1 Moradias Estudantis: Uma política pública na consolidação do Direito à Cidade. Gerson Carlos de Oliveira Costa Estudante de Direito da UFBA, bolsista de extensão universitária, Lugar Comum/ Faculdade de Arquitetura da UFBA. [email protected] Pedro de Oliveira Estudante de Direito da UFBA. [email protected] Resumo O presente trabalho acadêmico tem como objeto de estudo a problemática atinente às residências estudantis, levando em consideração a dimensão das moradias universitárias e a dimensão das moradias estudantis municipais, no âmbito do seu legado histórico e da sua importância social. Buscamos analisar a dinâmica social, jurídica, política e educacional que permeia a relação entre os deveres dos entes federados (União, Estados-membros e Municípios) e os direitos dos cidadãos, uma relação que abrange diretamente a aplicabilidade e a eficácia dos direitos fundamentais. O trabalho aborda a questão do direito à moradia nos grandes centros urbanos, tendo como foco o município de Salvador, na perspectiva do direito à cidade; há, neste artigo, o entendimento de que muito embora o acesso dos estudantes oriundos do interior do estado às moradias estudantis se consolide como um elemento determinante na consolidação do direito à cidade, isto não substitui, em absoluto, a compreensão de que é a interiorização do ensino superior – acompanhada da destinação dos recursos necessários à manutenção estrutural desta interiorização e da suplementação de verbas (aplicadas com efetividade) encaminhadas à assistência estudantil, estruturada em quatro eixos de implementação: preparação (fase anterior à entrada), ingresso, permanência e pós-permanência – a medida publica mais eficaz ao fomento do desenvolvimento humano dos estudantes residentes. O artigo também aborda a dimensão da previsão normativa, no arcabouço jurídico nacional e internacional, no que diz respeito à recepção do direito à moradia, além de analisar o papel social das moradias e seu contributo para a comunidade. Palavras-Chave: moradias estudantis - direito à cidade – residentes - moradia. Moradias Estudantis¹: Uma política pública na consolidação do Direito à Cidade. 1 O termo Moradias Estudantis é o mais adequado juridicamente, visto que os termos ‘residências’ e ‘casas’ indicam um outro tipo de realidade. Moradia indica um imóvel em que há um vínculo de caráter provisório com os seus moradores; é um conceito mais adequado para denotar uma morada de finalidade específica e temporária, como é o caso das moradias estudantis, diferentemente do termo residência (que indica um animus de permanência do indivíduo em um imóvel, muito embora possa se ausentar periodicamente, mas a regra é a permanência, ao contrário das moradias, em que a regra pode ser vista como a temporariedade) e do termo casas (que pode representar até um domicílio, que é o vínculo mais permanente possível de um indivíduo com um imóvel, entendendo-se qualquer domicílio como bem de família, tamanha é o animus de permanência). 1 Introdução Este artigo abordará especificamente a questão das moradias estudantis do Estado da Bahia, impondo um recorte temático nas residências estudantis localizadas na cidade de Salvador; ficam compreendidas, assim, as moradias universitárias da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e as moradias estudantis municipais. Nesse sentido far-se-á duas abordagens distintas: uma levando em consideração as particularidades das moradias universitárias da UFBA e outra considerando os aspectos das moradias estudantis municipais. Muito embora a dinâmica de moradia e os aspectos de convivência tanto nas moradias universitárias da UFBA quanto nas moradias estudantis municipais sejam bastante similares, entende-se que metodologicamente seria mais didático abordar cada realidade em tópicos distintos, por isso que se optou por analisar cada uma dessas dimensões separadamente. Destarte, além da abordagem relacionada ao direito à moradia, este trabalho visa analisar sistematicamente, também, as moradias estudantis em seus aspectos histórico, urbanístico, jurídico, social e político, o que envolve diretamente a análise de fenômenos sociais tais como: o regionalismo, os ciclos migratórios inter-regionais na Bahia, a questão relacionada ao direito urbanístico e suas implicações (questões de centralidade e acesso aos espaços urbanos, etc.), a função social das moradias e as políticas publicas voltadas aos estudantes oriundos do interior do Estado da Bahia e que se deslocam em direção aos grandes centros urbanos a fim de ingressar tomar posse do seu direito à educação, constitucionalmente garantido. Para analisar esta problemática nestes aspectos acima citados e a fim de propor estratégias de superação das dificuldades referentes a algumas questões, como o número de vagas disponíveis, infraestrutura, posicionamento periférico da grande maioria das casas e outros problemas enfrentados pelos moradores, delimitar-se-á esta produção nos seguintes tópicos: 1. Histórico das Moradias Estudantis em Salvador; 2. Papel Social das moradias estudantis; 3. Moradias estudantis: intersecção entre o direito à moradia e o direito á educação; 4. Considerações Finais. Histórico das Moradias Estudantis em Salvador A compreensão da lógica de surgimento das moradias estudantis ao longo dos anos perpassa, necessariamente, pelo entendimento da dinâmica dos fluxos migratórios, seja no Brasil ou na Bahia. Um estudo de caso acerca da história das moradias estudantis indica que a construção destas moradias representa uma resposta (das instituições de ensino superior em que estudam os estudantes forasteiros, ou das prefeituras dos seus municípios de origem, ou de pessoas comuns que se sensibilizam com a causa da ausência de moradia dos estudantes) a um determinado fenômeno social: a migração de considerável número de estudantes para as chamadas zonas de atração migratória, algo que tem como consequência imediata a falta de moradia para estes indivíduos. É interessante, a fim de desenvolver, de maneira satisfatória, este resgate histórico, destacar a contextualização de seis momentos: o surgimento da primeira moradia estudantil do Brasil; a criação da Casa do Estudante do Brasil (Rio de Janeiro); a construção das primeiras moradias estudantis em Salvador; o primeiro grande 2 fluxo migratório de estudantes para Salvador (década de 1970); o segundo grande fluxo migratório de estudantes para Salvador (década de 1980); as circunstâncias atuais das moradias estudantis em Salvador. A primeira moradia estudantil do Brasil surgiu entre as décadas de 1850 e 1860 (não se sabe, ao certo, qual a data específica de inauguração) na cidade de Ouro Preto. Naquele momento, o que se passava era o início do Ciclo da Mineração naquela região, o que proporcionou um crescimento muito grande da região das Minas Gerais, fazendo com que surgisse, devido à demanda por qualificação nos serviços de extração mineral, a Escola de Minas de Ouro Preto (hoje vinculada à Universidade Federal de Ouro Preto). Esta instituição de ensino superior altamente qualificada consolidou-se, em pouquíssimo tempo, como grande atrativo de estudantes forasteiros, algo que motivou a construção desta moradia estudantil como resposta à grande quantidade de estudantes (e professores também, uma vez que esta moradia servia a alguns professores que vinham de outras localidades) que emigraram para esta cidade no intuito de estudar/ensinar na Escola de Minas de Ouro Preto. Vale ressaltar que os estudantes e os professores, naquela época, eram pessoas que gozavam de grande prestígio social, o que explica tamanha prestatividade por parte da Escola de Minas de Ouro Preto em construir esta moradia. Em 1929, por iniciativa do casal Ana Amélia Queirós Carneiro de Mendonça e Marcos Carneiro de Mendonça, foi fundada, em 1929, a Casa do Estudante do Brasil. Esta moradia estudantil funcionava no Solar dos Abacaxis, no bairro do Cosme Velho (Rio de Janeiro) e servia de moradias aos estudantes que vinham ao Rio de Janeiro (por uma temporada curta ou longa) e que, por alguma razão, não tinham onde morar durante o período em que estivessem lá. Nesta moradia estudantil que, em 1937, foi realizado o I Congresso Nacional dos Estudantes, que deliberou pela fundação da União Nacional dos Estudantes (UNE). Esta casa tornou-se, também durante a Era Vargas, um reduto de resistência e de combate à opressão promovida pelo Governo Vargas (1930-1945). A partir do precedente inaugurado pelas duas primeiras moradias estudantis, em Ouro Preto e no Rio de Janeiro, passou a ser reivindicada, pelos estudantes das novas universidades que estavam sendo fundadas durante o Governo Vargas (Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal de Pernambuco, etc.), a aquisição de moradias estudantis. Neste contexto, surge, em 1947, o esboço daquilo que seria o primeiro sistema de moradias estudantis da Bahia, quando a Universidade Federal da Bahia (UFBA) adota um sistema de internato para a Escola de Enfermagem. No entanto, o marco histórico inicial das moradias estudantis na Bahia ficaria mesmo para os meados da década de 1940, quando a UFBA adquiriu um casarão no Corredor da Vitória que funcionou como a primeira moradia estudantil da história da Bahia, a Residência Universitária I da UFBA. Um pouco depois, em 1956, foi inaugurada a Residência Universitária Feminina da UFBA, localizada no bairro do Canela. Inicialmente foi alugado um andar do casarão de sete andares, para abrigar as estudantes; no entanto, o crescimento da demanda por moradia resultou na tomada de postura da UFBA em adquirir todo o casarão, posteriormente. Em 1962, foi adquirido, no Largo da Vitória, o casarão que serviria de alojamento para os estudantes e professores oriundos do sistema de intercâmbio da UFBA com universidades estadunidenses; surgia, assim, a 3 Residência dos Estudantes Estrangeiros que, após o termino da permanência dos estadunidenses nesta moradia estudantil, transformou-se na Residência Universitária II. Até o final da década de 1960, quando ainda não havia um grande fluxo migratório de estudantes para Salvador, as moradias estudantis eram basicamente fornecidas pela UFBA. Isto mudou, no entanto, na década de 1970. A abertura do Polo Petroquímico de Camaçari, do Centro Industrial de Aratu e da modernização da Refinaria Petrolífera Landupho Alves, ambos na Zona Metropolitana de Salvador, desencadeou o primeiro grande fluxo migratório de pessoas para Salvador. Dentre pessoas, muitos eram estudantes, que vieram em busca de oportunidades de crescimento acadêmico (pois a UFBA era o único centro de excelência em ensino superior da época, além de que os melhores colégios secundaristas se encontravam também em Salvador) e profissional (visto que, nestas circunstâncias, Salvador passou a concentrar muitas e excelentes propostas de emprego e de capacitação profissional, nas mais diversas áreas, aos profissionais tecnicamente capacitados devido à sua formação de qualidade, nos ensinos técnico, médio e superior). No início da década de 1970 foi criado o Centro Estudantil Padre Torrend, cuja estrutura física funcionava, dentre outras atribuições, como moradia aos estudantes necessitados e que tinham emigrado para Salvador por motivos de estudo – e que rompeu, também, com a lógica (estabelecida em Salvador) de que as moradias estudantis eram exclusivamente universitárias, visto que acolhia os estudantes secundaristas. Esta estrutura de quatro moradias estudantis existentes em Salvador, na metade da década de 1970, mostrava-se, no entanto, insuficiente. Algumas prefeituras dos municípios do interior do estado, portanto, sentiram-se pressionadas a criar moradias estudantis com vistas a auxiliar os estudantes emigrantes na capital, surgindo, desta forma, ao longo da década de 1970, algumas moradias históricas como a Residência Estudantil de Guanambi (1976), a Residência Estudantil de Caetité (em torno de 1979), entre outras. Durante a década de 1980, com a consolidação dos empreendimentos industriais construídos na década passada, além do monstruoso avanço imobiliário e de infraestrutura ocorridos em Salvador, os grandes fluxos migratórios de estudantes continuou e, mais uma vez, a quantidade de moradias estudantis se mostrou insuficiente para atender à demanda dos estudantes. Em razão disto, surgiram muitas outras moradias, como a Residência Estudantil de Mucugê, a Residência Estudantil de Morro do Chapéu, havendo, inclusive, um marco histórico importante nesta década que é articulação entre as diversas moradias estudantis, dos diversos municípios, num só movimento: o movimento das casas de estudantes. Atualmente, Salvador possui um total de 32 moradias universitárias, o que compreende um contingente de 928 moradores, aproximadamente, conforme apresenta, de maneira mais pormenorizada, as ilustrações abaixo. Algo que merece ser destacado, neste contexto atual das moradias estudantis em Salvador, é a construção da nova moradia estudantil, a Residência Universitária Estudante Frederico Perez Rodrigues Lima, cujas instalações obedecem a todos os critérios de promoção na dignidade de habitação dos estudantes, inclusive no tocante à questão da acessibilidade (já que tem quartos especificamente feitos para portadores de deficiência física) e quanto à privacidade dos 4 moradores (já que foi construída no formato de apartamentos, com quartos e móveis específicos para cada apartamento). Essa nova residência é o que se tem de mais moderno, hoje, com relação às moradias estudantis em Salvador. Figura: 1 A Residência Universitária Estudante Frederico Perez Rodrigues Lima, inaugurada no dia 4 de julho de 2012, além de representar uma conquista dos estudantes da Universidade Federal da Bahia, representa também uma nova concepção de moradia estudantil. Diferentemente das outras RU (residências universitárias) da UFBA, que são casas que foram improvisadas para receber os residentes, a nova residência Estudante Frederico Perez Rodrigues Lima também conhecida como Residência Garibaldi, inaugura um novo modelo 5 arquitetônico de construção das moradias, pois diferente das demais RU; a Residência Garibaldi possui um formato de construção similar a um prédio residencial convencional, o que garante melhores condições de moradia. Muito embora, a nova Residência Garibaldi represente uma novidade no que diz respeito à estrutura de moradia, onde esta novidade mencionada anteriormente representa uma inovação na concepção do modelo arquitetônico das RU, é importante refletir no seguinte sentido: se esse novo modelo de residência atende de fato às demandas sociais inerentes a um espaço de moradia coletivo, pois, muito além de mais espaço para os moradores, é preciso ter o cuidado de garantir que esses residentes interajam no espaço de moradia e que não criem espaços de moradia isolados, onde cada estudante vive em seu apartamento sem contato com o lugar (RELPH, 1979, p. 1 – 25) externo que o cerca. O espaço das moradias, independente da sua arquitetura, representa uma dimensão social e dentro desse espaço pode acontecer uma série de interações sociais que podem ser negativas ou positivas, isto é, a estrutura do espaço de moradia pode contribuir muito, no que diz respeito a essa interação no espaço; por isso que é de fundamental importância que existam espaços de convivência comuns a todos os moradores no seu ambiente habitacional, bem como áreas de lazer coletivas, espaços para reuniões e assembleias estudantis. Falamos de espaço e o que pode acontecer, gramaticalmente, em cada um. E o que pode acontecer varia. Mas, na variação mesma dos eventos possíveis, existe uma estrutura que torna o espaço apenas mais uma dimensão do social. Para proceder a seu levantamento é necessário registrar as categorias através das quais os usuários se referem aos diversos recortes que distinguem e observar o que neles fazem ou consideram factível. (SANTOS, 1985, P. 48). Destarte, a política de moradia estudantil que passou por um novo marco organizativo após a entrega do novo imóvel da residência Garibaldi, ainda precisa avançar muito no que diz respeito a não só a qualidade nas condições de moradia, mas também quanto ao numero de vagas disponíveis. Figura: 2 Residência Estudante Frederico Perez Rodrigues Lima 6 Foto do acervo pessoal Figura:3 7 O Papel Social das moradias estudantis As moradias estudantis desempenham um papel fundamental na formação social e política dos estudantes, pois, muito mais do que um imóvel utilizado como moradia pelos estudantes, possibilitam aos moradores o convívio pacifico e harmonioso com uma gama de indivíduos dos mais diversos e variáreis perfis/posicionamentos políticos; pessoas com histórias de vidas completamente distintas e oriundas de contextos sociais diversos que, convivendo coletivamente, estabelecem um ambiente heterogêneo, do ponto de vista sociológico, e fundamental para uma formação pessoal diferenciada para os estudantes. Assim as moradias estudantis garantem, em seus aspectos sociais, um espaço democrático de excelência para a convivência coletiva, sendo capaz de gerar mobilização social suficiente para impulsionar mudanças objetivas na sociedade e promovendo o diálogo diretamente com a comunidade e com o papel social das mais diversas instituições educacionais. Destarte, historicamente as moradias estudantis representaram um ambiente fecundo para criação de ideias progressistas, pois, nos períodos em que a democracia esteve esvaziada em nosso país, nos chamados anos de chumbo, período de em que o Brasil fiou refém de um regime totalitário, as moradias estudantis tiveram papel fundamental, primeiro na luta contra o regime militar e, depois, na consolidação do “estado democrático de direito”, contribuindo assim com a construção de uma sociedade fundada em princípios democráticos. Com efeito, as residências universitárias têm a capacidade de promover a democracia e a ética numa perspectiva de aceitação da diversidade cultural, sexual, racial, regional, política, cultural e artística, garantindo a dignidade e a liberdade individual de todos. Em outras palavras, a democracia é uma ética, se chamamos de ética a capacidade de criar e escolher uma forma de viver, capaz de fazer possível a vida digna para todos. A democracia é uma forma de construir a liberdade e a autonomia de uma sociedade, aceitando como fundamento a diversidade e a diferença. (TORO E WERNECK, 1996, p. 3). Em virtude disto, as moradias estudantis representam, nos espaços urbanos, muito mais do que espaços de estadia e/ou convivência, mas representam verdadeiros lugares, alcançando dimensões afetivas, psicológicas e de verdadeira identificação do indivíduo com tais localidades (muito embora reconheçam que são habitações temporárias). Parafraseando o doutrinador inglês Edward Relph: “[...] lugar significa muito mais do que o sentido geográfico de localização. Não se refere a objetos e atributos da localização, mas à tipos de experiência e envolvimento com o mundo, a necessidade de raízes e segurança” (RELPH, 1979, p. 1 – 25) As moradias estudantis, entendidas como um equipamento coletivo de moradia, exercem a potencialidade de promover uma coesão social que deveria ser, a priori, uma responsabilidade do poder publico, através do traçado urbanístico da cidade. Por conta da própria configuração urbanística da cidade produzir efeitos deletérios, no que diz respeito às praticas sociais no ambiente urbanístico, as moradias estudantis acabam assumindo, ainda que em uma pequena dimensão, a tarefa de promover uma coesão social entre os estudantes que são residentes. 8 Não se pode deixar de observar que as cidades, ao se desenvolverem continuamente se reestruturam – muitas vezes a despeito dos planejadores – resultado da interação das diferentes forças atuantes no meio urbano, reduzindo as possibilidades de se determinar através do desenho da cidade as práticas sociais. (BARCELLOS, 2001, p. 12). De acordo com os autores José Bernardo Toro e Nisia Maria Werneck, “toda ordem de convivência é construída, por isso é possível falar em mudança. As ordens de convivência são construídas, não são naturais. O natural é nossa tendência a viver em sociedade.” (TORO E WERNECK, 1996, p.7). Nesse sentido, a convivência no mesmo espaço de estudantes de cursos das mais diversas áreas do conhecimento (humanidades, exatas, saúde, artes, cultura, etc.) interagindo interdisciplinar e socialmente viabiliza uma ordem social sofisticada e democrática que é um contributo importantíssimo na formação acadêmica, pessoal e social dos residentes. Destarte, as moradias estudantis, além de contribuir com a formação acadêmica dos moradores, possibilitam também aos estudantes um espaço de manifestação e interação artístico-cultural, pois as moradias são, também, um ambiente favorável às práticas e às manifestações culturais e artísticas. É comum acontecer nas suas dependências a realização de apresentações musicais, espetáculos artísticos, apresentações teatrais, dentre outros eventos. O seu legado sociológico é o principal contributo para a sociedade brasileira, que de alguma maneira, é quem custeia o Estado, que, por sua vez, mantém e financia o funcionamento das moradias. Isso envolve diretamente o seu papel social, que em certa instância converge com o conceito de papel social das instituições educacionais. Assim é dever destas instituições promover o funcionamento das moradias, bem como estimular a prática de atividades acadêmica, artística, cultural, política e social nestes lugares. Moradias estudantis: uma intersecção entre o direito á moradia e o direito à educação Direito à moradia está diretamente relacionado com a questão apresentada neste artigo, visto que as moradias estudantis consistem em instrumentos fundamentais na consolidação desta espécie de direito humano. O direito à moradia está consolidado na Constituição Federal de 1988, onde é reconhecido como um dos direitos fundamentais à cidadania, encontrando, portanto, arcabouço normativo no ordenamento jurídico brasileiro e na legislação internacionalista, consolidando-se como um direito integrante do rol dos direitos humanos. Neste mesmo sentido está o pensamento de Lúcia Moraes e Marcelo Dayrell, que defendem o seguinte: O direito à moradia é um direito humano protegido pela Constituição Brasileira e pelos instrumentos internacionais. Os direitos humanos econômicos, sociais e culturais, dentre os quais está o direito à moradia adequada, representam demandas das pessoas ao estado e são reconhecidos pela legislação nacional (MORAES E DAYRELL, 2008, p.13). 9 A legislação brasileira é bastante coerente no que diz respeito à recepção do tema direito à moradia, cujo fulcro normativo é considerável em comparação a outros direitos, já que integra os direitos constitucionais (hierarquicamente privilegiados), estando presentes nos seguintes dispositivos legais: artigo 5º, XXII e XXIII (que conferem ao direito à moradia a alcunha de direito fundamental ao exercício da individualidade cidadã, através da garantia dos princípios da Função Social da Propriedade e da garantia do acesso à propriedade urbana) e no artigo 6º (que concede a esta espécie de direito a característica de direito social) da Constituição Federal de 1988. Há, ainda, um entendimento de que, no que tange à questão das moradias estudantis, estabelece-se uma perspectiva dialética entre o direito à moradia e o direito à educação, o que é evidente quando se analisa o artigo 182 da Constituição (caput e parágrafos 1º, 2º e 4º), responsável pela regulamentação do Princípio da Função Social da Cidade perante as políticas urbanas; esta norma constitucional, destarte, garante que providências devem ser tomadas, pelo Poder Público, para que todos possam usufruir dos benefícios que os espaços urbanos podem oferecer, como o acesso à saúde, à educação, ao fluxo pelos espaços urbanos em um tempo razoável e a uma moradia que permita o acesso do cidadão a estes direitos; ocorre, portanto, um panorama dialético entre estas duas esferas do direito: o direito à moradia se materializa quando a moradia serve de um instrumento social, de que dispõe o indivíduo, para a obtenção do direito à educação (um dos benefícios decorrentes do processo de urbanização), e o direito à educação, por sua vez, só pode ser concretizado num ambiente urbano se houver um mínimo de dignidade de moradia para o cidadão. Esta mesma lógica dialética pode ser utilizada numa análise da Lei Federal número 10.257 de 2001, também conhecida como Estatuto das Cidades, que serve como um aparelho específico e, portanto, de maior dinamicidade, voltado ao desenvolvimento dos princípios norteadores das políticas urbanas que estão positivados na Constituição. Em relação ao direito internacional, as questões relacionadas ao direito à moradia, assim como no ordenamento jurídico nacional, também dispões de uma série de instrumentos normativos com a finalidade de promover a consolidação do direito à moradia, tais como: o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que garante que toda pessoa tem direito a um padrão de vida digno; o artigo 11 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que chama a atenção para a importância de uma moradia adequada como condição do exercício de uma vida com dignidade; a declaração de Viena de 1993, que reafirma entre outros direitos o direito á moradia como um direito necessário a uma vida adequada, dentre outros são exemplos que no direito internacional a questão do direito á moradia, foi recepcionado no ordenamento jurídico internacional. O direito à moradia garante não somente o acesso a um espaço destinado a habitação, garante também requisitos essenciais para essa habitação, tais como: condições adequadas de espaço, localização que favoreça o acesso a serviços de saúde, cultura, lazer, saneamento, condições de mobilidade e outros facilitadores sociais. O direito à moradia pode ser definido de forma simples como o direito a ter um lugar adequado quando para se viver, em que haja a possibilidade de uma vida digna e saudável. A ideia básica corresponde ao direito de viver com segurança paz e dignidade. [...] O direito humano à cidade sustentável é estabelecido como o direito à terra urbana, à moradia, ao 10 saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as gerações presentes e futuras. (MORAES E DAYRELL, 2008, p. 12.). As moradias estudantis, na perspectiva do direito à moradia têm validade em todo país, e têm aplicabilidade em todas as cidades. Esse direito é tão essencial quanto outros direitos como o acesso a boas condições de trabalho, a saúde, a educação, mesmo porque vários outros direitos estão diretamente vinculados ao direito à moradia, isto é, quando um estudante oriundo do interior não consegue uma vaga em uma moradia, este estudante não está somente deixando de ter acesso ao direito à moradia, mas também está deixando de ter acesso a uma gama de outros direitos que são inerentes ao direito à moradia, como a educação de qualidade, o acesso à formação profissional, o direito ao usufruto dos benefícios oriundos da urbanização, o direito à constituição de uma identidade e de uma vida digna num espaço urbano, etc.. Considerações Finais Todos os dados, conceitos, teorias e reflexões que foram trazidos à luz da discussão neste artigo, revelam o quão problemática é a dinâmica relacionada à consolidação do direito à moradia na perspectiva do direito à cidade. É importante, também, salientar que as moradias estudantis figuram como um elemento de intersecção entre o direito à moradia e o direto educacional, pois, conforme já exposto anteriormente, o direito à moradia compreende não só o direito de ter um espaço habitacional para morar, mas, também, uma soma de outros direitos, tais como: direito à saúde, educação, saneamento básico, segurança, transporte público de qualidade, terra urbana, entre outros facilitadores sociais. A produção da cidade, que perpassa pela dimensão do processo de construção da dinâmica social envolve diretamente o direito à moradia, uma vez que a produção da cidade exerce influencia direta na interação social. Por isso que são tão importantes as moradias estudantis nos grandes centros urbanos, pois garantem o acesso de uma parcela da população que, certamente, não teria a possibilidade de ocupar o espaço a ela destinado. Destarte, faz-se eminentemente necessário que sejam criados mecanismos jurídicos, políticos e/ou sociais para que as moradias estudantis possam ser proporcionadas, em plenitude, aos que dela necessitam. Deve ser uma tarefa incessante, de todos aqueles que se debruçam ao estudo da temática das moradias estudantis, pensar em formas de facilitar a missão de melhorar a conjuntura atinente às residências no Estado da Bahia, como um todo. Assim sendo, é possível citar algumas medidas que, incrivelmente, ainda não foram implementadas e que acrescentariam muito à realidade das moradias estudantis em Salvador: sanção de uma lei estadual que regulamente a criação, a manutenção e o funcionamento das moradias estudantis na Bahia; aprovação de um programa de apoio às moradias estudantis (podendo ser feito na instância municipal, do município de salvador, no caso, na instância estadual, na instância federal ou de responsabilidade concorrente de todas as instâncias estatais); e a criação de Pessoas Jurídicas voltadas a organizar uma frente social de intervenção por parte das moradias estudantis e dos seus moradores (o que ainda não foi 11 feito). Atos como estes são bastante relevantes à consolidação dos direitos à cidade, à cidadania, à educação e à moradia. Referências SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos e VOGEL, Arno. Quando a rua vira casa: a apropriação de espaço de uso coletivo em centro de bairro. 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