, todos feridos de morte.
E tal quadro fático não será outro que o da deslegitimação completa da Lei nº
9.099/95, ao menos em sua parte cível, que se terá então tornado nada mais, para
utilizar novamente a expressão de Rudolf von Ihering, que “[...] uma roda emperrada
do mecanismo jurídico, e que, por essa inércia, em nada contribui para seu
funcionamento, podendo, pois, ser suprimida sem que isso produza qualquer
prejuízo.”80
Há necessidade, entretanto, de se olhar os fatos com alguma atenção. A
realidade que justificou a criação dos juizados especiais não se alterou. A base fática
legitimadora da norma essencialmente não se modificou. Afinal, ainda, e cada vez
mais, é necessário garantir o amplo acesso à justiça e a solução célere e justa às
causas cíveis tipicamente individuais de menor complexidade.
O que se verifica não é propriamente o esmaecimento gradual dos
elementos fáticos legitimadores do sistema, que seguem existindo e com força, mas
o surgimento de um novo fato, um novo fenômeno, qual seja, a litigância em massa
nos juizados especiais, que não substituiu os fatos e necessidades mais antigos,
mas a eles se agrega. Com efeito, este novo fenômeno fático somou-se à realidade
até então vigente, sem desconstituir as necessidades e anseios sociais que
ensejaram a criação do sistema de juizados especiais.
Assim sendo, o risco de deslegitimação dos juizados especiais cíveis não
80
IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. 7. ed. revista da tradução de J. Cretella Jr. e Agnes
Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 79.
61
reside em eventual anacronismo do direito pressuposto e nem sequer exata e
totalmente do direito posto. Isto porque o modelo processual previsto na lei de
regência dos juizados especiais, assim como antes do fenômeno da litigância em
massa, continua adequado, repita-se, à garantia do amplo acesso à justiça em
relação às causas cíveis tipicamente individuais de menor complexidade.
O descompasso do modelo processual ora tratado, pois, não existe em
relação aos fatos que ensejaram a sua criação, ainda atuais, mas ao fenômeno
posterior de litigância em massa, que criou novas necessidades e acabou por afetar
o bom funcionamento do modelo em relação às necessidades para as quais ele foi
criado, ainda vigentes.
Pode-se afirmar, sem maior risco de equívoco, que a litigância em massa,
estranha ao direito pressuposto dos juizados especiais cíveis, contaminou-os a
ponto de comprometer sua efetividade, porque o sistema acabou absorvendo uma
demanda que não corresponde àquela para qual nasceu.
Em outros termos, o risco de deslegitimação dos juizados especiais cíveis
encontra-se na crescente, e por ora inevitável, aceitação geral do desvirtuamento do
direito posto para atender a outro direito pressuposto, diferente daquele que lhe
corresponde. Dizendo-se o mesmo de forma mais simples, corre-se o risco de ter um
direito posto cuja desvirtuamento não corresponda a nenhum dos dois direitos
pressupostos em questão.
Tal constatação parece ser de fundamental importância na medida em
que, se o direito pressuposto correspondente à norma vigente estivesse superado,
ou se esta não mais correspondesse àquela, seria simples caso de revogá-la.
Não é, contudo, o caso. Invertendo-se a ordem da ideia, imagine-se que,
revogada hoje a Lei nº 9.099/95, surgiria a imediata necessidade da criação de outro
sistema assemelhado, que garantisse o amplo acesso à justiça, com soluções
céleres para as causas de menor complexidade e valor, envolvendo conflitos
tipicamente individuais. Afinal, há décadas já se sabe que os juízos ordinários não
contemplam adequadamente essa parcela dos litígios. Logo, a necessidade e anseio
sociais ainda existem.
Visto isso, parece ser possível e até de pouca complexidade evitar esse
risco de deslegitimação dos juizados especiais cíveis, realinhando-os às suas
finalidades primordiais e conservando-os conectados à realidade, cada vez mais
62
viva, que os inspirou.
Modificar legislativamente o direito posto para adequar os juizados
especiais cíveis à recepção e processamento das demandas repetitivas não parece
ser a melhor solução, pois, conforme exaustivamente já se afirmou, o direito
pressuposto ensejador da norma não corresponde minimamente ao novo direito
pressuposto surgido.
O Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE), sempre atento às
dificuldades enfrentadas por estes, acabou por emitir o Enunciado Cível nº 139,
acima transcrito, fornecendo com isso uma orientação preciosa.
Entretanto, o fato é que a Lei nº 9.099/95 não exclui expressamente as
demandas individuais repetitivas, fundadas em direitos individuais homogêneos, de
sua competência. Não o fazendo, parece difícil estender a interpretação das normas
pertinentes ao alcance pretendido pelo referido enunciado.
Desse modo, e sem nenhuma pretensão de esgotar o debate, uma
alternativa para se evitar a perda de legitimidade dos juizados especiais cíveis que
se avizinha, pelo desvirtuamento da sua lei de regência, parece ser pequena
alteração no direito posto para que contemple aquilo que já integrava o direito
pressuposto que lhe corresponde desde sua criação, excluindo-se expressamente a
competência dos juizados especiais cíveis para demandas individuais baseadas em
interesses individuais homogêneos.
Os anseios do todo social no tocante aos interesses individuais
homogêneos e à litigância de massa, assim, seriam contemplados pelo juízo
ordinário, até a criação de direito posto que correspondesse a esse direito
pressuposto,
preservando-se
os
juizados
especiais
cíveis
do
risco
de
deslegitimação.
2.6
O JULGAMENTO LIMINAR NAS AÇÕES REPETITIVAS
Em 2006 foi incorporado ao processo civil brasileiro o art. 285-A no
Código de Processo Civil, que prevê:
Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no
juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros
casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença,
reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.
§ 1º - Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco)
dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação.
63
§ 2º - Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para
81
responder ao recurso.
A inovação buscou criar técnicas processuais voltadas a maior celeridade
processual, a fim de, especialmente, concretizar a razoável duração do processo,
garantia constitucional estudada anteriormente.
Um dos notórios objetivos das extensas reformas empreendidas nas leis
processuais para debelar o que se costuma designar de ‘crise da justiça’
consiste na celeridade. Apesar de vulgar, a fórmula ‘crise da justiça’ soa
excessiva e imprópria. Induz à crença que a justiça em si perdeu-se em
algum escaninho burocrático. Na verdade, busca-se nela expressar que a
prestação jurisdicional prometida pelo Estado, no Brasil e alhures, tarda
82
mais do que o devido, frustrando as expectativas dos interessados.
“A técnica do artigo 285-A do CPC visa abreviar o procedimento quando a
questão controvertida é unicamente de direito e o juiz já firmou o convencimento, em
casos anteriores.”
83
Tal instituto “deve ser compreendido na busca de maior racionalidade e
celeridade na prestação jurisdicional, eficiência, em última análise, nos casos em
que há decisão desfavorável a tese levada nova e repetitivamente para solução
perante o Estado-juiz.” 84
O dispositivo em comento facilita o julgamento de casos idênticos, sem
ociosas repetições, bem como encontra respaldo nos princípios orientadores dos
Juizados Especiais Cíveis, revelando-se valiosa ferramenta para a realidade forense,
que se depara com processos repetitivos que se alastram vertiginosamente.
O julgamento liminar “se preocupa em racionalizar a administração da
justiça diante dos processos que repetem teses consolidadas pelo juiz de primeiro
81
Artigo acrescentado pela Lei nº 11.277/2006, de 07 de fevereiro de 2006. Publicada no Diário
Oficial da União em 08 de fevereiro de 2006 e em vigor 90 (noventa) dias após a data de sua
publicação.
82
ASSIS, Araken. Duração razoável do processo e reformas da lei processual civil. In Processo e
Constituição. Estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. Coord. Luiz Fux,
Nelson Nery Jr. E Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2006, p. 196.
83
CAMBI, Eduardo. Julgamento prima facie (imediato) pela técnica do artigo 285-A do CPC. In
Direito e Processo. Estudos em homenagem ao desembargador Norberto Ungaretti. Cood. Pedro
Manoel Abreu e Pedro Miranda de Oliveira. Florianópolis: Conceito Editoral, 2007, p. 497.
84
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: procedimento
comum ordinário e sumário. 2. v. tomo I. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 125.
64
grau ou pelos tribunais”85.
Busca-se “racionalizar a prestação jurisdicional no âmbito dos “processos
repetitivos”, assim consideradas as relações processuais com sujeitos diversos, mas
causas de pedir e pedidos idênticos”. 86
O Ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, ao encaminhar o Projeto de
Lei ao Presidente da República, argumentou:
[...] De há muito surgem propostas e sugestões, nos mais variados âmbitos
e setores, de reforma do processo civil. Manifestações de entidades
representativas, como o Instituto Brasileiro de Direito Processual, a
Associação dos Magistrados Brasileiros, a Associação dos Juízes Federais
do Brasil, de órgãos do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do próprio
Poder Executivo são acordes em afirmar a necessidade de alteração de
dispositivos do Código de Processo Civil e da lei de juizados especiais, para
conferir eficiência à tramitação de feitos e evitar a morosidade que
atualmente caracteriza a atividade em questão. 4. A proposta vai nesse
sentido ao criar mecanismo que permite ao juiz, nos casos de processos
repetitivos, em que a matéria controvertida for unicamente de direito, e no
juízo já houver sentença de total improcedência, dispensar a citação e
proferir decisão reproduzindo a anteriormente prolatada. 5. A sugestão
encontra-se acorde com os preceitos que orientam a política legislativa de
reforma infra-constitucional do processo, ressaltando que a proposta
resguarda o direito do autor apelar da decisão, possibilitando, ainda, a
cassação da mesma pelo juiz, e o prosseguimento da demanda em primeira
instância. 6. Estas, Senhor Presidente, as razões que me levam a submeter
a anexa proposta ao elevado descortino de Vossa Excelência, acreditando
que, se aceita, estará contribuindo para a efetivação das medidas que se
fazem necessárias para conferir celeridade ao ritos do processo civil.
A finalidade é
economizar atividade processual, já que os contornos da demanda
conduziriam, considerados os processos anteriores, a inevitável juízo de
improcedência. Assim, com o desprovimento anterior á própria citação,
pretende-se tornar mais célere a prestação jurisdicional, sendo evitada a
87
realização de atividade processual cognitiva inútil.
Porém, a aplicação da técnica analisada é uma faculdade do magistrado,
consoante anota Ataíde Júnior:
Não há qualquer obrigatoriedade em se utilizar o instituto. O juiz, mesmo
sabendo da existência, no juízo, de sentença de total improcedência em
casos idênticos, poderá ordenar a citação e processar normalmente a
85
MARINONI, Luiz Guilherme. Ações repetitivas e julgamento liminar. In: Direito e processo.
Estudos em homenagem ao desembargador Norberto Ungaretti. Cood. Pedro Manoel Abreu e Pedro
Miranda de Oliveira. 1. ed. 2. tir. Florianópolis: Conceito Editoral, 2007, p. 676.
86
SILVA, Ricardo Alexandre da. Anotações sobre o artigo 285-A do código de processo civil. In:
Direito e processo. Estudos em homenagem ao desembargador Norberto Ungaretti. Cood. Pedro
Manoel Abreu e Pedro Miranda de Oliveira. 1. ed. 2. tir. Florianópolis: Conceito Editoral, 2007, p. 817.
87
SILVA, Ricardo Alexandre da. Anotações sobre o artigo 285-A do código de processo civil. In:
Direito e processo. Estudos em homenagem ao desembargador Norberto Ungaretti. Cood. Pedro
Manoel Abreu e Pedro Miranda de Oliveira. 1. ed. 2. tir. Florianópolis: Conceito Editoral, 2007, p. 817.
65
causa. Provavelmente, julgará antecipadamente a lide, com base no art.
330, I do CPC. E é provável, até, que decida da mesma forma que a
88
sentença paradigma.
Os requisitos indispensáveis para o julgamento liminar são: a) a causa
verse sobre questão unicamente de direito, b) existam precedentes do mesmo juízo
e c) julgamentos anteriores de improcedência do pedido.
Critica-se a terminologia empregada pelo legislador quanto à primeira
exigência, porquanto “antes da citação, não haveria matéria controvertida. No
entanto, a interpretação do artigo permite encontrar seu sentido: deve ser
unicamente de direito a matéria deduzida na petição inicial como causa de pedir.”
89
O dispositivo reclama, para sua incidência,
que a questão jurídica, a tese jurídica, predomine sobre eventuais questões
de fato. É isto que deve ser entendido como “matéria controvertida
unicamente de direito”. São aqueles casos que se caracterizam muito mais
pela questão jurídica do que por qualquer peculiaridade fática. É o que se
dá, entre outros, com os casos de complemento de aposentadoria,
inconstitucionalidade de tributo; abusividade de uma específica cláusula de
90
contrato de adesão ou índices de correção monetária.
Sob esse enfoque, as matérias que versam unicamente sobre matéria de
direito são as hipóteses que a prática forense levará sempre ao julgamento
antecipado da linde, nos termos do art. 330, I, do Código de Processo Civil,
exatamente porque a questão a ser resolvida é predominantemente de direito e os
fatos, em si considerados, nada tem de peculiar ou característico.
O professor Cassio Scarpinella Bueno anota:
Não é desnecessário acentuar que não há, propriamente, uma questão
unicamente de direito no sentido que consta da regra aqui comentada. Ela,
a questão, é, no máximo, predominantemente de direito porque a mera
existência de um autor, de um réu e de um substrato fático que reclama a
incidência de uma norma jurídica já é suficiente para que haja questão de
fato no caso concreto. Mas, e aqui reside o que releva para compreensão
do art. 285-A, esta questão de fato alheia a qualquer questionamento, a
qualquer dúvida, ela é padronizada ou, quando menos, padronizável; ela, a
situação de fato, traz, em si, maiores questionamentos quanto à sua
existência, seus contornos e seus limites. O que predomina, assim, é saber
qual o direito aplicável sobre aqueles fatos que não geram dúvidas, que não
88
ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. As novas reformas do processo civil. Curitiba: Juruá, 2006,
p. 85.
89
ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. As novas reformas do processo civil. Curitiba: Juruá, 2006,
p. 81-82.
90
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: procedimento
comum ordinário e sumário. 2. v. tomo I. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 127.
66
geram controvérsia possível ou séria entre as partes perante o juiz.
91
Cambi acrescenta:
A questão é exclusivamente de direito quando recai sobre a interpretação
das regras e dos princípios jurídicos aplicáveis a fatos incontroversos. Não
se pergunta se e como o fato aconteceu, mas quais são as suas
repercussões jurídicas. Dado o fato questiona-se, apenas, se e como
determinadas regras ou princípios lhe são aplicáveis. Por exemplo, quando
de discute se a cobrança de um dado tributo é constitucional, quer-se
apenas que o Poder Judiciário se pronuncie sobre a validade de uma
92
determinada regra infraconstitucional em relação à Constituição.
A identificação de casos semelhantes, para a correta incidência do art.
285-A do CPC, “relaciona-se com a questão exclusivamente de direito, ou seja, só
se justifica a improcedência prima facie, se o julgamento padrão, também de
improcedência, teve fundamento básico em matéria de direito.”
93
Afinal, envolvendo questões de fato, “as particularidades do caso concreto
poderão importar soluções diferentes, de modo que a conclusão lançada em um
processo pode não servir para o outro.” 94
No tocante ao segundo requisito,
A lei fala em casos idênticos. Também aqui se critica a redação empregada
no artigo: em função da litispendência ou da coisa julgada, não é possível
julgar caso idêntico, que é aquele que apresenta identidade de partes,
causa de pedir e pedido (CPC, art. 301, § 2º). Obviamente, não é isso que a
normas dispõe. Os casos idênticos são aqueles que conservam entre si,
apenas, a identidade de teses jurídicas, de modo que, tanto em relação a
um caso, como em relação a outro, a matéria de direito é a mesma. Não
haverá necessidade de identidade de partes e, nem mesmo, de pedido, pois
a solução a dar, em qualquer hipótese, seria a mesma: improcedência em
95
função da tese jurídica defendida.
Anote-se que não são casos idênticos aqueles relativos a uma mesma
tese jurídica, que, no entanto, pode ser genericamente aplicada a uma variedade de
casos.
91
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: procedimento
comum ordinário e sumário. 2. v. tomo I. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 127-128.
92
CAMBI, Eduardo. Julgamento prima facie (imediato) pela técnica do artigo 285-A do CPC. In
Direito e Processo. Estudos em homenagem ao desembargador Norberto Ungaretti. Cood. Pedro
Manoel Abreu e Pedro Miranda de Oliveira. Florianópolis: Conceito Editoral, 2007, p. 499.
93
SANTOS, Ernane Fidélis dos. As reformas de 2005 e 2006 do Código de Processo Civil. 2. ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, 146.
94
MARINONI, Luiz Guilherme. Ações repetitivas e julgamento liminar. In: Direito e processo.
Estudos em homenagem ao desembargador Norberto Ungaretti. Cood. Pedro Manoel Abreu e Pedro
Miranda de Oliveira. 1. ed. 2. tir. Florianópolis: Conceito Editoral, 2007, p. 678.
95
ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. As novas reformas do processo civil. Curitiba: Juruá, 2006,
p. 83-84.
67
Por exemplo, se o juiz rejeitou uma ação de indenização por danos
morais decorrente de protesto indevido de duplicata, porque o autor
já tinha outros títulos protestados, não poderá valer-se da mesma
tese jurídica para rejeitar ação de indenização por danos morais por
apresentação de cheque pós-datado antes da data aprazada, em
caso que o autor já tinha outros cheques devolvidos por falta de
fundos. Assim, em situações como a ora exemplificada, muito
embora o mesmo raciocínio jurídico possa ser usado pelo juiz,
mutatis mutandis, na sentença na segunda ação, tais causas não
serão idênticas, não se autorizando a incidência do art. 285-A. 96
Para configuração de casos idênticos, os fundamentos fáticos e jurídicos
que compõem a causa de pedir e o pedido devem ser os mesmos, visto que tais
argumentos irão figurar na motivação e no dispositivo da sentença. Portanto, casos
idênticos, como preleciona o texto legal, não correspondem a ações idênticas.
Anote-se que a aplicação do instituto em análise não se presta para
acolher o pedido inicial, apenas para rejeitá-lo.
Insta anotar a inexistência de sentença de total improcedência, porque o
julgamento de improcedência é sempre total, à medida em que não há julgamento
improcedente em parte.
Quando o juiz julga procedente, em parte, uma ação é porque ela é
também em parte improcedente. Portanto, o que quis dizer o artigo
em questão é que apenas na hipótese se improcedência (que é
sempre total), procede-se ao julgamento antecipado da lide; não, na
hipótese de procedência parcial, caso em que o processo segue o
rito comum (sumário ou ordinário).97
Outra exigência da lei é que para seu emprego deverão ter sido julgados
outros casos idênticos. Portanto, deve existir pelo menos duas ou mais decisões de
improcedência sobre o caso idêntico.
Humberto Theodoro Júnior anota:
Essa identidade de pedido e causa de pedir deduz-se da exigência do art.
285-A de que o julgamento prima facie de improcedência das demandas
seriadas se faça mediante reprodução do “teor da sentença anteriormente
prolatada”. Não haverá essa reprodução quando, para rejeitar a nova
demanda, o juiz tiver que fazer diferentes colocações fáticas e jurídicas para
96
WAMBIER, Luiz Rodrigues. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. MEDINA, José Miguel Garcia.
Breves comentários à nova sistemática processual civil, II: Leis 11.187/2005, 11.232/2005,
11.276/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 68.
97
ALVIM, José Eduardo Carreira. Alterações do código de processo civil. 2. ed. rev. e atual. até a
Lei nº 11.280/06. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 80-81.
68
adaptar-se à conclusão da sentença anterior.
98
Referido conceito,
permite extrair o maior proveito possível da nova regra, no sentido de
agilidade e de presteza jurisdicionais. Se, na comarca ou na subseção
judiciária, qualquer juiz tenha proferido sentença de total improcedência em
causa cuja matéria é somente de direito, os demais juízes poderão usar
essa sentença paradigma em casos idênticos, caso concordem com seus
termos, aplicando a regra do art. 285-A do CPC. Assim, o juiz substituto
poderá usar a sentença paradigma proferida pelo juiz titular da vara, como
ambos poderão usar as sentenças paradigmas proferidas por juízes
substitutos ou titulares de outras varas, desde que pertencentes à mesma
99
comarca ou subseção judiciária.
Conquanto prolatada sentença sem a citação do réu, o julgamento de
improcedência liminar das causas repetitivas configura, sem dúvida, uma sentença,
como inclusive dispõe textualmente o art. 285-A do CPC.
Assim, a impugnação à sentença far-se-á através de recurso de apelação,
todavia com processamento que escapa dos padrões dessa modalidade recursal.
Dispõe o artigo mencionado o juízo de retratação, exercitável pelo juiz
prolator da sentença, revelando-se lícito ao juiz manter ou não a sentença prima
facie.
Contudo, não se trata de um juízo de retratação tal qual o do art. 296 do
CPC. “Na regra nova, o juiz não reforma a sentença, mas se limita a não mantê-la,
apenas porque se convenceu, pelas razões recursais, de que não seria caso de
aplicar o art. 285-A do CPC”. 100
Na hipótese de manutenção da sentença será ordenada a citação do réu
para apresentar contrarrazões ao recurso de apelação.
Anote-se que:
a citação não será para a resposta comum, como para dar prosseguimento
à ação, cuja omissão caracterizaria revelia. Será para responder ao recurso
de apelação, não para contestar. Se não houver a resposta à apelação, não
haverá revelia, muito menos confissão ficta. Não é demais lembrar que a
101
sentença de mérito já foi proferida e o réu foi o “vencedor”.
98
os
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil: Leis n
11.187, de 19.10.2005; 11.232, de 22.12.2005; 11.276 e 11277, de 07.02.2006; e 11.280, de
16.02.2006. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 16.
99
ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. As novas reformas do processo civil. Curitiba: Juruá, 2006,
p. 83.
100
ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. As novas reformas do processo civil. Curitiba: Juruá,
2006, p. 86.
101
ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. As novas reformas do processo civil. Curitiba: Juruá,
2006, p. 87.
69
Marinoni aponta os argumentos a serem levantados pelas partes no
reclamo:
O autor, no recurso de apelação, poderá argumentar que o seu caso
concreto não se enquadra na decisão tomara como parâmetro e/ou que a
decisão proferida pelo juízo de primeiro grau no caso idêntico não está de
acordo com o ordenamento jurídico – ou não é justa –, devendo, em razão
de qualquer um desses argumentos, ser reformada. Após citado,
obviamente, o réu, porque tem o direito de rebater a totalidade dos
argumentos da apelação, poder dizer, i) no caso em que a decisão de
fundar em sentença do juízo singular, ia) que o caso concreto realmente se
amolda à decisão tomada como parâmetro, e/ou ib) que essa decisão é
justa; e, ii) no caso em que a decisão se funda em súmula, iia) que o caso
concreto se enquadra na súmula, e/ou iib) que o recorrente não trouxe
novos fundamentos capazes de permitir a análise da súmula, e/ou iic) que a
102
súmula em que a rejeição liminar se baseou não deve ser reformada.
Nesse contexto, a fixação e aplicação imediata de tese jurídica padrão
contribui para a realização do direito fundamental à razoável duração do processo.
Ataide Junior anota:
As primeiras vozes críticas sobre o novo instituto argumentam que a regra
instituída viola os princípios constitucionais do contraditório e do devido
processo legal. Não parece que assim seja. Primeiro, porque mesmo esses
sagrados princípios não são absolutos e devem se ajustar a outros, da
mesma magnitude constitucional, como o que estabelece a razoabilidade na
duração do processo e o que impõe a existência de meios que garantam a
celeridade processual. Segundo, porque o contraditório se demonstra
irrecusável quando o processo significar qualquer abalo à situação jurídica
do réu, coisa que não acontece quando a sentença é de total
improcedência. Já se Sade, de antemão, que nenhuma alteração na esfera
jurídica do réu acontecerá. E, mesmo assim, o contraditório não é
totalmente dispensado na espécie, pois, havendo apelação, o réu será
citado para responder, considerando que o tribunal poderá reformar a
sentença de primeiro grau. Apresenta-se, aqui, o contraditório diferido, como
103
regra de harmonização dos princípios constitucionais.
E mais,
no contexto da perspectiva metodológica da instrumentalidade do processo,
mostra-se um zelo excessivo pela forma (formalismo) a imperiosidade de
compelir o juiz a antes de citar o demandado para, depois, julgar a causa.
Se assim fosse, técnicas processuais de abreviação do procedimento, como
a contida nos artigos 295 e 296 do CPC, que permitem ao juiz indeferir a
petição inicial, por exemplo, em razão da prescrição ou da decadência,
também seriam inconstitucionais. O direito de ação não pode mais ser
considerado de forma tão abstrata e uniforme que desconsidere o direito
material a ser tutelado. O direito de ação está voltado à obtenção da tutela
102
MARINONI, Luiz Guilherme. Ações repetitivas e julgamento liminar. In: Direito e processo.
Estudos em homenagem ao desembargador Norberto Ungaretti. Cood. Pedro Manoel Abreu e Pedro
Miranda de Oliveira. 1. ed. 2. tir. Florianópolis: Conceito Editoral, 2007, p. 680.
103
ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. As novas reformas do processo civil. Curitiba: Juruá,
2006, p. 80-81.
70
dos direitos materiais. O artigo 5º, inciso XXXV, da CF assegura o direito
fundamental à jurisdicional adequada, célere e efetiva, o qual para ser
concretizado pode implicar restrições ao direito de ação. A concepção da
ação, fundada na teoria dos direitos fundamentais, deve estar preocupada
com a tutela adequada dos direitos materiais, podendo ser construída no
caso concreto, a partir da pretensão à tutela jurisdicional do direito e da
causa de pedir. Destarte, se a pretensão à tutela jurisdicional é inviável, pois
a causa de pedir remota revela que a matéria é unicamente de direito e que
em outros casos idênticos o órgão julgador já se manifestou contrariamente
à pretensão, promover a citação para simplesmente se desincumbir de um
requisito formal é descumprir a Constituição, colocando obstáculos não
104
razoáveis ao acesso à justiça.
A multiplicação de ações repetitivas desacredita o Poder Judiciário, já
combalido pelos problemas estruturais do país, e a aplicação do art. 285-A do CPC
encontra amparo em princípios constitucionais e na realidade forense.
2.7
O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS NO NOVO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Mesmo com a existência de mecanismos voltados às tutelas coletivas,
observa-se que o regime que as rege não se confunde com o individual,
remanescendo as demandas de massa, com fundamento na mesma tese jurídica, a
exigir tratamento diferenciado, a fim de garantir maior racionalização nos
julgamentos.
A atividade econômica moderna, corolário do desenvolvimento do sistema
de produção e distribuição em série de bens, conduziu à insuficiência do Judiciário
para atender ao crescente número de feitos que, no mais das vezes, repetem
situações pessoais idênticas, acarretando a tramitação de significativo número de
ações coincidentes em seu objeto e na razão de seu ajuizamento105.
Nessa linha, o recém aprovado Código de Processo Civil, observando a
realidade forense, traz importantíssima novidade que exige conhecimento a
aplicação conforme à Constituição e às normas fundamentais: o incidente de
resolução de demandas repetitivas (IRDR).
Prevê o art. 976 do Novo Código de Processo Civil:
104
CAMBI, Eduardo. Julgamento prima facie (imediato) pela técnica do artigo 285-A do CPC. In:
Direito e processo. Estudos em homenagem ao desembargador Norberto Ungaretti. Cood. Pedro
Manoel Abreu e Pedro Miranda de Oliveira. Florianópolis: Conceito Editoral, 2007, p. 498.
105
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. O regime processual das causas repetitivas. Revista de
Processo. São Paulo: RT, jan. 2010, v. 179, p. 139-174.
71
Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas
repetitivas quando houver, simultaneamente:
I - efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a
mesma questão unicamente de direito;
II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
§ 1o A desistência ou o abandono do processo não impede o exame de
mérito do incidente.
o
§ 2 Se não for o requerente, o Ministério Público intervirá obrigatoriamente
no incidente e deverá assumir sua titularidade em caso de desistência
ou de abandono.
§ 3o A inadmissão do incidente de resolução de demandas repetitivas por
ausência de qualquer de seus pressupostos de admissibilidade não
impede que, uma vez satisfeito o requisito, seja o incidente novamente
suscitado.
o
§ 4 É incabível o incidente de resolução de demandas repetitivas quando
um dos tribunais superiores, no âmbito de sua respectiva competência,
já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito
material ou processual repetitiva.
§ 5o Não serão exigidas custas processuais no incidente de resolução de
demandas repetitivas.
Técnica semelhante já é abordada no CPC vigente (art. 285-A do CPC).
Ambos regramentos visam dimensionar os litígios repetitivos mediante um
procedimento padrão, cabendo ao magistrado aplicar o modelo decisório de acordo
com as peculiaridades de cada caso.
Acredita-se que o novo instituto auxiliará na qualidade e quantidade dos
julgados de ações de massa, especialmente em razão dos objetivos declarados da
reforma processual e significativo rompimento com a ordem atual, garantindo-se o
contraditório, a isonomia e a segurança jurídica, bem como afastando-se o elemento
surpresa dos julgados em casos idênticos.
Para tal, não se poderá instaurar o incidente antes da demonstração da
efetiva repetição, com a indicação de pendência de recursos ou processos no
Tribunal ou a identificação de divergência demonstrada a partir de julgamentos
ocorridos em causas envolvendo teses jurídicas similares, permitindo uma
abordagem panorâmica do litígio repetitivo.
O inciso I do art. 976 do novo CPC exige que os processos contenham
controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito. Ainda, a instauração do
incidente pressupõe risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, conforme
preceitua o inciso II do art. 976.
Julgado o incidente, a tese será aplicada a todos os processos individuais
ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de
72
jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados
especiais do respectivo Estado ou região, assim como aos casos futuros que versem
idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do
tribunal, salvo revisão na forma do art. 986, conforme preleciona o art. 985 do novo
CPC.
Embora o texto encaminhado pelo Congresso para a Presidente da
República regulasse o uso do instituto apenas pela justiça ordinária, a regra
aprovada admitiu o incidente de resolução de demandas repetitivas também nos
juizados especiais, garantindo a efetivação da razoável duração do processo, que
também encontra supedâneo no art. 2º da Lei 9.099/95.
A respeito leciona Bueno:
Importa evidenciar que o inciso I do art. 985 estabelece que a aplicação do
quanto julgado no Incidente se dará também no âmbito dos Juizados
Especiais. A questão merece reflexão mais demorada porque, em rigor, o
órgão de segundo grau de jurisdição dos Juizados Especiais não são os
Tribunais de Justiça nem os Tribunais Regionais Federais, mas as Turmas
ou Colégios Recursais. A solução dada pelo novo CPC é,
inquestionavelmente, a mais prática e “lógica”, fazendo eco, até mesmo, À
Resolução n. 12/2009 do STJ, que, em última análise, permite que aquele
Tribunal controle o conteúdo das decisões proferidas no âmbito dos
Juizados Especiais de todo o país por intermédio de reclamações.
Todavia, não há como deixar de lado a configuração dada aos Juizados
Especiais pelo art. 98, I, da CF, a impor, destarte, necessária (e prévia)
revisão daquele modelo constitucional e do sistema de competência dele
extraível para, depois, viabilizar que a lei (e não ato administrativo de
Tribunal, ainda que o STJ) estabeleça técnicas de uniformização de
106
jurisprudência aplicáveis também aos Juizados Especiais.
O §2º do art. 985 do novo Código de processo Civil prevê que não
observada a tese adotada no incidente, caberá reclamação e se o incidente tiver por
objeto questão relativa a prestação de serviço concedido, permitido ou autorizado, o
resultado do julgamento será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora
competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos a
regulação, da tese adotada.
Mencionada conduta possui papel relevante, vejamos.
Trata-se de iniciativa importante que, ao estabelecer indispensável
cooperação entre o órgão jurisdicional e as pessoas, os entese/ou órgãos
administrativos, cria condições de efetividade do quanto decidido no âmbito
jurisdicional e, neste sentido, traz à mente o disposto no art. 4º do novo
CPC que, pertinentemente, não se contenta tão só com a declaração do
direito, mas também com sua concretização. Ademais, se esta fiscalização
106
BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva,
2015, p. 629.
73
for efetiva, como se espera, reduz-se os riscos de nova judicialização do
conflito e, com isto, dá-se passo importante em direção a um mecanismo
mais racional de distribuição de justiça, inclusive na perspectiva dos meios
alternativos/adequados difundidos desde o art. 3º do novo CPC. Que os
entes administrativos façam, como devem fazer, a sua parte e que o novo
107
CPC sirva de mola propulsora a tanto.
A norma estudada revela o comprometimento da sociedade acadêmica
com os valores ínsitos à ordem constitucional, aliados aos direitos fundamentais do
Estado Social, reforçando a preocupação com a entrega eficaz da tutela jurisdicional
a casos semelhantes.
Sem dúvidas, o acesso à Justiça deve ser concebido não como mera
admissão ao processo, mas como pacificação com justiça, que não pode ser obtido
pelo tratamento equivocado de demandas repetidas como ações individuais108.
Na atual ordem jurídica, é preciso que as soluções de casos com a
mesma fundamentação jurídica tenham uniformidade e previsibilidade, garantindo
maior racionalização no julgamento desses litígios, que deverão ter a mesma
conclusão.
2.8
A IMPORTÂNCIA DAS AGÊNCIAS REGULADORAS NA PRESERVAÇÃO DA
EFETIVIDADE DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS
Não é tarefa fácil propor soluções e, bem por isso, como já mencionado
anteriormente, não é o escopo deste trabalho.
Contudo, o estudo, a observação e a experiência levam inevitavelmente a
certas constatações que aparentemente são óbvias, mas, crê-se, merecem ser
mencionadas.
O que evitaria, antes de mais nada, o ajuizamento de milhares de ações
repetitivas nos juizados especiais, sobre temas distintos, mas invariavelmente
versando sobre direitos individuais homogêneos em matéria de direito do
consumidor?
A resposta mais evidente seria o respeito voluntário, pelas grandes
empresas fornecedoras de bens e serviços, dos direitos dos consumidores, e,
107
BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva,
2015, p. 629.
108
CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER. Teoria geral do processo. 21. ed. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 35-36.
74
eventualmente, adotarem procedimentos que deixem o mínimo de dúvidas possíveis
sobre o respeito a tais direitos. Esta observação se faz necessária porque, como se
constatou algumas vezes quando dessas enxurradas de ações, nem sempre a
pacificação da matéria pelos tribunais superiores se deu em benefício do
consumidor.
Assim ocorreu com os processos envolvendo a assinatura básica de
telefonia e, mais recentemente, o scoring de crédito. Não obstante, os pedidos nas
ações que buscavam o reconhecimento das correções de depósitos bancários não
efetuadas em razão de planos econômicos acabaram em boa parte procedentes.
Compelir as grandes empresas a atenderem integralmente os direitos do
consumidor, no Brasil, nunca foi tarefa fácil. Os exemplos mencionados referem-se a
atividades que deveriam ser estritamente controladas pelo poder público, porque se
referem à exploração econômica de serviços essenciais como a telefonia e a
atividade bancária.
No caso, ambas estão sujeitas ao controle estatal direto, por órgãos com
capacidade normativa. Não é diferente com outros demandados habituais nos
juizados especiais cíveis estaduais, também prestadores de serviços essenciais,
como são os planos de saúde, as companhias aéreas, as empresas de água e de
energia elétrica, as de televisão por assinatura e outras.
Todas elas estão sujeitas ao controle direto do Banco Central do Brasil, no
caso dos bancos e outras empresas do mercado financeiro, ou das agências
reguladoras.
Por regulação se pode entender, segundo Aragon Érico Dasso Júnior, “a
imposição de regras que disciplinam a atuação dos agentes econômicos em um
dado mercado” 109. A regulação pode ser estatal ou não-estatal, interessando aqui o
primeiro tipo.
As agências reguladoras foram criadas em momento histórico no qual o
Estado brasileiro se viu compelido, inclusive pelo Fundo Monetário Internacional, a
abrir mão do controle direto de serviços públicos, passando-o à iniciativa privada e
reservando-se o poder-dever de regulação.
A respeito, confira-se o que diz Antônio Carlos Efing:
109
DASSO JR, Aragon Érico. Estado regulador, regulação e agências reguladoras: uma
contribuição
teórica
a
partir
do
caso
brasileiro.
Disponível
em:
<http://www.derecho.usmp.edu.pe/centro_derecho_economia/revista/febrero_2012/
Estado_regulador_Aragon_Dasso_Junior.pdf>. Acessado em 29/06/2015.
75
No fim dos anos 80 e início dos 90, a situação tornou-se insustentável. O
enorme endividamento do Estado comprometeu sobremaneira sua
capacidade de continuar investindo em infraestrutura e manutenção de
serviços essenciais à população, o que impulsionou a tendência de retorno
à maior presença privada no investimento e no desempenho de atividades
de interesse público. Paralelamente, o mesmo endividamento provocou a
busca por empréstimos junto aos órgãos internacionais como o FMI; os
quais, por seu turno, colocavam programas de privatização como condição
para a concessão de seu auxílio. Aí estavam presentes os ingredientes que
resultaram, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, no hodierno
modelo de Estado regulador da economia, com o advento de marcos e
110
agências reguladoras .
Diante de tal contexto histórico, as agências reguladoras, a partir do
modelo norte-americano, foram implantadas no Brasil, dotadas das características
que Leila Cuéllar muito bem destaca:
A criação das agências reguladoras traz consigo o objetivo da instituição de
uma regulação independente, neutra e imparcial, apolítica e técnica. As
agências reguladoras não defendem os interesses do governo, nem os das
empresas reguladas, tampouco os dos consumidores. A regulação é
objetiva e deve se preocupar com o mais eficiente desenvolvimento da
atividade econômica a ela submetida como forma de implementar a política
pública definida pelos órgãos administrativos e legislativos competentes.
Devem as agências concretizar essa função objetiva de regulação técnica
com vistas à concretização das finalidades públicas ínsitas ao papel que
determinado setor econômico desempenha no desenvolvimento nacional.
Improta dizer que, para que essa regulação se concretize, os entes
reguladores devem possuir poderes-deveres que viabilizem o
desenvolvimento das funções inerentes à regulação (elaboração de normas,
a sua implementação e a aplicação de sanções pelo descumprimento de
111
tais normas) .
Nota-se, portanto, que as atribuições e capacidades das agências
reguladoras devem ser exercidas a partir de um enfoque apolítico, estritamente
técnico e, poder-se-ia dizer, mesmo imparcial.
Devem, ademais, quando seu âmbito de atuação é o de serviços
essenciais, visar o desenvolvimento das finalidades públicas da atividade econômica
que regulam. E, para isso, elaborar normas e resolver conflitos entre empresas e
consumidores, tendo inclusive o poder de aplicar sanções.
O consumidor brasileiro, portanto, em se tratando de serviços essenciais,
tem mais de uma instância administrativa estatal da qual se pode valer para garantir
seus direitos. Tem à sua disposição tanto o sistema do Procon (Programa de
110
EFING, Antônio Carlos (coord.). Agências reguladoras e a proteção do consumidor brasileiro.
Curitiba: Juruá, 2009, p. 30.
111
CUÉLLAR, Leila. Introdução às agências reguladoras brasileiras. Belo Horizonte: Fórum, 2008,
p. 53-4.
76
Proteção e Defesa do Consumidor) quanto as agências reguladoras.
O Procon tem extrema relevância para evitar o assoberbamento dos
juizados especiais cíveis com volumes descomunais de ações repetitivas. Não tem,
porém, o poder de regular os ramos específicos das atividades econômicas que são
as que mais dão ensejo a tal tipo de demanda. As agências reguladoras sim, e por
isso é que ora delas se cuida.
Das atribuições e capacidades das agências reguladoras, três parecem
ser vitais para evitar o já mencionado “excesso de acesso” aos juizados especiais
cíveis.
A primeira delas é a produção normativa. Leila Cuéllar discorre sobre tal
atribuição:
Uma vez estabelecida a política pública do setor (seja por meio de lei, seja
através de atos da Administração Central), cabe à autoridade reguladora
implementá-la – e um dos meios a ela disponíveis é justamente a emanação
de normas jurídicas regulamentares. Afinal, não se está diante de uma série
de relacionamentos jurídicos peculiares e indevassáveis, sem uniformidade,
que porventura exigissem um ato e um controle para cada caso. Ao
contrário, o que existem são situações que, devido à sua configuração
repetitiva e ao interesse social a elas atribuído, exigem a emanação de
regras gerais que deverão ser seguidas por todos aqueles que as
112
concretizarem .
É justamente nesse aspecto que a atividade das agências reguladoras
parece ter maior relevância, em relação ao problema aqui tratado. As questões sobre
direitos individuais homogêneos, portanto de configuração repetitiva e dotados de
uniformidade entre si, são as que geram o problema do excesso de volume nos
juizados especiais cíveis.
No âmbito de sua competência normativa, cabe às agências reguladoras
estarem atentas às atividades desenvolvidas pelas empresas do ramo regulado. Se
surgem, por exemplo, novos tipos de serviço, novas formas de contratação, novos
problemas decorrentes de recentes ou velhas práticas, é fundamental que as
agências os normatizem de forma clara, técnica e materialmente correta, evitando ao
máximo, com isso, os questionamentos judiciais sobra a matéria.
A segunda atribuição relevante para a questão aqui tratada é a
competência para dirimir conflitos. Lucas de Souza Lehfeld confere a ela a
denominação de função quase-judicial:
112
CUÉLLAR, Leila. Introdução às agências reguladoras brasileiras. Belo Horizonte: Fórum, 2008,
p. 57.
77
Com fundamento na flexibilidade e imparcialidade que as agências
reguladoras instituídas no país devem apresentar aos agentes dos setores
econômicos de interesse público recém-privatizados, atribuiu-se a esses
entes da Administração Pública, novamente por influência direta do modelo
norte-americano, função quase-judicial, no intuito de dirimir conflitos de
interesse entre empresas que prestam serviços públicos submetidos à
113
regulação, ou entre essas e seus usuários .
A terceira é a capacidade sancionatória, pois “não basta deter a
competência para regular e supervisionar o setor se porventura a agência não puder
aplicar de forma independente as sanções aos ilícitos cometidos pelos agentes
regulados” 114.
Em tese, cada agência reguladora tem quadros técnicos especializados
no ramo que regula. Essa realidade faz com que, tecnicamente, sejam os órgãos
estatais com mais conhecimento para dirimir os conflitos específicos entre as
empresas e os usuários dos serviços correspondentes.
Entretanto, a procura dos usuários pelas agências reguladoras na
tentativa de dirimir conflitos é bastante inferior à procura pelo Poder Judiciário.
As razões para que assim ainda ocorra não são exatamente claras, mas
entre elas está sem dúvida a dificuldade de acesso a essas instâncias
administrativas.
Lucas de Souza Lehfeld aponta:
Pelo fato de, hodiernamente, as agências reguladoras não apresentarem
efetivos canais de comunicação e representação dos grupos de interesses
envolvidos na regulação, há grande dificuldade no processo de
institucionalização das agências no Direito brasileiro. A falta de
transparência de seus atos, bem como a pouca eficácia de suas decisões,
que, embora às vezes estabeleçam responsabilização aos agentes
regulados, são submetidas constantemente à revisão judicial e prejudicam a
115
própria legitimação do modelo regulatório implantado no país .
Adriana Goulart de Sena Orsini e Luiza Berlini Dornas Ribeiro constatam,
especificamente quanto à telefonia:
Não obstante a atuação judicial, é importante destacar também a relevância
da ANATEL como órgão responsável pela fiscalização e controle do serviço
de telefonia, sendo competente inclusive para a penalização de condutas
que estão em desacordo com as finalidades da Lei. Todavia, sua atuação no
caso concreto ainda é insatisfatória para coibir atitudes anticoncorrenciais.
Ou seja, apesar da competência legal da ANATEL para aplicação de
sanções às empresas prestadoras do serviço, o que se observa é a
113
LEHFELD. Controles das agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2008, p. 268.
CUÉLLAR, Leila. Introdução às agências reguladoras brasileiras. Belo Horizonte: Fórum, 2008,
p. 57.
115
LEHFELD. Controles das agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2008, p. 269.
114
78
maximização dos lucros dessas empresas diante da má prestação do
116
serviço de telefonia .
Outro motivo pela baixa procura das agências pelos usuários parece ser
de índole cultural. As agências reguladoras não fazem parte da tradição
administrativa brasileira. Os brasileiros não estão habituados a procurar órgãos
administrativos para a solução de seus conflitos, e sim diretamente o Poder
Judiciário. Essa mentalidade, porém, vem gradual e lentamente mudando, até
mesmo pela atuação do Judiciário, o qual, notadamente após o advento da Lei nº
9.099/95, vem incentivando os meios ditos alternativos de solução de conflitos.
De todo modo, tendo as agências reguladoras, como se viu,
conhecimento técnico do ramo regulado, poder normativo, capacidade sancionatória
e competência para dirimir conflitos entre usuários e empresas, não existem, em
tese, razões para que a busca dessa instância administrativa, previamente ao
ajuizamento de demandas, não fosse até mesmo condição para este.
A única razão que se pode imaginar diz respeito justamente ao amplo
acesso à justiça. Contudo, repete-se à exaustão, acesso à justiça não se confunde
com acesso ao Judiciário.
É certo, contudo, que, existindo esse meio de solução de conflitos já
disponível ao cidadão, a plena efetividade das agências reguladoras nas suas
atribuições de produção normativa e de dirimir conflitos entre as empresas reguladas
e seus usuários significará inevitável incremento na efetividade dos juizados
especiais cíveis, pela consequente diminuição de conflitos em juízo.
2.9
SÍNTESE DO EXPOSTO
De tudo quanto se procurou examinar neste capítulo, é possível ver que
as ações repetitivas fundadas em interesses individuais homogêneos, que se
avolumam nos juizados especiais cíveis, afetam o seu bom funcionamento e a
garantia de amplo acesso à justiça que ensejaram sua criação. Entre outros fatores,
constatou-se a inadequação do modelo processual da Lei nº 9.099/95 ao
116
ORSINI, Adriana Goulart de Sena; RIBEIRO, Luiza Berlini Dornas. A litigância habitual nos
juizados especiais em telecomunicações: a questão do “excesso de acesso”. In: Revista do Tribunal
Regional do Trabalho da 3ª Região, v. 55, n. 85, p. 21-46. Belo Horizonte: Tribunal Regional do
Trabalho da 3ª Região, 2012, p. 43.
79
processamento de tais ações de massa.
Embora existam mecanismos no atual Código de Processo Civil, a nova
legislação também se preocupou com as ações de massa, prevendo expressamente
mecanismos também para as que tramitem nos juizados especiais.
O direito pressuposto correspondente ao direito posto, no tocante aos
juizados especiais cíveis, continua existindo, porém o desvirtuamento da norma,
com a recepção e o processamento das ações de massa no sistema especial, gera
risco à sua própria legitimidade.
É possível, acredita-se, evitar o risco de perda de legitimidade dos
juizados especiais, pelo desvirtuamento da sua lei de regência, com pequena
alteração no direito posto, para que contemple aquilo que já integrava o direito
pressuposto que lhe corresponde desde sua criação, excluindo-se expressamente a
competência dos juizados especiais cíveis para demandas individuais baseadas em
interesses individuais homogêneos.
Por fim, o papel das agências reguladoras é fundamental, pois sua plena
efetividade, sobretudo nas atribuições de produção normativa e de dirimir conflitos
entre as empresas reguladas e os usuários, implicará inafastável incremento da
efetividade dos juizados especiais cíveis.
80
CAPÍTULO 3
3
3.1
O PROCESSO EUROPEU PARA AÇÕES DE PEQUENO MONTANTE
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Muito embora o problema que a pesquisa visou tenha sido trazido à
preocupação do autor em razão do seu exercício da judicatura em juizado especial
cível do Brasil e, pelo que se estudou, não seja um problema recorrente nem na
União Europeia, nem no direito interno de Portugal, o âmbito em que realizada
(Direito da União Europeia) levou à busca de alternativas de solução no direito
comunitário europeu.
A União Europeia dispõe de legislação comunitária, transfronteiriça pois,
sobre pequenas causas, ou ações de pequeno montante, designação esta mais
corrente em Portugal.
Assim, no presente capítulo aborda-se de modo breve o contexto europeu
de liberdades econômicas e cidadania para situá-lo nas razões da necessidade da
garantia de acesso à justiça também em nível comunitário europeu.
Examina-se, em seguida, no que útil para pesquisa, o Regulamento (CE)
nº 861/2007, o qual estabelece o processo europeu para ações de pequeno
montante. São explicitadas, quando possível e naquilo que interessa aos fins da
presente dissertação, as similaridades e dessemelhanças com o processo brasileiro
para ações de pequeno montante (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais –
Lei nº 9.099/95).
Ao fim, procura-se avaliar se há, no processo europeu para ações de
pequeno montante, elementos que possam contribuir à solução do excesso de
litigiosidade causado pelas ações repetitivas nos juizados especiais cíveis
brasileiros.
É necessário, porém, antes de prosseguir, ressaltar que a pesquisa, neste
tópico, forçou-se à limitação das poucas fontes existentes.
Com efeito, a literatura disponível sobre o tema, mesmo na Europa,
especialmente no idioma português, não é farta. As fontes primárias também não
forneceram dados sobejos para a avaliação precisa da adaptabilidade de elementos
do processo europeu à realidade do problema brasileiro aqui tratado.
81
Da pesquisa realizada, restou claro que na Europa comunitária a
importância dada às ações de pequeno montante pela população, de modo geral, e
pela própria comunidade jurídica, é significativamente menor do que no Brasil, em
que, contrariamente, como já visto, os juizados especiais são a face mais visível do
Judiciário e ainda a mais confiável aos olhos do povo.
Talvez a explicação para tal cenário seja a subutilização do procedimento
pela população, constatada pela própria Comissão Europeia. Talvez a Europa, em
âmbito comunitário, não necessite tanto desse instrumento processual quanto o
Brasil em sede interna.
Sobre a subutilização do processo europeu para ações de pequena
monta, veja-se a seguinte passagem da proposta da Comissão Europeia para
alteração do Regulamento (CE) nº 861/2007:
No entanto, apesar dos benefícios em termos de redução de custos e
duração da tramitação dos litígios transfronteiriços, o processo é ainda
pouco conhecido e continua a ser subutilizado, vários anos após a entrada
em vigor do regulamento. O Parlamento Europeu afirmou, numa resolução
de 20114, que é necessário fazer mais em termos de segurança jurídica,
barreiras linguísticas e transparência do processo, tendo convidado a
Comissão a tomar as medidas necessárias para assegurar que os
consumidores e as empresas conhecem melhor e utilizam efetivamente os
instrumentos legislativos em vigor, nomeadamente o processo europeu para
ações de pequeno montante. Os consumidores e as empresas consultadas
consideram também que o regulamento deve ser aperfeiçoado em seu
benefício, em especial das PME. Os Estados-Membros assinalaram
igualmente algumas deficiências do atual regulamento, que devem ser
corrigidas. Os problemas atuais resultam sobretudo de deficiências das
normas em vigor, como o âmbito de aplicação limitado, devido ao limite
reduzido e à definição restritiva dos litígios transfronteiriços, e do caráter
complexo, dispendioso e moroso do processo, que não acompanha os
progressos tecnológicos verificados nos sistemas judiciais dos EstadosMembros desde a adoção do regulamento. Mesmo quando os problemas se
prendem com a aplicação incorreta das normas em vigor, à semelhança do
que acontece, em certa medida, com o problema da falta de transparência,
deve reconhecer-se que as disposições do regulamento nem sempre são
claras. A fim de resolver o problema do desconhecimento da legislação em
vigor, a Comissão Europeia já lançou várias ações, designadamente uma
série de seminários temáticos nos Estados-Membros para informar as PME
da existência deste processo, a publicação de um guia prático e a
distribuição de módulos para ações de formação nesta matéria destinada a
117
empresários europeus .
Quiçá possa até não ser o mais adequado tentar traçar paralelos entre um
procedimento de direito interno e um transnacional, comunitário.
De todo modo, ver-se-á que as razões inspiradoras tanto da legislação
117
Disponível em: <http://ec.europa.eu/transparency/regdoc/rep/1/2013/PT/1-2013-794-PTF1-1.Pdf>. Acessado em: 27/06/2015.
82
comunitária europeia ora referida como da interna brasileira são muito similares,
essencialmente as mesmas.
Igualmente, a partir das semelhanças e diferenças pontuais – estas
muitas vezes existentes justamente porque são cotejadas normas voltadas ao direito
transnacional com normas de direito interno – poderão ser encontrados elementos
novos, ou pelo menos não comuns à realidade dos juizados especiais brasileiros,
que contribuam de algum modo para a solução do problema em foco.
3.2
O REGULAMENTO (CE) Nº 861/2007
Colhe-se do Artigo 3º do Tratado da União Europeia:
Artigo 3.º (ex-artigo 2.º TUE)
1. A União tem por objectivo promover a paz, os seus valores e o bem-estar
dos seus povos.
2. A União proporciona aos seus cidadãos um espaço de liberdade,
segurança e justiça sem fronteiras internas, em que seja assegurada a
livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em
matéria de controlos na fronteira externa, de asilo e imigração, bem
como de prevenção da criminalidade e combate a este fenómeno.
3. A União estabelece um mercado interno. Empenha-se no
desenvolvimento sustentável da Europa, assente num crescimento
económico equilibrado e na estabilidade dos preços, numa economia
social de mercado altamente competitiva que tenha como meta o pleno
emprego e o progresso social, e num elevado nível de protecção e de
melhoramento da qualidade do ambiente. A União fomenta o progresso
científico e tecnológico. A União combate a exclusão social e as
discriminações e promove a justiça e a protecção sociais, a igualdade
entre homens e mulheres, a solidariedade entre as gerações e a
protecção dos direitos da criança. A União promove a coesão económica,
social e territorial, e a solidariedade entre os Estados-Membros. A União
respeita a riqueza da sua diversidade cultural e linguística e vela pela
salvaguarda e pelo desenvolvimento do património cultural europeu.
4. A União estabelece uma união económica e monetária cuja moeda é o
euro.
5. [...]
118
6. [...] .
Já o Artigo 20º, n. 1, do Tratado de Funcionamento da União Europeia,
institui a cidadania europeia:
Artigo 20º. (ex-artigo 17.o TCE)
1. É instituída a cidadania da União. É cidadão da União qualquer pessoa
que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro. A cidadania da União
119
acresce à cidadania nacional e não a substitui .
Ainda do Tratado de Funcionamento da União Europeia, extrai-se:
118
119
Disponível em: <http://europa.eu/pol/pdf/consolidated-treaties_pt.pdf>. Acessado em: 27/06/2015.
Disponível em: <http://europa.eu/pol/pdf/consolidated-treaties_pt.pdf>. Acessado em: 27/06/2015.
83
Artigo 26º. (ex-artigo 14.o TCE)
1. A União adopta as medidas destinadas a estabelecer o mercado interno
ou a assegurar o seu funcionamento, em conformidade com as
disposições pertinentes dos Tratados.
2. O mercado interno compreende um espaço sem fronteiras internas no
qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos
capitais é assegurada de acordo com as disposições dos Tratados.
3. O Conselho, sob proposta da Comissão, definirá as orientações e
condições necessárias para assegurar um progresso equilibrado no
120
conjunto dos sectores abrangidos. .
Do Artigo 67º, ainda do Tratado de Funcionamento da União Europeia,
colhe-se:
Artigo 67.º (ex-artigo 61.º TCE e ex-artigo 29.º TUE)
1. A União constitui um espaço de liberdade, segurança e justiça, no
respeito dos direitos fundamentais e dos diferentes sistemas e tradições
jurídicos dos Estados-Membros.
2. A União assegura a ausência de controlos de pessoas nas fronteiras
internas e desenvolve uma política comum em matéria de asilo, de
imigração e de controlo das fronteiras externas que se baseia na
solidariedade entre Estados-Membros e que é equitativa em relação aos
nacionais de países terceiros. Para efeitos do presente título, os
apátridas são equiparados aos nacionais de países terceiros.
3. [...]
4. A União facilita o acesso à justiça, nomeadamente através do princípio do
reconhecimento mútuo das decisões judiciais e extrajudiciais em matéria
121
civil. .
Por fim, e novamente do Tratado de Funcionamento da União Europeia:
CAPÍTULO 3
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA EM MATÉRIA CIVIL
Artigo 81.º (ex-artigo 65.º TCE)
1. A União desenvolve uma cooperação judiciária nas matérias civis com
incidência transfronteiriça, assente no princípio do reconhecimento
mútuo das decisões judiciais e extrajudiciais. Essa cooperação pode
incluir a adopção de medidas de aproximação das disposições
legislativas e regulamentares dos Estados-Membros.
2. Para efeitos do n.º 1, o Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando
de acordo com o processo legislativo ordinário, adoptam, nomeadamente
quando tal seja necessário para o bom funcionamento do mercado
interno, medidas destinadas a assegurar:
a) O reconhecimento mútuo entre os Estados-Membros das decisões
judiciais e extrajudiciais e a respectiva execução;
b) A citação e notificação transfronteiriça dos actos judiciais e extrajudiciais;
c) A compatibilidade das normas aplicáveis nos Estados-Membros em
matéria de conflitos de leis e de jurisdição;
d) A cooperação em matéria de obtenção de meios de prova;
e) O acesso efectivo à justiça;
f) A eliminação dos obstáculos à boa tramitação das acções cíveis,
promovendo, se necessário, a compatibilidade das normas de processo
civil aplicáveis nos Estados-Membros;
120
121
Disponível em: <http://europa.eu/pol/pdf/consolidated-treaties_pt.pdf>. Acessado em: 27/06/2015.
Disponível em: <http://europa.eu/pol/pdf/consolidated-treaties_pt.pdf>. Acessado em: 27/06/2015.
84
g) O desenvolvimento de métodos alternativos de resolução dos litígios;
h) O apoio à formação dos magistrados e dos funcionários e agentes de
122
justiça .
Sem a pretensão de uma definição completa do que seja a União
Europeia, pode-se concluir, das normas transcritas, que constitui um espaço de
liberdade, segurança e justiça, com um mercado interno, livre circulação de pessoas,
mercadorias, capitais e serviços, e garantia de efetivo acesso à justiça. Neste
espaço de liberdade, segurança e justiça, os nacionais dos Estados-Membros
gozam de um status de cidadania europeia acrescido.
Todas essas características mostram-se relevantes na medida em que
para a garantia e o pleno exercício das liberdades econômicas fundamentais (livre
circulação de pessoas, mercadorias, capitais e serviços), no espaço transfronteiriço
de mercado interno único, e as que delas derivam, como, v. g., a liberdade de
estabelecimento e outras, exige-se o efetivo acesso à justiça. E para garantir-se o
efetivo acesso à justiça, há necessidade, se não de um completo sistema judicial
transfronteiriço, ao menos de procedimentos transfronteiriços que o facilitem. O
pleno exercício da cidadania não exigiria menos.
A noção de cidadania europeia foi bem delimitada pelo Advogado-Geral F.
G. Jacobs:
A noção de cidadania da união implica uma comunidade de direitos e
obrigações que unem os cidadãos da união por um vínculo comum que
transcende a nacionalidade de um Estado membro. A introdução deste
conceito foi largamente inspirada pela preocupação de aproximar a União
dos seus cidadãos e de exprimir a sua natureza como algo diverso de uma
união puramente económica. Este intento encontra-se reflectido no
abandono da expressão “económica” na denominação da Comunidade e
pela progressiva introdução, no Tratado CE, de um amplo conjunto de
123
actividades e de políticas que extravasam do âmbito económico .
A garantia de acesso à justiça está sem dúvida inserida na ampla gama
de direitos que caracteriza o exercício da cidadania. Se de cidadania europeia se
trata, a garantia há de ser nesse nível.
A correlação é simples. Tome-se o exemplo de um cidadão português que
resolve passar um dia em Espanha e lá adquire um eletrodoméstico, ou então o
compra de uma loja britânica pela internet. Ao voltar à sua casa, ou, na segunda
122
Disponível em: <http://europa.eu/pol/pdf/consolidated-treaties_pt.pdf>. Acessado em: 27/06/2015.
Acórdão G. Heylens, do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 15 de Outubro de 1987, Proc.
222/86.
Disponível
em:
<http://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/?uri=CELEX:61986CJ0222>. Acessado em: 29/06/2015.
123
85
hipótese, ao receber o bem, constata que é defeituoso. Entra em contato por e-mail
e o comerciante, seja britânico ou espanhol, lhe diz que nada fará. É razoável que se
exija deste cidadão português, ante o mercado interno estabelecido na União
Europeia, as liberdades econômicas e a garantia de acesso efetivo à justiça que vá
litigar em Espanha ou no Reino Unido, mediante procedimento que não conhece, em
idioma que não é o seu, por este pequeno problema? Por outro lado, é justo que se
lhe exija o abandono do seu direito, por pouco que represente, porque o incômodo
de litigar em tais circunstâncias é maior do que o próprio defeito no aparelho? A
resposta evidentemente é negativa a ambos os questionamentos. O direito de
acesso à justiça a esse cidadão há de ser garantido em nível europeu, pois o
problema que lhe foi posto, por menos importante que possa ser, decorreu do
exercício de uma liberdade comunitária, ou, se assim se quiser, do exercício de sua
condição de cidadão europeu.
É, pois, em tal contexto que o Parlamento Europeu e o Conselho da União
Europeia, em 11 de julho de 2007 e para vigência a partir de janeiro de 2009,
emitiram o Regulamento (CE) 861/2007, estabelecendo o processo europeu para
ações de pequeno montante.
Entre as considerações constantes do diploma normativo, é possível
encontrar aquelas que inspiram a implantação de procedimentos para pequenas
causas no Brasil e em todo o mundo:
(7) Muitos Estados-Membros criaram processos simplificados em matéria
civil para as acções de pequeno montante, já que a complexidade, as
despesas e os prazos associados aos litígios não diminuem
necessariamente de modo proporcional ao valor do pedido. Nos casos
transfronteiriços, são ainda maiores as dificuldades para se conseguir
uma decisão judicial rápida e pouco dispendiosa. É, pois, necessário
criar um processo europeu para acções de pequeno montante, cujo
objectivo deverá ser o de facilitar o acesso à justiça. As distorções da
concorrência no mercado interno decorrentes de desequilíbrios no
funcionamento dos meios processuais facultados aos credores nos
diferentes Estados-Membros carecem de legislação comunitária que
garanta condições idênticas para os credores e os devedores em toda a
União Europeia. A fixação das despesas de tratamento de uma acção ao
abrigo do processo europeu para acções de pequeno montante deverá
obedecer necessariamente aos princípios da simplicidade, celeridade e
proporcionalidade. É conveniente que sejam publicadas informações
sobre as despesas a imputar e que o processo de fixação destas seja
transparente.
(8) O processo europeu para acções de pequeno montante tem por
objectivo simplificar e acelerar os processos judiciais em casos
transfronteiriços, reduzindo simultaneamente as respectivas despesas,
proporcionando um mecanismo facultativo para além das possibilidades
existentes nas legislações dos Estados-Membros, as quais se mantêm
inalteradas. O presente regulamento deverá também simplificar o
86
reconhecimento e a execução de decisões proferidas noutros EstadosMembros em processo europeu para acções de pequeno montante.
(9) O presente regulamento pretende promover os direitos fundamentais e
tem em conta os princípios reconhecidos pela Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia. O órgão jurisdicional deverá respeitar
o direito a um julgamento equitativo e o princípio do contraditório, em
especial ao decidir quanto à necessidade de uma audiência ou quanto
124
aos meios de prova e à medida em que a sua produção é necessária .
O acesso à justiça, a celeridade (razoável duração do processo) e a
efetividade da prestação jurisdicional, portanto, estão entre os principais fatores da
criação do processo europeu de pequena monta, não diferindo, nesse aspecto,
como já dito, da Lei nº 9.099/95, que instituiu os juizados especiais cíveis no Brasil.
O Regulamento (CE) 861/2007 consagra tais valores não só nos
considerandos, mas na própria norma:
Artigo 1.º
Objecto
O presente regulamento estabelece um processo europeu para acções de
pequeno montante, destinado a simplificar e a acelerar as acções de
pequeno montante em casos transfronteiriços e reduzir as respectivas
despesas. O processo europeu para acções de pequeno montante é, para
os litigantes, uma alternativa aos processos existentes nos termos da lei dos
Estados-Membros. O presente regulamento visa igualmente suprimir os
processos intermédios necessários para permitir o reconhecimento e a
execução, noutros Estados-Membros, de decisões proferidas num Estado125.
Membro em processo europeu para acções de pequeno montante.
Também a proposta formulada pela Comissão Europeia, em novembro de
2013, de alteração do Regulamento (CE) nº 861/2007, deixa bastante claros os
motivos de sua criação:
O Regulamento (CE) n.º 861/2007, que estabelece um processo europeu
para ações de pequeno montante, foi adotado em 11 de julho de 20071 com
o objetivo de reforçar o acesso à justiça mediante a simplificação e
aceleração da resolução de litígios transfronteiriços de pequeno montante e
a redução dos respetivos custos. Além disso, o regulamento visava facilitar
a execução das decisões, eliminando a necessidade de procedimentos
intermédios (exequatur) para as fazer reconhecer e executar num EstadoMembro diferente daquele em que foram proferidas. O regulamento
introduziu um processo alternativo aos previstos na lei dos EstadosMembros, para os litígios transfronteiriços cujo valor não exceda 2 000 EUR.
O Regulamento é aplicado na UE (à exceção da Dinamarca) desde 1 de
janeiro de 2009. Em princípio, o processo tem forma escrita, com base em
formulários normalizados, e é regido por prazos rigorosos. A representação
124
Disponível
em:
<http://www.dgpj.mj.pt/sections/relacoesinternacionais/anexos/regulamento-ce-n861/downloadFile/file/REG_861.2007_Accoes_de_pequeno_montante.pdf?nocache=120006
9108.35>. Acessado em: 27/06/2015.
125
Disponível em: <http://ec.europa.eu/transparency/regdoc/rep/1/2013/PT/1-2013-794PT-F1-1.Pdf>. Acessado em: 27/06/2015.
87
por advogado não é obrigatória e a utilização de meios de comunicação
eletrónica é estimulada. Além disso, a parte vencida só terá de suportar as
custas da parte vencedora se forem proporcionais ao valor do pedido. O
processo pode ser utilizado tanto pelos consumidores como pelas empresas
que tiverem feito transações transfronteiriças na UE, como meio de
126
melhorar o acesso à justiça e o exercício dos seus direitos .
O procedimento previsto no regulamento europeu é, portanto, facultativo,
assim como o é o da Lei 9.099/95. À semelhança desta, estabelece, em seu Artigo
2º, uma alçada de valor (2.000 Euros) e limita a natureza das causas, excluindo de
seu alcance matérias que elenca e prevendo-o apenas para as causas
transfronteiriças. Naturalmente assim é em respeito às normas internas dos EstadosMembros da União Europeia, os quais possuem soberania (ainda que em parte
mitigada pelo direito comunitário) e autonomia para decidir sobre os procedimentos
aplicáveis no âmbito do seu direito interno.
O limite é bastante baixo. Equivale, em 27 de junho de 2015, a
aproximadamente R$ 6.900,00 (seis mil e novecentos reais). Está de fato muito
aquém do limite das ações cíveis de pequeno montante brasileiras, cujo limite é de
40 salários mínimos, correspondentes, na mesma data, a R$ 31.520,00 (trinta e um
mil, quinhentos e vinte reais).
A Comissão Europeia considera esse baixo valor uma das razões da
subutilização do procedimento, tanto que pretende sua elevação para 10.000 (dez
mil) Euros, correspondentes, em 27 de junho de 2015, a R$ 34.500,00 (trinta e
quatro mil e quinhentos reais), valor muito semelhante ao limite brasileiro. Veja-se
passagem da proposta de alteração do Regulamento (CE) nº 861/2007 sobre tal
tema:
O limite de 2 000 EUR restringe o âmbito de aplicação do regulamento.
Embora seja menos importante para os consumidores, uma vez que a maior
parte dos seus pedidos não excedem 2 000 EUR, este limite reduz
consideravelmente a possibilidade de utilização do processo pelas PME.
Apenas 20 % dos pedidos são inferiores a 2 000 EUR, enquanto os pedidos
entre 2 000 e 10 000 EUR representam cerca de 30 % de todos os litígios
transfronteiriços das empresas. 45 % das empresas que têm um litígio
transfronteiriço não recorrem aos tribunais porque as custas judiciais são
desproporcionais ao valor dos pedidos, enquanto 27 % não recorrem aos
tribunais devido à morosidade do processo. Abrindo o processo europeu
simplificado aos pedidos transfronteiriços entre 2 000 e 10 000 EUR, as
custas e a duração do processo seriam consideravelmente reduzidas nestes
126
Disponível
em:
<http://www.dgpj.mj.pt/sections/relacoesinternacionais/anexos/regulamento-ce-n861/downloadFile/file/REG_861.2007_Accoes_de_pequeno_montante.pdf?nocache=120006
9108.35>. Acessado em: 27/06/2015.
88
casos. Nos últimos anos, alguns Estados-Membros alargaram o âmbito de
aplicação dos processos simplificados nacionais, aumentando os limites
previstos. Esta tendência atual revela a necessidade de modernizar os
sistemas judiciais, tornando-os mais acessíveis aos cidadãos mediante o
estabelecimento de um processo simplificado, pouco dispendioso e célere
para os pedidos de pequeno valor. Neste contexto, o atual limite de 2 000
EUR do processo europeu para ações de pequeno montante deve também
ser aumentado. Aumentar o limite atual permitirá que as partes recorram
muito mais vezes aos tribunais utilizando o processo europeu simplificado.
Devido à maior simplificação e à redução das custas e da duração do
processo, é de esperar que as ações abandonadas e não prosseguidas
sejam retomadas. O principal grupo a beneficiar com esta solução é o das
PME, mas também os consumidores, visto que cerca de um quinto dos seus
pedidos são superiores a 2 000 EUR. Tanto as empresas como os
consumidores beneficiarão com a maior utilização do processo, uma vez
que os juízes, funcionários judiciais e advogados ficarão mais familiarizados
127
com ele, passando a conduzi-lo melhor e com mais eficiência .
Diferentemente do que prevê a Lei nº 9.099/95 em seu artigo 8º, o
Regulamento (CE) 861/2007 não traz nenhuma limitação à aplicação do
procedimento segundo a qualidade da parte. Contudo, obviamente cria limitações
quanto à qualidade da parte ao circunscrever sua aplicação a causas cíveis e
comerciais (artigo 2º) e ao excluir expressamente a apreciação de questões: fiscais,
aduaneiras, administrativas e de responsabilidade do Estado; relacionadas com o
estado ou a capacidade das pessoas singulares; de direitos patrimoniais decorrentes
de regimes matrimoniais, de obrigações de alimentos, de testamentos e de
sucessões; de falências e as concordatas em matéria de falência de sociedades ou
outras pessoas coletivas, os acordos de credores ou outros procedimentos
análogos; de segurança social; de arbitragem; de direito do trabalho; de
arrendamento de imóveis, exceto em ações pecuniárias; ou de violações da vida
privada e dos direitos da personalidade, incluindo a difamação128.
O Artigo 3º do regulamento traz os critérios para definição do significado
de casos fronteiriços.
O procedimento propriamente dito está alocado no Capítulo II do
Regulamento (CE) nº 861/2007.
O processo se inicia mediante preenchimento de formulário e sua
apresentação ao juízo competente, que pode ser inclusive por correio eletrônico.
127
Disponível em: <http://ec.europa.eu/transparency/regdoc/rep/1/2013/PT/1-2013-794-PTF1-1.Pdf>. Acessado em: 27 de junho de 2015..
128
Disponível
em:
<http://www.dgpj.mj.pt/sections/relacoesinternacionais/anexos/regulamento-ce-n861/downloadFile/file/REG_861.2007_Accoes_de_pequeno_montante.pdf?nocache=120006
9108.35>. Acessado em: 27/06/2015.
89
Deve haver a descrição das provas e apresentação, desde já, de eventuais
documentos (Artigo 4º, n. 1).
O Artigo 5º, n. 1, traz conteúdo perfeitamente compreensível quando se
rememora que sua aplicação é para casos transfronteiriços, que no entanto chocase com o previsto na Lei nº 9.099/95. Confira-se:
Artigo 5.º
Tramitação do processo
1. O processo europeu para acções de pequeno montante é escrito. O
órgão jurisdicional pode efectuar uma audiência, se o considerar necessário
ou se uma das partes o requerer. O órgão jurisdicional pode indeferir este
pedido se, após apreciação das circunstâncias do caso, concluir que uma
audiência é claramente desnecessária para assegurar um processo
equitativo. O indeferimento deve ser justificado por escrito, e não pode ser
129
impugnado separadamente .
Inicialmente, o que chama a atenção é a previsão expressa de que o
processo é escrito, o que contraria o critério da oralidade imperante em boa parte
das legislações sobre pequenas causas, inclusive a brasileira.
Com efeito, entre os critérios que informam o procedimento dos juizados
especiais cíveis no Brasil está expressamente o da oralidade (art. 2º, Lei nº
9.099/95), não raro considerado o mais importante deles. A respeito, veja-se o que
sustenta Felipe Borring Rocha:
A oralidade é, seguramente, o princípio mais importante da Lei nº
9.099/1995 e um dos mais importantes do sistema processual pátrio. Um de
seus maiores defensores, no período moderno, foi o italiano Giuseppe
Chiovenda, que sempre lutou por um processo oral, ou seja, com a
predominância da palavra falada sobre a palavra escrita. É preciso lembrar,
no entanto, que para um processo ser oral não é necessário, nem desejável,
abolir a forma escrita. Com efeito, processo oral é aquele que oferece às
partes meios eficazes para praticarem os atos processuais através da
palavra falada, ainda que eles tenham que ser registrados por escrito. Em
suma, o princípio da oralidade pressupõe a convivência harmônica da
palavra escrita e da falada, servindo a primeira basicamente para registrar
ou subsidiar a segunda. Nos Juizados Especiais, a oralidade, normalmente
presente apenas na fase instrutória, se estende por todo o procedimento
cognitivo: na petição inicial (art 14, § 3º), na resposta do réu (art. 30), na
inspeção judicial (art. 35, parágrafo único), na perícia (art. 35, caput) etc. De
fato, desde a petição inicial, até a prolação da sentença, praticamente todos
os atos podem ser feitos oralmente. O déficit de oralidade, no entanto, está
presente no procedimento do ‘recurso inominado’ (art. 42) e ao longo dos
procedimentos executivos (arts. 52 e 53). Nessas etapas, a aplicação
130
subsidiária do CPC acaba por impor à maioria dos atos a forma escrita .
129
Disponível
em:
<http://www.dgpj.mj.pt/sections/relacoesinternacionais/anexos/regulamento-ce-n861/downloadFile/file/REG_861.2007_Accoes_de_pequeno_montante.pdf?nocache=120006
9108.35>. Acessado em: 27/06/2015.
130
ROCHA, Felipe Borring. Manual dos juizados especiais cíveis estaduais: teoria e prática. 6. ed.
São Paulo: Atlas, 2012, p. 24-5.
90
Joel Dias Figueira Jr. também discorre sobre a oralidade:
Assim sendo, o princípio da oralidade aparece como norteador geral do
processo civil com maior ou menor intensidade, dependendo do tipo de lide,
tal como posta pelo sistema à apreciação do Estado-Juiz. Todavia, no
procedimento comum, pelas suas próprias características, a oralidade não
consegue ser erigida a seu ponto máximo, enquanto no processo de rito
mais especializado a possibilidade aumenta sobremaneira, como podemos
verificar, por exemplo, nos seguintes dispositivos da Lei 9.099/1995: arts.
131
13, §§ 2º e 3º, 14, 17, 19, 21, 24, § 1º, 28, 29, 30 etc. .
Outro aspecto diferencial de ambos os procedimentos é o fato de não se
realizar, em regra, audiência no europeu, enquanto no procedimento brasileiro é
obrigatória a sessão de conciliação, nos termos do art. 16 da Lei nº 9.099/95. E
assim é porque a conciliação, segundo o art. 2º do mesmo diploma legal, deve ser
sempre buscada pelo condutor do processo.
A diferença, aqui, é bastante grande e compreensível. Numa legislação
transfronteiriça, tudo aquilo que evitar o deslocamento das partes de um país a outro
nitidamente atua em favor do acesso à justiça. Assim, dispensada, em regra, a
realização de audiência, e com todos os atos por escrito, não se exige deslocamento
físico das partes.
Inclusive a constatação de subutilização do procedimento e da
necessidade de algumas alterações, pela Comissão Europeia, leva em conta tal
fator.
De fato, entre novembro e dezembro de 2012 realizou-se um inquérito
Eurobarómetro (Eurobarómetro Especial n. 395)132, pelo qual a Comissão Europeia
pôde verificar que a desnecessidade de comparecimento a um tribunal estimularia a
utilização do processo europeu para ações de pequena monta:
Em novembro e dezembro de 2012, foi realizado um inquérito
Eurobarómetro para avaliar a sensibilização, as expectativas e as
experiências dos cidadãos europeus no que se refere à aplicação do
regulamento. Segundo o inquérito, 71 % das reclamações dos
consumidores referem-se a valores inferiores ao limite de 2 000 EUR
estabelecido no regulamento. O montante mínimo médio pelo qual os
consumidores estão dispostos a interpor um ação noutro Estado-Membro
situa-se nos 786 EUR. 12 % dos inquiridos tinham conhecimento da
existência do processo europeu para ações de pequeno montante e 1 %
declarou já ter recorrido a ele. 69 % dos que já utilizaram este processo
estão satisfeitos. 97 % dos inquiridos que intentaram a ação contra uma
131
FIGUEIRA JR, Joel Dias; TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Juizados especiais estaduais
cíveis e criminais: comentários à lei 9.099/95. 7ª ed. São Paulo: RT, p.77.
132
Disponível
em:
<http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/ebs/ebs_395_en.pdf>.
Acessado em: 27/06/2015.
91
empresa e ganharam a causa (tanto a nível nacional como transfronteiriço)
conseguiram executar devidamente as decisões proferidas. Os fatores mais
importantes para incentivar os cidadãos a recorrerem aos tribunais são:
possibilidade de tramitação escrita do processo, sem necessidade de
comparecer em tribunal (33 %), possibilidade de não recorrer a um
advogado (26 %), tramitação do processo em linha (20 %) e na sua própria
133
língua (24 %) .
Na Europa, ademais, não raro se deslocará fisicamente pouco para se
chegar a outro país. Porém, este outro país terá costumes jurídicos e leis internas
diferentes e, normalmente, um idioma distinto. Portanto, justifica-se perfeitamente o
procedimento todo escrito, não só deixando-se de exigir a presença da parte em
juízo, mas até mesmo se a evitando.
No Brasil a relevância que a Lei nº 9.099/95 dá à busca da conciliação faz
com que se exija a presença da parte em juízo pelo menos – e preferencialmente
não mais – uma vez no curso do processo.
As consequências para o não comparecimento são graves, muito embora
mitigadas por entendimentos jurisprudenciais de que a presença da parte pode ser
suprida pela de advogado com poderes para transigir.
Com efeito, caso o autor não compareça a qualquer das audiências do
processo, este será extinto (art. 51, inc. I, da Lei nº 9.099/95). Caso o réu não
compareça à sessão de conciliação ou à audiência de instrução e julgamento,
reputar-se-ão verdadeiros os fatos alegados na petição inicial, salvo se contrário
resultar da convicção do juiz (art. 20 da Lei nº 9.099/95).
Prosseguindo no exame dos dispositivos relevantes do Regulamento (CE)
nº 861/2007, o seu Artigo 5º, n. 3, traz o prazo e forma da resposta do réu:
Artigo 5.º
[...]
3. O requerido deve apresentar a sua resposta no prazo de 30 dias a contar
da notificação do formulário de requerimento e do formulário de resposta,
mediante o preenchimento da parte II do formulário de resposta, modelo C,
acompanhado, se for caso disso, dos documentos comprovativos
pertinentes, e o respectivo envio ao órgão jurisdicional, ou mediante
134
qualquer outro meio adequado que não seja o formulário de resposta .
Novamente se verifica a contraposição da opção europeia pelo processo
133
Disponível em: <http://ec.europa.eu/transparency/regdoc/rep/1/2013/PT/1-2013-794-PTF1-1.Pdf>. Acessado em: 27/06/2015.
134
Disponível
em:
<http://www.dgpj.mj.pt/sections/relacoesinternacionais/anexos/regulamento-ce-n861/downloadFile/file/REG_861.2007_Accoes_de_pequeno_montante.pdf?nocache=120006
9108.35>. Acessado em: 27/06/2015.
92
escrito à de oralidade adotada no Brasil. Porém, note-se que a simplicidade e a
informalidade, critérios informadores do processo na Lei nº 9.099/95, também estão
presentes na opção europeia, que igualmente pretende a ampliação do acesso à
justiça, quando prevê que a resposta do réu não requer forma específica.
Os números 5 a 7 do Artigo 5º do regulamento tratam do pedido
reconvencional e o Artigo 6º a respeito do idioma empregado.
Os Artigos 7º e 8º do Regulamento (CE) nº 861/2007 trazem a seguinte
redação:
Artigo 7.º
Conclusão do processo
1. No prazo de 30 dias a contar da recepção da resposta do requerido ou do
requerente, apresentadas nos prazos fixados nos n.ºs 3 ou 6 do artigo
5.º, o órgão jurisdicional deve proferir uma decisão ou:
a) Solicitar às partes que, em prazo determinado não superior a 30 dias,
prestem esclarecimentos suplementares relativos ao pedido;
b) Solicitar a produção de prova nos termos do artigo 9.º; ou
c) Notificar as partes para comparecerem numa audiência, a realizar no
prazo de 30 dias a contar da notificação.
2. O órgão jurisdicional profere a decisão quer no prazo de 30 dias a contar
da eventual audiência, quer após ter recebido todas as informações
necessárias para o efeito. A decisão é notificada às partes nos termos do
artigo 13.º
3. Se o órgão jurisdicional não receber resposta da parte relevante no prazo
fixado no n.º 3 ou no n.º 6 do artigo 5.º, deve proferir decisão sobre a
acção ou pedido reconvencional.
Artigo 8.º
Audiência
O órgão jurisdicional pode realizar a audiência através de vídeo-conferência
ou de outras tecnologias de comunicação se estiverem disponíveis os meios
135
técnicos necessários .
A par da óbvia opção por um procedimento enxuto e com prazos exíguos,
colimando a simplicidade e a celeridade do processo, o que também se constata na
Lei nº 9.099/95, resta novamente patente a dispensabilidade de qualquer audiência.
Porém, chama a atenção o contido no artigo 8º, na medida em que
concede ao juiz, havendo a necessidade de realização de audiência, de realizá-la
por teleconferência.
Veja-se que o artigo confere uma possibilidade que no Brasil seria
impensável no âmbito dos juizados especiais cíveis. No Brasil se a utiliza em outros
procedimentos, como, por exemplo, interrogatórios criminais de réus presos, mas a
135
Disponível
em:
<http://www.dgpj.mj.pt/sections/relacoesinternacionais/anexos/regulamento-ce-n861/downloadFile/file/REG_861.2007_Accoes_de_pequeno_montante.pdf?nocache=120006
9108.35>. Acessado em: 27/06/2015.
93
obrigatoriedade de comparecimento da parte prevista na Lei nº 9.099/95 torna
juridicamente inviável a sua utilização, salvo talvez uma boa dose de criatividade do
magistrado e a flexibilidade de interpretação quanto ao que signifique presença ou
comparecimento.
Note-se, contudo, que a norma europeia prevê apenas uma faculdade, a
qual, segundo constatação da Comissão Europeia, não tem sido usada. Por isso
mesmo propõe a alteração da norma para que se torne obrigatória. Confira-se:
O processo europeu para ações de pequeno montante é essencialmente um
processo escrito. No entanto, em circunstâncias excecionais, se uma
audiência ou audição de perito ou testemunha forem necessárias para
formar a decisão, o órgão jurisdicional pode marcar uma audiência. As
audiências podem ser realizadas por videoconferência ou qualquer outro
meio de comunicação à distância. No entanto, na prática, as audiências são
realizadas da forma habitual, o que exige frequentemente a comparência
das partes e implica maiores despesas de viagem e atrasos para as
mesmas. Esta alteração do regulamento sublinhará mais acentuadamente,
em primeiro lugar, a natureza excecional das audiências no contexto do
procedimento simplificado. Em segundo, virá impor que os órgãos
jurisdicionais utilizem sempre meios de comunicação à distância, como a
videoconferência ou a teleconferência, durante as audiências. A fim de
salvaguardar os direitos das partes, será aberta uma exceção para a parte
que solicitar expressamente comparecer em tribunal. Esta alteração poderá
obrigar os Estados-Membros a dotar os seus tribunais de tecnologias de
comunicação adequadas, nos casos em que ainda não estejam instaladas.
As possibilidades tecnológicas à disposição dos Estados-Membros são
variadas e incluem recursos da Internet com uma boa relação custo-eficácia
136
.
O Artigo 9º do Regulamento (CE) nº 861/2007 versa sobre a prova, e
novamente traz elementos interessantes para cotejo com a Lei nº 9.099/95:
Artigo 9.º
Produção de prova
1. O órgão jurisdicional deve determinar os meios de produção de prova e
quais as provas necessárias para a sua tomada de decisão de acordo
com as regras aplicáveis à admissibilidade da prova. O órgão
jurisdicional pode admitir a produção de prova através de depoimentos
escritos de testemunhas, peritos ou partes. O órgão jurisdicional pode
igualmente admitir a produção de prova através de vídeo-conferência ou
outras tecnologias de comunicação se estiverem disponíveis os meios
técnicos necessários.
2. O órgão jurisdicional só pode admitir a produção de provas periciais ou
de depoimentos orais se estes forem indispensáveis para a decisão. Ao
decidir nesse sentido, o órgão jurisdicional deve ter em conta as
despesas respectivas.
3. O órgão jurisdicional deve escolher os métodos mais simples e mais
137
práticos para a produção de prova .
136
Disponível em: <http://ec.europa.eu/transparency/regdoc/rep/1/2013/PT/1-2013-794-PTF1-1.Pdf>. Acessado em: 27/06/2015.
137
Disponível
em:
<http://www.dgpj.mj.pt/sections/relacoesinternacionais/anexos/regulamento-ce-n-
94
Aqui encontra-se positivada mais uma vez na norma europeia a
simplicidade de que também trata o art. 2º da Lei nº 9.099/95.
O legislador europeu, de uma parte, impõe ao juiz a escolha dos métodos
mais simples de produção de prova, ao mesmo tempo em que, novamente, incita o
juízo a não colher qualquer tipo de prova pericial ou oral.
Diferentemente do ordenamento jurídico brasileiro, que não permite a
prestação de depoimentos de testemunhas e partes por escrito, o europeu, coerente
à sua opção pelo afastamento da oralidade, o estimula, bem assim, em sua
necessidade, o uso de meios não-presenciais, como a videoconferência.
O Artigo 10 do regulamento dispensa a representação obrigatória por
advogado, à semelhança do que ocorre nas causas brasileiras até 20 salários
mínimos (art. 9º, caput, da Lei nº 9.099/95). Muito se discutiu, no caso brasileiro,
considerando que a lei menciona o termo “assistência” por advogado, e não
“representação”, sobre a diferença entre tais palavras e, pois, sobre o alcance da
atuação do advogado. Contudo, na prática o que se observa é que a assistência de
que trata a norma é correntemente tratada como representação.
O Artigo 11º do Regulamento (CE)
nº 861/2015 impõe aos Estados-
Membros a prestação efetiva de assistência prática no preenchimento dos
formulários. A correlação possível com a norma brasileira aqui é ao § 1º do art. 9º da
Lei nº 9.099/95, o qual determina, em suma, que se deverá dispor de assistência
judiciária à parte que o deseje.
O Artigo 12º traz a seguinte redação:
Artigo 12.º
Conduta do órgão jurisdicional
1. O órgão jurisdicional não deve exigir que as partes procedam à
apreciação jurídica do pedido.
2. Se necessário, o órgão jurisdicional informa as partes sobre questões
processuais.
3. Se for caso disso, o órgão jurisdicional deve procurar obter um acordo
138
entre as partes. .
Quanto ao n. 1, nada mais revela do que o decantado brocardo latino Da
861/downloadFile/file/REG_861.2007_Accoes_de_pequeno_montante.pdf?nocache=120006
9108.35>. Acessado em: 27/06/2015.
138
Disponível
em:
<http://www.dgpj.mj.pt/sections/relacoesinternacionais/anexos/regulamento-ce-n861/downloadFile/file/REG_861.2007_Accoes_de_pequeno_montante.pdf?nocache=120006
9108.35>. Acessado em: 27/06/2015.
95
mihi factum dabo tibi jus ou o princípio jura novit curia.
O n. 3 sim traz algo digno de nota para cotejo com a norma brasileira. A
expressão “se for caso disso” é, em realidade, o que faz toda a diferença.
Teoricamente, conforme acima já foi tratado, o juiz brasileiro está obrigado a
conduzir o processo “...buscando, sempre que possível, a conciliação ou a
transação” (art. 2º, parte final, da Lei nº 9.099/95).
No entanto, considerando que o rito brasileiro prevê uma sessão de
conciliação, a qual também serve de marco para a resposta do réu, caso não haja
conciliação, a busca da conciliação é na verdade e em tese obrigatória, mesmo no
casos em que ela materialmente não será possível.
No rito europeu, a expressão “se for caso disso” deixa claramente a
faculdade pela tentativa à percepção do juiz frente ao caso concreto, não havendo
uma fase de conciliação obrigatória. Além disso, não existindo meio específico
obrigatoriamente estabelecido nem fase conciliatória no rito, também fica a critério
do juiz o uso do meio que for mais conveniente para aproximar as partes a um
acordo, seja via videoconferência ou qualquer outra que lhe pareça mais prática e
atenda melhor aos fins e à celeridade do processo.
Embora o Regulamento (CE) nº 861/2007 seja relativamente recente,
parece que seu Artigo 13º já nasceu algo superado, pois estabelece a notificação de
documentos por meio de carta registrada com recepção datada. De fato, em tempos
de internet, correio eletrônico e mensagens instantâneas, soa anacrônico que o meio
principal de notificação seja unicamente a carta registrada.
Não por outro motivo também sobre esse ponto a Comissão Europeia
propõe alterações para que o meio eletrônico esteja em pé de igualdade com o meio
postal. Veja-se:
Várias comunicações entre as partes e os tribunais poderiam, em princípio,
ser efetuadas por meios eletrónicos, o que permitiria poupar tempo e
dinheiro nos processos transfronteiriços, especialmente nos casos em que
as distâncias sejam muito longas. O requerimento inicial pode começar por
ser apresentado por meios eletrónicos nos Estados-Membros que aceitam
este método. No entanto, nos casos em que devem ser notificados
documentos às partes durante o processo, o método principal de notificação
previsto no regulamento é a carta registada com aviso de receção. Podem
ser utilizados outros métodos de notificação se não for possível fazê-lo pelo
correio. Não obstante, a notificação eletrónica já é praticada em diversos
Estados-Membros. A proposta colocará a notificação postal e a notificação
eletrónica em pé de igualdade, a fim de permitir que os Estados-Membros
que já as utilizam disponibilizem os meios eletrónicos para utilização das
partes no processo europeu para ações de pequeno montante. A
simplificação e a economia de tempo e de custos só serão possíveis nos
96
processos que corram nos Estados-Membros que decidirem proceder à
notificação eletrónica de documentos; no entanto, é de esperar que o
número de Estados-Membros que tiram partido destes desenvolvimentos
tecnológicos continue a aumentar. Para outro tipo de comunicações menos
importantes entre as partes e os tribunais, a proposta fará da comunicação
139
eletrónica a regra, sob reserva apenas do acordo das partes .
O Artigo 14º do regulamento trata de prazos, enquanto o Artigo 15º prevê
que a decisão terá força executória independentemente de recursos e de prestação
de caução. Nisso encontra simetria com o artigo 43 da Lei nº 9.099/95, o qual prevê
ao recurso apenas efeito devolutivo, ressalvando a expressa concessão de efeito
suspensivo pelo juiz, para evitar dano irreparável à parte.
O Regulamento (CE) nº 861/2007, em seu Artigo 16º, prevê sobre o
pagamento das despesas, atribuindo-as ao vencido e ressalvando as despesas
desnecessárias e a desproporcionalidade do valor pedido.
Nesse ponto há que se fazer uma distinção.
No juízo comum, o direito processual brasileiro apenas contempla como
despesas a serem suportadas pela parte os honorários de advogado sucumbenciais
e custas processuais, como, por exemplo, as custas iniciais, de eventuais
diligências, honorários de perito, taxas recursais etc. Porém, não considera as
despesas pessoais da parte vencedora com, por exemplo, honorários advocatícios
contratuais ou de deslocamento ao fórum.
Portanto, no direito brasileiro não haveria necessidade de ressalvar as
despesas desnecessárias ou a desproporcionalidade do valor pedido, pois o valor
das despesas incluídos na condenação, no juízo comum, são apenas aqueles
estabelecidos
pelo
próprio
juízo,
a
exemplo
de
honorários
periciais
ou
sucumbenciais, ou previamente pela Administração, como as taxas recursais.
Nas ações da Lei nº 9.099/95, contudo, salvo a hipótese de má-fé, em
que o juiz, em primeira instância, fixa condenação sucumbencial como sanção
processual (art. 55 da Lei nº 9.099/95), “o acesso ao Juizado Especial independerá,
em primeiro grau de jurisdição, do pagamento de custas, taxas ou despesas” (art. 54
da Lei nº 9.099/95).
Os Artigos 17º e 18º do regulamento tratam dos meios de reforma das
decisões proferidas no processo. O Artigo 17º prevê a possibilidade de recurso, ao
139
Disponível em: <http://ec.europa.eu/transparency/regdoc/rep/1/2013/PT/1-2013-794-PTF1-1.Pdf>. Acessado em: 27 jun. 2015.
97
abrigo do direito processual do Estado-Membro, enquanto o Artigo 18º estabelece
regras mínimas para a revisão da decisão.
O Artigo 19º versa sobre o direito processual aplicável, prevendo-o como
o do Estado-Membro, sem prejuízo do estabelecido no regulamento.
O Capítulo III, que se inicia no Artigo 20º do Regulamento (CE) 861/2007,
diz respeito ao reconhecimento e execução da decisão em outro Estado-Membro da
União Europeia.
Já o Capítulo IV do regulamento, que se inicia no Artigo 24º e finda no
29º, traz as disposições finais, mormente regulando situações a serem cumpridas
nas relações entre os Estados-Membros.
Desse modo, os dois capítulos finais do regulamento sobre o processo
europeu para ações de pequena monta não comportam interesse teórico ou prático
ao problema proposto na pesquisa e posto no presente trabalho. Por isso, não serão
aqui abordados.
3.3
PERSPECTIVAS DE APROVEITAMENTO DE ELEMENTOS DO PROCESSO
EUROPEU PARA AÇÕES DE PEQUENA MONTA NO TRATAMENTO DAS
AÇÕES REPETITIVAS NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS BRASILEIROS
É certo que a pesquisa e a dissertação para obtenção de titulação em
nível de mestrado não exigem ineditismo nem, necessariamente, a propositura de
soluções ao problema, ou aos problemas, em que se concentraram e a que se
propuseram.
O autor, muito modestamente, nunca teve a pretensão sequer de formular
soluções, menos ainda indiscutíveis e definitivas, ao problema do excesso de
litigiosidade e do volume de ações repetitivas que assoberba e quase inviabiliza os
juizados especiais brasileiros. Desejava, sim, pesquisar o tema em busca de ideias e
eventuais soluções, mas nunca de as formular.
Esclarecido isso, o que a pesquisa fez constatar foi, por um lado, a
riqueza de material bibliográfico, tanto brasileiro quanto europeu, a respeito do
acesso à justiça. Por outro, a aridez de fontes bibliográficas, no direito comunitário
europeu, a respeito das ações de pequeno montante ou pequenas causas, muito
embora a União Europeia disponha de um regulamento próprio, comunitário e
98
transnacional, para tal tipo de demanda.
Em seara exclusivamente brasileira, o problema específico aqui tratado e
suas possíveis soluções no âmbito jurídico já foram examinados anteriormente,
inclusive com abundância de talento acadêmico e profusão de dados. Mencione-se,
mais uma vez, o exaustivo trabalho de Ricardo Torres Hermann140.
Contudo, e parece que justamente por não ser uma área da atuação
judicial que cause muitos nem grandes problemas no âmbito da integração europeia,
não se dá, muito compreensivelmente, a importância ao tema que se dá no Brasil.
Ao contrário, o que se constatou, e a própria Comissão Europeia o fez,
conforme acima já visto, foi a pouca utilização do processo europeu para ações de
pequeno montante.
Ou seja, se no Brasil o que preocupa é o excesso de manejo de ações
nos juizados especiais cíveis, na Europa a preocupação, pelo menos da Comissão
Europeia, é exatamente contrária, qual seja, a de subutilização do processo.
Em tal contexto, é também compreensível que não haja fartura de
material europeu a respeito do tema. Não é um problema nem para a população
nem, pois, para a comunidade jurídica. Consequentemente, é natural que não
desperte maiores preocupações também em âmbito acadêmico, o qual certamente
se ocupa do trato teórico das questões jurídicas, mas muito sabiamente não o faz
em questões que não tenham a menor destinação prática para a comunidade em
que inserido.
Afinal, se o direito é, segundo Miguel Reale141, norma, valor e fato, falta,
neste tema, relevância ao fato para que as comunidades jurídica e acadêmica
europeias, com muito mais razão preocupadas com o direito da integração, se
interessem por algo que no Brasil, ao contrário, é relevante.
Diante do que foi pesquisado para este capítulo da dissertação, ou seja, o
processo europeu para ações de pequeno montante, o regulamento que dele trata e
as demais poucas fontes disponíveis, é que se procurará formular algumas ideias,
jamais soluções, para o problema essencialmente brasileiro em que o trabalho se
concentra, a partir da perspectiva europeia. As soluções são mais complexas e
140
HERMANN, Ricardo Torres. O tratamento das demandas de massa nos Juizados Especiais
Cíveis. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Artes
Gráficas, 2010.
141
REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
99
envolvem fatores outros além do jurídico, como o econômico, o político, o cultural e
assim por diante.
É certo que o processo europeu para ações de pequena monta pode sim
fornecer elementos cuja adoção traria benefícios em âmbito brasileiro. Afinal, tanto a
Lei nº 9.099/95 como o Regulamento (CE) nº 861/2007 foram criados a partir de
premissas muito semelhantes. Ambos surgiram da necessidade, ou pelo menos da
vontade, de garantir ao jurisdicionado o amplo acesso à justiça, em todas as suas
nuances, em especial a da razoável duração do processo e a de facilitação ao
ajuizamento das demandas.
Destacam-se, a seguir, os pontos em que elementos do processo europeu
para ações de pequeno montante poderiam ter utilidade ao trato das ações
repetitivas nos juizados especiais cíveis brasileiros. Considerar-se-á, para tanto, as
modificações de alteração do Regulamento (CE) 861/2007 propostas pela Comissão
Europeia, já que não faria muito sentido adotar ideias consideradas superadas ou
ineficientes no contexto em que criadas.
Já se defendeu, no Capítulo 2 desta dissertação, para a manutenção da
correspondência entre direito posto e direito pressuposto e, pois, da legitimidade da
norma e da própria viabilidade dos juizados especiais cíveis brasileiros, a
necessidade de pequena alteração legislativa, vedando-se expressamente o
ingresso no sistema especial das ações que versem sobre direitos individuais
homogêneos.
Contudo, essas ações repetitivas teriam outro destino e abarrotariam
outro juízo. Ou seja, o fato é que elas existem e continuarão existindo, mesmo que
se negue a elas a entrada nos juizados especiais. O que se pretende exatamente
dizer é que, enquanto se continuar tratando o que é coletivo como individual,
fracionadamente, o problema seguirá existindo e algum juiz terá que dar conta do
volume invencível, esteja à frente de um juízo comum ou de um juizado especial.
Se os juizados especiais cíveis continuarem tendo que fazer frente a essa
demanda, forçosamente se necessitará de alguma flexibilização do rito e até mesmo
de alguns dos princípios informadores dos juizados especiais.
É nesse contexto que o processo europeu para ações de pequeno
montante aparentemente pode contribuir.
O primeiro elemento que se pode extrair do Regulamento (CE) nº
100
861/2007 que sem dúvida agilizaria muito o trâmite das ações repetitivas é a
ausência de obrigatoriedade da tentativa de conciliação, deixando-se tal avaliação a
critério do juiz.
Não sem boas razões, vários entusiastas dos juizados especiais, muito
embora o autor também o seja, certamente se postariam absolutamente contrários a
isso. É que a conciliação está no cerne dos juizados especiais brasileiros. Porém, e
conforme já se viu, a experiência tem demonstrado que os grandes demandados
neste tipo de litígios não os tratam um a um, mas sim como um grande fenômeno
em que, via de regra, não querem abrir nenhum precedente de conciliação com
nenhum dos autores individualmente. Preferem arriscar-se pelo menos às primeiras
decisões judiciais definitivas, porque o impacto econômico de conciliar em todos os
feitos antes disso poderia ser expressivo. Sucede, não obstante, que não raro as
primeiras decisões definitivas e irrecorríveis sobre tais questões podem demorar
anos, chegando até o Supremo Tribunal Federal.
Ora, podendo o juiz, conforme seu prudente critério, dispensar a tentativa
de conciliação nesses casos, consegue imprimir-lhes uma tramitação muito mais
rápida, pois também não raro a disponibilidade de conciliadores e até mesmo de
salas de audiência é mínima e a necessidade de designação de milhares de
audiências, como já constatado, pode comprometer em anos a pauta, pondo por
terra o tão precioso direito de acesso à justiça.
Na esteira desse elemento, há outro do processo europeu que poderia ser
aproveitado com sucesso nos juizados especiais brasileiros. Novamente, a
resistência seria grande, porque é um dos princípios mais caros aos juizados
especiais. Acontece que, mitigando a oralidade, ou mesmo quase a dispensando,
como faz o Regulamento (CE) nº 861/2007, pode-se dispensar a realização de
sessão de conciliação.
Nas ações repetitivas, que em regra não necessitam de audiência
instrução e julgamento, e na ausência de previsão específica na Lei nº 9.099/95,
bastaria respeitar um prazo de resposta de dez dias, que é o de antecedência
mínima da audiência prevista no art. 277 do Código de Processo Civil para o rito
sumário. Neste caso, o procedimento realmente acabaria muito semelhante ao
europeu, pois, salvo alguma situação excepcional, ficaria reduzido, em primeiro
grau, à petição inicial, resposta e sentença escritas.
101
O processo seria inegavelmente mais célere, não só pela tramitação
enxuta e limitada ao necessário, mas, principalmente, pela desnecessidade de
espaço físico e de pessoal para a realização de audiência. Sendo tais recursos
limitados, mil ações ajuizadas num só dia levam, marcando-se audiência, a um
prolongamento exagerado do tempo de duração de cada um deles, sobretudo
daqueles cujas audiências sejam designadas para as datas posteriores.
Mitigando-se a oralidade em casos tais, poder-se-ia dar trâmite
temporalmente idêntico a todos, criando-se uma desejada uniformidade e
privilegiando-se significativamente a celeridade. Mais importante do que tudo isso,
assegurar-se-ia o acesso à justiça àquele autor que ajuizou uma causa típica de
juizado especial (pedido de indenização por danos materiais em acidente de trânsito,
por exemplo), o qual teria sua audiência muito mais próxima no tempo, com a
presença de uma contraparte possivelmente aberta ao diálogo e à conciliação,
considerada a natureza da causa.
Um terceiro elemento constante do processo europeu e que poderia ser
útil no rito dos juizados especiais, nem tanto em relação às ações repetitivas, é o uso
da videoconferência. Embora haja alguns experimentos isolados nesse sentido no
âmbito dos juizados especiais, a realidade é que, ante os efeitos legais já
explicitados do não comparecimento em juízo tanto do autor quanto do réu, pouco se
usa o recurso. A desnecessidade de comparecimento pessoal, contudo, privilegiaria
o acesso à justiça, em especial para o litigante que não reside na comarca onde o
processo tramita. Há que se ter em mente, outrossim, quanto a isso, que o Brasil é
um país de território continental, cerca de noventa e duas vezes o território de
Portugal. A distância, em linha reta, entre Florianópolis e Manaus, cerca de três mil
quilômetros, é maior do que a distância de Braga ou Lisboa a Berlim.
A
possibilidade
de
apresentação
de
depoimentos
escritos
de
testemunhas, partes e peritos seria também de utilidade à celeridade dos juizados
especiais, muito embora contrária à tradição judicial brasileira. Com efeito, crê-se,
sobretudo nas causas submetidas a limitação de valor (nos juizados especiais cíveis,
embora seja regra, há causas, por sua natureza, em que a limitação não existe), que
se pode abrir mão da segurança jurídica do depoimento prestado diretamente ao juiz
em prol da celeridade. Os valores jurídicos que se visa proteger, nesses casos,
deveriam ser sopesados com vistas à importância econômica da causa.
102
Por derradeiro, acredita-se que, tal qual no processo europeu para ações
de pequena monta, embora não seja por óbvio exclusividade desse, deveria haver
nos juizados especiais cíveis brasileiros a imposição do pagamento de despesas à
parte vencida em primeira instância, ainda que com limitação.
Muito embora a gratuidade esteja aparentemente em consonância com o
amplo acesso à justiça, a verdade – e os quase vinte anos de existência dos
juizados especiais assim mostram – é que ela permite um sem-número de aventuras
jurídicas, pois, não havendo qualquer consequência em caso de insucesso, os
juizados especiais acabam servindo frequentemente como “laboratório de testes”
para teses e pedidos novos, às vezes muito pouco jurídicos, sobretudo no âmbito
dos direitos individuais homogêneos. Isso acaba por tomar força de trabalho que
poderia ao mesmo tempo estar sendo empregada em processos “reais”, por assim
dizer. E com esse efeito nefasto, a gratuidade acaba em realidade por prejudicar o
acesso à justiça em vez de servir à sua causa.
Ressalta-se que a extinção da gratuidade automática nos juizados
especiais não excluiria a possibilidade de se a requerer ao juiz, nos termos da lei de
regência específica.
3.4
SÍNTESE DO EXPOSTO
No presente capítulo abordou-se o contexto das liberdades econômicas
do direito da integração europeu, no qual foi elaborado o Regulamento (CE) nº
861/2007, que estabelece o processo europeu para ações de pequeno.
Fez-se o cotejo do referido regulamento com a Lei nº 9.099/95, naquilo
que era útil à pesquisa e à questão central aqui trazida, apontando-se similaridades
e diferenças.
Ao final, destacaram-se os elementos do processo europeu de pequeno
montante que se julga capazes de contribuir ao tratamento adequado das ações
repetitivas nos juizados especiais cíveis brasileiros.
103
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho iniciou ocupando-se do acesso à justiça. Viu-se
que
existe uma concepção jurídica majoritária de que vai muito além da simples
facilidade de ajuizar demandas e de provocar o Estado a solucionar conflitos.
Segundo essa concepção atual, o acesso à justiça é o direito fundamental a uma
ordem jurídica justa, a qual deve garantir o acesso materialmente igualitário de todos
ao sistema jurídico e à obtenção de soluções adequadas, efetivas e em prazo
razoável aos conflitos.
Constatou-se como tal direito fundamental está positivado nas
Constituições portuguesa e brasileira, assim como na Declaração Universal dos
Direitos Humanos e nas Convenções Europeia e Americana de Direitos Humanos.
Investigou-se a distinção entre acesso à justiça e acesso ao Judiciário,
tendo-se podido constatar que, embora de formas distintas, o acesso à justiça é uma
preocupação existente desde que o ser humano se organizou social e politicamente.
Viu-se que quando o Estado contemporâneo se consolida, nos
primórdios do século XX, o acesso à justiça começa a tomar a feição que se
desenvolveu até os dias de hoje, ocupando-se em buscar a igualdade real, e não
meramente a formal. A partir dos anos 1960, amolda-se no conceito que passa a ter
atualmente, que é o contemplado pelas Constituições portuguesa e brasileira.
A partir da Constituição brasileira de 1988, surge a explosão de
litigiosidade que se verifica até o momento atual e, em 1995, a Lei nº 9.099, que cria
os juizados especiais cíveis e criminais. Visava-se, com isso, ampliar o acesso à
justiça, facilitando-se o acesso às cortes e ao mesmo tempo buscando-se um
procedimento rápido e eficiente.
Elucidou-se, a partir dessa evolução histórica, como o acesso ao
Judiciário e o acesso à justiça não se confundem.
O trabalho prosseguiu com o exame da duração razoável do processo,
vendo-se como seu conceito está atado ao caso concreto. Pôde-se, também,
estabelecer que sua definição, de qualquer maneira, exclui qualquer dilação
injustificada do processo, inclui a superação dos elementos textuais e não textuais
transponíveis e exige, respeitada a reserva do possível, sua implementação pela
104
Administração quando da insuficiência de recursos e o aperfeiçoamento normativo
quando da obsolescência das normas instrumentais.
Perquiriu-se sobre a indissociabilidade entre o acesso à justiça e a
razoável duração do processo, atestando-se como são direitos que interagem entre
si e se complementam, pois compõem e se voltam à consecução do mesmo valor
jurídico, que é o da efetividade da prestação jurisdicional.
No segundo capítulo se investigou o fenômeno das ações repetitivas
nos juizados especiais cíveis estaduais, vendo-se como a proliferação desse
fenômeno comprometeu a efetividade de tais juizados a ponto de chegar-se à falta
de correspondência entre o direito posto e o direito pressuposto, de forma a afetar
sua própria legitimidade. Foi constatada, ademais, a importância da efetividade das
agências reguladoras para a efetividade dos juizados especiais cíveis. Foram
abrodadas técnicas processuais que auxiliam no julgamento de tais demandas.
A pesquisa, realizada visando a titulação em mestrado tanto pela
Universidade do Vale do Itajaí, de Itajaí-SC, Brasil, como pela Universidade do
Minho, de Braga, Portugal, acabou conduzindo à busca de conhecimento sobre a
União Europeia e o tratamento por esta dispensado às pequenas causas no âmbito
da integração europeia. Com isso, estudou-se o Regulamento (CE) nº 861/2007, que
estabelece o processo europeu para ações de pequeno montante, procurando-se
cotejá-lo à Lei nº 9.099/95.
Este foi o objeto do terceiro capítulo, Ao final, destacaram-se os
elementos do processo europeu de pequeno montante que se julga capazes de
contribuir ao tratamento adequado das ações repetitivas nos juizados especiais
cíveis brasileiros.
A pesquisa e o estudo foram significativamente úteis. Como já se
afirmou anteriormente, a proposta ao se estudar o tema não era a de encontrar
soluções que, como se sabe, não dependem apenas de fatores jurídicos. No
entanto, colocar o problema à luz sobretudo das origens e da mens legis dos
juizados especiais cíveis, bem como da práxis do direito europeu da integração a
respeito das ações de pequeno montante, teve o condão de fazer pensar fora do
trilho a que a prática judicial habitual acaba conduzindo.
Esse deslocamento de uma forma de pensar tipicamente atrelada à
prática judicial para a da investigação acadêmica, mais ainda feita em âmbitos
105
territoriais distintos, foi capaz de conduzir a ideias que, se não são definitivas nem
traduzem soluções prontas ao problema posto, pelo menos fornecem a ponta da
linha a quem está no labirinto.
E foi em tal contexto que algumas ideias à reflexão surgiram da
investigação, as quais se pode sinteticamente elencar da seguinte forma:
a) Evitar-se a perda de legitimidade dos juizados especiais cíveis que se avizinha,
pelo desvirtuamento da sua lei de regência, parece ser possível com pequena
alteração no direito posto para que contemple aquilo que já integrava o direito
pressuposto que lhe corresponde desde sua criação, excluindo-se expressamente
a competência dos juizados especiais cíveis para demandas individuais baseadas
em interesses individuais homogêneos. Os anseios do todo social no tocante aos
interesses individuais homogêneos e à litigância de massa, assim, seriam
contemplados pelo juízo ordinário, até a criação de direito posto que
correspondesse a esse direito pressuposto, preservando-se os juizados especiais
cíveis do risco de deslegitimação;
b) É absolutamente essencial fazer com que as agências reguladoras tenham plena
efetividade, pois isso aumentaria a efetividade dos juizados especiais cíveis;
c) a mitigação da oralidade, a desnecessidade de presença física e a facultatividade,
a critério do juiz, de se tentar conciliar as partes, conforme se dá no processo
europeu para ações de pequeno montante, são elementos que, se empregados
nos juizados especiais cíveis brasileiros, aparentemente facilitariam o tratamento
adequado das ações repetitivas, pois privilegiariam a celeridade, em prol da
razoável duração do processo e, portanto, o próprio acesso à justiça.
Longe de se ter pretendido esgotar a investigação sobre o problema
proposto, espera-se ter podido pelo menos assentar mais um tijolo à colossal obra
de se erigir uma sociedade mais justa e mais fraterna, capaz de atender os anseios
de justiça de quem dela necessita e hábil a contornar os problemas que o direito,
fato imperfeito que é, mais talvez do que norma e valor, insiste em nos oferecer
diariamente.
106
4
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