M U LT I D I S C I P L I N A R I D A D E Implicações do Gadolínio no Sistema Urinário CARLOS MARTINS CARNEIRO DE ARAÚJO JÚNIOR Médico Radiologista | Titular do Colégio Brasileiro de Radiologia CDPI | Rio de Janeiro Fellow de Imagem do Abdome e Pelve | Clínica LEONARDO KAYAT BITTENCOURT, PHD Médico Radiologista | Titular do Colégio Brasileiro de Radiologia Mestre e Doutor em Radiologia | UFRJ Adjunto de Radiologia | UFF Coordenador do Setor de Medicina Interna | CDPI Barrashopping A procura de alternativas aos meios de contrastes iodados nos exames radiológicos em pacientes com histórico de reações alérgicas ou insuficiência renal preexistente viabilizou o uso do gadolínio como primeiro contraste paramagnético aprovado para uso clínico em exames de ressonância magnética (RM), a partir de 19881. Diferentemente dos meios de contraste densos (iodados e baritados) dos exames radiográficos e tomográficos, o gadolínio gera contraste na ressonância magnética através da modificação das propriedades dos átomos de hidrogênio nos tecidos onde se encontra, sendo, portanto, do ponto de vista físico, a denominação de agente paramagnético mais adequada que a de meio de contraste para os compostos de gadolínio1,2. Hoje, praticamente todos os exames de ressonância magnética para indicações urológicas requerem o uso de contrastes à base de gadolínio em seu pro- 14 UROLOGIA ESSENCIAL V.4 N.1 JAN JUN 2014 Professor tocolo ideal/completo. Os principais exemplos se dão na caracterização de nódulos e cistos renais (figura 1), no estadiamento de tumores vesicais (figura 2) e na avaliação multiparamétrica da próstata (figura 3). O gadolínio (Gd+3) é um elemento químico metálico, cuja forma livre (ionizada) é tóxica a tecidos biológicos. Assim, os meios de contraste à base desse elemento o empregam sob a forma de quelato, ou seja, moléculas orgânicas que se ligam de maneira estável ao íon de gadolínio, a fim reduzir as chances de toxicidade. Existem, basicamente, duas famílias de quelatos de gadolínio: os de configuração linear e os macrocíclicos. Os compostos lineares têm uma cadeia mais simples, na qual o gadolínio se encontra mais exposto e, potencialmente, com maior chance de dissociação do que nos compostos macrocíclicos. Já esses últimos, de moléculas maiores e ramificadas, são considerados mais estáveis www.urologiaessencial.org.br FIGURA 1 RM do abdome superior no plano axial, ponderada em T2 (A), mostrando lesão cística complexa no rim direito (seta), com septos espessos e irregulares. Sequências em T1 com supressão de gordura pré (B) e pós-contraste (C), mostrando componentes nodulariformes com realce de permeio aos septos (seta), caracterizando cisto do tipo IV de Bosniak e, portanto, altamente suspeito para envolvimento neoplásico. A B C FIGURA 2 Sequência pesada em T2 no plano coronal (A), mostrando espessamento focal irregular de aspecto polipoide na parede anterolateral direita da bexiga (seta), com indefinição de sua parede. Imagem pesada em T1 com supressão de gordura pós-gadolínio (B), mostrando realce precoce e intenso da lesão pelo contraste, sobretudo de seu pedículo, sem extensão significativa à profundidade da parede, sugerindo mais provavelmente lesão polipoide superficial. A B V.4 N.1 JAN JUN 2014 UROLOGIA ESSENCIAL 15 MULTIDISCIPLINARIDADE IMPLICAÇÕES DO GADOLÍNIO NO SISTEMA URINÁRIO CARLOS MARTINS CARNEIRO DE ARAÚJO JÚNIOR LEONARDO KAYAT BITTENCOURT FIGURA 3 Câncer de próstata – lesão fusiforme hipointensa em T2 na face posterolateral do terço médio da zona periférica prostática à direita (seta em A), com sinais de restrição à difusão da água, sugerindo alta celularidade (seta em B). Ao estudo dinâmico de permeabilidade pós-injeção de gadolínio, observa-se foco de realce precoce, correspondente à área suspeita nas demais sequências (seta em C). A combinação dos achados multiparamétricos configurou alta suspeição para esta lesão. A peça de prostatectomia revelou adenocarcinoma usual prostático grau 7 (3+4) de Gleason, confinado à região suspeita pelos achados de RM (cabeçasde-seta em D). A B C D e com menor chance de dissociação dos íons de gadolínio1,2. A tabela 1 resume os principais meios de contraste, baseados em gadolínio à disposição no mercado para uso clínico. Os meios de contraste paramagnéticos baseados em gadolínio são largamente utilizados e considerados seguros do ponto de vista renal, pois não apresentam efeito nefrotóxico, o que os diferencia dos meios de contraste iodados. Dessa forma, não há, especificamente, a preocupação com advento de nefropatia induzida por contraste com o uso de gadolínio, tampouco há necessidade de medidas protetoras de função renal em pacientes que serão submetidos a exames de RM. 16 UROLOGIA ESSENCIAL V.4 N.1 JAN JUN 2014 Os meios de contraste baseados em gadolínio são considerados bastante seguros para uso clínico geral, sobretudo em comparação com a incidência de efeitos adversos de meios de contraste iodados. É descrito que até 5% dos pacientes em uso de compostos de gadolínio apresentam reações adversas, porém menos de 1% de tais reações são consideradas moderadas ou graves. As mais comuns incluem náuseas, vômitos, cefaleia, dor, alterações do paladar, tontura, vasodilatação e sensação de frio no local da injeção. Raramente se observam reações anafilactoides graves, e estas se dão, em sua maioria, em pacientes sabidamente alérgicos a múltiplas outras substâncias2,3. Além disso, devido à toxicidade intrínseca do íon livre de gadolínio, existe a possibilidade de efeitos dose-dependentes e cumulativos, resultantes da deposição do gadolínio em tecidos do organismo4,5. Dentre esses efeitos de deposição, a condição de maior notoriedade, e que tem sido exaustivamente estudada na literatura radiológica recente, é a fibrose sistêmica nefrogênica (FSN). A FSN é uma doença sistêmica rara descrita desde 1997, geralmente progressiva, debilitante e potencialmente fatal, caracterizada por fibrose tecidual generalizada, sendo originalmente conhecida como dermopatia fibrosante nefrogênica devido a seus achados cutâneos dominantes, que, entretanto, teve sua terminologia modificada em razão de uma maior compreensão de seus efeitos sistêmicos1. Clinicamente, a FSN é caracterizada pelo espessamento e endurecimento da pele, com envolvimento IMPLICAÇÕES DO GADOLÍNIO NO SISTEMA URINÁRIO CARLOS MARTINS CARNEIRO DE ARAÚJO JÚNIOR LEONARDO KAYAT BITTENCOURT MULTIDISCIPLINARIDADE TABELA 1 Meios de contraste baseados em gadolínio Nome Estrutura Química Vias de Eliminação Ligação Carga Protéica Relato de FSN Genérico Comercial Gadodiamida Omniscan Lienar Renal Não Não iônica Sim Gadoversetamide OptiMARK* Linear Renal Não Não iônica Sim Gadopentado de dimeglumina Magnevist, Magnograf Linear Renal Não Iônica Sim Gadobenato de dimeglumina MultiHance Linear 97% renal <5% Iônica Não <15% Iônica Não 9% biliar >85% Iônica Não 3% biliar Ácido gadoxético Primovist Linear 50% renal 50% biliar Gadofosveset Vasovist Linear 95% renal Gadoteridol ProHance Cíclico Renal Não Não Iônica Não Gadobutrol Gadovist Cíclico Renal Não Não Iônica Não Gadoterato de meglumina Dotarem Cíclico Renal Não Iônica Não Adaptado de Karam, 20082. principalmente das extremidades, resultando em contraturas em flexão, com redução da amplitude dos movimentos, associada à dor, parestesias e prurido intenso1. Não existe um único teste capaz de diagnosticar a doença. Os achados laboratoriais geralmente encontrados são déficit da função renal, estados de hipercoagulabilidade e oscilações na contagem de plaquetas. O padrão-ouro para o diagnóstico da FSN é a análise histopatológica através da biópsia da pele acometida6. Observou-se, no início da última década, uma sucessão de casos de FSN em pacientes com histórico comum de realização de exames de RM com gadolínio. Percebeu-se, então, que havia um maior risco de desenvolvimento de FSN relacionada a gadolínio em pacientes com taxa de filtração glomerular menor do que 30mL/min/1,73m2, especialmente naqueles submetidos à diálise, apesar de também poder ocorrer em casos de insuficiência renal agu- da, particularmente com síndrome hepatorrenal, o que obriga a comunidade radiológica a rever os conceitos de segurança do gadolínio em pacientes com função renal comprometida2, 7. A hipótese mais aceita até então é a de que, em pacientes com função renal comprometida, a permanência prolongada dos compostos de gadolínio na circulação sanguínea facilita a dissociação em íons livres, que podem, então, se depositar nos tecidos. Além de comprometimento da função renal, um grande número de pacientes acometidos por FSN apresenta, ainda, outras comorbidades, como estado de hipercoagulabilidade ou de eventos trombóticos em procedimentos cirúrgicos, principalmente vasculares, antecedendo o aparecimento dos sintomas, sendo que muitos pacientes também apresentam hepatopatia crônica concomitante (hepatite B e C) e acidose. Entretanto, o exato significado da associação do comprometimento renal com essas comorbidades V.4 N.1 JAN JUN 2014 UROLOGIA ESSENCIAL 17 MULTIDISCIPLINARIDADE IMPLICAÇÕES DO GADOLÍNIO NO SISTEMA URINÁRIO CARLOS MARTINS CARNEIRO DE ARAÚJO JÚNIOR na gênese da FSN ainda não está claro8. Pacientes com doença renal avançada (pacientes em diálise ou com taxa de filtração glomerular (TFG) < 15 mL/min) devem ser criteriosamente avaliados quanto à necessidade e ao benefício do uso do contraste e, caso seja realmente necessário, deve-se administrar a menor dose possível do mesmo. Nos pacientes que se apresentam com insuficiência renal aguda, os valores de creatinina e a taxa de filtração glomerular estimada são imprecisos, devendo ser, geralmente, evitada a utilização de agentes de contraste à base de gadolínio. Para pacientes com insuficiência renal crônica, a FDA (Food and Drug Administration) determinou que o risco é maior quando a taxa de filtração glomerular estimada é inferior a 30 mL/min/1,73 m2 1, 3, 9. Não há informações suficientes para determinar a verdadeira utilidade da diálise em prevenir ou tratar a fibrose sistêmica nefrogênica em pacientes com função renal reduzida. Entretanto, sabe-se que a realização de diálise nesses pacientes eliminará o contraste circulante, com taxas médias de excreção de 78%, 96% e 99%, nas respectivas sessões de diálise. Portanto, recomenda-se que a hemodiálise seja realizada imediatamente após a administração do agente de contraste à base de gadolínio e, novamente, 24 horas mais tarde7, 9, 10. As novas diretrizes de utilização do gadolínio variam de acordo com sociedades que norteiam essas orientações, sendo basicamente a norteamericana e a europeia4, 5. Enquanto a norteamericana não leva em consideração o tipo de gadolínio que está sendo utilizado, e determina condutas genéricas para o uso desse agente, a europeia tem normas variáveis dependendo do tipo de gadolínio que será utilizado, sendo esta a adotada em nosso serviço e a que conta com maior aceitação mundial4, 5. A European Society of Urogenital Radiology (ESUR) Contrast Media Safety Committee definiu os grupos de risco para o uso do gadolínio da seguinte forma11: ALTO risco: • pacientes com IRC graus 4 e 5 (clearance estimado de creatinina <30 mL/min/1,73 m2); 18 UROLOGIA ESSENCIAL V.4 N.1 JAN JUN 2014 LEONARDO KAYAT BITTENCOURT • pacientes em diálise; • pacientes com insuficiência renal aguda. BAIXO risco: • pacientes com IRC grau 3 (clearance estimado de creatinina entre 30 e 59 mL/ min/1,73 m2); • crianças menores do que um ano de idade. SEM risco: • pacientes com TFG >60 mL/min. A classificação quanto ao tipo dos meios de contraste paramagnéticos, segundo o risco para desenvolvimento de FSN, dá-se da seguinte forma: ALTO RISCO: • gadodiamida (Omniscan®); • gadopentetato dimeglumina (Magnevist®); • gadoversetamida (Optimark®). Esses agentes não devem ser utilizados em doses superiores a 0,1 mmol/kg por exame e por paciente, sendo mandatória a determinação dos níveis séricos de creatinina11. São contraindicados para os pacientes com insuficiência renal crônica graus 4 e 5, insuficiência renal aguda, grávidas e recém-nascidos. Tais contrastes devem ser utilizados com cautela nos pacientes com IRC grau 3 e nas crianças menores do que um ano de idade. RISCO INTERMEDIÁRIO: • gadobenato dimeglumina (Gd-Bopta®); • gadofosveset trissódico (Vasovist®); • gadoxetato dissódico (Primovist®). BAIXO RISCO: • gadobutrol (Gadovist®); • gadoterato meglumina (Dotarem®); • gadoteridol (Prohance®). Os contrastes com risco intermediário e baixo podem ser utilizados com precaução em pacientes com IRC 4 e 5, com um intervalo mínimo de 7 dias entre duas injeções, utilizando-se as menores do- IMPLICAÇÕES DO GADOLÍNIO NO SISTEMA URINÁRIO CARLOS MARTINS CARNEIRO DE ARAÚJO JÚNIOR ses possíveis. O comitê afirma que não é necessária a detecção dos níveis de creatinina para o uso dos agentes desses grupos, exceto nos pacientes com IRC graus 4 e 5. Portanto, contrastes à base de gadolínio na dosagem correta podem ser utilizados com segurança. Porém devemos ter cautela com pacientes com IRC graus 4 e 5, levando-se em consideração o bom senso na avaliação do risco versus benefício desses pacientes. Em resumo, os meios de contraste baseados em gadolínio são substâncias seguras para uso LEONARDO KAYAT BITTENCOURT MULTIDISCIPLINARIDADE clínico em pacientes hígidos ou com leve comprometimento da função renal. A ocorrência de reações alérgicas graves é muito incomum, e não há perfil de nefrotoxicidade para esses compostos. A principal complicação a se ter atenção é a FSN, cujo principal fator de risco é o comprometimento moderado/ grave da função renal, associado a condições sistêmicas como infecção ou acidose. Compostos de estrutura macrocíclica são considerados mais estáveis e, portanto, com menor risco de desenvolvimento de FSN, devendo ser preferidos em pacientes com qualquer histórico de alteração na função renal. REFERÊNCIAS 1. 2. 3. 4. 5. 6. Juluru K, Vogel-Claussen J, Macura KJ, Kamel IR, Steever A, Bluemke DA. Quality Initiatives MR Imaging in Patients at Risk for Developing Nephrogenic Systemic Fibrosis: Protocols, Practices, and Imaging Techniques to Maximize Patient Safety1. Radiographics. 2009;29(1):9-22. Karam MAH. Risco de Fibrose Sistêmica Nefrogênica com o Uso de Contraste à Base de Gadolínio em Doença Renal Crônica. J Bras Nefrol. 2008;30(1):66-71. Martin DR. Nephrogenic systemic fibrosis: A radiologist’s practical perspective. European journal of radiology. 2008;66(2):220-4. Thomsen HS. How to avoid nephrogenic systemic fibrosis: current guidelines in Europe and the United States. Radiologic Clinics of North America. 2009;47(5):871-5 Leite CdC. Fibrose nefrogênica sistêmica: novas diretrizes. Radiologia Brasileira. 2010;43:V-VI. Marckmann P, Skov L. Nephrogenic systemic fibrosis: clinical picture and treatment. Radiologic Clinics of North America. 2009;47(5):833-40. Kuo PH, Kanal E, Abu-Alfa AK, Cowper SE. Gadolinium-based MR contrast agents and nephrogenic systemic fibrosis. Radiology. 2007;242(3):647. 8. Sadowski EA, Bennett LK, Chan MR, Wentland AL, Garrett AL, Garrett RW, et al. Nephrogenic Systemic Fibrosis: Risk Factors and Incidence Estimation 1. Radiology. 2007;243(1):148-57. 9. Leite CdC. Gadolínio e fibrose nefrogênica sistêmica: o que todo médico deve saber. Radiologia Brasileira. 2007;40:IV-V. 10. Altun E, Martin DR, Wertman R, Lugo-Somolinos A, Fuller 3rd ER, Semelka RC. Nephrogenic Systemic Fibrosis: Change in Incidence Following a Switch in Gadolinium Agents and Adoption of a Gadolinium Policy—Report from Two US Universities 1. Radiology. 2009;253(3):689-96. 11. Thomsen HS. ESUR guideline: gadolinium-based contrast media and nephrogenic systemic fibrosis. European radiology. 2007;17(10):2692-6. 7. V.4 N.1 JAN JUN 2014 UROLOGIA ESSENCIAL 19