Série Percurso Educativo FAMÍLIA: O PRIMEIRO SUJEITO EDUCATIVO João Carlos Petrini é Doutor em Ciências Políticas pela PUCSP, onde lecionou durante muitos anos. Diretor do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família e também Coordenador do Mestrado em Ciências da Família, da Universidade Católica (UCSal). Maria Grazia Figini é Coordenadora do Setor de Apoio à Entidades de Acolhida de Crianças e Adolescentes da CDO (Companhia das Obras Itália). Lílian Perdigão Caixêta Reis é Mestre em Ciências da Família pelo Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família/BA e Coordenadora do COF – Centro de Orientação da Família/BA. João Carlos Petrini Maria Grazia Figini Lílian Perdigão Caixêta Reis (palestrantes) Série Percurso Educativo FAMÍLIA: O PRIMEIRO SUJEITO EDUCATIVO Luisa Cogo Cilene C. Caetano Chaves (organizadoras) Associazione Volontari per il Servizio Internazionale Belo Horizonte 2003 Família: o primeiro sujeito educativo Série Percurso Educativo Organização: Luisa Cogo e Cilene C. Caetano Chaves Preparação de textos: Cilene C. Caetano Chaves e Elisabete R. do Carmo Silva Revisão: Eneida Maria Chaves Projeto gráfico: Juliana Vaz Produção Gráfica: Derval O. Braga Júnior (www.e-mega.com.br) Brasil 2003 Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro Família: primeiro sujeito educativo / Luisa Cogo, Cilene C. Caetano Chaves (orgs.). Belo Horizonte: CDM: AVSI, 2003. 84 p.; 21 cm. – (Percurso educativo) ISBN: 85-88559-05-6 1. Educação, I. Cogo, Luisa. II. Chaves, Cilene C. Caetano III. Título Sumário Apresentação ................................................7 Notas para uma Antropologia da Família Palestra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Família, Lugar de Acolhida e Solidariedade Palestra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 COF – Uma Experiência com Famílias Palestra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 Família: O Primeiro Sujeito Educativo Debate . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 Viver na Gratuidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 Apresentação Luisa Cogo Família: o primeiro sujeito educativo é o último da trilogia Percurso Educativo, que foi elaborado para auxiliar as Obras envolvidas no Projeto Rede de Infância, gerido pela AVSI – Associação Voluntários para o Serviço Internacional e pela CDM – Cooperação para o Desenvolvimento e Morada Humana – através de um convênio realizado com a CEI – Conferência Episcopal Italiana – e o MAE – Ministério do Exterior do Governo Italiano. Os dois primeiros livros Educar-se para educar, e Sem construir, como pode o homem viver? reuniram as atas de dois seminários; o primeiro teve como intuito indicar os passos de um percurso educativo no qual a realidade das crianças e de suas famílias é abraçada com todos os seus fatores constitutivos; o segundo, para além da pergunta, retomava a origem de cada uma das Obras educativas, porque o que aparentemente é só um fato histórico que marca a fundação de uma instituição se faz presente no cotidiano de cada uma através da postura educacional adotada, na escolha dos conteúdos e da metodologia de trabalho, chegando até ao nível organizacional. Neste volume coletamos as atas de um encontro realizado em Belo Horizonte, com o intuito de ajudar a aprofundar o olhar sobre a família, enquanto sujeito protagonista da educação. As obras da Rede trabalham, em sua maioria, com famílias pobres, residentes em periferias, e apresentam um contexto familiar frágil e muitas vezes desestruturado, devido a fatores como desemprego, alcoolismo e dependência química. No trabalho que se realiza diariamente se corre o risco de deixar-se levar pela assistência, que é a 7 Família: o primeiro sujeito educativo 8 forma mais imediata, rápida de responder a uma necessidade: trabalhar “para” a família e não “com” a família, na pretensão de tentar definir as prioridades da mesma. Na experiência compartilhada durante o seminário emergiu o desejo de que a família seja reconhecida como capaz de educar, mesmo em um contexto frágil, tornando-se um sujeito que estabeleça quais são as suas necessidades e prioridades. Foi ressaltado o fato de que a educação acontece num recíproco pertencer, onde adulto e criança/adolescente precisam de um lugar educativo, uma morada, precisam encontrar um mestre, que os acompanhe no caminho da vida. Para a maioria das crianças e suas famílias essa morada é encontrada nas obras. O centro educativo e a creche com os sujeitos envolvidos, tornam-se uma morada que não substitui a família mas a ajuda a tornar-se mais consciente do seu verdadeiro significado. As palestras foram proferidas pelo Dr. João Carlos Petrini (Diretor do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre o Matrimônio com sede em Salvador-BA), Maria Grazia Figini (Coordenadora do Setor de Apoio à Entidades de Acolhida de Crianças e Adolescentes da CDO – Companhia das Obras) e Lílian Perdigão Reis (Coordenadora do – COF – Centro de Orientação Familiar). João Carlos Petrini demonstrou que a família, apesar de todos os sinais de dificuldade e de vulnerabilidade continua viva e presente, resistindo às mudanças sociais que estão ocorrendo em ritmo acelerado, se organizando e se reestruturando, reagindo aos condicionamentos externos e ao mesmo tempo adaptando-se a eles, encontrando novas formas de estruturação que se precisa compreender e fortalecer. Maria Grazia Figini, indicou que a família é de qualquer maneira a protagonista, a referência principal da educação, quando esta está presente é preciso sustentá-la, apoiá-la, de forma que possa se tornar um sujeito capaz de desenvolver a tarefa educativa. Nesse sentido é preciso olhar as famílias não como destruídas, frágeis, como algo que deve ser cuidado, deve ser apoiado; mas como um sujeito, lutando contra a mentalidade assistencialista, porque a família é um recurso que pode também ser uma resposta social. Lílian Perdigão, relatou a experiências do COF – Centro de Orientação Familiar, localizado na cidade de Salvador – BA, no qual são realizadas ações, através de equipe multidisciplinar, voltadas ao fortalecimento das famílias que buscam ajuda no mesmo. Apresentação Luisa Cogo O texto "Viver na gratuidade", em anexo, é oferecido aos leitores deste livro porque expressa bem a raiz cultural que fundamenta a postura educativa que se tentou declinar nos trabalhos operativos do seminário. O seminário se colocou como uma contribuição para todas as pessoas envolvidas direta ou indiretamente em ações com as famílias e para as pessoas que se comprometem com a construção de uma mentalidade que considera a família como recurso, na busca de tentativas originais de respostas às necessidades apresentadas. O trabalho, não quis definir uma temática, dar receitas para enfrentar um tema e uma questão, mas quis pôr em jogo todas as pessoas envolvidas na aventura de educar, assim como o caminho que se tentou percorrer ao longo do desenvolvimento do Projeto Rede de Infância, dentro das várias obras sempre mostrou: para educar as pessoas que são encontradas é necessária uma disponibilidade para se deixar educar, pois só isso permite a educação. 9 Notas para uma Antropologia da Família Na sociedade contemporânea, a família é considerada um valor, ideal que a maioria da população cultiva. No entanto, nestas últimas décadas, a família passa por grandes mudanças, que a tornam particularmente vulnerável. Estão mudando o modo de entender e o modo de viver o amor e a sexualidade, a fecundidade e a procriação, o vínculo familiar, a paternidade e a maternidade, o relacionamento entre homem e mulher. A família encontra-se em constante mudança por participar dos dinamismos próprios das relações sociais1. O processo social dos últimos séculos acelerou as mudanças, com conseqüências substanciais em todos os aspectos da convivência humana. A família, integrada nesse contexto, necessariamente passa por transformações de tal magnitude, que parece prestes a desaparecer. A investigação científica mais recente, no Brasil e no exterior, acumula dados que descrevem um enfraquecimento das relações familiares, mas identifica também indícios e evidências de uma surpreendente vitalidade do ideal familiar. Não são poucos os estudiosos que afirmam que, no meio das turbulências, a família empenhase em reorganizar, na sociedade pós-moderna, aspectos da sua realidade que o ambiente sociocultural vai desgastando. Reagindo aos condicionamentos externos e, ao mesmo tempo, adaptando-se a eles, a família encontra novas formas de estrutu- 1 SCABINI, 1998. João Carlos Petrini Família e mudança: entre desaparecimento e reorganização 11 Família: o primeiro sujeito educativo ração que, de alguma maneira, a reconstituem2, sendo reconhecida como uma estrutura básica permanente da experiência humana e social3. A "família tradicional arcaica" descrita por Freyre4, que se afirmou no contexto da cultura rural, entrou em colapso há tempo. Os modelos de comportamento que regulamentavam, nesse contexto, as relações entre os sexos e as relações de parentesco, tornaram-se obsoletos e foram abandonados. A "família nuclear" urbana, analisada por Parsons et al.5, na década de 50, que deveria constituir, segundo a opinião dele, a forma mais adequada de resposta às exigências da sociedade moderna, também não parece um modelo adequado para os tempos atuais. Outras formas alternativas de respostas, que foram tentadas, não ofereceram soluções socialmente significativas. De um lado, ficam sem efeito muitas normas de orientação da conduta dos casais, que tiveram vigência no passado; de outro, ainda não emergem novas formas de agregação familiar, capazes de responder positiva e adequadamente às exigências da vida afetiva, sexual, da gratuidade, e nos aspectos conexos à geração dos filhos, à educação e à transmissão de valores. Como conseqüência disso, as novas gerações encontram mais dificuldades para alcançar a estabilidade psicológica e afetiva, necessárias para enfrentar os desafios da existência na sociedade moderna. Mudanças familiares de grande significado são observadas, ainda que com variações, de acordo com a especificidade de cada grupo cultural ou classe social. Emerge, também, uma redefinição das transições familiares, isto é, uma mudança de status segundo o sexo e a idade, sendo renegociados os papéis em termos de igualdade entre os sexos e as relações entre pais e filhos, em termos mais democráticos, de acordo com uma concepção de igual dignidade da pessoa humana. As novas condições, nas quais se processam a construção da identidade e a socialização, nas diversas etapas da existência, modificam a formação de vínculos e o 12 2 SCABINI e DONATI 1995; DONATI, 1998. 3 ARÌES, 1981. 4 FREYRE, 1992. 5 PARSONS et al, 1974. Notas para uma Antropologia da Família estabelecimento de sistemas de referência, tornando mais complexas as relações entre as gerações. Nesse quadro, as redes sociais bem como as referências pessoais acabam sendo visivelmente mais frágeis, resultando em maior risco para os elos mais vulneráveis do sistema familiar – crianças e adolescentes, mulheres e idosos. Este expressase em configurações diversas, que freqüentemente implicam, de uma forma ou de outra, a exclusão social, seja no sentido da convivência, seja no da participação cidadã. Nesse cenário de mudanças, é necessário compreender os novos arranjos familiares, as novas características que as relações intergeracionais assumem e os sistemas de referência disponíveis para pessoas e famílias nos diversos momentos do ciclo de vida, bem como as funções que assume a família na atualidade, sua relação com os dinamismos sociais, em ambiente caracterizado por pluralismo ético, cultural e religioso. As relações entre os sexos e entre as gerações constituem o fulcro da realidade familiar, ao redor do qual diferentes modelos se estruturam e se decompõem, em conseqüência de circunstâncias históricas e sociais, culturais e ideológicas diversas, dando origem, ora a modelos nos quais prevalecem a cooperação, a reciprocidade, a solidariedade, a negociação, ora a modelos nos quais prevalecem a disputa, a competição, ou a indiferença, a estranheza e o conflito. No decorrer da evolução histórica, a família permanece como matriz do processo civilizatório, como condição para a humanização e para a socialização das pessoas6. É por isso que, apesar da variedade de formas que assume e das transformações pelas quais passa ao longo do tempo, a família é identificada como o fundamento da sociedade7. Nesse sentido, podem ser reconhecidos na família os caracteres de universalidade e de constância no tempo, como relação social primordial e universal8. Muitos estudiosos observam que a estrutura familiar continua presente nas diversas culturas, em todos os períodos históricos, como forma de relação social constitutiva da espécie humana. Esta encontra, no ambiente da família, não só os 6 LEVI-STRAUSS,1967; MALINOWSKI, 1973. 7 LEVI-STRAUSS, op. cit.; ZIMMERMAN, 1971; RADCLIFFE-BROWN, 1973; MAUSS, 1974. 8 LEVI-STRAUSS, op. cit.; LEVI-STRAUSS, 1980. João Carlos Petrini Família, matriz do processo civilizatório 13 Família: o primeiro sujeito educativo elementos favoráveis à sobrevivência, mas as condições essenciais para o desenvolvimento e a realização da pessoa. Alguma forma de agregação familiar pode ser reconhecida em todas as culturas e em todas as épocas históricas9, define a família como "a união mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos, é um fenômeno universal presente em todo e qualquer tipo de sociedade"10. Cabe indagar a presença e a consistência de indícios, que alguns estudiosos estão apontando como reveladores de sua capacidade de adaptação e de capacidade auto-generativa, nestas últimas décadas. A família emerge, nos estudos destes últimos anos, como locus privilegiado e adequado ao desenvolvimento humano e social, para o qual convergem as mais diferentes linhas de análise. Esta confluência está consagrada em documentos internacionais11 e, no caso do Brasil, em sua Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente. A família constitui uma realidade simples, na articulação das relações entre mulher e homem e entre pais e filhos, e, ao mesmo tempo, extremamente complexa, pois essas relações se realizam segundo diferentes dimensões e envolvem diversos aspectos. Com efeito, a família durante séculos foi objeto de reflexão dos filósofos e dos teólogos, com contribuições nos campos da teologia bíblica, da patrística, da teologia dos sacramentos, da teologia moral, da antropologia teológica, da doutrina social da Igreja, com enfoques diferentes, num permanente diálogo com as circunstâncias históricas e culturais. O mais recente magistério da Igreja, atento às mudanças socioculturais da sociedade moderna, apresenta novas contribuições, ainda pouco conhecidas. À medida que as ciências humanas foram se estruturando como disciplinas científicas, começaram a estudar a realidade do matrimônio e da família, segundo as mais diversas perspectivas epistemológicas, contribuindo para elucidar aspectos muitas vezes não suficientemente considerados. A família passou, então, a ser estudada sob o ponto de vista dos interesses econômicos que nela se encontram; 9 14 LEVI-STRAUSS, 1980. p.154. 10 DONATI, 1992. p. 77. 11 DONATI, 1998; Pontificio Consiglio per la Famiglia, 1999. Notas para uma Antropologia da Família sob o ponto de vista jurídico, pelos aspectos contratuais que o matrimônio e todas as relações familiares contêm; sob o ponto de vista político, especialmente quando se trata de grandes famílias detentoras do poder; sob o ponto de vista psicológico, para estudar os influxos que as relações familiares têm na constituição e no desenvolvimento psíquico dos seus membros; sob o ponto de vista pedagógico, como primeira fonte de educação para as diversas etapas dos ciclos familiares; sob o ponto de vista da sociologia, estudando os processos de socialização, bem como os reflexos dos diversos condicionamentos sociais na realidade familiar; e assim por diante. A lista das disciplinas que se ocupam da família ainda incluem a arquitetura, a urbanística, a medicina, a antropologia cultural, a psiquiatria, a sexologia, a ética, a bioética. A família se diferencia de outras formas de relações sociais ao caracterizar-se por um modo específico de viver a diferença de gênero, que implica sexualidade, e as relações entre as gerações, que implicam parentesco12. O ser humano não pode existir sozinho; pode existir somente como unidade de dois e, portanto, em relação com outra pessoa humana. A diferenciação homem/mulher aparece, assim, como expressão de uma originária unidade dual, que implica e valoriza, simultaneamente, a identidade e a diferença13. A mesma dignidade, os mesmos direitos qualificam a identidade do ser humano, que aparece na história sempre como homem e mulher. A diferença sexual é originária, constitutiva do ser humano, essencial à sobrevivência da espécie. Ao mesmo tempo, observa-se, ao longo da história e nas diversas regiões do planeta, que a diferença sexual foi elaborada culturalmente nas mais diversas formas, definidas, via de regra, em função do jogo de poder entre os gêneros. As imagens e os modelos de comportamento masculino e feminino, fruto de elaborações culturais historicamente determinadas, podem ser rediscutidos, como vem acontecendo no momento presente, em busca de uma correspondência maior para com as modernas exigências de igualdade e de participação14. As relações entre os sexos constituem, nesse sentido, um interessante 12 DONATI, 1998. p.123. 13 SCOLA, 1998. p.32; SCOLA, 1999. p. 338-342. 14 NISOLI; BUFANO, 2000. João Carlos Petrini Relações familiares: identidade e diferença 15 Família: o primeiro sujeito educativo entrelaçamento entre natureza e cultura, entre dados permanentes, não marginais na definição da identidade masculina e feminina, e dados que refletem interesses de natureza socioeconômica, bem como valores, crenças e modelos de comportamento, próprios de cada época histórica e de cada cultura. Nenhum homem e nenhuma mulher são capazes de vivenciar em plenitude, de esgotar, individualmente, todas as possibilidades humanas. Cada um tem sempre, diante de si, o outro modo de ser, irredutivelmente diferente do próprio. O ser humano existe sempre e somente como masculino ou feminino, por mais confusas que, histórica e culturalmente, essas categorias possam parecer. A multiplicidade de experiências existentes é reveladora de uma inquietação própria da cultura pós-moderna, que encontra na sociedade pluralista o espaço para ensaiar novos modelos de convivência entre os sexos, como importantes sinais da busca por soluções mais satisfatórias. A unidade dual é dinâmica, dotada de plasticidade, devendo ser reconhecida, aceita e, ao mesmo tempo, construída a cada momento, no fluxo mutável das circunstâncias históricas, a partir de valores ideais compartilhados. Da consideração dessa unidade dual teve origem a que foi chamada de "antropologia dramática"15. O ser humano, "unidade dual", verifica dentro de si uma carência que o abre para o outro, para o diferente, fora de si. Isto quer dizer que a condição para a realização da pessoa é "ser para o outro"16. O desejo de felicidade pode encontrar a própria satisfação somente através do outro. Na diversidade de soluções que podem ser encontradas na sociedade hodierna, a família, fundada no matrimônio, permanece como o espaço onde as exigências humanas mencionadas encontram maior correspondência, isto é, são acolhidas, valorizando os diversos aspectos das relações entre os gêneros, sem que nenhum deles fique excluído. Nesse sentido, na família, na relação esponsal, realiza-se o paradoxo da condição humana: "o meu eu és tu", como Romeu declara a Julieta17. A tendência a subestimar um dos elementos desta polari- 16 15 VON BALTHASAR, 1982; BOSI, 1991. p.131-139. 16 SCOLA, 2000. p. 345. 17 SHEAKSPEARE, 1995. p. 289-354. Notas para uma Antropologia da Família dade, exaltando ora a diferença, ora a identidade, tem provocado sérios problemas à convivência familiar e social. A família é um espaço de convivência humana ao qual cada membro pertence. Ela constitui uma rede de relacionamentos, que definem o 'rosto' com o qual cada um participa dos diversos ambientes que quotidianamente freqüenta, com o qual encontra as outras pessoas. Para um filho recém-nascido, pertencer a pai e mãe é uma questão decisiva para o seu desenvolvimento físico e psíquico. Mas, durante todo o arco da existência, pertencer a uma realidade maior do que si próprio é, de maneira análoga, fundamental para a pessoa18. Pertencer a um conjunto de pessoas, que constituem uma família, por meio de vínculos complexos e profundos, realiza a pessoa como pai ou mãe, como esposo ou esposa, como filho ou filha, como irmão ou neto ou avô, como homem e como mulher. Os vínculos de pertença, todavia, foram, muitas vezes, motivo de opressão e abusos nas relações familiares. Afirmou-se progressivamente o ideal da liberdade, entendida como autonomia para determinar o próprio percurso de vida. Ampliou-se a disponibilidade a quebrar os vínculos familiares, entre pais e filhos bem como entre cônjuges, quando percebidos como limitadores da própria expressividade. Cabe investigar circunstâncias socio-culturais e religiosas que favorecem a pertença ou a autonomia, procurando identificar a diversidade de valores, que orientam a conduta das pessoas. Os vínculos familiares realizam uma relação na qual a pessoa entra com a totalidade de sua existência, de seu temperamento, de suas capacidades e limites, diferentemente do que acontece com quase todos os outros ambientes da vida, nos quais se estabelecem relações parciais, limitadas a capacidades específicas, correspondentes a funções determinadas. Um grupo de pessoas é reconhecido como família quando se configura como uma relação de plena reciprocidade entre os sexos e entre as gerações. Trata-se de um recíproco pertencer, na maioria das vezes não simétrico, constituído através de processos de vinculação desenvolvidos em contextos diádicos19. 18 SCOLA, 2000. 19 DONATI, 1998; BRONFENBRENNER, 1996. João Carlos Petrini Família: um recíproco pertencer 17 Família: o primeiro sujeito educativo O entrelaçamento de amor, sexualidade e fecundidade Essas características qualificam a família como complexo simbólico importante. Não é por acaso que, quando alguém quer dizer que venceu a estranheza na relação com um ambiente ou com uma pessoa, diz que se tornou "familiar". O complexo simbólico da família é o primeiro ponto de apoio, o primeiro cimento da sociedade. Demonstra-o o fato de que a família é importante também quando a pessoa vive distante, porque está presente como realidade simbólica que determina o vivido psíquico e o sentido existencial das pessoas. A família é relação simbólica e estrutural que liga as pessoas entre si num projeto de vida, que entrelaça uma dimensão horizontal (a do casal) e uma dimensão vertical (a descendência e a ascendência), que supõe a geração de filhos. A família permanece o símbolo concreto de que cada pessoa humana tem um lugar no mundo, não está condicionada a puros interesses ou instâncias de poder. De um lado, o complexo simbólico familiar tem ampla difusão é consideração positiva, por outro, parece perder seus contornos, uma vez que a família é assimilada, às vezes, a qualquer forma de convivência sob o mesmo teto. Na divisão da existência entre atividade produtiva e lazer, a família tende a ser colocada na esfera do "lazer". Nessa perspectiva, a dimensão lúdica parece, muitas vezes, esgotar o significado da sexualidade humana, que não encontraria mais limites, podendo-se eliminar dela qualquer responsabilidade ou vínculo que estenda seus efeitos para além do momento em que se realiza como jogo. Outra conseqüência deste fato é a redução da importância do trabalho e do sacrifício que, num outro horizonte sociocultural, eram assumidos como valores para atender às necessidades do outro, a fim de proporcionar-lhe bem estar e satisfação. Nota-se também certa tendência a reduzir-se a responsabilidade dos cônjuges para com as tarefas da convivência familiar, especialmente no tocante à geração e à educação dos filhos20. Com efeito, a autoconsciência da pessoa e a forma das relações com os outros e com a realidade social se estruturam a partir da própria inserção no mercado do trabalho e pelo acesso ao consumo, atribuindo-se importância menor à própria inserção na rede de relações familiares. 20 18 FOUCAULT, 1984. Notas para uma Antropologia da Família João Carlos Petrini Na sociedade moderna, muitas vezes, parece mais decisivo, para a própria realização pessoal, crescer na carreira profissional, dando mais importância às relações funcionais que se caracterizam pela competição individualista e tendem a favorecer a fragmentação da pessoa. Além disso, difunde-se uma sensibilidade que considera qualquer vínculo como uma amarra mortificante, parecendo desejável ficar livre de qualquer relacionamento mais profundo. O entrelaçamento de amor, sexualidade e fecundidade que, tradicionalmente, constituiu o núcleo do matrimônio e da família, nestas últimas décadas, parece dispensável, podendo-se viver a sexualidade sem a fecundidade, a sexualidade sem o amor, a fecundidade sem a sexualidade21. Estes três elementos ultimamente se distanciaram, cada um percorrendo um itinerário próprio, distinto dos outros, com conseqüências importantes. Por exemplo, a sexualidade separada do amor e da fecundidade afasta-se da esfera da cultura, isto é, da vivência de valores livremente acolhidos, aproximandose sempre mais da esfera da natureza, isto é, da instintividade22. De forma análoga, a fecundidade separada do exercício da sexualidade e do amor aproxima-se da atividade produtiva, segundo a lógica do mercado capitalista, incluindo a avaliação de custos e benefícios. Nesse ambiente, é fácil que o amor seja vivido como sentimento efêmero ou paixão, perdendo aquela riqueza de experiência e de humanidade, que a literatura mundial de todos os tempos documenta amplamente. As novas tecnologias de fecundação artificial, clonação e de manipulação genética apresentam novas questões, ainda em debate, cabendo aprofundar, não apenas os aspectos médicos e psicológicos, mas também éticos e morais23. Com efeito, não somente a sexualidade pode estar separada da paternidade e da maternidade, mas torna-se possível a procriação sem o exercício da sexualidade. A fecundidade desligada de uma relação de amor aparece agora como definida pela decisão individual e pelo acesso à tecnologia sofisticada24. Ainda que soluções desse tipo sejam quantita 21 MELINA, 1996; SCOLA, 2000. 22 CAFFARRA, 1992. 23 SEGUIN, 1997. 24 OLIVEIRA, 1993; RHONHEIMER, 2000; AZEVEDO, 2000; SEGRE e COHEN, 2000. 19 Família: o primeiro sujeito educativo 20 tivamente pouco significativas, recebem tamanha divulgação que, juntamente com outras circunstâncias da cultura contemporânea, favorecem uma imagem de vida adulta "livre" da convivência familiar, reforçando a tendência que considera dispensável o vínculo familiar. Os meios de comunicação social projetam estilos de vida e imagens de família muitas vezes atípicas e contribuem decisivamente para a formação e a difusão de novos valores e novos modelos de comportamento na convivência conjugal. Muitos casais optam, em época mais recente, por uniões de fato. Na realidade, em muitos casos não se trata de uma opção, mas de necessidade imposta pela situação de pobreza que desaconselha despesas com o matrimônio, aguardando tempos mais propícios para consagrar jurídica e/ou religiosamente a própria união. Há, no entanto, uniões de fato, que não pensam em postergar, mas ignoram ou rejeitam o compromisso conjugal estável. Esquiva-se uma oficialização do vínculo, para evitar complicações de natureza jurídica, caso termine o interesse em partilhar a vida, ou pelo temor de que o vínculo se torne uma amarra, que poderá limitar a liberdade individual. É importante compreender como o homem e a mulher elaboram essas circunstâncias, com que grau de liberdade cada um escolhe ser companheiro (a) do outro, em que medida se trata de uma forma de relação que nasce da conquista da igualdade entre os sexos ou de uma edição nova da antiga supremacia masculina. Vale a pena estudar os itinerários dessas uniões no transcorrer do tempo, quanto à duração e a possíveis mudanças do significado daquela união, quanto à cooperação nas tarefas educativas com relação a eventuais filhos e na administração da casa. Cabe indagar como se reorganizam as relações familiares, a paternidade e a maternidade e o parentesco mais amplo, como são vividas as relações com os órgãos da administração pública (escola, centro de saúde, etc.), como, de fato, a legislação é utilizada para defender os interesses dos membros mais frágeis nessas relações. Também se deve elucidar o que parece uma ambigüidade paradoxal: de um lado, a recusa de um vínculo jurídico e/ou religioso que legitime aquela união como família, de outro, a necessidade de serem reconhecidos e aceitos como uma família entre as outras. Nas uniões de fato, o recíproco pertencer-se de um homem e de uma mulher e de eventuais filhos é pensado, pelo menos de início, como uma realidade precária e Notas para uma Antropologia da Família como uma questão privada, irrelevante para a sociedade, um fato que diz respeito apenas à intimidade dos envolvidos, com o qual a sociedade no seu conjunto não estaria diretamente implicada. Mas, no caso em que a união de fato se consolida e dura no tempo, a ponto de seus membros serem amparados pelo ordenamento jurídico, com a atribuição de direitos e deveres análogos aos de uma família juridicamente constituída desde a origem, cabe ainda falar de união de fato? Com efeito, a precariedade que havia sido prevista foi superada e a união vivida apenas como fato privado deixa de existir. A família responde a necessidades humanas e sociais relevantes, por isso é considerada um recurso para a pessoa e para a sociedade25. Muitos estudiosos observam que a estrutura familiar permanece, sob uma multiplicidade de formas, nas diversas culturas, em todos os períodos históricos, como forma de relação social constitutiva da espécie humana26. A família constitui um recurso para a pessoa, nos mais diversos aspectos de sua existência, estando presente como uma realidade simbólica que proporciona experiências no nível psicológico e social, bem como orientações éticas e culturais27. Nela encontram-se os elementos fundamentais da identidade simbólica do indivíduo enquanto ser humano, que o diferenciam de um indivíduo animal. No espaço da vida familiar, verificam-se experiências humanas básicas que duram no tempo, independentemente da vontade das pessoas envolvidas, tais como, a paternidade, a maternidade, a filiação, a fraternidade, a relação entre as gerações e seu impacto na descoberta do nexo com a geração da vida e com a realidade da morte. Em suma, a família é um requisito do processo de humanização, que enraíza a pessoa no tempo, através das relações de parentesco, destinadas a permanecer durante toda a existência. Por outro lado, essas relações remetem a pessoa para a busca de um significado adequado. Nascer, amar, gerar, trabalhar, adoecer, envelhecer, morrer são ações ou processos ligados às relações de parentesco e, quase sempre, escapam ao controle da 25 João Carlos Petrini Família: recurso para a pessoa e para a sociedade KALOUSTIAN, 1994. p. 11; CHINOY, 1993. p. 203. 26 CHINOY, 1993. p. 203; ANSCHEN, 1974. 27 MORANDÉ, 1994; BRONFENBRENNER, 1996; WINNICOTT, 1997. 21 Família: o primeiro sujeito educativo Família: lugar de socialização e educação 22 pessoa. Por causa disso, exigem uma reflexão que busque, para além das circunstâncias dadas, um significado mais profundo. A família também constitui um recurso para a sociedade, pois facilita respostas a problemas e necessidades cotidianos de seus membros. A família é um recurso sem o qual a sociedade, da forma como está organizada atualmente, entraria em colapso, caso fosse obrigada a assumir tarefas que, via de regra, são desempenhadas, de forma melhor e a menor custo, por ela. Através da proteção, da promoção, do acolhimento, da integração e das respostas que oferece às necessidades de seus membros, a família favorece o desenvolvimento da sociedade. A família, constituída por um homem e uma mulher e eventuais filhos, tem sido o lugar fundamental da socialização, da educação das novas gerações. Com efeito, na família é transmitida não apenas a vida, mas o seu significado, o conjunto de valores e critérios de orientação da conduta, que fazem perceber a existência como digna de ser vivida, em vista de uma participação positiva na realidade social28. Na família, a criança faz a experiência de ser acolhida e amada gratuitamente, isto é, sem condições prévias, já no ventre materno e, em seguida, nas diversas etapas do desenvolvimento, até a maturidade. Ela experimenta a positividade de pertencer a pai e mãe, não como um objeto mas como pessoa, no respeito e no diálogo, em contexto afetivo29. Na família, a criança faz experiências e aprende a conviver com a diferença (sexual, de idade, de temperamento, etc.) como algo positivo, educando-se a viver relacionamentos interpessoais de colaboração, serviço recíproco, tolerância, indispensáveis para um equilibrado desenvolvimento. Nesse ambiente, também estão presentes limites de diversa natureza, sendo o maior deles a morte. A convivência familiar apresenta também conflitos, disputas, ausências, escassez de recursos materiais, agressividade e, em alguns casos, desvios do comportamento e violência. Cabe indagar quais condições tornam possível enfrentar positivamente os problemas emer- 28 PIAGET, 1977; PIAGET, 1996. 29 BOWLBY, 1984; DOR, 1991; EMDE, 1995. Notas para uma Antropologia da Família João Carlos Petrini gentes, percebidos como provocação para o desenvolvimento da personalidade e quais condições, pelo contrário, produzem desajustes diversos. A criança dá passos de maturidade quando, acompanhada pelos pais, tem a possibilidade de enfrentar esses limites como desafios que exigem esforço para superá-los ou, caso sejam invencíveis, para aceitá-los30. A família constitui uma rede de solidariedade31, mais ou menos sólida, quase sempre eficaz para oferecer os cuidados necessários a seus membros, especialmente quando apresentam incapacidade temporária ou permanente para prover autonomamente suas necessidades, como nos casos de crianças e idosos ou nos casos de enfermidades físicas e psíquicas ou, ainda, de desemprego. Os cuidados que são recebidos na família resultam particularmente importantes quando não está previsto o atendimento especializado por parte de instituições públicas e quando os serviços de instituições privadas tornam-se inacessíveis, como é o caso da maioria da população. A família, por ser o lugar da primeira socialização e por desempenhar funções socialmente importantes junto aos seus membros, constitui um ponto nevrálgico com relação a um amplo conjunto de necessidades. Com efeito, quando a família se encontra em situação de fragilidade e ausente da existência das pessoas, os problemas enfrentados tendem a agravar-se. Pelo contrário, à proporção que a família consiga interagir nas novas circunstâncias socioculturais, pode contribuir para amenizá-las. A família é, portanto, um sujeito social, alvo estratégico de políticas públicas que venham a atuar no sentido de promovê-la, enquanto rede social eficaz, conduzindo, através do seu fortalecimento, ao desenvolvimento de toda a sociedade. 30 PIAGET, 1987; PIAGET, 1990. 31 SANNICOLA, 1994; SANTORO; PETRINI; MORANDÉ; FORNARI (Org.) 1990. 23 Família: o primeiro sujeito educativo Referências Bibliográficas ANSCHEN, R. N. La famiglia, la sua funzione e il suo destino. Milano: Bompiani, 1974. ARIES, P. 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Nessa aparente contradição, em que, de um lado, se diz que a criança tem o direito de crescer dentro de uma família, proclamado pela Declaração do Direito Universal, e, por outro lado, ataca-se a família na raiz, podemos concordar que são aspectos relacionados à temática família, no entanto tendo cada um formas culturais diferentes de conhecimento da mesma. A família da qual eu vou falar hoje, é um lugar no qual está um pai e uma mãe, que decidem de forma consciente acompanhar o destino dos próprios filhos, ou seja, educá-los. Vocês podem dizer: o que tem a ver essa introdução comigo, que trabalho dentro de uma obra educativa, num centro diurno para adolescentes? É que nós devemos entender o que significa educar. Este é um trabalho que dura a vida inteira. Compreender o que significa a palavra educar não pode acontecer num instante, mas é um percurso contínuo, uma aventura da vida toda; porque educação implica dois sujeitos: um eu e um tu. 27 Família: o primeiro sujeito educativo Fundamentos da educação: um recíproco pertencer. Família: referência principal da educação. 28 Eu conheci muitas das realidades de vocês e estimo o trabalho que fazem com as crianças e com as famílias, porque vocês levam em conta o fato de que a educação se fundamenta sobre um recíproco pertencer em que o adulto e a criança tenham um lugar objetivo com o qual comunicar-se, escutando com afeição a resposta do outro. Uma criança começa a ser feliz quando ela começa a perceber que pertence a alguém. É nesse ponto que pode acontecer o relacionamento, a experiência do relacionamento. É só dentro desse relacionamento que se pode transmitir o sentido daquilo que se é e daquilo que se faz. A educação é um processo muito importante, através do qual uma criança pode se tornar adulta, uma pessoa responsável, ou seja, tornar-se capaz de enfrentar todas as situações cheias de desafios da vida cotidiana, sobretudo nos contextos difíceis de risco. Esse direito de cada criança – de se poder tornar adulta e poder ser educada – é um direito que tem a ver também com a família. É a família que tem o direito de educar: só através de uma hipótese positiva no relacionamento vivido em família que a criança pode ter o desejo de se tornar adulto, de crescer. Introduzi nessa minha primeira parte o fato de que, para educar, precisa-se de uma família, precisa-se de um adulto, um eu, um tu e um lugar que se chama morada. Entendo que o que estou dizendo não faz parte de algo popular, porque o conceito que estou explicando, ou seja, que é possível educar só através de um pertencer, é algo atacado. Vocês sabem que, para poder entrar em relacionamento com um problema, com um objeto, com uma pessoa, precisa-se ter um método: é o objeto, algo que estou observando, que vai determinar o método que eu devo usar para olhar. Por isso não posso estabelecer a priori um método para enfrentar o objeto de um problema. Essa é a reviravolta do trabalho educativo e do trabalho social. Do outro lado, viu-se também na Europa que a resposta à necessidade social dentro da educação tem como ponto de partida um aspecto fundamental: a liberdade. As respostas pré-definidas não podem responder às necessidades do homem, mas respondem apenas ao poder dominante no momento. Para crescer a criança precisa fazer dentro do contexto familiar ou educativo experiência de confiança. Só dentro de um relacionamento de confiança pode acon- Família, Lugar de Acolhida e Solidariedade tecer o desenvolvimento. A família é em qualquer caso a protagonista, é a referência principal da educação; quando está presente, é preciso sustentá-la, apoiá-la, de forma tal que possa se tornar sujeito que desenvolva a tarefa educativa. O adulto, o educador, deve sempre ter consciência das razões do que é educar. Educar significa acompanhar ao sentido da vida. Eu devo saber por que eu vivo, para decidir viver. As regras que vou encontrar enquanto cresço devem ser instrumentos para desenvolver a minha razão e não para poder determinar o desenvolvimento da minha liberdade. O risco do educar é o risco de uma liberdade, é o risco de uma razão afetiva, é um risco de se colocar num diálogo, é um risco que valoriza as potencialidades positivas da família e da criança, é um diálogo contínuo. Eu sei que vocês poderiam levantar logo uma objeção: como é possível trabalhar com a família se não existe família? Vamos dar o exemplo de uma creche: a mãe vem e pede para poder inscrever a sua criança. Aqui nós podemos ter dois caminhos: podemos encontrá-la de forma burocrática, formal, ou podemos começar a olhar para essa mãe ou para esse casal que se apresentou e quer fazer a inscrição do filho. Só se eu tenho a razão, a consciência daquilo que eu estou fazendo, posso decidir empenhar, comprometer o meu tempo e os instrumentos que tenho à minha disposição para conhecer aquela pessoa que está na minha frente; e por isso eu começo a falar com ela, a encontrá-la ou a visitá-la na casa para entender quem é essa criança, de quem se trata; se existe uma família, como é essa família. O conhecimento não é uma forma de cobrança social, não se trata de verificar como é a casa, os cômodos, etc. mas, se vai acontecer a inserção na creche, eu devo conhecer quem é essa pessoa que eu estou colocando na escola: Quem é essa criança? Qual é a sua história? Qual é sua família? Quais são os seus relacionamentos? Quem são os amigos? Quais são as necessidades dessa mulher, dessa mãe e dessa família? A creche não é um lugar onde deixar as crianças por algumas horas, mas é o encontro de pessoas desconhecidas que começam uma história, uma história de relacionamento, um relacionamento também de ajuda. Vocês entendem que o primeiro momento, que pode ser o da matrícula, coloca nossa atenção sobre a família, considerando a origem da criança, a família dela, qualquer que essa seja. Toda a nossa vida é uma busca pela nossa origem. Seja consciente ou inconscientemente, nós estamos buscando a nossa origem. Nós entendemos que educar Maria Grazia Figini Tarefa educativa: um projeto comum compartilhado 29 Família: o primeiro sujeito educativo Compartilhar objetivo e sentido 30 levando em conta o pertencer, levando em conta a família, significa colocar em ato algumas ações e usar instrumentos, porque nós temos que despertar as potencialidades que estão presentes nesta criança, que se apresenta com a mãe para ser inserida na creche. A nossa tarefa não é só a de ensinar algumas competências para essa criança, mas é a de educá-la. E, nesse sentido, a tarefa educativa não pode ser algo individual, mas o resultado de um projeto comum, compartilhado por adultos que livremente assumem a responsabilidade de conduzi-lo. Isso cria de imediato uma visibilidade e também uma cultura no nível civil e social. O processo educativo, se é algo compartilhado entre adultos, que são os educadores e a família, em um lugar, isso logo determina um processo e provoca uma mudança em oposição àquele conceito reduzido de família. Olhando as famílias como destruídas se olham como algo que deve ser cuidado e deve ser apoiado; pelo contrário, a família é um sujeito, um recurso e enquanto sujeito, ela não se coloca logo como um sujeito doente. Nós devemos lutar todos os dias para tirar a mentalidade, que nos foi colocada, de que a família é um sujeito que deve ser ajudado. Pelo contrário, a família é um recurso que pode ser uma resposta social. Desculpe-me se fico muito animada falando dessas coisas, mas neste momento temos muitas notícias nos níveis nacional e internacional que vão contra a família, considerações que se apresentam com uma visão psicológica e sociológica parcial de abordagem à família. Eu não sou contra a utilização de algumas técnicas especializadas, mas é preciso entender que educar é diferente de curar. A educação é feita pelos adultos educadores e pela família; a cura fica nas mãos dos especialistas. O que está acontecendo é que está desaparecendo o conceito de educação, para introduzir alguns conceitos psicológicos com abordagem na criança, para tirar o ponto final, o objetivo, a meta da educação, porque educar é difícil. Para educar, é preciso compartilhar entre os adultos o objetivo e o sentido, é preciso que nos deixemos educar. Meu lema é educar-se para educar, ou seja, uma contínua tensão para querer compreender e ajudar essa criança que está na minha frente a crescer. Isso leva a um diálogo, uma aventura do educar, no qual cada ação, cada passo no processo educativo deve ser a base para enriquecer e criar sempre novos instrumentos, porque é possível educar se nós mudamos. A educação é algo que muda. O trabalho de educar é o Família, Lugar de Acolhida e Solidariedade trabalho mais fascinante, mais interessante da vida porque é uma provocação contínua no encontro de dois rostos, de duas pessoas que juntas procuram e constroem respostas adequadas. Se eu olho para aquela mãe que veio até minha creche para inscrever o filho na escola materna e a olho como família e não só como uma mulher mais seu filho, logo começa-se um envolvimento educativo com a família que coloca algo de novo dentro do ambiente educativo e do ambiente que está ao redor. A liberdade de um povo pode ser compreendida pela liberdade da educação, porque o risco de educar é essa contínua aventura evolutiva. Vocês aqui presentes são os protagonistas desta aventura. Essa consciência pode livrar e fermentar os lugares de vocês, nos quais família e criança podem ser acolhidas e educadas, podem nascer sempre novas respostas também sociais de apoio às famílias mesmo que sejam de risco. Lembrem-se que olhar para uma pessoa é a coisa mais difícil porque eu posso ver uma pessoa, mas para olhá-la eu devo me envolver com esse sujeito que está na minha frente. Não é suficiente dizer que é importante o trabalho com as famílias, mas nós devemos entender o que significa o trabalho com as famílias. Trabalhar com as famílias é diferente de trabalhar para as famílias, porque, quando eu trabalho “para” a família, tenho uma ótica assistencialista; quando digo que trabalho “com” as famílias significa colocar em ação uma dinâmica entre dois sujeitos desconhecidos. Significa conhecer, entender do que esse sujeito precisa. Como faz uma pessoa para entender tudo isso? Só há um modo: trabalhando junto, sendo complexa a situação, resposta não pode ser dada só por uma pessoa, mas pode acontecer dentro de um compartilhar, uma co-divisão entre adultos. Continuo insistindo sobre esses conceitos, porque é fácil partirmos de uma posição de já sabermos como estão as coisas: eu sei o que é uma família, eu sei o que significa educar, eu sei o que é uma criança. Pelo contrário, permanecer sobre o sentido significa um tempo muito longo de trabalho, mas significa antes de tudo que seu trabalho não pode se tornar uma rotina, que seu educar não pode se tornar um simples ensinamento de algumas competências, mas é um pedido contínuo que diz: o que essa criança precisa? O que essa criança quer me dizer? Quem é a família dela? Como faço para estar junto dela? As respostas são diferentes e podem se dar nos encontros Maria Grazia Figini Trabalhar com as famílias, não para as famílias 31 Família: o primeiro sujeito educativo Reconhecer a unicidade de cada família 32 com as famílias nas escolas, nos momentos de festas. Mas, na minha maneira de ver, a questão fundamental é que a família junto com o educador, qualquer que seja o nível cultural da família, possa participar e compartilhar o projeto educativo para aquela criança. Se não é assim, cada ação se torna simplesmente um instrumento, um espaço de tempo e de relacionamento, mas vazio de significado, de sentido. Para educar, nós devemos continuamente despertar em nós o sentido, porque as nossas respostas às crianças e às famílias não devem ser pré-definidas mas devem ser uma contínua surpresa, quase uma antecipação do pedido. Este é o trabalho com as famílias, parece pouca coisa, ou não ter algo de novo, mas é só um cotidiano paciente, uma capacidade de olhar de modo profundo que pode permitir o trabalho real com as famílias. Sendo cada pessoa única e irrepetível, assim cada família é única e irrepetível, eu não posso tratar do mesmo modo todas as famílias, tendo presente isso o seu trabalho se torna uma novidade contínua, não pode ser um costume; eu não posso já saber hoje aquilo que vai acontecer amanhã, porque onde existe um relacionamento entre duas pessoas sempre acontece uma novidade, algo de novo. Há sempre algo que me suscita maravilha, há sempre algo que me antecipa. Estamos falando de ambiente, de família, de educação e de relacionamento. Tudo isso faz parte de uma história, da história pessoal daquela criança, da história daquela família e da história daquele povo. Povo, uma palavra que agora não estamos mais acostumados a usar. Esta história é o trabalho com as famílias; o desejo de conhecer esta história, o desejo de descobrir as raízes e as tradições dessa história, não de cortá-las, porque lembrem-se que cada pessoa que está obrigada, por um poder ou por situações ou por qualquer outra razão, a cortar as próprias raízes não pode ser uma pessoa livre. Lembrem-se que a liberdade não significa fazer aquilo que se quer, mas ter um lugar, uma casa onde se possa desenvolver a competência e se tornar adulto. Quando alguém quer tirar a minha raiz, quando alguém quer que eu esqueça a minha origem, este é um inimigo, e não se pode educar entre inimigos, só entre amigos. Amigo é um nível de responsabilidade, de autoridade da pessoa adulta que é consciente da criança que está na frente dela. Educação vem de uma palavra latina e-ducere que significa tirar para fora. Isso significa fazer com que cada pessoa possa ser aquilo que deve ser. Essa é a tarefa Família, Lugar de Acolhida e Solidariedade Maria Grazia Figini educativa, a mesma tarefa que temos no trabalho com a família. Para que uma mãe possa ser acolhida como uma pessoa que pertence a um núcleo familiar, deve ser olhada de forma diferente, esse olhar que ela recebe, seguramente vai gerar algumas perguntas, e nós podemos criar uma cultura nova só através de perguntas sucitadas e não de respostas pré-definidas impostas. Muitas vezes, nós podemos entender a educação e também a cultura como algo que se baseia sobre o conhecimento de algumas respostas, mas o homem é um pedido contínuo desde o momento no qual uma criança nasce até o momento no qual morre; nós devemos continuamente despertar essa pergunta para podermos trabalhar com a família. Eu não dei para vocês algumas receitas, alguns modelos, eu não deixo algumas respostas, algumas ferramentas, porque essa é a aventura do seu trabalho, de vocês, educadores, dos seus responsáveis e das equipes especialistas. Eu não acredito em um esquema. É importante ter ferramentas, ter instrumentos para poder avaliar de forma qualitativa o trabalho, mas os instrumentos e as ferramentas mudam. Cada vez mais vocês vão crescer nessa dinâmica entre um eu e um tu e as ferramentas se inovarão. Quando as ferramentas permanecem estáveis por muito tempo significa que nós adquirimos um esquema. Dentro de um trabalho de relacionamento, dentro do trabalho com as famílias, dentro do trabalho educativo, não se avança através de esquemas, mas indo cada vez mais fundo no conhecimento. Ou seja, educar-se para educar, estar com as famílias para trabalhar com as famílias. O poder nos quer como indivíduos, quer homens sozinhos, livres de estabelecer qualquer tipo de relacionamento como e quando se quer. O sentido da vida e o sentido do viver vão contra essa concepção de tipo individualista, porque, para buscar o sentido da vida, eu devo estar com outros, devo dialogar com outros, devo me comparar com outros, e, assim, nos tornamos homens livres. 33 COF – Uma Experiência com Famílias A idéia é poder contar para vocês um pouco da nossa história, do trabalho do COF, o Centro de Orientação da Família, desenvolvido nesses três anos, na cidade de Salvador (BA), e relatar também as perspectivas de continuidade. O COF nasceu como uma intervenção do curso de mestrado. Ontem, vocês conheceram o Padre João Carlos Petrini que dirige o Instituto João Paulo II, sede do mestrado em Ciências da Família. Essa iniciativa de criar centros voltados para a questão da família veio do Papa, com a proposta de desenvolver estudos e pesquisas, através do mestrado, mas promovendo também intervenções práticas dentro da realidade da cidade . A forma encontrada para realizar esse projeto foi através de um convênio com a CEI – Comunidade Episcopal Italiana –, a instituição mantenedora, sendo escolhidas para executá-lo a AVSI – Associação de Voluntários para o Serviço Internacional – que é uma ONG italiana, e a CDM – Cooperação para o Desenvolvimento e Morada Humana –, a ONG brasileira parceira da AVSI. O COF como estrutura tem dois aspectos básicos: os consultórios fixos e o trabalho móvel que se dá através da realização de cursos em outras instituições, escolas, associações, paróquias, instituições públicas e privadas. A equipe atua numa perspectiva de trabalho científico junto ao instituto, participando de grupos de pesquisa e organizando seminários sobre o tema família. O objetivo do nosso trabalho é acompanhar e fortalecer famílias em dificuldade. O projeto foi implantado em maio de 2000, com a realização de um curso, Lílian Perdigão Caixêta Reis Objetivo e público alvo 35 Família: o primeiro sujeito educativo destinado à formação da nossa equipe, aberto também a alunos do mestrado e profissionais parceiros. A estrutura do COF é pequena, temos três consultórios, uma sala de reunião e a recepção. E ao todo, atualmente, são seis profissionais desenvolvendo esse trabalho. Os recursos são em torno de 150 mil reais por ano, praticamente para a manutenção dos profissionais. O público alvo – como o COF está situado num bairro central – integra toda a área metropolitana de Salvador, não tendo esse critério de definir uma região ou um grupo de pessoas. O COF, com seu trabalho gratuito, é aberto, sendo recebidas pessoas de todos os tipos, até mesmo famílias do interior da Bahia. A equipe é interdisciplinar, composta pelos seguintes profissionais: • uma médica – Giuseppina Gallicchio; • uma advogada – Isabela Bulos; • uma assistente social – Luciana Leal de Andrade; • duas psicólogas – Lílian Perdigão C. Reis e Sylvana L. A. dos Santos e • um orientador espiritual – João Carlos Petrini. Os serviços oferecidos e o método de trabalho 36 Os serviços oferecidos são: aconselhamento psicológico, serviço social, orientação sexual e planejamento familiar; atendimento jurídico e mediação familiar; orientação espiritual; orientação na educação dos filhos (todos os membros da equipe têm um cuidado educativo no trabalho); orientação para adolescentes e orientação profissional. O método de trabalho, que é base de toda a condução do projeto, tem como ponto de partida o reconhecimento da centralidade da pessoa, a questão do acolhimento: acolher a pessoa naquilo que ela é, aceitar a pessoa, a dignidade da pessoa naquilo que ela é. É uma abordagem horizontal; então, a pessoa é valorizada em todos os seus aspectos. Não é a questão de ver só o psicológico ou só o biológico, mas de ver toda a pessoa, todo o contexto de vida dela, buscando conhecer a história dessa pessoa. Numa abordagem integrada, a equipe é interdisciplinar e tem essa visão mais ampla da situação da família, adota uma abordagem global, porque atua dentro de uma perspectiva de rede de suporte, buscando conhecer todo o contexto em que essa família está inserida e identificando pontos de apoio para essa família. COF – Uma Experiência com Famílias Como é a chegada da pessoa ao COF? A inauguração do COF foi divulgada em todos os jornais de Salvador e na televisão, o que criou uma difusão imensa: no primeiro dia de atendimento, nós tínhamos 40 pessoas já inscritas. A partir daí, os encaminhamentos passaram a ser feitos pelas pessoas atendidas, não precisamos mais nos preocupar em divulgar o COF. As famílias ou os profissionais passaram a ser os maiores divulgadores desse projeto, assim como outras instituições. Quando a pessoa chega para um atendimento, passa por uma primeira entrevista. A pessoa pode ter mais de um encontro com a assistente social, que, nesse primeiro encontro, pode chamar algum membro da família antes de fazer algum encaminhamento. Um aspecto que enriquece nosso trabalho é que a assistente social do COF é formada em terapia familiar sistêmica, possuindo uma especialização que ajuda na condução do atendimento. Essas primeiras entrevistas são importantíssimas, porque ali buscamos conhecer essa pessoa; não é o problema que é enfatizado, pois a pessoa é diferente do problema. Não se centraliza no problema, mas, sim, na pessoa. Nessa primeira entrevista, é iniciado um processo de ajuda, compartilhando a história individual dessa pessoa ou da família. Esse compartilhar a história vai permitindo uma compreensão dessa família e, ao mesmo tempo, a própria pessoa é ajudada no sentido de se apropriar da sua realidade. Quando eles estão contando para a assistente social o que está acontecendo com eles, de onde eles são, quem são eles, vão repensando a sua vida; esse já é um momento de reorganizar, de tentar repensar a sua estrutura de vida e de família. Nesse momento, a assistente social também explica e apresenta o trabalho do COF, todo o funcionamento da equipe, deixando a pessoa ciente de que as questões dela vão ser confrontadas com uma equipe. É interessante isso no nosso projeto, porque a pessoa não confia em um profissional, mas em uma equipe. A assistente social faz os encaminhamentos para a equipe ou para profissionais da rede de apoio externa, se na primeira entrevista ela percebe que a pessoa precisa de uma ajuda médica, já faz esse encaminhamento e, quando leva para a reunião, já se adiantou essa parte. O que é principal nesse trabalho da primeira entrevista é que a pessoa sai daquela postura imediatista, e nós também aprendemos isso. Não é que ali ela vai chegar e resolver um problema de imediato ou que a equipe do COF vai ter uma resposta mágica para dar naquele dia; a pessoa, a partir desse confronto com a assistente social, começa a entender que está começando a percorrer Lílian P. Caixêta Reis 37 Família: o primeiro sujeito educativo Atendimento psicológico 38 um caminho e que existe um caminho que pode ser percorrido. Esse é o principal aspecto na finalização da primeira entrevista. Agora, vamos conhecer cada um dos serviços que o COF oferece. O mais procurado é o atendimento psicológico e, na origem do projeto, esse serviço seria de aconselhamento e orientação. Quando se fala de aconselhamento, pressupõe-se em torno de 10 sessões, normalmente uma sessão por semana, um trabalho de curto prazo. Que mudanças aconteceram conosco e que adaptações foram necessárias dentro desse trabalho? Primeiro, os psicólogos do COF tiveram que entender como realizar o trabalho compatível com a metodologia da instituição, obedecendo àquele aspecto da centralidade da pessoa. A abordagem que encontramos que mais se identificou com essa proposta foi o aconselhamento centrado na pessoa, inspirado no modelo de Carl Rogers. Nesse tipo de aconselhamento, o profissional se coloca como pessoa perante a outra pessoa, busca um relacionamento de reciprocidade, de acolhida, de aceitação da pessoa naquilo que ela é, de empatia, que é o colocar-se no lugar do outro e tentar compreender o outro naquilo que ele está vivenciando. Um aspecto no qual fomos crescendo dentro do trabalho, é que começamos a adotar também o modelo de relação de ajuda, a escuta ativa. Nessa escuta ativa o profissional busca atuar, não só ouvindo o que a pessoa está falando, mas ouvindo nas entrelinhas também e olhando para a pessoa. Assim, não só o conteúdo da fala, mas que sentimentos ela expressa, o pensamento dela, como você vê a organização do pensamento dessa pessoa, depois, o profissional devolve, confrontando suas impressões com a pessoa. Enfim, uma escuta mais ampla. Outra coisa que adotamos em nosso trabalho foi um repertório de intervenções. Por quê? Porque os profissionais do COF têm formação diferente. Por exemplo, a assistente social é terapeuta de família; eu sou logoterapeuta e estou me formando no mestrado em ciências da família; e a outra psicóloga é formada em grupo operativo. Então, começamos a usar dentro do nosso trabalho técnicas e recursos que vinham dessa formação que cada profissional já possuía, valorizando também a experiência de cada um. Isso permitiu uma flexibilidade de recursos: para cada família, é possível usar recursos, intervenções e encaminhamentos diferentes. Como exemplos de recursos, posso pedir que a pessoa faça simplesmente uma lista das coisas mais importantes na vida dela. A partir daí, pode-se ver o que ela COF – Uma Experiência com Famílias valoriza. Listas do que a pessoa gosta, o que ela faz e não gosta de fazer; que responsabilidades, que obstáculos percebe em sua vida, o que pensa na forma de enfrentar esses obstáculos. Usamos muito estas listas, pois, quando a pessoa começa a listar essas coisas, pensa possibilidades a partir dali. Também utilizamos técnicas de desenho, de colagem, dinâmicas com a família, um jogo familiar lúdico quando crianças estão presentes. Um recurso interessante da terapia familiar sistêmica é o genograma, um tipo de uma árvore genealógica. Você faz a história da família, busca averiguar os vínculos entre as pessoas dessa família, o relacionamento, a quem esta pessoa é mais apegada. No COF houve muita demanda para atendimento psicológico e, como não era possível lidar com esta, buscamos alternativas para supri-la. Quando a pessoa tem necessidade de outro encaminhamento, recorremos a profissionais de psicoterapia ou psiquiatras, mas já aconteceu de não conseguir encaminhar a pessoa e, diante de sua situação de sofrimento, optamos por manter o atendimento no COF. Por isso, demos início a um trabalho de psicoterapia breve, que dura em torno de seis meses. Alguns casos chegaram até a um ano, porque era uma necessidade daquela pessoa e decidimos em equipe que era mais interessante que permanecesse em acompanhamento conosco. Assim, há casos que permaneceram um tempo maior. Outra alternativa que encontramos foi o trabalho com grupos. Chamados grupos de encontro, são compostos por pessoas que já passaram pelo atendimento individual: grupos de mães, grupos de jovens e de jovens adultos. Existe uma organização desses grupos em termos de questões, de problemáticas que estão enfrentando. Quando uma pessoa no contexto do grupo confronta, partilha aquilo que ela está vivendo e descobre que outras pessoas vivem questões semelhantes, ou enfrentam as próprias dificuldades com outros recursos, isso também abre um leque de possibilidades para a pessoa de perceber a realidade dela de uma forma diferente. No relacionamento com parceiros, nossos parceiros externos se tornaram quase que membros da equipe. Por exemplo, não há um médico psiquiatra no projeto, mas a convivência, o fato de encaminhar as pessoas para os psiquiatras, fez com que criássemos um vínculo com esses profissionais. Então, muitas vezes ligamos para o profissional para confrontar aspectos relativos ao atendimento (com autorização das pessoas atendidas). Isso cresceu a tal ponto que hoje esses médicos recomendam às Lílian P. Caixêta Reis 39 Família: o primeiro sujeito educativo Orientação sexual e o planejamento familiar Orientação espiritual 40 pessoas que eles estão atendendo que procurem o COF. Tornou-se, assim, uma parceria recíproca. Outro trabalho é a orientação sexual e o planejamento familiar. O planejamento familiar não é o uso de métodos contraceptivos; como viver a maternidade e a paternidade responsável é o ponto principal que focalizamos nesse trabalho. A surpresa para nós é que a demanda maior que apareceu no COF foi justamente de mães que queriam orientações de como lidar com a educação dos filhos em relação à questão da sexualidade. Outras questões são de pessoas com dificuldades sexuais, situação de impotência, frigidez ou mesmo algum problema de adoecimento, ligado a algum vírus. No planejamento familiar, surgem questões de pessoas que não conseguem ter filhos e querem lidar com isso, além da orientação sobre os métodos contraceptivos. A médica apresenta todos os métodos, os riscos implicados nestes e ainda ensina a fazer uso do método natural. Focalizamos a questão da escuta médica, porque ela escuta a pessoa como um todo, a família como um todo e não só aquele ponto do problema que ela traz. É muito importante no trabalho médico e de toda a equipe a questão educativa. Por exemplo, como repertório de intervenções, usamos a indicação de textos, um livro para a família ler, um texto que lemos junto com a mãe sobre os filhos etc. Na orientação sexual, o trabalho educativo, voltado para a responsabilidade na vida sexual, ajuda a entender o sentido da própria sexualidade. A orientação espiritual é principalmente um trabalho de diálogo e confronto, com o orientador, a pessoa desabafa. Depois, volta aliviada para o atendimento com a assistente social e consegue falar com mais tranqüilidade das questões que está vivenciando para os outros profissionais. Há uma abertura maior a partir do momento no qual se confronta com o orientador espiritual. É muito claro para nós e para as pessoas que recorrem a este trabalho que não é uma confissão, mas um diálogo de confronto com o orientador espiritual. No COF nós temos dois orientadores que nos apóiam que são o padre Petrini e o Padre Guido. É interessante o trabalho do Padre Petrini nessa perspectiva de lidar com os conflitos familiares, ou oferecendo esclarecimentos sobre a visão da igreja. Às vezes, a pessoa tem uma série de superstições e crenças em relação ao que COF – Uma Experiência com Famílias a igreja permite, ao que não permite, às proibições etc. Quando faz esse confronto com o orientador, começa a entender que pode ser acolhida dentro da igreja naquilo que ela é, com suas dificuldades. Outro ponto é dos dilemas religiosos, quando as pessoas, diante da dificuldade, buscam uma resposta mágica em religiões diferentes, indo do candomblé ao espiritismo, à igreja católica, nessa confusão acerca da fé. É ainda na orientação espiritual que as pessoas buscam conforto e acolhimento diante de situações de perda ou adoecimento; aprendem a lidar com isso e a aceitar essa dificuldade. O principal aspecto é que, neste trabalho de orientação espiritual, se resgata a dimensão espiritual, também dentro do trabalho da equipe. É entender a pessoa não só do ponto de vista biológico, médico, psicossocial, mas a pessoa também como dimensão espiritual. Aqui se percebe mais claramente o significado do reconhecimento da pessoa em sua totalidade, sua valorização em todas as dimensões. Contamos ainda com a ajuda do Padre Guido que trabalhou com jovens que faziam uso de drogas, e nos tem dado grande apoio na orientação a famílias que têm dificuldades em relação à dependência química. A orientação jurídica há uma identificação entre o COF e a advocacia. A nossa advogada sempre fala: qual é o objetivo do direito? É o bem da pessoa. Ela coloca que no COF é permitido que seja resgatado o interesse pela pessoa, a preocupação com o bem do outro. Há uma postura de encontro com a pessoa da parte da advogada e isso dá uma perspectiva diferente do trabalho. Por exemplo, às vezes, no trabalho com casais separados, temos dificuldade de chamar um pai para o atendimento psicológico. Este resiste. "Eu? Psicóloga, o quê? Não preciso disso não". Aí, quando enviamos a carta da advogada, eles vêm na hora, se é questão jurídica aparecem. E se surpreendem porque, nesse encontro, quando ela fala do COF e conta o que está sendo feito com a família, esses pais passam a se tornar parceiros e se abrem ao trabalho como um todo. Recursos que a advogada usa e que são muito importantes para nós são essas cartas convite, chamando para a entrevista, e o acordo extra-judicial, por exemplo em questões de pensão alimentícia ou da guarda dos filhos. A advogada orienta a família no COF e quando estes vão ao juiz é praticamente para homologar o acordo feito. Lílian P. Caixêta Reis Orientação jurídica 41 Família: o primeiro sujeito educativo Dinâmica do trabalho 42 Há um atendimento em conjunto com a assistente social, nos casos em que toda a família é convidada. A assistente social participa e ajuda nas intervenções, o que é muito importante. Existe também o trabalho de mediação familiar, que não é buscar a conciliação ou reconciliação. Muitas vezes a mediação familiar é ajudar a família a lidar com a situação de sofrimento gerada pela separação ou pela situação de sofrimento que as crianças estão vivenciando, para que os pais possam perceber que eles não são só um casal, mas são pais, que têm filhos para cuidar. O que se busca mais é essa capacidade de diálogo do casal em relação à questão dos filhos, a fim de acalmar essa tempestade dentro do contexto do sofrimento que eles estão vivenciando. E, finalmente, para vocês entenderem a dinâmica do trabalho como um todo: a pessoa vem, passa pela secretária, que foi treinada para fazer o atendimento telefônico e para receber a pessoa. É preciso cuidado de não ficar conversando dos problemas com a pessoa na recepção. A pessoa chega ali num momento de confusão, de grande angústia, e às vezes fala muito de si na recepção ou pelo telefone; então, nós nos preocupamos com essa questão, isto é, cuidar da pessoa desde a recepção. Depois, acontece a entrevista, e as informações são levadas para a equipe, que trata da pessoa dentro de um contexto de família. O caso é discutido, confrontado pela equipe como um todo. A pessoa volta para a assistente social que faz o encaminhamento para os próprios profissionais ou para outras instituições. Mesmo quando a pessoa é encaminhada para outras instituições, um tempo depois buscamos um contato, averiguando como que a pessoa está. Nós já estabelecemos um vínculo de relacionamento com as instituições de forma que os próprios profissionais nos ligam para dizer "Olha, recebi alguém de vocês". Ou, quando a assistente social liga, já tem a confirmação de que aquela pessoa já foi atendida. As pessoas são sempre encaminhadas com uma cartinha dizendo o nome do profissional que as está encaminhando. No final, é feita uma avaliação do trabalho com a pessoa, que é encaminhada para outra instituição ou acontece o desligamento do COF. Esse desligamento pode acontecer depois de um encontro, de dois, de um ano, depende da família. Já aconteceu caso em que com apenas um atendimento foi possível esclarecer e a família já conseguiu entender suas dificuldades e daí pôde ser desligada do COF. COF – Uma Experiência com Famílias Quanto ao trabalho de equipe, funciona como uma rede de apoio interna. As nossas reuniões são obrigatórias, uma vez por semana, com quatro horas de duração, duas para discussão dos casos e duas para estudo. Nós nos ocupamos da análise dos casos, da revisão metodológica, de ver o que a gente está fazendo, se o caminho certo é esse, que método é o mais indicado. O momento de estudo, que é obrigatório, parte principalmente das questões que estamos enfrentando, temas como depressão, psicopatologia, mediação familiar, planejamento familiar, enfim, aquilo que nasce do nosso trabalho é estudado, aprofundado pela equipe como um todo. O que motiva o nosso trabalho? Essa pergunta foi muito interessante, porque no início ficávamos preocupadas em atender à demanda, parecia que tínhamos que atender toda a população de Salvador. Depois, nós nos demos conta de que não era isso, que o nosso trabalho nasce da pessoa. Assim, a nossa preocupação hoje é oferecer um trabalho de qualidade para aquela pessoa, o que implica em ser presença para aquela pessoa e em estabelecer um relacionamento com ela. Quando entendemos isso começamos a elaborar melhor a angústia da lista de espera. No primeiro atendimento, a assistente social esclarece para as pessoas que não há horário para atendimento psicológico, mas caso queiram aguardar seu nome será inserido em uma lista de espera. Como a demanda é imensa, algumas pessoas só foram chamadas para atendimento psicológico depois de um ano de inscritas. Ficamos surpresas ao constatar que estas ainda tinham necessidade de acompanhamento e que até aquela data não tinham conseguido atendimento em outro local. Por outro lado, estas pessoas ficaram agradecidas por terem sido respeitadas e chamadas na sua vez. A partir daí, começamos a valorizar a lista de espera de outras instituições, incentivando as pessoas para que se inscrevam e acompanhando-as até que sejam chamadas. Aprendemos a trabalhar juntos, dentro de uma visão complexa e interdisciplinar. A equipe também é um espaço de conforto e de contenção para a própria ansiedade e angústia do profissional. Lidamos com situações de muito sofrimento: muitas vezes o profissional fica vulnerável e a nossa fragilidade aparece naquele atendimento. Além disso, a responsabilidade é partilhada, porque você tem uma segurança, mesmo que cometa um erro no atendimento, pode repensar isso junto com a equipe. Lílian P. Caixêta Reis Trabalho de equipe 43 Família: o primeiro sujeito educativo A rede de apoio Recursos e instrumentos 44 As nossas hipóteses são confrontadas, o que nos dá uma firmeza de postura no relacionamento com o outro. E tanto acontece que percebemos um amadurecimento dos profissionais do projeto. Se antes recorreríamos à equipe a toda hora, hoje conseguimos ter uma autonomia no atendimento, porque já assimilamos uma postura de trabalho, uma postura de como nos colocar perante a outra pessoa. Amadurecemos nessa capacidade de relacionamento com o outro. A rede de apoio externa é composta por esses contatos já mencionados. Hoje, temos vínculo com várias instituições públicas e com outros projetos e profissionais, como psiquiatras, farmacêuticos, fisioterapeutas, médicos, homeopatas e clínicos. Visitamos todas as instituições e profissionais aos quais encaminhamos pessoas do COF. Nesta visita, avaliamos se a instituição tem uma estrutura que vai favorecer a pessoa e nos perguntamos se esse profissional tem uma postura coerente, uma postura ética, e se o espaço que ele está oferecendo é adequado para a pessoa que estamos encaminhando. O resultado disso é que hoje as famílias atendidas são nossos maiores parceiros. Inclusive uma pessoa que foi atendida no COF, elaborou um guia da comunidade, com uma série de instituições que ela visitou e trouxe dizendo: "– Olha encontrei esses parceiros para vocês!" Eles se tornam nossos parceiros, dessa maneira: "– Consultei com um médico que é muito bom, aqui está o nome e telefone dele para vocês indicarem às pessoas." Enfim, participam do nosso trabalho. Nossos recursos e instrumentos: – a reunião de equipe, como eu falei que é obrigatória; – os relatórios de atendimento (todo profissional tem um caderninho onde anota cada atendimento, os procedimentos que foram feitos, intervenções, o que pensa de tarefa, de condição do trabalho, para confrontar com a equipe); – indicação de leituras para as pessoas que estamos atendendo e para os profissionais em relação ao aprofundamento de algum tema; – o prontuário – toda família ou pessoa atendida no COF tem um prontuário que só é acessível aos membros da equipe, por uma preocupação ética, tendo o cuidado no sentido de não estar expondo as famílias que estão sendo atendidas. Então, esse material, essas anotações nossas só são acessíveis aos membros da equipe. Enfim, a carta de encaminhamento e as visitas às instituições. Atualmente estamos nos dedicando ao trabalho de organização do banco de dados, que parte um pouco do prontuário, no sentido de identificar o perfil das COF – Uma Experiência com Famílias pessoas que foram atendidas, as demandas, a situação socioeconômica, a escolaridade das pessoas que vieram até nós. E à sistematização, que é escrever essa experiência do COF para que ela possa ser multiplicada e divulgada em outros contextos. Resultados do nosso projeto – em termos quantitativos já realizamos em dois anos e meio de trabalho 16 cursos, sendo beneficiadas 150 pessoas. Aproximadamente 350 famílias foram atendidas no COF, isso não quer dizer 350 pessoas, porque partimos de um núcleo familiar e caminhamos em direção a uma família mais extensa. Desse modo, é um número bem maior de pessoas atendidas. Firmamos convênios com cerca de 25 instituições, como a Secretaria de Saúde, o Centro de Referência do Idoso, o Centro de Referência do Diabético, hospitais, enfim, várias instituições. E fizemos parceria com duas farmácias, isso é importante porque muitas pessoas que atendemos fazem uso de medicamentos para depressão ou outros quadros, além de parcerias com profissionais, como médicos, psicólogos, até fisioterapeutas. Aspectos qualitativos – o que confirma principalmente o valor do trabalho que foi realizado em três anos pelo COF é o retorno das pessoas, pelo relato da história de vida, a mudança, o percurso que a pessoa faz conosco. A pessoa ou família chega de um jeito no COF e, quando sai, muda, mudou na forma de enfrentar a dificuldade ou no relacionamento. Não quer dizer que sai dali com todos os problemas solucionados, mas consegue ter uma compreensão e melhor clareza da sua própria realidade, da sua situação. O reconhecimento principal vem das famílias que voltam e que nos dão retorno, depois de um ano. E o COF hoje se tornou uma referência dentro de Salvador, não só para as famílias, mas para outros profissionais que ligam pedindo recomendações, indicações de estudo etc. Ainda, o convite constante para palestras e para participação em congressos ou eventos. Enfim, a satisfação interna da equipe, a paixão pelo trabalho que realizamos, o reconhecimento do valor do que fazemos e do quanto amadurecemos como pessoas e profissionais dentro desse projeto. O projeto vai ter uma continuidade, através da construção de um centro que funcionará em Novos Alagados. Implica a participação do COF dentro de um projeto maior, de um programa de recuperação infantil, de crianças e adolescentes em situação de risco, não só na questão da desnutrição, mas da violência e outros aspectos Lílian P. Caixêta Reis Resultado quantitativo e qualitativo 45 Família: o primeiro sujeito educativo 46 de risco. Há perspectivas também de que o projeto, a partir dessa sistematização, atue no contexto educativo mais amplo. Além disso, há outros centros que estão tentando multiplicar esta experiência. Concluindo, o mais importante que descobrimos, nesse trabalho, veio a partir de uma pergunta de uma pessoa que falou: "Pôxa, como é que vocês conseguem lidar com tanta pobreza?" Aí nós nos demos conta de que não atentávamos para a pobreza, porque olhamos a pessoa, o nosso trabalho parte das pessoas que chegam até nós, do valor dessa pessoa, da dignidade que ela tem. Toda pessoa tem potencialidades, toda pessoa tem aspectos de qualidade e capacidade de enfrentar suas dificuldades. E enfrenta sua realidade com os recursos que consegue perceber. Então, quando consegue ampliar sua visão acerca dessa realidade, também percebe novas possibilidades de atuação ali naquele contexto. O nosso trabalho é todo no sentido de fortalecer e capacitar essas famílias para que elas possam se tornar conscientes da própria vida e da responsabilidade que têm pela própria vida, para serem protagonistas. A nossa tarefa é ajudá-las a assumir esse protagonismo, e é o que confirmamos que acontece lá no trabalho. E obviamente isso favorece para o enfrentamento de outras dificuldades, o desemprego, a violência, quando se abrem novas perspectivas dentro da comunidade de enfrentar as dificuldades. Outro aspecto é o valor do trabalho interdisciplinar. Comprovamos que é possível trabalhar em equipe. Do ponto de vista profissional, a riqueza da diversidade e a amplitude que um trabalho assim pode abarcar. E do ponto de vista humano, o apoio para enfrentar a realidade, o caminhar juntos, a certeza de que não estamos sozinhos. A ajuda para olharmos todos os fatores da pessoa que está sendo atendida. De fato, a possibilidade foi de olhar a pessoa como um todo, cada membro da equipe sendo suporte para o outro. E ainda a formação continuada, o tempo todo nos preocupamos com o estudo, a formação, tanto valorizando a competência de cada profissional, como aprofundando esses estudos. Percebemos que nasce uma motivação nos profissionais no sentido de estudar e ampliar a sua formação. Duas profissionais do COF, hoje, estão buscando fazer o mestrado. Nossa advogada está se especializando em mediação familiar; esse desejo de crescer profissionalmente nasceu da experiência do trabalho do COF. COF – Uma Experiência com Famílias Lílian P. Caixêta Reis Desse modo, conclui-se que, quando a família é valorizada e fortalecida como primeiro núcleo educativo, ponto de origem, de partida para a vida, conseguindo enfrentar as adversidades e apoiar seus membros no seu processo de desenvolvimento, torna-se um recurso para a sociedade. Comprovamos isso neste trabalho, em que a capacitação das famílias repercute no contexto social, contribuindo para a redução de situações de pobreza e violência. Portanto, nossa perspectiva de agora, com a proposta de mudança para Novos Alagados, é de nos integrarmos aos projetos existentes naquela área – creche, centro educativo, projeto de saúde materno-infantil etc. –, unindo-nos a estes para colaborar com a melhoria de vida de famílias que vivem em situação de risco. Espero ter conseguido ser clara e objetiva. O que eu posso dizer é que é uma experiência muito bonita e é muito bom poder estar aqui partilhando isso com vocês. 47 Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate Maria Grazia Figini João Carlos Petrini Maria Grazia falou, na sua intervenção, que "Só uma capacidade de olhar pode permitir um trabalho real com as famílias". A pergunta é: como manter esse olhar? Esse é um problema de educação, de educar-se. Há vários tipos de métodos de observação que ajudam, como se dessem um treinamento para observar. Existem instrumentos e técnicas de formação que, às vezes, levam anos na formação, mas aquilo que eu estava entendendo é a capacidade de colocar a atenção em quem está na minha frente. Uma pessoa tem sempre uma pergunta escondida e nas primeiras conversas que estabeleço com ela nunca me é feita essa pergunta, esse pedido, só um homem livre pode colocar um pedido. Logo, nós devemos ajudar para que esse pedido possa emergir, não devemos dar a resposta. Compreendo que isso possa gerar uma objeção em vocês, mas a única coisa que eu posso dizer é: experimentem! Normalmente, quando nós fazemos uma entrevista – também a entrevista para a inserção na creche ou para enfrentar qualquer problema da situação familiar –, logo ficamos tensos para entender quais respostas qualificadas podemos dar do ponto de vista profissional. Estamos pouco atentos para saber o que essa pessoa quer, o que essa pessoa está me perguntando. É muito fácil escorregar entre o pedido e a resposta, porque estar atento à pergunta é como se gerasse no operador uma ansiedade porque a pergunta do outro faz vir à tona também a minha pergunta, o meu pedido. No momento em que eu estou oferecendo um serviço é como se eu tivesse que dar uma resposta, sou eu que devo ajudar. Nessa ótica, é impossível permanecer diante do Descobrir o pedido do outro 49 Família: o primeiro sujeito educativo pedido, porque eu não sei dar respostas, mas eu estou ali para escutar o pedido e para compreender do que se trata. A minha resposta sempre escorrega na questão moral: estar frente ao pedido me ajuda a estar na origem para não dar respostas que estão pré-definidas. Como eu faço para saber qual é o bem daquela família, daquela criança? Eu devo conhecer aquela situação e o conhecimento é sempre uma ação afetiva; eu devo entrar em relacionamento de conhecimento daquele núcleo familiar ou daquela criança, devo decidir estar com aquelas pessoas. A distância não me ajuda a compreender, a ordem de um conhecimento afetivo é a verdadeira distância, é o verdadeiro respeito. Às vezes, a resposta é como uma tentativa de possuir o outro: eu sei qual é a necessidade e sei responder. Ao invés, a verdadeira posição é descobrir de que o outro necessita e como se pode ajudar nisso. Essa é a verdadeira reviravolta de todo trabalho educativo e social. Não é um método cômodo, porque é uma busca contínua. Para poder trabalhar dessa forma, eu preciso trabalhar com outros e é nesse ponto que pode nascer a equipe. A verdadeira resposta nasce da unidade de sujeitos que se colocam em frente ao pedido do outro para compreender e conhecer aquilo de que ele necessita para fazer juntos um pedaço de caminho, sempre redefinido. É só o pedido que gera a resposta e é a tentativa de resposta que gera um pedido. Queremos entender melhor quando Maria Grazia falou que a questão fundamental é que família e o educador possam participar e compartilhar do projeto educativo da criança. Dinâmica do trabalho 50 Se nós estamos pensando que a escola, a creche, é uma tentativa de adultos: família, educadores, diretoras, administradores, que procuram acompanhar uma criança por um período importantíssimo da vida, logo, se entende que esses adultos devem compartilhar alguma coisa. A melhor forma para poder compartilhar é realizar passos juntos. Se eu, educador, dentro da minha sala de aula tenho vinte crianças e consigo olhar cada uma delas e vejo que uma criança deve aprender as cores ou desenvolver o aspecto psicomotor, isso significa construir um projeto educativo com a família. Significa conhecer aquela família, o espaço onde aquela família mora, os relacionamentos daquela família no território e, por isso, convidar aquela família com o educador de Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate Figini e Petrini referência, ou com o diretor ou o pedagogo, e descrever e contar o que se faz para alcançar um objetivo. Nesse diálogo no qual se explica como alcançar os objetivos, eu posso ter algumas sugestões por parte da família. Ao mesmo tempo, educo a família, para que ela não se comprometa somente em levar a criança para passar um tempo na creche, mas entenda que, se a criança está em um lugar com algumas pessoas a realizar algumas atividades, essas pessoas sabem o que estão fazendo. Quando a criança volta para a casa, é diferente o olhar dos familiares, e dessa forma tudo se une, porque nós devemos lutar contra o fenômeno da cultura pósmoderna, que é o conceito de soma de atividades e compromissos: uma criança aprende a ler e a escrever, depois faz ginástica, depois aprende uma outra língua, é como se nós tivéssemos que preencher todos os espaços dessa criança para que ela não fique à toa. Pelo contrário, uma criança precisa respirar o fluxo de uma vida cotidiana, um fluxo no qual ela é sujeito com a família e com o educador, de forma que não passe a vida preenchendo os tempos vazios, mas aprenda a usar o tempo, aprenda o que significa dormir, o que significa comer com os outros, o que significa brincar de forma que seja protagonista. Se nós pegamos uma criança sem um projeto educativo comum, sem envolver a família, tudo aquilo que agora eu descrevi se torna algo artificial. Lembrem-se que uma criança sabe muito bem se os adultos trabalham juntos e, se os adultos trabalham juntos, nesse caso uma criança se percebe abraçada, se percebe pensada, e daqui pode começar a esperança do viver; o delito maior que nós, adultos, podemos cometer é matar a esperança das crianças. Novamente outra colocação da Maria Grazia, pois parece que ela gosta de nos provocar. Ela disse: "Para educar precisa-se de um adulto e de uma morada". Gostaríamos de entender melhor a concepção de morada. As crianças e também nós precisamos de uma morada, de uma casa. Usei a palavra morada para não pensarmos logo na nossa casa. Pensem nas experiências que vocês viveram nestes dois dias: vocês estão em um lugar onde há limites, no qual são vividos juntos alguns momentos, alguns vão para casa, mas alguns dormem aqui com os colegas. Este local que tem um limite permite relacionamentos e conhecimentos Concepção de morada 51 Família: o primeiro sujeito educativo novos. Se esse território não tivesse limites, seria muito mais difícil estabelecer relacionamentos. A sala na qual nós almoçamos permite-nos nos olhar, nos conhecer, permite um relacionamento entre nós, permite entender o que gosta a pessoa que está na minha frente porque eu vejo o que ela come; tudo isso é possível porque há um lugar. Um lugar é de fato algo que chama atenção para a esperança de uma construção, que me dá uma certeza para pensar também no meu futuro (a beleza de um lugar, que não significa um luxo, mas uma ordem, uma cor), me educa, me faz pensar que é possível para mim ir em frente, me chama atenção para um sentido. Por que logo que duas pessoas se casam vão procurar uma casa? Porque elas precisam de um lugar para desenvolver um relacionamento. O lugar é como a academia (lugar para treinar o relacionamento), a academia da afeição, a academia da certeza, a academia do sentido. Só através de um lugar posso me lançar também em uma dinâmica de amor. O que significa mostrar para a família qual é a sua verdadeira função? Descobrir a riqueza dos relacionamentos familiares 52 Petrini Em primeiro lugar, eu diria que a ajuda que pode ser dada à família é que o casal compreenda o significado daquela convivência, porque muito facilmente o significado da convivência familiar é reduzido à utilidade imediata. Desta forma, depois de um pouco de tempo, percebe-se o peso. Então, o olhar facilmente se desloca do valor positivo, do significado positivo para a própria vida sobre o peso, o problema que aquela criação familiar constitui. Normalmente, as pessoas não são habituadas a refletir, a pensar; então, a primeira ajuda é essa: uma atenção para reconhecer quanta riqueza de humanidade está contida e pode ser vivida naquela relação conjugal e depois na relação com os filhos. Muitas vezes, acontece de se ver como casais começam, depois de alguns anos, a dedicar toda a atenção aos filhos e começam a deixar de lado a própria relação de marido e mulher. Isso também é uma deformação que, ao longo do tempo, poderá ter gravíssimas conseqüências. Precisa-se reconhecer a riqueza de duas pessoas que compartilham a vida e que se educaram para dialogar, para pensar juntos e ver o significado de tudo que estão fazendo e planejam ter uma casa e comprar um móvel e discutem em qual escola Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate Figini e Petrini as crianças vão estudar e como vão passar as férias; como vão gastar o dinheiro; como vão fazer diante de uma necessidade. Mais do que chamar a atenção sobre os deveres, "você está descuidando do seu filho", "você não está cuidando bem da saúde, esqueceu a vacina...", que são cuidados em que a mãe pode ser ajudada, incentivada, há algo que vem antes: que é renovar a consciência de um grande Mistério dentro do qual a pessoa se move e, não por acaso, se move dentro deste Mistério, junto com outras pessoas ajudando a recuperar a certeza de caminhar juntos rumo ao destino, um destino – que não por acaso – os colocou juntos no mesmo espaço, na mesma morada. O vínculo que une uma pessoa à outra pode ser reconhecido somente como a resposta a um Desígnio Misterioso de Deus. E eu respondo a Deus através da minha vida de sacerdote e através de todos os gestos que realizo diariamente; a mulher e o marido respondem a Deus através daquela dedicação à sua família, aos filhos. Esse ponto de vista pode estar fora do horizonte de algumas assistentes sociais, de alguns especialistas e educadores aqui presentes, mas é um ponto de vista fundamental para que a pessoa possa compreender o espaço familiar como o lugar do encontro, onde o rosto de Cristo está presente no rosto do próprio marido, da própria mulher, da própria criança, dos próprios filhos. É verdade que não é a mulher que corresponde a toda a pergunta de vida, todo desejo de felicidade que o homem carrega e não é o homem que responde a todo desejo de felicidade que a mulher carrega, e não é o filho que responde a todo desejo de felicidade, de satisfação que um homem e uma mulher carregam, necessariamente para não viver só lamentando-se uns dos outros, das carências, dos problemas e das dificuldades. É somente encontrando a presença de Cristo no próprio caminho cotidiano que se pode encontrar aquela satisfação à qual se aspira; e esse ponto de satisfação não é eliminado pelas condições de pobreza, porque mesmo a família em condição de pobreza pode encontrar e vivenciar toda a satisfação de um caminho partilhado rumo ao verdadeiro destino. Figini Queria somente fazer um esclarecimento a respeito dessa pergunta, pois não se trata de falar de função da família, porque se falamos de função da família logo nós 53 Família: o primeiro sujeito educativo pensamos em alguns serviços que a família deve fazer. Ao invés, se nós pensamos na tarefa da família, logo nós pensamos que devemos acolher. E, por essa razão, muda logo a forma da resposta, porque, se eu perguntasse para você qual é a sua função de trabalho, para mim interessaria só isso. Mas, se eu pergunto quem é você, a minha pergunta o abraça de uma outra forma e eu vou acolhê-lo de outro jeito. Se eu olho para a função de uma pessoa, eu olho para um detalhe, para um pormenor, e essa pode ser a diferença entre amor e sexo. Como podemos ajudar a família a ser o primeiro sujeito educativo? Nós colocamos anteriormente as várias situações de risco em que os meninos, com os quais trabalhamos, se encontram e, às vezes, não sabemos o que fazer, não sabemos se mandamos para psicólogo, se temos posto de saúde para isso, se mandamos a escola cuidar do menino... A quem recorrer quando o menino é muito difícil? Percursos educativos individualizados 54 Figini Parece-me que é preciso esclarecer um pouco a primeira pergunta: O que significa que a família é o primeiro sujeito educativo? É como dizer: "Eu escutei muitas coisas nesses dois dias, mas não compreendo o que significa o título desse Seminário Família: o primeiro sujeito educativo". Se nós chegamos ao final do seminário colocando essa pergunta, significa que o Seminário surtiu efeito, porque você tem uma pergunta e não tem uma resposta. Essa não é uma brincadeira, é o que eu tentava descrever antes. O ponto é quando eu estou em sala de aula e olho para uma criança, sabendo que ela tem uma família, uma família enfraquecida, com problemas, mas uma família. A criança tem relacionamentos, tem adultos como referências na vida, e a minha ação, o meu falar com as pessoas que vêm buscá-la na saída, o meu dizer o que ela fez, naquele dia, é para a pessoa que é a origem dessa criança. Dou um exemplo, assim tento introduzir também a resposta à segunda pergunta: Um moço de sétima série na Itália não sabia ficar na sala de aula, os professores não davam conta disso; ele conseguiu quebrar quatro dedos da professora e por isso foi expulso da escola, e, assim, o caso dele foi parar no Serviço Social. No Serviço Social, se perguntaram: "O que vamos fazer com essa criança?" Mas a pergunta era: Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate "Onde nós vamos colocá-lo?" Colocaram-no em um Centro Diurno. Neste Centro, esse moço começou a quebrar tudo, bater nas outras crianças e o Centro também não conseguia ficar com ele ali. O menino retornou ao Serviço Social e ali aconteceu algo de estranho: a criança tinha entrado em contato com uma família e foi pedir para a assistente social para ficar com essa família durante a tarde; a Assistente Social chamou a família e obviamente não falou sobre o que fez este moço para não ter uma recusa da família. A família começou a acompanhá-lo durante todas as tardes, os pais dessa família iam à escola falar com os professores, depois convidaram os pais da família de origem para vir até a casa deles. Essas pessoas foram à casa e trouxeram comida típica da região da Itália de onde eles vinham e começou um relacionamento, ou seja, começou um conhecimento. Nesse conhecimento emergiram muitos problemas. A família começou assim a dar notícias à assistente social: descobriu que o pai abusou das duas filhas, que a mãe sofria maus-tratos por parte do pai e que o filho agia dessa forma para poder manifestar o mal-estar dele. O que aconteceu? Esse moço voltou à escola com um programa de intervenção educativa feita para ele. Foram feitas algumas avaliações médicas para entender o estado dele, e o pai da família de origem se afastou. O que aconteceu em tudo isso? Ninguém, enfrentando essa situação, tinha pensado em convocar a família e conversar com ela, mas todo mundo tentava responder colocando antes de tudo: "Onde vou colocar esse rapaz?" Se eu venho até você e falo que eu tenho dor de barriga, a primeira pergunta que você me faz é: "Você vai ao médico?" Ou você me pergunta se eu quero alguma coisa quente ou um suco de limão. Depois, talvez eu deva ir ao médico, mas o meu ir ao médico é acompanhado do seu cuidado, é como se eu fosse ao médico protegida. Dentro de um primeiro relacionamento de cuidado entre mãe e criança, ninguém soube dar um carinho para esta criança. Por isso, não há contenção que é o cuidado primário, é algo que sai por todos os lados. Por essas razões, devem tentar tudo, devem provocar a realidade para ver até que ponto a nossa resposta provoca essa contenção, algo que tenta envolvê-lo, abraçá-lo, dar alguns limites. Ou a nossa resposta se torna uma provocação nova. É uma luta contínua e cotidiana que cada criança faz a cada dia. Por isso, nós devemos pensar em percursos educativos individualizados e não percursos de grupo, porque essas crianças já cresceram em grupo. Figini e Petrini 55 Família: o primeiro sujeito educativo Primeiramente, pedimos ao João Carlos que aprofunde um pouco sobre o tema das relações familiares, identidade e diferença. Depois pedimos que esclarecesse como podemos recuperar na tarefa educativa a qualidade dos relacionamentos familiares frente às dificuldades encontradas na vida, no cotidiano das família? Diferença e identidade: realidade constitutiva do ser humano 56 A primeira observação é que a diferença entre os sexos é algo originário. Quando dizemos originário, queremos dizer desde a origem. Devo lembrar que, logo no início do livro do Gêneses, está escrito: "Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança". Mesmo na Bíblia aparece esta diferença sexual como originária, quer dizer desde a origem e através de toda a história e chega assim até nós. Juntamente com a diferença, percebe-se que essa diferença não é motivo de uma diversidade de valor de humanidade; há uma diferença e há uma identidade. Quer dizer homem e mulher têm a mesma dignidade: a do ser humano. Aliás, homem e mulher não são, como muitas vezes se pensa, duas metades de uma maçã, que no casamento se encontram, porque a mulher não é meio ser humano, o homem não é meio ser humano que devem encontrar suas unidades no casamento. São, ao contrário, seres humanos por inteiro. Quando se fala de identidade e de diferença, fala-se dessa realidade que é constitutiva do ser humano e que já no plano da natureza predispõe a pessoa – homem e mulher – a buscar o outro e a construir comunhão. No encontro com a outra pessoa e no estabelecimento de uma relação que é de aliança, conjugal, de comunhão, na relação com o outro o homem se realiza, a mulher se realiza. Isso significa que nós todos somos chamados à comunhão. A pessoa encontra a sua felicidade e a sua realização humana no encontro com o outro com o qual estabelece relações de comunhão; uma comunhão que imite a comunhão da Santíssima Trindade. Quando nós dizemos isso, parece que estamos dizendo algo óbvio, mas não é, porque, por exemplo, Thomas Hobbes, um filósofo de 1600, dizia: "o homem é lobo para o outro homem". Então, é lobo ou é comunhão? Eu devo me defender do outro já que é lobo? Ou então, com o outro eu me realizo? Sartre também dizia: "o inferno são os outros"; então, o inferno são os outros ou junto com os outros eu posso encontrar a minha realização humana? Evidentemente se abrem caminhos Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate Figini e Petrini distintos entre uma perspectiva que valoriza o outro como possibilidade da minha realização humana e uma outra postura que entende o outro como um adversário hostil etc. etc. Evidentemente, quando se fala da identidade e da diferença que constituem o ser humano, pensa-se imediatamente nessa meta, nessa destinação que é o encontro do outro na comunhão para a própria realização. Quando se fala de diferença sexual e de identidade, coloca-se o problema nesta forma que é muito mais positiva e de acordo com a realidade do que todo um debate que está no ar, quando se fala de gênero. Quando se fala de gênero, fala-se daquelas diferenciações entre masculino e feminino elaboradas pela cultura. Antigamente um brinco ou uma saia era um sinal do gênero feminino, um bigode era sinal de um gênero masculino e assim por diante. Vocês devem saber que há uma linha de feminismo que é chamada de vetero-feminismo, quer dizer o feminismo dos anos 70, muito radical que começou a rediscutir todas essas diferenciações entre masculino e feminino, elaboradas pela cultura. É que encontram ali formas de expressão da prepotência do machismo, e por esse caminho se chega a dizer que não existe diferença entre sexos, que tudo é igual, aliás que pode se identificar 6, 7, 9, 14 opções sexuais. Evidentemente, trata-se de posturas fortemente ideológicas e que pulam o primeiro elo – que é a observação da realidade – que é a evidência: a diferença sexual existe; é um fato e é fundamental, pois é constitutivo, originário. Falar de diferença e identidade é uma maneira que nos ajuda a ser mais atentos à realidade, mais capazes de valorizar os aspectos que a própria realidade nos apresenta, e a lidar de uma maneira positiva com isso. Se fosse só diferença, a diferença leva ao prevalecer de um sexo sobre o outro. Se fosse só identidade, também se perderia um aspecto importante da realidade. Falar de identidade e de diferença entre homens e mulheres valoriza a mesma dignidade, os mesmos direitos ao mesmo tempo que não esconde, não quer camuflar a diferença sexual que está aberta e pronta para promover a comunhão, o encontro com o outro. Pensando na fragmentação dos fundamentos da união: amor, sexualidade e procriação, que uso de métodos anticoncepcionais procede? É possível usar hoje métodos anticoncepcionais de forma que não cause mais essa fragmentação? Tem como usar isso sem perder esse sentido? 57 Família: o primeiro sujeito educativo Fragmentação da pessoa e banalização da vida Unidade da pessoa e dramaticidade da existência 58 Vamos ver se eu entendi bem a pergunta: Se o entrelaçamento de amor, sexualidade e procriação é rompido por causa da contracepção química ou de outro tipo, como se faz? É possível usar a contracepção sem que se origine a fragmentação da pessoa? A pergunta contém um aspecto importante porque associou a cultura desse entrelaçamento de amor, sexualidade e procriação e a fragmentação do eu; uma característica da pós-modernidade certamente é a fragmentação, e esta ruptura da unidade do amor, da sexualidade e da procriação se, de um lado, sinaliza a fragmentação, por outro lado a fortalece e a agrava. Uma outra conseqüência, característica da pósmodernidade, que também é conseqüência dessa ruptura da unidade de amor, sexualidade e procriação, é a banalização da vida. Banalizar significa atribuir um significado menor a uma coisa que teria um significado muito maior; os significados são reduzidos, o significado da sexualidade é reduzido, a sexualidade se torna sempre mais um jogo que se aproxima cada vez mais da expressão da instintividade. Essa dimensão animal que nós carregamos pode ser vivida dentro de um grande ideal ou de uma maneira muito próxima como a vivida pelos animais. É reduzido o significado da sexualidade como é reduzido o significado da procriação, não mais vivido como participação no mistério criador, que gera uma nova vida, mas como a produção de uma mercadoria. O amor se reduz, pois acaba sendo identificado não como o dom de si para o bem e a felicidade de outra pessoa, não como o amor ao destino, uma reciprocidade e atenção para caminhar juntos rumo ao destino, mas como uma emoção de breve duração. O contrário da fragmentação é uma personalidade integrada, uma unidade, e o contrário de uma vida banal é a dramaticidade da existência. Nós estamos, muitas vezes, fugindo ansiosamente do drama da vida e, no entanto, ela é dramática e nós não podemos imaginar em eliminar o drama de uma relação conjugal. O que nós estamos observando atualmente é que sempre mais se foge da realidade e a realidade é cada vez mais rejeitada. Foge-se da realidade ou vivendo em um mundo da fantasia e de sonho ou em um cotidiano que é banal e não enfrenta as perguntas, os problemas e os dramas mais verdadeiros. Eu não conheço uma forma de usar os meios contraceptivos que não contribua para a fragmentação e a banalização. Só se responde a estas questões com uma educação que possa resgatar o significado do próprio corpo, da própria Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate Figini e Petrini sexualidade, da própria relação amorosa com a outra pessoa, uma educação que seja capaz de ensinar como se pode planejar, como se pode fazer um planejamento familiar dentro de métodos que respeitem a nossa natureza que nos foi dada dentro de um desígnio misterioso e digno. Assim como quando nós não respeitamos a natureza de uma floresta, nós dilapidamos aquela floresta e arruinamos o ambiente, assim como quando nós não respeitamos o rio e envenenamos as suas águas, nós destruímos o ambiente. Da mesma maneira, quando nós não respeitamos a nossa natureza, não respeitamos o ambiente humano, inevitavelmente passamos a viver em um ambiente que, de um lado, é espantosamente banal e, no outro lado, há a agressividade e a violência, pois a violência é a maneira de reagir a uma banalidade que não se suporta, que é percebida como agressiva com a própria humanidade, aquilo que temos de mais precioso. Nosso grupo fez uma discussão bastante intensa sobre a questão de não se poder ter padrões para normatizar o trabalho com as famílias. Assim, como considerar um objetivo comum uma idéia de algo que seja essencial que deve ser preservado? Figini Uma vez que eu não tenho um padrão de respostas, para o trabalho com as famílias, qual é a orientação para um trabalho comum? Para poder trabalhar com outra pessoa ou com o sujeito família, devo ter clareza de quem eu sou, ou seja, a minha identidade. E a minha identidade, se eu estou trabalhando em um certo lugar, deve ser uma identidade comum. Ou seja, quais são as diretrizes, quais são os critérios que são utilizados naquele lugar? A partir da palavra identidade, passo para a segunda palavra que é a palavra encontro: como eu encontro? Como eu fui encontrada? E como eu posso encontrar? E a terceira palavra se chama caminho ou percurso. O trabalho com a família, dentro de uma família que evolui, não pode ser algo fixo, mas deve ser algo dinâmico. De fato, todo nosso trabalho, que é um trabalho de relacionamento e de ajuda, é dinâmico. Os nossos lugares de trabalho devem ser lugares flexíveis. O saber quem eu sou, de forma precisa, me permite essa flexibilidade e é isso que permite um encontro de uma forma dinâmica. Identidade, encontro, percurso 59 Família: o primeiro sujeito educativo Considerar-se filho permite reconhecer o outro como filho Trabalho em equipe 60 Além desses três pontos, devemos considerar a palavra filho. Eu fui filha, posso ter tido um pai ou nem tê-lo conhecido, mas eu sou filho, e a família que está na minha frente é formada por um pai, uma mãe e os filhos. Não posso enfrentar o trabalho familiar senão começando por estas palavras que são palavras-chave. O trabalho com as famílias é um trabalho de acolhida que acontece através de entrevistas, através de visitas domiciliares ou outras soluções de acolhida, que espero que vocês possam encontrar. Vocês não podem perceber a família como sujeito que precisa de assistência e de cura, porque, se nós percebemos assim a família que está na nossa frente, nós não conseguimos ajudá-la, porque é muito fácil escorregar nessa forma, é fácil não querer encontrar, porque temos medo. Muitas vezes, nós queremos esquecer de ser filhos, mas é o ser filho que nos permite crescer e nos tornar adultos, caminhar na aventura da vida. É isso que nos permite trabalhar com outros filhos e outras famílias. E como faço para me conceber filho se não tenho mais o pai e a mãe? Onde está a família dessa criança que não tem mais pai nem mãe? Onde está a família dessa criança que tem o pai alcoólatra e a mãe esquizofrênica? Onde está o ser filho de um pai que abusou de mim? Ou vocês acreditam que esses pais existem além das patologias deles, dos comportamentos desviados, ou será impossível trabalhar com os filhos deles. E, dessa forma, se trabalha só com os menores. Fazendo assim é como se se desligasse o relacionamento, o laço ontológico. Nós somos operadores que criam laços, não devemos desamarrar aquilo que está unido, porque seria um desastre. A nossa função é de unir, de ser a cola. Dito isso, é claro que não pode existir uma forma, um modelo de trabalho familiar. Como eu faço, então, para encontrar aquela família? Como eu faço para levar em conta todos os fatores encontrando aquela família? Eu creio que este trabalho com as famílias deve ser concebido como um trabalho em equipe. Posso ser, eu sozinha, que vou encontrar-me com aquela família. Mas, se eu estou ligada, se tenho laços com outros operadores, se eu penso como acolher aquela família com os meus colegas de trabalho, se eu sei que devo depois trazer aquele encontro com a família para a minha equipe, eu encontro a família, porque é dentro de uma experiência de laços que eu posso reconhecer os laços. Um operador sozinho cria solidão, o trabalho em conjunto dá outra forma à abordagem. Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate Figini e Petrini O trabalho em equipe tem como objetivo aquilo que eu devo encontrar, ou seja o sujeito com o qual eu devo trabalhar; eu sou paga por isso, eu não sou paga para criar relacionamentos com os colegas. Se o objetivo do trabalho é aquilo que está na minha frente, tendo esse objetivo, criam-se laços. Lembrem-se sempre que, se algumas vezes vocês não se percebem protagonistas no seu trabalho, ou percebem que não podem trabalhar bem por culpa de outros, é porque o poder já tomou conta de vocês e vocês são usados por uma mentalidade comum. Neste ponto vocês se perguntem: quem eu sou e a quem eu pertenço? Isso que eu proponho para vocês não é um caminho filosófico ou teológico, mas é um caminho profissional onde o eu e o trabalho estão unidos, onde o trabalho é a expressão da criatividade de um eu em ação. Só pessoas podem trabalhar com outras pessoas. Como nos ajudar a não viver solitariamente a tarefa profissional, recuperando a dimensão do trabalho comum? Figini Em parte, parece-me já ter respondido, com a última parte da minha colocação. O ponto fundamental dessa resposta é sempre quem eu sou. Eu estou convencida disso e peço que vocês também possam fazer isso. E logo que falo quem eu sou, eu procuro alguém, eu passo de quem eu sou para ficar com alguém. Isso é fundamental. Passamos muitas horas de atividade trabalhando sobre essa expressão trabalho em equipe, mas a única possibilidade de trabalhar juntos é que exista a pergunta, porque, se eu organizo grupos de trabalhos mas não existe uma pergunta, eu dou uma resposta que não serve, é só algo de estético que não produz uma qualidade de trabalho e não gera nenhuma mudança. No nosso trabalho com as famílias, é solicitada uma contínua mudança nossa. Cada instante é diferente do outro, é a dinâmica do encontro: joga-se dentro do instante buscando a tradição do instante anterior. O trabalho em conjunto me permite mover-me nessa direção porque o outro me chama a atenção conduzindo-me a levar em conta todos os fatores. Sozinho eu não sei levar em conta todos os fatores, eu preciso de um outro, preciso de rostos que, juntos, pensem, criem, gerem uma fecundidade de respostas no social. 61 Família: o primeiro sujeito educativo O trabalho do relacionamento de ajuda é concebido como uma fecundidade, uma geração do humano. Para nós, é pedido ser um prolongamento da Criação, dos relacionamentos da Criação, do olhar da Criação, da beleza da Criação, do drama da Criação e da unidade da Criação. Esta é a abordagem social que respeita o homem e que ama o homem livre. Hoje, pais e educadores têm dificuldades em estabelecer limites. Como fazer isso de forma adequada? Regras dentro de um percurso 62 Figini Para nascer nós nos submetemos a algumas regras que não escolhemos, mas sem essas regras nós não saberíamos quem somos nós. Para poder compreender o que é bem e o que é mal, devo pertencer a alguém. Se não tenho esse pertencer, essas regras são vazias de conteúdo, são ações moralistas que podem ficar dentro de uma proibição ou uma permissão. Nós não fomos criados por isso, fomos criados porque somos amados. A regra está dentro desse percurso, dessa dinâmica de amor. E, desse modo, para uma criança que quebra um vidro ou que cospe no meu rosto (estou citando fatos que aconteceram), ou que não responde às minhas perguntas, ou que quebra meu carro, eu não posso dizer somente "isso não é bom", "isso não é justo, você deve fazer de forma diferente", porque ela não poderia entender. É claro que direi que isso não é bom. Mas, enquanto eu digo isso, devo entender a razão, devo tentar entender o que está acontecendo e talvez eu possa entender que, quando essa criança vai para casa, o pai bate nela. E, nesse caso, eu devo entender por que o pai faz assim, e tomar algumas decisões, como chamar o pai e a mãe. E, se eles não se apresentam, devo eu ir à casa deles. E se me dou conta de que ali não é possível falar sobre nada, aquela criança começa comigo um diálogo de recuperação, porque é como se eu tivesse mostrado para ela que eu fui ao lugar de onde ela veio, e a descoberta desse lugar feio ou bonito, violento ou bom é o lugar dela. E é ali que devo falar de regras, é ali que eu posso entender essa criança, é ali e só desse ponto que eu posso começar a dialogar com ela. O resultado é garantido? Não, mas só através dessas contínuas tentativas, desse trabalho de busca contínua e de aventura com esta criança, estou certa de poder encontrar uma solução. E a solução Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate Figini e Petrini é que ela possa reconhecer que de frente a uma regra está a liberdade de ela dizer sim ou não. Outra provocação do grupo foi a da angústia profissional diante do limite, diante de certas situações. O João Carlos havia mencionado que nesse limite profissional entra em jogo a questão da liberdade e da esperança. Nós queríamos que você falasse um pouco disso. Petrini Eu sempre parto do ponto de que eu tenho um limite, de que eu sou limitado. Aquilo que eu faço são tentativas, e nessas tentativas eu peço ajuda a outros. E eu perco muitos rapazes, mas eu estou convencido e já experimentei que onde existe esse interesse, esse olhar para a vida do outro, antes ou depois ele volta. Por exemplo, eu fiz um percurso com uma criança, eu encontrei os meus colegas de trabalho sobre esta situação e eu me comparei. A esperança onde está? Eu não estou sozinho e amanhã eu posso começar de novo com os meus colegas de trabalho uma nova situação. Eu não posso determinar a vida de ninguém como ninguém pode determinar a minha, eu só posso acompanhar o outro indicando um caminho, um percurso, relacionamentos, algumas oportunidades, explicando o sentido do trabalho, do estudo, da escola, falando de quem é o pai dela, de quem é a mãe, de quem são os amigos, isso eu posso fazer. Eu posso apontar o caminho. Pensem quantas vezes de manhã nos levantamos sem a esperança de um caminho, quantas vezes nós percebemos não ter esperanças sobre a nossa vida, a esperança, pois a esperança permite um relacionamento com a realidade. Nós devemos viver a realidade, devemos introduzir esses rapazes na realidade, mas para fazer isso devemos conhecer a realidade, não devemos ter medo de chamar as coisas com o próprio nome: o pai é o pai, a mãe é a mãe, os irmãos são os irmãos, os familiares são os familiares, os amigos são os amigos, os medos são os medos, a fome é a fome, assim por diante. Muitas vezes, nós vivemos uma ilusão e assim cobrimos a realidade de relacionamentos instintivos, de um sentimentalismo! É como colocar açúcar no café, mas é diferente colocar açúcar no café sem ter as razões. Se o café é amargo, devo colocar o açúcar para fazê-lo doce. Isso parece muito banal, mas nos relacionamentos, Apontar, não determinar o caminho do outro 63 Família: o primeiro sujeito educativo naquilo que nós fazemos, nós não temos esta clareza de chamar as coisas pelo próprio nome. E, assim, a aparência, a cultura e o poder dominante nos envolvem, mudando a realidade daquilo que ela é. Por isso, o nosso trabalho, e só com outras pessoas, é essa luta. Quando alguém mata a esperança, é como matar uma pessoa, é o gesto mais violento porque o homem é esperança. A primeira pergunta é para o Senhor João Carlos: não ficou claro para nós o que foi abordado sobre a questão do pré-natal. Maternidade, ato incondicional de acolhida 64 Petrini Quando eu falei do diagnóstico pré-natal, eu dava apenas um exemplo das mudanças que ocorrem no ambiente, na sociedade, na cultura em que nós vivemos, mudanças que acabam afetando aspectos importantes da nossa realidade, muitas vezes sem que nós percebamos. O exemplo foi do diagnóstico pré-natal que pode ter, não necessariamente tem, como conseqüência a eliminação do acolhimento incondicional, por parte da mãe, nos primeiros momentos de vida daquele que será o seu filho, porque aquele seu filho, muitas vezes, será submetido a uma condição para ser aceito, para ser acolhido: a condição de ser saudável. O que eu disse não significa que não se deva fazer o diagnóstico pré-natal, mas que se deve ter uma clareza muito grande a respeito do objetivo com o qual se faz esse exame, porque se pode fazer o diagnóstico por curiosidade, porque existe a possibilidade de curar um feto, de intervir no feto com ações terapêuticas curativas. Mas, ao contrário, pode-se fazer o diagnóstico com a hipótese de expulsar o feto caso ele não seja saudável. Mesmo se este feto for saudável e venha a ser acolhido pela mãe, algo já está quebrado porque se colocou uma condição para a aceitação dele. Como essas coisas acontecem e nós não pensamos nelas, o que eu fiz foi tentar ajudar a todo mundo a refletir para que possamos dar passos na vida: todas as mulheres quando grávidas vão realizar o diagnóstico pré-natal, que sejam passos refletidos e não apenas conduzidos, realizados pela pressão de uma sociedade que diz que devemos abortar caso o feto não seja saudável. Com isso, nós retornamos àquele problema da dramaticidade da vida e da banalidade porque significa banalizar uma vida, quando nós dizemos "podemos Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate Figini e Petrini expulsá-la porque não é saudável". Quem disse que não se deve receber e deixar nascer uma criança que tenha algum defeito? Quem sabe que riquezas de maturidade humana uma família poderá receber pelo fato de acolher no seu seio uma criança que tenha algum problema? Será um sacrifício, mas quem disse que devemos eliminar os sacrifícios da vida? Que todos os sacrifícios são injustos e insensatos, faz parte da vida também acolher alguns sacrifícios porque é através deles que nós podemos crescer. Muitas vezes, uma dor ou um sacrifício é a única forma que nós temos para dar um passo, para olhar para uma direção para a qual nós nunca teríamos olhado, para compreender certas coisas que nós nunca teríamos compreendido. Trata-se mais uma vez de um caminho que se imagina simplificar a vida, banalizando tudo que é mais sagrado, como o acolhimento por parte da mãe do próprio filho quando está ainda no seu ventre. Ou um caminho que se depara com a dramaticidade da existência e acolhe o drama da existência não como uma coisa inimiga, mas como um caminho para uma maturidade, para uma plenitude humana que nós não poderíamos encontrar pelo caminho da banalidade. Isso só é possível encarando de frente as diversas circunstâncias da existência. Permita-me lembrar o que é este drama, relembrando as palavras de um grande teólogo chamado Von Balthasar "Se nós imaginamos o mundo como um grande teatro, então, nós entramos em cena, mas não escrevemos a peça que está se passando; temos a necessidade de entrar para representar um papel, mas nós não sabemos exatamente qual é. Não escrevemos o primeiro ato e não sabemos qual será o último ato, como irá acabar aquela peça que é a história nossa e do mundo". Em outras palavras, poderíamos dizer que o drama consiste no fato de que nós não controlamos, nós não dominamos a vida, nem a nossa nem a dos outros. Então, significa aceitar isso. E como é que nós podemos estar diante de um TU, que nós não controlamos, diante de um TU que é misterioso e que conduz a minha vida e eu não posso determinar para onde e de que forma, como podemos vencer o medo diante disso? Somente vivendo numa companhia que nos acompanha nessa tarefa cotidiana de viver com dignidade de clareza a nossa existência. Como podemos construir a separatividade, se é assim que podemos expressar, do TU (que são as famílias que se nos apresentam com as suas fragilidades) 65 Família: o primeiro sujeito educativo do EU (fragilidade que se encontra na família do educador e que se reflete na sua personalidade e nas suas ações), já que no universo toda a espécie humana, pobre ou rica, apresenta conflitos e angústias diferentes cuja dimensão é infinita? Seriedade do encontro entre um eu e um tu 66 Figini Eu tenho dificuldades em compreender a pergunta que foi colocada, mas o tempo é breve: se existe um tu com problemas e um eu com problemas, como é possível esse trabalho? Cada um de nós tem problemas. Eu posso ser divorciada, mas posso fazer um colóquio com a família. O problema é aquilo que eu quero com esta entrevista, ou seja, o fato de eu ser separada significa que eu não acredito na família? O problema não é aquilo que aconteceu na minha vida, mas aquilo que eu levo ao encontro, é o meu eu que é frágil, que tem limites como cada pessoa, porque não existe uma pessoa que não tenha limites, não existem pessoas que não tenham fragilidades. Um EU e um TU não são definidos, mas representam uma contínua descoberta, e um encontro é alcançado por uma misericórdia, aquilo que você fez para curar, já é curado. O ponto é que o que você quer desse encontro, se é para olhar o outro, para compreendê-lo: que percurso eu posso fazer com essa família para que a criança esteja melhor? Devo entender se esta criança deve permanecer com esta família ou com uma outra, e se essa criança deve ficar durante o dia em um lugar e voltar só para dormir. O ponto está no encontro. A minha experiência, a minha vida, os meus erros, os meus pecados não determinam um encontro. O ponto é a seriedade do encontro, o que eu estou fazendo naquele momento, o que eu quero que aconteça naquele momento, o que eu pergunto naquele momento, se não fosse assim seria como dizer: Quem pode trabalhar com outro homem? Amar um outro homem que não está em mim? Se o ponto fosse exclusivamente ter consciência dos meus erros para poder trabalhar com os outros, seria impossível o trabalho. O ponto, ao contrário, é: quem eu sou? Não é a conseqüência moral das minhas ações porque existe alguém, um TU que me permite recomeçar naquele instante e isso permite o trabalho social. Concluo rapidamente dizendo: atenção para tudo aquilo que eu disse. Para dizer que um trabalho social é sempre um eu e um tu, as ferramentas são necessárias, Família: O Primeiro Sujeito Educativo em Debate Figini e Petrini o trabalho em equipe é necessário, mas, por favor, não fechem a esperança de um homem dentro das suas ferramentas. Luisa Antes de encerrar este encontro, quero agradecer muito a Maria Grazia, ao João Carlos, a Lílian por toda a contribuição que nos deram nestes dias e quero agradecer a cada um de vocês pela forma como se colocaram neste trabalho. Agradecer todas as pessoas que pertencem às obras educativas que fazem parte do projeto e que se acrescentaram ao longo destes anos. De fato, estão aqui muito mais do que aqueles que estavam no Seminário 2001, seja porque cada entidade cresceu, seja porque outras pessoas se juntaram ao nosso caminho, como as instituições novas, a Casa Novella e a Creche Tia Sônia. E depois quero agradecer a todas as pessoas de outras entidades, não vou ler a listagem pois são várias, mas agradeço de coração, porque isso mostra como um compromisso com a realidade permite trabalhar juntos seriamente qualquer instituição. 67 Viver na Gratuidade1 Como é impressionante ouvir Jesus afirmar –"Sem mim, nada podeis fazer"3 – e imaginem quem ouviu isto da própria boca dele. Fiquei tocado, quando era seminarista, pelo que um pregador dizia: "Pessoal, isso não é só um jeito de falar". Mas entendi, muitos anos depois, como é preciso lembrar sempre que isso não é só um jeito de falar. "Sem mim, nada podeis fazer". Paradoxalmente, daqui nasce uma grande certeza na alma e uma grande afeição entre nós, como a da criança nos braços da mãe (é a eterna comparação, que Jesus também fazia): se não formos assim, como crianças, seremos pretensiosos, julgaremos os outros e não construiremos nada, nem mesmo – no espaço microscópico da nossa posse estreita – o nosso eu. É por isso que o Cardeal de Milão, em sua carta sobre os Itinerários educativos4, diz que o sujeito ativo e promotor do grande itinerário educativo da humanidade é o mistério da Trindade. Foi o que dissemos antes: estamos aqui como homens, portanto como pessoas no caminho rumo a seu destino, mas o sujeito ativo e promotor desse 1 Conferência proferida no Dia de Início de Ano para os adultos do movimento eclesial de Comunhão e Libertação da diocese de Milão, em 2 de outubro de 1988. O texto foi parcialmente publicado em português em: Comunhão e Libertação nº 12, janeiro/fevereiro de 1989, p. 4-6. 2 Tradução de Durval Cordas. 3 João 15,5. C. M. Martini. Itinerari educativi. Segunda Carta para o Programa Pastoral "Educar". Milão, Centro Ambrosiano de Documentação e Estudos Religiosos, 1988. 4 Luigi Giussani2 Família: o primeiro sujeito educativo caminho não sou eu; eu o devo acolher em mim: é o Espírito, é o mistério do Deus uno e trino. O Dia de Início de Ano5 deve fazer "elevar o olhar", como os primeiros, os grandes profetas repetiam com freqüência6. "Elevar o olhar" significa entrar com toda a alma, com todo o coração, na grande memória de Cristo: é, portanto, um momento de entusiasmo por Cristo e pela missão que Ele nos confiou. Essa, de fato, é a suprema contradição, ainda que aparente: a nós, que não sabemos fazer nada, Ele confiou uma missão (mas isso não é uma contradição, é um paradoxo). Portanto, memória de Cristo e entusiasmo pela missão à qual Ele nos destinou: não há um só entre nós que não tenha sido destinado a essa missão pelo próprio fato de ter ouvido a palavra "Jesus". Escreve Soloviev, no Conto do Anticristo: "O imperador se dirigiu a eles, dizendo: 'Que mais posso fazer por vós? Homens estranhos! O que quereis de mim? Eu não sei. Dizei-me vós mesmos, ó cristãos, abandonados pela maioria dos vossos irmãos e chefes, condenados pelo sentimento popular. O que tendes de mais caro no cristianismo?'. Semelhante a um círio cândido, o staretz João se levantou e respondeu com doçura: 'Grande soberano! O que nós temos de mais caro no cristianismo é Cristo mesmo. Cristo, e tudo aquilo que vem dele, porque sabemos que nele habita corporalmente a plenitude da divindade'"7. Essa é a memória e essa é a missão. Pois, de Cristo – que é a maneira como o Mistério invadiu a nossa vida e a está arrastando, empurrando, guiando para seu destino –, o que é que vem? Tudo! "Sem mim, nada podeis fazer." Se esse pensamento nos acompanhasse mais durante o ano todo, se o recordássemos entre nós! "O que nós temos de mais caro no cristianismo é Cristo mesmo. Cristo, e tudo aquilo que vem dele, porque sabemos que nele habita corporalmente a plenitude da divindade". Reli o que será de hoje em diante o O Dia de Início de Ano é um encontro das comunidades do movimento eclesial de Comunhão e Libertação que marca a abertura do ano social, oferecendo as linhas fundamentais do caminho a ser percorrido durante o ano. O ano social nos países do hemisfério norte começa em setembro, após as férias de verão. 5 6 70 Cf. Oséias 11,7. V. Soloviev. Breve racconto dell'Anticristo. In: I tre dialoghi. Turim, Marietti, 1975, p. 207. Em língua portuguesa: "O Anticristo". In: 30 Giorni n. 9, outubro de 1988, p. 45. 7 Viver na Gratuidade Luigi Giussani manifesto permanente do nosso Movimento8: não há passagem literária que possa exprimir melhor do que esta o sentimento que nos anima. O grande poeta lituano Czeslaw Milosz, Prêmio Nobel de 1980, que nossos amigos encontraram para convidá-lo a vir à Itália para um encontro público no Centro Cultural San Carlo, vendo esse nosso manifesto, exclamou: "Como assim? Vocês dizem essas coisas? Então são pessoas em quem se pode confiar!". Quando soube desse fato, pensei comigo: quantos entre nós custam a confiar, depois de tudo o que recebemos! Seja como for, esta é a missão: fazer com que Cristo seja conhecido, pois Cristo é a salvação do homem, Cristo é o redentor do homem. Ao longo deste ano, festejaremos outra vez ao lembrar a encíclica Redemptor hominis9, que comemora seus dez anos. Toda a veia profética e todo o ímpeto de caridade, de paixão por Cristo e pelos homens que distinguem o nosso Papa, o conteúdo de tudo isso está no título de sua primeira encíclica: "Cristo, redentor do homem". Sem Cristo, o homem não é ele mesmo, não se conhece, não se reconhece e não se realiza. A nós, às nossas mãos e ao nosso coração é confiada a grande evangelização da qual o Papa fala sempre: que todos reconheçam e amem a Cristo, redentor do homem. Elevemos o olhar, portanto, no início desta nova etapa da nossa vida. Uma longa etapa de uma vida breve ("setenta anos, oitenta para os mais fortes"10). A Modalidade Concreta de uma História Como primeiro ponto, gostaria que nos lembrássemos de uma coisa importante: que é a relação com Cristo, a minha relação com Cristo não pode deixar de passar pela modalidade concreta de uma história, dentro da qual Ele se manifestou a mim persuasivamente, pedagogicamente, suscitando em mim uma capacidade 8 Iniciado por padre Luigi Giussani, o movimento eclesial de Comunhão e Libertação surgiu na cidade de Milão, em 1954. Depois de se difundir rapidamente por toda a Itália, hoje está presente em cerca de setenta países de todos os continentes. 9 10 João Paulo II. Redemptor hominis. Carta Encíclica de 4 de março de 1979. Cf. Salmo 90(89),10. 71 Família: o primeiro sujeito educativo criativa. Sem obedecer, sem aderir às modalidades concretas, históricas, do encontro que fizemos, ou seja, sem passar pelas modalidades concretas, históricas, por meio das quais Cristo se apresentou a nós, mesmo que rapidamente, mas de maneira persuasiva (intuímos que a fé pode ser persuasiva para a nossa razão, para o nosso coração, útil para a nossa vida, para a vida dos homens), sem, enfim, viver a relação com a modalidade concreta com a qual Cristo veio ao nosso encontro, de modo a interessar a nossa humanidade, sem respeitar o amor e a adesão ao que chamamos movimento, sem essa espessura histórica, até banal, nós apenas buscamos realizar a todo custo a nossa imagem de Cristo, tal como podemos buscar uma imagem nossa do Movimento. Perante o mundo, ante o contexto mundano, é preciso que sejamos determinados por algo que vem antes. O contexto mundano é concreto: pensem na televisão e nos jornais, na maneira como todos – todos! – são atacados, invadidos por eles, repetindo o que a televisão e a mídia lhes fornecem. Perante o mundo concreto, precisamos ser determinados por algo concreto que vem antes, que é a construção da nossa companhia e do nosso movimento: é isso que dá espessura à nossa presença. Quando mais pertencemos a essa realidade que nasceu por ímpeto do Espírito, pela graça do encontro, quanto mais pertencemos, vivemos esse pertencer, mais a nossa presença é incidente, propositiva e escancarada diante de tudo e de todos, pois conhecer a Cristo significa inesperadamente sentir o mundo como parte da própria consciência e do próprio coração. Em seu plano pastoral, o Cardeal de Milão lembra também que, dentro do itinerário cristão global, encontram espaço "muitos itinerários pessoais e comunitários nos quais se articula o caminho do imenso povo de Deus"11. Nossa companhia é uma das modalidades nas quais se articula o caminho do imenso povo de Deus, e nós não a escolhemos hoje, como não fomos nós que a escolhemos antes: se estamos aqui, é porque fomos tocados por alguma coisa. É Deus quem faz, é o Senhor quem escolhe, elege e requisita, criando em nós uma capacidade, uma sensibilidade, um desejo de comunicação antes desconhecidos, e assim, mediante a afinidade da escolha, criando uma companhia que, quando se dilata um pouco, pode ser chamada de movimento. 11 72 C. M. Martini. Op. cit., p. 28. Viver na Gratuidade Luigi Giussani Só dentro da realidade concreta de uma companhia, de um movimento, alguém pode enfrentar o mundo. O itinerário pessoal pode até mesmo ser o de um eremita, pode até constituir um caso excepcional; mas, normalmente, o itinerário pessoal gera, tende a gerar companhia e movimento. Por isso, ao elevar o olhar, nessa memória de Cristo ("Cristo – se é que posso falar assim – 'meu'", como dizia Dionísio, o Areopagita) e nesse entusiasmo contido pela missão que Ele pôs em nossas mãos, quem quer que eu seja e onde quer que esteja, aonde quer que esteja amanhã e como quer que seja amanhã (eu pensava nisso hoje, bem cedo, quando acordei, ainda na cama: "Se eu fosse obrigado a ficar aqui e não pudesse mais me mexer...", e entendia que a única salvação seria esse pensamento, pois "toda a glória da filha do Rei"12 está na consciência com a qual eu Te reconheço, com a qual me permites reconhecer-Te, ó Senhor, e amar-Te, apesar do que eu sou; por isso, só existe um pecado que não se pode perdoar, e é a recusa dessa urgência que penetra pela nossa porta entreaberta, ou até mesmo fechada, investindo contra ela e forçandoa: Dives in misericordia, rico em misericórdia); ao elevar o olhar, nessa memória e nesse entusiasmo, dizia eu, nós temos de pagar um primeiro tributo de maravilhamento, de gratidão, de amor inteligente à vida da nossa companhia, à vida do nosso movimento. Certamente, um grupinho pode ser mais ajudado e rico do que outro, pode até parecer ter mais sorte, mas é por meio de todos os dados concretos da nossa vida cotidiana que Cristo nos guia por este caminho ("Eu sou o caminho, a verdade e a vida"13). A Gratuidade A segunda palavra que eu gostaria de lembrar, nesta necessidade de elevar o olhar, é a que mais caracteriza (não há outra que possamos usar, mais potente e mais forte do que esta; não podemos nos exprimir de outra forma) o grande gesto com o qual o Mistério se comunicou a nós, que caracteriza a realidade de Cristo entre nós, do Mistério que se fez um de nós: é a palavra "gratuidade". Gratuidade, amor sem 12 Cf. Salmo 45(44),14. 13 João 14,6. 73 Família: o primeiro sujeito educativo 74 interesse, humanamente "sem motivos", sem nenhuma "razão", sem razões que a razão entenda, explique, sem nenhum direito ao qual aderir ou ao qual obedecer. Ele veio gratis, nessa caritas, nessa caridade. "Por que me criaste?" "Porque te amei!" "E por que me amaste?" "Porque te amei!" "E por que, em meio à confusão e às trevas do mundo, vieste como uma luz em meu caminho, em minha estrada, me agarraste e me puseste dentro de Ti, dentro do mistério da Tua pessoa, me chamaste à comunhão contigo?" "Porque te amei!" "E por que me amaste?" "Porque te amei!" A gratuidade é o infinito, que é razão para si mesmo. "E por que, na longa fileira do povo cristão, tão facilmente distraído, tão facilmente afastado de seu centro pelo mundo em que vive, tão facilmente abandonado, como ovelhas abandonadas pelos pastores, por que me alcançaste tão concretamente naquele dia, a ponto de me determinar uma postura, uma maneira diferente de ordenar a minha vida?". "Por amor, por caridade, gratuitamente, grátis". Por isso, num ano em que começamos a meditar sobre o fato de que o que há de mais caro no cristianismo é o próprio Cristo, não podemos deixar de desejar – tremendo, mas não podemos deixar de desejar, e com todo o coração – imitá-lo, segui-lo, segui-lo nessa coisa que nos deixa estupefactos, diante da qual não temos palavras: o fato de nos ter amado gratuitamente. Ou seja, não podemos deixar de desejar segui-lo na sua caridade (charis, gratuidade). Queremos, este ano, nos ajudar mais para que nosso ânimo se una mais ao dEle. Os apóstolos o seguiram, nos primeiros tempos (tentemos imaginar os primeiros meses), admirados, extremamente apegados e afeiçoados, mas sem poder desejar ser como Ele, pois esse desejo só desabrochou neles por obra do Espírito de Cristo no momento do Pentecostes. Só então entenderam! Quantas vezes ele repete isso no longo discurso antes da Sua morte: "Agora vós não entendeis nada, não podeis entender, mas eu vos mandarei o Espírito e...". Ora, esse Espírito desceu sobre nós, desce sobre nós todos os dias, pois Ele nos chamou para sermos invadidos pelo Espírito. Este ano, portanto, temos de pôr como tema principal, como paixão principal da nossa relação com Cristo, e portanto como característica mais amada da nossa companhia, a imitação da caridade dEle. O verdadeiro trabalho da vida é aquele que não é pago, ou seja, a mudança de si e, por meio de si, a mudança do mundo. Essa mudança de si e – por meio de si Viver na Gratuidade Luigi Giussani – do mundo é a colaboração para a transfiguração do cosmo e da história de que o Papa sempre falou, é a verdadeira participação do opus Dei, da obra do mistério da Trindade no mundo, que é Cristo, da obra de Cristo no mundo. A gratuidade é encarar a relação consigo mesmo, e com os outros e com as coisas, à luz do destino, na perspectiva do destino, ou seja – sendo que o destino se fez homem –, à luz de Cristo, na perspectiva de Cristo. Fiquemos tranqüilos; as pessoas e as coisas não deslizarão para a monotonia de um pretexto, nunca se tornarão pretexto: as pessoas vão se tornar mais elas mesmas, se vocês as olharem com os olhos de Cristo, à luz de Cristo; as coisas vão se tornar mais elas mesmas, se as agarrarem com o amor com o qual a mão de Cristo as agarrava. Usei antes a palavra "trabalho", pois ela reveste a totalidade do nosso dia (o trabalho não é apenas o das oito horas que a pessoa passa no escritório ou na fábrica): a gratuidade deve se tornar a alma do nosso trabalho. É algo que até os ateus podem intuir: Cesare Pavese dizia que suportar a dor, sem que exista um significado adequado, é uma coisa ignóbil, insuportável e ignóbil14. Mas a finalidade adequada do esforço inerente ao trabalho, da dor que sempre acompanha o trabalho e os relacionamentos que vivemos, o que pode dar razões para suportar o trabalho é Cristo, o destino que se fez homem. Há algo que realmente deve mudar na nossa sensibilidade cotidiana. Deve-se tornar habitual uma nobreza que nos é ainda desconhecida, mas que pressentimos e cuja necessidade pressentimos também, para que a vida seja digna, e também cheia de fascínio, de gosto: a gratuidade. Foi essa idéia que criou a Companhia das Obras15, ou seja, que o trabalho seja vivido com uma propensão ao significado último da nossa pessoa, ao significado último da história de todas as pessoas, que é Cristo, e, portanto, 14 Cf. C. Pavese. O ofício de viver. Tradução de Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1988, p. 301. A Companhia das Obras é uma associação sem fins lucrativos constituída em julho de 1986, na Itália. Surgiu da livre iniciativa de jovens recém-formados e adultos – de Comunhão e Libertação ou não –, como testemunho dos frutos da educação a uma fé madura. A associação tem por finalidade promover e tutelar a "dignidade da presença das pessoas no contexto social, além da presença de obras e empresas na sociedade, favorecendo uma concepção do mercado e de suas regras capaz de compreender e respeitar a pessoa em todos os seus aspectos, dimensões e momentos da vida" (artigo 1º do Estatuto da Companhia das Obras). A Companhia das Obras constituiu-se no Brasil em 1998. 15 75 Família: o primeiro sujeito educativo 76 que todo o nosso empenho sobre o trabalho, no trabalho, tenha como reflexo uma atenção e uma ternura para com os outros, que devem ser tomados nos braços e ajudados a caminhar, como crianças ou enfermos, como nós mesmos: é por isso que agimos, não por menos. Nesta altura, eu gostaria de poder ler muitos testemunhos (cheguei a trazêlos para ler), especialmente os que as Famílias para a Acolhida me enviaram. A obra das Famílias para a Acolhida não é "peculiar": é uma grande inspiração, que está invadindo todas as comunidades do Movimento. Que Cristo nos ajude e que Nossa Senhora, neste seu mês de outubro, dilate a possibilidade dessa generosidade! Lamento mesmo não poder ler agora esses testemunhos. Cito apenas algumas passagens. "Quando me faltaram os relacionamentos [o marido foi embora e a mãe morreu], entendi que estava no mundo por Cristo." Aí está. É justamente isso que dizem, de um modo ou de outro, todos os testemunhos das famílias que praticam a acolhida, que vivem a acolhida, não para colaborar com o governo em função de uma ou outra necessidade, mas por um ímpeto, por algo maior, pelo significado que vive como espera em seu coração, pelo significado da vida delas. Todas as famílias que se dedicam à acolhida repetem isso, de um modo ou de outro, nos documentos que me enviaram (pelos quais sou grato a elas): "No esforço que fazemos, entendemos que viemos ao mundo por Cristo" – ou seja, pelo Redentor do homem, pela salvação do homem, por Aquele que é salvação do homem; se viemos ao mundo por Aquele que é salvação do homem, então toda a nossa vida, mesmo na mesquinhez em que consegue traduzi-lo, não pode deixar de desejar fazer o bem, algum bem, aos outros, não pode deixar de participar do esforço do caminho do outro. "Quando, há dez anos, encontramos a comunidade e o Movimento, éramos uma família fazia, mesmo que aparentemente não nos faltasse nada. Tínhamos um filho na época. A falta de sentido nos havia levado ao isolamento: estávamos cedendo à angústia da solidão. Aquele encontro surpreendente, inesperado, reacendeu o gosto pela vida, doando-nos uma energia e uma vitalidade que nunca havíamos experimentado antes. Sentirmo-nos acolhidos sem pretensões pela companhia das Famílias para a Acolhida nos pareceu ser o que deveríamos transmitir a outras pessoas, para que recuperassem um sentido para sua vida. Nossa casa se abriu às necessidades: primeiro veio Mário, um garotinho, que ficou conosco alguns meses, depois três irmãozinhos, Viver na Gratuidade Luigi Giussani juntos, por um longo período. Nós os acolhíamos com simplicidade, pondo nossa casa e nossas coisas à disposição. Lembro-me de que nos momentos críticos, que não eram poucos, rezávamos ao Senhor para que nos ajudasse: não tínhamos nem colchonetes para estender no chão. Depois chegaram Nella, alcoólica, e Pedro, toxicômano, experiências carregadas de dor. Nella morreu depois de algum tempo e Pedro, após quatro anos conosco, nos quais nunca havia usado drogas, recomeçou". Há um outro exemplo espantoso, espantosamente belo, que, espero, vocês lerão em Litterae Communionis16. É uma carta da nossa amiga Rose, que conta de uma ocasião em que, ao final de um dia de trabalho no hospital (ela é enfermeira), viu um homem que se arrastava com os tocos dos quatro membros, pois era leproso. Havia gasto três horas para percorrer um quilômetro e ser internado no hospital; estava com disenteria, e ninguém queria acolhê-lo: vocês vão ler como ela fez com que o acolhessem17. Seja como for, no que diz respeito à caridade é preciso que estejamos atentos a uma coisa. Diante desses exemplos, dos quais as nossas comunidades estão cheias, e que precisaríamos citar um por um (eu deveria citar um por um aqueles que conheço – Litterae Communionis – Tracce é a revista internacional de Comunhão e Libertação. A edição brasileira, Passos Litterae Communionis, chamava-se Comunhão e Libertação até o nº 25, de outubro/novembro de 1991. 16 Cf. "Rose e o leproso". In: Comunhão e Libertação nº 12, janeiro/fevereiro de 1989, p. 7. Alguns trechos da carta: "Ia indo me encontrar com Eugênia, quando, passando pelo ambulatório, vi alguma coisa sob uma mesa, como um corpo sem vida. Abaixei-me para ver o que era enquanto uma enfermeira me dizia: 'Deixa para lá, é só um homem que anda de quatro. Olha os tornozelos e os pés dele!'. Já era de noite e o leproso tinha saído de sua casa às sete horas daquele dia, tinha gasto três horas para percorrer os mil metros que o separavam do hospital. Estava doente, com disenteria, e tinha pedido para ser atendido. Recusaram-lhe a ficha de admissão porque não pagara a taxa necessária. Encontrava-se fraco e deprimido, e dizia-me: 'Pudesse eu morrer agora! Que sentido tem meu viver?'. Eu não tinha nem um centavo para ajudá-lo, mas peguei um formulário com uma enfermeira, coloquei o leproso numa maca e dirigi-me com decisão ao médico plantonista. O médico também, de início, gritou comigo, mas depois perguntou-me: 'Qual o problema com esse velho? É seu parente?'. Então eu lhe expliquei e o médico perguntou-me se eu era freira. Respondi: 'Não, sou cristã, da Igreja Católica'. [...] Eu desejava que a companhia estivesse perto de mim, porque eu não sabia o que fazer com o velho leproso, e as minhas amigas enfermeiras gozavam de mim ao invés de me ajudar. Fui até a cozinha para pedir comida para o doente e responderam-me que, se eu quisesse alimentá-lo, deveria renunciar à minha refeição. Eu estava com muita fome e não me sentia disposta a jejuar, mas não havia outra saída: dei meu prato de comida para o leproso, que estava também faminto. As enfermeiras indagaram-me: 'E agora, ele vai usar seu prato?'. 'Certamente', respondi. Levei o doente para um canto da sala, dei-lhe o meu cobertor e o meu pulôver, e ele adormeceu em paz. [...] Pela manhã encontrei o médico que ia indo examinar o leproso. Ele me disse: 'Reza por mim'". 17 77 Família: o primeiro sujeito educativo já são centenas! –; como, por exemplo, o gesto de uma de vocês que perdeu o marido e acolheu em casa uma doente de Aids sem esperança, a qual, depois de mais ou menos seis meses, morreu em paz e alegre pela companhia que lhe fora oferecida); diante das coisas grandes da caridade, que enchem de exemplos a vida das nossas comunidades (dá vontade de contar apenas essas coisas); diante, sobretudo, do exemplo das Famílias para a Acolhida (pois a hospitalidade é a caridade mais difícil: ela exige que você se empenhe totalmente; vocês, que me ensinam isso, sabem muito bem: a hospitalidade exige todo o seu empenho, de manhã até a noite e da noite até a manhã, como se fosse um filho, um irmão, um marido); diante de tudo isso, há uma observação a fazer: tudo deve se tornar em nós uma dor que nos muda. Não podemos mais ser como antes, depois de ter visto nossos irmãos e nossos amigos, nossos companheiros da comunidade, as famílias que vivem conosco fazerem essas coisas. Qualquer um de nós pode tremer e não se sentir capaz disso, pois o Espírito é dado segundo a medida de Cristo, mas é dado para que nós também venhamos a mudar: "Se um outro faz cem, Senhor, eu te oferecerei um". É uma dor que deve mudar a nós mesmos. Não devemos louvá-los à distância, não devemos olhar para essas coisas erguendo uma parede de auto-suficiência, ainda que seja cheia de benevolência ou admiração: nós nos detemos na admiração, mas não é assim que deve ser, essas coisas devem nos determinar. Não se trata de ficarmos impressionados, mas desconcertados, mudados. De fato, a generosidade das Famílias para a Acolhida eleva o nível de toda a comunidade. O Pertencer, Fonte do Critério 78 Há uma terceira e última coisa que eu gostaria de lembrar. Não existe uma gratuidade autêntica, se não se vive com gratidão a caridade com a qual Cristo tocou a nossa vida por meio do exemplo de outros ou por meio do encontro com uma companhia. Ou seja, sem a fidelidade à companhia que encontramos, a nossa caridade seria falsa: não faria história, isto é, não colaboraria de verdade, da forma devida, com o reino de Deus, para a construção do reino de Deus. Quero lhes mostrar imediatamente uma aplicação disso. Um de vocês me escreveu: "Quando a televisão e os jornais começaram a dizer certas coisas sobre o Viver na Gratuidade Luigi Giussani Meeting de Rímini18, eu me perguntei: 'O que está acontecendo?'. E então decidi tomar um banho de identidade e fui ao Meeting. Entendi, e voltei sereno". É correto o que você disse e fez, meu amigo. Ao contrário disso, imaginemos uma grande comunidade na qual apenas três pessoas estiveram no Meeting. Todos ficaram calados quando um deles contou como era; mas o clima entre eles estava repleto de objeções; e eram as objeções da televisão e da imprensa. Mas, então, quando essas objeções parecem ser suas, significa que você as absorve de algo a que pertence: você pertence ao mundo da televisão e da imprensa. Em vez de partir da mesma raiz, como fez o primeiro ("Vou tomar um banho de identidade"), você deixa prevalecer a sua opinião, tomando distância do que fazem seus irmãos e companheiros do Movimento, e nem de longe se dá conta de que sua opinião sofre as conseqüências da mentalidade dominante, da mentalidade do poder. Em qualquer âmbito é assim: ou a fonte, a raiz que determina a sua preocupação é aquilo a que você pertence, é a companhia a que você pertence, à qual Cristo o fez pertencer, ou você, pretendendo afirmar suas opiniões e seus juízos, é imobilizado e aprisionado na grande prisão que o poder, qualquer espécie de poder, constrói de maneira cada vez mais ramificada e intensa. Há muitos anos, dom Enrico Bartoletti, então Secretário da Conferência Episcopal Italiana, perguntou a alguns dos nossos que foram encontrá-lo: "Onde está o Estatuto de vocês?". Eles responderam: "Não temos Estatuto". "E como conseguem ser tão coesos, como conseguem ser tão unidos, sem um Estatuto?" No fim, ele mesmo tirou uma conclusão, e disse textualmente: "Entendi, este é o Estatuto de vocês: a sua amizade". Não sei se ele pressentiu toda a profundidade dessa palavra, o poço profundo de fé e caridade que constitui a realidade humana e social que é a nossa amizade, mas isso é verdade. O Meeting pela Amizade entre os Povos, realizado anualmente em Rímini, Itália, desde 1980, é fruto da iniciativa de pessoas e grupos que vivem a experiência cristã por meio de Comunhão e Libertação. Verdadeiro festival de encontros, cultura, música e espetáculos, o Meeting dura uma semana, sempre na segunda metade de agosto. 18 79 Família: o primeiro sujeito educativo Um exemplo, nesse sentido, nos é dado por um engenheiro, administrador de uma grande empresa. Ele queria participar da Escola de Comunidade19 e da vida do Movimento, por isso nos escreveu: "Ao ler a polêmica levantada pelo jornal Il Sabato20 sobre os valores comuns, coloquei-me alguns questionamentos: que é o cristianismo? Depois de ter-vos encontrado, experimentei uma dor e uma amargura pela maneira como eu vinha levando a minha vida, a qual, em nome de uma dedicação genérica aos ideais cristãos, tinha excluído Cristo. Os jornais jamais dirão que Comunhão e Libertação, assim como eu o entendo, é um movimento pela santidade da pessoa, e que tem a coragem de submeter tudo a esse desejo. O que escandaliza nos vossos relacionamentos políticos é que o critério não é político. De fato, pode-se, na política, fazer acordo com qualquer um, sem identidade nenhuma. Mas, diante da vossa proposta, cada um tem de responder em seu próprio nome e não pelo rótulo que ele carrega. Já me haviam ensinado que a vida é um Mistério, mas esse ensinamento era como se não tocasse a vida. Depois de ter-vos encontrado, não sei dizer exatamente o que seja o Mistério, mas posso dizer que eu o encontrei. Peço-vos aceitar-me, para que eu não perca este encontro. Gostaria de iniciar um apostolado no meu ambiente de trabalho, mas tenho tanta dificuldade para começar que eu me pergunto, depois de trinta anos de trabalho, o que é que eu, na verdade, aprendi a fazer, visto que ser missionário é, no fundo, o significado do trabalho. Creio ter de iniciar novamente, partindo do zero, e tenho necessidade de novos mestres. Neste sentido, não é suficiente fazer carreira, mas é necessário alguém que te convença de que um momento estimado pode durar para sempre" . O espaço entre esse momento e o sempre é a minha disponibilidade a aprender. O espaço entre a percepção inicial que tivemos e o "sempre"21 é a disponibilidade a aprender. A Escola de Comunidade é o principal gesto catequético de Comunhão e Libertação, constituído de encontros, geralmente semanais, nos quais, por meio da leitura e comparação com textos indicados pelo Movimento, se procura formar uma consciência mais clara da natureza do fato cristão e da Igreja. 19 Publicação italiana inspirada na experiência de Comunhão e Libertação. Deixou de circular no início da década de 1990. 20 21 80 "O critério nunca é político". In: Comunhão e Libertação nº 12, janeiro/fevereiro de 1989, p. 5. Viver na Gratuidade Luigi Giussani É claro que sobre as contingências podemos ter reações e pensamentos diferentes! Mas o que significa isso? Significa que a mesma raiz, a paixão pela mesma raiz parece me obrigar a falar de uma forma diferente de você, meu amigo; mas eu o faço com respeito por você, com um desejo de esclarecer a minha posição a você, insistindo em procurar ajudá-lo naquilo que me parece ser o seu erro, tendo paciência para esperá-lo, pedindo a você que tenha a mesma paciência e insistência comigo. Mas então é uma outra questão: não é tomar distância de nada, é entrar mais em tudo! Isso é a gratuidade. Gostaria de dizer que a forma mais imponente de gratuidade é a vida da nossa companhia, é a vida do Movimento, pois ela só pode manter-se unida por um motivo: Cristo. O Movimento não pode se manter unido, não podemos obedecê-lo, não podemos segui-lo, não podemos servi-lo, não podemos usá-lo para servir, a não ser mediante a perspectiva última do nosso destino comum, que é Cristo, a não ser por essa memória. Essa é a única raiz do entusiasmo pelo nosso Movimento, e nenhum de nós poderia ir embora e se tornar melhor – nenhum! Pois poderíamos repetir a frase terrível de São João: "Eles saíram de entre nós, mas não eram dos nossos"22. O que determinava o amor de Cristo por nós, a gratuidade que qualificou o amor de Cristo por nós? A obediência ao Pai, a adesão à gratuidade do amor do mistério trinitário. Como homem, foi por essa devoção ao mistério do Pai que Ele nos amou, nos quis. É isso que queremos desenvolver este ano, densamente, na densidade do cotidiano concreto, ajudando-nos com piedade para que essa gratuidade seja mais imitada na nossa vida. Há uma infinidade de exemplos entre nós que não podem nos deixar hoje como éramos ontem, que despertam em nós uma irrequietude divina, boa, sacrossanta; não tenhamos medo de seguir, lembremo-nos de que tudo pode acontecer, quando acontece a primeira coisa da qual somos devedores: a graça pela qual eu o encontrei, meu amigo, a graça daquele instante em que senti o meu destino idêntico 22 1 João 2,19. 81 Família: o primeiro sujeito educativo ao seu, o instante em que nos encontramos, nos reconhecemos, mesmo sem dizer, sem entender, confusamente, mas que foi tão verdadeiro que estamos aqui! O Cardeal de Milão, em seu plano pastoral, nos indica um instrumento de educação a essa gratuidade, que é a Liturgia, a vida litúrgica. Por isso, este ano procuraremos desenvolver a nossa oração seguindo a vida sacramental ainda mais intensamente, mais humildemente, mais fielmente. Que a Eucaristia leve a nossa companhia e, portanto, a nossa comunhão a uma visibilidade cada vez maior, para que a Igreja, toda a Igreja, a Igreja do nosso país e a Igreja do mundo inteiro antecipe cada vez mais luminosamente a vinda de Cristo! Essa é a salvação: a salvação é a Sua segunda vinda, quando virá e se manifestará. Nós nos levantamos todas as manhãs para antecipar, na aurora da nossa pobreza, a Sua vinda, a Sua manifestação. "Iluminai nossos sentidos, em nossos corações infundi o fervor"23. "Iluminai nossos sentidos": que o significado dos rostos que tocamos e das coisas que usamos, ó Cristo, determine de alguma forma a maneira como os apertamos e a maneira como os pegamos! E. Galbiati e A. Schweitzer. "Discendi, Santo Spirito". In: Canti. Milão, Cooperativa Editoriale Nuovo Mondo, 2002, p. 113. 23 82