Anais do I Seminário de
Graduandos e Pós-Graduandos em
História da Universidade Federal de
Juiz de Fora.
27 e 28 de outubro de 2009
Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade
Federal de Juiz de Fora.
ISSN: 2317-045X.
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I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da
Universidade Federal de Juiz de Fora
Centro Acadêmico de História
Gestão “Flor no Asfalto” (2009-2010)
Comissão Organizadora:
Felipe Cazetta – mestrando (UFJF)
Heitor Loureiro – graduando 8° período (UFJF)
Luiz Alberto Rezende – graduando 5º período (UFJF)
Luiz César de Sá Júnior – graduando 8º período (UFJF)
Paulo Victor Franco – graduando 5º período (UFJF)
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Sumário:
Conferência de Abertura ............................................................. pág. 4
Comunicações ............................................................................. pág. 20
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Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2010. ISSN: 2317-045X.
409 p.
1-Anais; 2-Seminário de História; 3-Comunicações
Comissão Organizadora:
Felipe Cazetta – mestrando (UFJF)
Heitor Loureiro – graduando 8° período (UFJF)
Luiz Alberto Rezende – graduando 5º período (UFJF)
Luiz César de Sá Júnior – graduando 8º período (UFJF)
Paulo Victor Franco – graduando 5º período (UFJF)
Diagramação e Formatação:
Antonio Gasparetto Júnior
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Conferência de Abertura
O Ofício do Historiador*
Ricardo da Costa**
No início da década de 90, o ex-beatle Paul McCartney (1942- ) e seu antigo
produtor George Martin (1926- ) encontraram-se nos AIR Studios, em Londres.1
Conversaram sobre os velhos tempos e o quanto eles estavam se tornando “velhos
esquisitos”. De repente, eles discordaram a respeito de um detalhe em suas lembranças
sobre os Beatles, quando então caíram em uma gargalhada: “Meu Deus”, disse Martin, “se
não pudermos acertar, quem diabos poderá?”.2
Essa pequena anedota a respeito dos Fab Four ilustra muito bem um dos problemas
centrais da História. O que pensamos ter acontecido realmente aconteceu? Qual é
exatamente o nosso ofício? O quão confiável é o que nós produzimos? E, afinal, o que é a
História?
Essas foram as questões a mim propostas pelo C. A. e o Departamento de História
da UFJF (aqui representado pelo Prof. Angelo Alves Carrara), aos quais eu agradeço
profundamente o convite para a conferência de abertura de seu I Seminário de Graduandos
e Pós-Graduandos. Questões difíceis, tão difíceis, que Peter Burke (1937- ), em uma
recente entrevista a respeito da falta de consenso do que seria uma boa explicação
histórica, afirmou que “...se algo mudou a respeito disso, é que há ainda menos consenso
*
Conferência de abertura do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da UFJF,
proferida no dia 27 de outubro de 2009.
** Medievalista e Prof. Associado I da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Acadêmico
correspondente da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona. Site: www.ricardocosta.com
1
Site: www.airstudios.com
2
MARTIN, George. Paz, Amor e Sgt. Pepper. Os bastidores do disco mais importante dos Beatles. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 1995, p. 9.
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que antes”.3 De qualquer modo, arriscar-me-ei a apontar algumas reflexões minhas,
naturalmente, oriundas de meu exercício com aquilo que Carlo Ginzburg (1939- )
chamou de rastros do passado.4
***
A constatação da incerteza quanto ao resultado de uma investigação histórica já
fora percebida há tempos por Arnold Toynbee (1889-1975). Em sua monumental obra
intitulada Um Estudo da História, ele afirmou: “...o pensamento não pode impedir que se
façam violências à realidade no ato de tentar apreendê-la”.5
Essa fundamental insegurança de nosso ofício fez com que, nos últimos anos,
crescessem nas Ciências Humanas o relativismo, o cinismo e o ceticismo (correntes
pertencentes ao que eu designo como pacote pós-moderno, um dos filhos de Maio de 68 e
da crise do marxismo do final da década de sessenta).6 Todas essas formas de
incredulidade foram combatidas por Ginzburg (segundo ele, correntes já em declínio na
Europa)7, que, por sua vez, não teve e não tem nenhum escrúpulo em reiterar sua defesa do
positivismo das fontes (inclusive com suas distorções) e sua crítica (e reparo) a conceitos
ambíguos como, por exemplo, o de representação.8 Para isso, o historiador italiano se vale
especialmente da Filosofia e do resgate de obras clássicas – notadamente de Platão e de
Aristóteles.9
3
4
5
6
7
8
9
BURKE, Peter. “O passado é um país estrangeiro”. Entrevista concedida ao Jornal O Globo e ao
Globo Universidade no dia 16.05.2009.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
TOYNBEE, Arnold. Um Estudo da História. Brasília: UnB; São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 506.
“Simplificando ao extremo, considera-se que o pós-modernismo é a incredulidade em relação às
metanarrativas”, LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989, p. 12.
Particularmente eficiente é sua defesa na obra Relações de Força. História, Retórica, Prova (São Paulo:
Companhia das Letras, 2002).
GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001, p. 85-103.
Esse procedimento já fora realizado por Ginzburg na obra Olhos de Madeira (p. 42-84), supracitada,
mas, sobretudo, em O fio e os rastros.
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Seja como for, a consciência da dificuldade de se recontar o passado por parte dos
historiadores nunca desestimulou as tentativas de construção de conhecimento desse
mesmo passado, nem o constante fascínio causado por esse processo. Desde os processos
de indulto na França moderna analisados por Natalie Zemon Davies (1928- )10, até os
sermonários e poemas apresentados por Georges Duby (1919-1996) em sua investigação
sobre as mulheres medievais11, passando pelos milhares de documentos, magnificamente
sondados e interpretados por Fernand Braudel (1902-1985)12, são inúmeros os
depoimentos dos especialistas de suas maravilhosas estupefações com o que descobrem
com a leitura das fontes.13
As fontes. O contato com elas. Esse é o momento em que o historiador é, de fato,
um verdadeiro artista.14 É quando então consegue o contato direto com os rastros do
passado e tenta, com a “timidez do homem de ciência”, como bem disse Fernando
Domínguez Reboiras (1943- ), “analisar os testemunhos reunidos para elevar sobre eles
conjecturas e uma teoria dentro dos limites da verdade”.15
As fontes e a verdade. A História como arte. Primeiro tratarei das fontes. Para
afirmar sua importância capital na investigação histórica, em um artigo publicado na
Harper’s Magazine, Barbara Tuchman (1912-1989) fez algumas considerações muito
interessantes para as minhas divagações nesse momento, as quais transcrevo a seguir:
10
11
12
13
14
15
DAVIES, Natalie Zemon. Histórias de perdão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo, Séculos XV-XVIII. São Paulo:
Martins Fontes, 1995-1996, 03 volumes.
DUBY, Georges. Eva e os padres – Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
É verdade que poucos são os historiadores brasileiros que fazem essa declaração de amor de fé à
pesquisa arquivística. Por exemplo, na recente obra Conversas com Historiadores Brasileiros
(organizada por José Geraldo Vinci de Moraes, São Paulo: Ed. 34, 2002), quinze eminentes colegas de
profissão são entrevistados, mas preferem discorrer por outros temas, como a política e suas relações
com partidos de esquerda, ou correntes teóricas que os influenciaram.
Para Hans-Georg Gadamer (1900-2002), a verdade das ciências humanas “...envolve uma análise da
experiência da arte (...) mais próxima da experiência da verdade como se encontra nas ciências humanas
do que da que é característica das ciências naturais.” – NEVES, Guilherme Pereira das. “História e
Hermenêutica: uma Questão de Método?”, conferência de encerramento do I Seminário Nacional de
História e Historiografia Brasileira, proferida no dia 31 de outubro de 2008 na UERJ.
DOMÍNGUEZ REBOIRAS, Fernando. “Introdução”. In: Raimundo Lúlio e as Cruzadas. Rio de
Janeiro: Sétimo Selo, 2009, p. xviii.
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“Nunca pude ver nenhum sentido em referirmo-nos ao vizinho da
universidade ao lado como fonte. Para mim, isso não constitui fonte
nenhuma: quero saber de onde veio, originalmente, um fato, e não
quem o usou pela última vez. Quanto à referência de um livro de
nossa autoria como fonte, isso me parece o cúmulo do absurdo.16
Disseram-me que os alunos são obrigados a citar historiadores secundários
para mostrar que conhecem a bibliografia, mas se eu estivesse distribuindo diplomas,
exigiria conhecimento direto das fontes primárias. As histórias secundárias são
necessárias quando partimos de uma ignorância total de um assunto (...) mas depois
que me colocaram no caminho, prefiro seguir o resto da estrada sozinha. Se eu fosse
professora, reprovaria qualquer aluno que se contentasse em citar uma fonte
secundária como sua referência para um fato.”17
Os problemas que Barbara Tuchman levanta para os EUA da década de sessenta
do século XX são particularmente importantes para o estudo da História em nosso país nos
primeiros anos do século XXI. Isso porque, infelizmente, a maior parte dos historiadores
formados atualmente em nossos cursos sai das universidades após quatro, cinco anos, sem
nunca ter lido um documento de época, o que só acontece, em boa parte dos casos, durante
a pós-graduação. Essa distorção em nossa metodologia de estudo do passado faz com que
habituemo-nos a pensar em termos de autoridade: algo só é válido na medida em que foi
dito por alguém em um posto acadêmico. Ou seja: em nosso país não importa o que se diz,
mas quem diz!
Ora, o argumento da autoridade sempre foi o mais fraco, tanto em um debate
quanto em prova documental. Nesse aspecto, por mais paradoxal que possa parecer, os
16
17
Curiosamente, há pouco foi lançado um livro organizado por Carla Bassanezi Pinsky intitulado Fontes
Históricas (São Paulo: Editora Contexto, 2009) em que há um ensaio (de Maria de Lourdes Janotti) em
que, ao contrário de Barbara Tuchman, a autora defende que o livro Fontes Históricas pode ser utilizado
como fonte!
TUCHMAN, Barbara W. A prática da História. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 34.
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universitários da Idade Média têm muito a nos ensinar. No distante século XIII, na
Universidade de Paris, os estudantes de Tomás de Aquino (1225-1274) já sabiam, que não
importa quem diz, mas o que se diz: “O argumento de autoridade fundado na razão humana
é o mais débil [dos argumentos]; já o argumento de autoridade fundado na revelação divina
é o mais sólido.”18
Então já se privilegiava a razão, a capacidade argumentativa – e com base em dados
empíricos (inclusive para questões metafísicas, como, por exemplo, as cinco provas de
Tomás para a existência de Deus).19 Por isso, em nosso métier, o conhecimento e a análise
das fontes é – e sempre foi – condição sine qua non para se fazer qualquer afirmativa,
especialmente, para se construir uma sólida narrativa do passado, e não a afirmação da
autoridade!
Construídas a partir da investigação das fontes, nossas narrativas, em que pesem os
silêncios e vácuos, distorções e névoas dos documentos que consultamos, ancora-se
sempre na esperança de que é possível saber, com razoável grau de certeza, o que
aconteceu. Todo historiador que se preza alimenta essa crença: dominar a crítica interna e
externa do(s) documento(s) escolhido(s), para assim poder montar o seu quadro do
passado.
A esse respeito, é notável perceber que a antiga (e clássica) obra de Henri-Irénée
Marrou (1904-1977) Sobre o Conhecimento Histórico20, ainda seja citada, quando se tem
que criar um verbete como o “Método Histórico” em um Dicionário das Ciências
Históricas!21 E o que Marrou defende tradicionalmente não é muito diferente do que hoje
18
19
20
21
TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teología (pres. Damián Byrne, op.), Primeira Parte, Questão 1, Artigo
8, ad 2. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), 2001, p. 96.
TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São
Lourenço de Brindes: Sulina; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1990, Livro I, Parte I, Cap.
XIII, p. 37-44.
MARROU, Henri-Irénée. Sobre o Conhecimento Histórico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
DUMOULIN, O. “Método Histórico”. In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências
Históricas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993, p. 537-539.
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afirma Ginzburg. Para o italiano, as fontes não são nem janelas escancaradas como
pensavam os positivistas do século XIX, nem muros que impedem a visão, como os céticos
do final do século XX: são espelhos deformantes.22
Basicamente, essa é a mesma tese de Georges Duby23, que também define nossa
profissão como “uma tentativa da maior aproximação possível da verdade e de suspeição
perante tudo o que pode deformar o testemunho”.24 Por esse motivo, há um ponto em
comum entre historiadores e juízes: ambos se preocupam em definir os fatos.25
Portanto, analisar as deformações das fontes (quando elas as têm) também torna o
conhecimento histórico possível – e, é claro, só se pode pensar em deformação de algo que
era originalmente uniforme – isto é, a verdade da realidade. Christopher Brooke (1927- )
resumiu maravilhosamente bem a base de toda investigação humana: a responsabilidade de
perseguir a verdade!26
Mas o que é a verdade? É o êxito de um procedimento cognoscitivo, no qual se
constrói uma correspondência — por mais difícil e esquiva que seja a verdade daquilo que
oferecem os testemunhos de uma época. Um conhecimento é verdadeiro na medida em que
seu conteúdo concorda com o objeto intencionado, isto é, quando há conformidade entre o
intelecto (do observador) e a coisa (observada).27
Mas também é verdade que apreender a realidade vivida a partir das fontes nunca
foi um trabalho fácil. O verdadeiro historiador constantemente se depara com esse
22
23
24
25
26
27
GINZBURG, Carlo. Relações de Força. História, Retórica, Prova, op. cit., p. 44.
DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/Editora UFRJ, 1993.
DUBY, Georges, e GEREMEK, Bronislaw. Paixões comuns. Conversas com Philippe Sainteny.
Lisboa: Edições Asa, 1993, p. 76.
GINZBURG, Carlo. Relações de Força. História, Retórica, Prova, op. cit., p. 62.
BROOKE, Christopher. O Casamento na Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p.
16.
Segundo Aristóteles, “Isso é evidente pela própria definição do verdadeiro e do falso: falso é dizer que o
ser não é ou que o não-ser é; verdadeiro é dizer que o ser é e que o não-ser não é”, ARISTÓTELES,
Metafísica, IV, 7, 1011 b 25ss., e “As coisas se dizem falsas neste sentido: ou porque não existem, ou
porque a imagem que delas deriva é de algo que não existe” (V, 29, 1024 b, 25). São Paulo: Edições
Loyola, 2005, p. 179 e 261.
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problema diante de si.28 Para os estudos históricos, a verdade deve ser um conceito
relacional: quanto maior o número de comparações evidenciais, maior será a possibilidade
de precisão do resultado. Isso é muito patente nos registros de batalhas feitos pelos dois
lados combatentes. A confrontação de diferentes perspectivas é sempre muito rica, pois
permite matizar e moderar todas as versões.29 Ademais, quando é encontrada, a verdade
costuma causar incômodo – e isso não é privilégio nem das correntes de direita, nem das
de esquerda (por vezes, inclusive, tanto uma quanto a outra fazem o possível para ocultála).
Como a perplexa estupefação dos estudantes de Cirurgia na Lição de Anatomia do
Dr. Tulp (1632) (figura 1), famoso quadro de Rembrandt (1606-1669)30, a busca da
verdade por parte do historiador é a honesta exposição das vísceras, pequena pedra no
sapato de todos os ideólogos, de todas as ideologias, essas mitologias históricas (expressão
de Eric Hobsbawm [1917- ]31) que povoam nosso imaginário coletivo globalizado.
Figura 1
28
29
30
31
DUBY, Georges. A História Continua, op. cit., p. 33-42.
Em mais de uma oportunidade eu pude realizar esse trabalho de crítica comparativa das fontes: quando
do estudo dos pogroms ocorridos em 1096 na região renana (antes da Primeira Cruzada) – quando
confrontei as informações contidas nas crônicas judaicas e cristãs – e em duas batalhas do rei Afonso
VIII de Castela, pois há registros árabes e cristãos. Para isso ver COSTA, Ricardo da “Então os cruzados
começaram a profanar em nome do pendurado”. Maio sangrento: os pogroms perpetrados em 1096 pelo
conde Emich II von Leiningen (†c. 1138) contra os judeus renanos, segundo as Crônicas Hebraicas e
cristãs”. In: LAUAND, Jean (org.). Filosofia e Educação – Estudos 8. Edição Especial VIII Seminário
Internacional CEMOrOc: Filosofia e Educação. São Paulo: Editora SEMOrOc (Centro de Estudos
Medievais Oriente & Ocidente da Faculdade de Educação da USP), Factash Editora, 2008, p. 35-61, e
COSTA, Ricardo da. “Amor e Crime, Castigo e Redenção na Glória da Cruzada de Reconquista:
Afonso VIII de Castela nas batalhas de Alarcos (1195) e Las Navas de Tolosa (1212)”. In: OLIVEIRA,
Marco A. M. de (org.). Guerras e Imigrações. Campo Grande: Editora da UFMS, 2004, p. 73-94.
Tanto a escolha de Rembrandt quanto de Caspar David Friedrich (figura 2) são propositais, pois
ambos possuem características artísticas afins com o método histórico. Por exemplo, Rembrandt
retratava seus temas com gestos dramáticos e vívido tratamento de luz (CHILVERS, Ian [ed.]
Dicionário Oxford de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 441), e se opunha ao paternalismo de
Rafael e Rubens com cenas realistas de gentalha mal-ajambrada (BELL, Julian. Uma nova História da
Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 246).
Hobsbawm afirma que “A História é atualmente revista ou inventada por gente que não deseja o
passado real, mas somente um passado que sirva aos seus objetivos. Estamos hoje na grande época da
mitologia histórica.”. Citado em COSTA, Ricardo da. “Para que serve a História? Para nada...”. In:
Sinais 3, vol. 1, junho/2008. Vitória: UFES, p. 43-70.
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Serenamente exposta pelo historiador, a verdade do passado é como a exposição das
vísceras diante dos olhares atônitos e incrédulos dos estudantes frente às infinitas e
múltiplas possibilidades das sociedades humanas ao longo do tempo. A Lição de Anatomia
do Dr. Tulp (1632), de Rembrandt (óleo em tela, 169,5 × 216,5 cm, Royal Picture Gallery
Mauritshuis).32
Aliás, Hobsbawm é outro que defende com vigor que aquilo que os historiadores
investigam é o real, e que as declarações históricas devem ser baseadas em evidências
comprováveis.33
Portanto, para o historiador, a verdade, a verdade da história, não é nem o
objetivismo puro, nem o subjetivismo radical, e sim, a simultânea apreensão do objeto (o
passado) e a aventura espiritual do sujeito do conhecimento (o historiador).34
32
33
Site: http://www.mauritshuis.nl.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 8.
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E como o historiador apreende seu objeto para, a seguir, recontá-lo, recriá-lo,
enfim, revivê-lo? Como ele cria essa imagem mental do que aconteceu e, ao narrá-la, se
torna esse artista do passado? É fundamental que ele se reconheça no texto, que tente se
ver espelhado no que lê, que se transporte para o espírito daquela época e compartilhe o
que Marc Bloch (1886-1944) chamou de experiência comum de humanidade, entre ele e
seu objeto.35
Nesse breve instante de imaginação consciente, ele quase se encontra, no ritmo do
texto, em uma certa sintonia, que nada mais é do que o tempo comum entre ambos: trata-se
de uma espécie de hiato temporal criado pela sua leitura36, quando então partilha
historicamente algo dos sentimentos, dos pensamentos e das perspectivas do passado, e
sente o anacronismo para chegar à diacronia.
Fazer História, dessa forma sensitiva, sensível, é compreender existencialmente.37 E
a imaginação é uma artística e ativa parte desse processo histórico-mental, mas não uma
imaginação em devaneio, porém, delimitada precisamente pelo passado que chegou até nós
pelas fontes. É o que Duby afirma peremptória e belissimamente: “Imaginemos. É o que os
historiadores sempre se vêem obrigados a fazer. Seu papel é o de recolher vestígios, os
traços deixados pelos homens do passado, de estabelecer, de criticar escrupulosamente um
testemunho.”38
34
35
36
37
38
MARROU, Henri-Irénée. Sobre o Conhecimento Histórico, op. cit., p. 184.
“Marc Bloch já havia percebido a necessidade de existência, tanto na natureza quanto nas sociedades
humanas, de um fundo permanente por trás da passagem do tempo, pois sem esse pano de fundo
existencial que damos o nome de humanidade, os próprios nomes homem e sociedade não teriam
qualquer significado”. COSTA, Ricardo da. “O conhecimento histórico e a compreensão do passado: o
historiador e a arqueologia das palavras”. In: ZIERER, Adriana (coord.). Revista Outros Tempos. São
Luís, Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), volume 1, 2004. Bloch afirma isso na clássica obra
Introdução à História (Lisboa: Publicações Europa-América, 1997, p. 99).
SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante. Para ler os medievais. Ensaio de hermenêutica imaginativa.
Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 19-33.
KOSELLECK, Reinhart, GADAMER, Hans-Georg. Historia y hermenêutica. Barcelona: Ediciones
Paidós Ibérica, 1997, p. 69.
DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 1.
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Munido espiritualmente desse preparo compreensivo, o historiador sai à procura da
caça humana39, à procura do passado, como O Caçador na Floresta (1814) do pintor
romântico alemão Caspar David Friedrich (1774-1840) (figura 2).40 Solitário e vulnerável,
ele sabe que a História será tão ameaçadoramente impenetrável como a imponente parede
de pinheiros à sua frente, caso ele, como um corajoso soldado prussiano, não se muna de
todo esse aparato reflexivo e, por alguns momentos, abandone o seu efêmero presente (que
aqui pode ser metaforizado como o minúsculo e sombrio corvo empoleirado no tronco
cortado) e torne-o destroços atrás de si.41 Só assim, em seus escombros mentais do
presente, o historiador poderá tatear o passado e encontrar a melhor perspectiva possível
para descrever sua contemplação temporal.
John Lewis Gaddis (1941- ) já havia percebido as possibilidades interpretativas de
se utilizar a pintura de Caspar David Friedrich como metáfora para explicar como os
historiadores mapeiam o passado.42
39
40
41
42
A frase, muito famosa, de Marc Bloch, é: “O bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde
farejar carne humana, sabe que ali está a sua caça”, Apologia da História ou O Ofício do Historiador.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 54).
Friedrich é considerado um dos gênios mais originais de toda a história da pintura de paisagens. O uso
de seus quadros como visualização do ofício do historiador é notável: ele baseava-se na contemplação
profunda para conceber mentalmente as imagens expressas em suas telas. CHILVERS, Ian (ed.)
Dicionário Oxford de Arte, op. cit., p. 201. Por exemplo, um de seus quadros é descrito por um
especialista como “um vislumbre do eterno devir” (BELL, Julian. Uma nova História da Arte, op. cit.,
307).
A solidão do soldado e o caráter ameaçador da floresta foram interpretados por Simon Schama.
Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 114-116.
GADDIS, John Lewis. Paisagens da História. Como os historiadores mapeiam o passado. Rio de
Janeiro: Campus, 2003.
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Figura
2
A vasta e imponente imensidão do passado diante da pequenez e pobreza do presente.
Entre ambos, o solitário e corajoso historiador, que pretende penetrar mata adentro,
munido com suas armas compreensivas. Nesse caso, o encontro do Historiador com a
História será como o do filósofo estóico Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.) com a divindade,
exatamente no seio da floresta: “Sem a divindade, ninguém pode ser um homem de bem
(...) Se penetrares num bosque cheio de velhas árvores, de altura fora do comum e tais que
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a densidade dos ramos entrelaçados uns nos outros oculta a vista do céu, a própria
grandeza do arvoredo, a solidão do lugar, a visão magnífica dessa sombra tão densa e
contínua no meio da planura, tudo te fará sentir a presença divina.”, Cartas a Lucílio, 41,
3.43 O caçador na floresta (1813/1814), 65,7 x 46,7 cm. Coleção particular.
Umberto Eco (1932- ) definiu o estilo do pintor alemão como a poética das
montanhas, e o que disse a esse respeito – um viajante que sempre se sente fascinado por
rochas inacessíveis, glaciares sem fim, abismos sem fundo, extensões sem limite – também
é uma admirável analogia da relação entre o historiador e a História, o viajante e as
paisagens de sua viagem.44
Por sua vez, Simon Schama (1945- ) se valeu maravilhosamente bem da arte para
explicar o modo de olhar o que já possuímos, mas que nos escapa ao reconhecimento e
apreciação.45 E a História não será sempre essa constante e renovada exploração
apreciativa do passado que insiste em escapar à nossa compreensão?
***
Caso o historiador explore os vestígios do passado com aquela curiosidade
determinada, eleve o seu espírito, amplie sua experiência, vislumbre e interrogue
incisivamente a paisagem do tempo que se descortina à sua frente através dos documentos,
e a reapresente aos seus contemporâneos com o lirismo e a verdade, a riqueza e a
dramaticidade que as sociedades passadas e seus mortos o exigem, será um agradável e
consciente viajante contemplativo, e saberá explorar todas as possibilidades de sua
interpretação histórica. Terá, enfim, alcançado a maturidade da consciência histórica.46
Será um Historiador.
43
44
45
46
LÚCIO ANEU SÉNECA. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 141.
ECO, Umberto. Historia de la Belleza. Barcelona: Editorial Lumen, 2004, p. 282.
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória, op. cit.
O significado da maturidade nas relações humanas é, para Gaddis, o reconhecimento da identidade pelo
caminho da insignificância: “...eu definiria a consciência histórica como a projeção dessa maturidade ao
longo do tempo”, GADDIS, John Lewis. Paisagens da História, op. cit., p. 19-20.
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Caso contrário, estará fadado a ser um mero e provinciano ideólogo, representante
do último modismo acadêmico, e a desaparecer nas pobres brumas de sua insignificância.
Será um historiador.47
Este pequeno trabalho é dedicado ao querido
mestre Guilherme Pereira das Neves
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Grande: Editora da UFMS, 2004, p. 73-94.
47
Agradeço sobremaneira a leitura crítica feita pelos amigos Stan Stein e Armando Alexandre dos Santos.
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Comunicações:
Experiência Mutualista em Juiz de Fora: a Associação Beneficente dos Irmãos
Artistas (1908-1950).
Antonio Gasparetto*
RESUMO: Este artigo desenvolve um estudo de caso sobre associativismo urbano em Juiz
de Fora na primeira metade do século XX. A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas
foi uma das maiores e mais influentes mutuais existentes na cidade e na região. Essa
observação mostra como tais instituições foram importantes no desenvolvimento da cultura
cívica e associativa no país.
PALAVRAS-CHAVE: Mutualismo; Associativismo; Associação Beneficente dos Irmãos
Artistas
ABSTRACT: This article is a study of case about urban’s associativism in Juiz de Fora,
first half of century XX. The “Associação Beneficente dos Irmãos Artistas” was one of the
bigger and most influentials that existing in this city and region. That look shows how
these institutions were importants for development of civicals and associativist culture in
Brazil.
KEYWORDS: Mutualism; Associativism; Associação Beneficente dos Irmãos Artistas
Introdução
*
Graduando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
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O fenômeno mutualista foi muito marcante no Brasil na primeira metade do século
XX, espalhou-se por várias regiões do país oferecendo uma alternativa de organização de
trabalhadores. Esse movimento possibilitou o florescer de uma cultura de classe, em
simultaneidade com a ação dos sindicatos, e também de uma cultura civil, despertando
para o conhecimento público as deficiências do Estado nas políticas públicas de
assistência.
Em Minas Gerais os estudos sobre o associativismo urbano, no que diz respeito
especialmente às associações mutualistas, estão começando a tomar corpo. Procurando
engrossar a quantidade de informações e as reflexões sobre o tema no estado, o presente
artigo busca inserir Juiz de Fora na discussão através do estudo do caso de uma das
maiores e mais influentes mutuais do município, a Associação Beneficente dos Irmãos
Artistas.
A associação em questão funcionou em Juiz de Fora durante praticamente
cinqüenta anos, nos quais promoveu uma consciência organizativa nos trabalhadores
através de seus preceitos de promoção de espaços de sociabilidade, lazer e de amparo para
seus associados. A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas se relacionou abertamente
com outras mutuais, com sindicatos e com órgãos públicos. Esse leque amistoso de
relacionamentos a possibilitou grande notoriedade na região, recebendo doações,
conquistando benefícios, estabelecendo contato e até mesmo tendo como associado o
presidente do estado de Minas Gerais, Antônio Carlos.
Este artigo faz parte de uma série de estudos que vem sendo realizados sobre
mutualismo e a própria associação em Juiz de Fora. Trata-se de uma prévia de um trabalho
de mais fôlego a ser publicado sobre as movimentações sociais na cidade.
O Fenômeno Mutualista
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Ao longo do tempo a classe trabalhadora foi se consolidando e organizando através
de diferentes formas de manifestações de resistência. Assim como ocorreu em outras partes
do mundo, é importante abrirmos os olhos para o que se desenvolvia em território
brasileiro e aflorarmos as maneiras pelas quais os trabalhadores encontraram para se
organizarem. Uma das vias que permitiu a estruturação de uma classe em busca de
melhores condições sociais se apresenta através das experiências associativas mutualistas,
que serviu muito bem para o processo de consolidação da cidadania no Brasil.
O fenômeno mutualista coexistiu com outras formas de organização dos
trabalhadores, com notificação especial para os sindicatos. Assim, antes de se pressupor
uma evolução dos movimentos associativos deixamos claro que o fenômeno associativo foi
simultâneo ao movimento sindical, logo, abre-se o caminho para as variadas formas de
relação encontradas entre as mutuais e as sociedades de resistência. O mutualismo,
entretanto, caminhou mais proximamente das irmandades e associações filantrópicas
constituindo passos iniciais para a organização da sociedade civil brasileira.
O princípio das mutuais era oferecer algum suporte e amparo social, integrando os
trabalhadores através de espaços de sociabilidade e lazer para seus membros. Dessa forma,
suas atividades podem ter influenciado para a cultura cívica brasileira, organizando a
sociedade civil para consolidar as estruturas necessárias da cidadania.
É ainda nas décadas finais do século XIX que as associações mutualistas começam
a se proliferar. Ronaldo de Jesus identifica vários casos no Brasil Imperial e encontra
elementos de trabalhismo e corporativismo, que seriam típicos das primeiras décadas do
século XX, já em 185748. Até 1940 as mutuais apareceram e tiveram grande destaque na
48
JESUS, Ronaldo Pereira. História e historiografia do fenômeno associativo no Brasil monárquico (18601887). In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla Maria
Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Orgs). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006.
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sociedade brasileira, mas segundo Cláudia Viscardi “o progressivo esvaziamento das
mutuais se dá na medida em que o Estado vai chamando a si responsabilidades no campo
da seguridade pública”
49
. Mas anteriormente a isso ainda, Abram Swaan argumenta que
quem primeiro roubou o espaço das mutuais foram as seguradoras, munidas de maior
organização e com uma estruturação profissional50. De todo modo, somando-se as duas
coisas, os anos 1940 apontam mesmo para a derrocada de tais associações.
As mutuais brasileiras eram muito diversificadas, mas reuniam o que Ronaldo de
Jesus chama de “gente comum”
51
. Em recente estudo desenvolvido juntamente com
Cláudia Viscardi, levantou-se que as categorias mais freqüentes das mutuais em Minas
Gerais eram as associações de ofício, filantrópicas, literárias e de lazer, étnicas e as
seguradoras52. Embora as associações fossem ambientes para união de trabalhadores, podese perceber que pelo próprio fato de se ramificarem em tantas categorias acabavam
exercendo também um papel de exclusão. Certas fronteiras formalizadas impediam o
acesso a algumas mutuais de determinados grupos, além disso, para atender as
necessidades de uma mutual, era preciso que o indivíduo possuísse uma renda mínima para
cumprir com os encargos e que o permitisse dispensar tempo com os trabalhos em sua
associação. Um pobre dependente de salário dificilmente teria tempo e condições para
tantas responsabilidades. Assumir a presidência de uma mutual era algo que dependia de
muito esforço e trabalho, sem haver remuneração para tal cargo, a recompensa obtida por
tanta dedicação ligava-se a uma questão de status social. Devido à representatividade
social das mutuais em seu período de apogeu, os frutos que se poderiam colher socialmente
49
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Mutualismo e Filantropia. In: Lócus – Revista de História. Juiz de
Fora: EDUFJF, 2004, Vol. 10, Nº. 1. P. 107.
50
SWAAN, Abram. In Care of The State: health care, education and welfare in Europe and the USA in the
modern era. Cambridge: Polity Press, 1988. P. 283.
51
JESUS, Ronaldo Pereira. Op. Cit. P. 287
52
VISCARDI, Cláudia & GASPARETTO, Antonio. O Mutualismo em Juiz de Fora: as experiências da
Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. In: À Margem do Caminho Novo. Cláudia Viscardi e Mônica
Ribeiro (Orgs.) (Prelo).
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eram notáveis, esse é talvez o grande motivo pelo qual determinados membros ocupavam o
cargo de presidente da associação por tantos anos. Cláudia Viscardi sintetiza bem essa
questão:
As lideranças raramente eram pobres ou analfabetas. Muitas se
mantinham indefinidamente no poder. Não porque quisessem, mas,
na maioria das vezes, por não disporem de concorrentes.
Permanecer na direção soava como ônus, um preço alto que deveria
ser pago pelo bem coletivo. 53
Entre as atividades promovidas pelas mutuais estavam as festas. De acordo com
Mary Clawson as festividades faziam parte do arsenal simbólico das associações, que
provinham em grande parte da Maçonaria54. Quanto aos socorros, ofereciam financiamento
para funerais pensões para viúvas, auxilio para viagens ao exterior, cobertura para
acidentes de trabalho, compra de remédios, entre várias outras possibilidades. “O grau de
cobertura dependia dos recursos disponíveis pela associação, que estavam diretamente
relacionados ao número e ao poder aquisitivo dos sócios”
55
, como comentam Cláudia
Viscardi e Ronaldo de Jesus.
Como as atividades das mutuais procuravam suprir as lacunas do Estado, em
muitos casos os presidentes de algumas associações recorriam ao poder público para
conseguir recursos. Entretanto, representantes do poder público alegavam serem as mutuais
de caráter privado e, em geral, nada faziam. Era mais comum o oferecimento de verbas
para organizações filantrópicas que, todavia, tinham demandas muito semelhantes. Na
verdade não havia uma noção clara na cabeça dos governantes que diferenciasse
53
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio
interpretativo. In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla
Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Orgs). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. P. 309
54
CLAWSON, Mary A. A Constructing Brotherhood: class, gender and fraternalism. Princeton University
Press, 1989.
55
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro & JESUS, Ronaldo Pereira. A experiência mutualista e a formação da
classe trabalhadora no Brasil. In: A Formação das Tradições (1889-1945). Col. As Esquerdas no Brasil, Vol.
1. Jorge Ferreira (Organizador). P. 26.
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mutualismo e filantropia56, o que favoreceu também para que estas tenham sobrevivido em
maior número do que as primeiras até hoje.
Grande parte das mutuais não tinha interesse em se envolver com a política, a
preocupação se dava mais no oferecimento de sociabilidade e lazer para os membros, tanto
que muitas se auto-definiam como organizações cooperativas de amparo aos trabalhadores
em situações de doença57. No caso das associações étnicas o interesse se dava em manter
determinada identidade cultural de um povo, tratava-se de um espaço onde os imigrantes
poderiam viver em conformidade com suas raízes.
Na grande maioria prevaleciam associados do sexo masculino com uma faixa etária
média entre 15 e 55 anos, pressupondo-se uma renda suficiente para arcar com as
mensalidades cobradas. Em Juiz de Fora as mais numerosas eram as associações de ofício,
uma vez que houve concentração de pequenas manufaturas e fábricas agregando grande
número de trabalhadores no município. Nesse sentido, faremos uma abordagem de uma das
maiores e mais influentes associações mutualistas de ofício existente em Juiz de Fora na
primeira metade do século XX, a Associação Beneficente dos Irmãos Artistas.
Associação Beneficente dos Irmãos Artistas
A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas foi fundada em Juiz de Fora no dia
15 de maio de 1908, com 25 sócios. Em seu estatuto58 já determinava que fosse composta
de um número limitado de sócios, seguindo um mesmo princípio encontrado em outros
56
Sobre a questão de mutualismo e filantropia ver VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Mutualismo e
Filantropia. In: Lócus – Revista de História. Juiz de Fora: Departamento de História/ Pós-Graduação em
História/ EDUFJF, 2004, Vol. 10, Nº. 1.
57
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio
interpretativo. In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla
Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Organizadoras). Juiz de Fora: Editora UFJF,
2006.
58
Segue uma série de informações retiradas diretamente dos estatutos encontrados no Arquivo Histórico da
Universidade Federal de Juiz de Fora.
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países59, mas neste caso sem distinção de nacionalidades. Definia-se, como a grande
maioria das associações, como uma organização cooperativa que ofereceria amparo aos
membros. Para os associados que estivessem em dia com as obrigações da Associação
eram conferidos socorros nos casos de moléstia, desastre ou invalidez e auxílio para o
funeral daqueles que morressem em pobreza. A Associação dos Irmãos Artistas contava
com médicos e contas em farmácias para sustentar a necessidade de medicamentos. Mas os
socorros tinham suas particularidades e dependiam da condição que o associado ocupava
dentro da Associação, para avaliar os tipos de ajuda, em casos de doenças mais graves, o
conselho administrativo dispensava atenção maior para dar o parecer necessário.
A administração da Associação Beneficente dor Irmãos Artistas cabia a um
conselho administrativo composto de doze membros, onde seis possuíam cargos
designados. Constava de um presidente, um primeiro secretário, um segundo secretário,
um tesoureiro, um procurador e os seis conselheiros. Eram eleitos para ocupar os cargos no
período de um ano administrativo, que segundo o estatuto se encerrava a cada dia 15 de
maio. Para auxiliar o conselho em suas funções, eram nomeadas, logo na primeira reunião,
comissões de sindicância e beneficência, composta por três membros cada, além de um
conselho fiscal composto por outros três membros.
A Assembléia Geral era o órgão máximo da Associação Beneficente dos Irmãos
Artistas. Tratava-se de reuniões de todos os sócios quites e era convocada pelo presidente
do conselho administrativo por meio de jornais impressos de maior circulação na cidade.
Nela se definiam todas as questões da Associação: eleições do conselho administrativo e
do conselho fiscal; julgar os atos do conselho, discutir e resolver questões submetidas à sua
decisão; decidir a reclamação dos sócios; revogar deliberações do conselho quando
contrárias ao estatuto; promulgar medidas necessárias para o desenvolvimento social;
59
JESUS, Ronaldo Pereira. Op. Cit. P. 291
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dissolver o conselho em todo ou em parte quando for para o bem da Associação e alterar
ou reformar o estatuto.
Assumir o cargo de presidente era uma função fatigante e poucos tinham interesse e
condições para exercê-lo. No caso da Associação dos Irmãos Artistas um nome
permaneceu no cargo por grande parte de sua existência, Antonio Scanapieco. Este se
tornou um individuo fortemente associado à mutual, assumiu o cargo em maior de 1921 e
permaneceu até 1938. Foi responsável pela liderança da Associação na maior parte do
período de apogeu das mutuais na cidade e também no início da fase de queda. Em seu
lugar entrou José Teixeira da Silva Sobrinho que não deu conta do momento de crise pelo
qual passavam as mutuais, enfrentando uma redução significativa do número de associados
e conseqüentes crises orçamentárias. Segundo relatórios da Associação percebe-se que a
administração de José Teixeira da Silva Sobrinho foi muito conturbada e incompetente
durante os sete anos em que esteve na liderança. Para tentar superar a delicada situação em
que estava a mutual, Antonio Scanapieco foi eleito novamente presidente em 1945 e
permaneceu no cargo até a fusão da Associação dos Irmãos Artistas com outra mutual, que
terminou resultando em seu fim60.
A construção da sede era objeto de grande desejo das mutuais em geral, não foi
diferente com a Associação dos Irmãos Artistas. Já no ano seguinte a fundação da
Associação, 1909, foi adquirido um terreno na Avenida Rio Branco, região bem central da
cidade. Para construção do prédio da sede foi necessário tomar empréstimo, até ficar
pronto a Associação funcionava em uma sala alugada da loja maçônica Fidelidade Mineira.
Várias foram as ações promovidas entre os sócios para auxiliar nos gastos com a
construção, recebendo inclusive doações financeiras de grandes políticos regionais da
60
De acordo com cartas, relatórios de reuniões e ofícios da mutual encontrados no Arquivo Histórico da
Universidade Federal de Juiz de Fora.
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época. Com muito esforço e após muito tempo de arrecadação de recursos a sede ficou
pronta, foi inaugurada no dia 7 de outubro de 1927.
A Associação admitia sócios nacionais e estrangeiros que tivessem ocupação
honesta e bons costumes. Exigia-se que não tivessem defeito físico, doenças crônicas ou
incuráveis, ter entre 15 e 55 anos e deveria obrigatoriamente ser proposto por um
associado. Quando aceitos, os associados se dividiam em fundadores, contribuintes,
remidos, honorários, beneméritos, benfeitores e protetores. A cada uma dessas categorias
cabiam condições especiais, mensalidades com valores diferenciados, posições sociais
diferenciadas, regalias, direitos e deveres. Por exemplo, segundo Cláudia Viscardi e
Ronaldo Jesus:
Os chamados beneméritos eram os que despendiam contribuições
significativas para a associação e não precisavam usufruir as
benesses conferidas aos demais associados. A vantagem residia no
status ou no reforço de seu poder junto à comunidade. Na
Associação Beneficente dos Irmãos Artistas, o líder político e
depois presidente do estado, Antônio Carlos, constava como sócio
protetor pelo fato de ter doado significativas quantias para a
Associação. Na Associação dos Irmãos Artistas, quando algum
sócio ilustre falecia, sua foto ficava permanentemente exposta na
sede, ou uma das salas recebia o nome do falecido benemérito, sem
contar as sessões especiais que eram programadas em homenagem
aos protetores da Associação. Todo ritual de enaltecimento era
prerrogativa apenas dos grandes doadores, como forma de realçar
seu poder sobre a comunidade. 61
De acordo com levantamentos feitos, o perfil dos sócios aponta para um destaque
de profissionais urbanos. Ente eles apareciam principalmente indivíduos do setor de
serviços e assalariados industriais. Acreditamos que o número médio de sócios durante
toda a existência da mutual tenha sido entre 250 e 300 associados. Em conformidade com
61
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro & JESUS, Ronaldo Pereira. A experiência mutualista e a formação da
classe trabalhadora no Brasil. In: A Formação das Tradições (1889-1945). Col. As Esquerdas no Brasil, Vol.
1. Jorge Ferreira (Organizador). P. 29.
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os relatórios anuais da Associação encontrados, sabe-se que no período de finalização e
após a entrega da sede houve um momento de crescimento por causa da visualidade
conquistada. Por outro lado, a progressiva ação do Estado no campo das políticas públicas
durante o governo de Getúlio Vargas causou um declínio no número de associados62.
Quanto às nacionalidades, apareciam sobrenomes portugueses, italianos, alemães e judeus,
nesta respectiva ordem de quantidade. A análise dos sobrenomes pode apresentar sutilezas
quanto à nacionalidade efetiva do indivíduo, mas de toda forma demonstra uma forma de
constituição da Associação.
Era comum a realização de festivais para captações de recursos extras para a
Associação e para promoção de espaços diversificados de sociabilidade entre os associados
da mutual e também com associados de outras mutuais. Comumente também se dava o
relacionamento com movimentos sindicais, embora a Associação dos Irmãos Artistas se
declarasse apenas como provedora de amparo, sociabilidade e lazer para seus associados.
Na verdade, a Associação tinha relações amistosas com sindicatos, órgãos públicos, outras
mutuais, imprensa e agentes econômicos locais. O que trazia muitos benefícios para a
mutual.
A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas colocava-se de
forma ambígua em relação à política. Participou de congressos
operários nacionais, frequentemente reunia-se com uma associação
de resistência da cidade vizinha em caráter festivo, mas reafirmava
sempre seu caráter exclusivamente beneficente. 63
62
VISCARDI, Cláudia & GASPARETTO, Antonio. O Mutualismo em Juiz de Fora: as experiências da
Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. In: À Margem do Caminho Novo. Cláudia Viscardi e Mônica
Ribeiro (orgs.) (Prelo).
63
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio
interpretativo. In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla
Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Organizadoras). Juiz de Fora: Editora UFJF,
2006. P. 308-309
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Federal de Juiz de Fora.
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A partir da metade de década de 1930 a Associação dos Irmãos Artistas enfrentou
consideráveis problemas. Já na década de 1920 as mutuais em geral enfrentaram um
balanço causado pelo aparecimento das seguradoras, que infiltravam a competição no lugar
da cooperação, mas esse momento foi superado e foi possível que as associações
continuassem gozando de estabilidade. Entretanto, na década seguinte, com a ação do
Estado no campo das políticas públicas e o progressivo melhoramento das condições
sociais e de vida implementadas durante o governo de Getúlio Vargas, a procura pelas
mutuais caiu drasticamente. O momento mais crítico dessa fase foi enfrentado por José
Teixeira da Silva Sobrinho, na liderança da Associação, que se deparou com uma grave
crise no número de associados e também financeira. Antonio Scanapieco voltou a assumir
a presidência da Associação em 1945 acusando as administrações anteriores de
incompetência e irresponsabilidade na condução da mutual, mas ele também não teria mais
condições de levar a Associação de volta aos tempos áureos. Scanapieco tentou adotar
várias medidas mais radicais para reerguer a mutual, chegou inclusive a convocar uma
Assembléia Geral para se legitimar um novo estatuto que estivesse adaptado aos novos
tempos. Este foi reformado e promulgado em 5 de junho de 1947, mas não mudaria em
muita coisa o caminho que apontavam as condições do momento.
Muito endividada, com número de sócios em progressiva queda e falta de
perspectiva de crescimento, a Associação Beneficente dos Irmãos Artistas tentou fugir do
naufrágio completo fundindo-se com outras mutuais, conseguiu finalmente, após vários
fracassos, em 1950 fundir-se com a Associação Ítalo-Brasileira Anita Garibaldi, uma
associação cultural que oferecia serviços jurídicos e dentários para seus associados que
havia sido fundada em março de 194664. Levou para a Associação Anita Garibaldi todos
64
CHRISTO, Maraliz. Italianos: trabalho, enriquecimento e exclusão. In: Solidariedades e Conflitos:
histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora. Célia Maia Borges (organizadora). Juiz de Fora:
Editora UFJF, 2000. P. 160
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seus sócios e suas dívidas, mas deixou estabelecido em contrato a manutenção dos direitos
de seus associados.
Conclusão
A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas expressa muito bem os caminhos
seguidos por várias outras associações mutualistas não só em Minas Gerais, mas como em
todas as regiões do país. As práticas e ações apresentadas dessa associação demonstram o
seu tipo de inserção na sociedade, abordando o relacionamento com o poder público e
organizações de resistências dos trabalhadores. Ilustra como as associações tinham sua
representatividade no dia a dia do Brasil.
Nesse sentido, associações como a dos Irmãos Artistas ofereceram para os
trabalhadores espaços sociais que permitiram o acúmulo da experiência associativa, de
vivências administrativas, de experimentos jurídicos, de debate político, de comunicação
de várias formas, contato com as autoridades e eventos de festividade. Todo esse arsenal de
situações favoreceu na formação de uma cultura cívica, oferecendo espaços de
consolidação de consciência dos trabalhadores, o que foi fundamental para a organização
da sociedade civil brasileira.
As mutuais eram, ao mesmo tempo, organizações de direito privado, que
cultivavam valores de autonomia, agiam com propriedade para resolver seus próprios
problemas através do auxilio mutuo, promovendo a troca de favores e situações que
enalteciam determinados indivíduos; e eram também espaços de exclusão bem
determinados, que prezavam pela masculinidade – embora tenham sido encontradas fichas
de registro de mulheres, mas que pode ser um indício do desespero na busca por novos
associados no período de declínio da Associação –, exigiam a boa saúde para aceitação no
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grupo, indivíduos que tivessem reconhecida moral e bons costumes, mas principalmente
que possuíssem uma renda fixa advinda de um trabalho qualificado e que fosse capaz de
suprir as exigências e responsabilidades com a instituição. Assim, as associações
mutualistas, como foi expresso aqui através do caso da Associação Beneficente dos Irmãos
Artistas em Juiz de Fora, eram ambientes que propagavam interesses de um grupo bem
específico, defendendo sua autonomia e promovendo os mais representativos nomes e ao
mesmo tempo excluindo pobres e durante muito tempo as mulheres.
Mesmo considerando as ambigüidades e os desafios e dificuldades enfrentados
pelas associações, é de se notar o importante serviço prestado por tais organizações à
cultura cívica e à construção da cidadania no país.
Referências Bibliográficas
CHRISTO, Maraliz. Italianos: trabalho, enriquecimento e exclusão. In: Solidariedades e
Conflitos: histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora. Célia Maia Borges
(organizadora). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2000.
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história econômica e social. Carla Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de
Oliveira (Organizadoras). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006.
SWAAN, Abram. In Care of the State: health care, education and welfare in Europe and
the USA in the modern era. Cambridge: Polity Press, 1988.
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um
ensaio interpretativo. In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história
econômica e social. Carla Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira
(Organizadoras). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006.
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Federal de Juiz de Fora.
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__________, Cláudia Maria Ribeiro. Mutualismo e Filantropia. In: Lócus – Revista de
História. Juiz de Fora: Departamento de História/ Pós-Graduação em História/ EDUFJF,
2004, Vol. 10, Nº. 1.
VISCARDI, Cláudia & GASPARETTO, Antonio. O Mutualismo em Juiz de Fora: as
experiências da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. In: À Margem do Caminho
Novo. Cláudia Viscardi e Mônica Ribeiro (orgs.) (Prelo).
VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro & JESUS, Ronaldo Pereira. A experiência mutualista e
a formação da classe trabalhadora no Brasil. In: A Formação das Tradições (1889-1945).
Col. As Esquerdas no Brasil, Vol. 1. Jorge Ferreira (Organizador).
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Filantropia e Mutualismo: afinidades e diferenças 65
Camila Pereira Martins 66
RESUMO: Este artigo parte da pesquisa bibliográfica para analisar comparativamente o
mutualismo e a filantropia entre os anos de 1860 e 1930, período anterior a plena expansão
das relações capitalistas de troca, o que leva ao debate sobre o conceito de reciprocidade. O
motivo desta comparação é identificar afinidades e diferenças existentes entre as práticas
da filantropia e do mutualismo, de acordo com o conjunto de valores predominantes nas
associações.
PALAVRAS-CHAVE: reciprocidade, filantropia, mutualismo.
ABSTRACT: I review the literature for comparative analysis of the mutualism and
philanthropy in the years 1860 and 1930, a period prior to the full development of capitalist
relations of exchange, which leads the debate on the concept of reciprocity. The reason this
comparison is to identify affinities and differences between the practices of philanthropy
and mutualism, in accordance with the set of values prevailing in the associations.
KEYWORDS: reciprocity, philanthropy, mutualism.
INTRODUÇÃO
O presente texto trata-se de um estudo comparativo acerca de dois fenômenos
associativos: mutualismo e filantropia. Esta comparação será feita com o objetivo de
estudar as associações filantrópicas e mutuais brasileiras entre os anos de 1860 e 1930,
65
66
Artigo desenvolvido no âmbito de pesquisa do LAHPS através de uma bolsa PIBIC.
Graduanda de História da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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para identificar as afinidades e diferenças existentes entre as práticas da filantropia e do
mutualismo de acordo com o conjunto de valores predominantes nas associações a partir
da visão que os seus próprios contemporâneos possuíam sobre seu papel social67. Para
tanto, a partir das fontes secundárias pesquisadas, será feita uma breve introdução sobre o
desenvolvimento histórico das duas práticas associativas no Brasil. Em seguida faremos
um debate teórico sobre o conceito de reciprocidade baseada nas ações de dar, receber e
contra-doar, para enfim descrevermos estes dois fenômenos associativos, analisando como
a reciprocidade é praticada nessas associações, com quais intenções são feitas as doações e
como a associação funciona nesses processos.
ASSOCIAÇÕES MUTUAIS E FILANTRÓPICAS
As ações filantrópicas de caráter privado tiveram início no Brasil na segunda
metade do século XVI com a transposição das Irmandades de Misericórdia de Lisboa para
a colônia, sendo elas responsáveis pelo atendimento da saúde de grande parte da população
brasileira. Acompanhando o processo de progressiva ocupação do território brasileiro tais
iniciativas tiveram considerável proliferação nos séculos XVII e XVIII ampliando a
inserção da Igreja Católica no Brasil, mas é no século XIX que a filantropia se ampliará
consideravelmente68. Com a separação do Estado da Igreja, realizada na Constituição 1891,
a Igreja passa a ver nas Santas Casas de Misericórdia a possibilidade de uma expansão
compensatória em relação a uma possível perda de adeptos69.
67
VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo Pereira de. Associações Mutualistas e Filantrópicas:
estudos comparativos. (mimeo), 2007.
68
VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo Pereira de. Associações Mutualistas e Filantrópicas:
estudos comparativos. (mimeo), 2007.
69
VISCARDI, Cláudia M. R. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio interpretativo. In:
ALMEIDA, Carla M.; OLIVEIRA, Mônica R. de (orgs.). Nomes e Números: alternativas metodológicas
para a história econômica e social. Juiz de Fora: editora UFJF, 2006.
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O Código Penal brasileiro de 1890 previa a reclusão de menores infratores, por isto,
no início do século XX, foram criadas as primeiras instituições públicas de acolhimento,
não só da criança e adolescente infratores, como também de vadios e órfãos em internatos
correcionais. Assim, neste período, proliferam-se construções de asilos e orfanatos, de
caráter público e privado. Essas instituições, quando privadas, eram obra de religiosos –
católicos, protestantes e espíritas –, sendo que, no caso brasileiro, a dupla dimensão,
pública e privada, coexistem. O Estado coloca-se como um incentivador de tais práticas,
regulamentando-as de modo a facilitar o seu funcionamento, concedendo isenções fiscais,
incentivando a contribuição e o trabalho voluntário70.
As mais antigas associações de socorro mútuo brasileiras datam da primeira metade
do século XIX e foram progressivamente esvaziadas ao longo das décadas de 1930 e 1940
com a criação da previdência pública pelo Estado Novo, pois a maior parte das mutuais
tinha como objetivo principal oferecer aos associados proteção na ausência dos
mecanismos formais de previdência pública. Portanto, as mutuais tem um duplo papel –
desempenhavam funções públicas, ao mesmo tempo em que eram organizações de direito
privado –, o que lhes rendia muitos problemas, mas também, em alguns casos, boas
soluções, pois isto lhes permitia recorrer ao Estado à procura de ajuda alegando que
cumpriam funções públicas71.
As associações mutualistas proliferaram-se largamente no Brasil durante as últimas
décadas do século XIX e as quatro primeiras décadas do século XX. Acreditamos que este
grande impulso associativo se explica, sobretudo, pela migração dos trabalhadores do
campo para a cidade, o que gerou uma procura por proteção diante de uma nova conjuntura
de mudança que os ameaçava fazendo-os recorrer a práticas tradicionais. Nesse sentido,
70
VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo Pereira de. Associações Mutualistas e Filantrópicas:
estudos comparativos. (mimeo), 2007.
71
VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo P. de. A experiência mutualista e a formação da classe
trabalhadora no Brasil. In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel A. (orgs.). As Esquerdas no Brasil: A
Formação das Tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 1, cap. 1, 2008.
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podemos dizer que as mutuais estão visceralmente relacionadas à necessidade de reforçar
as relações de parentela diante da introdução de valores como a competição e o
individualismo, sendo uma nova estratégia de sobrevivência72.
Nas mutuais prevaleciam associados do sexo masculino com idade média entre 15 e
55 anos, dos quais se pressupõem renda fixa, e portando, não se encontravam a margem
dos “avanços” do capitalismo no Brasil. Algumas vezes as mutuais reuniam associados por
etnia, outras por categoria profissional, ou também podiam reunir indiscriminadamente
várias etnias e trabalhadores de diversos setores. Em geral, as mutuais tinham base local,
sendo minorias as associações de alcance regional ou nacional. O tempo de vida de uma
mutual era em média 20 anos, havendo casos de extinção quase imediata à criação, mas
também há associações que funcionam até hoje. O principal fator responsável pelo
fechamento das mutuais foi à incapacidade das lideranças de realizarem um bom
planejamento orçamentário calculando os riscos que envolviam a manutenção da
associação como a inadimplência73.
Era difícil arregimentar sócios que se dispunham a gerenciar as mutuais, por isto
havia dificuldades no preenchimento de cargos e no estabelecimento de quorum para as
assembléias deliberativas. Deste modo, seja pela ausência de outros interessados, ou pelo
esforço dos dirigentes em manterem-se à frente das mutuais, era comum a permanência dos
mesmos dirigentes na presidência dessas associações, usufruindo dos potenciais benefícios
advindos do exercício do poder74. Além disto, algumas associações tinham diferenciações
72
VISCARDI, Cláudia M. R. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio interpretativo. In:
ALMEIDA, Carla M.; OLIVEIRA, Mônica R. de (orgs.). Nomes e Números: alternativas metodológicas
para a história econômica e social. Juiz de Fora: editora UFJF, 2006.
73
VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo P. de. A experiência mutualista e a formação da classe
trabalhadora no Brasil. In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel A. (orgs.). As Esquerdas no Brasil: A
Formação das Tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 1, cap. 1, 2008.
74
VSICARDI, Cláudia M. R. Mutualismo e Filantropia. Lócus: Revista de História. Juiz de Fora: Editora
UFJF, vol. 18, 2004, PP. 99-113.
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entre os sócios, como os chamados beneméritos que contribuíam com somas significativas
para a associação e não precisavam usufruir das assistências prestadas aos demais sócios75.
Contudo, filantropia e mutualismo compunham categorias indiferenciadas para seus
próprios contemporâneos, pois os valores que compartilhavam eram extra-econômicos não
limitando suas ações às regras de mercado. Por serem organizações da sociedade civil, as
associações mutualistas preocupavam-se em oferecer socorro aos necessitados que podiam
ou não ser sócios, sendo que alguns estatutos previam ocasiões em que os não sócios
poderiam ser contemplados com algum tipo de auxílio. Desta forma, apelava-se igualmente
para a generosidade de seus associados com vistas ao fortalecimento da associação76.
Ambas as modalidades de associativismo (mutuais e filantrópicas) atendiam a
interesses e estratégias de sobrevivência dos setores despossuídos que, na ausência de um
Estado que promovesse assistência se propunham a preencher tais lacunas. Assim, a
filantropia e o mutualismo cumpriam na ocasião um importante papel: o de inibir conflitos
sociais, o de garantir um exército de reserva e o de disciplinar uma mão-de-obra avessa ao
trabalho, em geral mal visto por estar associado à escravidão77.
Tanto as associações filantrópicas quanto as mutualistas necessitam de doações
para perpetuarem-se no decorrer da história. Devido ao fato de seus valores serem extraeconômicos será usado os conceitos de reciprocidade baseados no dom e no contra-dom
para analisar a relação estabelecida entre doador e associação. Mas antes disso se faz
necessário um debate a cerca destes conceitos.
A QUESTÃO DA RECIPROCIDADE
75
VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo P. de. A experiência mutualista e a formação da classe
trabalhadora no Brasil. In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel A. (orgs.). As Esquerdas no Brasil: A
Formação das Tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 1, cap. 1, 2008.
76
VISCARDI, Cláudia M. R. Experiências da prática associativa no Brasil (1860-1880). Topoi, Revista de
História. Rio de Janeiro: volume 9, número 16, 2008.
77
VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo Pereira de. Associações Mutualistas e Filantrópicas:
estudos comparativos. (mimeo), 2007.
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Marcel Mauss, em “Ensaio sobre a dádiva”, ao observar as relações de trocas
existentes em algumas sociedades “primitivas”, diz que nas economias e nos direitos précapitalistas não se constata uma troca simples de bens, pois, em primeiro lugar não são as
individualidades que se contratam e sim as coletividades, em segundo lugar essas
prestações e contra-prestações assumem a forma de um presente aparentemente voluntário,
embora, sejam no fundo obrigatórias. Assim, Mauss chama essas trocas de prestações
totais “no sentido que é de fato todo clã que contrata por todos por tudo que possui e por
tudo que faz, através do chefe como intermediário”, quando estas prestações se revestem
de competitividade lhe é reservado o nome de potlatch, que é caracterizado como
“prestações totais de tipo agonístico”, pois nestas trocas “assiste-se, antes de tudo, a uma
luta dos nobres para assegurar entre eles uma hierarquia que resultará em proveito de seus
clãs”. Em relação à obrigação de retribuir Mauss diz que no fundo é o hau – o espírito da
coisa dada – “que quer regressar ao local de nascimento, ao santuário da floresta e do clã e
ao proprietário”, mas além da obrigação de retribuir supõem-se a obrigação de dá-los e de
recebê-los, pois recusar-se a dar ou recusar-se a receber “equivale a declarar guerra; é
recusar a aliança e a comunhão”. Uma quarta obrigação seria dar aos deuses, pois “com
eles que era mais necessário trocar e mais perigoso não trocar”, sendo que a esmola “é a
antiga moral de dádiva transformada em princípio de justiça; os deuses e os espíritos
consentem que as partes que lhes seriam destinadas e seriam destruídas em sacrifícios
inúteis sirvam para os pobres e para as crianças” 78.
Já Maurice Godelier, em “O enigma do dom”, diz que “o dom é um ato voluntário,
individual ou coletivo, que pode ou não ter sido solicitado” e que a “obrigação objetiva,
que estes grupos componentes das sociedades arcaicas teriam, de trocar entre si para poder
78
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Edições 70, Lisboa, 1974.
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subsistir encontraria, portanto, sua expressão ‘bastante direta’, mas imaginária ou
simbólica”. Godelier tem duas principais críticas a Marcel Mauss, a primeira seria sobre o
silêncio de Mauss em relação às “relações de dominação e exploração” presentes nestas
sociedades, sendo que as trocas realizadas ali são “processos de produção-reprodução de
hierarquias”, onde “dar e guardar desempenham papéis distintos mas complementares”. A
segunda seria que Mauss não teria considerado todo o contexto histórico do potlatch,
privilegiando “uma forma historicamente tardia e patológica desta instituição”. Por fim,
Godelier ressalta que “o que pôs em movimento” o potlatch “foi a vontade dos indivíduos
e/ou dos grupos de produzir (ou reproduzir) entre eles relações sociais que combinam
solidariedade e dependência” 79.
Giovanni Levi, em “Reciprocidad mediterránea”, parte dos conceitos de equidade,
analogia e reciprocidade para sugerir uma polarização entre países com direitos fortes que
restringem a capacidade dos juízes de interpretar a lei e países onde o direito tem um
princípio de justiça de origem religiosa, o que permite aos juízes ter uma margem muito
grande de interpretação através de leituras análogas e equitativas, pois as múltiplas fontes
de reprodução das normas possibilitam a movimentação com relativa liberdade entre
sistemas normativos contraditórios, sendo que a permanência de um sentido comum de
equidade em oposição às normas codificadas goza de tal vigor que tem chegado a ser a um
aspecto constitutivo da política destes países. Giovanni Levi considera que os princípios de
reciprocidade devem ser contextualizados na complexa estratificação de uma sociedade
desigual, porém equitativa, pois a mescla de economia e ética, de valores gerais da
sociedade e de valores específicos que entram na reciprocidade que se manifesta nos
intercâmbios, complica e dificulta a determinação das medidas da sociedade equitativa e
desigual que obedecem a essas regras. Por isto, Giovanni Levi acompanha Karl Polanyi na
79
GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
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idéia de que a reciprocidade vinda dos atos de dom e contra-dom tem lugar em ocasiões
diferentes, segundo um cerimonial que impede qualquer noção de equivalência, pois
atitudes individuais carecem de efeitos sociais. Deste modo, só em um ambiente
organizado simetricamente, as atitudes de reciprocidade darão lugar a instituições
econômicas de certa importância, onde uma pessoa justa recompensará um dom com um
objeto justo em um momento justo a uma pessoa que se encontra em uma posição
simétrica80.
Geoffrey MacCormack, em “Reciprocity”, critica o uso dos conceitos de
reciprocidade, pois para ele os pesquisadores não têm distinguido com suficiente claridade
entre a função do princípio de reciprocidade e uma descrição do fenômeno social, não
esclarecendo se a função é um modelo ou um instrumento de análise em termos do que a
estrutura e a estabilidade da sociedade podem explanar. E mais, às vezes é atribuído à
reciprocidade o papel de manutenção social fazendo com que a distinção entre o princípio
de reciprocidade e a reciprocidade desapareça. Além disso, quando o principio é usado na
descrição do estado de negociação obtido dentro da sociedade nem sempre é claro se o
investigador a considera uma regra, um padrão, um ideal, um desejo, uma vontade, uma
expectativa, ou um hábito. Geoffrey MacCormack também faz críticas diretas a Marcel
Mauss dizendo que em “Ensaio sobre o dom” não está explícita uma conexão entre a
reciprocidade e as obrigações de dar, receber e retribuir, assim, ele utiliza a palavra
recíproco para referir-se livremente a prática do retorno, que no contexto geral expressa
mais do que uma prática uma obrigação. Por fim, MacCormack conclui dizendo que a
linguagem da reciprocidade deve ser evitada ou usada com grande cautela81.
80
LEVI, Giovanni. Reciprocidad Mediterránea. Hispania (Madrid), LX/1, num. 204 (2000), pp. 103-126.
MacCormack, Geoffrey. Reciprocity. Man, New Series, Vol. 11, n. 1 (mar., 1976), pp. 89-103. Disponível
em:
<http://links.jstor.org/sici?sici=00251496%28197603%292%3A11%3A1%3C89%3AR%3E2.0.CO%3B2-4 > Acesso em: 25 de jan. 2008.
81
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A discussão sobre os conceitos de reciprocidade é longa, contudo cabe fazer
algumas ponderações sobre o uso de tais conceitos no presente trabalho. Mauss diz que o
dom é “imposto e interessado”82, porém, pelo menos no que diz respeito às associações
filantrópicas e mutualistas, pudemos observar que o dom não é imposto, contudo é
interessado. Desta forma, no presente trabalho Godelier explica melhor as relações de troca
estabelecidas entre doador e instituição, assim, concordamos com ele quando diz que “o
dom é um ato voluntário, individual ou coletivo”, e que, portanto, a “obrigação objetiva”
de trocar encontraria “sua expressão ‘bastante direta’, mas imaginária ou simbólica”, pois o
que fez as pessoas praticarem o dom “foi a vontade dos indivíduos e/ou dos grupos de
produzir (ou reproduzir) entre eles relações sociais que combinam solidariedade e
dependência” 83.
CONCLUSÃO
Portanto, mesmo com as criticas feitas por Geoffrey MacCormack sobre o uso dos
conceitos de reciprocidade84, utilizarei tais conceitos, tentando explicitar a diferença entre
princípio de reciprocidade e reciprocidade. Desta forma, destacamos que se supõe que há
um princípio de reciprocidade embasado em uma moral compartilhada pelos sócios, no
caso das mutuais, e pelos doadores, no caso das filantropias, que governa as ações de
reciprocidade praticadas nestas associações. Melhor explicitando, direi que no nosso
entendimento, o princípio de reciprocidade é uma moral, e a reciprocidade em si é um ato,
e que a moral contida no princípio de reciprocidade serve muitas vezes para encobrir o
interesse contido no ato de reciprocidade.
82
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Edições 70, Lisboa, 1974.
GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
84
MacCormack , Geoffrey. Reciprocity. Man, New Series, Vol. 11, n. 1 (mar., 1976), pp. 89-103.
Disponível
em:
<http://links.jstor.org/sici?sici=00251496%28197603%292%3A11%3A1%3C89%3AR%3E2.0.CO%3B2-4 > Acesso em: 25 de jan. 2008.
83
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No caso do Brasil, supomos, que assim como no que foi observado por Giovanni
Levi no mediterrâneo85 o princípio de justiça é de origem religiosa o que permite aos
sócios das associações mutualistas – que no caso funcionam como juízes de seus estatutos
nas assembléias das associações – terem uma margem muito grande de interpretações
através de leituras análogas e equitativas, havendo assim uma permanência de um sentido
comum de equidade em oposição às normas codificadas. Assim, a moral religiosa que
embasa os estatutos governa as ações praticadas nas associações mais do que o próprio
estatuto, o que talvez explique a confusão que os contemporâneos das associações
pesquisadas faziam sobre o caráter da associação ser filantrópico ou mutualista.
Sabendo que o princípio de reciprocidade é embasado em uma moral religiosa, falta
saber quais interesses esta moral pode esconder nos atos. Em relação às associações
filantrópicas pudemos observar que as instituições ao receberem as doações podem
funcionar como mediadoras entre doador e sociedade, mediadoras entre o doador e Deus
ou como doadora, recebedora e contra-doarora. Devido ao fato das filantropias realizarem
um papel social, doar a elas é doar a sociedade e tal doação pode ter a intenção de
aquisição ou manutenção de um “capital social”, que é “um capital com base cognitiva,
apoiado sobre o conhecimento e o reconhecimento”
86
. Doar à sociedade é também doar
aos pobres, o que em último caso é doar a Deus, pois os deuses consentem que os
sacrifícios inúteis sirvam aos pobres e as crianças87. No caso das Santas Casas de
Misericórdia, além das funções das demais filantropias, podemos falar que a instituição
funciona como doadora, recebedora e contra-doadora, pois ela oferece um serviço
hospitalar em troca da doação.
85
LEVI, Giovanni. Reciprocidad Mediterránea. Hispania (Madrid), LX/1, num. 204 (2000), pp. 103-126.
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.
87
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Edições 70, Lisboa, 1974.
86
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Já as associações mutualistas funcionam como doadoras quando ajudam pessoas
necessitadas que não fazem parte do seu quadro de associados e tal ato contém a intenção
de aumentar o alcance da associação. Contudo, no caso do mutualismo temos que fazer a
distinção entre os sócios comuns e os beneméritos. Os sócios beneméritos doam
quantidades maiores e não tem nenhuma preocupação com uma crise futura, sua clara
intenção é a manutenção de laços verticais de solidariedade como os do clientelismo e,
portanto, sua doação não é feita à entidade e sim à sociedade que a entidade engloba. O
mesmo pode ocorrer com os presidentes das mutuais. Nestes casos, a associação é a
mediadora entre o sócio benemérito e a aquela sociedade, o que o doador espera em troca é
manter aquelas pessoas sobre a sua tutela. E os sócios comuns doam a associação com a
intenção de receberem a contra-doação em um momento de necessidade, e aqui as
associações funcionam como recebedoras e contra-doadoras.
Contudo, na maioria dos casos não é nem mesmo a moral que governa a ação de
prestação dos homens e sim um hábito, que foi constituído e é reforçado pela moral.
Assim, as intenções contidas nos atos de reciprocidade “só muito raramente estão
assentadas em uma verdadeira intenção estratégica”
88
. Ou seja, ele não tem um ato de
caridade no seu projeto de chegar ao céu, mas sim, doar faz parte do trajeto que ele está
pondo em curso. O ato de doar pode até ser mais consciente quando é feito a procura de
reconhecimento, mas em geral é um hábito, um costume, seu pai fazia, seu avô fazia, seus
amigos fazem. Não há como negar que haja um interesse por de trás do ato, porém, este
interesse é realizado na maior parte das vezes de uma forma inconsciente. Portanto dar,
receber, retribuir e doar aos deuses tem uma moral religiosa, mas tais atos constituem-se
num hábito realizado inconscientemente.
88
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.
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Para concluir, falta dizer que até a presente fase desta pesquisa o que notamos é que
a confusão que os sócios das associações mutuais e filantrópicas fazem sobre a função das
associações deve-se ao fato de ambas compartilharem valores extra-econômicos e terem
interesses que vão muito além do altruísmo, ou mesmo da sobrevivência, sendo práticas
que tendem a estender-se a vários níveis de interação social e ao comportamento cotidiano
das pessoas.
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Editora UFJF, 2006.
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Cordialidade e Censura no Espaço de Sociabilidade:
O paradoxo da censura na imprensa de Montes Claros/MG no período do
Governo Militar 1964 a 1968
Camila Gonçalves Silva89
RESUMO: A presente comunicação possui como objetivo compreender a memória dos
jornalistas que atuaram na imprensa escrita de Montes Claros-MG durante os anos de 1964
a 1968, contexto político em que estava em vigor em âmbito nacional no Brasil o Regime
Militar (1964 – 1985). Neste sentido, compreenderemos no decurso de cada trajetória de
vida a memória social e profissional daqueles que exerceram seu ofício com a presença de
censores nas redações. Por conseguinte, entenderemos também como era feita a censura e
como os jornalistas burlavam a mesma. As fontes utilizadas constam em entrevistas com
os jornalistas, respaldadas pela metodologia da História Oral. Também utilizaremos
exemplares da Revista Montes Claros em Foco, periódico bimestral local e para nossa
análise selecionamos as publicações dos anos de 1963, 1964 e 1967.
PALAVRAS-CHAVE: Imprensa, Censura, Montes Claros.
ABSTRACT: This communication has the purpose of understanding the memory of
journalists who worked in the press of Montes Claros-MG during the years 1964 to 1968,
the political context in which was in force at the national level in Brazil the military regime
(1964 to 1985). In this sense, understand the course of each trajectory of life professional
and social memory of those who exercised their craft with the presence of censors in the
newsroom. Therefore, also understand how it was done as censorship and journalists
89
Mestranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora –UFJF.
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laughed at it. The sources used included interviews with journalists, backed by the
methodology of oral history. We also use copies of the magazine Focus in Montes Claros,
bimonthly journal site and our analysis we selected publications of the years 1963, 1964
and
1967.
KEYWORDS: Press, Censure, Montes Claros.
Introdução
A presente comunicação é resultado parcial da coleta de fontes para a escrita da
dissertação de mestrado intitulada “Censura, Auto-censura e repressão: A censura a
Imprensa escrita de Montes Claros durante o Governo Militar nos anos de 1964 a 1978”.
Neste sentido, este texto procura compreender o espaço de sociabilidade das redações de
Montes Claros através da Metodologia da História Oral, as entrevistas concedidas pelos
jornalistas que atuaram em nosso contexto. As nossas fontes constam não apenas em
entrevistas90, como também em exemplares da Revista Montes Claros em Foco, periódico
bimestral local referente aos anos de 1963 e 1964.
A censura nas redações da cidade de Montes Claros se fixa em nosso estudo como
marco, o ano de 1964 como ponto de partida para análise do aparato repressor nas redações
dos jornais. Postulamos como ponto final em nossa presente abordagem o ano de 1968.
Conseqüentemente, analisaremos os primeiros e mais intensos anos em que a censura
atuou nas redações. Consideramos importante destacar que o sistema de censura em nosso
recorte espacial: Montes Claros, cidade pequena e com ares de provincianismo possuiu
uma singularidade. Ao contrário dos jornais impressos que circularam em nível nacional,
como o Estado de São Paulo, Opinião, Tribuna da Imprensa, que vivenciaram o período
90
Para resguardar as nossas fontes optamos por não divulgar os nomes de nossos entrevistados.
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situado entre os fins da década de 1970 até o processo de abertura política como o
momento de desmantelamento da censura, as redações dos jornais de Montes Claros
ficaram sob o sistema de cerceamento até o ano de 1985.
Os jornais escritos de Montes Claros apenas enxergaram o final da censura quando
o último Presidente Militar da República deixou o poder. Conseqüentemente, todo o
aparato repressor somente retirou os pés das redações dos jornais depois dos 21 anos de
Governo Militar. Nesse sentido, o nosso objeto de análise incorporou todo o aparato
repressor de modo prematuro se comparado aos periódicos em âmbito nacional, ao passo
que se livrou desse mesmo aparato tardiamente, tendo como fator indispensável para o
cumprimento das ações cerceadoras o 10º BP de Montes Claros.i
Os militares em âmbito nacional apoiados pela Doutrina de Segurança Nacional
que postulava que era necessário eliminar qualquer possibilidade de implantação do
comunismo, em 31 de Março de 1964 inicia-se o período obscuro no cenário político
nacional. Conforme Julio José Chiavenato91 em âmbito mundial vivíamos o período da
Guerra Fria, o chamado Mundo Bipolar encabeçado pelos Estados Unidos (capitalismo) e
pela extinta União Soviética (socialismo) estabeleciam áreas de influência no intuito de
angariar cada vez mais aliados e poder. O Brasil, mais precisamente os homens que
permeavam poderes políticos e econômicos, e, principalmente tinham interesses em
estabelecer relações de comércio com o EUA, impetraram sentimentos de oposição a
ideologias socialistas ou comunistas. O general Golbery do Couto e Silva um dos
principais ‘teóricos’ da Ditadura Militar e criador do Sistema Nacional de Informação
(SNI) faziam declarações tórridas sobre o momento: “Essa é a guerra – total, permanente,
global e apocalíptica – que se perfila, desde já, no horizonte sombrio de nossa agitada
91
CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe Militar e a Ditadura Militar. 2004.
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época. E só nos resta, nações de qualquer quadrante do mundo, prepararmo-nos para ela,
com determinação, com clarividência e com fé92.
Acerca desse discurso ‘apocalíptico’ podemos inferir que o mesmo estava inserido
em todas as patentes do corpo militar, a necessidade de ‘salvar’ ou libertar o país dos
preceitos comunistas ou socialistas perpetuou nos discursos dos militares. O Coronel do
10º BPMMG de Montes Claros na época, Georgino Jorge de Souza foi a figura que
materializou a nível local através da censura a imprensa a necessidade de ‘salvar’ a
sociedade local das injúrias do comunismo/socialismo.
O paradoxo da censura na imprensa de Montes Claros/MG no período do Governo
Militar 1964 a 1968
Nesse sentido, se torna primordial em nossas análises haja vista a influência dessa
instituição em nosso objeto compreender dois elos que norteiam nosso objeto. O primeiro
refere-se à instituição do 10º BPMMG, e o segundo a pessoa que inseriu por conta própria
a censura, utilizou para isso a própria instituição que comandava: Coronel Georgino Jorge
de Souza. O Coronel Georgino Jorge de Souza teve grande relevância para a história do
10º Batalhão de Montes Claros. O mesmo conduziu a sua tropa até Brasília – capital
federal – no intuito de apoiar em 1964 o Golpe Militar. Montes Claros, no mesmo ano
(1964) tinha conhecimento de algo no meio político havia mudado, de um presidente civil,
João Goulart, passamos a ter como presidente um militar, o General Castelo Branco.
Entretanto, no cotidiano da população através dos depoimentos dos jornalistas podemos
compreender que essa mudança não alterou a rotina das pessoas, mas também não houve
nenhuma negativa de ocorrência durante os anos da Ditadura Militar de focos relacionados
92
CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe Militar e a Ditadura Militar. 2004. P.84
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a resistência por parte de estudantes, políticos, jornalistas e artistas locais. Apesar de não
ser o esse o foco de nossas análises, expressões públicas e opiniões contrários à
implantação do Governo Militar aconteceram, entretanto, não foram de grandes dimensões
como as que sucederam no cenário nacional.Conforme podemos evidenciar na citação a
seguir de um de nossos depoimentos.
A comunidade de Montes Claros com exceção de algumas pessoas
como o próprio Darci Ribeiro que é montesclarense e o Mario
Ribeiro, esses mais antigos da política, essas pessoas tinham
consciência do que estava acontecendo, mas a população em si
passava despercebida dessas coisas, sabe?
(...) A sociedade começou normal, almoçando e jantando e
tomando café, as crianças indo para a escola, a diversão
acontecendo, como se nada tivesse acontecendo... 93
Logicamente podemos inferir que não é que a população da cidade seja alienada as
questões políticas de nosso país, mas em sua grande maioria os debates em torno do Golpe
de 1964 era tema proibido pela sociedade, de modo que apenas aqueles que tinham acesso
a cargos políticos, em contato com intelectuais ou inserido nesses círculos sociais tinham
uma melhor noção do que na realidade estava acontecendo, por ser círculos reservados os
diálogos não iriam chegar no meio repressor da cidade. Além desse aspecto, o debate via
meios de comunicação na imprensa escrita era proibido, simultaneamente informações
políticas ficavam restritas a apenas alguns indivíduos.
Na posterior publicação da revista Montes Claros em Foco do ano de 1964 trouxe
em edição extra dedicada quase exclusivamente conteúdo relacionado às homenagens
feitas ao 10º BPMMG por atuar na manutenção e concretização do conhecido Golpe
Militar. O 10º BP local viajou até a capital do Brasil para contribuir com a operação e êxito
da inserção dos militares na presidência da República. A matéria intitulada “Generais da
93
CEDRO, 2006.
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Revolução” é rica em enaltecer o sentimento de heroísmo no cumprimento do dever da
corporação recém chegada de Brasília. A sociedade montesclarense comparece a esse
momento de homenagens ao Regimento Local:
Carinhosas e entusiásticas homenagens foram prestadas pela
sociedade de Montes Claros, por ocasião do regresso à cidade dos
valorosos soldados do Décimo Batalhão de Infantaria, pelo seu
comportamento durante as operações revolucionárias.
Como representante do governador Magalhães Pinto compareceu o
Comandante Geral da Polícia Militar Cel. José Geraldo de Oliveira
que também foi alvo de significativas e justas homenagens.
Constituiu assim, uma nota de grande imponência a chegada das
tropas, entusiasticamente aplaudidas e recebidas com flores.
O Desfile foi aberto pela Banda de música do Batalhão. A seguir,
num jeepe aberto, passou o Cel. Georgino Jorge de Souza ilustrado
comandante do Décimo, com oficiais e depois os expressivos
contingentes, sendo, os líderes da revolução delirantemente
ovacionados pela multidão.
De um palanque armado em frente ao prédio da Prefeitura
Municipal, assistiram ao desfile o Cel. José Geraldo de Oliveira,
Comandante Geral da Polícia Militar, o Prefeito Municipal Dr.
Pedro Santos, o Presidente da Câmara Sr. Orlando Ferreira Lima,
Deputado Federal Dr. Francelino dos Santos, Monsenhor Gustavo
Ferreira e outras autoridades fazendo-se ouvir diversos oradores,
sendo os líderes da revolução delirantemente ovacionados pela
multidão. (grifo nosso)94
É praticamente incontestável o entusiasmo da população frente a presença dos
militares no desfile que os prestigiava, conforme percebemos no trecho anterior, de
representantes do governo Estadual, municipal e até mesmo da Igreja Católica. O
comportamento de saudações e contentamento frente aos membros do corpo militar
postulava um comportamento que nada terá de análogo ao dos profissionais da imprensa
escrita local.
94
Revista Montes Claros em Foco. Junho e Julho de 1964. Edição Extra - Número 25,
Ano VII. Matéria: Generais da Revolução.
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O 10º Batalhão de Polícia Militar local não apenas marchou até Brasília, como
também inseriu no cotidiano das redações dos jornais da cidade soldados fardados ou à
paisana e em alguns momentos superiores com patente de coronéis para exercerem o papel
de cercear os assuntos a serem publicados na imprensa escrita, conforme nas palavras de
um dos jornalistas:
Nós tivemos é... no caso do Diário de Montes Claros foi até um
Coronel, Antônio, acho que era Antônio ele era Major, não, não era
não, acho que ele era Coronel, no Jornal de Montes Claros com um
Capitão, que era chamado de Capitão Lázaro é... nesse do Diário de
Montes Claros ele era Capitão, Capitão Antônio, depois foi até
presidente, foi diretor do Colégio Tiradentes, veio a ser diretor do
Colégio Tiradentes, depois... era uma pessoa muito culta, muito
bondosa, muito boa de tratar.95
Nesse mesmo trecho em que podemos comprovar a existência do aparato repressor
contém o aspecto principal que ensejamos discutir: a convivência e a relação dos censores
com os jornalistas. No entanto, precisamos definir inicialmente quem eram esses censores.
Nas três entrevistas realizadas que utilizamos como fontes para a presente pesquisa
podemos comprovar através dos depoimentos que o corpo de censores era formado
essencialmente por soldados, coronéis e capitães do próprio regimento local, mas em
alguns casos conforme os depoentes expressam os censores pareciam ser do Serviço de
Informação ou da Polícia Militar ou Polícia Federal, eram distinguidos pela farda ou
uniforme usado.
A cidade de Montes Claros nesse período alçava desenvolvimento comercial e
urbano com casas antigas dando lugar as novas construções e a substituição paulatina das
ruas de poeira pelo asfalto, porém ainda estava envolta pelos ares de um cotidiano
conservador e provinciano. Pequenas e simples aparições em festas da sociedade local tais
95
CEDRO, 2006.
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como: casamentos, formaturas, inaugurações de comércios ou inserção em festas
organizadas por damas da sociedade denotavam em engrandecimento pessoal, dos
costumes e da moral. Sendo assim, quase todos sempre podiam indicar quem possuía
algum filho ou conhecido que atuava no Batalhão de Polícia local. Assim podemos
concluir que a convivência com os censores era algo que estava no cotidiano dos
jornalistas antes mesmo da convivência em nível profissional. Da mesma maneira era fácil
identificar aqueles profissionais que eram membros do corpo de redação dos jornais do
período. A possibilidade de fácil identificação de ambos os membros já nos faz
compreender a singularidade da repressão exercida na imprensa na cidade do interior. Em
grandes centros urbanos como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, dentre outros
dificilmente um jornalista tinha qualquer tipo de convívio pessoal fora do ambiente de
trabalho ou até mesmo convivência e modos comportamentais cordiais com o censor.
Quando os depoentes são questionados sobre a possibilidade de Montes Claros, assim
como nos grandes centros urbanos do Brasil possuir aparato repressor, respondem
categoricamente:
A maior parte militares, não é? Militares que permaneciam
fardados e também à paisana. Mas eram pessoas do governo, eram
pessoas do governo! Do Serviço de Informação, do Exército, da
Polícia Militar, da Polícia Civil, não é? Da Polícia Federal, né?
Então reunia todos os órgãos que faziam a repressão.96
Tinha, tinha censor! ... Existiam vários censores, eu não vou
conseguir dizer o nome de todo mundo... Mas tinha censor sim!
Para ficar fiscalizando as matérias... Apesar da habilidade dos
repórteres, né? Dos editores para driblar as fiscalizações, mas sim
já existiam censor sim, que cortavam, não deixavam sair qualquer
coisa, não é? Não sair muita coisa, aliás! Entendeu? Então era um
trabalho previamente fiscalizado. Mesmo! Então assim não
conseguia publicar muitas, muitas matérias, muitas informações
polêmicas com êxito, não! Não conseguia! 97
96
97
PEREIRA, 2006.
CARVALHO, 2006.
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Da mesma maneira, em nossos estudos podemos afirmar que quando os depoentes
descrevem o cotidiano das redações dos jornais e as maneiras de contornar a censura é
notório um misto de raiva e política de boa convivência. Pois, era inevitável a convivência
entre ambos em um mesmo ambiente atuando de acordo com as necessidades de suas
profissões: um cerceando a liberdade de expressão e o outro tentando contornar a censura
imposta a sua escrita. O jornalista sofria basicamente dois tipos de pressões: a de cunho
social em que era fácil encontrar no dia a dia o censor que trabalha na redação do jornal
conversando com a sua família, tendo contato com seus amigos e colegas; e a outra pressão
de fácil identificação que é a profissional, o jornalista tem que acatar a todo o momento a
censura porque precisa se manter na profissão para sustentar seus filhos, sua mulher, sua
família... Somado a esse aspecto temos ainda a pressão psicológica do jornalista que teme
fazer algo de errado sob pena de não apenas ele sofrer a conseqüência, como também a
possibilidade de ocorrer qualquer penalidade por burlar a censura na sua própria família ou
no seu circulo social. Por outro lado estava o militar, independente da patente exercida o
mesmo tinha a vantagem de que apenas os profissionais das redações tinham detalhes de
suas atitudes, ou seja, a grande maioria da população local não tinha noção do que estava
acontecendo. Além desse aspecto sendo o censor o militar, o mesmo estava em uma
posição superior, ele não sofria danos psicológicos, pessoais ou profissionais. No que tange
a pressão profissional e psicológica a fala de um jornalista ao descrever a sua “visita”
forçada ao Batalhão de Polícia de Montes Claros reflete satisfatoriamente esse aspecto
descrito:
E o... esse coronel, ele tinha o meu currículo, ele sabia mais da
minha vida do que eu sabia da minha vida! Entendeu? Ele falou
comigo: “Você...” E foi me dando, ele decorou meu currículo, ele
decorou meu currículo, ele falou: “Você tem isso, você tem
aquilo...” e Falou: “Oh, vai cuidar da sua família que é melhor!”
Ele me sugeriu que eu parasse de escrever sobre o PMDB sobre
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ARENA, parasse de escrever sobre política em geral, que eu iria
virar o alvo! E eu realmente até em respeito a mim mesmo eu parei
de escrever sobre política com medo de ser mandado para Juiz de
Fora (Risos). Eu fiquei realmente com esse, com esse trauma na
cabeça! Entendeu? (grifo nosso) 98
Podemos perceber através da leitura da citação anterior que o jornalista deixa claro
o receio dele e de sua família serem alvos da repressão, desse modo o mesmo deixa de
expressar suas idéias em relação a sua posição contrária as questões políticas do Regime
Militar. Ao mesmo tempo existiam alguns artifícios utilizados pelos jornalistas no
ambiente de trabalho para contornar a censura que podemos perceber que é algo singular
no que tange ao convívio entre jornalistas e censores nas redações. Outro jornalista
descreve em seu depoimento que para “enrolar” um pouco os censores muitas vezes até
mesmo os convidavam para irem a bares ou botecos e, chegavam na redação do jornal para
realizar a impressão dos jornais em horários mais tardes que o normal no intuito de deixar
menor o tempo de análise feito pelo censor antes da conclusão das páginas a serem
impressas. Essa atitude em muitas ocasiões como afirma o jornalista alcançou êxito, como
podemos atestar:
Para não dar tempo de chegar alguém e censurar tal material... e
assim, assim e tal. E eles deixavam... Iam para o boteco, para o
boteco, para os botecos, bebiam e tomavam umas cervejas e tal...
Depois... de um certo tempo é que eles viam para a redação, por
volta de 22:30, 23:00 que é aí que eles iam finalizar a edição para
soltar no outro dia. E aí se tiver que censurar alguma coisa então já
era, né? O jornal já estaria nas bancas e tal. Mas foi um período
assim de muita tensão, o pessoal ainda tinha medo de escrever
qualquer coisa, não tinha essa liberdade de falar... 99
Essa distinta relação entre jornalistas e censores resultava em um trato particular e
inusitado que em muito pode ter como fator essencial à singularidade de um cotidiano
98
99
CEDRO, 2006.
CARVALHO, 2006.
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próprio de uma cidade pequena do interior em que as relações sociais se mesclam,
caracterizando esse convívio no dia a dia como paradoxal: cordialismo nas relações sociais
com um misto de aversão por ser censurado, necessidade de convivência de ambos em um
mesmo ambiente e somado a esses dois aspectos a convivência fora do ambiente de
trabalho, o cotidiano na cidade. È importante salientar que não foi apenas utilizando esses
artifícios da convivência que os jornalistas conseguiram contornar a censura, apesar do ato
de contornar a censura ser algo mais complicado devido a essa constante relação de
proximidade profissional e pessoal em que as conseqüências da descoberta desse
“contorno” pode ser também mais rápidas devido a essa mesma adjacência, os
profissionais das redações dos jornais utilizaram muitos dos mecanismos que os órgãos de
imprensa nacional utilizaram, tais como: metáforas e linguagem subliminar, como fica
expresso na citação que se segue:
(...) por exemplo, se a imprensa fosse noticiar: “Ladrão de galinha é
preso”. Sabe? Aquele ladrão de galinha é preso, mesmo que falasse
que ele realmente, toda matéria que um rapaz que foi preso
apanhando uma galinha na casa de um vizinho e não falasse mais
nada, mesmo assim, sabe? A sociedade poderia indagar ou
questionar: “E quem rouba além de uma galinha?” Então era tudo
nas entrelinhas, não é? Chico Buarque de Holanda foram um dos
que mais falavam: “Pai afasta de mim esse cálice” que a maioria o
cálice era tão simbolista, tem tanto simbolismo nessa palavra
cálice, que você pode escrever: C-A-L-E um – S E, como um cala a
boca; e com CÁLICE que representa uma dor, né? O sangue de
Cristo, então tudo vinha nas entrelinhas, sabe? Então você tinha
que ter as metáforas, dos artistas também na sua concepção para
você poder entender as mensagens. Então era tudo camuflado!
(grifo nosso).100
Os assuntos relacionados principalmente às temáticas: política, sociedade,
economia e artes tiveram seus textos jornalísticos proibidos de serem vinculados, ou na
mais leve realidade, se publicados antes passaram por leituras cerceadoras, recortes e
100
CEDRO, 2006.
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depois de novamente organizados, afastando suas idéias consideradas perigosas, poderiam
enfim ser impressas para chegarem conseqüentemente às mãos dos leitores. Como expressa
em sua obra A ordem do Discurso o Michel Foucault explica como o discurso pode ser
metodicamente analisado no intuito de minimizar ou retirar tudo aquilo que é considerado
nocivo para a sociedade: “(...) suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é
ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que têm a função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”.101
O discurso, que em nosso tema é elaborado pelos jornalistas da cidade de Montes
Claros foi materializado em reportagens que na personificação do aparato repressor
passaram por censores que determinavam quais as manchetes e de que forma os temas
deveriam ser redigidos para serem convenientes para a sociedade. O Censor representa a
instituição que procura de todos os modos evitar e eximir a publicação de discursos que
expressam de maneira concreta idéias, conteúdos e fatos que proporcionassem elevo
contrário ao Governo Militar.
Conclusão
Por fim, podemos inferir que a imprensa de Montes Claros, no período do Regime
Militar, possuiu características análogas as da imprensa nacional e individual quando
enviesamos análises da censura em âmbito de cidade do interior como por exemplo, o
cordialismo entre jornalistas e censores e aplicação da leis de imprensa nas redações dos
jornais da cidade. Através do resgate da memória dos entrevistados, podemos perceber, na
101
Foucault, Michel. A ordem do Discurso. São Paulo: Loyola. 9º Ed. (Coleção Leituras
Filosóficas). p.8-9.
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inflexão e tenacidade da voz dos depoentes, o tom de “desabafo” quando os mesmos
narraram ou caracterizaram as suas trajetórias como profissionais do período. Trajetórias
marcadas por cerceamento de liberdade e de opinião que acarretaram em constrangimentos
como profissionais; aos moldes da História Oral trouxe a público as recordações do
momento.
Referências:
REVISTAS
Revista Montes Claros em Foco. Janeiro e Fevereiro de 1964. Número 24, ano VII.
Revista Montes Claros em Foco. Junho e Julho de 1964. Edição Extra - Número 25, Ano
VII. Matéria: Generais da Revolução.
POLLAK, Michel. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos: Rio de Janeiro,
vol.2, n° 3, 1989, p. 3 – 15.
POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos: Rio de Janeiro, vol.
5, n. 10, 1992, p. 200-212.
SITES
Site com conteúdo relativo a História da Polícia Militar de Minas Gerais e 10º Batalhão de
Polícia
Militar:
Encontra-se
textos
disponíveis
em:
http://www.pmonline.com.br/modules/smartsection/category.php?categoryid=3 e
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/02/275183.shtml . Acesso em 22 de Junho
de 2008
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Historiografia Contemporânea. In:VISCARDI, M. R. Cláudia; DELGADO, Lúcia de A
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Ditadura Militar. São Paulo: Unicamp, p. 269, 1999. (teses).
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imprensa de Montes Claros de 1964-1985. Monografia apresentada ao Departamento de
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STEPHANOU, Alexandre Ayube. Censura no Regime Militar e Militarização das Artes.
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De “Portas a dentro”: Serviços especializados e bons rendimentos dos escravos
de aluguel na cidade do Rio de Janeiro em 1864.
Carlos Eduardo de Medeiros Gama*
[email protected]
RESUMO: Objetivamos interpretar a autonomia e a negociação de cativos e senhores
frente ao mercado de mão-de-obra especializado em serviços domésticos e as
particularidades dos proprietários de escravos da urbe. Os preços dos cativos, as diferentes
atividades ocupacionais, a valorização e os bons rendimentos do escravo de aluguel
perante o escravo ao ganho estão relacionados ao sistema escravista que no pós-1850
passou por mudanças estruturais. Procuramos interpretar os arranjos de senhores e escravos
para sobreviverem “juntos” a um mercado disputado e concorrido por escravos, libertos e
livres – brasileiros e imigrantes – e pela grande demanda do tráfico interno de escravos
gerado pela expansão das grandes lavouras cafeeiras.
PALAVRAS-CHAVE: Escravos de aluguel; escravidão urbana; jornal.
ABSTRACT: We aim to interpret the autonomy and trading of slaves and masters in the
marketplace of skilled manpower specialized in domestic services and characteristics of
the slave owners of the city. The price of the captives, the different occupational activities,
recovery and good income from rent of the slave in front of the slave gain are related to the
slave system or at the post-1850 has undergone structural changes. We triend to interpret
the arrangements of masters and slaves to survive "together" in a crowded and competitive
*
Especialização História - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.
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market for slaves, freedmen and free - Brazilian and immigrants - and by strong demand
from domestic slave trade generated by the expansion of large coffee plantations.
KEYWORD: Slaves rental; enslavement urban; journal.
Na tentativa de mostrar o dinâmico mercado de aluguel de escravo na cidade do
Rio de Janeiro catalogamos 1.020 anúncios no Jornal do Commercio, no período de
janeiro e julho de 1864, na Seção de Periódicos da Fundação Biblioteca Nacional.
Objetivamos interpretar a autonomia e a negociação de cativos e senhores frente ao
mercado de mão-de-obra especializado em serviços domésticos dos proprietários de
escravos da urbe
Justificaria o alugar seu escravos o maior controle do poder senhorial, o escravo de
aluguel ao contrário do ganho, tinha a previa demonstração pelos proprietários em
anúncios publicando as boas qualidades dos cativos: obediência, fidelidade e bons
serviços. O aluguel seria sinônimo de menor mobilidade dos cativos na urbe comparados
com os escravos ao ganho. José Roberto Góes afirma que:
“Os pequenos escravistas tendiam a ser relutante a autonomia dos
cativos uma razão muito simples: se qualquer direito assegurado ao
escravo é um direito tomado ao seu senhor (em tese, o escravo não
tem direito), muito mais ameaçador e custoso é ao pequeno
escravista qualquer margem de autonomia escrava” (GÓES, 1998,
p.155-156)
Roberto Guedes Ferreira propõe outra abordagem:
“(...) mesmo nas cidades, escravos estariam sob severa disciplina
quando trabalhassem junto a seus senhores, isto é, diante da
presença física destes, aqueles teriam seus espaços de autonomia
reduzidos. A proximidade, ao que parece, seria física e de
categoria.” (FERREIRA, 2000, p.118.)
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Rodrigo de Aguiar Amaral discorda desse laço apertado que poderia prover aos
cativos uma menor autonomia nas relações senhores e cativos:
“(...) nas cidades onde a escravidão levou um grande contingente
de cativos às ruas e estes dispuseram de parte de seu tempo
enquanto trabalhavam, o poder senhorial se misturava e em parte
dissolvia-se na autonomia que este escravos poderiam abocanhar.
Mas isso não significa que estes senhores estivessem perdendo o
poder sobre seus cativos. Eles estavam adaptando-se à conjectura
urbana.” (AMARAL, 2006, p.117)
Em uma dessa “conjectura urbana” da escravidão, proprietários podiam não
negociar definitivamente seu cativo e tentar de tudo para mantê-lo, em alguns casos sua
única fonte de renda.
Foi nesse período de 1860 a 1865, que o preço da compra de um escravo teve sua
maior alta:
“Tomando-se a evolução do valor nominal do escravo típico – um
homem entre 15 e 40 anos de idade -, observa-se haver seu preço
dobrado entre o final do século XVIII e a década de 1820, o que
novamente se repetiu nos
anos 30. Após o fim do tráfico com a África o valor desse escravo
triplicou em ralação à década de 1840, atingindo o pico (cerca de
1:500$000 reis) nos anos 60.”(FLORENTINO, 2002, p.16-17)
O pico no valor do cativo a ser vendido no mês de fevereiro de 1864 se comparado
ao pico do valor do escravo de aluguel de 40$000 réis mensal, no mesmo ano da
publicação da venda do moleque de 20 anos. Preços diferentes e serviços bem
diferenciados dos escravos que são alugados ao expressivo valor de 30$000 réis, no
mesmo mês:
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“Alugão-se por 30$ e para portas a dentro, uma escrava, perfecta
mucama e prendada na costura e no engommado, e outra boa
cozinheira e engommadeira;na rua do Espírito-Santo n. 11.”102
A diferença entre a média do preço do aluguel das cativas que é de 23$400 réis e o
pico de 40$000 réis nos mostra os diferentes serviços que os cativos são empregados e a
cotação real de cada atividade. Além, é claro que as cativas correspondem à maioria dos
escravos de aluguel anunciados em 1864.
Esse elevado número de cativas anunciadas 60% ou 653, contra 427 cativos ou
40% de escravos de aluguel, são bem parecidos com os números de cativos apresentados
por Roberto Guedes Ferreira no tocante as atividades ocupacionais. Roberto Guedes
trabalhando com expressões usadas por avaliadores e senhores sobre as ocupações dos
escravos contidos nos inventários post-mortem na cidade do Rio de Janeiro de 1801 a
1844 (FERREIRA, 2005,p. 243), são 145 escravos com as atividades ocupacionais:
cozinheiras, lavadeiras, engomadeiras, ensaboadeiras, rendeiras e bordadeiras. Entre
essas atividades ocupacionais existem 40 Homens (28%) e 104 Mulheres (72%).
Possivelmente esses escravos dispunham, segundo Roberto Guedes, da possibilidade de
oferecer algum rendimento ou jornal a seus senhores. (FERREIRA, 2005,p. 242)
Dos 145 escravos ou 10,6% do total de escravos, Roberto Guedes Ferreira afirma
que possivelmente poderiam gerar algum rendimento como escravo de aluguel ou ganho.
A atividade ocupacional de cozinheiro era representada por 51% (74) dos cativos, sendo
51% (38) Homens e 49% (36) Mulheres. Essa maioria de cativos que se ocupava como
cozinheiro vão se mostrar numericamente superiores a todas as atividades ocupacionais
dos escravos de aluguel do sexo masculinos anunciados no Jornal do Commercio
formando uma mão-de-obra muito ofertada em 1864.
102
Jornal do Commercio, 26.02.1864, Sexta-feira n° 56.
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O preço de 72% dos escravos de aluguel anunciados variava entre 21$000 réis e
30$000 réis, se compararmos com o escravo ao ganho Alexandre, que pagava 640 réis de
jornal diário ao seu senhor José Antonio Peixoto em 1860
103
, trabalhando o mês inteiro
gerava no final de trinta dias uma renda de 19$200 réis. É bem menos que o preço médio
dos escravos de aluguel ofertados nos anúncios, que era de 25$500 réis.
Com o seu escravo de aluguel tendo uma rentabilidade maior que o escravo ao
ganho, os proprietários que anunciavam o preço do aluguel do seu cativo correspondiam
19% dos 1.020 anúncios catalogados no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Entre o
aluguel e a venda, os anúncios revelam a valorização dos escravos nesse período:
“Aluga-se, por 30$, ou vende-se por 1:350$, uma escrava parda,
que engomma, lava, cose e cozinha muito bem,na Rua do EspíritoSanto n.11.”104
Essa boa rentabilidade do escravo de aluguel em comparação ao escravo ao ganho
– rentabilidade só para o proprietário - estaria ligada diretamente à atividade ocupacional
desse cativo. Os preços dos escravos anunciados em 1864 tem a sua variação de preço
entre 31$000 réis a 40$000 réis mensais, correspondem a 25 % dos escravos anunciados:
“Aluga-se um preto moço, escravo, bom pedreiro, ou para qualquer
serviço, por 32$ mensais; na rua do Senado n.61. Acima do
morro.”105
“Aluga-se uma escrava muito boa ama de leite, por 40$ mensaes;
na Rua do Hospício n.32.”106
Tabela 1
103
Inventário Post-Mortem, ANRJ, José Antonio Peixoto, 1860. Apud AMARAL, Rodrigo de Aguiar. op.
cit., p. 112.
104
Jornal do Commercio, 16.04.1864, Sabbado, n° 106.
105
Jornal do Commercio, 08.01.1864, Sexta-feira, n° 08.
106
Jornal do Commercio, 31.03.1864, Quinta-feira, n° 90.
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Distribuição (%) pelo preço (em mil-réis) mensal e pelo sexo dos escravos de
aluguel anunciados no Jornal do Commercio(RJ) em 1864.
Homem
Faixa de preço (em
mil-réis)
Faixa 1
N
31$000 -
30$000
%°
9
1
Faixa 3 10$000 20$000
10
4
6
3
8
2
5
9
4
3
6**
-
-
-
-
4
4
7
1
1
17
%
6
2
1
6
Total
7
5
1
4
N
%°
90
21$000 -
Criança*
N
°
40$000
Faixa 2
Mulher
6
2**
2
4 **
Fonte: Jornal do Commercio 1864, n° 01 ao n° 212. Janeiro a julho.
*menor de 14 anos.
Nos preços mais altos, que variam de 31$000 réis a 40$000 réis mensais as cativas
representam 10% dos escravos anunciados, ou apenas 1 anúncio. Porém nos preços que
vão de 21$000 réis a 30$000 réis por mês, a porcentagem de cativas alcança os 62%. Essa
faixa corresponde a 72% dos anúncios com o valor do preço publicados (Gráfico 1). Essa
predominância das cativas nos anúncios com preços de 21$000 e 30$000 ou 62%, é
determinada pela importância dada as atividades ocupacionais domésticas no cotidiano da
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cidade: os serviços internos e os serviços externos de uma casa eram executados pelas
cativas alugadas.
Sobre as atividades ocupacionais domésticas as cativas de aluguel desempenham
funções diferenciadas no trato a executar serviços exclusivamente dentro ou fora das
residências dos locatários. As cativas que são mais anunciadas com o preço que varia de
21$000 réis a 30$000 réis realizam “serviços de portas a dentro”, ou 77%, das cativas
ofertadas nos anúncios; “Todo serviço interno de uma casa”, “todo serviço da cozinha”,
“os arranjos de uma casa”, “ensaboa”, “cose”, “engoma”, “cozinha”, “costura e
borda” e “lava”
107
. Os serviços externos de uma casa correspondentes aos 20% das
atividades executadas pelas cativas; “fazer compras”, “carregar água” e trabalhar como
“quitandeira” ou nas vendinhas de “doces”, disponibilizando para as cativas mais
mobilidade pelas ruas da cidade.
Nos anúncios com preços que variam de 10$000 réis a 20$000 réis, as atividades
ocupacionais estão ligadas aos serviços domésticos, porém há limitações quanto à idade,
se carregam seus filhos para o serviço e outras particularidades:
Dos 49 anúncios com os preços entre 10$000 réis e 20$000 réis, 24% dos cativos
anunciados são homens, 8% dos cativos são menores de 14 anos e 68% são mulheres, das
quais 45% são anunciadas para o aluguel e carregam seus filhos. Um fator que parece ser
determinantes para o baixo preço do aluguel das escravas anunciadas. Mas há outros
fatores que parecem interferir no preço do aluguel:
“Aluga-se uma escrava que lava e cozinha muito bem, por 20$
mensaes, com a condição de não sahir a rua, por se embriagar; na
rua S. Pedro da Cidade Nova n. 54.” 108
107
108
A partir de 1860 a cidade já começa disponibilizar de sistema público de abastecimento de água nas casas.
Jornal do Commercio, 16.03.1864, Terça-feira, n° 74.
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Os escravos de aluguel do sexo masculino destacam-se os “cozinheiros do trivial”
42% e “bom ou perfecto cozinheiro” 17%. Os “copeiros” correspondem a 18% das
atividades ocupacionais dos cativos anunciados. Serviços internos de uma casa
especificamente valorizados e ligados à gastronomia carioca, ou 77% dos serviços
desempenhados pelos cativos ofertados nos anúncios são para servir a mesa.
A relação dos escravos de aluguel como “os peritos cozinheiros” e sua ótima
rentabilidade no mercado em destaque com o preço entre 31$000 réis e 40$000 réis, um
escravo “bom pedreiro” a 32$000 réis:
“Aluga-se um preto moço, escravo, bom pedreiro, ou para qualquer
serviço, por 32$ mensais, na rua do senado n. 61. acima do
morro.” 109
E 3 anúncios com cozinheiros especializados aparecem supervalorizados a 35$000
réis mensais:
“Aluga-se, de casa de particulares, um escravo perito cozinheiro de
forno e fugão, massa e doce, muito humilde e asseiado, de conducta
afiançada, seu ultimo preço e 35$ pagos adiantados; para ver e
tratar, na rua da Quitanda n. 63.” 110
“Aluga-se tres bons escravos, sendo um bom cozinheiro por 35$, e
dous para todo o serviço menos despejos ou mascate, sabendo
tratar de animaes, a 26$ cada um; na rua do Espírito-Santo n.11.”111
“Aluga-se um escravo perfeito cozinheiro à franceza e à
portugueza, por 35$ por mez; na rua do ouvidor n. 57.” 112
109
Jornal do Commercio, 09.01.1864, Sabbado, n° 09.
Jornal do Commercio, 23.01.1864, Sabbado, n° 23.
111
Jornal do Commercio, 20.04.1864, Quarta-feira, n° 110.
112
Jornal do Commercio, 26.04.1864, Terça-feira, n° 116 e 29.04.1864, Sexta-feira, n° 119.
110
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O escravo ao ganho é predominante nos serviços de cargas e transportes na Corte,
na venda de quitutes, frutas, miudezas, barbeiros, sapateiros, carpinteiros, pedreiro,
marceneiros e outros. Luiz Carlos Soares relaciona na Tabela II (SOARES, 1988,p.140) as
atividades exercidas pelos escravos ao ganho, segundo as informações que os seus
senhores forneceram nos pedidos de licença para os seus escravos irem ao ganho
encaminhado à Câmara Municipal.113
Segundo Luis Carlos Soares, 96% escravos de ganho do sexo masculino não
tinham a sua atividade ocupacional declarada no pedido de licença, e provavelmente
estavam ligados as atividades que não necessitariam de muita especialização:
“(...) estes cativos fossem empregados em grande parte como
carregadores, pois como esta atividade não exigia nenhuma
especialização, apenas o dispêndio da força física, os senhores
simplesmente não declaravam as suas ocupações, inclusive porque
isso não era um procedimento obrigatório.” (SOARES, 1988,
p.116)
Apenas 5% ou 140 escravos ao ganho, tiveram sua atividades declaradas por seus
proprietários no período de 1851-1870. A maioria exercia atividades ocupacionais ligadas
a vendas: vendedores de café, carne, fazendas, frutas e legumes, artigos de armarinho, pão
e biscoito, peixe e calçados. E menos de 1% que tiveram suas atividades declaradas como:
“Ao ganho com cesto”, carregadores, cocheiro e serventes de obra.
Podemos identificar a partir das atividades ocupacionais dos escravos ao ganho a
diferenciação dos serviços executados pelos cativos. Se fosse possível aceitar que 95% dos
escravos que foram ao ganho exerciam atividades ligadas ao transporte na cidade do Rio
de Janeiro estaria estabelecida uma dicotomia entre os escravos de ganho e os escravos de
aluguel: ao primeiro os piores serviços, os mais labutares e pesados com os mais baixos
113
Documentação disponível no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
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rendimentos. O segundo os serviços de “portas a dentro” especializados e com os mais
altos rendimentos. Fácil, simples e economicamente lógico.
O curto período aqui analisado, o ano de 1864, nos revela uma tendência a indicar o
escravo de aluguel como investimento mais lucrativo que o escravo ao ganho dentro do
período pesquisado. A visão dos proprietários que viviam ou complementavam a sua renda
com jornais pagos pelos cativos, ao ganho ou de aluguel, é um fator que determina o
rendimento que os cativos forneciam versus a mobilidade cativa nas áreas urbanas.
Segundo Sidney Chalhub, “(...) uma das dimensões deste afrouxamento da “sujeição
dominical” no meio urbano era a adaptação do investimento em escravos às condições de
mercado.” (CHALHOUB,1990,p. 215)
Essas “condições de mercado” variam tanto para os escravos ao ganho que começa
a disputar serviços com pessoas livres – na maioria imigrantes portugueses –, quanto para
os escravos de aluguel anunciados que mesmo especializados em atividades ligadas a
gastronomia correm o risco de trabalhar nas plantações das freguesias rurais da Corte. As
negociações entre senhor e escravo passam pelas condições do mercado de escravos no Rio
de Janeiro e estariam extremamente ligadas as relações pessoais:
“(...) que a população escrava estava diminuindo devido a
mortalidade, a emigração para as regiões rurais, à alforria e à baixa
taxa de natalidade, os senhores buscavam outras fontes de mão de
obra, ou seja os imigrantes da Europa ou do resto do Brasil, tanto
cativos quanto livres.” (KARASCH, 2000 p. 477)
No meio desse declínio da escravidão urbana no Rio de Janeiro nos meados de
1860, com o número de cativos diminuindo ainda encontramos o mercado de escravos de
aluguel vivo e ativo; as alforrias sofriam aumentos significativos, entre 1860 e 1864 foram
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registradas 3.931114 das quais 58% eram gratuitas (FLORENTINO, 2002, p.19). Manolo
Florentino reconduz a discussão sobre o valor nominal dos escravos e a negociação das
alforrias:
“Cedo ou tarde a extrema valorização do escravo cobraria seu
quinhão, e a compra da liberdade perderia o passo. Assim é que,
entre 1840 e 1864, as alforrias compradas foram as que mais
declinaram. As cartas gratuitas
afirmaram a sua dominância para homens e mulheres de todas as
idades, independentemente da ocupação, da cor e da naturalidade.”
(FLORENTINO, 2002, p.20)
Sidney Chalhoub tempera o assunto sobre alforria com a conclusão que as alforrias
não são concedidas só por boas oportunidades de um grande negócio:
“(...) a resolução de comprar ou vender escravos e, principalmente,
a decisão de alforriá-los ou não envolviam certamente cálculos
estritamente econômicos. Mas frequentemente implicava também
avaliações afetivas e em considerações de segurança individual.”
(CHALHOUB,1990,p. 198)
Os anúncios de jornal nos fazem entender como a segunda fase de um processo de
decisão tomada pelo senhor ou pelo escravo tendo que encarar e “adaptando-se à
conjectura urbana”, teria seu começo durante uma crise financeira ou mesmo na ausência
do seu proprietário da cidade para uma longa viagem com sua família:
“Aluga-se, para casa de família capaz para os serviços de portas a
dentro, uma boa escrava, dando-se mais em conta por levar em sua
companhia um filho de 3 annos, com a expressa condição de não
sahir à rua por ser escrava de estimação de seus senhores, que estão
ausentes; trata-se á rua das Violas n.1, esquina, das 8 horas da
manha em diante.”115
114
115
Idem. p. 478. Tabela 11.12.
Jornal do Commercio 7.03.1864 Segunda-feira, n° 66.
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Formulada a estratégia senhorial de alugar o seu cativo para não deixar o mesmo
desprotegido e sem ter como se sustentar seria uma “escrava de estimação de seus
senhores” e que não poderia “sahir à rua”. Esse é um entre vários senhores que precisavam
ter alguma renda, e usavam o seu escravo para obter, e ainda diminuíam as despesas da casa
com alimentação e vestes do cativo e sua cria. E ainda em todo o caso não se desfazia do
seu escravo em momentos de dificuldade financeira ou viagens, mantendo assim aparente os
laços de afetividade e gratidão com o seu escravo.
Já estabelecemos uma estratégia pautada numa boa rentabilidade financeira e na
proteção e preservação do escravo a ser alugado por parte do seu senhor. Dos cativos
necessitamos entender o porquê aceitar ser alugado a outro senhor, prestar seus serviços à
outra casa.
Uma pista das mais valiosas foi o comentário feito pelo Cônsul português no Rio de
Janeiro em 1845 e que está nos Arquivos em Lisboa: “Segundo o cônsul português, as
lusitanas- geralmente originarias dos Açores – recusavam-se a aceitar o isolamento e a
submissão
característicos
dos
empregos
domésticos
exercidos
pelas
cativas.”
(ALENCASTRO, 1988, p.41)
Isoladas sem poder ir à rua? Ou separadas no árduo trabalho doméstico de cada dia?
Em vários anúncios a expressa determinação de não poder sair à rua isolava o cativo só da
cidade? Ou separava dos demais, trabalhando solitariamente no cotidiano de uma vida
familiar? As imigrantes portuguesas eram livres e não cativas, e se vieram para uma
sociedade essa sociedade era escravistas.
E dentro dessa estratégia dos escravos, e bem diferente dos imigrantes portuguesas
que depois receberam licença para retornar aos Açores, os cativos estabeleciam seus laços
para não ser vendidos ao eito, estabelecem uma rede de interação com outros senhores,
pretender a liberdade se possível através dos bons serviços prestados – sendo fiel, submisso
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e grato – pois a compra da alforria era nesse período muito pouco provável. Uma
autonomia bem repartida entre senhor/escravo:
Tendo não todos os escravos urbanos da cidade do Rio de Janeiro como objeto
mais delimitando no espaço e no tempo, vislumbramos que os grandes anúncios das
agências ou casas de aluguel de escravos foram direcionados aos períodos sazonais. Assim
como entre o tronco e a fuga a escravidão foi dinâmica, os anúncios de aluguel também se
dinamizaram.
A “válvula de escape” do sistema escravista, ou seja, a alforria, como diz Antônio
Carlos Jucá Sampaio, pressupunha a existência da escravidão, com a possibilidade de
alforriar alguém depende diretamente da possibilidade de se escravizar novos indivíduos
(SAMPAIO,2005,p. 310). O término desse fluxo de mão-de-obra cativa com o fim do
tráfico transatlântico em 1850, o elevado valor do preço do escravo, o tráfico para as áreas
da cafeicultura fluminense e paulista, o aumento das manumissões gratuitas, a expansão da
atividade mercantil e o crescimento da área urbana da corte foram determinantes na
tomada de decisão de mandar o cativo para o aluguel.
No quantum da população cativa (SAMPAIO,2005,p. 310) muito alterada em
comparação ao início do século XIX, tinha no mercado de escravos de aluguel, a
confluência constante na politização da relação senhor/escravo, a única estabilidade no
comércio de cativos. Lugar onde o escravo e seu proprietário corriam para o mesmo ponto
juntos: com o aluguel quase tudo poderia ser resolvido. As dificuldades do cotidiano, a
proteção senhorial, a disciplina e fidelidade cativa, a renda que vinha em boa hora, as
necessidade, os sentimentos, as gratidões, revoltas, castigos e fugas.
O mercado, que de um lado tinha proprietários e escravos disputando anúncio a
anúncio com libertos, livres e estrangeiros os serviços domésticos dos fogos da cidade. E
do outro um comércio licenciado das casas especializadas que cobrava seus 10 % a sua
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estabelecida clientela de bons senhores para intermediar os aluguéis de seus escravos com
grandes proprietários das áreas rurais da corte.
Assim o mercado de aluguel de escravos tinha uma lógica diferenciada entre
proprietários e agências. Os proprietários de escravos na cidade uma lógica: a de negociar
diretamente com seu bom e fiel escravo ou entregar e aceitar o intermédio de terceiros em
troca de boas garantias das agências. Um mercado cotidiano nos impressos do jornal tão
dinâmico pelas exigências quanto pelas soluções.
Referências Bibliográficas:
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Proletários e Escravos: Imigrantes portugueses e
cativos africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872. Revista Novos Estudos, N°. 21 – Julho
de 1988. pp. 30-55.
AMARAL, Rodrigo de Aguiar. Nos limites da escravidão Urbana: A vida dos pequenos
senhores de escravos na urbes do Rio de Janeiro, 1800-1860. Dissertação de Mestrado
UFRJ. Rio de Janeiro. 2006.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FERREIRA, Roberto Guedes. Autonomia escrava e (des) governo senhorial na cidade
do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. In: Tráfico, cativeiro e liberdade
(Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX) organização Manolo Florentino. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005.
FLORENTINO, Manolo. “Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas
de pesquisa.” In: TOPOI. Revista de História n° 5. Rio de Janeiro: PPGHIS/ 7 Letras,
2002, pp.9-39.
___________________. Tráfico, Cativeiro e Liberdade. (Rio de Janeiro, século
XVIIXIX)/organização Manolo Florentino. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
GÓES, José Roberto. Escravos da Paciência. Estudo sobre a obediência escrava no Rio
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de Janeiro (1790-1850). Tese de Doutorado. PPGHIS-UFF. Niterói:UFF, 1998.
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Companhia das Letras, 2000.
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá. “A produção da liberdade: padrões gerais das
manumissões no Rio de Janeiro colonial, 1650-1750.”pp. 287- 329. In: Florentino,
Manolo (org.), Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX). Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
SOARES, Luiz Carlos. “Os Escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX”.
Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol. 8, n°16, março de
1988/agosto de 1988.
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Teorias no espelho: as máscaras – Análises entre O Labirinto da Solidão e o
Espelho de Próspero
Daiana Pereira Neto116
RESUMO: O tema do presente trabalho são as máscaras que encobrem o povo mexicano e
o norte-americano, máscaras formadas historicamente, que se caracterizam aqui no sentido
psicológico e cultural. Como principais instrumentos para analisar essas máscaras,
utilizamos o “Labirinto da Solidão” de Octavio Paz, ensaísta mexicano, e “O Espelho de
Próspero”, de Richard Morse, historiador norte-americano.
PALAVRAS- CHAVE: Máscaras, Octavio Paz, Richard Morse.
ABSTRACT: The theme of this work are the masks that hide the Mexican people and
North American, masks formed historically, characterized here in the psychological and
cultural sense. The main instruments used are “O Labirinto da Solidão”, by Octavio Paz,
Mexican essayist, and “Prospero’s Mirror”, by Richard Morse, North American historian.
KEYWORDS: Masks, Octavio Paz, Richard Morse
As funções de uma máscara são várias: proteger, esconder, liberar, transformar, e
esconder a identidade de quem a usa. As expressões nas máscaras são muitas, elas podem
ser risonhas, malignas, diabólicas, mas sempre são obras de arte. Muitas dessas
características são encontradas nas máscaras do México.
A cultura mexicana cobre-se de máscaras. No presente trabalho buscaremos
trabalhar com as máscaras apresentadas no sentido de Octavio Paz, máscaras psicológicas,
116
Graduanda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
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de caráter e de cultura. Buscaremos através do presente texto identificar as máscaras do
povo mexicano e do povo norte-americano, tendo como principais instrumentos para essa
análise “O Labirinto da Solidão”, de Octavio Paz e “O Espelho de Próspero”, de Richard
Morse.
Em “O Labirinto da Solidão”, nos deteremos mais nos capítulos iniciais: “O
Pachuco e outros extremos”, “Máscaras mexicanas”, “Todos os Santos”, “Dia de Finados”,
“Os Filhos da Malinche”. E para apresentar as máscaras norte-americanas nos deteremos
na terceira parte do livro de Morse.
Buscaremos assim compreender as máscaras que esses povos carregam, usando-as
para protegerem-se de um mundo de solidão, as máscaras que encobrem o verdadeiro eu
dessas sociedades. Como afirma Paz, o “Labirinto da Solidão” foi um exercício da
imaginação crítica, o que verdadeiramente o intrigava era o que estava por trás da máscara.
Uma máscara que representa uma muralha para encobrir do olhar alheio, e ao mesmo
tempo é uma máscara que o expressa e o sufoca. O homem é inseparável de suas ficções e
enquanto vivemos criamos uma máscara para nós. Se é possível descobrir o que há por
baixo da máscara, não sabemos, mas tentar compreender um pouco mais dessa realidade
humana é sempre algo válido.
1-A falsa face: Festas, amores e religião em um universo ìbero-americano
Ao nos encontrarmos com o universo mexicano apresentado por Octavio Paz, nos
deparamos com um universo de cores, medos, máscaras e explosões de sentimentos. O
mexicano é um ser complexo, que manifesta sua personalidade em diversas situações.
As máscaras do mexicano se estendem a quase todas as suas relações com seu
próximo. Ele não teme ser usado pelo outro, mas se abrir, deixar a sua solidão. Diante da
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simpatia, da doçura, do amor, a resposta do mexicano é a reserva. Como a maioria dos
povos ele encara a vida como luta, mas ao invés de atacar, fica na defensiva pronto para
repelir o ataque.117
Seu caráter fechado expressa-se nas suas artes, nos seus amores. As artes mexicanas
tem um apelo a forma, a métrica na poesia, por exemplo. Essa forma por várias vezes vai
sufocar esse povo. Para evitar de propor coisas novas, o que uma sociedade realmente livre
propõe e permite, o mexicano vê no seu tradicionalismo um refúgio uma proteção diante
do mundo ao qual parece não pertencer. O excesso de cortesia, o excesso de rituais e
etiquetas, são uma forma de demonstrar esse amor a forma, e ao isolamento.
O mexicano não teme ser humilhado, tem na resignação uma de suas maiores
qualidades. Ele teme simplesmente se abrir para o mundo. Para Paz, a mentira do
mexicano não destina-se a enganar o outro, mas a si mesmo isso seria o que o diferencia
dos outros povos. A mentira mexicana é fértil, e a simulação é tanta e tão refinada e
recriada constantemente, que a mentira acaba se misturando com a verdade e ao final do
jogo, não se consegue mais a diferença entre ambas.
Ao analisar a diferença entre o ator e o simulador, Paz defende que o ator após
entregar-se a personagem e interpretar em sua apresentação do outro ser, abandona-o e
volta a ser ele mesmo. O simulador tem uma necessidade constante de simular, o seu
personagem fundi-se a ele, e não parará de simular até o fim de sua vida, a cumplicidade
entre simulador e personagem não pode ser quebrada.
O mexicano dissimula, e quem dissimula procura se esconder e se fechar, não
permitir que o outro o veja. O mimetismo do mexicano demonstra seu horror as aparências,
ele dissimula tanto que acaba se fundindo com os objetos que o cercam. Basicamente
ignora a sua existência, e busca ser ninguém.
117
PAZ, Octavio. O Labirinto da Solidão e Post Scriptum. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1984.
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As festas segundo Paz são o momento em que o mexicano expõe todos os seus
sentimentos, são um momento de explosão. Por isso o calendário mexicano é repleto de
feriados, e grande parte do orçamento de municípios pobres são gastos com as festas. Ao
contrário do que parece, as festas são o único luxo dessa sociedade, o mexicano não quer
se divertir ele quer se arrebatar, ultrapassar os seus limites, e pular o muro da solidão que o
isola durante todo o ano. Se eles esquecem de si mesmos e mostram a verdadeira face não
há como saber. O que se sabe é que numa explosão de cores, sons e cheiros ele se vê
envolto pelo arrebatamento e pela violência. As festas são o contrário do silêncio e da
resignação do mexicano. Festa é participação é encontro com o outro, embora possa-se
pensar que seja um desperdício dos recursos acumulados penosamente durante um longo
tempo. A festa é para Paz uma revolta, na qual a sociedade se dissolve, e imerge
completamente em uma dose de vida pura, livre das normas sufocantes, é o momento em
que o mexicano ri de si mesmo de sua sociedade, da etiqueta, da religião e de seus deuses.
A festa mexicana é fonte de criação de força. Ao contrário das festas modernas
individualizantes, a festa mexicana com seus ritos, faz com que as pessoas comunguem
entre si e que se encontrem na confusão original. Graças as festa o mexicano comunga com
seus semelhantes, e encontra o sentido para sua tendência religiosa ou política. Se na vida
cotidiana o mexicano se esconde, nas festas ele se abre. O mexicano só conhece, a
confusão, a canção e o delírio, diálogo ele não conhece e não busca conhecer.
Enveredando mais pelo labirinto de Paz temos, os filhos da Malinche, o mexicano
tem o sentimento de ser o filho da xingada, diferentemente do que imaginamos com a
nossa expressão, “filho da puta”, a xingada no México corresponde a figura feminina
passiva que sofre ação de um ser ativo, masculino e que então é abandonada a sua sorte.
Ser o filho da mãe violada faz com que o mexicano envolva-se cada vez mais na sua
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máscara de solidão, ele seria o fruto de uma violação, da passiva entrega da mãe, e da ação
violenta do pai.
2- As máscaras Anglo-americanas- Morse e as aparências de uma sociedade
perfeita
Morse em “O Espelho de Próspero” busca mostrar uma América latina, onde a
Anglo-América possa se espelhar e enxergar suas enfermidades e defeitos. Não busca
mostrar a Ibero-América como uma parte do continente ultrapassada e vítima de uma
colonização que não teria dado certo.
Destacamos para essa pequena análise a terceira e última parte do livro, a “Sombra
do Porvir”, acreditamos que aqui o autor deixa transparecer um olhar sobre a sua própria
sociedade que nos permite identificar um Estados Unidos da América, como não havíamos
nos deparado tão claramente e de maneira tão inteligente antes.
Embora Morse não se refira a máscaras, tão claramente quanto Paz, podemos
enxergar elementos de subterfúgio nos norte-americanos. A organização da sociedade se
estrutura de modo que ninguém esqueça o seu lugar no jogo. Nos encontramos assim em
uma sociedade de massa onde o indivíduo perde-se em meio a um mundo complexo onde é
descaracterizado, cobrado e confundido.
Vemos um ser maquinizado. O exemplo da guerra é claro, o norte-americano vê na
guerra um negócio como outro qualquer, mantém-se psicologicamente longe do outro. A
piedade e a compaixão tornam-se desonrosas. Daí um norte americano não ter a capacidade
de sentir pena de um mendigo, este é visto como um incapaz.
A massificação dessa sociedade cria uma falsa individualidade em estilo de vida e
improvisações. O ser individual encontra-se dividido entre a vida pública e a vida privada.
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Cabe aqui exemplificar com a música, da forma como é vista por Morse, segundo ele o
indivíduo em uma danceteria, não estaria experimentando algo coletivo, cada um escuta a
música e da-lhe a percepção que deseja, o jazz, o rock, o country norte -americanos
condenam o indivíduo ao isolamento e a impotência. Estamos em uma sociedade em que
dizer “eu” é quase um impropério, estamos no mundo do “nós”. Esse isolamento Morse
compara ao samba carioca, uma escola vibrante. Por sua vez, nos remeteremos as festas
mexicanas, como vemos as festas anglo-americanas, se opõe a idéia da festa mexicana
demonstrada por Paz, são o lugar onde falsamente o indivíduo pensa estar participando de
alguma coisa. A festa mexicana é participação, é um mergulho na vida.
Assim como o mexicano se esconde o americano, mostra-se como um ser
espontâneo, simpático. Na verdade ele se relaciona com os outros sem entregar nada de si.
Seria então, a máscara anglo-americana tão próxima da máscara mexicana, a diferença está
em que o mexicano faz de tudo para não ser visto. O estadunidense ao contrário tenta ser
visto, entre o abismo de sua vida pessoal e pública, confronta-se com um casamento
amargo, e com a solidão que o devora, e o coloca em luta consigo mesmo e com os demais.
Enquanto o mexicano de Paz mantém uma série de rituais e fórmulas para se
relacionar com o outro, o americano estabelece uma objetividade que pensa eliminar a
distância entre as pessoas, tratam-se pelo primeiro nome como íntimos, e essa erosão da
etiqueta, esta objetividade revela o caráter doentio dos contatos. Uma sociedade em
desespero que busca, portanto, manter o indivíduo sob controle.
Segundo Morse, essa situação foi fruto da trajetória do liberalismo. Enquanto os
beneficiários do sistema eram uma minoria privilegiada, a segurança cumpriu as
expectativas. Mas quando se estendeu aos outros, o indivíduo tornou-se um ser de ego
encolhido, e que esqueceu os usos intelectuais de outrora. Esse novo ser se esconde imerso
em grupos, de amigos, de interesses, sindicatos, terapias. Se tornou um ser solitário.
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A indústria cultural norte-americana, que vemos se espalhar pelo mundo e chegar
até o Brasil, segundo Morse é uma publicidade massificante que transmite a mensagem de
que o indivíduo deve resignar-se a ser vítima e a sofrer violências. As séries mostram
situações limite, como monstros tidos como mais normais que humanos.
Estão em um universo que oferece resposta para tudo, e uma vez existindo essas
respostas, a pessoa perde sua individualidade. É impedido de se expressar, de
compreender, submetido a humilhações cotidianas, e por fim sucumbe a fúria, que dirige a
alvos substitutos, e tornam-se meramente mais um problema a enfrentar. Ele é assim
liberado da culpa e da responsabilidade por seus atos. A essa visão de Morse, podemos
ilustrar, com os atentados cometidos por jovens norte-americanos a suas escolas e
faculdades. Eles sucumbem a fúria contra um sistema escolar despersonalista.
A sociedade protesta contra a corrupção do governo, mas não contra as regras do
jogo. O que segundo Morse, faz com que todos o norte-americanos pareçam iguais para os
latino americanos. O que interpretamos é que o norte-americano possui a certeza, o
sentimento de fazer parte da administração, que sua opinião importa, por isso, seu protesto
dirige-se contra uma figura única, contra o presidente, contra a corrupção, mas não contra
o sistema. Esse sentimento não é compartilhado pelos sul-americanos, a frase: “você sabe
com quem está falando?” ainda povoa essas áreas, temos a consciência de que o poder é
para poucos.
A sociedade anglo-americana é uma sociedade desencantada. Embora a América
Latina seja tomada como ultrapassada, parada no tempo, importadora de tradições, é nas
artes latinas que vemos a necessidade dos artistas em criarem um universo encantado do
qual sejam o centro e não a periferia, referimo-nos ao chamado “realismo maravilhoso”118.
118
Para saber mais ver: MORSE, Richard. A volta do Mchuhanaíma. São Paulo: Cia. Das Letras, 1985.
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Ao lermos Morse compreendemos que a máscara do anglo-americano é uma
máscara, de máquina, o ser é programado pelas universidades, no trabalho, na sua vivência
cotidiana, e tem a ilusão de ser o centro do mundo, se não são perfeitos, pelo menos se
contentam com a idéia de serem o melhores que existem.
Ao chegarmos nesse ponto acreditamos ser plausível, inserir o pensamento de
Vasconcelos, em sua La Raza Cósmica. Vasconcelos defende, que os ibero-americanos são
o povo que tem a maior capacidade de criar algo novo. Ao tornarmo-nos independentes
muitos dos latinos desejaram pertencer ao mundo anglo, desejaram ter sido colonizados
pelos ingleses. Os norte-americanos segundo o autor nunca perderam a idéia, o ponto fixo
no horizonte, de que eram parte fundamental na história, de que possuíam um destino de
constituírem um império para supostamente trazer liberdade para todos os povos, a
liberdade norte-americana. A América Latina é um lugar de uma grande diversidade, um
mundo ainda encantado, que segundo Vasconcelos possui uma missão muito maior, a
missão de criar a raça única.119
3-As máscaras e a solidão: Distinções entre as máscaras e a solidão mexicana e
norte-americana
Para Paz “a solidão é sentir-se só e saber-se só, desligado do mundo e alheio a si
mesmo, separado de si, e não é característica exclusiva do mexicano”. O homem é o único
ser que se sente só, sua natureza consiste em aspirar e se realizar em outro. A comunhão
com o outro e a plenitude da união é o que espera o mexicano e todos os homens no fim do
labirinto da solidão.
119
VASCONCELOS, José. La Raza Cósmica. Essa versão digital segue a versão de Buenos Aires, EspasaCalpe, 1948. Disponível em:<http://ensayo.rom.uga.edu.antologia/XXA/vasconcelos>Acesso em: 15 de
outubro de 2009
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A história do mexicano é uma contínua busca por si mesmo, neste ensaio Paz vê a
história do México como uma tentativa de recuperar a origem e a tradição e,
conseqüentemente, a identidade. Tenta refazer o caminho perdido para encontrar sua
identidade e a identidade do México, o “outro eu” escondido sob a máscara. Saindo assim
da solidão que os sufocam a tanto tempo. Sucessivamente afrancesado, hispanista... o
mexicano quer voltar a ser sol, a ser o centro de vida de onde um dia foi arrancado. A
solidão mexicana é assim um sentimento de orfandade e uma contínua busca por
restabelecer os laços coma criação.
Um detalhe muito interessante é o fato de Octavio Paz ter escrito “O Labirinto da
Solidão”, quando de sua primeira estada nos Estados Unidos. Isso permitiu a Paz, perceber
as distinções entre as máscaras dos norte-americanos e sua solidão, das máscaras e da
solidão do mexicano.
Para Paz, o norte-americano encontra-se em um mundo que tem seu sentimento de
solidão, extraviado em um mundo abstrato povoado por máquinas, concidadãos e preceitos
morais. Nada mais afastado do sentimento mexicano que o do norte-americano, ele não
sente ter sido arrancado do centro, ele é o centro, o mundo foi feito a sua imagem, como
um espelho. Porém esses espelhos, também já não fazem com que o norte-americano se
encontre, está só entre um mar de espelhos que os oprimem.
Como Morse, Paz afirma que ao chegar aos Estados Unidos, assombrou-se com a
aparente segurança, confiança, alegria e conformidade das pessoas. As críticas dos norteamericanos são críticas reformistas. Assim como enxerga Vasconcelos, Paz afirma que eles
se sentem uma sociedade forte, que irão realizar seus ideais e sobreviver a um futuro
ameaçador para todos os homens.
Para Octavio, os norte-americanos vêem o mundo como algo que pode ser
aperfeiçoado, para o mexicano é algo que pode redimir. Ao contrário do norte-americano o
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mexicano acredita na comunhão e na festa. O forte catolicismo mexicano também é união.
O norte-americano só deseja enxergar a parte positiva da realidade, desde a infância são
submetidos a um processo de adaptação, seus princípios são repetidos em todas as partes
do país, na imprensa, na rádio, nas escolas, nas igrejas, e por suas mães e esposas. Presos
nesse esquema o homem e a mulher não crescem, o sistema os sufoca.
Semelhante sufocação só pode produzir rebeliões individuais. A espontaneidade
tem de se vingar e aparecer de alguma forma, a máscara benevolente, atenta e sem
expressão, substitui a mobilidade de expressões do rosto humano, eles estão sob a máscara
da mecaniquicidade. A máscara que fixa dolorosamente o sorriso humano mostra como é
doloroso a vitória dos princípios sobre os instintos. Talvez, como afirma Paz, o sadismo de
quase todas as relações americanas, seja apenas mais uma forma de fugir a petrificação que
a máscara da pureza impõe.
Nem o norte-americanos nem o mexicanos conseguiram obter uma reconciliação
com o todo, com o universo. Todavia a diferença é a de que a solidão do mexicano é a das
águas paradas e a do norte-americano é a solidão do espelho. Nenhuma das duas
sociedades é para Paz uma fonte. Nenhuma é auto-suficiente, ambas precisam do outro
para se completar e para não serem sós.
Considerações Finais
Ao tentarmos entender as máscaras que encobrem a solidão dessas duas sociedades,
buscamos demonstrar como sociedades tão aparentemente opostas podem se sentir e serem
sós. E como as análises de Octavio e Morse, podem se complementar.
Paz afirma que sua preocupação em “O Labirinto da Solidão” não foi o caráter
nacional do mexicano, mas o que estaria por debaixo desse caráter, o que a máscara
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escondia. Não estava preocupado em definir o mexicano, mas em realizar uma crítica sobre
esse ser que esta sempre em busca de seu verdadeiro ser, que subjaz imerso sobre a
máscara sufocante do cotidiano.
Ao lermos Morse, temos um deslumbre de uma sociedade desencantada,
mecanizada. Vale transcrever um trecho da conclusão do livro de Morse:
“... cabe pensar se alguma recompensa, ou até mesmo uma incerta
liderança mundial, não está reservada a um povo que conserve a
capacidade de visualizar e refletir sobre sua própria condição, a um
povo que, no espírito de Vitória e Suaréz, consiga enxergar uma lei
natural para o mundo em sua diversidade, ao invés de defender, no
espírito de Hobbes e Locke, uma forma mecanicamente repetitiva
de direitos naturais egocêntricos”.120
Os Estados Unidos da América precisam aprender a dialogar com o outro e só
poderão fazer isso quando começarem a dialogar consigo mesmos. Segundo Octavio Paz,
sorridentes ou coléricos, com a mão aberta ou fechada, os Estados Unidos não ouvem nem
olham o mexicano; mas andam e andando invadem suas terras e os esmagam, o puritano
fala com Deus e consigo mesmo, mas não fala com o outro. Se sobressaem eloqüentemente
em seu monólogo.
Quando Paz escreveu esse ensaio, se manifestava nos Estados Unidos uma
poderosa corrente de opinião, que colocava em discussão as crenças e os valores bases da
civilização norte-americana. Para Octavio os estadunidenses só poderão dialogar com o
mexicano ou com qualquer outro povo, quando conseguir dialogar com sua outridade:
negros, “chicanos”, e com seus jovens. Talvez o primeiro passo para esse diálogo foi dado
de modo decisivo no ano de 2008, pela primeira vez na história estadunidense, vimos um
candidato negro ser eleito para a presidência. Talvez as máscaras comecem a cair.
120
MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero: cultura e idéia nas Américas. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988. p.164.
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Pesquisas afirmam que Barak Obama recebeu 63.589.985 votos populares (51% do
eleitorado), 349 votos no Colégio Eleitoral contra 162 para seu adversário republicano.
Conquistou estados-chave como: Pensilvânia, Florida, Ohio, Colorado, New Mexico121 . O
desejo por mudança se expressa nessa nova geração.
Para Paz pela primeira vez na História, o objeto de reflexão do mexicano não é
diferente da de outros povos: como criar uma sociedade, uma cultura que não negue a
humanidade nem a transforme em uma abstração vã. Para ele o mexicano, assim como o
norte-americano, ainda não encontrou o que venha a reconciliar sua liberdade com a
ordem, a palavra com o ato, e ambos com uma evidência que seja humana. Como todos os
homens modernos, o mexicano vive em uma sociedade de simulação, da solidão fechada,
que defende e oprime, da máscara que esconde desfigura e mutila. Se o mexicano arrancar
a máscara e se abrir, se enfim se enfrentar, começará a viver e a pensar de verdade. Quando
vencer essa solidão e arrancar as máscaras sairá do labirinto sufocante e sombrio
Para finalizar, inserimos a nossa reflexão um pequeno poema de Paz:
Hermandad
Homenagem a Claudio Ptolomeu
Soy hombre: duro poco
y es enorme la noche.
Pero miro hacia arriba:
las estrellas escriben.
Sin entender comprendo:
también soy escritura
121
MARTINS, Marília. Obama nomeia líderes para seu time de transição. In__Diário de Nova York.
Disponível em<www.oglobo.globo.com/blogs/ny> Acesso em 15 de novembro de 2008.
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y en este mismo instante
alguien me deletrea.122
No fim das contas todo os homens duram pouco, mas todo homem possui o dom de
ser escritura, de ser uma linguagem universal. O céu é o mesmo para todos os homens.
Nenhum ser humano é uma ilha e é no outro que nos encontramos para deixar de sermos
sozinhos e nos entendermos, é o outro que nos soletra.
Referências Bibliográficas:
AGUIAR. Maria Alice. Um Diálogo com o Labirinto da Solidão e Post Scriptun de
Octavio Paz. Anais do 2 Congresso Brasileiro de Hispanistas, outubro de 2002.
Disponível em: <www.scielo.com > Acesso 20 de outubro de 2009.
CORREA, Ana Maria M. A Revolução Mexicana. São Paulo: Brasiliense, 1984.
KARNAL, Leandro.
Contexto, 2001.
Estados Unidos: A Formação da Nação. São Paulo: Editora
MONTEIRO, Pedro Meira. As Raízes do Brasil no Espelho de Próspero. IN__: Novos
Estudos- CEBRAP, nº 83. São Paulo: março de 2009.
MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero: cultura e idéia nas Américas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
PAZ, Octavio. O Labirinto da Solidão e Post Scriptum. Rio de janeiro: Paz e Terra,
1984.
122
Este poema está disponível em:< www.antoniomiranda.com.br /México /Poesia /OctavioPaz.htm>
Acesso em : 20 de Outubro de 2009.
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REYES, Alfonso. "Notas sobre la inteligencia americana". Disponível em:<
http://ensayo.rom.uga.edu/antologia/XXA/reyes/> Acesso em: 15 de outubro de 2009.
VASCONCELOS, José. La Raza Cósmica. Essa versão digital segue a versão de Buenos
Aires,
Espasa-Calpe,
1948.
Disponível
em:<http://ensayo.rom.uga.edu.antologia/XXA/vasconcelos>Acesso em: 15 de outubro de
2009.
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Os “Povos Selvagens” e um novo modo de existir: relações de compadrio
na Freguesia de Rio Pomba.
Daiana Lucas Vieira
RESUMO: Neste trabalho, vamos tratar da questão do apadrinhamento dos indígenas
aldeados inseridos no processo de cristianização durante a segunda metade do séc. XVIII
em Minas Gerais. Para tal, serão analisados os registros de batismo da Freguesia do Mártir
São Manuel dos Sertões do Rio da Pomba e Peixe dos índios Croatos e Cropós de 1767 a
1800. Assim como, as obras que se dedicam a discussão da questão indígena no Brasil, e as
que se referem às possíveis estratégias sociais forjadas na escolha dos padrinhos de
batismo. Destarte, pretendemos corroborar a idéia de que foram adotadas estratégias pelos
indígenas, lógicas ou naturais, que podem ser reveladas por meio de um estudo mais
detalhado dos indivíduos envolvidos nas cerimônias de batismo.
PALAVRAS- CHAVE: Apadrinhamento, indígenas, laços sociais.
ABSTRACT: On this work we are going to discuss the issues of tribal indigenous people
supporting, which were included in the process of Christianization during the first half of
the XVIII century in the state of Minas Gerais, Brazil. For that, Croatos and Cropós
indigenous baptism registries, which were made in Freguesia do Mártir São Manuel do Rio
Pomba e Peixe, will be analyzed between the years of 1767 and 1800. This is going to be
dealt with according to the pieces of work dedicated to discuss the indigenous issues in
Brazil and to the ones which were dedicated to discuss the possible forged strategies of

Gradunda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista de iniciação científica da
FAPEMIG ligada ao projeto “Nobres e Principais desta Terra(...)” desenvolvido pela Prof. Doutora Carla
Maria Carvalho de Almeida. E-mail: [email protected]
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choosing a Godfather for these indigenous. Firstly, we intend to corroborate the idea of
logical or natural strategies created by the indigenous. Such strategies can be revealed
through more detailed studies of individuals involved in the Christian baptism ceremonies.
KEYWORDS: Godfather, indigenous, social connections
Este trabalho tem como objetivo enfatizar as mais diversas formas de estratégias
dos envolvidos na cerimônia de batismo reveladas através da análise dos envolvidos nesta,
assim como o perfil de padrinhos e dos pais do batizando, dentre outras questões
pertinentes ao tema. Visando aperfeiçoar o conhecimento sobre os povos indígenas e as
relações existentes entre os membros presentes nos aldeamentos. Assim como, contribuir
para os debates e novas reflexões acerca do tema que por muito tempo foi objeto de
resistência entre os historiadores.123
Buscando entender as estratégias de resistência, associação e as relações forjadas
pelos indígenas, de modo racional ou irracional, com os índios de outra etnia, escravos,
agregados, proprietários de terras, missionários e demais membros do aldeamento.124
Tentaremos observar as características presentes no ato do compadrio referente à Freguesia
do Mártir São Manuel dos Sertões do Rio da Pomba e Peixe dos índios Croatos e Cropós.
Com tal finalidade, são analisados os registros de batismo da freguesia em um recorte
temporal de 33 anos, de 1767 a 1800.
123
Sobre este debate historiográfico ver; MONTEIRO, John M. TUPIS, TAPUIAS E HISTORIADORESEstudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese Apresentada para o Concurso de Livre Docência.
Campinas, agosto de 2001. Pag. 1-235.
124
A respeito das associações forjadas por indígenas veja-se: GARCIA, Elisa Frühauf. Quando os índios
escolhem os seus aliados: as relações de “amizade” entre os minuanos e os lusitanos no sul da América
portuguesa (c.1750-1800). VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 24, nº 40: p.613-632, jul/dez 2008;
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003; RESENDE, Maria Leônia Chaves de. “Brasis
Coloniales: o gentio da terra em Minas Gerais setecentista (1730-1800)”. p.1. Disponível em:
<http://lasa.international.pitt.edu/Lasa2001/ChavesdeResendeMaria.pdf> Acessado em: 30/06/09.
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Para entendermos o funcionamento deste aldeamento que possui além das
características comuns aos aldeamentos da segunda metade do século XVIII as suas
particularidades se faz necessário inseri-lo em seu contexto histórico.
Durante o auge da exploração do ouro permaneceram desconhecidas as “Áreas
Proibidas” dos sertões de Minas Gerais, até o declínio deste em Mariana e Ouro Preto. Os
sertões do leste de Minas Gerais ficaram conhecidos como “Áreas Proibidas” devido ao
controle exercido pela coroa, que pretendia evitar o aumento da comunicação entre as
capitanias mantendo as matas e os indígenas como obstáculos para o extravio de ouro e
possíveis invasões.
Todavia, mesmo com as medidas da coroa alguns homens tentaram penetrar nestas
terras em busca de ouro ou terras, porém estes não obtiveram êxito. Com o declínio da
mineração tornou-se necessário a incorporação de novas terras agricultáveis. Somado a
esta necessidade temos a criação do diretório Pombalino que tinha em vista aldear os
índios incentivando a miscigenação, utilizando destes para a ampliação das fronteiras,
conferindo aos índios direitos e deveres, dentre outras coisas mais, que faziam “parte da
política assimilacionista que apesar dos esforços não vingou”.125
Neste contexto surgem as primeiras bandeiras e entradas rumo ao leste de Minas
Gerais e é criado o Aldeamento da Freguesia do Mártir São Manoel. Em 1765 D. Luis
Diogo Lobo da Silva
Informou ao rei os gastos operados com o gentio da Pomba que
encontrou. O Rei aprovou tais despesas realizadas pelo governador,
pelas boas informações do “sítio” do qual vieram os nativos para
“estabelecer alguma negociação pelos rios acima”, além de
125
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios Aldeados no Rio de Janeiro Colonial- novos súditos
cristãos do império português. Campinas, SP. Tese (doutorado), 2000. Pag. 175.
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recomendar a aplicação de todos os meios necessários para
“estabelecer com os mesmos índios povoações civis”.126
Assim sendo, o governador se dedica em aldear o gentio Cropó e Croato dos Matos
do Rio da Pomba e do Peixe cumprindo as ordens da coroa.
Segundo Roberta Monteiro “no ato do batismo, a figura do padrinho representa
uma espécie de “pai espiritual” do batizando, assumindo o papel de representante da
criança na cerimônia, seu guardião e protetor em potencial”
127
. Ao padrinho era dada,
teoricamente, a função de “ensinar a doutrina cristã e os bons costumes ao afilhado e a
madrinha representava uma auxiliar na criação do afilhado, uma segunda mãe para a
criança.”.128Assim sendo, esta deveria ser uma escolha bem pensada visto que esta era a
escolha de um “parente espiritual”.
Devemos nos atentar ao fato de que a sociedade de Antigo Regime era regida pela
lógica da graça e mercê onde os laços criados poderiam ajudar a definir o posicionamento
e a função que seriam incumbidas a cada indivíduo. Precavidos desta lógica podemos notar
a importância que uma possibilidade de ampliação de laços, como oferecia a relação de
compadrio, adquiria na sociedade colonial.129
Como bem destaca Maria Regina Celestino, os índios atribuíam aos “rituais dos
padres seus próprios significados”. A autora cita o exemplo dos índios do Pará que
“pediam batismo todos os anos, escolhendo o padrinho com antecedência e quando não os
126
PAIVA, Adriano Toledo. “Pelas águas do batismo: A Freguesia de São Manoel da Pomba e a
civilização do gentio”. Anais do Primeiro Colóquio do LAHES. Juiz de Fora, 13 a 16 de Junho de 2005. Pag.
2.
127
MONTEIRO, Roberta Ruas. Compadrio de Escravos no Rio de Janeiro Setecentista. Anais do XIII
Encontro
de
História
AnphuRio.
Pag.
2.
Disponível
em:<http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1212953674_ARQUIVO_Compadriodee
scravos_anpuh.pdf >.Acessado em:10/10/09
128
Ibidem.
129
Idem. Pag. 3.
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conseguia em uma freguesia, iam para outra em busca de novos padrinhos que lhe dariam
novos presentes”.130
No momento em que os indígenas passam a conviver com pessoas inseridas em
uma cultura diferente da sua, eles acabam por estabelecer “novas praticas culturais e
políticas que manejavam em busca de seus interesses que igualmente se alteravam.” 131
Segundo Ricardo Batista de Oliveira “a descrição sobre povos indígenas ora
apresentadas não refletem precisamente a situação em que estes se encontravam”.132
Motivados por esta inconsistência das análises existentes cruzamos alguns dados presentes
nos registros de batismo que esperamos que possam vir a contribuir com as novas reflexões
“acerca da
inserção
de
diferentes
grupos indígenas
no
interior
do
espaço
colonial”133.
Tabela I
Condição social dos padrinhos segundo a legitimidade dos batizandos,
freguesia do Rio da Pomba, 1767-1800
CONDIÇÃO DO PADRINHO
B
ATIZANDO
Le
A
gregado
A
lferes
0
C
apitão
8
scravo
1
gitimo
5
Na
0
E
0
orro
4
3
1
2
ALMEIDA, Op. Cit. Pag.146.
ALMEIDA, Op. Cit. Pag.34.
132
OLIVEIRA, Ricardo Batista de. Povos Indígenas e Ampliação Dos Domínios Coloniais: resistência e
associação no Vale do rio Doce e Zona da Mata, séculos XVIII e XIX. Tese de Mestrado. UFOP, Mariana.
Maio de 2009. Pag.1-150
133
MONTEIRO, John M. Op. Cit.
131
95
3
51
0
130
N
ão Consta
2
3
tural
F
8
1
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Nã
1
1
2
8
3
o Consta
3
4
3
5
48
Fonte: Livro de batismo da Freguesia do Rio da Pomba.
Tabela II
Condição social das madrinhas segundo a legitimidade dos batizandos,
freguesia do Rio da Pomba 1767-1800
CONDIÇÃO
DA
MADRINHA
B
ATIZANDO
A
gregada
Le
Í
ndia
E
scrava
0
1
gitimo
orra
3
2
Na
0
0
F
N
ão Consta
5
3
81
9
tural
3
8
4
Nã
2
0
o Consta
6
3
98
Fonte: Livro de batismo da Freguesia do Rio da Pomba.
De acordo com as tabelas acima devemos primeiramente destacar o fato de um
grande numero de padrinhos e madrinhas não terem sua condição social registrada.134
Como a maioria desta população era composta por indígenas que ainda não tinham uma
condição social estabelecida, muitos foram incorporados as fazendas ou trabalhavam em
134
As principais informações destes registros de batismo foram agrupadas em um banco de dados feitos por:
CARRARA, Ângelo Alves. Estruturas demográficas em áreas de fronteira; a freguesia de Rio Pomba.
Mariana: Departamento de História/UFOP, 2002 (relatório de pesquisa).
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roças de subsistências criadas pelo Padre Manuel de Jesus Maria, a condição social destes
ainda não estavam, ou, ficavam difíceis de serem definidas. Ainda temos a possibilidade de
uma necessidade de omissão da condição social devido a diversos fatores e finalidades,
como por exemplo, a escravidão indígena e a tentativa de uma dissolução da etnia índia em
meio aos registros de batismo.
Os agregados, reconhecido como tal pelos registros, aparecem apadrinhando treze
batizandos que não tem sua legitimidade registrada. Destes, doze são de etnia índia. Os
agregados escolhiam para seus filhos e para si mesmo, já que oito destes batizandos eram
adultos, padrinhos de condição social igual a sua. Fortalecendo, assim, laços de
companheirismo e amizade já existentes entre os agregados as fazendas. Como a etnia
destes padrinhos não é registrada não podemos afirmar que foram estabelecidos laços
étnicos, mas sim social. Estes dados ainda nos mostram a incorporação da mão de obra
indígena as fazendas.
Outro fato interessante, é que até na escolha destes padrinhos agregados
encontramos alguns mais condecorados como o casal João Alves de Melo e Ângela Maria,
e Luiz Homem Serpa que recebem cada um, quatro afilhados. A madrinha dos dois
batizandos que aparece na tabela II é a Ângela Maria que tem seu nome dado a um destes
dois batizandos. É provável que estes fossem pessoas de “liderança” entre os agregados,
ou, admirada por estes.
Os 22 afilhados de Alferes não apresentam um perfil comum, 8 são legítimos e o
resto não tem a legitimidade registrada.135 Quanto à idade 6 são adultos, 13 inocentes e 3
não tem idade registrada. Dos pais com condição registrada temos; um escravo forro e um
cabo de esquadra. A etnia de nem um destes pais é registrada, mas como 13 dos batizandos
135
Este artigo é uma continuação do trabalho A Formação das “Áreas proibidas”: a Freguesia do Mártir
São Manuel dos Sertões do Rio da Pomba e do Peixe, de minha autoria, publicado anteriormente. Alguns
dados nas tabelas que dizem respeito a apadrinhamento divergem. Já que neste trabalho incorporei a condição
social daqueles em que esta vinha antes de seu nome. Como por exemplo, no caso dos Alferes onde não se
tinha uma condição social isolada, mas sim um nome “Alferes fulano de tal”.
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eram de etnia índia sabemos que a maioria destes pais eram índios. Outrossim, vemos na
escolha destes padrinhos pais diversos; índios, escravos, homens com patente militar,
tecendo laços que poderiam trazer algum beneficio tanto para seus filhos como para eles.
Na medida em que através do ato de compadrio era estabelecido um vínculo de parentesco
espiritual entre os envolvidos - o padrinho, os pais e o batizando.136
Outros 41 batizandos tiveram padrinhos capitães. As anotações do Padre Manuel
de Jesus Maria nos permitem deduzir que vários destes capitães escolhidos para apadrinhar
algumas crianças, eram reconhecidos como tal pelos indígenas não possuindo realmente a
patente. Nas palavras do Padre: “João era chamado entre os índios de capitão e fui eu
padrinho por não querer o dito índio que se admitisse outro.”137
Sabemos que as tabelas construídas a partir dos dados dos registros de batismo
camuflam a relação entre os indígenas, visto que estes nos primeiros anos da freguesia
ainda não deveriam estabelecer um padrão de escolha de padrinho que fugisse dos laços de
afinidade já existente. Afinal de contas, estes ainda não deviam ter assimilado as
“vantagens” que um padrinho poderia lhe oferecer. Uma única madrinha é registrada na
condição de indígena e tem como afilhado um inocente da tribo Cropó. Porém, o numero
deste tipo de relação de compadrio deve ter sido muito maior.
Dando continuidade a nossa analise daremos vez aos padrinhos e madrinhas
escravos que aparecem apadrinhando 60 vezes. Destes afilhados todos que tem sua etnia e
condição registrada são escravos, 70% são legítimos e 83% são inocentes. Ou seja, o mais
comum eram escravos apadrinhando escravos ainda crianças e fruto de uma união
sancionada pela Igreja Católica. Neste aspecto as relações entre os escravos das fazendas
da freguesia do Rio Pomba indicam alguma divergência do que comumente é relatado
136
137
MONTEIRO, Roberta Ruas. Op. Cit. Pag. 2.
Observação feita pelo Padre Manuel Maria em um dos registros de batismo da Paróquia de São Manuel.
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pelos demógrafos que trabalham com apadrinhamento escravo138. Jonis Freire, por
exemplo, encontra para a freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo uma maior
porcentagem de escravos amadrinhando e apadrinhando as crianças ilegítimas.139
Destarte, podemos perceber que mesmo estes escravos convivendo com os
indígenas, que viviam como agregados na fazenda de seus donos, estes não quiseram ter
uns aos outros como “parentes espirituais”. O que demonstra uma preferência destes
escravos em criar “alianças mais “para dentro”, entre iguais”140 mantendo a idéia de
comunidade escrava.
Todos os pais destes escravos, que eram afilhados de escravos, pertenciam ao
mesmo dono. Já os padrinhos em 65% dos casos não pertencem ao mesmo dono, 17% são
do mesmo dono e em 28% não aparece a quem o padrinho ou a madrinha pertence. Nestes
casos em que padrinho e madrinha não pertenciam ao mesmo dono tentamos observar se
algum dos dois pertencia ao mesmo dono dos pais do batizando, e em apenas 20% dos
casos o padrinho ou a madrinha tem um dono em comum com os pais do batizando.
Todavia, concluímos que havia nesta freguesia uma grande mobilidade social a
ponto dos pais de batizandos escolherem para seus filhos padrinhos que eram escravos de
outro dono. O que também nos remete a idéia de “comunidade escrava”, mencionada
anteriormente, e discutida pelos autores que se dedicam aos estudos da cultura escrava.
Dos batizados por padrinhos forros 2 eram de etnia croata e o restante não consta a
etnia. Estes eram filhos de mãe escrava com pais escravo (maioria) ou forro, exceto os pais
dos croatas que não tiveram sua condição registrada. Muito provavelmente estes Croatas
também eram escravos ou agregados das fazendas em que viviam ou viveram seus
138
Até o presente momento não encontramos estudos que nos permitam uma comparação mais aprofundada.
FREIRE, Jonis. “Casamento, Legitimidade e Família em uma freguesia escravista da Zona da Mata
Mineira: século XIX”. Locus: Revista de história, Juiz de Fora. Vol. 11, n. 1 e 2, p. 51-73, 2005.
140
MONTEIRO, Roberta Ruas. Op.Cit. Pag. 4.
139
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padrinhos. Aqui, pela primeira vez e em um numero muito singelo vemos uma relação
entre índios e negros.
A mobilidade social transparece novamente na análise das madrinhas forras. Destas
madrinhas forras cinco são casadas com escravos, e destes, três não tem o mesmo dono que
o pai ou a mãe do batizando.
Chamou-nos atenção o padrinho pardo, forro, que era feitor da fazenda onde vivia a
escrava mãe do batizando que ele é padrinho. A legitimidade do batizando não é registrada
e não é registrado nada sobre o pai. Este caso nos remete a duas possibilidades de
estratégia na escolha deste padrinho. A primeira seria que a mãe pretendia proporcionar ao
seu filho proteção e possível ascensão social. Uma segunda possibilidade é a de que este
feitor era pai da criança já que a madrinha era casada com outro individuo e as chances de
uma escrava ter “afinidades” com um feitor são pequenas. De mais a mais, essa não é a
primeira vez que tal tipo de relação é registrado dessa forma.
Além daqueles que possuíam alguma distinção social, como uma patente militar,
por exemplo, três homens que constituem a base da freguesia do rio da Pomba - Padre
Manuel de Jesus Maria, Diretores Manuel Pires Farinho e Francisco Pires Farinho poderiam ser vistos como símbolo de distinção, por uns, ou rivais, por outros. Estes foram
escolhidos aqui para um breve estudo de caso.
Tabela III
Elegidos e afilhados, freguesia do Rio da Pomba 1767-1800
LEGITIMIDADE
NOMES
L
EGITIMO
ATURAL
N
ÃO
CONSTA
100
N
OTAL
T
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Padre
8
0
1
Manuel de Jesus Maria
4,6%
%
Diretor
Manuel Pires Farinho
2
0,7%
,4%
Diretor
Francisco Pires Farinho.
4
7,6%
,8%
5,4%
3
5,9%
4
7,6%
1
3
7
2
9
4
2
1
Fonte: Livro de batismo da Freguesia do Rio da Pomba.
O padre Manuel de Jesus Maria não foi um dos mais pensados no momento da
escolha do padrinho, este foi contemplado com 13 afilhados. Deste 84,6% eram
legítimos141 e 14,3% não têm sua legitimidade registrada. O fato da criança ser tida como
natural resultava em uma não aceitação por parte do padre nos seus apadrinhamentos. Fato
compreensível, já que estamos tratando de uma Freguesia que foi criada inicialmente como
um aldeamento onde a função do vigário era catequizar e civilizar, o que implica na não
aceitação de antigos hábitos tidos como ilícitos.142
Estes dois batizandos que não tem sua legitimidade registrada eram de etnia índia e
já se encontravam em idade adulta. Nem um destes afilhados lhes foi dado durante o
período em que a freguesia era um aldeamento, o que reflete a resistência e a desconfiança
inicial dos indígenas.
Tiveram como padrinho o Diretor Manuel Pires Farinho 29 afilhados. Um alto
numero destes, 75,9%, não tiveram sua legitimidade registrada, o que não parece ter sido
141
Entendem-se como legítimos os batizados frutos de uma união reconhecida pela Igreja, e como natural
aqueles originados de uma união não sancionada pela Igreja.
142
Sobre o Padre Manuel de Jesus Maria ver: CASTRO, Natália Paganini Pontes de Faria. “Civilização e
cristianização dos índios Coropós e Coroados: a atuação catequética do reverendo Manuel de Jesus Maria
na
Região
do
Rio
Pomba
(1767-1811)”.
ANPUH
Rio.
Disponível
em:
<http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/.../1212973540_ARQUIVO_TrabalhocompletoAnpuh-Rio.pdf
>
Acessado em: 25/06/09
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sinônimo de desagrado por parte do Diretor. Pelo contrario este parece ter estendido sua
redes sociais com as mais diversificadas camadas daquela sociedade.
O perfil de apadrinhamento do Diretor Manuel Pires Farinho nos remete a uma
estratégia que é proveitosa para o Diretor e aparentemente para os indígenas. Este é
agraciado com 10 afilhados de etnia Cropó que deveriam se sentir “protegidos” e honrados
por ter um padrinho de tal importância. Estes afilhados podem ser interpretados como fruto
da “simpatia dos indígenas pelo Diretor”, o que é muito pouco provável, já que este é um
dos agentes deteriorantes da cultura indígena nesta Freguesia. Ou como uma possibilidade
de se estreitar relações e buscar proteção em uma pessoa com a qual aqueles pais dos
batizandos conviviam diariamente nas fazendas onde estes eram utilizados como mão de
obra. Para o Diretor era adequado e proveitoso apadrinhar estes indígenas criando
solidariedades verticais e reforçando a idéia de atenção e zelo para com estes. Com isso,
ele criava uma importante base de sustentação para o seu poder de mando.
O irmão do Diretor Manuel Pires Farinho, Diretor Francisco Pires Farinho, apesar
de ter menos afilhados, tem um perfil de apadrinhamento muito semelhante ao do seu
irmão. Também estendeu seus laços sociais para com indígenas e escravos.
A família Pires Farinho, que exerceu um papel importante na desbravação dos
sertões do rio Pomba, apadrinha um considerável numero de batizandos devido à proteção
que o estreitamento das relações com essa família poderia oferecer. Além disso, como já
indicado acima, nas Minas Setecentistas uma das maneiras mais eficazes de garantir a
autoridade era a consolidação de relações clientelares (com os iguais, mas principalmente
com os grupos subalternos).
Alguns homens apadrinhavam com mais freqüência. A maioria dos padrinhos tinha
mais de 3 afilhados, sendo que muitos tinham de 6 a 14 afilhados. No entanto, sendo o
batizando legítimo, ou ilegítimo, os pais constituíam padrão muito semelhante na escolha
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de seus compadres, que eram sempre alguém que vivia em uma condição igual ou superior
a sua, e que preferencialmente fosse de uma etnia “superior” a sua com bases nas
hierarquias étnicas existentes no período colonial.
A relação entre os indígenas e os demais que habitavam a freguesia do rio Pomba
esta longe de ser exaurida com esta análise que fizemos. O grande numero de legitimidade
e condição social não registrados nos livros de batismo, a forma de trabalho adotada na
freguesia, que também influencia na escolha de compadrio, merecem maiores reflexões.
Diante do acima exposto, podemos deduzir que através do perfil recorrente dos
padrinhos escolhidos no ato de batismo, há uma estratégia sendo forjada, consciente ou
inconscientemente. Estratégias estas que ajudariam os indígenas a se relacionar com os
demais agentes do aldeamento na busca de suas prioridades e objetivos que mudavam de
acordo com as circunstancias.
Nesse sentido, cabe ressaltar que independentemente de ser índio, agregado, forro,
escravo, colono, capitão a escolha dos padrinhos reflete a busca por melhores condições de
vida. Deixando claro que estas tribos indígenas tão relatadas como altamente hierarquizada
e fechada dentro de seus costumes souberam fazer, bem ou mal, suas escolhas e abandonar
quando necessário suas hierarquias. Perceberam o que melhor lhes convinha naquele
momento de inserção em uma nova cultura, na busca por dias mais tranqüilos.
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O Grotesco Romântico em “O vermelho e o negro”: alguns aspectos da
interiorização no livro de Stendhal...
Daniel Eveling
RESUMO: Caracterizado por Mikhail Bakhtin como um dos autores pertencentes a uma
tradição do realismo grotesco, Stendhal, pseudônimo de Henri Beyle, teve como um dos
seus escritos considerado por muitos como uma das suas “obras primas”, o livro “O
vermelho e o negro”, escrito em 1830. Procuro realizar apontamentos que ressaltem
semelhanças entre o grotesco do tipo romântico, também chamadas de grotesco de câmara,
com a escrita de Stendhal. A partir das proposições de Bakhtin, juntamente com uma
perspectiva interdisciplinar, marcada pelo uso da História, Filosofia e Literatura (apontada
no Giro Lingüístico). Recorrerei à tal obra, além de autores que abordaram a
“domesticação” dos instintos e sentimentos do homem, como Friedrich Nietzsche e
Norbert Elias. Mostrarei caracteres que acredito serem aplicáveis a obra de Stendhal.
PALAVRAS-CHAVE: Stendhal, O vermelho e o negro, grotesco.
ABSTRACT: Characterized by Mikhail Bakhtin as an author belonging to a tradition of
grotesque realism, Stendhal, pseudonym of Henri Beyle, had one of his writings
considered by many as one of his "masterpieces," the book "Red and Black " written in
1830. I will try to perform this work, notes and highlight similarities between the grotesque
of the romantic kind, so-called grotesque chamber, with the writing of Stendhal. From the
propositions of Bakhtin, together with an interdisciplinary perspective, marked by the use
.
Mestrando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, bolsista da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Minas Gerais. Desenvolve a pesquisa orientado pela Professora Doutora Beatriz
Helena Domingues.
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of History, Philosophy and Literature (Language and pointed in the Giro). I refer to literary
work and authors who have addressed the "domestication" of instincts and feelings of man,
as Friedrich Nietzsche and Elias. I will show characters, which in my opinion, apply to the
work of Stendhal.
KEYWORDS: Stendhal, The red and black, grottesque.
Para começar os meus apontamentos, de aproximação da obra de Stendhal, em
específico “O vermelho e o negro”, inicio com a citação do filósofo russo Mikhail Bakhtin,
O realismo em grande estilo (Stendhal, Balzac, Hugo, Dickens,
etc.) esteve sempre ligado (direta ou indiretamente) à tradição
renascentista, e a ruptura desse laço conduziu fatalmente ao
abastardamento do realismo, à sua degeneração em empirismo
naturalista143.
Tomando com base o acima, parto para realizar algumas aproximações do que
Bakhtin definiu como grotesco de câmara, ou romântico, e a escrita do livro de Stendha
nessa corrente o sentido de não pertencimento ao contexto epropicia a sensação de
uma espécie de carnaval que o individuo representa a solidão, com
a consciência aguda de seu isolamento. A sensação carnavalesca do
mundo transpõe- se de alguma forma à linguagem do pensamento
filosófico idealista e subjetivo, e deixa de ser a sensação vivida
(pode- se dizer corporalmente vivida) da unidade e do caráter
inesgotável da existência que ela constituía no grotesco da Idade
Média e Renascimento144.
A comunhão que o indivíduo possuía com o mundo, em um período anterior, se
quebra neste grotesco de câmara: os românticos deixam de viver “corporalmente” as
143
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987, p. 45.
144
. Op.cit. p., 33
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sensações do que os cercam, uma vez que os instintos naturais são podados, assumindo
formas sublimadas. O indivíduo possui uma condição de outsider145 na sua solidão, isso é
propiciado pelo não enquadramento nos grupos.
Stendhal apresenta uma similitude com uma obra “Werther”,de Goethe, pois nessa
última “há por um lado, superficialidade, cerimônia, conversas formais; por outro,vida
interior, profundidade de sentimentos, absorção de livros, desenvolvimento da
personalidade individual”146. A posição de “stranger” ou “outsider” refletiu em Julien
voltando- se em determinados momentos para o caráter do infinito interior, “com um
indivíduo subjetivo, profundo, íntimo, complexo e inesgotável”147. A característica do
estranhamento, que é diferente da condição de “stranger”, em obras literárias, para Carlo
Ginzburg pode fornecer alguns aspectos, pois “é um antídoto eficaz, contra o risco, a que
todos nós estamos expostos: o de banalizar a realidade”148.
Friedrich Nietzsche, em “Genealogia da Moral”, ao analisar a consciência humana
destaca a seguinte ponderação, que acredito se aproximar do “infinito interior”,
apresentado por Bakhtin tratado mais abaixo,
Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam- se
para dentro- isto é o que chamo de interiorização do homem:é
assim que no homem cresce o que depois se denomina “alma”.
Todo o mundo interior, originalmente delgado, como entre duas
membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo
profundidade, largura e altura, na medida em que foi inibido em
sua descarga para fora.149
145
Cf.:ELIAS, Norbert. Introdução. In.: ______. Os estabelecidos e outsiders. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.
146
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes.vol. 1. Tradução de: Ruy
Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p., 37
147
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular. p.,38
148
GINZBURG, Carlo. Estranhamento: Pré- História de um procedimento literário. In.: _______.
Olhos de Madeira: Nove reflexões sobre a distancia. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p.,41.
149
NIETZSCHE. Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução de: Paulo César de Souza.
São Paulo: Cia das Letras, 2009,p. 67.
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Deve-se fazer apenas o socialmente aceitável. A própria questão que envolve o riso
é visto como algo infernal, sombrio e maligno, o “diabo encarna o espanto, a melancolia, a
tragédia”150. Ainda segundo Bakthin “no romantismo a máscara dissimula, encobre,
engana, etc”151, e se elas tem a preocupação de não deixar transparecer as verdadeiras
intenções, ressalto, que
uma das grandes preocupações de Stendhal foi a arte de mentir.
Como outros nascem policiais, ele parecia ter nascido diplomata,
com as complicações do mistério da duplicidade hábil, que faziam
a glória legendária do oficio [...] Stendhal colocava igualmente a
superioridade humana nesse ideal de um espírito poderoso que se
dá ao prazer de enganar aos homens e de ser o único a usufruir de
seus embustes152
Stendhal condenava a Sociedade da Restauração Francesa, para ele o enfado e as
tramas que permeavam as posições dos grupos envolvidos nesse período. Devido a isso ele
tenta, na escrita do livro, demonstrar opiniões contrárias ao posicionamento que toma.
Nessa percepção o livro II é marcado pela vida aristocrática, sendo muito preponderante
nesse aspecto o fato da teatralização153, da sociedade de corte uma vez
o que se considera é muito mais o individuo em seu contexto
social, em sua relação com os outros. Aqui também se mostram os
vínculos estreitos entre o cortesão e a sociedade (...) Trata- se de
uma observação de si mesmo para a disciplina do convívio em
sociedade: “ Um homem conhecedor da corte é senhor de seu
gesto, de seus olhos, de seu semblante; ele é profundo,
impenetrável; dissimula os maus serviços, sorri a seus inimigos,
150
Idem. 36
Idem 35
152
ZOLA,Emile. Do Romance: Stendhal, Flaubert e os Goncourt. São Paulo: EDUSP/ Imaginário,
1995, p., 71
153
Cf.: GOULEMONT, Jean Marie As práticas literárias ou a publicidade do privado. In: ÁRIES,
Philippe & CHARTIER, Roger (orgs.). História da vida privada. Vol. 3: da Renascença ao Século das
Luzes. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 Ou REVEL, Jacques. Os usos da
civilidade. In: ÁRIES, Philippe & CHARTIER, Roger (orgs.). História da vida privada. Vol. 3: da
Renascença ao Século das Luzes. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1991
151
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domina o seu humor, disfarça suas paixões, desmente o seu
coração, fala, age contra seus sentimentos”154.
No filme “Ligações Perigosas”155, há uma cena emblemática, nesse sentido de
dissimulação, quando a Marquesa De Merteuil discute com o Visconde de Valmont.
Transcrevo a fala da marquesa para elucidar:
Quando entrei na sociedade aos quinze anos já sabia que o papel ao
qual estava condenada o de permanecer em silencio e o de
obedecer dar-me- ia a chance perfeita de ouvir o observar. Não o
que me diziam, que nenhum interesse tinha, mas o que as pessoas
tentavam esconder.Pratiquei o distanciamento, aprendi a parecer
alegre enquanto me espetava com o garfo debaixo da mesa. Torneime uma virtuose do engodo. Não buscava prazer, mas, sim,
conhecimentos. Consultei um moralista para saber como me portar.
Filósofos, para saber o que pensar. E escritores, para saber do que
ficar impune. Resumi tudo a um principio maravilhosamente
simples: Vencer ou morrer!156
Na fala da marquesa, do filme, o que me interessa são as observações sobre a
sociedade, sabia que as pessoas escondiam seus verdadeiros pensamentos e opiniões,
inclusive ela mesma fazendo isso. Seu papel, destinado desde a nascença, era de ser uma
mulher obediente e calada e com a arte de observar falada por Elias tirou o melhor proveito
possível. Ao manipular os “brios” sociais, as pessoas para que não tivessem seus papéis
154
ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001, p. 121. A
citação entre aspas e de La Bruyère, na obra de Elias.
155
Ligações Perigosas. Stephen Frears.Warner Bros, 1987. 120, som, cor. O livro escrito em uma
sociedade que ainda não passara pela Revolução Francesa, o livro de Chordelos foi ambientando em um
grupo aristocrático sem a presença forte de uma burguesia. Resumidamente a história gira em torno de
Visconde de Valmont e da Marquesa de Merteuil. Essa o procura para que seduzisse sua prima Cecile e a srª
de Tourvel. Como um dos maiores conquistadores românticos Valmont aceita tal missão, porém só se
interessava, em um primeiro momento, por Tourvel que era uma das damas mais devotas da França.
Conquista essa, por quem se apaixona, e Cecile. Depois manipulado por Merteuil se afasta de Tourvel, que
morre de “infelicidade” e rompeu com Merteuil. Valmont morre em um duelo e com uma amante de Cecile e
Merteuil morre socialmente ao ser vaiada na Ópera pelo que havia feito. Uma vez que Valmont guardava
todas as cartas que Merteuil escrevia para ele e aparecia toda a armação feita por ela, e entrega para que
fossem divulgadas. Condenando assim a marquesa ao ostracismo social. Tal filme e baseado no romance
“Relações Perigosas”, de Chordelos de Laclos, escrito, em 1787.
156
Cf.: Ligações perigosas. Op. cit.
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ameaçados acabavam cedendo aos desígnios de tão grande dama. Ao usar da dissimulação
escondia o que realmente desejava e assim adquiria ares lúgubres.
Pelo colocado acima posso perceber dentro da estrutura da Corte a necessidade de
saber qual sua posição e seu papel, para que isso ocorresse inúmeras vezes acontecia a
dissimulação dos verdadeiros sentimentos, com uma postura de mentir, já mencionada. As
“máscaras” são usadas para o disfarce157, percebo exatamente os ares lúgubres do
romantismo.
A máscara, passa a ser utilizada em Julien da seguinte forma: ele aparentemente é
um perfeito “domestique”, sabendo qual lugar possui na sociedade, não cria qualquer
problema com relação a isso. Mas, internamente demonstra que todas as posturas que está
tendo são meramente para que ele consiga, os seus verdadeiros interesses, isso pode ser
visto como as táticas, definidas por Michel de Certeau158, isso ilustra perfeitamente o
caráter da máscara que passou a ser utilizada apenas para encobrir os verdadeiros
sentimentos, para Bakhtin “no grotesco romântico, a mascara arrancada da unidade da
visão popular e carnavalesca do mundo empobrece- se e adquire várias outras significações
alheias a sua natureza original: a máscara, dissimula, encobre, engana, etc159”.
Em Paris, para Balzac, no meu entender, uma outra forma de teatro é executado, já
que
Sentimentos genuínos são a exceção; são quebrados pelo jogo de
interesses, esmagados entre as rodas desse mundo mecânico. Aqui,
a virtude é difamada; aqui a inocência é vendida. As paixões são
vendidas barato para gostos e vícios ruminosos, tudo é sublimado,
analisado, comprado e vendido. É um bazar, onde tudo tem seu
157
As máscaras na obra de Bakhtin são vistas como uma das mais fortes expressões populares através
delas ocorriam renovações na sociedade medieva.
158
As táticas de Michel de Certeau, são vistas como a arte de pobre, quando pessoas afastadas de um
centro de poder politico, econômico, social e mesmo simbólico agem de acordo que consigam as seus
interesses. CERTEAU, Michel de. Entre táticas e estratégias. In.: ______. A invenção do cotidiano.
Petrópolis: Vozes, 1992.
159
BAKHTIN. Op. cit, p. 33 e 35
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preço, e os cálculos são feitos em plena luz do dia, sem
escrúpulo160.
Uma das epígrafes do “O vermelho e o negro” é: “Em Paris há pessoas elegantes;
na província, pode haver pessoas de caráter”161. Creio, que o aspecto salientado por Balzac
junta- se perfeitamente com o que Stendhal, a capital francesa é vista como um antro de
vicissitudes e falsidades, para conseguir sobreviver nesse lugar é necessário que fossem
fingidas as reações.
Um aspecto que coaduna com a teatralização, apontada mais acima, e que muda na
percepção do grotesco de câmara é o fato da rua e a praça passarem a servir de espaços de
diferenciação social, por exemplo, nos séculos XVII e XVII, apontados por Bakhtin como
sendo os que não souberam “ler” a obra de Rabelais e quando começaram a haver a morte
do riso começaram a existir leis que reforçavam o uso de determinados trajes e objetos,
somente por determinadas parcelas da sociedade somente podia utilizar algumas cores,
insígnias, carros162... Nessa perspectiva o hierarquia, era reforçada e mantida, o sentindo de
um mundo carnavalesco não era passível de ser compreendido o que era radicalmente
diferentemente do grotesco medieval quando as praças e ruas eram o centro das discussões
e da “mistura” dos grupos.
No fim do romance, quando Julien já havia sido condenado a guilhotina e a morte
certa se aproximava de seu protagonista, lê-se:
E pôs- se a rir como Mefistófeles. Que loucura discutir esses
grandes problemas! [ sua morte ]
1º ) Sou hipócrita, como aqui houvesse alguém para escutar- me
160
161
162
BALZAC, Honoré de apud SENTÉ, Richard. O declínio do homem público. Op. cit. p, 197.
STENDHAL. O vermelho e o negro. Op. cit, p. 76.
Cf.: SENNET, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Cia das Letras,
1993.
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2º ) Esqueço de viver e amar, quando me restam tão poucos dias de
vida... Ai! A Srª de Rênal está ausente; talvez seu marido não a
deixar mais voltar a Besançon e continuar a desonrar- se163.
Ressalto que essa citação de Mefistófeles, pode ser entendido como o “herói
danado, (muitas vezes herdeiro do diabo miltoniano)”, pois se Kant “ainda sustentava que
a feiúra que provoca repulsa não pode ser representada sem que destrua qualquer prazer
estético, com o romantismo este limite foi superado”164. Assim o protagonista do romance,
pode carregar perfeitamente em si, aspectos que anteriormente eram insustentáveis em seu
comportamento, essa perspectiva de Humberto Eco, a meu ver, coaduna perfeitamente com
a teoria de Bakhtin, ao esse último nos dizer que o método grotesco, propiciou que as obras
fossem liberadas, no meu ponto de vista, com isso a própria questão de um protagonista ser
o inverso de um “bom moço”, pode ser elucidativo.
Creio que alguns pontos da análise de Bakhtin podem ser visualizados na citação de
Stendhal, sobre Mefistófeles, colocada mais acima: primeiro a questão do riso maligno.
Como sabemos, a figura do Mefistófeles, seja de Marlowe ou Goethe, envolve a figura do
diabo que arrasta pelo desejo de uma sabedoria e um poderio econômico para o “lado das
trevas”. Julien, na sua ânsia de adquirir status quo, faz um movimento bem próximo ao de
Fausto,165 passando por cima de princípios para conseguir atingir seus objetivos.
O caráter diabólico, de Mefistófeles, é “apenas na medida em que é dialeticamente
insinuante e convincente” e se tornou mais perigoso e preocupante, “pois já não é
inocentemente feio como se costumava pinta- lo”
166
. Julien utiliza essas táticas por
exemplo, ao não se importar ao fingir mudanças de posturas, freqüentemente, para
163
STENDHAL [Henry Beyle]. O vermelho e o negro.Op. cit. P., 500
. Para Milton, em sua obra “Paraíso Perdido”, de 1667, as características do diabo seriam: rebelião
contra o poder estabelecido; uma beleza decaída; uma indômita dignidade; não é revolucionário, “pois lhe
falta um objetivo que vá além do sentimento de vingança e da afirmação do próprio Eu, mas é um modelo de
pura energia em revolta”. ECO, Humberto. História da Feiúra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p.179.
165
Cf.: WATT, Ian. Mitos do Individualismo Moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robson
Crusoé. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
166
ECO, Humberto. História da Feiúra. Op. cit., p..182.
164
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conseguir as coisas almejadas por ele. Por exemplo, se em um primeiro momento tenta
atingir seus objetivos através de Mathilde, declarando- se apaixonado por ela, e de certa
maneira estando envolvido, ao perceber que ela o ignora ele flerta com a Marechala de
Fervaques. Ao despertar ciúmes na filha do Marquês, ela se mostra completamente
transtornada com o envolvimento de Julien com a outra nobre e declara seus sentimentos a
ela. Julien, após esse episódio, simplesmente passa a ignorar a Marechala e volta suas
atenções a srª de la Mole.
O próprio Stendhal deixou indícios que havia compartilhava da percepção sobre
“Fausto”, de Goethe, além das passagens no “O vermelho e o negro”, há em “Armance ou
algumas cenas de um salão de Paris em 1827” a seguinte passagem, quando a mãe de
Octavio, este o grande amor da personagem principal, preocupada pelo excesso de leitura e
afastamento do filho escreve
Querido Octávio, esse desejo extravagante resulta possivelmente da
tua paixão desordenada pela ciência. Os teus continuados estudos
fazem- me tremer. Receio que venhas a acabar como o Fausto de
Goethe. Queres voltar a jurar- me, como fizeste no domingo, que
não lerás apenas maus livros?167
Esse desejo de assumir postos que não condizem com a realidade de deve ao caráter
de interiorização,
sua descoberta pelos românticos só foi possível graças ao emprego
do método grotesco, da sua força capaz de superar qualquer
dogmatismo, qualquer caráter acabado e limitado. Num mundo
fechado, acabado, estável, no qual se traçam fronteiras nítidas e
imutáveis entre todos os fenômenos e valores, o infinito interior
não poderia ser revelado168
167
STENDHAL [ Henri Beyle]. Armance ou algumas cenas de um salão de Paris em 1827. Lisboa:
Gris Impressores, 1971 ,p., 16.
168
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular. Op.cit. p.,39
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Essa ordenação do mundo com papéis muito rígidos e estabelecidos e o infinito
interior desempenhando o lugar o qual todas as possibilidades e tentativas poderiam ser
executadas, pode explicar um grande ponto de “O vermelho e o negro”: o surgimento da
paixão de Mathilde “pelo domestique de seu pai é toque de mestre de Stendhal”169. Ou
ainda a total entrega srª de Rênal a Julien a ponto de, no fim do livro, desafiaras
convenções, expõe de certa maneira essas relações que eram guardadas no mais íntimo dos
personagens. Esta atitude de Mathilde “ajuda a libertar- se do ponto de vista dominante
sobre o mundo, de todas as convenções e de elementos banais e habituais”170.
Fugindo totalmente do habitual, Stendhal envolvia nas linhas de seu romance um
caso de amor entre um domestique e a filha de um dos maiores pares da França. Podemos
pensar que muitos aristocratas tinham amantes entre seus serviçais, mas a grande questão é
um autor expor de forma tão clara esse envolvimento, quebrando toda uma série de
hierarquias e posicionamentos que cercavam os franceses do período.
Ainda percebemos no grotesco do século XIX um ponto levantado por Nietzsche
sobre o riso
o homem descobre sua solidão em um universo que não tem
sentido preestabelecido. Enquanto acreditamos, durante séculos,
que havia um piloto no comando que nos guiava para um destino
conhecido, Nietzsche nos ensina que “Deus está morto”, ou antes,
que ele nunca existiu e que estamos a bordo de um barco à deriva
que não vai a lugar nenhum. É, de fato, para morrer de rir!171
Uma das maiores crises de Julien no final do livro se dá exatamente no momento
em que
169
AUERBACH, Erich. Mimesis:A representação da realidade na literatura ocidental. 5 ed. São Paulo:
Perspectiva, 2007, p.,405.
170
BAKHTIN, MIkhail. A cultura popular. Op. cit.p., 30
171
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: UNESP, 2003.p.,517.
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Ele foi agitado pelas lembranças dessa Bíblia que sabia de cor ...
Mas como a partir do momento em que são três pessoas numa
só,acreditar nesse grande nome de DEUS, com o terrível abuso que
fazem dele nossos padres?
Viver isolado!...Que tormento!...
Eis o que me isola {a ausência da srª de Rênal], e não a ausência
de um Deus justo, bom, todo poderoso, sem maldade, sem avidez
de vingança.
Ah! Se ele existisse... eu cairia a seus pés! Mereci a morte, lhe
diria; mas devolve- me; ó Deus grande, Deus bom, Deus
indulgente, aquele que amo! 172.
De uma forma diferente de Nietzsche, Stendhal questionava dogmas religiosos, não
de uma forma tão aberta e explícita, mas com pequenas inserções em seus textos. Até
porque, conforme bem lembrado por Octavio Paz, a “literatura moderna não demonstra
nem predica nem raciocina, seus métodos são outros: descreve, expressa, revela,
descobrem expõem, ou seja, põem a descoberto as realidades reais e as irrealidades não
menos reais de que são feitos o mundo e os homens”173,
.Stendhal queria recusar o embelezamento de seu
livro e
declarava orgulhosamente, não é bonito: é imediato, direto, áspero
[...] Por meio de um relato baseado em personagens e
acontecimentos inventados, ele procurava alcançar uma verdade
histórica mais profunda174
Ao recusar esse “embelezamento” das palavras Stendhal tem o grande mérito de
“repudiar o falso brilho verbal dos românticos e trazer a si um fundo de verdade humana
indiscutível”175. Também percebendo essa forma de uma escrita que vai ao cerne das
questões, sendo visto a questão dos “petit fait vrais”176, segundo Leyla Perrone, pois
172
STENDHAL [ Henry Beyle] O Vermelho e o negro. Op. cit. p.,499- 500
PAZ,Octavio. Propósito. In:______. O ogro filantrópico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p 12.
174
GINZBURG, Carlo.A áspera verdade- Um desafio de Stendhal aos historiadores. In:______. O Fio
e os rastros:Verdadeiro, Falso, Fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p.174
175
CARONI, Italo. A Utopia Naturalista. In: ZOLA, Emile. Do Romance: Stendhal, Flaubert e os
Gouncourt. Tradução de: Plínio Augusto Coelho. São Paulo: EDUSP/ Imaginário, 1995,p. 17.
176
Cf.: PERRONE- MOISÉS, Leyla. Flores da Escrivaninha: Ensaios. São Paulo: Cia das Letras.
173
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através de elementos que podem ser vistos como de inspiração real tentava- se mostrar a
“feiúra” da sociedade, em uma perspectiva angustiada. Ou seja, queria- se evidenciar as
hipocrisias e a falsidade que rondava os ambientes de inícios do século XIX. Sobre mostrar
esses caracteres da vida
Mérimeé afirmava que alguém havia acusado Stendhal do mais
grave dos delitos, de desnudar e pôr em plena luz certas chagas do
coração humano que são demais repugnantes em se ver.
“Essa observação me pareceu justa”, escreveu Mérimeé. “O caráter
de Julien [protagonista de um de seus livros] tem traços atrozes;
são inegavelmente verdadeiros atrozes, mas nem por isso deixam
de ser horríveis177.
O interior da sociedade e suas formas de pensamento eram expostos com todos os
seus detalhes sórdidos o que chocava e tornava a obra de Stendhal tão controversa. A
própria personalidade dele, que não levava, muito, a sério a sociedade de corte e cobrindoa de sarcasmos as solenidades, são reveladoras de sua atitude contestadora. E a meu ver,
podem ser entendidos como, em certo momento, contestando e expondo uma sociedade
que estava coberta de vícios e falsidades, na percepção do autor, pois como já foi discutido
a Restauração Francesa era combatida, uma vez que havia trago para a sociedade todo um
estabelecimento de antigos valores e percepções, criticava assim uma “dominação
subliminar, não necessariamente discursiva”178.
Um aspecto que se mostra revelador para determinada feiúra do século XIX está
presente em Erich Auerbach ao discorrer sobre o enfado nos salões da sociedade francesa e
177
GINZBURG, Carlo. A áspera verdade- um desafio de Stendhal aos historiadores. In:______. O Fio
e os rastros: Verdadeiro, Falso, Ficção. Tradução de: Rosa Freire d’ Aguiar; Eduardo Brandão. São Paulo:
Cia das Letras, 2007. p.185.
178
Cf.: LAMHA, Gibran Grunewald. A teatralidade em Rabelais, no estudo de
Mikhail Bakhtin. 2008. 24 f. (Bacharelado em História). Instituto de Ciências Humanas e Letras, da
Universidade Federal de Juiz de Fora, 2008, p.19. Lamha, nessa parte da na monografia discute a
problemática que envolve o “Clown”, palhaço de origem inglesa, que segundo ele tem como função
demonstrar e problematizar a sociedade, acredito que a problematização da questão do palhaço, nesse aspecto
de denunciar a dominação em mínimas coisas se aproxima da forma a qual Stendhal tentava se expressar.
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as discussões não serem mais pautadas em sua grande maioria por pensadores que eram
marcados por um livre pensamento. Explico, com o advento do “le monde”, os grandes
intelectuais passaram a depender das benesses de grandes senhores para que pudessem
viver, digamos com um maior conforto, como Robert Darnton mostra. Entretanto, os
pensadores passaram a ser controlados e vigiados por esse “le monde”, em especial a
aristocracia, que determinava quais autores poderiam ou não participar dele, isso já ocorria
em finais do século XVIII.
Uma das maiores críticas, que percebo, no livro é justamente o fato desses salões se
tornarem a “porta de entrada” para o “le monde”, desde o acadêmico que só freqüenta para
conseguir postos na Academia para si e seus familiares, chegando a se ajoelhar frente a srª
de La Mole, até mesmo pela hipocrisia das atitudes que são tomadas no interior do Hôtel
De La Mole. Concordo com Aeurbach, ao demonstrar que os “philosophes”, para usar a
nomenclatura de Darnton, passaram a deixar de serem pensadores para se submeter aos
padrões dos grandes senhores, assim a “feiúra”, quando não se tem uma liberdade de
pensamento, é um dos pontos que são colocados a baila pela análise de Bakhtin e perpassa
a obra de Stendhal, criticava dessa forma o filósofo/ pensador que se “domesticava”179 que
“integravam- se a uma sociedade de ricos patrocinadores e cortesãos, para mutuo
beneficio:” a gens du monde ganhava entretenimento e instrução, a gens de lettres
refinamento e posição social. Desnecessário acrescentar que a promoção à alta hierarquia
social”180.
Assim Stendhal criticava um ciclo vicioso que estava inserido, mas que enxergava
como problemático e que garantiu sua sobrevivência financeira, afinal era “homem de
carne e osso, desejoso de encher a barriga”181 assim como também manteve outros.
179
DARNTON, Robert. Boêmia Literária e Revolução: O submundo das letras do Antigo Regime.
Tradução de: Luís Carlos Borges. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p.17.
180
Idem.p, 23.
181
Idem. p,14.
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Stendhal conhecia a trajetória de Rousseau, inclusive sendo um admirador da obra de tal
pensador, mas sabia que Jean- Jacques alcançou o “monde” com o “Discurso sobre as
Artes e Ciências” e decaiu com “Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens”, pesaroso que pesasse sobre ele o “ostracismo” financeiro e
social, e porque não dizer simbólico, que caiu sobre Rousseau após sua obra resolveu ser
mais sutil em suas ironias e “desmascaramentos”.
Um outro aspecto do grotesco apontado por Norma Discini e que corrobora com as
análises bakhtininas, foi que ao se conseguir controlar os gestos, e conseqüentemente, as
reações isso serve como marca características do grotesco de câmara, Merteuil, a marquesa
de Chordelos de Laclos citada mais acima. Discini ressalta que duas estéticas são
presentes, o amor tangível, que é marcadamente de cunho grotesco, e o amor intangível
que é de cunho platônico. O amor tangível, é consumado e realizado no livro, pois
quebrando convenções sociais e hierárquicas, pois como sabemos primeiro com a srª de
Rênal, depois com Mathilde se relacionando com Julien os amores são realizados.
Concordo com Discini ao colocar o grotesco como da ordem das coisas tangíveis.
Mas, acredito também que nem toda forma de “amor grotesco” vai ser marcado pela forma
de ironia, em “O vermelho e o negro”, o amor, de certa forma é corporalmente vivido,
lembrando e citando Bakhtin ao mostrar o período medieval.
Pelo acima acredito que a aplicabilidade da noção de tangível para a caracterização
do amor é perfeitamente adequável para a obra de Stendhal, sei também que para Bakhtin
no grotesco de câmara, em alguns momentos as sensações deixam de ser corporalmente
vividas, entretanto creio, que isso não impede de apresentar outras consonâncias com
diferentes formas do grotesco.
Ainda com relação a um grotesco e posturas disso no século XIX Georges Minois
ressalta uma posição de Nietzsche sobre a relação com um riso filosófico: se por um lado
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não gosta do
agelasta Hobbes, por outro coloca nas alturas “aqueles que são
capazes de risos dourados”; e se ele admira Chamfort é porque vê
nele “um pensador que julgava o riso necessário como remédio
contra a vida e que considerava quase perdido o dia que não
conseguia rir”182
Ele ilustra isto com um trecho de Nietzsche: “A Gaia Ciência”, aforismo é o
seguinte
É singular que apesar de um tal amigo e defensor- temos as cartas
de Mirabeua para Chamfort- , esse mais espirituoso dos moralistas
tenha permanecido um estranho para os franceses, de modo não
diferente de Stendhal, que talvez tenha tido, entre os franceses
deste século, os olhos e ouvidos mais ricos de pensamento.Será que
este, no fundo, tinha demasiado do alemão e de inglês para que os
parisienses o suportassem? – enquanto Chamfort, um homem rico
de profundidades e segundos planos da alma sombrio, ardente,
sofredor- um pensador que achava o riso necessário como remédio
para a vida e que considerava praticamente perdido o dia que não
dava uma risada-, parece antes um italiano, um parente de Dante e
Leopardi do que um francês!183
Nietzsche, neste aforismo, refere-se não apenas a Chamfort como um adepto do
riso, mas também a Stendhal: aliás, Nietzsche considerava Stendhal como um dos poucos
escritores que não pertenciam ao “rebanho”184, esse é para o filósofo alemão o grupo de
pessoas que aceitam as proposições que são passadas sem questionar, formando assim um
senso comum.
BIBLIOGRAFIA.
182
MINOIS, Georges. História do Riso e do escárnio. Op. cit. p.,518.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de: Paulo César de Oliveira. São Paulo: Cia das
Letras, 2005, p.120
184
Cf.: LEFORT, Claude. O "sentido histórico": Stendhal e Nietzsche. In: NOVAES, Adauto (org).
Tempo e História. São Paulo: Cia da Letras, 1992.
183
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AUERBACH, Erich. Mimesis:A representação da realidade na literatura ocidental. 5 ed.
São Paulo: Perspectiva, 2007.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
DARNTON, Robert. Boêmia Literária e Revolução: O submundo das letras do Antigo
Regime. Tradução de: Luís Carlos Borges. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
ECO,Humberto. História da Feiúra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001.
_____. Introdução. In.: ______. Os estabelecidos e outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
_____ O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes.vol. 1. Tradução de: Ruy
Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
GINZBURG, Carlo.A áspera verdade-Um desafio de Stendhal aos historiadores.
In:______. O Fio e os rastros:Verdadeiro, Falso, Fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
__________. Estranhamento: Pré-História de um procedimento literário. In.: _______.
Olhos de Madeira: Nove reflexões sobre a distancia. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
LAMHA, Gibran Grunewald. A teatralidade em Rabelais, no estudo de Mikhail Bakhtin
(Bacharelado em História). Instituto de Ciências Humanas e Letras, da Universidade
Federal de Juiz de Fora, 2008. 24 f.
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: UNESP, 2003.
NIETZSCHE. Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução de: Paulo César
de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
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___________. A Gaia Ciência. Tradução de: Paulo César de Oliveira. São Paulo: Cia das
Letras, 2005,
PERRONE- MOISÉS, Leyla. Flores da Escrivaninha: Ensaios. São Paulo: Cia das Letras.
O Bonde e o Tempo: do surgimento à consolidação do meio de transporte.
David José da Silva
RESUMO: O meio de transporte coletivo sobre trilhos, em perímetro urbano é
denominado no Brasil bonde, que advém da palavra inglesa bond. O sistema é composto
por um compartimento de passageiros, adaptado sobre trilhos de ferro e tracionado por
animais eqüinos. O pioneiro do meio de transporte foi o francês Alphonce Loubat e a
primeira cidade a implantá-lo foi Nova Iorque/EUA. Posteriormente, várias cidades
instalaram o sistema de transporte ferro-carril, devido ao êxito da experiência norteamericana.
PALAVRAS-CHAVE: Bonde; Ferro-carril; Transporte.
ABSTRACT: The means of collective transport, in urban area in the Brazil is called
bonde, which comes from the word English bond. The system consists of a passenger
compartment, adapted on iron rails and pulled by animals horses. The pioneer of the means
of transport was the French Alphonce Loubat, and the first city to implement it was New
York/USA. Subsequently, several cities have installed the system of the railway rail due to
the success of the American experience.
KEYWORDS: Tram; Iron-track; Transports.

Graduado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2008.
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Para Rui Barbosa,
O Bonde foi, até certo ponto, a salvação da cidade. Foi o grande
instrumento do seu progresso material. Foi ele que dilatou a zona
urbana, que arejou a cidade, desaglomerando a população, que
tornou possível a moradia fora da região central. O bonde foi – é
preciso dizê-lo – uma instituição providencial. Se não existisse, era
preciso inventá-lo.185
Na década de 1830 surgiu nos Estados Unidos uma nova forma de transporte dentro
das cidades: o bonde. Posteriormente, o meio de transporte foi instalado nas principais
cidades do mundo, pois o novo sistema além de diminuir os custos do transporte de cargas
e de passageiros, possibilitou conforto, segurança e agilidade ao trânsito.
O que é um bonde?
Bonde é a palavra empregada no Brasil para designar o veículo de transporte coletivo sobre
trilhos, em perímetro urbano. Mais apropriadamente, o termo “ferro-carril” indica os
trilhos, aos quais é adaptado um compartimento, semelhante ao trem convencional. O
dicionário Aurélio aponta “carril” como “sulco deixado pelas rodas do carro”, como
lusitanismo adota “trilho”, que por sua vez, abrasileirado é exposto como “cada uma das
barras de aço paralelas que, assentadas sobre dormentes, suportam e guiam as rodas dos
trens de ferro, dos bondes, etc.”.186 O termo “ferro-carril” designa os trilhos de ferro com
suas determinadas composições.
Waldemar Correa Stiel cita em seu livro História do transporte urbano no Brasil,
alguns textos que elucidam a questão do acréscimo de sentido à palavra bond, que dá
origem ao termo bonde, usado para designar o transporte ferro-carril no Brasil, dentre eles
destaco o trecho retirado do dicionário Folk-lores, o qual sintetiza a idéia e dá
possibilidade de produzir uma conclusão óbvia: o termo “bonde” é uma adaptação
aportuguesada da palavra bond que, por sua vez, representa um ticket com uma
determinada valoração financeira. Por conseqüência do uso dos “bonds”, pelos usuários,
185
STIEL, Waldemar Corrêa. História do Transporte Urbano no Brasil. Brasília: Pini, 1984. p. XVI.
Dormentes são as peças colocadas transversalmente à via, e onde são assentados e fixam os trilhos das
ferrovias. In: FERREIRA, A. B. H. Miniaurélio Século XXI Escolar: o minidicionário da língua
portuguesa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 245 - 687.
186
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para efetuarem o pagamento da passagem, o termo passou a designar o próprio veículo de
transporte coletivo sobre trilhos, em perímetro urbano:
BONDE – Veículo de tração animal ou elétrica. É um
brasileirismo. Pelo decreto n.°4.244, de 15 de setembro de 1868, o
Visconde de Itaboraí, presidente do Gabinete, emitiu um
empréstimo nacional até 30 mil contos, com juros pagáveis em
ouro, mediante apresentação de apólice, cautelas, bonds; operação
financeira que despertou atenção geral. Em novembro, a “Botanical
Garden Road Company”, fez circular os primeiros veículos no rio
de janeiro e o carioca aplicou aos carros o nome abrasileirado das
pequenas apólices, bonds, registrado na imprensa da época e
posteriormente vulgarizado por todo Brasil. 187
Cogita-se também que a incorporação do termo bonde ao sistema de transporte,
possa ter ocorrido devido á inauguração, em Belém capital do Pará, de uma linha de
bondes em 1º de novembro de 1871. Os serviços de transporte coletivo foram contratados,
segundo Stiel, pelo governo da província em 1º de setembro de 1869, com um cidadão de
nome “James B. Bond”. Porém, antes da inauguração, o concessionário transferiu os
direitos à firma Bueno & Cia., de propriedade de Manoel Antônio Pimenta Bueno, que
organizou uma sociedade anônima de nome “Companhia Urbana de Estrada de Ferro
Paraense”. Dificilmente o meio de transporte herdou o nome do antigo proprietário da
empresa “James Bond”, uma vez que este esteve presente apenas nos momentos iniciais
desta companhia. 188
Como já citado, o Brasil é o único país a utilizar o termo ‘bonde’ para designar o
veículo ferro-carril. O termo mais usado mundialmente é tramway, como na Inglaterra,
Estados Unidos, Canadá, Austrália, entre outros. Nos Estados Unidos adota-se também o
termo street car, empregado para designar o transporte ferro-carril e o ônibus de tração
187
188
DICIONÁRIO do Folk-lores Brasileiro – Luiz da Câmara Cascudo – pág. 128. In: STIEL, op. cit., p. 5.
STIEL, op. cit., p. 19 - 20.
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elétrica. Portugal, o norte da Inglaterra e a Escócia adotam “tram”189. Em Portugal adota-se
também o termo elétrico. Os alemães chamam de Straßenbahn, que pode ser traduzido
como “trem de rua”
190
.
Estrutura dos bondes de tração animal
O bonde de tração animal foi o primeiro e mais comum veículo de transporte
coletivo sobre trilhos de ferro no Brasil. Sobre a gênese do meio de transporte, Stiel
descreve da seguinte forma: “Tratava-se de um pequeno bonde, ao qual era atrelado a uma
parelha de ‘muares’191, que sob as ordens de um cocheiro experimentado, conduzia o
veículo, que rodava sobre trilhos de ferro, pelas nossas ruas”. 192
Para Clarck e Chemin, os bondes eram mais creditados nas ocasiões onde as
estradas eram ruins ou não existiam, para facilitar o tráfego pesado e contínuo. O bonde era
composto por um compartimento central dotado de assentos, atrelado a um par de muares e
adaptado sobre trilhos de ferro. Ele era guiado por um condutor que através de arreios,
ditava a velocidade e a direção do veículo.193
Observa-se abaixo de forma mais detalhada e objetiva as imagens produzidas por
“Leandro Trindade”194, no “Museu do Transporte Público Gaetano Ferolla”
195
. As
fotografias retratam uma réplica dos bondes que circularam em São Paulo, da “Empresa de
189
A palavra tram, deriva na língua inglesa do termo escandinavo usado para designar tábua ou trave de
madeira. Quando essas tábuas ou traves de madeira começaram a ser usadas como guias para as vagonetas
das minas e em outras atividades industriais no século XVII, a elas criou-se o habito de serem chamadas tram
ways, traduzido para o português quer dizer “caminhos de tábuas”. In GARDÉ, Emídio. Os tramways.2008,
p. 26. no prelo.
190
SILVA, Ayrton Camargo e. Bondes sobreviventes no Brasil. Disponível em:
<http://hist.antp.org.br/telas/Downloads/Bondessobreviventes.PDF>. Acesso em: 12 de novembro de 2008.
191
Palavra usada para designar animal pertencente à raça do mulo (FERREIRA, op. cit., p. 474).
192
STIEL, op. cit., p. 54.
193
CLARCK, D. K.; CHEMIN, M.O. Tramways: construction et exploitation. Paris: Dunod, 1880. p. 2.
194
Graduando da Faculdade de Ciências da Computação/USP, em novembro de 2008.
195
Museu do Transporte Público Gaetano Ferolla - Avenida Cruzeiro do Sul, nº 780, São Paulo/SP.
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Bondes de Sant’Anna”196. As fotografias expostas nas figuras 1 e 2, possuem indicações
numeradas que apontam para os caracteres estruturais do veículo, com explicações das
indicações na tabela 1.
Figura 1: Características do bonde
196
Ultima empresa de bondes de tração animal de São Paulo. Foi estabelecida em 07 de agosto de 1890 e se
manteve até maio de 1907. Esta empresa estabeleceu seus serviços fora da zona central da cidade e dado a
este motivo, não foi incorporada pela Companhia Viação Paulista (STIEL,op. cit., p. 453).
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Figura 2: Características do bonde
Tabela 1
Engate para os moares. Nele é adaptado um sistema de arreios, que
1 possibilita ao condutor guiar o animal, através de um instrumento metálico,
colocado na cavidade oral do animal.
2
Sistema de freios.
Trilho. São dois trilhos, assentados de forma paralela sobre dormentes de
3
madeira.
4
Eixo.
5
Lugar do condutor.
6
Alavanca de freios.
7
Chaminé
Sino, serve para avisar sobre o condutor ou os passageiros sobre as
8
intenções de parada ou de deslocamento.
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Estribo: Degrau ou plataforma das viaturas (FERREIRA, 2000, p. 298). No
caso,
9 taboa de madeira adaptada na lateral do bonde, que permite aos usuários um
melhor acesso ao veículo, além de possibilitar também o estacionamento destes.
1
Cortina.
0
Banco. Observa-se que este modelo de bonde foi fabricado para contemplar
1
o transporte de 20 passageiros. São 5 bancos, com a possibilidade de assento de 4
1
pessoas por banco.
1
Lampião.
2
1
Roda, com encaixe para a adaptação à fenda do trilho.
3
Parte integrante do sistema de sustentação do veículo, a “fenda”197 possibilita o
deslocamento do bonde sobre o trilho, uma vez que, quando adaptado este passa a se
deslocar no caminho delimitado pelo veio do trilho, conforme exposto na figura 3 e
esclarecido na tabela 2:
197
Fenda é uma abertura numa superfície, ou em objeto fendido; é qualquer abertura estreita. No caso dos
trilhos, um exemplo desta estrutura esta demonstrada na figura 3, apontada pela seta de numero 2
(FERREIRA, 2000, p. 317).
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Figura 3: Esboço do trilho de bonde instalado em Nova Iorque – Estados Unidos
Tabela 2
1
Trilho de ferro.
2
Fenda.
3
Base de madeira.
Prego ou estrutura semelhante, usada para fixar o trilho sobre a base de
4
madeira.
O bonde no mundo
As formas mais rudimentares deste meio de transporte foram instaladas há mais de
quatrocentos anos, nos distritos mineiros de Inglaterra, haja vista a necessidade de
transporte para os portos. A gênese deste meio de transporte é explicada da por Clark e
Chemin da seguinte forma:
Pode se fazer confortavelmente uma idéia da dificuldade que se
teve para manter as estradas que conduziam para as minas de
carvão. As estradas de terra que se vê hoje em dia são um
espetáculo no Egito, o que poderia ser o nosso (França no século

ilustra o modelo de trilho instalado na 2.ª Avenida em Nova Iorque (CLARCK; CHEMIN, op.cit. p. 5).
129
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XIX) antes da pista sobre o pavimento. Depois de uma chuva forte,
são formados alguns lagos de lama que constituem grandes
obstáculos à circulação ao invés de facilitar. Nossos antepassados
foram dirigidos para colocar algumas tábuas ou pedaços de madeira
no fundo dos buracos; eles acharam isto mais conveniente que os
encher de pedras. Os inconvenientes buracos trouxeram a idéia de
colocar tábuas ou grandes pranchas de madeira. Em 1676, os
bondes consistiram em carros sobre grades de madeira “que vai da
mina para o rio calmo, direto seguindo linhas paralelas. 198
O novo método de se fazer o transporte das cargas facilitou os trabalhos, de forma
relevante, e possibilitou o aumento da produção. O cavalo que em uma estrada aberta
puxava 860 quilos de carvão, com o novo sistema de trilhos era capaz de puxar 2130 quilos
de carvão, regularmente. Na década de 1830, pensou-se em mecanizar o transporte
coletivo, fruto da Revolução Industrial. Foram feitas no Reino Unido algumas tentativas
com o uso da tração a vapor. Em 1831 foi criado um serviço de transportes entre
Cheltenham e Gloucester, numa extensão de 14 quilômetros e 500 metros. Em 1833, surgiu
em Londres, uma carruagem para 12 passageiros, a qual, por razões de ordem técnica, teve
uma duração efêmera. Já em 1836, havia em circulação duas outras viaturas, com
capacidades para 18 e 22 passageiros. Mas estas linhas não galgaram um expressivo êxito.
199
Segundo Belo:
Estas tentativas não foram, contudo, bem sucedidas. Aliado ao fato
de o pavimento das estradas ser de má qualidade, a tecnologia
mecânica ainda era incipiente, pelo que os acidentes com explosões
das caldeiras eram demasiado freqüentes – daí que tal tipo de
transporte se tenha extinto rapidamente, dado o medo e a
indiferença do público potencial utilizador. 200
Os primeiros bondes a tração animal surgiram em 1832, em Nova Iorque, com
capacidade para trinta passageiros sentados, pertencentes à New York & Harlem Railroad
198
CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit., p. 2.
idem., p. 3.
200
BELO, José Luís Garcia. Autocarros Urbanos, a sua Evolução e Perspectivas de Futuro. Dissertação
(Mestrado) - Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, 1998. In: GARDÉ, op. cit., p. 38.
199
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Company. 201 Esta companhia foi a primeira no mundo a implantar um serviço de
transporte coletivo sobre trilhos de ferro em perímetro urbano, mas sua aceitação, como as
já citadas, não foi expressiva. A linha foi instalada na 4ª Avenida e, devido à colocação
dos carris acima do nível do solo, o tráfego no restante da rua foi dificultado. Este foi o
principal empecilho para o surgimento de novas iniciativas neste âmbito em vinte anos. 202
Hadler acrescenta que “sua aceitação pelo público não deve ter se dado de maneira
imediata”. 203
No ano seguinte, foi instalada em Nova Orleans uma linha de bondes de tração
animal, na qual, segundo o Taplim, os trilhos servem ainda hoje para os bondes de tração
elétrica, sendo mais de 150 anos de serviço contínuo.204
O francês Alphonse Loubat foi o pioneiro dos transportes ferro-carrís na França, e
de grande importância para a evolução e disseminação do meio de transporte coletivo.
Nascido em 1799, foi para os Estados Unidos da América, onde estabeleceu residência. Os
bondes foram restabelecidos em Nova Iorque, em 1852, graças a ele, responsável pela
construção de um composto, formado por trilhos de ferro sobre dormentes de madeira. Os
trilhos apresentavam, na parte superior, um encaixe ou buraco, para guiar as rodas dos
carros e sobre eles, foram adaptados a vagões. 205
Segundo Gardé, Alphonse Loubat foi um rico e próspero negociante de vinhos que,
na época vivia em Nova Iorque, onde percebeu as potencialidades do novo meio de
transporte. O bonde, no seu entendimento, representava o contrário dos ônibus, que
contavam com rodas de madeira e sem qualquer tipo de suspensão amortecida, tinham que
percorrer os muito irregulares pavimentos das ruas em pedra ou em terra batida tornando a
201
HADLER, Maria S. D. Trilhos da modernidade: memórias e educação urbana dos sentidos. Tese
(Doutorado) – Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. 2007.p. 36.
202
GARDÉ, op. cit., p. 28.
203
Ibidem.
204
TAPLIM, Michael. The History of Tramways and Evolution of Light Rail. Disponivel em:
<http://www.lrta.org/mrthistory.html>. acesso em: 07 de novembro de 2008.
205
CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit, p. 4.
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viagem altamente incomoda. Pelo viés econômico, o bonde usava menos animais para
tração transportando o mesmo número de pessoas. 206
Procurando sanar o problema verificado após a implantação dos primeiros bondes
em 1832, Loubat instalou na 6.ª avenida uma linha, onde a maior parte da estrutura ficava
imersa sob o pavimento da rua, deixando aparente somente os trilhos, aos quais fora
adaptado o compartimento de passageiros. Esta é a segunda linha de bondes de Nova
Iorque. 207
Os bondes avançaram rapidamente nos Estados Unidos. Em Nova Iorque, além das
linhas instaladas em 1852 na 6ª Avenida, foi implantada outra linha na 8ª Avenida. Em
1853, mais duas linhas de bondes foram inauguradas nas 3ª e 2ª Avenidas. E em 1854 foi
inaugurada uma linha no Brooklin, linha esta que atravessava o rio Hudson. 208 Para Clarck
e Chemin, o meio de transporte vantajoso em vários aspectos:
O bonde obteve vantagens incalculáveis e se tornou um elemento
característico indispensável nas cidades principais dos Estados
Unidos. As longas distâncias para percorrer, o estado geralmente
ruim das ruas e das estradas, a raridade comparativa dos outros
veículos; formaram uma coincidência que impôs o uso dos bondes
para todas as classes. 209
Na Filadélfia foi construído um tipo diferente de trilho, em 1855, o qual a
população conseguia ultrapassar. Este novo tipo de trilho foi colocado na 5ª e 6ª ruas e
consistia em uma modelo onde as irregularidades do solo eram suavizadas, uma vez que,
planejou-se a extinção dos buracos no interior dos trilhos e em suas margens, além da
diminuição da profundidade das fendas. O modelo de trilho potencializou o uso deste meio
de transporte coletivo, por satisfazer a necessidade de garantir o deslocamento dos bondes
206
GARDÉ, op. cit., p. 28.
Idem.
208
GARDÉ, op. cit., p. 38.
209
CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit., p. 5.
207
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em comunhão com o restante tráfego de viaturas, tais como os carros de aluguel, os ônibus,
etc.. Este novo método representou um menor obstáculo para o trânsito que partir de então,
foi adotado em muitas cidades.210
Este trilho implantado na Filadélfia trouxe novos problemas, mas também novos
benefícios para o tráfego. Segundo Clarck e Chemin, houve objeções no que se refere à
terra, que era ruim para as patas dos animais que tracionavam os bondes e, com relação às
irregularidades do solo provocadas pela instalação dos trilhos, embora os autores relatem
que os ressaltos no pavimento das ruas nunca ultrapassavam dois centímetros e meio de
altura. Porém, estes ressaltos foram suficientes para causar um obstáculo considerável para
os carros, que os cruzavam transversalmente, por forçar as rodas e os eixos. Entretanto,
este novo trilho não representou um impedimento ao trânsito dos demais veículos, pois
além de não apresentar encaixes onde o pó e o lixo pudesse se acomodar e criar obstáculos
para o tráfego dos bondes, não há elementos de atração para as rodas dos demais
veículos.211 Como pode se observar na figura 4:
Figura 4: Esboço de trilho instalado na Filadélfia - Estados Unidos.212
Observando o método de Loubat de assentar os dormentes sob o pavimento das
ruas, um engenheiro inglês de nome M. Charles L. Light estudou o caso de Nova Iorque e
210
Ibidem, p. 8.
CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit., p. 9.
212
O trilho indicado pela seta foi colorido em vermelho, para facilitar na visualização e compreensão. No
original, o esboço esta em preto e branco.
211
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construiu em 1856-57, uma linha de bondes em Boston com uma particularidade: esta linha
possuía uma fenda menor que as fendas das linhas implantadas por Loubat. Ele avaliou que
seria menos inconveniente uma fenda menor nas linhas dos bondes, onde em um plano
inclinado, possibilitariam que os encaixes das rodas se adaptassem e que estas se
deslocassem com facilidade, enquanto o pó ou as pedras pequenas seriam superados
facilmente.
A América Latina acompanhou o desenvolvimento mundial dos transportes,
contando com as primeiras vias férreas a vapor a partir da década de 1830, logo após o
surgimento das mesmas na América do Norte. Os bondes também acompanharam o
desenvolvimento global, com ferro-carris de tração animal implantados na Cidade do
México, no dia 1º de janeiro de 1858. Esta linha implantada só foi precedida das linhas de
Nova Iorque, Nova Orleans, Paris e Boston.213
Segundo Morrison, o México inaugurou sua primeira via férrea a vapor em 1850 e
o primeiro bonde oito anos após. Ele acrescenta que os bondes levaram os passageiros da
catedral para a praça de touros e para o subúrbio de Tacubaya. Estes bondes eram os
mesmos veículos que foram implantados em Nova Iorque.214
Também em 1858, foi inaugurada a primeira linha de bondes em Santiago, no
Chile, sete anos após a abertura da primeira via férrea. Ela foi construída pelos mesmos
engenheiros norte-americanos, e contaram com os mesmos modelos de bondes, que foram
instalados na Cidade do México e em Nova Iorque. Estes bondes eram construídos pela
Eaton Gilbert & Company.215
Em 1859 começaram a trafegar no Rio de Janeiro os primeiros bondes de tração
animal, três anos após a autorização dada pelo governo ao inglês Thomas Cochrane, para
213
MORRISON, Allen.Tramway Pionners. Disponível em: <http://www.tramz.com/tw/p.html>. Acesso em:
30 de outubro de 2008.
214
idem.
215
MORRISON, op.cit.
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organizar um serviço urbano de veículos sobre trilhos de ferro. Foi feita em 30 de janeiro
uma viajem de experiência, a qual galgou um expressivo êxito e, em 26 de março, foi
efetuada a inauguração solene.216 Morrison acrescenta, dizendo que a linha foi batizada
pelo imperador.217
Em 1861, Train estabeleceu o serviço de transporte em Londres, com a autorização
de autoridades locais.218 Foi construída uma linha na estrada de Blayswater, entre o portico
de “Notting Hill e a Arca de Marmore”.
Em 1863, uma linha de bondes de dois
quilômetros e oitocentos metros, foi aberta, em “Cerâmic District”, para a companhia
Ceramic of Staffordshire, entre Burslem e Hanley. Segundo Gardé, os bondes que
circularam em Londres foram construídos na Filadélfia e a administração local não gostou
de tal iniciativa, uma vez que, além de encerrar coercivamente as linhas, colocou o original
empreendedor na cadeia.219
O fracasso destas iniciativas na Inglaterra se deu devido ao estado relativamente
bom das ruas e estradas e da difusão de ônibus e carros, aos quais um número grande de
pessoas tinham acesso a um preço razoável. Estes fatores apontaram para uma necessidade
menos urgente dos bondes na Inglaterra. Ele acrescenta que os defensores dos bondes
foram desencorajados pelo fracasso manifesto dos primeiros bondes, e se afastaram
durante certo tempo.220
Clarck e Chemin concluem o assunto de forma taxativa: “o tempo do bonde com
trilho “Para Pisar” tinha passado. Embora as pessoas tolerassem isto na América, eles
foram odiados na Inglaterra; e só depois de um intervalo de vários anos, - em 1865 e 1866
- recuperaram o movimento para a construção dos bondes”.221
216
STIEL, op. cit., p. 315.
MORRISON, op.cit.
218
CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op cit., p. 12.
219
GARDÉ, op. cit., p. 38.
220
CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit., p. 12.
221
Idem.
217
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Mesmo com os problemas diversos enfrentados por cada companhia e em cada
localidade, este meio de transporte comprovou sua grande utilidade e versatilidade, com a
implantação de linhas nas principais cidades do mundo. O uso do bonde variou desde o
transporte de carvão nas minas, até o transporte de cadáveres, ao qual farei menção
posteriormente. Portanto, em consonância com Clarck e Chemin, o bonde provocou uma
revolução nos transportes de sua época, uma vez que, permitiu, através de sua estrutura
composta por trilhos assentados sobre o pavimento das vias aos quais é adaptado o
compartimento, seja de passageiros ou de carga, uma redução no tempo das viagens,
conforto aos passageiros, redução nos custos devido ao uso de menos animais para
tracioná-lo, além de um desgaste menor dos animais e a possibilidade de transporte de
maior quantidade de passageiros ou de cargas.
Bibliografia
BELO, José Luís Garcia. Autocarros Urbanos, a sua Evolução e Perspectivas de Futuro.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, 1998. In: GARDÉ,
Emídio. Os Tramways. 2008. No prelo.
CLARCK, D. K.; CHEMIN, M.O. Tramways: construction et exploitation. Tradução
própria. Paris: Dunod, 1880.
DE AMTUIR, Les transports urbains à travers le temps: les origines. Disponível em:
<http://www.cnam.fr/hebergement/ amtuir/ a_histo1.htm a 2002-01-02>. In: GARDÉ,
Emídio. Os Tramways. 2008. No prelo.
Dicionário do Folk-lores Brasileiro – Luiz da Câmara Cascudo – Pág. 128. In: STIEL,
Waldemar Corrêa. História do Transporte Urbano no Brasil. Brasília: Pini, 1984.
ESTEVES, Albino. Álbum do Município de Juiz de Fora. Bel Horizonte: Imprensa Oficial,
1915. 72 p.
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FERREIRA, A. B. H. Miniaurélio Século XXI Escolar: o minidicionário da língua
portuguesa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
HADLER, Maria S. D. Trilhos da modernidade: memórias e educação urbana dos
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Disponível
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Notas Sobre a Trajetória Individual do Conde de Funchal (1760-1833).
Debora Cristina Alexandre Bastos e Monteiro de Carvalho222
Resumo: Em meio aos acontecimentos de inícios do século XIX, algumas figuras se
destacaram em meio ao caos ocasionado pela iminência das invasões das tropas francesas
em Portugal. Dentre essas figuras, estava D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho.
A
comunicação pretende abordar a vida desse ator político, apontando para isso alguns
elementos de sua trajetória em seus anos de vida, de 1760 a 1833. Utilizo alguns métodos
da História Política Renovada, principalmente, em relação a utilização de fontes como as
correspondências. As fontes utilizadas são as correspondências do Conde de Funchal, bem
como os impressos da época como o Correio Braziliense, além de fontes secundárias como
as memórias de José Liberato, editor do impresso Investigador Portuguêz em Inglaterra,
mas também, as referências bibliografias que remetam ao período abordado.
PALAVRAS-CHAVE: D. Domingos; trajetória; diplomacia.
ABSTRACT: Amid the events of the early nineteenth century, few figures stand out amid
the chaos caused by the imminence of the invasion of French troops in Portugal. Among
these figures, was D. Domingos Antonio de Sousa Coutinho. It intends to address the
political life of this actor, pointing out that some elements of his career in his lifetime, from
1760
to
1833.
I use some methods of renewed political history, especially regarding the use of sources
such as matches. The sources used are the matches of the Earl of Funchal and the forms of
the season as the Correio Braziliense, and secondary sources as the memoirs of José
222
Aluna do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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Liberato, editor of Research Portuguez printed in England, but also references bibliography
referring the period covered.
KEYWORDS: D. Domingos, trajectory; diplomacy.
Este artigo tem por finalidade abordar a trajetória de D. Domingos Antônio de
Sousa Coutinho, de maneira parcial. Mesmo não sendo a intenção primeira no
desenvolvimento dessa pesquisa a biografia desse diplomata português, -se torna
importante para que entendamos o contexto em que ele viveu, algumas de suas escolhas e
transformações com o passar do tempo.
Estudos que abordem a trajetória de um indivíduo merecem atenção devido aos
percalços com que o historiador poderá se deparar. Uma atitude individual que a primeira
vista poderia ser considerada uma contradição, nada mais pode indicar que o homem não
segue uma linha reta e que ele não possui uma linearidade, e que tudo o que esse indivíduo
é, faz parte das várias influências, experiências, expectativas, que estão em profunda
confluência já que não são estáticas e estão em constante tensão. Baseada nisso, pretendo
desenvolver um artigo que demonstra alguns resultados parciais da pesquisa sobre D.
Domingos Antônio de Sousa Coutinho, o Conde de Funchal.
A noção de trajetória desenvolvida por autores como Giovani Levi, Pierre Bourdieu
e Jaques Le Goff, e as idéias de micro e macro utilizadas pelo sociólogo Daniel Cefai, de
certa forma se encontram223. Acredita-se que o micro, representado pelo próprio ator e o
macro pelo contexto o qual ele pertence são indissociáveis, e que, se, pensados
separadamente não fazem sentido. Segundo Daniel Cefai, é possível pensar o micro, não
apenas como uma redução de escala, e que é plausível fazer o estudo sobre este indivíduo.
Tal estudo, ajuda na compreensão de como os atores se relacionam, colaboram, expressam
223
CEFAI, Daniel. Expérience, culture et politique. In: Cultures politiques. Paris: PUF, 2001.
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ou solucionam seus problemas. O indivíduo, nessa perspectiva não deve, contudo, ser
isolado. É um estudo do micro, que permite perceber o ambiente em que o ator esteve
envolvido mas que, ao mesmo tempo, nos dá uma noção estrutural.224
A relação estabelecida entre a História Política e as biografias formam um ponto
essencial. Os trabalhos de Giovani Levi, Pierre Bourdieu e Jaques Le Goff são referências.
Para Le Goff, ao produzir uma biografia o historiador deve indagar a trajetória do
biografado a ele próprio, tendo por base o local de seu nascimento, estudo, suas relações
sociais, as idéias que defendeu, bem como o contexto em que viveu.225 Outro autor
importante na construção de trajetórias é Pierre Bourdieu que em sua “ilusão biográfica”
considerou ser indispensável a reconstrução do contexto, ou seja, a “superfície social” em
que o indivíduo age em campos de componentes diversas226 tal idéia foi compartilhada por
Giovanni Levi. Este último, por sua vez, chama a atenção para a idéia de acharmos que os
biografados “obedecem a um modelo de racionalidade anacrônico e limitado227”,
demonstrando que não se deve achar que a vida do biografado segue uma linha reta, sem
curvas. Levando em consideração esses três autores, podemos perceber que todos possuem
um ponto em comum: acreditam que a biografia não deve seguir uma linearidade, e que os
atores estudados não possuem uma “cronologia ordenada, uma personalidade estável,
ações sem inércia e decisões sem incertezas”.228
A partir dos autores elencados acima, podemos ter em mente a noção de Cultura
Política, principalmente, quando tratamos das trajetórias políticas de “nomes próprios”.229
Segundo Serge Bernstein, o conceito de Cultura Política pode adaptar-se a complexidade
224
Cf.: CEFAI. Op. Cit.
LE GOFF, Jacques. Comment écrire une biographie historique aujourd’hui? Le débat, Paris, nº 54,
mars/avril, 1989, pp. 48-54.
226
BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, Marieta e AMADO, Janaína (org). Usos e
abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996.
227
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: Usos e abusos da História Oral. FERREIRA, Marieta e AMADO,
Janaína (org). Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996.
228
Idem.
229
BERSTEIN, Serge. A Cultura Política. In: RIOUX, Jean-Pierre e Sirinelli, Jean-François. Para um
História Cultural. Lisboa: Editora Estampa, 1998.
225
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dos comportamentos, rompendo ainda com a idéia de Cultura Política no singular, levando
em consideração as várias componentes que a cercam e que estão em constante
confluência. Se olharmos por esse âmbito, percebemos que os valores apreendidos pelo
ator, não são estáticos e se modificam de tempos em tempos230. D. Domingos viu o caos na
Revolução Francesa quando foi enviado como observador em 1790. Na França
revolucionária, se deparou com o terror, o delírio e a anarquia231, talvez esse tenha sido o
motivo de sua posição anglófila na política portuguesa.
E é dessa maneira que pretendo reconstruir a vida de D. Domingos e as idéias que o
influenciaram, que o formaram. Pode-se perceber que todas os vértices que foram
levantados possuem uma ligação harmônica entre si. No estudo acerca de D. Domingos
Antônio de Sousa Coutinho, todas essas concepções são bastante plausíveis, já que se trata
de um ator político, que possuía seus ideais, suas escolhas políticas, suas culturas políticas.
De fato, alguns pontos de sua vida ainda não são conhecidos, já que a pesquisa ainda se
encontra numa fase inicial. Mas é importante ressaltar que a bibliografia citada servirá de
base para o desenvolvimento desse trabalho. Dito isso, o próximo passo é apresentar
alguns pontos já conhecidos sobre o Conde.
D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho, primeiro e único Conde de Funchal,
título nobiliárquico que recebeu em 1808 da Rainha Maria I, juntamente com seu irmão, O
Conde de Linhares. Foi também primeiro Marquês do Funchal, título que recebeu em
1833, pouco antes de sua morte.
D. Domingos nasceu em Chaves232, e morreu na Inglaterra em 1833. Vindo de uma
família da nobreza era filho de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho233 que foi
230
Cf.: CEFAI, Daniel. Expérience, culture et politique. In: Cultures politiques. Paris: PUF, 2001.
ARAÚJO, Ana Cristina Bartolomeu de. As invasões francesas e a afirmação das idéias liberais. In:
MATTOSO, José (org). História de Portugal. vol. V, Lisboa, Estampa, 1994.
232
Segundo Andree Mansuy, D. Domingos teria nascido em 1762, enquanto para Hélio Vianna, ele teria
nascido em 1765.
231
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Conselho de S. M. F, sargento-mor dos Dragões de Chaves, Coronel de Cavalaria na praça
Almeida, Governador e Capitão-general dos Reinos de Angola e de Benguela, embaixador
em Madrid, entre outros e de D. Ana Luisa da Silva Teixeira de Andrade234. D. Ana Luisa,
era filha de Maria Barbosa da Silva e neta de Matias Barbosa da Silva, um dos
devassadores das Minas Gerais na época da exploração aurífera235. Seus irmãos também
ocuparam lugares de destaque no Reino: o conhecido D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o
Conde de Linhares, que fora diplomata e Ministro e Secretário de Estado da Marinha e
Domínios Ultramarinos, cujo título, de Conde de Linhares, recebeu no mesmo dia em que
seu irmão, também em 1808.236 Era igualmente irmão de D. José de Sousa Coutinho,
principal diácono da patriarcal de Lisboa, entre os anos de 1811 e 1817, e de D. Francisco
Maurício de Sousa Coutinho que por treze anos foi governador do Grão-Pará.237 Segundo
Hélio Vianna, D. Domingos descendia de duas das mais antigas casas do Reino, as do
Coutinho, que vinham do tempo da fundação da monarquia e as do Sousa, descendentes de
Afonso III, o Bolonhês.
D. Domingos foi um homem de letras, poliglota, muitas de suas correspondências
foram escritas em inglês, italiano e francês. Como nobre que o era, formou-se em Leis.
Formado pela Universidade de Coimbra depois das Reformas Pombalinas.238 Segundo
Hélio Vianna, em finais do século XVIII e inícios do XIX, onde se passou das idéias
absolutistas e autoritárias do Marquês de Pombal aos ideais da Revolução Francesa e,
posteriormente, do constitucionalismo liberal tanto Portugal quanto o Brasil, contou com
uma geração de bacharéis que haviam saído, da recém-reformada Universidade de
233
O pai de D. Domingos, D. Francisco Inocêncio foi o negociador do tratado preliminar de Santo Ildefonso,
acordado com a Espanha em 1777, fixando assim os limites territoriais.
234
VIANNA, Hélio. Um diplomata português neto de brasileira. In: Jornal do Comércio, 1957
235
Idem.
236
ZUQUETE, Afonso Eduardo Martins. Nobreza de Portugal e do Brasil. Lisboa. Editora Zairol, 1989. Vol
2.
237
Cf: VIANNA, Op. cit.
238
Idem.
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Coimbra. Segundo o mesmo autor, o que também é compartilhado por Kenneth
Maxwell239, foi essa universidade que forneceu estadistas, diplomatas e cientistas,
inclusive, D. Domingos: que segundo Hélio Vianna era “ (...) dos mais interessante, porém
dos menos conhecidos (...).”240
Iniciou sua carreira diplomática na Dinamarca em 1788, depois foi enviado a Turim
de 1796 a 1803, quando se tornou embaixador na Inglaterra até 1814. Mais tarde, foi
enviado a Roma onde ficou até 1828.241
José Liberato, editor do Investigador e
contemporâneo de D. Domingos nos deixou uma fonte bastante rica e que nos ajuda a
compreender melhor a figura de Funchal, descrevendo
“Era aquele nosso embaixador, bem que de figura externa pouco
gentil, homem muito instruído, de maneiras agradáveis e até
engraçadas, e inimigo declarado de três altas classes da sociedade,
como eram - padres, inquisidores e desembargadores, dos quais
dizia tinham vindo todos os males a Portugal; porque por eles as
leis tinham sido feitas, e por sempre tínhamos sido governados”242
Gozava de grande prestígio, fato que fica claro, quando de sua saída da embaixada
londrina em 1814, em que fez uma grande festa em que estava presente o Príncipe Regente
inglês, ainda segundo José Liberato:
“A quem ele mais familiarmente tratava, porém ao mesmo tempo
sem faltar a toda etiqueta de uma rigorosa civilidade, era o Conde
de Funchal, a quem ele denominava o seu Sousa. (...) De estatura
mui pequena como era, mal feito de corpo, e ainda mais de figura, e
agora vestido com a sua rica farda de embaixador sobre a qual
cabiam uma gram-gruz, e os crachás de muitas ordens,
239
MAXWELL, Kenneth. Geração de 1790 e a idéia de Império Luso Brasileiro. In: Chocolate, Piratas e
outros malandros: Ensaios Tropicais. São Paulo, Ed: Paz e Terra, 1999.
240
Idem.
241
SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portrait d’um homme d’Etat : D. Rodrigo de Souza Coutinho, Comte
de Linhares 1755-1812. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian;
2002-2006. vol 1.
242
CARVALHO, José Liberato Freire. Memórias da vida de José Liberato. Tipografia de José Baptista
Morando, Lisboa, 1855.
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representava um papel tão fora do comum, que parecia interessar
muito o Príncipe, que dele muito gostava “243.
O período vivido pelo Conde de Funchal foi bastante conturbado. Em finais do
século XVIII e inícios do XIX, a política internacional se tornou decisiva para a Europa.
Em inícios do século XIX, Napoleão Bonaparte, auto intitulado imperador da França, viu
como entrave aos seus interesses a Inglaterra. Na tentativa de atingir a economia britânica,
Napoleão decretou o bloqueio continental em 1806, que proibiu todas as nações da Europa
de comercializarem produtos com a Grã-Bretanha.244 O bloqueio alvejou diretamente o
Império Português que, na iminência de uma invasão das tropas francesas, teve que mudar
sua estratégia diplomática tradicionalmente neutra245, por imposição tanto da Inglaterra
quanto da França.246
Internamente, Portugal encontrava-se igualmente dividido, havendo dessa maneira,
“duas orientações diplomáticas em confronto”247, em que “o interesse e o sentimento
associam-se nas representações que se criam da conduta dos diplomatas”. 248 De um lado,
simpatizantes dos franceses eram representados pelo “partido francês”, que tinha como
maior nome Antônio de Araújo Azevedo, futuro Conde da Barca, que mais tarde fez
inúmeras acusações a D. Domingos e ao Conde de Linhares, acusações essas que
mereceram uma resposta por parte de D. Domingos, em uma impressão denominada
Resposta pública a denúncia secreta que tem por título “Representação que sua
243
CARVALHO, Op. Cit. pg 150-151.
SCHWARCZ, L. K. M., AZEVEDO, Paulo César e COSTA, Ângela Marques da. A longa viagem da
biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. 1. ed. São Paulo: Cia. das Letras,
2002. vol. 1. Og. 194.
245
Cf: ARAUJO. Op. Cit. Portugal, diante dos acontecimentos que envolviam a Independência das Treze
Colônias manteve-se Neutro. Anos mais tarde, em 13 de julho de 1782, aderiu a Liga dos Neutros,negociada
por Luís Pinto de Sousa Coutinho. Este, assinou acordos bilaterais com os Estados Unidos e Rússia.
246
Cf: SCHWARCZ, L. K. M., AZEVEDO, Paulo César e COSTA, Ângela Marques da. Op. Cit.
247
PEDREIRA, Jorge e COSTA, Fernando Dores. D. João VI, um príncipe entre dois continentes. São
Paulo: Companhia das letras, 2008. Pg. 88
248
ARAÚJO. Op. Cit pg 28.
244
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Magestade fez Antonio de Araujo de Azevedo em 1810”. sob o pseudônimo de R. da C.
Gouveia.249
Por outro lado em Portugal se tinha o grupo dos liderados por D. Rodrigo de Sousa
Coutinho, partidários do governo britânico, oriundos do “partido inglês”. Em meio a essa
divisão, D. Domingos também se posicionou, aí pode-se perceber a influência das culturas
políticas que o cercavam. Sobre sua postura política gozamos de uma gama de opúsculos
sobre assuntos diplomáticos e políticos . Além da Resposta dada a Antônio de Araújo
Azevedo era de sua autoria Notas ao Pretendido Manifesto da nação portuguesa aos
soberanos da Europa, Carta escrita El-Rei Nosso Senhor pelo Conde de Funchal, quando
nomeado um dos governadores do Reino em 1819, e tantos outros que nos dá indícios
sobre suas culturas políticas.250
Alguns de seus contemporâneos falaram do posicionamento dele, assim como José
Liberato em suas memórias declarou que Funchal passara parte de sua vida em Londres
onde havia se tornado um anglófilo convicto, descrevendo: “ Quanto a política era inglês
nos ossos, inimigo figadal dos franceses, e monarquista exaltado”.251 Isso fica claro em
uma publicação sua no periódico Correio Braziliense, em que D. Domingos anonimamente
escreve uma carta sobre a conduta de Araújo de Azevedo, em setembro de 1812. Nesta
carta, ele fala sobre as invasões francesas em Portugal e da vinda Família Real para o
Brasil, chamando Napoleão Bonaparte de tirano.252
Segundo Valentim Alexandre, o conceito que melhor definiu as circunstâncias
vividas pelo Império Português, foi o da “vulnerabilidade estrutural”, mas não de crise. Tal
vulnerabilidade já era visível desde o século XVII, tornando-se ainda mais clara após os
conflitos internacionais que atingiram a Europa em finais do século XVIII, que se
249
GOUVEIA, R. da C..Resposta pública a denúncia secreta que tem por título “Representação que sua
Magestade fez Antonio de Araujo de Azevedo em 1810”, Londres, 1820.
250
Cf: ZUQUETTE, op cit.
251
CARVALHO apud VIANA, 1957.
252
Correio Braziliense, 1812. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Digital.Disponível em www.bn.br.
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acentuaram no início do século XIX e que culminou com acontecimentos de 1807 253. As
pretensões portuguesas eram amplas para uma pequena potência como Portugal, entre os
pontos fundamentais para o Estado lusitano estavam: a defesa do território metropolitano,
especialmente contra os ideais expansionistas da Coroa Espanhola; a proteção dos tráficos
coloniais, essenciais para o comércio externo; a fixação de fronteiras favoráveis,
principalmente para o Brasil; e a preservação das colônias na costa Africana, principal
fonte de mão-de-obra escrava.254 O apoio fundamental a essas aspirações veio da GrãBretanha, com quem o Império Português fixou tratados desde o século XVII, fato que não
se alterou até 1807255. Apesar disso, diante de um possível conflito pós-bloqueio
continental, o governo Português não desejava um enfrentamento com a França, tentando
permanecer, dessa maneira, neutro.
A tentativa de estabelecer acordos secretos com os dois lados, não agradou o
governo britânico. O Príncipe Regente havia enviado uma carta ao Rei Inglês, pedindo que
salvasse a monarquia portuguesa fingindo estar em guerra. D. Domingos negociou a
convenção de 22 de outubro de 1807, que visava regulamentar as relações entre Portugal e
Inglaterra em tempos de crise. A assinatura dessa convenção tornava quase que obrigatória
a retirada da Corte para o Brasil e a ruptura com a França.
O artigo no 60 que garantia a proteção da Grã-Bretanha para que a Família Real
Portuguesa chegasse à colônia do Brasil, não estava definido devido à insatisfação do
governo inglês com uma ratificação parcial na convenção, e se recusava a endossá-la. Às
vésperas da transposição da Coroa Portuguesa, o acordo que remetia a escolta britânica às
esquadras reais, não estava totalmente estabelecido. Inclusive como exemplo da
desconfiança inglesa, além da que foi citada anteriormente, a ocupação britânica na Ilha da
253
ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império: Questão nacional e questão colonial na crise do
antigo regime português. Lisboa.Edições Afrontamento, 1992. Pg 105.
254
Idem.
255
Idem. Pg 93.
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Madeira , também fez parte da ação ressabiada dos ingleses em relação ao Governo
Português.256
Nesse momento, D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho, teve papel
preponderante nas negociações. E como ele próprio expressou: a “Autoridade Soberana
boiava sobre o Oceano”257, enquanto o reino português encontrava-se sem meios de agir,
tanto no contexto internacional quanto em seus territórios.
“O embaixador em Londres, D. Domingos de Sousa Coutinho –
tomava sobre si ‘representá-la e defendê-la’ velando ‘por todas
partes da Monarquia que tratam com a Grã-Bretanha’ apesar de
desprovido de instruções ou ‘ordens de qualidade alguma‘”.258
D. Domingos acordou com o representante inglês, ministro Canning, a sanção para
que tudo fosse resolvido. Em troca dessa escolta, seria certo de que o Governo Português
deveria aceitar todas as estipulações impostas, o que resultou posteriormente na abertura
dos portos às nações amigas em 1808 e nos tratados de 1810.
Após o acordo feito com Canning em 1807, no contexto da vinda da Família Real
para o Brasil. D. João VI, conferiu plenos poderes a D. Domingos para um congresso de
paz realizado na Grã-Bretanha259. No contexto dos tratados de 1810, esteve envolvido nas
negociações que abarcavam um acordo entre os dois países. O primeiro documento
relacionado a esses tratados foi feito e redigido pelo embaixador português,260 a pedido do
256
Idem. Pg 170.
Idem. Pg 170.
258
Idem. PEREIRA apud ALEXANDRE. Pg 170.
259
Carta do príncipe regente de Portugal a D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho de 20/01/1809.
Fundação Biblioteca Nacional/ Manuscrito I-29,14,55 n° 01-02.
260
Cf: PEDREIRA E COSTA, 2008. pg. 229
257
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Lord Stragford, com quem teve uma relação de proximidade261 e levou o projeto para ser
novamente discutido no Rio de Janeiro junto a Imperial Corte Lusitana.262
Firmados os tratados em 1810, o descontentamento com o Governo Português
ficou clarificado com a reação demonstrada por Hipólito da Costa na Inglaterra, editor do
periódico Correio Braziliense. Publicou, no entanto, o tratado e exibiu um exame deste em
que alguns pontos eram criticados. Segundo Evaldo Cabral de Mello, o tratado com a
Inglaterra teria desiludido o jornalista e redator do Correio Braziliense.263
O que
ocasionou um certo mal estar entre Hipólito e D. Domingos. As publicações de artigos
contra a Coroa Portuguesa no Correio Braziliense, numa Inglaterra onde a imprensa era
livre, fez com que, em 1811, esse jornal fosse proibido em Portugal.264 Em oposição às
críticas feitas no Correio, foi criado em 1812, O investigador Portuguez em Inglaterra,
impresso português editado na Grã-Bretanha, que perdurou com esse objetivo até 1814.265
Em 1812, D. Rodrigo de Sousa Coutinho morreu e D. Domingos enviou uma carta
ao Lord Strangford, lamentando o acontecido266. A morte de D. Rodrigo parece ter feito
muita diferença na vida de D. Domingos dali para frente, em meio a divisão do que poderia
ser chamado de “partido inglês” e “partido francês”, até mesmo em relação a corte, um
perdia o prestigio frente ao outro. Depois disso, D. Domingos, foi inclusive convidado a se
retirar da embaixada inglesa, coisa que não o agradava, trazendo problemas para que o
Conde de Palmela assumisse o seu posto em Londres. Após sua saída de Londres, D.
Domingos foi enviado a Roma, onde ficou de 1814 a 1828. Em 1828, ainda se mostrava
261
A relação de amizade entre o Lord Strangford e D. Domingos, pode ser conferida nas correspondências
trocadas por ambos estão disponíveis no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Lata 434. Pastas 15 a 17.
262
Cf: ALEXANDRE, 1992. Como podemos perceber, a participação de D. Domingos nos tratados de 1810
fica clara tanto em suas correspondências oficial, guardadas no Arquivo do Itamaraty, quanto em suas
correspondências particulares trocadas tanto com seu irmão, Conde de Linhares, quanto com o Lord
Strangford, ministro inglês no Brasil de 1808 a 1815, em Lisboa desde 1806.
263
MELLO, Evaldo Cabral. Um imenso Portugal. São Paulo. Editora 34,2002. Pg. 50-51.
264
VARGUES, Isabel Nobre. O Processo de formação do primeiro movimento liberal: A Revolução de
1820. In: MATTOSO, José (org). História de Portugal. vol. V, Lisboa, Estampa, 1994. Pg 46.
265
Idem. Pg 48.
266
COUTINHO, Domingos Antônio de Sousa. Carta ao Lord Strangford. Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, 1970. Manuscrito/ Lata 434, pasta 14. Documento 6.
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um monarquista exaltado, como dito por José Liberato. Um fato interessante relacionado
ao seu posicionamento frente a Corte, pode ser demonstrado no artigo de Pedro Vilas Boas
Tavares em que D. Domingos, então embaixador português junto da Santa Sé (assim como
o Conde Palmela embaixador de Portugal em Londres) suspendeu toda a correspondência
com Lisboa, com prévia aprovação romana a essa resolução, quando do golpe no trono de
D. Miguel em Portugal.267 Em 1833, já de volta a Londres, D. Domingos morreu pouco
depois de receber o título de primeiro Marquês de Funchal.
É importante ressaltar que a trajetória de D. Domingos não está completamente
descrita nessas páginas, alguns pontos sobre sua vida ainda estão por serem descobertos.,
Mas mais importante ainda, acredito que seja perceber que ele nos deixou um grande
número de fontes os quais poderemos utilizar para o desenvolvimento dessa pesquisa. A
importância de D. Domingos para as relações diplomáticas lusitanas se torna clara após a
iniciação deste estudo. Havendo lacunas sobre sua vida, suas relações políticas, que
influenciaram na diplomacia portuguesa, tenho como intenção neste trabalho, que ainda se
encontra em gestação, preencher tais lacunas, tão obscuras mas ao mesmo tempo
interessantes.
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267
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Política Industrial Comparada: o caso de Brasil e Espanha268
Maedison de Souza
Email: [email protected]
Diogo Gomes de Campos
Email: [email protected]
RESUMO: Na Espanha a preocupação tecnológica marca as últimas décadas e que não se
modifica no período aqui tratado. No Brasil, tendo em vista que o governo anterior ao aqui
tratado havia uma diferente concepção de política industrial e de pouco resultado, o
governo do presidente Luiz Inácio Lula de Silva assume com os olhos voltados para esse
setor da economia. O presente texto tem por objetivo apresentar uma abordagem sobre a
política industrial durante o governo representado pelo presidente José Luis Rodriguez
Zapatero, em comparação com a gestão do governo de Luis Inácio Lula da Silva.
PALAVRAS-CHAVE: Política Industrial; Brasil; Espanha.
ABSTRACT: In Spain the concern technology marks the last decades and that does not
change during the period that is here. In Brazil, considering that the previous government
had treated here to a different conception of industrial politics and poor results, the
government of President Luiz Inacio Lula de Silva took his eyes focused on this sector of
the economy. This paper aims to present an approach to industrial politics during the
government represented by President José Luis Rodriguez Zapatero, compared with
management by the government of Luis Inacio Lula da Silva.
268
Texto apresentado no I Seminário de graduandos e pós‐ graduandos em História da UFJF por Maedison
de Souza e Diogo Gomes de Campos (Graduandos em História – UFJF)
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KEYWORDS: Industrial Politics, Brazil, Spain
INTRODUÇÃO
Ao nos debruçarmos sobre o tema de Política Industrial acreditamos que
primeiramente o significado dessa expressão deva estar claro, com o intuito de melhor
compreendermos o assunto aqui tratado. Entendemos como Política Industrial o conjunto
de medidas propostas e aplicadas por determinado governo, que visa o direcionamento da
cena industrial de um país. É aqui que percebemos os delimitadores da produção da nação,
ou seja, a dinâmica produtiva aplicada por um país. Passando pelas propostas de
investimento nas áreas mais inovadoras até aquelas que pouco são transformadas.
Acreditamos que PI (Política Industrial) “propõe que há uma co-evolução de tecnologias,
de estruturas de empresas e de indústrias, e de instituições em sentido amplo, incluindo
instituições de apoio à indústria, infra- estruturas, normas e regulamentações, tendo a
inovação como força motora. Assim, neste enfoque a PI é ativa e abrangente, direcionada a
setores ou atividades industriais indutoras de mudança tecnológica e também ao ambiente
econômico e institucional como um todo, que condiciona a evolução das estruturas de
empresas e indústrias e da organização institucional, inclusive a formação de um sistema
nacional de inovação. Isto determina a competitividade sistêmica da indústria e impulsiona
o desenvolvimento econômico.”269
No estudo do setor industrial é importante considerarmos que aqui tratamos da sua
forma mais ampla. Não nos referimos às unidades produtivas que são as empresas ou
firmas, mas sim, ao complexo de produtividade. As firmas podem ser consideradas como
“unidades primárias de ação” que produzem na forma de capital, trabalho, tecnologia e
269
SUZIGAN & FURTADO; 2006
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terra, podendo variar de tamanho e sendo classificadas como grandes, medias, pequenas ou
microempresas. A indústria consiste no conjunto de firmas que produzem artefatos
idênticos ou semelhantes na sua constituição física, ou baseados na mesma matéria
prima.270 Como descrevemos acima, a PI é sugestiva a cada país como iniciativa
governamental e que portanto está vinculada à sua cultura política. É observando dois
países de diferentes trajetórias históricas, tal qual Brasil e Espanha, é que podemos
perceber que nações que investem com mais intensidade em inovações tecnológicas estão
dentro do circulo dos ditos países desenvolvidos, ou centrais, enquanto que os
subdesenvolvidos, ou periféricos, são receptores de inovação e principais produtores de
bens de consumo.271
Os governos que se prestam a ter um planejamento de sua governabilidade durante
o seu período de atuação buscam uma organização de sua estrutura para que se tenha uma
melhor harmonia entre os setores que pretende abarcar. Percebemos que Espanha e Brasil
possuem estruturas completamente diferentes e que assim possuem papeis diferentes no
cenário mundial. O primeiro está entre os países centrais em que a sua produção está mais
voltada para produtos que envolvem maior desenvolvimento tecnológico. Já o segundo está
sustentado por uma política que visa a produção de bens de menor perenidade.
Nossas fontes primárias retratam o ano de 2005 em que Luiz Inácio Lula da Silva é
o presidente brasileiro que se propõem a pensar uma estrutura de PI para o Brasil, tendo e
vista os anos de ostracismo da década de 1990. Já Espanha é governada pelo primeiro
ministro José Luis Rodriguez Zapatero que mantém uma prática de planejamento que seu
país faz regularmente.
BRASIL
270
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KON; 1994
GOLDENSTEIN; 1994
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Com a implementação definitiva no início da década de 90 do neoliberalismo no
Brasil, a Política Industrial, como entendida nesse trabalho, foi deixada de lado, isso
porque ela requer uma forte intervenção do Estado na economia, atitude essa contrária aos
neoliberais que estavam no Governo. O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assume a
Presidência com a proposta de retomada da PI na tentativa de acender o crescimento do
setor industrial que estava estagnado. Para isso ele lança a Política Industrial Tecnológica e
de Comércio Exterior (PITCE).
A PITCE, foi lançada pelo Governo Lula em 2004. Com o objetivo de inovação,
agregar valor aos produtos e serviços das indústrias brasileiras e elevar o padrão de
competitividade da indústria nacional. Ela abrange três eixos, o primeiro é formado por um
conjunto de instrumentos horizontais que colaboram para a modernização industrial, para o
aumento da capacidade inovadora das empresas, para uma melhor inserção das firmas
brasileira no mercado internacional e para o aperfeiçoamento do ambiente institucional1. O
segundo eixo determina como opções estratégicas os setores de software, semicondutores,
bens de capital e fármacos e medicamento. Alguns desses setores como software,
semicondutores e bens de capital, são elementos fundamentais para modernização da
indústria brasileira. E por fim, o terceiro eixo se refere as ações portadoras de futuro, como
a biotecnologia, nanotecnologia e energias renováveis. Espera-se com a implantação desses
eixos colocar o Brasil em condições de disputar de igual para igual o desenvolvimento
desses setores com os principais países do mundo. 2
Propomos-nos agora a fazer um detalhamento de cada eixo de atuação da PITCE,
dando destaques para alguns programas e metas que o Governo pretende alcançar. O
1 Acompanhamento da Política Industrial Tecnológica e de Comércio Exterior, PITCE 2 anos e PITCE 3
anos.
2 idem
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primeiro eixo é as Linhas de Ações Horizontais, que destacamos de princípio alguns marco
regulatórios criados para dar andamento a PITCE, como a Lei 10.973/2004 ou Lei de
Inovação, que indica uma nova relação entre universidades e institutos públicos de
pesquisas e empresas privada, além de possibilitar uma participação mais ativa do Estado
no apoio à inovação empresarial, por exemplo a lei permite o investimento público em
empresas privadas e cria estímulos para que as empresas contratem pesquisadores para seu
quadros ou que pesquisadores constituem suas próprias empresas. Outro marco é a Lei
11.196/2005, ou a Lei do Bem, que estabelece um conjunto de instrumentos para apoio à
inovação na empresa, esses instrumentos reduzem o custo e o risco da inovação na grande
empresa, através de incentivos fiscais. Lei de Biosegurança, Lei 11.105/2005, é um marco
decisivo ao viabilizar a pesquisa com organismos geneticamente modificados e com as
células-troncos.
Um dos obstáculos para a inovação é o financiamento e o Brasil vem corrigindo
isso. Ao lodo dos marcos legais citados acima, vale destacar a (re)entrada do BNDES
como grande financiador de projetos de inovação e isso se soma a elevação do orçamento
da Finep. Foram criadas novas linhas de financiamento para pesquisas, desenvolvimento e
inovação e alguns programas de apoio a empresas promovido pela Finep, como Pro
Inovação que estimula projetos de inovação de médias e grandes empresas, com taxas de
juros anuais entre 4% e 9%. E o Programa de Apoio à Pesquisa na Pequena Empresa
(Pappe) também da Finep, para alavancar micro e pequenas empresas de base tecnológica.
Outro programa para micro e pequenas empresas é o Juros Zero, que atende empresas
inovadoras no aspecto gerencial, comercial, de processo ou de produtos/serviços. 3
Dentro da proposta de crescimento, desenvolvimento industrial e estimulo à
inovação tecnológica, um ponto importante é a inserção externa ou exportações. O Brasil
3 idem
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vem aumentando sua participação no comércio exterior, em 2002 as exportações brasileiras
eram de 0,96% das exportações mundiais, já esse número em 2005 chegou a 1,17%. Esses
resultados não resultam apenas na expansão do mercado mundial, mas também a uma série
de medidas de políticas como: A) apoio às exportações com financiamento, simplificação
de procedimentos e desoneração tributária; B) promoção comercial e prospecção de
mercados; C) estimulo à criação de centros de distribuição de empresas brasileiras no
exterior e sua internacionalização; D) apoio a inserção em cadeias internacionais de
suprimentos; E) apoio a consolidação da imagem do Brasil e de marcas brasileiras no
exterior.
A grande responsável pela articulação dessas políticas é a APEX-Brasil (Agência
Brasileira de Promoção de Exportações e Investimento). Criada sob a égide do Sebrae, é
um serviço social autônomo recebendo investimentos do chamado Sistema S. Com o início
do Governo Lula, a agência passou a ser ligada ao Ministério do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior (MDIC). A APEX-Brasil atua na alavancagem das vendas
em mercados alvos e em mercados não tradicionais. Uma das missões da APEX é ir até o
país que seja interessante fazer negociações para levantar as possibilidades de negócios. A
promoção comercial também é atividade da APEX-Brasil, ela apóia e incentiva a
participação das empresas brasileiras em eventos internacionais.
Ainda dentro das orientações do primeiro eixo da PITCE, um fator importante para
o desenvolvimento tecnológico e a inovação, é a modernização industrial, apesar de ser um
fator clássico nas políticas que obtiveram o desenvolvimento, a PITCE traz algumas
novidades como o apoio ao desenvolvimento organizacional, gerencial, creditício e para a
certificação de produtos e processos de pequenas e médias empresas e o apoio articulado a
arranjos produtivos locais (APLs)4 . Chamamos a atenção para o Modermaq e o Cartão
4 idem
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BNDES, o primeiro é um programa de modernização de equipamentos voltado para
pequenas e médias empresa e o segundo, que também é destinado para pequenas e médias
empresas, funciona como um cartão de credito pessoal, porém, são empréstimos para as
empresas realizarem seus investimentos em bens de produção.
Um ambiente institucional também é muito importante para que as políticas
proposta pela PITCE dêem resultados, por isso, a desoneração produtiva, um ponto
importante para o desenvolvimento industrial é a redução ou até mesmo a eliminação da
tributação sobre o investimento, esse era um ponto que atrapalhava o crescimento do
Brasil, porque se pagava para investir. Um elemento importante para estimular o
investimento é a simplificação de abertura e fechamento de empresas. Diminuindo a
burocracia e os impostos, o individuo ou grupo fica mais à vontade para investir ou abri
uma nova empresa.
O segundo eixo da PITCE é a chamada opções estratégicas, que foram definidas
com base em alguns critérios como: portadoras de dinamismo crescente e insustentável;
responsáveis por parcelas expressivas do investimento internacional em P&D; promotoras
de novas oportunidades de negócios; envolvida diretamente com inovação de processos,
produtos e formas de uso; capazes de adensar o tecido produtivo; importantes para o futuro
do país; com potencial para o desenvolvimento de vantagens comparativas dinâmicas.
Segundo a PITCE, a área de semicondutores é de extrema importância para o
desenvolvimento do país, se o Brasil não desenvolver projetos de desenvolvimento de
chips, grande parte da renda das cadeias internacionais de inúmeros produtos tendem a
serem drenados para fora do país. O programa referente a área de semicondutores tem dois
pilares: a capacitação local em projetos de prototipagem e a atração de investimentos em
fabricação. Um outro programa na área dos semicondutores que em breve entrará na vida
de toda a população brasileira é a TV Digital, que em algumas cidades do Brasil já é uma
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realidade. O segmento que mais cresce no setor de tecnologia da informação é o de
software, e o Brasil teve uma participação muito pequena, por isso foram desenvolvidos
alguns programas com os seguintes pilares: fortalecimento da indústria através de melhores
esquemas de financiamento e apoio à consolidação e criação de grupos nacionais de maior
porte; atração de atividades de prestação de serviços, envolvendo basicamente grupos
multinacionais do setor, para ajudar na melhoria da imagem mercadológica do software
brasileiro no exterior e na formação de mercados de trabalho mais amplo; formação de
pessoal e fomento ao desenvolvimento de segmentos de futuro.
O financiamento é um dos fatores principais na decisão de compra de bens de
capital, daí a importância das linhas especiais de financiamento do BNDES, que está nos
pilares do programa de bens de capital, junto com a; facilitação para aquisição de máquinas
e equipamentos por todos os segmentos da economia via o programa já citado Modermaq;
e o esforço de comercialização internacional, através de contratos entre o setor produtor e a
APEX-Brasil.5 Os medicamentos são bens sociais e estratégicos por isso também merecem
destaque na PITCE. Foram desenvolvidos programas para estimular a produção de
medicamentos, e de medicamentos genéricos, incentivar atividades de P&D, a
biotecnologia, a exploração insustentável e modernização de laboratórios. Cabe também
por em relevo implementação dos Fóruns de Competitividade que é uma iniciativa do
Governo para proporcionar um canal de comunicação entre o setor produtivo e o Estado,
canal esse que havia sido extinto pelas administrações anteriores e que são de extrema
importância para que o Governo saiba quais as dificuldades que o setor produtivo está
tendo e como soluciona-los.
O Terceiro e último eixo da PITCE corresponde às Atividades Portadoras de
Futuro, são aquelas com potencial para transformar radicalmente produtos, processos e
5 A APEX-Brasil transita por toda a PITCE, facilita o acesso ao mercado exterior por todos os setores da
economia brasileira.
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formas de uso a médio e longo prazo. Dentro dessas atividades, a biotecnologia e a
nanotecnologia se destacam, junto com as energias renováveis.
De acordo com um estudo do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) é
apontado o segmento de nanotecnologia como uns dos mais promissores para o
desenvolvimento de vantagens comparativas dinâmicas pelo Brasil. Está havendo uma
aproximação de setores produtivos com o desenvolvimento de nanotecnologia no âmbito
da Iniciativa Nacional para Inovação. Na área de biotecnologia, a ação mais importante foi
a criação do Fórum de Competitividade de Biotecnologia, coordenado pelos Ministérios do
Desenvolvimento, da Ciência e Tecnologia e da Saúde e contando com representantes do
Estado, da iniciativa privada e da comunidade acadêmica. O foco inicial do Fórum foi a
elaboração de algumas estratégicas como o Programa de Biotecnologia do Ministério da
Ciência e Tecnologia, e o Centro de Biotecnologia da Amazônia. Na área de energias
renováveis, o álcool desponta como uma alternativa energética e com uma grande
oportunidade para o Brasil, devido aos programas de adição de álcool na gasolina. O
Biodiesel também está se tornando uma realidade, o Programa Nacional de Produção e Uso
do Biodiesel, estimula o desenvolvimento tecnológico e o desenvolvimento regional e
social, ao incentivar a produção oriunda da agricultura familiar.
ESPANHA
Numa economia mundializada em que os países buscam, não apenas sua melhoria
interna existe também a preocupação da representatividade no cenário mundial. O
ambiente doméstico tem de estar em sintonia com as interações internacionais. É fato que
cada país do globo possui uma intencionalidade quando das suas proposições produtivas.
Alguns possuem seu foco na produção de bens básicos ao consumo, outros se colocam
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como produtores de tecnologia e direciona a forma produtora. Debate esse bastante
trabalhado pelos teóricos que entende a organização mundial dividida entre países centrais
(produtores de tecnologia) e periféricos (produtores de produtos). Os países do continente
europeus são considerados como aqueles que se dispõe a ditar o sentido tecnológico a ser
seguido pelos países ditos periféricos, e na Espanha não é diferente.272
Ao focarmos nossos olhos para os documentos oficiais apresentados pelo governo
espanhol, no que tange suas preocupações produtivas, podemos perceber o quanto é
substancial o investimento em programas que visam as inovações tecnológicas.
Escolhemos para esse trabalho o documento “Memoria de Actividades de Investigación
Cientifica, Desarrollo Tecnológico e Innovación” de 2005. Esse documento descreve quais
foram as iniciativas do governo espanhol dentro das atividades que visam a qualificação e
especificação na produção. É o resultado anual (2005) baseado na proposição maior
estabelecida no “Plano Nacional de Investigación Cientifica, Desarrollo Tecnológico e
Innovación 2004-2007” (Plano de I+D+I).
O plano de I+D+I 2004-2007 tem como objetivos: incrementar o nível da ciência e
tecnologia espanhola, tanto em tamanho quanto em qualidade; Aumentar o numero e a
qualidade dos recursos humanos, tanto no setor público quanto no privado; Fortalecer o
processo de internacionalização da ciência e tecnologia espanhola, com especial atenção ao
Espaço Europeu de Investigação e Inovação; Potencializar o papel do sistema público na
geração de conhecimento de caráter fundamental; Melhorar a visibilidade e
comunicabilidade dos avanços da ciência e tecnologia na sociedade espanhola; Reforçar a
coordenação entre a administração geral do Estado e as Comunidades Autônomas e, em
particular, melhorar a coordenação entre o plano de I+D+I e os planos de I+D+I das
272
Não é considerado no grupo dos países centrais apenas os do continente europeu. Estamos considerando
nesse texto o foco específico na Europa, como uma escolha didática para que possamos descrever melhor o
país aqui tratado que é a Espanha.
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Comunidades Autônomas; Melhorar a coordenação entre os órgãos de gestão do Plano
Nacional (PN), assim como aperfeiçoar os procedimentos de avaliação e gestão;
Impulsionar a cooperação e coordenação entre as instituições do setor público de I+D+I;
Elevar a capacidade tecnológica e inovadora das empresas; Promover a criação do tecido
empresarial inovador; Contribuir para a criação de investimento em I+D+I; Melhorar a
interação, colaboração e associação entre o setor público de I+D e o setor empresarial. 273
Tendo todos esse objetivos em mãos podemos perceber que o propósito governamental
passa diretamente por uma proposta Estatal, ou seja, mais do que um plano de governo
existe um caráter futurista que visa a qualidade e tecnológica na sua PI.
A organização dos países centrais, e principalmente os europeus, é visível. Temos
mais uma prova quando observamos o Plano Nacional de Reformas que é lançado em 2005
e que possui os seguintes eixos: Plano de fomento empresarial; Mercado de trabalho e
Diálogo Social; Mais competência, melhor regulação, eficiência das administrações
públicas e competitividade; Estratégia I+D+I (INGENIO 2010); Aumento e melhora do
capital humano; Plano estratégico de infra estrutura e transporte (PEIT) e programa
AGUA; Reforço da estabilidade macroeconômica e orçamentária.
Dentro desses sete eixos, elaborados pela Unidade Permanente de Lisboa
conjuntamente com a Oficina Econômica do Presidente de Governo e o conjunto
interministerial, existe a preocupação de fazer com que a Espanha corrija seus pontos
falhos e busque cada vez mais proeminência da produção industrial tecnológica.
Para esse estudo separamos em especial o eixo Estratégia I+D+I (INGENIO 2010).
Programa esse que salienta os recursos destinados a I+D+I e uma aprimorada organização
dessas fontes de investimentos. Dentro dele encontramos sub programas, como é o CÉNIT
que promove a colaboração entre o público e o privado através de consórcios, capital de
273
Plano Nacional 2004-2007; 2003
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risco para empresas tecnológicas e incorporação de doutores a empresas; o sub programa
AVANZ@ que tem como foco empresas e procedimentos ligados a tecnologia da
informação; e por último o sub programa CONSOLIDER que busca a excelência em
pesquisas, inclusive no âmbito da União Européia.
Se nos propormos a pensar num conceito de política industrial em que a presença
do Estado é fundamental e que o planejamento prévio e constante é tido como importante
para o bom funcionamento do corpo nacional, ao analisarmos o anuário de 2005 do Plano
Nacional de I+D+I 2004-2007, podemos perceber o governo Zapatero segue com a
tradicional linha dos países centrais, em que a PI é pensada e feita de forma ampla e bem
estruturada.
CONCLUSÃO
Nesse trabalho pudemos apresentar como que a preparação, de uma Política
Industrial de Estado é aplicada a médio ou longo prazo sendo mantida e aprimorada nos
países centrais, tendo a Espanha como exemplo. Enquanto que nos países periféricos ainda
é insipiente a postura de planejamento e investimento nas modalidades mais tecnológicas.
Durante o governo Lula a Política Industrial Tecnológica e de Comércio Exterior
(PITCE) teve um papel importantíssimo para o desenvolvimento industrial do Brasil. A
participação do Estado na economia é fundamental para desenvolver o setor industrial,
algumas medidas como abaixar as tarifas, facilitar os créditos, dar subsídios acarretam
numa segurança maior para o empresário investir cada vez mais. O Estado não pode
apenas garantir a estabilidade macroeconômica tem que ser mais ativo, por isso a
(re)criação de espaços de diálogos entre o setor produtivo e o Governo e as medida de
incentivo a inovação estão entre as grandes novidades da PITCE, mas esse tipo de trabalho
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já é algo permanente na Espanha. No país europeu podemos observar que existe uma
preocupação que perpassa sobre o governo de Zapatero e estabelece um projeto não apenas
governamental, mas de caráter permanente.
BIBLIOGRAFIA
GOLDENSTEIN, Lígia; Repensando a independência; Rio de Janeiro; paz e Terra; 1994.
KON, Anita; Economia Industrial; São Paulo; Nobel; 1994.
Comissão Interministerial de Ciência e tecnologia; Plano Nacional de Investigação
Científica Desenvolvimento e Inovação Tecnológica 2004-2007; Ministério de Ciência e
Tecnologia; 2003.
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Reformas:
em
http://www.lamoncloa.es/PROGRAMAS/OEP/PublicacionesEInformes/PNR/default.htm acessado em
novembro de 2009.
SUZIGAN, Wilson & FURTADO, João; Política Industrial e Desenvolvimento; Revista
de Economia Política, vol. 26, nº 2 (102), pp. 163-185 abril-junho/2006.
Acompanhamento da Política Industrial Tecnológica e de Comércio Exterior, PITCE 2
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Igreja de São Pedro:
Olhar e perspectiva de um patrimônio.
Fabiana Aparecida de Almeida274
RESUMO: O presente trabalho falará sobre a história da Igreja de São Pedro, situada na
Av. Senhor dos Passos, s/n. no bairro São Pedro; seu tombamento municipal realizado em
2002; sua ampliação iniciada no ano de 2001 e terminada em 2006 e todas as controversas
envolvendo essa reforma que ampliou a referida igreja. O trabalho apresentará também um
retrospecto da história da chegada dos imigrantes alemães em Juiz de Fora e da questão de
preservação do patrimônio histórico e artístico da cidade.
PALAVRAS-CHAVE: Igreja de São Pedro; Tombamento; Reforma
ABSTRACT: This paper is about the history of the church of São Pedro, located on
Senhor dos Passos Avenue, in São Pedro neighborhood; its municipal toppling was
conducter in 2002; started its expansion in 2001 and completed in 2006 and all the
controversies surrounding this reform that expanded the church. The work also shows the
retrospect of the history of the arrival of German immigrants in Juiz de Fora city and the
question of preservation of historical and artist heritage of the city.
KEYWORDS: Church of São Pedro; Toppling; Reform.
INTRODUÇÃO
274
Graduada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
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A Igreja de São Pedro sempre foi muito importante para a memória das pessoas do
bairro São Pedro e proximidades, assim como para o patrimônio histórico da cidade de Juiz
de Fora. Dessa forma, o presente trabalho terá como tema central a questão que envolveu a
referida igreja em um processo de tombamento e em uma reforma realizada após o seu
tombamento, assim como a questão da memória de alguns moradores antigos do bairro São
Pedro em relação à igreja.
A história da Igreja de São Pedro deve ser associada com a vinda de imigrantes
alemães para Juiz de Fora na segunda metade do século XIX, uma vez que a igreja foi
construída por colonos que se instalaram naquela região.
Esses imigrantes vieram para Juiz de Fora por dois motivos principais: construir a
Estrada União Indústria (empreendimento do financista Mariano Procópio Ferreira Lage) e
formar a Colônia Agrícola D. Pedro II (para o abastecimento do mercado interno). Para
esses dois empreendimentos, a Companhia União e Indústria (responsável pelos
empreendimentos) pretendia contratar 2000 imigrantes europeus que vieram para o Brasil
em cinco barcas: Tell, Rhein, Gundela, Gessner e Osnabr:uck.275 Ao desembarcarem no
porto do Rio de Janeiro, seguiram viagem até Juiz de Fora a pé e a carroça, em uma
viagem que durava cerca de quinze dias.
Em 59 dias, 1162 colonos chegaram à cidade do Paraibuna (a Cia suspendeu o
embarque de 832) que triplicou a população da cidade (de 600 para 1762 habitantes) e
trouxe para a Cia um grande problema: onde alojar os imigrantes. A solução foi acomodálos em um acampamento improvisado junto a uma lagoa infecta aos pés do Morro da
Gratidão (atual Morro da Glória). Com a falta de higiene, muitos imigrantes pegaram a
275
STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os alemães. Juiz de Fora:
Esdeva, 1979. p. 161-164.
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tifo, que inclusive causou a morte de 34 imigrantes.276 Assim, a Cia começou a construção
de casas para os colonos. Em 1863 todas as famílias foram alojadas.
Os colonos foram então, divididos em quatro grupos: os que ocupariam a Colônia
de Cima (atual bairro São Pedro), a Colônia do Meio (atual bairro Borboleta), e a Colônia
de Baixo (região do bairro Fábrica). Os colonos que iriam participar da construção da
estrada, instalaram-se no bairro Villagem, região mais próxima do centro e que hoje seria o
bairro Mariano Procópio.277
Logo que se instalaram na cidade, os colonos se queixaram à Cia da ausência de um
templo religioso que os assistisse. Dessa forma a Cia doou um terreno para a construção de
uma Igreja que seria consagrada a Nossa Senhora da Glória no ano de 1879.278 Com os
anos a igreja foi ficando pequena para acolher os fiéis e em 1916, decidiu-se construir uma
nova igreja atrás da atual. Em 1920 a igreja começou a ser construída, sendo entregue ao
culto em 1924.279 A igreja foi tombada pelo processo 5308/97, decreto n. 6840 de
26/09/00, solicitado pela firma Século 30. Infelizmente a primeira capela foi destruída por
um incêndio na madrugada de 12 de abril de 1923 que teria sido causada por ladrões que,
não encontrando nada de valor na capela, colocaram fogo nessa propositalmente ou
acidentalmente. A população tentou ajudar no combate as chamas com vasilhas d’água,
mas o esforço foi em vão. A capela foi destruída, salvando-se a nova igreja, o convento e
as imagens dos santos.280
Mesmo com a igreja consagrada a Nossa Senhora da Glória, os colonos da colônia
de cima e da colônia do meio continuaram sem assistência espiritual, uma vez que o local
276
Idem. p. 186-187.
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro. Entre o rural e o urbano: a trajetória dos imigrantes alemães e italianos
em Juiz de Fora (1854-1920). 1991. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal Fluminense, Niterói,
1991. p. 22.
278
STEHLING, op. cit. p. 252-253.
279
LEITE, Pe. João Boaventura. Igreja Nossa Senhora da Glória – Juiz de Fora: 1ª fundação. Juiz de Fora:
Redentoristas do Leste Brasileiro, s. d. v. 2. p. 46-47.
280
Idem. p. 53.
277
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onde se instalaram era longe da nova igreja. Dessa forma os colonos das duas colônias
resolveram construir suas igrejas. Na colônia do meio foi construída uma capela
consagrada a São Vicente de Paulo no ano de 1937281, e na colônia de cima uma capela
consagrada a São Pedro.
Em relação a construção da colônia de cima, tema desse trabalho, foi realizado um
Conselho Distrital para a construção de uma capela e de um cemitério. Para a construção
desses, os colonos Sebastião Kunz e sua esposa Bárbara doaram parte do prazo 108. 282
Para arrecadar fundos para a construção da capela, forma realizados leilões de prendas e a
Festa de São Pedro, que ficou conhecida em toda a cidade. Dessa forma, a capela começou
a ser construída em 5 de novembro de 1884 e consagrada, juntamente com o cemitério nos
dias 5 e 6 de janeiro de 1886. Na ocasião da consagração ocorreu grande festa na
localidade.283
O TOMBAMENTO DA IGREJA DE SÃO PEDRO
O processo de tombamento referente à Igreja de São Pedro encontra-se disponível
no DIPAC, que funciona no prédio da Prefeitura de Juiz de Fora, na rua Halfeld, e se
desdobra em 85 folhas.
A iniciativa partiu do Instituto Teuto Brasileiro William Dilly, em documento
datado de 16 de abril de 1999 à Comissão Permanente Técnico Cultural (CPTC) pedindo o
tombamento da igreja para a preservação da memória da cidade. O documento falou da
importância da igreja como marco da fé e da presença germânica na cidade alta, cuja
281
CLEMENTE, Vicente de Paulo. O bairro Borboleta e a Igreja de São Vicente de Paulo: suas origens e
sua história. Juiz de Fora: Concorde, 1990. p. 24 e 25
282
STEHLING, op. cit. p. 267.
283
STEHLING, op. cit. p. 264-265.
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história se confunde com a história das primeiras famílias. O documento foi assinado por
José Roberto Dilly (diretor do Instituto) e por Juraci Scheffer.
Após o pedido do Instituto Willian Dilly, o diretor do DEPLAN/IPPLAN-JF, o
arquiteto Álvaro Giannini, pediu, em 7 de julho de 1999 para avaliar o caso e, se fosse
preciso, iniciaria os estudos para seu tombamento. Em 4 de agosto, o IPPLAN-JF solicitou
a abertura do processo de tombamento ao SMA/DICOM, sendo o documento assinado por
seu diretor geral, José Eustáquio Romão.284 O relato do processo foi feito em 2 de agosto
de 2000 por Marcos Olender que destacou a importância da arquitetura da igreja para a
história do período na cidade e se mostrou favorável ao tombamento:
De “arquitetura simples” como afirma o documento, mas
“expressiva, nos seus aspectos formais (...) (conservando) de
maneira marcante a tipologia chamada tradicional” como ressalta
parecer técnico acerca dos aspectos arquitetônicos, feito pela
DIPAC, é extremamente representante de um período fundamental
da consolidação urbana da nossa cidade. (...). Marcando a paisagem
urbana local, conclui o citado parecer, o templo se insere no
importante contexto histórico da colonização alemã na parte alta da
cidade. (...). Edificada pelos antigos colonos alemães “a igreja é
referencial na vida de milhões de descendentes, cuja história se
confunde com a história das primeiras famílias povoadoras do
bairro”, como ressalta o ofício do Instituto Teuto Brasileiro Willian
Dilly. (...). Sendo assim, sou favorável ao tombamento do citado
imóvel.285
Dessa forma, a ata da reunião da CPTC de 17 de agosto de 2000 aprovou com
unanimidade o tombamento da igreja. Chegou-se também a conclusão do tombamento da
fachada e volumetria da igreja.
Nesse momento do processo, foi enviado à Mitra Arquidiocesana de Juiz de Fora,
um documento comunicando a mesma da aprovação de tombamento pela CPTC. Antônio
284
FUNALFA. Processo de tombamento, n. 3504/99, decreto n. 7548/18.09.02. Disponível na Divisão de
Patrimônio Cultural de Juiz de Fora.
285
FUNALFA. Op cit.
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Cornélio Viana (vigário geral da arquidiocese) respondendo legalmente pelo arcebispo D.
Clóvis Frainer, mandou documento ao prefeito recusando o pedido de tombamento da
volumetria da igreja, uma vez que a comunidade precisar aumentar a igreja para
proporcionar mais conforto aos fiéis. Somente a proposta de tombamento da fachada foi
aceita. Em anexo a esse pedido, encontrou-se no processo, um abaixo assinado datado de
27 de setembro de 2000, encaminhado ao arcebispo Clóvis Frainer, pedindo o não
tombamento da igreja, pois, a comunidade pretendia aumentá-la longitudinalmente, “sem
alterar a arquitetura alemã”.
A análise desse abaixo assinado nos chamou a atenção durante nossa pesquisa por
alguns pontos. O primeiro ponto se refere à repetição de alguns nomes na listagem. O
segundo por só ter assinaturas de pessoas que participavam e ajudavam nos afazeres da
igreja, sendo que alguns moradores entrevistados durante a pesquisa não assinaram a lista
por não saberem de sua existência. O terceiro ponto foi o esquecimento de alguns
moradores em assinar o documento, alegando não se lembravam, mas afirmaram que
devem ter assinado porque a igreja tinha que ser ampliada. A última particularidade do
abaixo assinado foi ele ter sido assinado pelo padre Luiz Eduardo de Ávila em 27 de
setembro de 2000, sendo que, em entrevista o padre disse não saber da existência desse
abaixo assinado e se ele aconteceu, a iniciativa deveria ter sido do pároco anterior.286
Mesmo com a reprovação da Mitra, o documento permitindo o tombamento da
igreja de São Pedro foi assinado pelo prefeito Tarcísio Delgado em 18 de setembro de
2002 e publicado no jornal “Tribuna de Minas”, na parte dos Atos Legislativos da Câmara
Municipal de Juiz de Fora.287
286
Depoimento do Padre Luiz Eduardo de Ávila concedido a Fabiana Aparecida de Almeida em 20 de maio
de 2009.
287
TRIBUNA DE MINAS. Atos Legislativos da Câmara Municipal de Juiz de Fora. Juiz de Fora:
Esdeva, 19/set./2002. Caderno Brasil, ano XXI, n. 2989, quinta-feira.
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AS REFORMAS DA IGREJA DE SÃO PEDRO
Desde a sua construção, a igreja de São Pedro passou por duas reformas em sua
estrutura, sendo que ambas foram feitas por causa do crescimento do número de fiéis.
A primeira reforma ocorreu na década de 1970 e nessa reforma, segundo Antônio
Dilly (antigo morador do bairro e colaborador da igreja), algumas características da igreja
construída pelos alemães foram perdidas. Nas paredes foram colocadas pedras até a altura
das janelas, pois originalmente era apenas reboco. O piso que era de pinho de riga foi
substituído por piso frio, uma vez que estava afundando, se tornando inclusive perigoso
para os fiéis. Foi construído também um “toldo” na porta principal, já que essa era de
madeira e estava se desfazendo pela ação das chuvas e do sol. Mais tarde, esse “toldo”
começou a rachar e foi demolido.288 Outra mudança foi a retirada do altar, que ocorreu por
causa do Concílio Vaticano II que mandou que se retirasse todos os altares alemães das
igrejas católicas.289 Esse altar era todo em madeira, tipo “capelinha”, com várias torres e
que compreendia toda nave da igreja.290
Em relação à segunda reforma (iniciada em 2001 e terminada em 2006) não deveria
ter ocorrido do jeito que aconteceu porque a igreja já havia sido tombada pelo município
nessa época. Segundo Roberto Dilly, o padre da paróquia na época, Luiz Eduardo de Ávila,
juntamente com o apoio do prefeito Tarcísio Delgado e de Juraci Scheffer, que ocupava o
cargo de vereador na época, conseguiram fazer com que o tombamento fosse desprezado
para acontecer a reforma.291 A igreja então passou por uma reforma que a descaracterizou
profundamente, sendo preservada apenas sua fachada principal. Dessa forma,
confirmaram-se os dizeres de Érika Aleixo: “É inegável a interferência do poder público
288
Depoimento de Antônio Dilly concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 2 de maio de 2009.
Antônio Dilly disse ter achado precipitado a retirada do altar, uma vez que a igreja da Glória e a igreja de
São Vicente de Paulo, no bairro Borboleta, mantiveram seus altares.
290
Depoimento de José Roberto Dilly concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 30 de abril de 2009.
291
Idem.
289
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na tomada de decisões, passando por cima dos pareceres dos técnicos, deixando-se
pressionar pela cúria juizforana”.292 No entanto, segundo Paulo Gawryszewski (diretor da
Divisão de Patrimônio Cultural – DIPAC), a reforma não seguiu os procedimentos
corriqueiros de reformas em imóveis tombados, sendo realizada arbitrariamente, uma vez
que, não houve fiscalização na realização da reforma.293 Paulo Gawryszewski aliais, disse
não saber com exatidão como a reforma aconteceu, pois o imóvel não foi destombado e
para qualquer tipo de intervenção em imóveis tombados, têm que haver autorização do
Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (COMPPAC). Mesmo quando
o pedido de reforma em imóveis tombados chega para a prefeitura, eles são encaminhados
para a DIPAC e pedem a análise e o parecer do Conselho. Em relação à igreja de São
Pedro, esse processo não aconteceu.
Na época de seu tombamento, existia também um Conselho Pastoral da igreja de
São Pedro. André Geraldo Dilly, um dos participantes do Conselho, disse que houve a
idéia de construir outra igreja maior. Porém, ao lado da igreja existente já havia o centro
pastoral e se ela fosse construída atrás ficaria escondida. Essa idéia, segundo André
Geraldo Dilly não agradou o Conselho Pastoral porque achavam que a igreja matriz não
poderia ficar escondida. O padre da época (Padre Miguel) sugeriu alargar a igreja na parte
de trás, de forma que se desenhasse um cálice no chão da igreja. Porém, com a chegada do
padre Luiz Eduardo de Ávila o Conselho Pastoral foi se desfazendo e o padre acabou por
reformar a igreja do jeito que achou melhor.294 Roberto Dilly acredita que o problema dos
padres, depois da secularização da Igreja Católica, seria a não identificação com a
comunidade que “pastoreiam”. Como não criam raízes com o local, podendo ser
292
SILVA, Érika Aleixo Ferreira. Os inventários e a política de proteção do patrimônio cultural de Juiz
de Fora. 2008. Monografia do curso de especialização em Gestão do Patrimônio Cultural, Faculdade
Metodista Granbery, Juiz de Fora, 2008. f. 103. Apesar da frase fazer referência à intervenção na Igreja da
Glória em 2006, empregou-se muito bem nesse contexto.
293
Depoimento de Paulo Gawryszewski concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 7 de maio de 2009.
294
Depoimento de André Geraldo Dilly concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 2 de maio de 2009.
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substituídos a qualquer momento, preferem deixar uma marca física, principalmente uma
obra para serem lembrados. Dessa forma destroem tudo sem se preocupar com a identidade
da comunidade.295
Em entrevista cedida, o padre Luiz Eduardo de Ávila, pároco de São Pedro na
época, disse que na sua chegada à Igreja foi procurado por Juraci Scheffer que lhe
comunicou que havia um processo de tombamento da igreja. O padre disse então ter
concordado alegando que achava que era um pedido da comunidade e que não seria ele
quem iria impedir. No entanto, foi procurado pelo arcebispo metropolitano e comunicado
que não havia um interesse por parte da Igreja Católica em tombamentos de bens
eclesiásticos. Dessa forma, o padre relatou ter procurado os responsáveis pelo pedido de
tombamento e pediu para que esse não ocorresse para acontecer a ampliação da igreja de
São Pedro. 296
No processo de tombamento, a Igreja de São Pedro foi descrita como um exemplar
de arquitetura simples e tradicional “apesar de uma leve tendência a uma forma mais
trabalhada, como se percebe nos chanfros da planta do altar-mor”.297 Foram descritos
também os nichos que antes não abrigavam imagens de santos. Hoje encontramos uma
imagem de São Pedro à direita e de São Paulo à esquerda, que foram colocadas
recentemente. No interior da igreja, o impacto da reforma foi ainda maior. No processo,
encontramos a seguinte descrição:
Internamente, suas paredes recebem imagens sacras abrigadas em
nichos e se destaca por sua volumetria típica, onde a nave central
de abertura mais elevada se contrapõe ao altar-mor e suas sacristias
laterais, de altura menor. Um coro ao fundo, acessado por escada
helicoidal, de guarda corpo em madeira trabalhada e com piso
original em tábua corrida, compõe a ambientação. O altar recebe
295
Depoimento de José Roberto Dilly concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 30 de abril de 2009.
Depoimento do padre Luiz Eduardo de Ávila concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 20 de maio
de 2009.
297
FUNALFA, op. cit.
296
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aberturas estreitas em arco pleno e fachadas por vidros lisos
transparentes que permitem a penetração dos raios solares; todo o
revestimento do piso da nave e do altar é feito em material
cerâmico.298
Hoje não há mais imagens sacras nas laterais da igreja, uma vez que sendo as
paredes revestidas de gesso, não suportariam o peso das imagens. No altar, as sacristias
laterais foram destruídas para o alongamento da igreja e a “abertura em arco pleno e
fachadas por vidros lisos” não existe mais. O coro mencionado na descrição teve sua
escada, piso e guarda corpo, todos em madeira, substituídos por concreto.
A Igreja de São Pedro foi então aumentada longitudinalmente. A frente foi mantida
mudando apenas a porta principal, que não era a original. Em entrevista, o padre Luiz
Eduardo de Ávila, disse que a reforma para os fundos foi feita buscando a não
descaracterizar a igreja de sua feição original: as janelas e as portas foram mantidas do
mesmo estilo (arredondadas) e a largura continuou a mesma. Ainda segundo o depoimento
do padre, a frente da igreja foi mantida a mesma por aconselhamento de Cidinha Louzada e
Juraci Scheffer.299
CONCLUSÃO
A pesquisa aqui apresentada propôs mostrar como se realizou o processo de
tombamento da Igreja de São Pedro bem como a intervenção sofrida na igreja por uma
reforma que a ampliou, mas não a respeitou como patrimônio do municipal.
Nossa crítica a essa reforma se baseia pela completa falta de consciência das
autoridades eclesiásticas quanto à memória da região de São Pedro. As igrejas são
298
FUNALFA, op. cit.
Depoimento do Padre Luiz Eduardo Ávila concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 20 de maio de
2009.
299
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geralmente as primeiras construções na formação de uma cidade ou de um bairro e trazem
consigo toda uma carga simbólica e memorialística que acabou se desfazendo junto com a
reforma da igreja de São Pedro. Não se pode questionar que havia a necessidade de uma
reforma na referente igreja, porém, existiriam alternativas mais “eficientes” para se
preservar o pouco que restou da antiga igreja (já que a igreja original já havia sido
modificada na reforma da década de 1970). A questão é ainda mais contraditória pelo fato
da igreja ter sido tombada pela Prefeitura de Juiz de Fora e mesmo assim essa não ter
tomado nenhuma medida que impedisse a reforma que a descaracterizou.
O processo de tombamento da igreja de São Pedro acabou acontecendo, mas
acabou sendo desprezado e a igreja sofreu uma reforma que a deixou mais espaçosa, porém
sem nenhuma característica da igreja construída pelos colonos alemães que iniciaram a
população do bairro São Pedro. No entanto, sua fachada principal foi mantida fazendo os
mais velhos terem uma pequena lembrança da igreja antiga. Dentro da questão patrimonial,
muitos estudiosos discutem a memória dos imóveis tombados. A identidade de um grupo
tem que está presente no bem tombado se não esse tombamento não causa um
reconhecimento às pessoas que vivem perto daquele bem. Para que o patrimônio seja visto
como algo positivo por uma população é necessário que essa se identifique com aquele
patrimônio. O que podemos concluir com nossa pesquisa, é que as pessoas possuem uma
memória da igreja e a vêem como portadora de seu passado, porém, deixaram ser
influenciadas por um discurso de necessidade de ampliação da igreja como única forma de
se resolver o problema da lotação da igreja nas missas de domingo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONTES ORAIS:
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André Geraldo Dilly.
Antônio Dilly.
José Roberto Dilly.
Luiz Eduardo de Ávila, Padre.
Paulo Gawryszewski.
FONTES BIBLIOGRÁFICAS:
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suas origens e sua história. Juiz de Fora: Concorde, 1990.
FUNALFA. Processo de tombamento, n. 3504/99, decreto n. 7548/18.09.02.
LEITE, Pe. João Boaventura. Igreja Nossa Senhora da Glória – Juiz de Fora: 1ª
fundação. Juiz de Fora: Redentoristas do Leste Brasileiro, s. d. v. 2.
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro. Entre o rural e o urbano: a trajetória dos imigrantes
alemães e italianos em Juiz de Fora (1854-1920). 1991. Dissertação de Mestrado.
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1991.
SILVA, Érika Aleixo Ferreira. Os inventários e a política de proteção do patrimônio
cultural de Juiz de Fora. 2008. 167 f. Monografia do curso de especialização em Gestão
do Patrimônio Cultural, Faculdade Metodista Granbery, Juiz de Fora, 2008.
STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os alemães. Juiz
de Fora: Esdeva, 1979.
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TRIBUNA DE MINAS. Atos Legislativos da Câmara Municipal de Juiz de Fora. Juiz
de Fora: Esdeva, 19/set./2002. Caderno Brasil, ano XXI, n. 2989, quinta-feira.
As Narrativas do Poder: discursos de supremacia política e cultural no seio da
sociedade romana imperial
Felipe Henrique Alves de Andrade300
RESUMO: O artigo pretende uma abordagem acerca da formulação de discursos de
enaltecimento da civilização e do povo romanos, bem como das instituições e costumes a
ele associados. Toma o período do Principado, encabeçado por seu primeiro princeps
senatus, Otávio Augusto, como delimitação temporal. Há interesse em descrever esforços
alçados pelo próprio Augusto no que toca às narrativas de supremacia e afirmação, além de
fenômenos culturais contemporâneos que validam as observações, sendo Virgílio o agente
mais notável a esse respeito, com sua obra épica Eneida.
PALAVRAS-CHAVE: Otávio Augusto; supremacia; civilização romana; Virgílio; Eneida
ABSTRACT: The article aims to an approach about the making of discourses on the
praising to roman civilization and people, as well about relative institutions and customs.
As to timely boarders, it takes the Principate, headed by his first princeps senatus,
Octavianus Augustus. There’s the interest on describe efforts used by Augustus himself in
supremacy and claim’s narratives, also cultural contemporary phenomena which assure the
remarks; on this matter, Virgil is the more remarkable, with his epic Aeneid.
KEYWORDS: Octavianus Augustus; supremacy; roman civilization; Virgil; Aeneid
300
Acadêmico do 8° período do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
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INTRODUÇÃO
“Esta é uma cópia – tirada do original gravado em Roma sobre dois
pilares de bronze – que contem as empresas por meio dos quais o
divino Augusto subjugou o mundo inteiro ao domínio do povo
romano, e as despesas que ele fez em prol do Estado e do povo de
Roma.” 301
Estas são as célebres palavras com as quais Caio Júlio César Otaviano Augusto –
ou simplesmente Otávio Augusto – inicia o relato de seus feitos, consecuções e glórias
realizados no período de sua governança, conhecido como Res Gestae Divi Augusti (“Atos
do Divino Augusto”) ou Index Rerum Gestarum Divi Augusti. Trata-se de um forte
testemunho em favor de um projeto engendrado por Augusto, referente à sua ascensão e
conservação do poder. O inteiro documento nos permite contemplar um elogio à própria
figura, uma espécie de panegírico auto-dirigido carregado de um visível sentido de vitória
pessoal, atestada pelas virtudes exibidas pelo autor/receptor do elogio (justitia, clementia).
Sem dúvida, o Index é pródigo em nos revelar evidências de um discurso legitimador,
glorificador em benefício da pessoa de César Augusto, perpassando intenções de afirmação
política que se vêem latentes desde os idos do Prinicipado Romano inaugurado em 27 a.C.
Mas há algo mais envolvido...
Note-se que há um outro aspecto que marcará a fala de Augusto e que se faz
perceber mesmo na introdução de seu Index: a razão dos esforços de Otávio
(alegadamente) não são puramente pessoais. O que até aqui foi dito deve-se a uma
percepção dos sentidos subliminares contidos na obra analisada. Enxergamos a existência
de um discurso articulado em torno do interesse de perpetuação do legado deixado por
César, notadamente a memória que deixa e o espaço que prepara para os que hão de
sucedê-lo no exercício do poder. Mas é de interesse especial as palavras que ressoam na
301
LEONI, Giovanni D. (Trad.) Res Gestae Divi Augusti. São Paulo: Livraria Nobel S/A, 1957.
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superfície do texto, aquilo que se vê num primeiro nível de leitura. Para tanto, recordemos
uma passagem: “o divino Augusto subjugou o mundo inteiro ao domínio do povo romano”.
Eis o mote das conquistas e vitórias de César Augusto (segundo ele próprio)! Promover
expansão, alcançar vitórias contra os inimigos, traçar o rumo do desenvolvimento – tudo
isso em “prol... do povo de Roma” e para afirmar o “domínio do povo romano”.
Assim, é possível apontar a existência de uma preocupação dotada de caráter
político, ou não, centrada em priorizar o povo de Roma e permitir a sua prevalência sobre
os demais, sua superioridade, digamos de forma mais clara. Vemos aqui um sinal de
afirmação da civilização romana e daquilo que se configure nos quadros de sua sociedade.
Vemos, tomando o Index como ponto de partida, a veiculação de discursos de poder e
supremacia em benefício de Roma, mas também vindo ao encontro dos intentos de Otávio.
Falemos, contudo, do contexto em que tais discursos aparecerão.
A ERA DE AUGUSTO
Sabe-se que a entrada de Otávio no cenário político se dá numa conjuntura delicada
no que tange aos fatos e questões que se avultavam desde o 2° século a.C. Roma passava
por um período permeado de crises políticas, sociais e econômicas, caracterizado por um
estremecimento do pacto intra-elites e por uma incerteza no jogo político dados os
conflitos entre grupos de famílias tradicionais e o temor pela mobilização da plebe.
Ademais, o processo de expansão trazia à tona um novo fio para fortalecer a trama incerta
que se alargava e se estendia sobre os latinos: como administrar eficientemente um corpo
cívico que crescia, se avolumava em vista da expansão territorial da República por meio
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das instituições que antes valiam para os habitantes do Lácio? Ou como se expressa John
Scheid em obra escrita colaborativamente com François Jacques302:
En elargissant le corps civique au-delá de tout ce que le monde des
cités avait connu, les lois accordant le droit de cité aux alliés
italiques créaient un problème institutionnel nouveau, car elles
rendaient illusoire, sinon impossible, le fonctionnment traditionnel
de la vie politique. 303
Havia muitas questões por resolver ainda no 1° século a.C., mas como aponta
Scheid : “ l’elite n’était plus à même de résoudre lês nombreaux problèmes intérieurs et
extérieurs de la République romaine”.304 Veria esta elite, junto com o Senado, a formação
de um triunvirato em tônica de conciliação e resolução dos problemas que se formavam.
Este seria formado por Pompeu, Crasso e Júlio César. Entretanto, as disputas não cessam,
especialmente entre Pompeu e Júlio César (Crasso morre numa expedição militar contra os
partos). César é assassinado, o que contribuiria para a piora das contradições levantadas.
Com a morte deste, veremos o campo preparado para a ascensão dos pretendentes
ao poder, os “herdeiros” de César – Marco Antônio, companheiro de Júlio César, que
tentara se impor como o sucessor direto de Pompeu ou de César, e Otávio, o qual toma
para si o dever de vingar seu pai adotivo, busca reivindicar sua herança e fazer cumprir os
valores da res publica, haja vista os desvios sentidos neste período crítico. Além desses,
houve também Lépido, que apoiou Antônio militarmente a princípio e foi indicado como
pontifex maximus. Tais homens, por meio de acordo validado pelo Senado, formam então o
segundo triunvirato, por meio do qual dividiriam a administração das províncias.
302
JACQUES, François; SCHEID, John. Rome et l’integration de l’Empire. Paris: Presses Universitaires
de France,1990. (Coleção “Nouvelle Clio”)
303
“Alargando o corpo cívico para além de tudo que o mundo das cidades havia conhecido, as leis atribuindo
o direito de cidade aos aliados itálicos criavam um problema institucional novo, pois elas tornavam
ilusório, senão impossível, o funcionamento tradicional da vida política.” (Tradução Livre)
304
“A elite não era mais a mesma para resolver os numerosos problemas internos e externos da República
romana”. (Tradução Livre)
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Neste momento, vemos a disputa se acirrar entre Marco Antônio e Otávio Augusto
(título futuro, note-se). Seguem-se conflitos, intercalados por acordos e tréguas, ao passo
que, após o exílio de Lépido, ordenado por Otávio, os outros dois triúnviros se ocupariam
em fortalecer sua posição e perseguir suas tarefas imediatas, como informa John Scheid.305
O autor descreve o sucesso do jovem César, mencionando que este adquiriu a confiança da
plebe romana, dos veteranos e dos centuriões, favorecendo a promoção social mas também
o apoio às elites romanas e itálicas. Paralelamente, Otávio põe em prática um
empreendimento de denegrimento sistemático de Antônio. Um dos pontos mais visíveis
dessa manobra é perceptível na associação que faz da figura de Marco Antônio com o
traidor, aquele que abandonou a civilização romana para se aliar à barbárie (representada
pelo Egito, na pessoa de Cleópatra), o que se fortalece enquanto rei, um tirano, e assim fere
as instituições republicanas de Roma. O fim do conflito será marcado pela vitória
definitiva de Otávio na Batalha do Áccio em 31 a.C., ponto de simbolismo notável quanto
à nova era que agora se configurava, relacionada ao governo isolado de César Augusto,
enquanto princeps senatus (“Príncipe do Senado”, o primeiro dentre os senadores). As
instituições e magistraturas republicanas são mantidas, mas o poder passa a ser exercido de
forma mais centralizada pelo Príncipe.
Desde o tempo em que Augusto vinha nutrindo suas pretensões de acesso ao poder
e recebimento da justa herança que lhe cabia enquanto sucessor de Júlio César, notamos
esforços da sua parte no sentido de se afirmar e se legitimar em oposição a seus rivais. Isso
ficaria evidente, por exemplo, ao assumir para si o epíteto de Imperator Caesar, divi filius,
ou seja, “Imperador César, filho do divino (Júlio)”, quando recebe uma ovação após a Paz
de Brindisi.306 Ademais, ele recusa o poder que lhe é oferecido pelo Senado enquanto
ditador, convenientemente restringindo-se da imagem de monarca para aceitar a de um
305
306
JACQUES, François; SCHEID, John. Op. Cit.
Idem.
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tribuno, um magistrado como os demais, mas com uma carga de poder maior. Cada gesto
demonstra a elaboração hábil por parte de César de criar contextos e linguagens que lhe
fossem favoráveis – a formulação de discursos que se perpetuariam até o fim de sua vida e
se revestiriam de um sentido mais elevado, qual seja, o da defesa dos interesses da Urbe
romana.
Ademais, a época de Augusto notabilizar-se-ia, dentre outras coisas, por se instaurar
a paz entre os romanos – a pax romana – alcançada após o término das guerras civis e a
solução dos problemas sociais e políticos que se arrastavam desde o 2° século a.C., mas
haveria de se fazer notar também pelas manifestações desse poderio em outros campos,
como a arquitetura e literatura. Tais espaços seriam o locus privilegiado para a promoção
do ideal de civilização romana e da supremacia cultural e política, se não o foi diretamente
por Augusto, então pela política de dominação empreendida por ele.
Um tema muito interessante que dá conta de fornecer provas da inovação presente
no Principado de Otávio é o das transformações nas obras arquitetônicas públicas. A esse
respeito, é de chamar a atenção as observações feitas pelo arquiteto William MacDonald
em seu artigo “Empire Imagery in Augustan Architecture”.307
O autor nota como a “Era de Augusto” abarca valores presentes nos modelos
arquitetônicos utilizados na arquitetura romana. Sabe-se, por exemplo, que esta se
caracterizava por sua solidez, estabilidade, austeridade e funcionalidade antes da época de
César Augusto. Um expoente desse conjunto de princípios é o arco romano, cujo papel se
resumia à fria funcionalidade de entrada/saída. MacDonald percebe, todavia, que com o
advento dos tempos augustanos, o arco passa a ser carregado de uma complexidade
crescente que o torna um monumento, um edifício dedicado à celebração ou memória.
Observa que há duas principais mudanças em princípios composicionais formais, quais
307
MACDONALD, William. Empire Imagery in Augustan Architecture. In: WINKES, Rolf. (Editor) The
age of Augustus. [S.d.]: [S.e.], 1985.
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sejam: o grau de complexidade do design aumentou substancialmente, movendo a
arquitetura para composições mais complexas e articuladas; o enriquecimento da
arquitetura tradicional, a multiplicação e redesenvolvimento dos elementos clássicos de
design, baseada em parte nas invenções helenísticas, foi fundida a formas arquetípicas
romanas. Novas formas de se levantar edificações estavam sendo gestadas no entremeio
dessas influências tradicionalmente greco-romanas e dos modelos novos que se criavam
desse caldeirão cultural (o melting pot das influências culturais concernentes aos modelos
arquitetônicos).
O arco do tipo triplo, composição aAa (um arco principal ladeado por arcos
secundários) é o que será mais marcante para definir a época de governança de Augusto,
atribuindo uma imagem que poderá ser associada com tal momento histórico e dessa forma
permitir uma leitura como realizada por William MacDonald, conforme segue:
The effect was rather like that found in some contemporary
literature, a reworking and refashioning of the old, with results that
reflected Augustus’s political and social programs by showing that
although tradition was by no means dead, a new age arrived.308
É digno de nota que haveria outros aspectos consonantes com essa reinvenção de
padrões imagéticos percebidos nos edifícios públicos e monumentos, de acordo com o
autor. Diga-se de passagem: o ático colocado sobre os arcos, que pode ser entendido como
uma estrutura que encimava os arcos com objetivo de enriquecer seu poder de narração
monumental; os cenotáfios (semelhantes a obeliscos, igualmente de função monumental)
que se multiplicavam dentro do território latino e fora dele. Não há aqui espaço para
detalhar os nuances das escolhas no que respeita a edificações, tomando as associações
308
“O efeito era mais semelhante ao encontrado em algumas literaturas contemporâneas, uma reestruturação e
remodelação do antigo, com resultados que refletiram os programas políticos e sociais de Augusto por
mostrar que, apesar de a tradição não estar morta, uma nova era chegara.” (Tradução Livre)
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com o esforço ufanista de César Augusto. Mas vale o esforço superficial esboçado neste
artigo, devedor das contribuições de MacDonald, para se dar uma idéia de tal política
glorificadora.
VIRGÍLIO – O POETA DA GRANDEZA ROMANA
Falar a respeito da cultura romana contemporânea a Otávio Augusto e de suas
relações com o papel desempenhado por este pede que falemos de um importante
personagem, co-artífice do ideal de grandeza da história de Roma. Estamos nos referindo a
Virgílio, ou na língua latina original, Publius Vergilius Maro (70 a.C. – 19 a.C.).
Natural de Mântua, Virgílio já era poeta conhecido por obras compostas em sua
juventude e notabilizar-se-ia por grandes obras que lhe asseguraram fama – as Bucólicas e
as Geórgicas. Tendo tal caminho já construído, o mantuano procederia à composição de
importante obra de caráter épico, cuja realização atraiu a atenção de Otávio Augusto. Tanto
que Pierre Grimal nos informa do interesse ativo que o princeps senatus nutriria acerca do
empreendimento poético, mencionando fragmentos de correspondências que o mesmo
trocou com Virgílio pedindo-lhe alguma parte ou resumo da referida obra – a Aeneis
(Eneida).309 Há quem diga que o próprio Otávio teria solicitado a realização de tal obra,
mas não encontramos subsídios mais concretos para tal afirmação.310 Interessa saber, acima
de tudo, em que medida tal obra seria tão adequada para o projeto augustano referente a
uma formulação de elogio à pátria romana, incluindo aí uma sugestiva afirmação de poder
pessoal.
309
GRIMAL, Pierre. Virgílio ou o segundo nascimento de Roma. Ivone Castilho Benedetti (Trad.). São
Paulo: Martins Fontes, 1992. (Coleção O homem e a história). p. 192
310
Referimo-nos a uma afirmação presente em: CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. São
Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 10
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Desde sempre a Eneida tem recebido reconhecimento quanto à sua realização no
que tange “glorificação de Roma, da sua missão civilizadora”, sendo descrito ainda como
“expressão máxima da cultura romana”.311 Mas por que tanta segurança nessas assertivas?
A segurança, que pode ser questionada pelo espírito crítico de que devem se revestir os
historiadores, esclarece-se por uma análise de passagens da obra que nos permitem
entender que Virgílio teria importância capital na constituição de política enaltecedora
quanto à cultura e civilização do povo romano, à época de Augusto.
O poeta concebia sua epopéia enquanto desenvolvimento do destino da raça
romana, guardando o tom sublime de que se valem as epopéias tradicionais haja vista o
objetivo elevado contido na Aeneis de Virgílio – a história de Enéias, herói dotado de
pietas, e por isso identificado pelo epíteto de pius – valor tipicamente romano e por isso
indicativo de uma consciente aproximação da realidade latina para contemporizar o
alcance da obra – saído de Tróia que se imbui de um fado (fatum) legado a ele em oráculo
de ir à terra de origem dos Penates que carrega consigo e fundar uma cidade. Tal viagem
desembocaria no Lácio, mas teria seus percalços e interrupções como o desvio para
Cartago, onde o pio guerreiro conheceria Dido, rainha da cidade que futuramente
rivalizaria com Roma. Enéias se revela como homem decidido a cumprir sua missão, cujo
resultado a longo prazo é a fundação da cidade de Roma por um de seus descendentes,
Rômulo.312 Notamos que o herói virgiliano tem aspectos de uma mentalidade romana,
notável pela ciência do dever de cumprimento de missões, além da justitia e clementia, ou
ainda a pietas que matizam o pensamento e costumes dos romanos. Enéias sabe-se
portador de uma tarefa suprema, definida pelo destino que os deuses lhe anunciam que não
311
Ambas as citações provêm de: PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura
Clássica. 2 ed. Vol. II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
312
Ocorre aqui, às mãos de Virgílio, uma fusão das lendas e explicações míticas concernentes ao surgimento
da cidade romana: Rômulo pertenceria à linhagem dos reis de Alba Longa, reino que teria sido fundado por
Ascânio, filho de Enéias, que por sua vez era da família real troiana (seu pai, Anquises, era primo em 3°
grau de Príamo, rei de Tróia à época da conhecida guerra narrada na Ilíada, de Homero).
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pode ser modificado ou interrompido nem mesmo por eles ou por um forte amor que
encontra em Dido. Uma missão elevada sobretudo por preparar o caminho para a ascensão
daquele que devolveria os tempos de paz a Roma e introduziria nela os tempos áureos –
César Augusto.
Há dois momentos interessantíssimos para que atribuamos a Virgílio o esforço
premeditado de fazer coincidir a obra máxima do povo romano com a história recente,
tendo por eixo de condução a figura de Augusto. Um deles é a revelação que Anquises faz
a Enéias, quando este desce aos Infernos, relativa ao futuro dos seus descendentes,
confirmando-lhe a urgência em desincumbir o fatum que lhe é imposto. Além de explicar a
condição dos mortos, descrevendo os estados e moradas das almas no mundo inferior, o pai
a quem Enéias tantas vezes expressou devoção filial (em consonância com a pietas que lhe
cabe) mostra-lhe a sucessão de heróis, homens notáveis, ilustres personagens que
descendem de Enéias e participam da história romana. Tal linha explicativa encontra sua
conclusão em Augusto, sobre quem Anquises diz:
Vira agora os olhos para aqui: olha esta nação; são os teus
Romanos. Eis César e toda a descendência de Iúlo, destinada a
surgir sob a grande abóbada do céu. Eis o herói, eis aquele que tão
amiúde ouves ser-te prometido, Augusto César, filho de um deus;
ele recriará a idade de ouro no Lácio, entre os campos onde outrora
reinou saturno; ele levará o seu império mais longe que o país dos
Gamarantes e dos Indianos, até às terras que se estendem para além
das constelações, para além das sendas do Sol e do ano, e onde
Atlas que sustenta o céu faz rodar sobre o seu ombro o eixo do
mundo semeado de estrelas cintilantes. Desde já, ao rumor da sua
chegada, estremecem os reinos cáspios ante as respostas dos
deuses, e a terra meótica e as bocas do Nilo de sete braços tremem
confusamente.313
313
VIRGÍLIO. A Eneida. Mem-Martins: Publicações Europa-América, Lda., [S.d.]
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Trata-se de um excerto que dispensa extensos argumentos em favor de sua
potencialidade quanto à elaboração de um discurso de exaltação. Há que se notar, por
exemplo, a referência a César Augusto, descendente de Iulo (outro nome de Ascânio, filho
de Enéias), filho de um deus – uma referência a Júlio César, seu pai adotivo que fora
divinizado – e herói prometido a Enéias que recriaria a idade de ouro no Lácio, trazendo de
volta tempos satúrnicos. Augusto é referido também em tom profético por Anquises como
um grande conquistador, cujas vitórias significariam a ampliação do império romano para
terras distantes (Anquises menciona até mesmo a Índia), tão distantes que nem mesmo os
fenômenos celestes as tocam, e é até mesmo possível encontrar Atlas, titã responsável por
sustentar os céus. Augusto é também pintado como poderoso comandante a quem seus
inimigos temem, incluindo o Egito, aqui representado pelas “bocas do Nilo de sete braços”.
A menção de Augusto na epopéia de Virgílio é de uma profunda significância, haja
vista o sentido que o autor atribui a sua obra enquanto revelação dos destinos da raça
romana, da soberana raça romana. Além do mais, Virgílio escreve sabedor do que ocorre
no presente, dos planos de Augusto. “O poeta, portanto, achava-se depositário dos
pensamentos do vencedor, talvez tivesse até contribuído para defini-los e, naquele
momento, vira, sentira e compreendera o presente de Roma, ao situá-lo no conjunto do
futuro.” 314 Não é inocente a inclusão de Otaviano na linha de descendentes do herói épico
de que falamos na Aeneis, bem como a coleção de feitos e virtudes associadas ao divino
legatário de Enéias, a quem cabe a condução dos rumos, dos destinos romanos enquanto
líder consagrado pela história e por suas aptidões (posto que se espelhe em seu antepassado
e seja descrito em paralelismo com o mesmo).
O outro momento da Eneida de Virgílio que merece atenção para se atestar as
intenções do autor relativas à instrumentalização da obra, seu direcionamento para
314
GRIMAL, Pierre. Op. Cit.
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objetivos políticos, com implicações culturais, é a descrição do escudo de Enéias.
Encontrada no Canto VIII da Eneida, tal descrição do escudo preparado por Vulcano
fornece apelos visuais para a lembrança de fatos e pessoas notáveis da história romana,
como a amamentação dos gêmeos Rômulo e Remo por uma loba, o rapto das Sabinas,
defesa do Capitólio contra os Gauleses, c. 390 a.C. etc. Mas o que mais chama a atenção é
a cena central: uma representação da Batalha do Áccio, a tão marcante batalha que pôs fim
definitivo ao Segundo Triunvirato com o triunfo de Augusto, cuja ascensão ao poder teve
seu alicerce lançado com a batalha naval talhada no escudo do semideus. Mais uma vez
Augusto tem sua menção na Eneida de maneira elogiosa, sendo correlacionado aos
destinos romanos traçados à frente de Enéias, sob a natureza de missão divina. Mais uma
vez, as narrativas do poder ganham espaço no contexto da Era de Augusto, particularmente
na obra épica que estamos considerando, sendo moldadas pelo discurso de supremacia
dirigido a Roma e seu dirigente. Discursos que levam em conta a subjugação do inimigo, a
qual perpassa a sugestão ou empenho de perspectivas negativas sobre os oponentes, como
se faz com Marco Antônio na representação da Batalha do Áccio no escudo de Enéias.315
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A título de conclusão, ou a menos de desfecho das questões e elucubrações que
procuramos delinear aqui, vale concordar com as sugestões que historiadores e estudiosos
tem feito sobre o Principado Romano em seu início: tratou-se de uma conjuntura cujos
alcances políticos, sociais e culturais sem dúvida se beneficiaram da conduta da notável
315
É de se notar como a descrição virgiliana promove uma distinção profunda entre as duas figuras do
embate que se observa, no caso Otávio e Marco Antônio. Uma distinta oposição, diga-se de passagem, que
remete ainda às características de cada um que propiciam as interpretações, sejam elas positivas ou
negativas. Antônio, por exemplo, é associado à barbárie, uma vez que se associou ao poder oriental na sua
forma monárquica e desposou Cleópatra, rainha do Egito. Vide a Eneida, Canto VIII, verso 675-728, para a
descrição da cena central no escudo de Enéias.
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figura de Otávio Augusto. Um contexto marcado pela ambivalência do projeto político do
princeps senatus, identificada pela necessidade de afirmação pessoal na esfera das
simbólicas relações de poder mas ao mesmo tempo pela afirmação do caráter elevado da
civilização cujos interesses e valores Augusto se dispôs a representar e fazer valer perante
os demais povos. Logo, é possível discernir nas manifestações culturais identificados com
o período conhecido como Pax Romana (governança de César Augusto) efeitos daquilo
que vimos no início, na citação da Res Gestae Divi Augusti: uma consciência política da
missão de que o imperador se imbui, compreendendo o valor de coligá-la com a mensagem
de patriotismo, de auto-suficiência romana no campo mental e civilizacional. Sem dúvida,
as transformações sentidas na passagem da República em sua forma tradicional para o
Império deveram-se às contribuições desse grande personagem, cuja perspicácia residiu em
se fazer agente essencial na continuação da missão de grandeza do povo romano, como um
Enéias fadado a um destino grandioso, a quem importa sobretudo a execução de seu dever
legado pelos deuses.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. São Paulo: Martins Fontes, 2003
GRIMAL, Pierre. Virgílio ou o segundo nascimento de Roma. Ivone Castilho Benedetti
(Trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1992. (Coleção O homem e a história)
JACQUES, François; SCHEID, John. Rome et l’integration de l’Empire. Paris: Presses
Universitaires de France,1990. (Coleção “Nouvelle Clio”)
LEONI, Giovanni D. (Trad.) Res Gestae Divi Augusti. São Paulo: Livraria Nobel S/A,
1957
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(Editor) The age of Augustus. [S.d.]: [S.e.], 1985
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. 2 ed. Vol.
II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989
VIRGÍLIO. A Eneida. Mem-Martins: Publicações Europa-América, Lda., [S.d.]
A Mácula Positivista: críticas e apropriações feitas por Plínio Salgado
Felipe Cazetta *
RESUMO: O artigo em questão tem como proposta a análise da inserção do positivismo
na teoria de Plínio Salgado, fundador e chefe da Ação Integralista Brasileira (AIB). Por ser
conhecida como o fascismo brasileiro, a pesquisa busca como objetivo demonstrar outros
afluentes teóricos que revestem a AIB, sem relaxar a idéia de o movimento ter como
projeto político para o Brasil o autoritarismo e o totalitarismo.
PALAVRA-CHAVE: Plínio Salgado; Integralismo; Positivismo.
ABSTRACT: The article in question proposes the analysis of the insertion of positivism in
the theory of Plinio Salgado, founder and head of the Ação Integralista Brasileira (AIB).
Because it is known as Brazilian fascism, the research seeks to demonstrate how other
tributaries theorists who take the AIB, but do not relax the idea of the movement have the
political project for Brazil authoritarianism and totalitarianism.
KEY-WORD: Plínio Salgado; Integralism; Positivism.
A rejeição de Plínio Salgado, líder da Ação Integralista Brasileira (AIB)*, pelo
*Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFJF
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materialismo, seja ele o burguês ou o marxista, chegando até mesmo a fundi-los, para
simplificar a teoria de ambos, empobrecendo-as, e facilitando o foco de ataques. (“A visão
estreita da burguesia é a mesma do marxismo. Mas a burguesia passiva e gozadora é muito
mais materialista do que o marxismo. Quem nega está afirmando a seu modo” 1). Neste
âmbito, o positivismo, não escapa das investidas enredadas por Salgado, devido à crítica,
feita por Comte e seus antecessores, aos dogmas religiosos e à exacerbação das virtudes do
progresso, promovidas pela ciência, em detrimento da Palavra da Igreja.
Estes caminhos metodológicos desenhados pelo positivismo devem reverência à
filiação desta escola teórica para com a filosofia das luzes. Devido ao citado retrospecto,
Condorcet, filósofo pioneiro a consolidar os pilares do positivismo, afirmava que a ciência
positivista deveria ser regida por moldes objetivos e quantificáveis, com a finalidade de
tornar translúcidos os estudos da nova ciência, posto que esta seria intangível, segundo os
anseios de Condorcet, aos dogmas atemporais da Igreja e à legitimidade divina da coroa
dos reis. Nesta medida, o elaborador da doutrina, e seu sucessor Saint-Simon, arrogavam
uma ciência que fugisse ao controle da classe dominante 2. Seguindo estas diretrizes, o
positivismo repudiava as paixões e interesses nas ciências da sociedade.
Contudo, Comte, principal difusor daquela teoria, migra para a esteira oposta de
seus predecessores. Por considerar que aqueles caíram nas próprias armadilhas, devido ao
radicalismo de Condorcet e de seu discípulo, o socialista utópico Saint-Simon, Comte
remodela o positivismo com forte conservadorismo, acreditando não estar, ele póprio,
cometendo o erro oposto. Este estigma se deu principalmente, pelo ruído na interpretação
de objetividade quanto ao exame sociológico. Comte codificou a metodologia
*A AIB foi o primeiro movimento de massa em solo nacional, sendo esta de extrema-direita e vastas
semelhanças com os fascismos europeus.
1 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. in. Obras Completas. vol. 5. 2ª edição. São Paulo: Editora das
Américas, 1957. p 99. (Grifo meu)
2LÖWY, Michael. Ideologia e Ciência Social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Editora
Cortez, 1985. p. 37.
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anteriormente proposta, inspirada nas leis físicas e naturais - deduzindo daí um suposto
equilíbrio que deveria ser transposto para a realidade social -, como manutenção da ordem
instaurada, não descartando mudanças, mas que estas aconteçam de forma lenta e estável,
com a finalidade de evitar o “estado anárquico da sociedade.” 3
Sob este imperativo de manter a ordem, Comte elabora sua nova abordagem sobre
o positivismo, calcada na progressão evolutiva da sociedade em três estágios, que
caminham do nível teológico, de presença permanente de deuses e totens na vida cotidiana
da comunidade, culminando ao último estágio, o estado positivo, ou científico,
notoriamente materialista, objetivo e racional, consequentemente ateu, perpassando pelo
estado intermediário, chamado de metafísico ou abstrato.
É necessário, portanto, aprofundar um pouco mais na análise destes três estados
expostos por Comte, visto que representam o eixo central da teoria positivista, além de
conter pontos que serão destacados não só como ataques de Salgado ao materialismo
comtiano, mas também aproximações entre ambas as doutrinas, das quais o líder da AIB
não explicita, todavia são evidentes. Deste modo, há uma citação bastante elucidativa do
próprio Comte sobre o que viriam a ser os três estados:
No primeiro, idéias sobrenaturais servem para ligar o pequeno
número de observações isoladas de que a ciência então se compõe.
Em outros termos, os fatos são explicados, isto é, vistos a priori,
segundos fatos inventados. (...). Ele fornece, por conseguinte, o
único meio pelo qual se possa raciocinar sobre os fatos,
sustentando a atividade do espírito que tem necessidade, acima de
tudo, de qualquer ligação. Numa palavra é indispensável para
permitir que se vá mais longe. (Grifo do original)
O segundo estado é unicamente destinado a servir de meio de
transição para o terceiro. Seu caráter é bastardo, liga os fatos com
idéias que já não são inteiramente sobrenaturais e que não são
tampouco inteiramente naturais. Numa palavra, essas idéias são
abstrações personificadas, nas quais o espírito pode ver à vontade o
nome místico de uma causa sobrenatural ou enunciado abstrato de
3 COMTE, Augusto. Reorganizar a Sociedade. São Paulo: Escala, 2000. p. 15.
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uma simples série de fenômenos conforme estiver mais próximo do
estado teológico ou científico. (...). (Grifo meu)
O terceiro estado é o modo definitivo de toda e qualquer ciência,
uma vez que os dois primeiros não foram destinados senão a
prepará-lo gradualmente. Então os fatos são ligados por idéias ou
leis gerais de uma ordem inteiramente positiva, sugeridas ou
confirmadas pelos próprios fatos e que muitas vezes, não passam
de fatos bastante gerais que se transformam em princípios. Procurase sempre reduzi-los ao menos número possível, mas sem instituir
nenhuma hipótese que não seja de natureza a ser verificada algum
dia pela observação e deixando de considerá-los, em qualquer
caso, senão como um meio de expressão geral para os fenômenos.4
(Grifo meu)
Isto posto, parece inevitável que um católico fanático tal como Salgado era, tecesse
duras críticas ao materialismo apresentado pelo positivismo de Comte. Tais investidas vão
de encontro justamente com o desligamento do “(...) Homem dos seus compromissos com
Deus”, pois o positivismo “apresenta-se como o verdadeiro egocentrismo materialista,
traçando a pantômetro a figura do próprio homem no objeto da sua adoração” 5. Nada mais
lógico para uma liderança que preconizava a ascensão prática do slogan “Deus, Pátria e
Família.”
Plínio Salgado mantém a coerência de seus ataques em A Quarta Humanidade,
dissertando contra a organização da democracia liberal. Neste vetor, o integralista difere
golpes não só em Comte, mas também, e inevitavelmente, em Adam Smith e H. Spencer,
inserindo todos, e sem explicações muito contundentes, na filosofia estóica. Salgado expõe
que: “As linhas mestras das democracias modernas inspiram-se no velho estoicismo. Toda
a doutrina econômica é estóica: o Estado cruza os braços. É esse o mesmo sentido do
4 Idem, p. 46.
5 “O positivismo de Comte, criando uma divindade irreal, no culto de um humanidade abstrata, e abstendo-se
da consideração da metafísica, isto é, desligando o Homem dos seus compromissos com Deus, apresenta-se
como o verdadeiro egocentrismo materialista, traçando a pantômetro a figura do próprio homem no objeto da
sua adoração.” SALGADO, Plínio. Aliança do Sim e do Não. In. Obras Completas. v. 6. São Paulo: Editôra
das Américas, 1955. p. 38.
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evolucionismo spenceriano e do positivismo comtista.” 6
Entretanto, ainda na obra A Quarta Humanidade, mesmo investindo duramente
contra o positivismo, Plínio apresenta esquemas de desenvolvimento de suas quatro
humanidades – estágios dos quais as civilizações deveriam obrigatoriamente passar – de
maneira bastante similar à organização dos estados positivistas, com ênfase às duas
primeiras Humanidades, quando comparadas aos estados positivistas de Comte.
O segundo tipo de Humanidade (a Monoteísta) apresenta um
caráter de fusão como a primeira (Politeísta) apresentou a índole de
adição. Na primeira somam-se os clãs, somam-se os deuses,
somam-se as províncias, somam-se as causas. Na segunda, todos
êsses elementos fundem-se numa idéia totalitária, que abarca tôda a
compreensão do universo e todos os movimentos humanos. 7 (Grifo
meu)
A Segunda Humanidade dissertada por Plínio Salgado, pouco ou nada muda no
aspecto “bastardo, [que] liga os fatos com idéias que já não são inteiramente sobrenaturais
e que não são tampouco inteiramente naturais.”8 Ao que se refere ao modelo de
desenvolvimento das sociedades, a Segunda Humanidade conserva o caráter de de
transição e bastardia – utilizando o termo de Comte – pois esta nada mais é que a fusão do
que se desenvolveu na primeira. A Humanidade primeira, por sua vez, conserva a
característica de primitivismo totêmico das “sociedades arcaicas”, onde os fenômenos
naturais se confundem com as manifestações de divindades, e onde ciência e religião eram
intrínsecas9.
A Terceira Humanidade mantém a mesma perspectiva ensejada por Comte, em
6 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. . in. Obras Completas. vol. 5. 2ª edição. São Paulo: Editora
das Américas, 1957. p. 38.
7 Idem, p. 33.
8 COMTE, Augusto. op.cit. p. 46.
9 “O totem traz consigo uma interpretação da idéia revelada quando o Homem ainda não havia se degradado
em conseqüência do pecado original. O significado imediato do animal totêmico, atingia a extensão do do
domínio tribal, começa a ampliar-se na correspondência com os fenômenos cósmicos, através dos processos
analógicos, em que o Homem Primitivo comunga no conjunto das expressões naturais.” Idem, p. 21.
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outras palavras, de destaque do desenvolvimento científico-tecnológico em detrimento das
explicações e relações sociais calcadas na religiosidade. Contudo, as opiniões sobre estes
avanços são evidentemente divergentes, haja vista o já destacado fanatismo religioso qual
Salgado era embebido, contrastante ao objetivismo pregado por Comte. É ilustrativa a
designação oferecida pelo líder da AIB a esse estágio, que é “A Terceira Humanidade, a
Ateísta, tem uma índole de dissociação, de desagregação.”10 Esta percepção pessimista é
defendida pelos mesmos motivos do deslumbramento de Comte. Para o difusor do
positivismo vulgar:
O destino da sociedade, que atinge sua maturidade, não é o de
habitar para sempre a velha e decadente choça que se edificou em
sua infância (...) nem o de viver eternamente sem abrigo (...), mas,
com a ajuda da experiência adquirida, o de construir para si, com
todos os materiais que acumulou, o edifício mais apropriado a suas
necessidades e a seu prazer.11 (Grifo meu)
Em Salgado as diferenças são sutis, porém bastante esclarecedoras para que se
desenhe a Quarta Humanidade integralista. Para Plínio, “A Terceira Humanidade funda-se
nas conclusões científicas, nas verdades em trânsito, da hipótese para a tese e da tese para a
hipótese.” Portanto, nestes termos a perspectiva se mantêm em relação ao descrito por
Comte.
Contudo, o que é inconveniente e torna desagregadora esta Humanidade, para
Plínio Salgado, é o seu teor de “Verdades em Trânsito”, consolidando o prelado do
ateísmo. O dogma e os sistemas de crença são fundamentais para a manutenção da religião,
seja ela de viés espiritual, seja ela de viés cívico. Para tanto é que as grandes religiões de
massas e partidos que se apóiam no carisma popular lançam mãos de imagens (sejam elas
materiais ou linguísticas) simplificadoras, disseminadoras de ideologias.
10 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. p. 39.
11 COMTE, Augusto. op. cit. p. 26.
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Destarte, é válido tocar numa discussão que tangencia este artigo: a construção do
mito oficial. Para que seja posto de pé um sistema ideológico que faça sentido para a
massa, e ao mesmo tempo represente as ambições particulares de uma casta ou classe
dirigente, é pertinente a simplificação e justaposição do discurso em formato de imagens
de fácil apreensão, a transformação do conceito em imagem, e associações livres de
imagens12. A capacidade de dinamismo, em sentido dialético de mobilização-justificação é
dada à ideologia, a partir da simplificação e esquematismo da qual é revestida. Ricoeur
expõe que “Seu papel não é somente o de difundir a convicção para além do círculo dos
pais fundadores, para convertê-la num credo de todo o grupo, mas também o de perpetuar a
sua energia inicial para além do período de efervescência.” 13
Por outro lado, a ciência se faz a partir da instabilidade das teses postas e da
efemeridade de “verdades temporárias”. Desta forma, a ciência tem como oposto a crença
incondicional e dogmática. Assim sendo, com a finalidade de afastar a humanidade das
“trevas do ateísmo” é fundado o último Estado, a utopia integralista.
O Estado, que salve o homem da ditadura cruel do materialismo
finalista e da ditadura sem finalidade da ditadura da plutocracia
democrática e das oligarquias políticas e financeiras. O Estado que
defenda o Indivíduo contra a Sociedade e a Sociedade contra o
Indivíduo. O Estado que seja impositor do equilíbrio, o mediador
máximo, o juiz, o orientador, o propulsor. (...) Esse estado realizará
a possível felicidade da Terra, baseada na confiança em Deus, no
amor ao próximo, sem excluir os valores científicos, mas
subordinando a ciência a um pensamento superior de finalidade
humana. 14
Em síntese, Salgado busca através da construção do Estado Integralista, pela ordem
e equilíbrio, a reestruturação dos pilares do integralismo, que são resumidos pela tríade
12 CHAUÍ, Marilena. Apontamentos para uma crítica a Ação Integralista. In. CHAUÍ, Marilena & Franco,
Maria Sylvia de Carvalho. Ideologia e Mobilização Popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. . p.40.
13 RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S/A.,1983.
p. 68.
14 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. p. 65.
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“Deus, Pátria e Família”. Tripé este que dialoga de maneira intensa o lançado pelos
positivistas de “Família, Pátria, Humanidade” 15.
Na humanidade utópica desenhada por Salgado, mesmo alterando o lema
positivista, inserindo “Deus” em lugar de “Humanidade, ando sim há encontros entre uma
e outra doutrina. O líder da AIB examinava a massa popular, nas palavras de Cavalari,
como “(...) imatura, incapaz, inconsciente e estúpida, ela não tinha condições de, sozinha,
conduzir-se na vida. Havia a necessidade de que alguém as virtudes que lhe faltavam,
interpretasse suas aspirações e guiasse
16
. Não faltam passagens na obra de Salgado que
comprove a afirmação da professora Rosa Maria, dentre várias cito apenas uma presente
em Palavra Nova de Tempos Novos, onde o líder da AIB compara a massa com o
selvagem shaekspeariano Calibã: “Calibã é a grande massa popular inconsciente, (...)”
17
“Não conhece a lógica. Não entende os ritmos superiores das harmonias. É forte e
poderoso, mas é estúpido e cego. Não conhece a palavra 'construção', porque só aprendeu a
palavra 'destruição'.” 18.
Para que “este monstro estúpido” seja domado e mantido sob controle, Salgado
recorre absolutamente aos mesmos personagens que Comte, para realizar esta a tarefa de
levação do nível cultural das massas 19 que são os sábios 20. Nesta tarefa, Salgado ressalta a
15 “O que o comtismo introduzia eram as formas de vivência comunitária, a família, a pátria e, como
culminação do processo evolutivo, a humanidade (que Comte escrevia com h maiúsculo).” CARVALHO,
José Murilo. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990. p. 22.
16 CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo: ideologia e organização de um partido de massa no
Brasil(1932-1937). Bauru, SP: EDUSC, 1990.. p.44.
17 SALGADO, Plínio. Palavra Nova de tempos Novos. in. Obras Coletivas. vol. 7. São Paulo: Editôra das
Américas, 1955.p. 325.
18 Idem, p. 329.
19 “Um dos grandes planos, pois, que temos a executar no Brasil, não é simplesmente o da alfabetização: é o
da elevação cultural das massas.” SALGADO, Plínio. Despertemos a Nação. In. Obras Completas. v. 10. 2ª
edição. São Paulo: Editora das Américas, 1954.p. 149
20 “A natureza dos trabalhos a executar indica por si, do modo mais claro possível, a que classe compete
empreende-los. Sendo teóricos, esses trabalhos, é claro que os homens que se especializam em formar
combinações teóricas seguidas metodicamente, ou seja os sábios que se ocupam do estudo das ciências de
observação são os únicos cuja espécie de capacidade e de cultura intelectual preenche as condições
necessárias.” COMTE, Auguste. op. cit., p. 39.
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importância dos quadros de juristas, políticos e intelectuais 21 no intuito de disseminar a
“Revolução do Pensamento” no intuito de recompor o equilíbrio, abalado sempre que,
segundo a liderança integralista, alguns elementos da sociedade se hipertrofiam em
detrimento de outros
22
. Na tarefa de adestrar a “massa popular”, Plínio Salgado elenca
aspectos interessantes para sanar a “enfermidade social” que assola o país.
O problema da ordem não é um problema de polícia, mas é um
problema de regímen. A desordem é um sintoma de enfermidade
social. Quando um país entra em anarquia, quando se multiplicam
os distúrbios, quando proliferam os descontetamentos, os brados de
rebeldia e as atitudes de desespêro, cumpre examinar o quadro
social, o valor e a disposição das fôrças econômicas, numa palavra,
as forças da arritmia dos movimentos sociais, das superexcitações
nervosas das multidões. 23
A preocupação com a manutenção da ordem e do equilíbrio no seio da sociedade,
mantendo a massa no lugar mais distante possível do poder, não são preocupações
originais de Salgado. Comte enseja este exercício de problematização logo nas primeiras
páginas de “Reorganizar a Sociedade”. Diga-se de passagem, o trecho de “Páginas de
Ontem”, acima citado, guarda semelhanças consideráveis com o excerto do positivista:
Um sistema social que se extingue, um novo sistema que chaga a
sua inteira maturidade e que tende a se construir, esse é o caráter
fundamental destinado à época atual pelo andamento geral da
civilização. Em conformidade com esse estado de coisas, dois
movimentos de natureza diferente agitam hoje a sociedade: um de
desorganização, outro de reorganização. No primeiro, considerado
isoladamente, a sociedade é arrastada para uma profunda anarquia
moral e política que parece ameaçá-la por uma próxima e inevitável
dissolução. No segundo, ela é conduzida para o estado social
21 “Aos pesados juristas, aos tardos magistrados, aos medalhões da política e da literatura, convidamos a
tomar parte nos conflitos que a juventude impetuosa promove, ou a escutar as heresias e barbaridades com
que achincalhamos em nossas tertúlias o velho Direito, a velha Literatura e as velhas Constituições.”
SALGADO, Plínio. Palavra Nova de tempos Novos. p.191.
22 SALGADO, Plínio. Páginas de Ontem. In. Obras Completas. V. 10. São Paulo: Editora das Américas,
1955. pp. 184-185.
23 Idem, p. 193.
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definitivo da espécie humana, (...). É na coexistência dessas duas
tendências opostas que consiste a grande crise experimentada pelas
nações mais civilizadas. É sob este duplo aspecto que essa crise
deve ser encarada para ser compreendida. 24
Após estas citações, é valido que se efetiva as devidas comparações, considerando
as semelhanças entre um discurso e outro. Ambos os autores, partindo de uma perspectiva
conservadora de progresso dentro da ordem, embasam seus respectivos discursos. Salgado
se aproxima a tal ponto da ótica de Comte, que cria um conceito próprio de Revolução25,
onde esta se realizaria, em primeiro momento, na esfera mental, para somente a posteriori
se concretizar no plano da ação. Desta forma, a Revolução do Pensamento seria a
verdadeira revolução, sendo está possível de ser realizada apenas pelas elites, eleitas por
Salgado e formadas pelos Departamentos de Estudos, submetidos ao crivo do
Departamento Nacional de doutrina, ambos, órgãos integralistas. 26
Em suma, mesmo impelindo duras críticas ao materialismo, Salgado lança mão de
grandes contribuições à obra de Comte, sendo o mesmo, nas palavras de Salgado, um
materialista burguês. Entretanto, na concepção do Estado Integral, ou a Quarta
Humanidade, há aspectos que evidentemente não constam na obra positivista, mas
remetem ao passado modernista do Chefe da AIB.
BIBLIOGRAFIA
COMTE, Augusto. Reorganizar a Sociedade. São Paulo: Escala, 2000.
24 COMTE, Augusto. Op.cit. p. 13.
25 “As Revoluções, sejam de que natureza forem, têm, lógicamente, um caráter ético, uma finalidade moral.
Todas as revoluções são atos ideais, porque toda alteração da marcha social pressupõe a autonomia da Idéia,
o seu valor intrínseco, a sua prevalência sobre as fôrças desencadeadas pelo determinismo dos fatos.”
SALGADO, Plínio. Psicologia da Revolução. in. Obras Completas. vol. 7. São Paulo: Editôra das Américas,
1955. p. 33.
26 CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. op.cit. p. 48.
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Editôra das Américas, 1955.
_______________. Despertemos a Nação. In. Obras Completas. v. 10. 2ª edição. São
Paulo: Editora das Américas, 1954.
_______________. Palavra Nova de tempos Novos. in. Obras Coletivas. vol. 7. São Paulo:
Editôra das Américas, 1955.
_______________. Páginas de Ontem. In. Obras Completas. V. 10. São Paulo: Editora
das Américas, 1955.
_______________.Psicologia da Revolução. in. Obras Completas. vol. 7. São Paulo:
Editôra das Américas, 1955.
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Estado Português e Igreja Católica: auxílios e disputas na manutenção do
domínio social e os Cristãos-novos como alvo deste processo nas Minas setecentistas.
Franciany Cordeiro Gomes316
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar a participação da Igreja como
instrumento de domínio e repressão social do Estado português, visando suas motivações
para a perseguição aos cristãos-novos estabelecidos nas Minas durante o século XVIII, que
foram as principais vitimas deste processo de união de forças das respectivas instituições.
PALAVRAS-CHAVE: Inquisição, Cristãos-novos, relação Estado e Igreja.
RÉSUMÉ: Ce travail a pour son but analyser la participation de l’Église comme un
instrument de domination et répression sociale de l’État Portuguais, en visant ses
motivations à la persécution aux nouveaux chrétiens qui se sont fixés à Minas pendant le
XVIIIe siècle, ceux-ci, les principales victimes de ce processus d’union de forces entre ces
deux instuitions.
MOTS CLÉS: Inquisition, Nouveaux chrétiens, relation entre l’État et l’Église.
Introdução
A partir de uma analise ainda inicial sobre os processos inquisitoriais disponíveis
digitalizados na página do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, vários questionamentos
se tornaram evidentes para a feitura deste trabalho. Como foi a ação inquisitorial na
316
Aluna do 5° período de graduação do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora e bolsista
de iniciação cientifica no Laboratório de História Econômica e Social (LAHES) coordenado pela professora
doutora Carla Maria Carvalho de Almeida.
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colônia brasileira, mais especificamente em Minas? Em que ela consistiu? Quem foram
suas maiores vitimas? Qual a importância destes personagens? Qual foi a atuação do
Estado dentro deste processo? Qual e como ocorreu a relação entre Estado e Igreja católica
neste período? E, o que isso influenciou no processo de extração aurífera nas minas?
Com estas perguntas em mente e trabalhando com os documentos, selecionando
aqueles que mais se encaixavam dentro deste contexto, pôde-se chegar a algumas respostas
que ainda poderão ser posteriormente melhor trabalhadas num futuro desdobramento.
Para a conclusão deste trabalho, uma analise superficial sobre a história da
Inquisição na Europa e no que se entende como Império Português foi de grande
necessidade para o melhor entendimento da natureza desta instituição. Após este primeiro
momento, a relação entre Estado Português e Igreja Católica se tornou o foco da narrativa,
esclarecendo o tipo de relação e quais foram os resultados desta para a repressão social.
Observando o contexto social em Minas Gerais e sua composição, o personagem
cristão-novo veio à tona por sua importância tanto econômica como social, e sua freqüente
aparição dentre os processados pela inquisição nas Minas tornou-os objeto de estudo.
De forma geral, o trabalho tenta saber de que forma esta instituição foi usada para
uma tentativa de centralização do poder, que objetivava afetar aqueles que mais possuíam
condições de desafiar esta ordem que se pretendia estabelecer.
Sobre a Inquisição
A Igreja Católica, durante a Idade Média, era uma das mais importantes instituições
do período, se não a mais. Era ela a referência moral e comportamental, que determinava e
influenciava o cotidiano e a concepção de mundo das pessoas. Esta situação perdurou
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inquestionável até o final da Baixa Idade Média quando se iniciou um movimento
questionador de seus dogmas e de sua conduta perante o meio social.
Objetivando manter sua predominância, acabando com as controvérsias surgidas
com o movimento reformista, a Igreja decide por reformular suas posições e sua conduta,
porém, antes disso, cria um meio de repressão e dominação daqueles que se opunham ou
não seguiam seus princípios, os denominados hereges.
Pra isso a Igreja convocou a Ordem dos Dominicanos e a incumbiu de perseguir e
punir aqueles que se desviavam das “leis da Igreja”. Para cumprir essa missão os
Dominicanos criaram a Milícia de Jesus Cristo.
Inicialmente essa perseguição não possuía uma organização nem uma instituição
regular que cumprisse este papel. Eles somente investigavam e interrogavam, não usando
ainda os artifícios de tortura, e quando necessário, puniam somente aqueles que se
encaixavam dentro de uma lista de desvios de conduta ou de pecados que a Igreja formulou
para esse fim.
Após algum tempo surgiram os Tribunais Inquisitoriais que possuíam uma
administração hierarquizada e intimamente ligada a Igreja, mas durante a transição dos
tempos medievos para os modernos essa sofreu uma pausa em suas ações.
Foi na Idade Moderna que esta instituição alcançou seu auge, quando os reinos
católicos ibéricos, Portugal e Espanha, sofrendo com a invasão dos mouros e vendo o
grande progresso econômico do povo judeu que ali estava estabelecido, resolveram pedir
ao papa a permissão para retornar com a inquisição em seus territórios.
A Espanha, em 1478, foi a primeira a estabelecer um tribunal inquisitorial em seu
território de domínio. Seguindo seu exemplo, Portugal, em 1536, também foi contemplado.
Como Portugal é o nosso objeto de estudo, enfatizaremos a analise da ação Inquisitorial
neste reino.
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Com a Bula Papal Cum ad nihil magis, foram nomeados três bispos para exercerem
o cargo de Inquisidores-gerais, deixando uma vaga a ser ocupada por um escolhido do rei
D. João III. A instituição portuguesa demonstrava a grande intervenção régia que sofria,
que de acordo com a autora Anita Novisky, esta serviu para centralizar o poder da
Coroa317.
A atuação deste Tribunal iniciava-se com as visitações periódicas as províncias e
vilas do reino, onde investigavam e colhiam denúncias, depoimentos e confissões dos
moradores daquelas localidades. Era estabelecido no início das visitações o “tempo da
Graça”, no qual qualquer um poderia confessar seus crimes e ser absolvido pelas bênçãos
de Deus.
Posteriormente os alvos de denuncia eram convocados para serem submetidos a
interrogatórios que poderiam demorar semanas ou até meses, nos quais o indivíduo sofria
torturas para confessar seus crimes, já que a instituição não admitia ser questionada em
suas posições, por isso às confissões eram forçadas.
Após admitirem seus pecados, estes indivíduos, se sobrevivessem, ficavam
encarcerados nos Cárceres secretos da Inquisição até poderem participar do Auto-de-fé,
cerimônia simbólica que contava com a participação das autoridades locais e do clero, e
eventualmente do próprio rei, onde as sentenças eram lidas publicamente. Os réus eram
conhecidos, vexamados e encaminhados para um possível relaxamento à autoridade
secular, se caso fosse punido com a pena de morte.
Os que não eram punidos com a pena capital poderiam ser encaminhados para
exílios, ou serem expostos ao julgo popular, serem obrigados a usarem sambenitos túnicas que eram desenhadas com imagens denunciantes do pecado que aquele individuo
317
NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1983, pág. 37.
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havia cometido - ou cumprir determinações espirituais como orações cotidianas,
benfeitorias e etc.
A Inquisição portuguesa teve como seu maior objetivo a perseguição dos cristãosnovos (judeus convertidos ao cristianismo durante sua expulsão em 1492). Esta estava sob
jurisdição da Coroa portuguesa que pagou uma quantia significativa à Roma para que esta
não influenciasse em sua ação318. A ação inquisitorial em Portugal pode ser considerada
como mais rigorosa e mais feroz que a espanhola, pois atuou em um território mais vasto e
usou de procedimentos mais cruéis.
Toda a sua atuação era mantida em sigilo rigoroso, nem mesmo o réu sabia quem o
havia denunciado e sobre o que estava sendo julgado, não podendo assim se defender. Seus
funcionários seguiam uma hierarquia pré-determinada. A maior autoridade dentro da
instituição eram os inquisidores-gerais, logo abaixo vinham os comissários inquisitoriais,
por fim entravam os familiares, os escrivãos, os clérigos designados para funções especiais
e etc. Pertencer a este corpo administrativo concedia aos indivíduos status social e
privilégios, como isenção de impostos, por exemplo. Para ser escolhido o individuo
deveria passar por uma investigação sobre sua “limpeza do sangue”, já que deveria ser
descendente de uma família ligada às tradições da Igreja, não tendo assim ascendentes
originários de outras frentes religiosas, o que demonstra que esta instituição se baseava no
preconceito religioso.
A relação que o Estado e a Igreja mantinham era uma união de forças, mas com
certa rivalidade na disputa de poder. O Estado português tentava atenuar, de certa forma, a
influência e o poder que a Igreja exercia através de beneplácitos régios e a regia protectio,
a fim de centralizar o poder em suas mãos, que, segundo Anita Novinsky, a Igreja era uma
318
Ibdem pág. 36
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arma a mais para o Estado319. Mas como a sociedade em si era corporativista e a Igreja
possuía grande poder influenciador sobre a população, o qual continuava a ser dividido
entre as instituições320.
A Inquisição em Minas Gerais
A Inquisição no Brasil se deu em forma de visitações eclesiásticas, iniciando suas
atividades em 1579 e se estendendo até as proximidades da Independência. Sua atuação
tinha como finalidade os âmbitos políticos e econômicos, como na metrópole. Não houve o
estabelecimento de um tribunal como na América espanhola, ficando esta sob jurisdição do
Tribunal de Lisboa.
A ação inquisitorial seguiu as regiões produtoras de riqueza da colônia. Com o
período de grande exploração de ouro e diamantes nas Minas, esta não deixou de
estabelecer seu cerco de domínio e repressão neste local.
As vilas e províncias mineiras, como nas demais regiões da colônia, eram
fiscalizadas inicialmente com a ajuda dos clérigos locais que fiscalizavam e levavam as
denuncias ao conhecimento de Lisboa quando necessário ou resolviam as pendências in
loco.
Após este primeiro momento, com o desenvolvimento e crescimento da colônia
como um todo, houve a formação de um aparato burocrático em auxílio às visitações, esta
se tornando mais complexa, com a nomeação de pessoas de variados graus de importância
dentro da sociedade para os cargos de comissários, familiares e cargos de base.
319
Idem.
Esta posição vem de acordo com uma nova corrente historiográfica, que não vê a colônia brasileira como
um simples apêndice da metrópole e questiona a real centralidade do poder da metrópole, visando certa
autonomia dos componentes sociais.
320
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Através de visitas periódicas às diversas localidades existentes nas regiões das
minas, os comissários ou os clérigos locais promoviam como na Europa o “tempo da
Graça”, e após investigações a fundo no cotidiano dos habitantes, os denunciados eram
julgados ali mesmo, dependendo da heresia cometida, ou era feita a solicitação de
visitadores de Portugal, ou mesmo, o denunciado era diretamente encaminhado para
Lisboa.
Para se fazer uma denuncia à inquisição, bastava a palavra do denunciante, não
sendo necessárias provas ou quaisquer outras formas de confirmação desta denúncia para
abrir as investigações contra o acusado. Por isso, muitas famílias ou inimigos locais
usavam deste artifício para “agredir” politicamente seus contrários. O poder local e a
Coroa também se serviam deste caminho para derrotar seus opositores.
Crimes como blasfêmia, sodomia, concubinato, bigamia, feitiçaria e judaísmo eram
os mais comuns nas regiões das minas. Dentre estes crimes, o que era bastante visado nas
ações cotidianas das pessoas era seu envolvimento com o contrabando de mercadorias e de
ouro, além da usura e da luxuria, vistoriando o correto pagamento de dízimos e impostos.
Isso proporcionava um grande controle das riquezas e dos bens dos indivíduos,
conseguindo controlar de certa forma a produção e os desvios de ouro que poderiam
ocorrer neste momento.
Outra forma de controlar as riquezas pessoais que a inquisição usava era o confisco
de bens, como anteriormente citado, de grande uso e de extrema importância para o
funcionamento da instituição, e neste quesito as grandes vítimas eram os cristãos-novos.
Alguns autores como Schwartz321 acreditam que foram poucos os casos de
acusação por judaísmo para os cristãos-novos, mas Novinsky322 e Salvador323 se colocam
321
LOCKHART, James & SCHWARTZ, Stuart B. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
322
NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1983
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contrários a esta opinião constatando a grande presença de processos inquisitoriais
relativos a eles.
Os cristãos-novos nas Minas
Vítimas de preconceito e perseguição na Europa, muitos cristãos-novos vieram para
a colônia luso-americana com a esperança de reconstruir suas vidas e alcançar patamares
que a eles eram negados no Velho Mundo.
À procura de enriquecimento e prestígio, estes indivíduos vieram em quantidade,
povoando uma variada gama de regiões, percorrendo quase todo o território colonial do
período em busca de melhores condições de vida. Minas Gerais foi uma das rotas
percorridas por eles, mas não há evidências concretas de que algum deles possuísse minas
de ouro e de diamantes.
Sua aptidão econômica para o comércio, com a ajuda de seus laços familiares
espalhados por várias regiões, além de tantas outras atividades por eles desenvolvidas
como o artesanato, profissões liberais e etc., influenciaram para o desenvolvimento da
região, chegando alguns deles a exercerem cargos de mando e participando da aristocracia
local, tendo sua inclusão neste grupo por sua vultuosa riqueza acumulada.
Por possuir esta grande importância local dentro de uma região que produzia a
maior parte da receita reinol, e por estarem direta ou indiretamente ligados a extração
destes minérios, os cristãos-novos foram perseguidos, já que o controle de sua conduta
representava de certa forma o controle desta produção e de seu deslocamento [???].
Heresias como luxuria e usura, que eram constumadamente ligadas à tradição
judaica, influenciavam no julgamento destes indivíduos, pois restringia seu comportamento
323
SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro, 16951755: relações com a Inglaterra. São Paulo: Pioneira, 1992.
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econômico e, de certa forma, controlava suas atividades de maior lucro, pois era por meio
destes “erros” que suas riquezas eram formadas, em alguns casos.
Por estarem vinculados as atividades de metalurgia, mineração e comércio de
abastecimento acreditava-se que o controle destes homens poderia amenizar o contrabando
muito utilizado nesta região o que provocaria o barateamento da manutenção e o não
pagamento de impostos ao reino.
Outra forma de ação repressora a estes indivíduos foi o confisco de bens, citado
anteriormente. Esta atividade muito usada pela instituição era de interesse de todas as
partes envolvidas, excluindo é claro os próprios réus e seus familiares. “Familiares e outros
colaboradores apropriavam-se de bens que não lhes pertencia, por ocasião dos confiscos.”
(SALVADOR, 1992, pág. 175).
O resultado destes confiscos aos cristãos-novos e seus familiares eram
devastadores. Suas fortunas, bens e atividades lucrativas foram totalmente anulados,
ficando os dependentes destes na miséria algumas vezes, isso retirava sua influência local
que dependia de seu dinheiro. Homens como Diogo Nunes Henriques, Francisco Ferreira
Isidoro e Manuel Nunes da Paz são exemplos deste tipo de perseguição.
Os
cristãos-novos
eram
inicialmente
acusados
de
judaísmo,
que
não
necessariamente representava uma heresia concreta, pois a simples ascendência longínqua
desta religião já representava um crime cometido. Posteriormente, durante o decorrer do
processo, sua vida íntima e sua conduta tanto social quanto econômica eram colocadas em
foco.
Não existem comprovações de que isso ocorreu verdadeiramente, mas como foi um
artifício por várias vezes usado, a acusação destes ao Tribunal poderia ser motivada por
disputas políticas, pois para se abrir um processo, ou melhor, uma investigação contra
alguém, não era necessário provas concretas inicialmente. Assim, devido ao fato de
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exercerem certa representação política na região, os aristocratas opositores a eles poderiam
usar deste instrumento para seus fins políticos, podendo saber anteriormente de sua
ascendência que certamente os levariam aos cárceres.
Conclusão
A partir das informações supra citadas podemos verificar que desde o início do
estabelecimento da Inquisição nas terras de Portugal, o Estado estava extremamente
vinculado a esta instituição, e intuía usar da força deste instrumento para centralizar o
poder em suas mãos. Este objetivo foi ocasionalmente atendido, mas na maioria das vezes
a disputa de poder entre estas instituições impedia a centralização, já que a Igreja ainda
exercia grande poder na determinação do cotidiano das pessoas, inclusive do próprio
Estado.
Os cristãos-novos tiveram participação efetiva neste processo de disputa por serem
objeto de aversão entre as duas partes, um por motivos financeiros e outro por motivos
morais, além de sua inquestionável importância social e econômica nesta sociedade.
Referências Bibliográficas
Fontes primárias324:
PT-TT-TSO/IL/28/9542 - ANTT (processo inquisitorial referente a Manuel Nunes da Paz)
324
As fontes primárias usadas, em maioria foram somente superficialmente trabalhadas, sendo usados todos
os nomes de cristãos-novos referentes a Minas Gerais que constam no acervo digitalizado do Arquivo
Nacional da Torre do tombo. As fontes citadas foram analisadas a titulo de exemplo, pois atendem o objetivo
do trabalho.
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PT-TT-TSO/IL/28/11965 - ANTT (processo inquisitorial referente a Francisco Ferreira
Isidoro)
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A Queda Genocida da Casa do Islã - O Genocídio Armênio (19151923): pela sobrevivência do Império Turco-Otomano325.
Heitor de Andrade Carvalho Loureiro326
“Can you feel their haunting presence?”
System of a Down – Holy Mountains
RESUMO: Veremos brevemente como os povos turcos se instalaram na Anatólia e Ásia
Menor, territórios historicamente ocupados por armênios. Veremos também, de forma mais
aprofundada, como a presença turca alterou as relações históricas e sociais ali existentes
até a configuração do quadro genocida no século XX.
PALAVRAS-CHAVE: Império Turco-Otomano; Armênia; Genocídio.
ABSTRACT: This paper analyzed how the Turkish people joined in Anatolia and Minor
Asia. It will be analyzed how the Turkish presence changed the historical and social
relationships to the start of the Armenian Genocide in twentieth century as well.
KEYWORDS: Ottoman Empire; Armenia; Genocide.
O Império Turco-Otomano: instituições sócio-políticas
Por volta do século XI, povos nômades oriundos dos planaltos da Ásia Central
migraram rumo ao ocidente, em busca de melhores condições para os seus. Chegando à
325
Este paper é parte da nossa monografia de bacharelado em História pela UFJF, intitulada “A Queda da
‘Casa do Islã’: O Genocídio Armênio (1915-1923) como práxis paradigmática no século XX”.
326
Graduado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
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Anatólia, ainda como nômades, conseguiram se instalar em um terreno inóspito, onde os
árabes haviam logrado derrota anos antes327.
Entretanto, a terra recém-conquistada não era inabitada. Diversos povos já se
encontravam ali desde tempos imemoriáveis e possuíam peculiares organizações sociais.
Entre estes, havia os armênios. Descendentes do antigo povo mesopotâmio de Urartu,
instalado no sopé do Monte Ararat há 2500 anos a.C., os armênios viram seu Estado chegar
à extensão máxima sob o governo de Tigranes, o Grande, entre os anos de 95 e 56 a.C., o
que fez dos armênios aliados imprescindíveis do Império Romano, que precisavam deste
povo para conter a ameaça persa que vinha do oriente. A essa altura, os armênios
funcionavam como uma espécie de “tampão”, a última fortaleza ocidental contra os
“bárbaros” orientais328 (SAPSEZIAN, 1997).
É na era cristã, porém, que a história dos armênios ganha novo significado e
importância. Já sem a força de um Estado estável que fora outrora e sempre ameaçados
pelas potências romana, bizantina e persa, os armênios encontraram na sua fé o elo
político, social e cultural que os mantém até hoje ligados, forjando uma identidade comum,
mesmo na Diáspora pós-genocídio329.
327 Perry Anderson (1989, pp. 361-362), sustentado por argumentos de pesquisadores do Islã, chama a
atenção para as condições geográficas da Anatólia, que se assemelham à região de origem turca, inclusive
para a adaptação dos camelos – principal meio de transporte destes.
328 Por sua localização geográfica, a Armênia foi por vezes assediada por diversos povos que passavam
pelos territórios no Cáucaso e no nordeste da Anatólia a fim de alcançar a o centro da Ásia Menor e a Europa.
Por causa desta posição privilegiada geograficamente e por vezes, cobiçada por diversos povos, Henry
Morgenthau chama a Armênia de “A Bélgica do oriente” (MORGENTHAU, 1918, p. 166). A comparação
com a Bélgica também é feita pelo candidato a presidência dos EUA, Charles E. Hughes, em 1919: “The
atrocities in Belgium, terrible as they were, were but slight as compared with the incredible cruelties and
massacres that took place in unfortunate Armenia” (DADRIAN, 2004, p. 16).
329 É importante percebermos que a trajetória da Igreja Apostólica Armênia – também referenciada como
Igreja Gregoriana – não é um mero episódio na história deste povo. A Igreja é uma forte instituição com um
papel de suma importância para os armênios, tanto durante o genocídio, quanto para articulá-los nos vários
países onde a diáspora armênia se firmou. O romance Os Quarenta Dias de Musa Dagh ilustra a importância
da Igreja Armênia como liderança até mesmo na hora da morte ou de enfrentar o algoz turco que se
precipitava sobre as comunidades armênias da Anatólia (WERFEL, 1995). Sobre a diáspora brasileira, o
trabalho de Roberto Grün (1992) discorre com clareza sobre o papel da Igreja Apostólica Armênia no Brasil
como instituição filantrópica e mutualista para os novos imigrantes que chegavam à colônia. Em outro
trabalho, foi este também o tom que nós demos à história da Igreja: como a sua história é um alicerce da
identidade armênia (LOUREIRO, 2006).
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Os turcos, por sua vez fixados na Anatólia, aos poucos foram conquistando terreno
sob as possessões árabes. A decadência deste no Oriente Médio facilitou vida dos nômades
forasteiros, que conquistaram Bagdá e fundaram um Império Seljúcida já sedentarizado,
aproveitando toda a estrutura jurídica e administrativa deixada pelos árabes (ANDERSON,
1989, pp. 361-362).
Em meados do século XIII, as invasões mongóis fragmentaram a unidade existente
dos Estados turcos, transformando-os em um mosaico de emirados, sem unidade. Deste
cenário heterogêneo, o sultanato osmanli – origem dos Otomanos – surge como força
capaz de dominar as demais instituições e unificá-las em torno de um grande Império
(Ibid., p. 363).
Anderson nos chama a atenção para a convergência de instituições culturais e
religiosas que teriam dotado, segundo ele, o Império Turco-Otomano do poderio que este
teria durante os próximos 500 anos. Para o autor, a racionalidade administrativa islâmica,
herdada pelos turcos, somada ao zelo militar, próprio do espírito ghazi destes330, teria
propiciado a este Império os contornos peculiares que nenhum Estado absolutista europeu
poderia criar (Idem).
Os turco-otomanos mantinham então uma relação dúbia com os não-islâmicos que
se encontravam sob jugo durante a expansão da dinastia otomana: se por um lado o espírito
ghazi colocava como condição a conversão do “infiel” para que o Império prospere; por
outro lado, a conversão de todos os cristãos – ainda que isso fosse possível – não era viável
do ponto de vista administrativo, uma vez que a fé islâmica prevê a tolerância a nãomuçulmanos desde que estes sejam devidamente tributados pelo Estado. Tal tributação,
330 Segundo Anderson, é “uma fé militante de cruzada muçulmana que rejeitava toda a acomodação com o
infiel, do tipo que viria a definir os Estados constituídos do Antigo Islã” (Ibid., p. 362).
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seja em gêneros alimentícios, metais, animais, ou mesmo em pessoas – devshirme331 – era
vital para a sobrevivência do Império.
Entre os anos de 1839-1876, o Império sofreu uma profunda reorganização – em
turco, tanzimat – em suas estruturas políticas e sociais. O tanzimat colocava fim às
interações paternalistas existentes na estrutura da Porta, tornando através de dois decretos –
sendo o mais importante deles o Rescriptum Imperial332 – o Otomanismo333 a nova política
do Império Turco-Otomano. O Otomanismo englobava todos os habitantes do Império,
sejam muçulmanos ou não, colocando um fim assim na supremacia turco-islâmica que
permeava as instituições da Porta através dos séculos. Desta forma, muitos armênios
ascenderam no aparelho estatal do Império, mas ainda eram tratados diferenciadamente.
Estes, por exemplo, não podiam ocupar cargos nas pastas de relações internacionais e
finanças do Império (ASTOURIAN, 2004, p. 5).
A Comunidade Armênia – “Ermeni Millet”
Para organizar as minorias foi criado o sistema denominado de millet. O termo
significa “comunidade religiosa” e nada mais é do que uma instituição que agrupa uma
mesma coletividade que vivia sob o controle otomano. O Ermeni Millet – comunidade
331 O devshirme – criado na década de 1380 – constituía no recrutamento de crianças oriundas de terras
cristãs, enviadas para serem educadas sob a égide do islã. Essas crianças, uma vez formadas, constituíam um
corpo de escravos que eram empregados na burocracia do Império Turco-Otomano e no exército
(ANDERSON, 1987, p. 366). Ainda segundo Anderson, tal status de escravo não continua um sentido
pejorativo, uma vez que a falta da propriedade privada da terra no Império não denotava um vínculo do
escravo a um latifúndio, como acontecia na Europa. No Império Turco-Otomano, ser escravo via devshirme
era, antes de tudo, um sinal de proximidade com o poder do Império (Ibid., pp. 365-367).
332 Em turco, Hatt-i Hümayun.
333 Os ideais do Otomanismo, segundo Yves Ternon (1997, p. 164) são: “Rétablir en Turquie la liberté et la
justice, et soumettre la nouvelle génération à um système d’éducation et d’instruction solide qui puísse être
em rapport avec les libertes modernes et lê pouvoir constitucionnel dont elle sera dotée... Établir entre lês
différents peuples et races de l’Empire une entente qui assurera à tous, sans distinction, la pleine jouissance
de leurs droits, reconnus par les hatt-i impériaux [cf. nota anterior] et conserves par les traités
internationaux...” [grifos nossos]. Percebamos que o discurso aqui não segrega as minorias otomanas, mas
pelo contrário, agrega-as em prol de um Império dotado das liberdades constitucionais modernas das quais
todos possam gozar.
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armênia – recebeu das autoridades turcas em 1461 a nomeação de um patriarca armênio –
ou catholicos –, com sede na cidade de Constantinopla, a fim de balancear a grande
influência do millet grego e de seu patriarca no Império334. Yves Ternon (1996, p. 33) nos
chama a atenção para a peculiaridade que havia nesta prerrogativa do sultanato em nomear
o chefe do millet: no limite, a Sublime Porta escolhia àquele que chefiaria a Igreja Armênia
dentro de suas fronteiras. Ainda segundo o autor, embora pareça concisa a formação de
agrupamentos étnico-religiosos desta estirpe, eles podem por vezes esconder nuances e
diferenças. No caso dos armênios, o único millet existente reunia sob sua esfera de
influência, armênios apostólicos – gregorianos –, católicos e protestantes, o que gerava
desconforto e desgaste dentro da própria coletividade (Ibid., pp. 35-36).
Tal ação rotulava como iguais os armênios de diferentes religiões, o que causava
atritos dentro da coletividade. Por volta das décadas de 1820 a 1850, as minorias das
minorias armênias – ou seja, católicos e protestantes – conseguem junto às Potências
ocidentais a solicitação para que o Sultão outorgasse a tais segmentos, o status de
comunidades religiosas autônomas335. Entretanto, os armênios ainda eram vistos
vulgarmente como um único millet e este teria o direito de chamar uma assembleia
constituinte para criar uma Carta que regesse os cidadãos que estavam sob sua jurisdição.
Em 1863, após anos de discussão entre posições políticas distintas no millet, a Porta
ratifica um documento chamado de “Regulamento da Nação Armênia” contemplando
algumas aspirações dos cristãos, que alcunharam o texto de “Constituição Nacional
Armênia” (Ibid., p. 52). O Regulamento permitia aos armênios gozarem de liberdades
334 Atualmente, a Igreja Armênia conta com quatro patriarcados: O mais importante e central, na cidade de
Etchmiadzin, na Armênia, onde o Catholicos Karekin II ocupa o trono gregoriano; o patriarcado da Grande
Casa da Cilícia, sediado na cidade de Antelias, no Líbano; o patriarcado de Jerusalém; e o patriarcado de
Constantinopla, hoje Istambul. Estes dois últimos estão subordinados administrativamente à Sé, em
Etchmiadzin (SAPSEZIAN, 1997, pp. 205-208).
335 Assim, podemos observar aqui um exemplo claro de como era incisiva a influência dos países europeus
na política interna otomana (TERNON, 1997, pp. 48-50), prática que causaria inúmeros desgastes entre todas
as partes envolvidas, poucos anos mais tarde
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religiosas e culturais ímpares entre as minorias otomanas no momento. Tal concessão foi
propagandeada pela Porta como um voto de confiança naqueles que eram chamados pelas
autoridades turco-otomanas de millet leal336. Em suma, a Constituição Nacional Armênia
e a institucionalização do millet armênio são partes de um metafísico “pacto de domínio”
feito entre o povo armênio e o Estado turco-otomano, a fim de garantir a coesão interna do
Império337. Entretanto, a relativa autonomia política e a vigência de uma compilação de
leis que garantiam aos armênios alguns direitos não eram suficientes para que elas
atingissem com eficácia todas as partes do Império. A mera presença de uma Constituição
não garante por si só a integridade de uma nação (OHANIAN, 2004, p. 6).
Entrementes, a constituição do Ermeni Millet se mostrou um importante passo
rumo à configuração ideal para a ocorrência genocida. O sociólogo armênio-americano
Vahakn Dadrian chama a atenção em um de seus textos para a “síndrome da obediência”.
Segundo ele, armênios – e posteriormente judeus – aceitavam a submissão a uma força
política e militar exógena e estranha, como estratégia de sobrevivência dentro de uma
instituição na qual eles não teriam força política expressiva. O perigo de tal síndrome,
segundo Dadrian, era o grupo dominante ter a percepção de que a submissão nada mais era
que um ardil pela manutenção da minoria indesejada naquele corpo político e
administrativo – no nosso caso, o Estado Otomano (DADRIAN, 2005, p. 90). Em Marx
336 Interessante perceber que a Turquia atual, em seus documentos revisionistas acerca do Genocídio,
reforça o status de millet-i sadıka – nação leal – como forma de argumentar que os armênios eram estimados
pela Porta em 1915. A intenção com este discurso é desqualificar as acusações contra o Império TurcoOtomano, que teria agido deliberadamente contra os armênios durante o século XIX e XX. Para uma
argumentação revisionista nesta linha, ver ÖZDEMİR, 2007. Ainda na obra citada, podemos observar que a
sua publicação foi feita por diretórios ligados ao Ministério da Defesa da Turquia, revelando assim como a
Questão Armênia é tida como estrategicamente vital para a soberania nacional turca ainda hoje.
337 Em Para a Questão Judaica, o jovem Karl Marx (2009, p. 25) retira do judeu alemão do século XIX a
sua particularidade religiosa a fim de compreender melhor o papel deste povo em sua esfera política, sem o
véu de minoria religiosa que o caracteriza tão fortemente. Devemos aqui fazer o mesmo exercício com os
armênios organizados no millet. Embora sejam caracterizados justamente pela diferença religiosa com os
turcos, não podemos nos enganar que esta seja a diferença essencial entre os dois grupos. É mais do que isso.
O Ermeni Millet torna os armênios atores políticos com larga importância dentro do Império Turco-Otomano
e devem ser analisados como tais. A partir do momento que os armênios recebem este status político e social
pela Porta, eles são reconhecidos por esta como um povo com ativo poder social e político não só entre os
seus, mas no conjunto do Império.
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(2009, p. 40) há a proposição que a concessão de direitos para as minorias residentes em
uma nação “estrangeira”, no limite, gera privilégios para estas que os próprios autóctones
não possuem. Assim, a diferença de status das diversas unidades étnicas e políticas dentro
de um mesmo espaço nacional pode vir a se tornar um poderoso estopim para conflitos.
Contudo, não podemos enxergar o millet como uma instituição verticalizada,
imposta aos armênios pelos turco-otomanos. Era mais do que isso. O millet era uma
aspiração nacionalista armênia que ganhava corpo após anos de embates políticos. O
nascimento do nacionalismo armênio, como foi de praxe nas demais Questões Nacionais,
não foi fomentado puro e simplesmente por uma retórica de uma nação livre. Ao contrário,
o nacionalismo estava sempre em simbiose com reformas sociais e políticas pretendidas
pelos membros do grupo em tela338 (HOBSBAWM, 2008, p. 148). Segundo Eric
Hobsbawm (Ibid., p. 144), em situações de ameaças externas, uma determinada
coletividade de reúne em torno de idéias como “família”, “ordem”, “tradição”, “religião”,
“moralidade”, etc. sob um mote nacionalista. Evidentemente, tais ameaças externas servem
para ambos os lados – armênios e turcos - organizarem em torno de ideais nacionalistas. E,
quanto mais um dos grupos se organiza, mais o outro se sente ameaçado, gerando uma
crescente radicalização dos movimentos.
Posto às claras como funcionava a instituição do millet e a condição dos povos nãomuçulmanos dentro do Império Turco-Otomano, mostra-se agora essencial para a presente
análise discorrer sobre o sistema fundiário vigente dentro das fronteiras otomanas, entre os
séculos XVI e XX.
338 Para os armênios, o exemplo da Federação Revolucionária Armênia – FRA – nos parece muito útil. A
FRA, fundada em 1890 (KERIMIAN, 1998, p. 253) era – e ainda é – a principal instituição nacionalista
armênia e possui orientação socialista, afiliada inclusive com a Internacional Socialista. Ou seja, a principal
voz do nacionalismo armênio é um partido socialista que luta também por reformas sociais.
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Sistema fundiário do Império Turco-Otomano e a inserção dos armênios na
economia do Império
Anderson afirma que virtualmente, não havia propriedade privada de terra nos
limites do Império, sendo todos os latifúndios - dos Bálcãs à Anatólia - pertencentes ao
Sultão. Tal prática não permitia a criação de uma nobreza fundiária. Esta era de caráter
essencialmente administrativa onde a “honra e riqueza confundiam-se efetivamente com o
Estado e a posição social derivava simplesmente dos postos ocupados em seu seio”
(ANDERSON, 1989, p. 365).
Quais seriam as consequências da institucionalização de tal prática otomana?
Podemos dividi-las em três partes. Primo, nos Bálcãs, houve uma mudança de status do
campesinato e dos senhores de terra. Os camponeses da região, antes subjugados pelos
latifundiários cristãos, viam-se mais livres que seus congêneres europeus, graças à
dominação otomana, que extinguiu o regime de propriedade de terra vigente a fim de
implantar a instituição fundiária supracitada. Alguns membros da nobreza étnica balcânica
– bósnios, principalmente – foram absorvidos pelo Islã. Concomitantemente, a eliminação
da aristocracia étnica da região prestou um desserviço à “dinâmica endógena”, uma vez
que o modus operandi otomano provou uma “efetiva regressão às instituições clânicas e às
tradições particularistas entre a população rural dos Bálcãs”. Ou seja, foi um retorno ao
período pré-feudal, com a interrupção da evolução autóctone rumo a uma ordem feudal
mais avançada. Uma “longa estagnação em toda a evolução histórica da península
balcânica” (Ibid., pp. 371-373).
Secundo, as províncias da Anatólia, Síria e Egito viviam seu apogeu no século XVI,
beneficiando-se pelo deslocamento do eixo político, econômico e administrativo do
Império para os Bálcãs. A unidade otomana no Oriente Médio criara um cenário de paz,
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ideal para a prosperidade dos comércios de especiarias que cruzava a região. A população
rural da Anatólia aumentou dois quintos ao longo do século e assistiu a um surto de
crescimento urbano, tendo Istambul cerca de 400 mil habitantes. Entretanto, este
crescimento econômico teria limites bem definidos: o abastecimento de alimentos não era
suficiente para suprir o excedente populacional que surgiu na região durante o século XVI,
fruto da sedentarização de povos nômades (Ibid., pp. 373-375). Além disto, o aumento dos
gastos com exército para a conquista e controle das províncias supracitadas foi subsidiado
pelas populações rurais339 otomanas até o ponto de se tornar insustentável, forçando a
Porta a abandonar o sistema timar340 (PAMUK, 2001, p. 83).
Tertio, havia uma resistência do sultanato à industrialização e urbanização. As
cidades do Império Otomano não possuíam autonomia e sequer existiam juridicamente, o
que não permitia o desenvolvimento de uma burguesia autóctone na região. Eram os
gregos, judeus e armênios quem faziam as vezes de burguesia comercial, executando o
movimento de entrada e saída de mercadorias e capital. Aos turcos eram destinadas as
pequenas atividades citadinas de artesanato e lojistas (ANDERSON, 1989, p. 376).
Segundo dados do relatório do Comitê Americano, instaurado para averiguar os
morticínios no Império Turco-otomano em 1915, os armênios dominavam 90% do
comércio no interior do Império, no começo do século XX (TOYNBEE, 2003, p. 111) 341.
Façamos aqui um destaque a este elemento que é o armênio burguês, pois
entendemos tal configuração endógena das etnias minoritárias e suas atribuições na
339 Segundo Pamuk, de 30 a 40% dos gastos militares oriundos deste processo foram cobertos pelas áreas
rurais do Império (2001, p. 83).
340 Taxas agrícolas para manter a cavalaria otomana em tempos de guerra (Idem).
341 Tal estatística é significativa, embora Arnold J. Toynbee não traga uma explicação pormenorizada acerca
da coleta deste dado. Portanto, citamo-la aqui com esta ressalva. Mas de fato, a vocação armênia para o
comércio estava espalhada pelo mundo. Astourian cita relatos de viajantes alemães para ilustrar tal
caracterização: “But why, then, are the Armenians so hated? The main reason is the commercial talent of the
Armenian race. The Armenian are born merchants. Their skills and craftiness in all trades are superior”
(ASTOURIAN, 2004, p. 9).
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economia otomana como sintomática do fenômeno genocida que aconteceria séculos mais
tarde.
A perpetuação deste status quo de uma burguesia comercial armênio-cristã, ainda
que incipiente, coexistindo com uma massa de turco-muçulmanos relegados a atividades
secundárias na sociedade e economia do Império, a longo prazo, criou uma radicalização
étnico-nacionalista – análoga à posição judaica na Europa ocidental – otimizada com a
independência dos Bálcãs durante o século XIX. Arnold J. Toynbee frisa incessantemente
em seu livro, este aspecto burguês do armênio como gerador de sentimentos de ódio e
inveja entre a população turca (Ibid., pp. 27; 31; 34; 38-39; 69; 109 e 111). Roberto Grün
indica que os armênios foram conduzidos a “nichos de especialização funcionais no
Império”, tendo em vista a sua posição minoritária e subalterna (GRÜN, 1992, p. 15).
Citando R. Mirak, o autor encaminha a argumentação:
Nesta sociedade muçulmana turca, alguns armênios assumiram o
papel de alguma forma parecido com o que os judeus ocupavam na
Europa predominantemente cristã: eles transformaram-se em
banqueiros, artesãos habilidosos, burocratas e homens de negócio,
alguns mesmo chegando ao papel de conselheiros dos sultões
(Idem).
Além destes, o embaixador dos EUA no Império Turco-Otomano Henry
Morgenthau na época do Genocídio também destaca o ímpeto burguês de gregos e,
principalmente, armênios – mais civilizados e industriais que os turcos –, força motriz do
Império:
What is definitely known about the Armenians, however, is that for
ages they have constituted the most civilized and most industrious
race in the eastern section of the Ottoman Empire. (…) They are
[Greeks and Armenians] so superior to the Turkys intellectually
and morally that much of the business and industry had passed into
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their hands. With the Greeks, the Armenians constitute the
economic strength of the empire (MORGENTHAU, 1918, p. 166).
Entretanto, segundo Stephan Astourian (2004, p. 9), cerca de 70% dos armênios
que viviam no Império Turco-Otomano eram camponeses, bem distantes dos capitais
oriundos do comércio de longa distância342.
Esta imagem clássica dos armênios como industriais e mercadores par excellence é
tributária do lócus que estes ocupavam principalmente em Constantinopla – capital do
Império Turco-Otomano – onde de fato eles operavam nestes nichos sócio-profissonais
(BALAKIAN, 2003, p. 212). Assim como no Caso Judeu durante o III Reich, uma minoria
de armênios burgueses – comerciantes ou banqueiros – definiu o status de toda a etnia.
Dadrian (2004, p. 36) cita em um dos seus trabalhos uma comparação de um oficial nazista
do alto escalão hitlerista que chama os armênios de “judeus do oriente”, por serem ambos
exímios negociantes.
Todavia, a caracterização dos armênios como componentes de uma burguesia não
era apenas uma definição feita pelos ocidentais ou pelos próprios armênios. Em cidades
comerciais do Império – como Adana e Mersin –, os turcos rotulavam os armênios como
comerciantes e mercadores, ainda que estes últimos fossem majoritariamente camponeses
nestas localidades (BALAKIAN, 2003, p. 148). Durante a Guerra dos Bálcãs, nos
primeiros anos da década de 1910, houve um boicote as lojas e estabelecimentos de gregos
e armênios, tidos como causadores do mal que assolava o Império (Ibid., p. 165). Ou seja,
interessava aos turcos homogeneizar e demonizar as vítimas, rotulando-os e definindo-os
como alvos. O estilo de vida dos armênios efetivamente membros da burguesia de Adana,
342
Vahakn Dadrian (2004, p. 18) ratifica essa estatística: “Nevertheless, most of the Armenian and Jewish
populations were neither affluent nor particularly prosperous. For instance, seventy to eighty percent of the
Armenians were apolitical peasants engaged in agricultural work in their ancestral territories”.
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por exemplo, era considerado provocativo, uma vez que estes nunca se furtaram de
continuar a professar sua cultura, fé e nacionalismo (Ibid., p. 148).
Voltando à explanação inicial: Com o fim da expansão das fronteiras otomanas
rumo à Europa, no século XVII, a Porta perdeu força (ANDERSON, 1989, p. 377). Assim
como aconteceu com Roma, no período da pax romana no século I a. C., o Império TurcoOtomano viu-se frente a um dilema: sem meios de fazer frente às tropas europeias que
reconquistavam as possessões turcas no leste do Velho Continente, os otomanos também
não poderiam manter as suas instituições sem o botim das conquistas. Segundo Anderson
(Ibid., p. 378), as terras conquistadas e as riquezas confiscadas pelos exércitos da Porta
eram essenciais para manter a sociedade de privilégios do Império. Como não havia a
propriedade privada de terras, a concessão do uso destas, bem como de cargos
administrativos, eram as principais distinções aristocráticas turco-otomanas. Destarte,
torna-se compreensível o efeito devastador que o estancamento das fronteiras e da
influência otomana teve sobre a sociedade.
Ademais, na esfera econômica, Şevket Pamuk chama a atenção para a grande onda
inflacionária que tomou conta do Império. Segundo o autor turco, entre 1469 e 1914, os
preços de produtos cotidianos e essenciais – principalmente gêneros alimentícios – subiram
cerca de 300 vezes, em média 1,3% ao ano (PAMUK, 2001, p. 73; 2004, p. 454). A partir
de finais do século XV, o dinheiro passou a ser usado não só no comércio exterior, mas
também em transações urbanas e rurais dentro das fronteiras otomanas, de forma a tornar a
alta dos preços sensíveis a vários setores da sociedade otomana (PAMUK, 2001, p. 82;
2004, p. 461).
No século XIX o Império Turco-Otomano assistiu ao seu declínio. O equilíbrio de
poder das Potências, mediado pela chamada Santa Aliança, gerava uma orquestração pela
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paz na primeira década do século XIX343. A evolução do capital na Europa não poderia
tolerar a guerra, que freava a expansão deste (POLANYI, 2000, pp.17-21). Com isso, as
fronteiras se tornaram estáticas e as possessões otomanas nos Bálcãs mostraram graves
rachaduras. A paralisia administrativa da Porta no final do século XVIII permitiu o
crescimento dos poderes agrários locais, criando um processo não consumado de
“feudalização” na Anatólia e de explosões nacionalistas na península balcânica. As
tentativas de reformas liberais por volta do ano de 1820, patrocinadas pelo ocidente, foram
fadadas ao fracasso (ANDERSON, 1989, pp. 387-388).
Outro Império, o Russo, emergia como protagonista no teatro das nações mundiais.
Foi justamente no nicho de poder deixado pelos otomanos, desde o século XVII, em
regiões balcânicas, onde os russos se instalaram e trouxeram para perto de si a aristocracia
autóctone, criando uma zona de influência no antigo centro nevrálgico da Porta344 (Ibid., p.
383). A disputa entre as duas forças se tornou belicosa em 1877, não obstante o esforço
alemão para evitar o conflito. Uma vez instalado, a Grã-Bretanha e o Império Alemão
ficaram ao lado dos turcos, contra o Império Russo, como forma de manter a todo custo o
equilíbrio de poder que se encontrava sob ameaça. Entretanto, no Congresso de Berlim,
firmado entre as partes após o término do litígio, as possessões otomanas na Europa que
anos antes eram vistas como partes indissociáveis da Porta, agora também em nome da
manutenção da estabilidade de forças, se encontravam fragmentadas (POLANYI, 2000, pp.
22-23). Para agravar a complexa situação da região, o Império Habsburgo que há muito
havia se lançado em uma campanha expansionista sobre os Bálcãs, viu-se dilacerado em
1890 pelas várias etnias que compõem a região. A derrocada otomana acirrou os ânimos e
343 “Foi uma era de paz sem paralelo no mundo ocidental, que gerou uma era de guerras mundiais sem
paralelo” (HOBSBAWM, 2003, p. 24).
344 Eric Hobsbawm (Ibid., p. 393) ressalta a importância que teve o fator religioso no apoio do Império
Russo, cristão, aos também cristãos balcânicos, para a fragmentação da região. O autor inglês destaca ainda a
influência da Áustria e da Hungria na região, trazendo para as suas esferas de influência vários países da
região, agora autônomos (Ibid., p. 432).
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alterou ainda mais o fiel da balança naquele canto de mundo que seria o estopim do barril
de pólvora na Grande Guerra, em 1914 (HOBSBAWM, 2003, pp. 445-446).
Para concluir
De protagonista no teatro das nações mundiais à marionete dos interesses das
Potências europeias. Eis a trajetória otomana até a segunda metade do século XIX. Porém,
essa nação em decadência, cujo “feudalismo não presidiu à formação (...); o absolutismo
não participou de seu declínio” (ANDERSON, 1989, p. 390) ainda daria lampejos para
provar que estava viva. Os próprios conflitos com o Império Russo são exemplos disto. E é
neste contexto que surge a figura do Sultão Abdul-Hamid II, em 1878, como o seu
“despotismo pessoal frágil, porém brutal”, repressor radical das nacionalidades e entusiasta
do centralismo otomano (Idem).
É neste contexto, enfim, que devemos situar o Genocídio Armênio: um ato
sistematicamente pensado pelas autoridades otomanas para salvar o Império de sua
derrocada, encoberto pela Grande Guerra que assolava o mundo. 1914 e a entrada na
Guerra representam somente a ponta do iceberg da crise cujo governo turco estava
instalado (HOBSBAWM, 2003, p. 384). Destarte, 1915 foi o espasmo imperial que
buscaria reanimar o cadáver otomano não-sepultado, mesmo que fosse à custa de 1,5
milhão de armênios.
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Identidade Nacional e Questão do Negro em Oliveira Vianna
Iara Andrade*
RESUMO: O presente artigo examina algumas propostas para a construção da identidade
nacional, desenvolvidas pelo intelectual Oliveira Vianna. Os livros analisados neste
trabalho foram “Raça e Assimilação” e a “Evolução do Povo Brasileiro”, nos quais,
Vianna desenvolve a idéia de “raça” como fator de “atraso” ou “prosperidade nacional”.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Oliveira Vianna; Identidade nacional.
ABSTRACT: This article examines some proposals for the national identity building,
developed by the intellectual Oliveira Vianna. The books examined were “Race and
Assimilatation” and the “Evolution The Brazilian People”, in which Oliveira Vianna
develops the idea of “race” as a factor of “delay” or “national prosperity”.
KEYWORDS: Identity; Oliveira Vianna; National identity.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objeto de estudo os discursos de Oliveira Vianna, no
qual se busca enfatizar suas propostas para a formação da identidade nacional. Em meio a
tantos mitos, discursos e teorias que tentaram construir a identidade da nação, Oliveira
Vianna desenvolve sua teoria sobre a “diferenciação das raças” alegando que “[...] uma
*
Mestranda em História – USS/Vassouras
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nação não pode ser indiferente nem a qualidade, nem à quantidade de elementos raciais
que entrem na sua composição”345.
Tentar impor coesão a uma sociedade tão heterogênea como a brasileira, buscando
configurar a identidade nacional, era impossível. Porém com esse intuito dispuseram-se
homens como Silvio Romero, Nina Rodrigues, e Euclides Cunha, entre outros.
A construção da identidade nacional, tão almejada pela Geração de 1870 346, passou
a ser vista como algo a ser atingido senão no presente, pelo menos no futuro. Isso porque
em pleno século XIX e até mesmo para alguns autores do século XX, entre eles, Oliveira
Vianna, o Brasil era composto por “raças” consideradas inferiores, e futuramente com a
miscigenação, a sociedade se branquearia. Com o objetivo de dar uma visão mais
científica, validando tais suposições, muitos intelectuais desenvolveram teorias sobre a
identidade nacional, tendo como um de seus fatores determinantes a “raça”.
A discussão a que se propõe este artigo está embasada na História Social, inserida
na linha de pesquisa de História Política. Tendo como objeto de estudo as obras de Oliveira
Vianna, o que se pretende é analisar as relações de poder no âmbito ideológico pela criação
de teorias de diferenciação racial, que justificariam a formação da identidade nacional, e
estigmatizaria a figura do negro pela concepção de inferioridade racial.
Discutindo-se a Identidade Nacional
Identidade é um substantivo polissêmico e ainda surgem na atualidade diversas
indagações sobre o que vem a ser identidade nacional e os interesses que levaram à sua
criação.
345
VIANNA, Oliveira. Raça e assimilação. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1959. p.39.
A Geração de 1870 preocupou-se, fundamentalmente, com a formulação de projetos capazes de tornar o
Brasil um país moderno, possuia vários representantes entre eles: Nina Rodrigues, Euclides Cunha e Sílvio
Romero.
346
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Apesar da dificuldade em se conceituar o termo Identidade Nacional, Renato Ortiz,
desenvolve uma definição que apresenta certa clareza quanto ao significado. Ortiz afirma
que “Toda identidade se define em relação a algo que lhe é exterior, ela é uma diferença
[...] e possui uma dimensão que é interna, [...] é necessário mostrar em que nos
identificamos”347.
Muitas foram as propostas que buscaram homogeneizar as diferenças buscando
formar uma proposta de identidade para nação, alguns países advogaram que a língua seria
este fator de identificação, outros a etnia, outros o território e em alguns países até mesmo
o caráter da população. “[...] Sérgio Buarque de Holanda buscou as raízes do brasileiro na
cordialidade, Paulo Parado na tristeza, Cassiano Ricardo na bondade; outros escritores
procuraram encontrar a brasilidade em eventos sociais como o carnaval ou ainda na
índole malandra de ser nacional”348.
Este é um dos problemas de se conceituar Identidade Nacional de modo fechado, a
identidade nacional é uma comunidade imaginada, e por isso dinâmica, se modificando no
momento e no espaço. Se no Brasil do final do século XIX uma das propostas de
identidade nacional estava baseada na “raça” e no meio, na década de 20 do século XX,
irão surgir outras propostas que entrarão em conflito com as concepções formuladas
anteriormente.
Retornando, porém às propostas de identidade nacional desenvolvidas no final do
século XIX, visto que serão elas que influenciarão Oliveira Vianna, e aplicando o conceito
de Renato Ortiz baseado nas diferenças e semelhanças, tentaremos identificar quais foram
os fatores escolhidos pela Geração de 1870 como determinantes para a formação de uma
consciência nacional. Segundo Renato Ortiz, a Geração de 1870 identificou dois fatores
que diferenciaria os brasileiros dos demais povos: a “raça” e o meio, e tais fatores eram
347
348
ORTIZ, op.cit. p.8-9.
ORTIZ, op.cit. p.137.
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visíveis no Brasil. Porém, se as diferenças eram claras, as semelhanças não. É neste
momento que surge um problema fundamental para o século XIX: Como tratar a
identidade nacional diante da disparidade racial? A mestiçagem foi vista como solução
para este problema.
Oliveira Vianna, posteriormente, também desenvolverá seus estudos sobre a
mestiçagem brasileira. Dissertando sobre o termo melting-pot (interfusão das “raças”)
elabora idéias sobre a identidade e desenvolvimento nacional.
O termo Identidade Nacional apesar de gerar várias divergências entre estudiosos,
oferece um caminho para entender aquilo que Ortiz afirmou estar em primeiro plano: os
agentes que constroem as interpretações sobre a realidade. São eles; os intelectuais, que
desempenharão o papel de mediadores simbólicos entre o nacional e o popular. Alguns
como Oliveira Vianna terão relação direta com o Estado, defendendo sua atuação de forma
autoritária, outros como Gilberto Freyre um relação indireta exprimindo “ [...] a nostalgia
de um Estado que se esgotou historicamente”.349
“[...] a procura de uma ‘identidade brasileira’ ou de uma ‘memória
brasileira’ que seja em sua essência verdadeira é na realidade um
falso problema. A questão que se coloca não é de se saber se a
identidade ou memória nacional apreendem ou não os ‘verdadeiros’
valores brasileiros. A pergunta fundamental seria: quem é o artífice
desta identidade e desta memória que se querem nacionais? A que
grupos sociais eles se vinculam e a que interesses elas servem?350
O contexto histórico 1920 a 1932 – O intelectual Oliveira Vianna
Foi durante o final do século XIX e a primeira metade do século XX que alguns
estudiosos brasileiros elaboraram várias teorias nacionalistas com intuito de criar uma
349
350
ORTIZ, op. cit, p. 139.
ORTIZ, op. cit, p. 139.
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identidade para a nação, inventaram-se então, mitos unificadores, romantizaram a história
brasileira e criaram-se teorias científicas. Uma dessas teorias que muito interessou
Oliveira Vianna retoma a idéia do século XIX de identificar a “raça” como fator
degenerativo nacional, o que contribuiu para formação de um amparo ideológico que
justificou a dominação política sobre certa parte da população brasileira que foi
considerada inferior.
O recorte de tempo, mais específico que vai de 1920 a 1932 se deve ao fato de ser
nesse período, que Oliveira Vianna escreveu várias obras sobre o Brasil, focando a questão
racial, entre elas podemos citar Evolução do Povo Brasileiro (1923), e Raça e Assimilação
(1932), tais estudos continham discursos sobre a diferenciação das “raças”, onde Vianna
identificava a “raça” como fator de atraso nacional e defendia a eugenia.
A década de 20 fora o período dos manifestos, segundo Bresciani, [...] se vivia o
momento propicio para propor e executar modificações radicais na sociedade351, os
conflitos ideológicos, expressos nos projetos políticos até então se intensificavam.
Segundo Chartier “As lutas de representações têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta
impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio” 352.
Os projetos formulados por Vianna entravam em conflito com novas concepções
que surgiam na década de 20 e 30. Bresciani analisando a proposta ideológica de Oliveira
Vianna sobre a identidade nacional afirma:
[...] (Oliveira Vianna) em seu manifesto político de 1922, O
idealismo na evolução política do Império e da República,
desenvolve uma concepção voluntarista de integração nacional na
proposta de ser mediante conhecimento do povo, sua estrutura, sua
351
BRESCIANI, op.cit. p. 155.
CHARTIER, Roger, A História Cultural entre Práticas e Representações .2ed. Rio de Janeiro: Difel,
2002. p.17.
352
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economia intima e sua psique que se projetaria o modelo político
adequado a forjar essa unidade pela ação centralizada no estado
autoritário353.
Oliveira Vianna tinha uma proposta para o desenvolvimento nacional e político
baseada nos estudos das “raças” e na ação do Estado forte sobre esse povo mestiço,
população esta, que segundo Vianna, seria incapaz de se articular se não houvesse um
grupo de intelectuais os governando, sobre isso Oliveira Vianna afirma: A realização de
um grande ideal nunca é obra coletiva da massa, mas sim de uma elite, de um grupo, de
uma classe, que com ele se identifica, que por ele peleja354.
Tal concepção de cunho autoritário já era criticada, na década de 20 por homens
como Sérgio Buarque de Holanda; e Gilberto Freyre posteriormente já apresentava outras
propostas. Segundo Bresciani [...] há também nesses anos de 1920 uma disputa declarada
pela primazia de determinadas partes do Brasil no que diz respeito à força formadora da
“identidade nacional”355. Gilberto Freyre, no Manifesto regionalista de 1926, reivindicava
esta posição ao Nordeste, se opondo à Vianna que reivindicava a posição aos habitantes do
centro-sul, segundo Bresciani a reivindicação pela hegemonia Nacional, através do padrão
cultural, expressava também um conteúdo político que asseguraria os interesses
administrativos de cada região.
Outro conflito entre tais autores se deve ao fato de Freyre postular a integração
nacional mantendo a diferença regional. Já Vianna apesar de reconhecer a diversidade
regional, propunha apagar as diferenças para se atingir a unidade, que se daria através da
mestiçagem com “raças” pré-selecionadas. Situação esta que ocorria no Sudeste com a
imigração e que era visto por Freyre como mau cosmopolitismo e falso modernismo.
353
BRESCIANI, op.cit. p.45.
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: - entre o povo e a nação. São Paulo: Ática,
1990. p. 29
355
BRESCIANI, op.cit. p.45.
354
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Devido a sua atuação política e seus estudos na área de ciência social, Oliveira
Vianna foi muito criticado. Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, rotulou os estudos
de Vianna como “um retrocesso do ponto de vista acadêmico”, e não hesita em relacionar
as idéias do consultor no Ministério do trabalho (cargo assumido por Vianna, durante o
governo de Vargas) com a “doutrinação dos fascismos”356.
Segundo Bresciani, Oliveira Vianna é mantido no rol dos malditos pelo mundo
acadêmico sendo consequentemente rejeitado pelos historiadores brasileiros.
Muito lido nas décadas de 1920 e 1930, Oliveira Vianna sofreu
oposição cerrada de juristas liberais, como Waldemar Ferreira,
ainda na década de 1930 e caiu em desgraça nos anos de 1940, para
não mais se recuperar das críticas de intelectuais importantes, como
o historiador Sérgio Buarque de Holanda, e já em meados dos anos
de 1960, de Antonio Candido357.
Apesar de não concordar com várias de suas afirmações – a teoria da diferenciação
das “raças” é uma delas -, descartar toda a obra de Vianna, seria lançar fora importantes e
inteligentes análises da direita conservadora que seria de grande valia ser questionada.
Embora seja bastante combatido, Oliveira Vianna também contribui com vários estudos
que posteriormente foram reconhecidos por alguns historiadores entre eles Caio Prado
Júnior.
Sua proposta de revisar a história do Brasil, na certeza de que os
problemas do presente encontravam-se em vícios da origem, foi
compartilhada por vários intelectuais seus contemporâneos, autores
que como ele, se propuseram a reapresentar esse percurso de
quatrocentos anos. Constituem trabalhos de interpretação
histórica[...] Caio Prado Júnior [...] reconhece em Oliveira Vianna,
a despeito das “por vezes adulterações grosseiras dos fatos” ter
sido, o “primeiro, e o único até agora (1933), a tentar uma análise
356
357
BRESCIANI, op.cit. p.27.
BRESCIANI, op.cit. p.21.
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sistemática e séria de nossa constituição econômica e social do
passado” 358
Os discursos de Oliveira Vianna
Vianna buscou explicar a evolução do povo brasileiro, tendo como parâmetros o
determinismo biológico e mesológico. A estrutura social de um povo seria influenciada
pela geografia, pelo clima e pelos grupos étnicos que nesse meio passaram a viver e se
miscigenar. A influência recíproca entre meio e “raça” gerariam as características do povo
brasileiro e moldariam a sociedade.
Alegava que as “raças” humanas se encontrariam em estágios diferentes na escala
evolutiva, deduziu que as “raças” mais evoluídas biologicamente também seriam as mais
evoluídas em relação à cultura.
Em seus estudos desenvolve a idéia da superioridade intelectual ariana. Segundo
Vianna:
[...] o negro puro revela na sua generalidade, uma menor
fecundidade do que as “raças” arianas ou semitas, com que ele tem
estado em contato. Para os tipos de classe F de Galton, ou para os
supernormais, como diz a tecnologia psicométrica contemporânea,
o negro, com efeito, não me parece poder competir com as “raças”
brancas ou amarelas359.
Segundo o historiador, a “raça” de um indivíduo poderia influir dentro de um
coeficiente de probabilidades muito alto sobre as suas predisposições patológicas,
temperamento e inteligência. Muller então descreve o temperamento do negro.
358
359
Apud BRESCIANI, op.cit. p.26-27.
VIANNA, Oliveira. Raça e assimilação. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1959. p.195.
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[...] o Afer em seus vários tipos tem uma predisposição particular
para gerar temperamentos ciclotímicos. [...], o negro em todas as
cousas é sensitivo, em que a fantasia o domina. [...] Da alegria
mais intensa e mais insensata ele passa ao mais amargo dos
desesperos360.
Indo um pouco mais longe, Vianna conclui que o tipo constitucional de um
indivíduo não só determina seu temperamento, mas também o tipo de inteligência, ou seja,
a “raça” seria um fator que influenciaria numa probabilidade maior ou menor de indivíduos
com níveis de inteligência superiores.
Compreende-se agora porque uma nação não pode ser indiferente
nem à qualidade, nem à quantidade de elementos raciais que
entrem na sua composição. Trazendo para a formação do plasma
racial os seus tipos de constituição mais freqüentes, estes
elementos raciais determinam os tipos de temperamento e de
inteligência que devem preponderar na massa social361.
Observa-se que para o intelectual, uma seleção dos tipos raciais se faria necessário
no Brasil, visto que, o temperamento e a inteligência do grupo humano influenciariam no
próprio futuro da nação. Um grupo de indivíduos com temperamento indeciso levaria o
país ao clima de instabilidade, ou pelo contrário, um grupo de indivíduos impulsivos
levaria ao aumento da criminalidade e à intensificação dos conflitos sociais. Pior ainda, a
seu ver, seria uma nação formada por elementos negros, fator degenerador, de fisionomia
repulsiva, inteligência inferior e caráter duvidável. Para Vianna, haveria um encadeamento
de problemas ou benefícios que teriam como principal causa a “raça”. Segundo ele, a
“raça” influiria no tipo de constituição do indivíduo, esse determinaria o tipo de
inteligência e temperamentos. Por conseguinte, estes condicionariam as manifestações
culturais e sociais.
360
361
Apud VIANNA, op.cit. p.33-34.
VIANNA, op.cit. p.39.
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Se a “raça” influi diretamente no destino da nação, a distribuição regional deveria
ser bem planejada. Conhecendo as três “raças” e a sua distribuição pelo território nacional,
saberíamos a especialização funcional na economia de cada região: em regiões onde
preponderasse a “raça” branca, ali, encontraríamos os cargos relacionados ao poder
voltados para o latifúndio e a vida intelectual; dos locais onde preponderassem índios e
negros encontraríamos os trabalhadores braçais, que deveriam ser tutelados.
Segundo o historiador, o estudo da diferenciação racial era importante para o
processo de eugenia; - termo criado por Francis Gaton - que a definiu como o estudo dos
agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das
futuras gerações seja física ou mentalmente. Vianna critica a teoria das três “raças”, já
pensando na problemática da eugenia, alegava para tanto, que era um erro dividir a
população brasileira em brancos, negros, cablocos e mulatos. Estar de acordo com essa
afirmação seria negar a existência de vários tipos antropológicos europeus: nórdico, celta,
eslavônico... Segundo o intelectual, era sabido que, grupos formados por etnia nórdica não
se adaptavam ao clima tropical e através de um recenseamento feito em 1921, na África
Inglesa, os descendentes se revelaram fracassados, degenerados, ou seja, os descendentes
provenientes da mistura do negro africano com o branco europeu causaram a diminuição
do número de brancos puros, e por isso o tipo antropológico nórdico não era um dos
melhores para se misturar ao negro, ao contrário do grupo mediterrâneo, por exemplo, que
se adaptam ao clima tropical rapidamente e seus descendentes não apresentam nenhum
sinal sensível ou positivo de degeneração, nem no físico, nem na moral.
Para Vianna o estudo das “raças” seria de extrema importância, visto que verificar
quais foram os tipos de mestiços que se adaptariam melhor ao meio evitariam problemas
futuros de não assimilação (melting-pot baixo) ou de cruzamentos que poderiam prejudicar
a formação nacional (elemento negro). O mulato, por exemplo, era fruto de cruzamentos
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infelizes, comparando-se a um grupo grande, muitos vinham a falecer, seja pelo fato de
serem dotados de poucas qualidades, ou porque não agüentavam a luta pela vida, a
competição sexual, a emigração, que eliminariam as espécies inferiores; em resumo seriam
vencidos pela seleção natural e social. Vianna se preocupou muito com a mestiçagem, pois,
a etnia que contribuísse com maior parcela para o melting-pot, consequentemente imporia
seu tipo morfológico, psicológico e cultural sobre os demais, influenciado na formação
política e social do país.
De acordo com Clóvis Moura, a miscigenação não era estigmatizada por Vianna,
porém o melting-pot preconizado por aquele, deveria ser muito bem estruturado, visto que
a população deveria se embranquecer. “O processo civilizatório, por seu turno, era um
atributo da “raça” branca que mesmo quando se misturava com os negros e outras
“raças” inferiores arianizava-os” 362.
Porém o embranquecimento não poderia se dar com qualquer “raça” branca, e
muito menos com qualquer “raça” negra, os negros eugênicos eram os melhores para se
misturarem aos brancos e se embranquecerem, não é necessário dizer que os negros
eugênicos eram aqueles que possuíam feições de indivíduos brancos e eram mais
facilmente submetidos.
O conceito de “raça” e a distinção entre as etnias foram usados por muitos
intelectuais entre eles Oliveira Vianna como noção ideológica, para construir uma proposta
de identidade nacional, tendo como fator determinante a questão racial; atualmente sabe-se
que afirmar a existência de uma “raça” pura seria tornar ilusória qualquer definição
fundada em dados étnicos e genéticos estáveis.
CONCLUSÃO
362
MOURA, op.cit. p.198.
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A discussão em questão buscou desenvolver uma breve análise das obras de
Oliveira Vianna, enfatizando a sua função como intelectual que identificou no fator racial,
mecanismos que construiriam a identidade da nação. Propõe assim, a idéia da interfusão
racial, ou seja, a mestiçagem com “raças” pré-selecionadas.
Se a miscigenação era criticada pelas teorias raciais no estrangeiro, no Brasil
passou a ser identificada como solução para os problemas nacionais. De acordo com
Vianna, éramos um povo cuja diversidade étnica se traduzia em malefícios para nação devido à concepção de inferioridade racial -, mas através da mestiçagem com “raças”
selecionadas, a população se branquearia e se construiria uma nação forte.
Segundo, Oliveira Vianna a construção de uma nação próspera teria como causa
dois fatores determinantes. O primeiro seria a “raça de seu povo”, visto que era a “raça”
que iria influenciar no intelecto, no temperamento e consequentemente nas manifestações
culturais e sociais. Por isso uma nação não poderia ser insensível à qualidade de elementos
raciais que entrariam em sua composição. O segundo fator seria um Estado forte, que
pelejasse pela massa populacional, que segundo Vianna, seria incapaz de mobilizar-se. O
povo não tinha condições sociais e nem preparo político para desfrutar das idéias liberais
importadas de povos mais à frente na escala da civilização, era o Estado que deveria se
responsabilizar por conduzir a nação, sem interferências de homens de moralidade
duvidosa e de nível intelectual baixo que prejudicariam as tomadas de decisões sobre o
futuro do país.
Apesar das críticas, Oliveira Vianna, foi um historiador importantíssimo para o
estudo do Brasil, considerado até então, um de seus intérpretes, descartar toda sua obra,
seria invalidar importantes contribuições trazidas para o meio acadêmico, porém é sabido
também que algumas de suas teorias, entre elas a diferenciação das “raças” serviu de
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amparo ideológico, visto que ao se forjar uma proposta de Identidade Nacional embasada
em fatores étnicos, estigmatizou-se o negro e o mulato, pela concepção de inferioridade
racial.
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O Caso De Pedro Índio:
Inquisição e gentilidade em Portugal Quinhentista
Jorge Henrique Cardoso Leão363
RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar o caso do réu Pedro Índio, nascido em
Ceilão e julgado, em 1558, no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, pelo
crime de gentilidade. O mesmo mostra-se interessante por fornecer informações que nos
ajudam a compreender o comportamento da inquisição portuguesa face às práticas de
gentilidades praticadas no próprio reino.
PALAVRAS-CHAVE: Inquisição em Portugal – Comunidade cristã no Oriente – Práticas
de gentilidade.
ABSTRACT: This article aims to analyze the case of Pedro Índio, born in Ceilão and
judged in 1558 by th Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, for the delict of
gentility. This case is interesting to understand the Portuguese Inquisition behavior against
the gentility practiced in their own kingdom.
KEYWORDS: Inquisition in Portugal - the Christian community in the East - Practices of
gentility.
Este artigo tem por objetivo analisar o caso do réu Pedro Índio, nascido em Ceilão e
julgado, em 1558, no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, pelo crime de
gentilidade. O mesmo mostra-se interessante por fornecer informações que nos ajudam a
363
Mestrando em História Social pela UERJ, pós-graduado em História Militar Brasileira pela UNIRIO e
graduado em História pela UGF. Bolsista de pesquisa pela FAPERJ e vinculado como estudante ao Núcleo
de Estudos Inquisitoriais da UERJ e a Companhia das Índias da UFF. Áreas de interesse e pesquisa como:
História do Império Português; Jesuítas e Inquisição no Oriente; Relações Luso-Nipônicas nos Séculos XVIXVII. Contato: [email protected].
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compreender o comportamento da inquisição portuguesa face às práticas de gentilidades
praticadas no próprio reino.
Em primeiro lugar, podemos enxergar a relação do réu com o Santo Ofício através
dos pressupostos dos ritos da instituição (BOURDIEU, Pierre. 1996). É certo dizer que as
instituições valem-se dos rituais de passagem para impor limites e legitimar toda ação do
poder perante o indivíduo e a sociedade. Em outras palavras, a catequese e o batismo
serviam de métodos que consagravam o indivíduo a entrar na comunidade Católica. Neste
sentido podemos observar o papel do Santo Ofício como instituição responsável por
inquirir também sobre os desvios cometidos por aqueles instituídos na comunidade de
Cristo. Do outro lado, devemos compreender o comportamento religioso do réu como fruto
do processo de mestiçagem cultural característico das sociedades ibéricas, durante a época
colonial (GRUZINSKI, Serge. 2001)364.
Delineado nosso objeto de estudo, fica claro que não podemos compreender o caso
de Pedro Índio isoladamente, mas sim, dentro do próprio contexto do Santo Ofício
português. Durante os séculos XII ao XIII, na Europa, a Igreja Católica começava a
praticar os primeiros atos de inquirição sobre as comunidades heréticas e mais tarde o IV
Concílio Ecumênico de Latrão, em 1215, estabeleceria de forma embrionária as bases de
um tribunal religioso. Durante os finais da Época Medieval, a Igreja havia dedicado maior
parte de seus esforços em conter o avanço das heresias no Velho Continente, assim como
deva início as práticas inquisitoriais referentes à aplicação de penas espirituais e seculares
(TAVARES, M. J. P. Ferro. 1987).
Na Península Ibérica, nos finais do século XV a presença da heresia judaizante
parece ter dado a verdadeira tônica da intolerância religiosa, que levou o estabelecimento
do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição na Espanha (1478) e em Portugal (1536). Em
364
Serge Gruzinski caracteriza como hibridismo o resultado da mistura entre tradições distintas já existentes
desenvolvido a parir de uma mesma conjuntura histórica.
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termos de zelo pela unidade religiosa, a presença dos mouros fora combatida pelos ibéricos
desde os tempos da reconquista da península, entendendo-se para Norte da África e mais
tarde, com o advento da Expansão Ultramarina, para as regiões do Oriente português
(CORTESÃO, Jaime. 1993). As primeiras décadas do século XVI são marcadas pelo
acirramento da tensão entre o reino de Portugal e Castela. Nota-se que a Inquisição
espanhola estava em funcionamento desde 1478, pela bula Exigit Sincerae Devotionis
Affectus autorizada pelo Papa Sisto IV. Por esse motivo, os cristãos-novos, judeus, hereges
e mouros viram no reino português uma rota de fuga das perseguições castelhanas. A
ausência de um tribunal eclesiástico no reino português facilitava a vida clandestina dessa
massa de excluídos provenientes das regiões espanholas. No sentido de melhor colaborar
com a inquisição espanhola, Dom Manuel I recorre ao Papa Clemente VII o pedido da
criação de um Santo Ofício para Portugal. Contudo, somente mais tarde, por volta de 1536,
o monarca Dom João III consegue a autorização para a criação da inquisição portuguesa,
com sede na cidade de Évora. Um ano depois, juntamente com a corte portuguesa, o
Supremo Tribunal do Santo Oficio é transferido para a cidade de Lisboa
(BETHENCOURT, Francisco. 2000).
Recém criada, a Inquisição portuguesa procurou regulamentar e padronizar suas
normas de funcionamento. Com relação à normalização das relações hierárquicas do
tribunal, o historiador português Francisco Bethencourt afirma estas já haviam sido
estabelecidas pelas instruções de 1541 e pelo regimento de 1552, e juntamente com a
nomeação dos inquisidores institui-se o monitório, ou seja, uma espécie de manual, lido
nos autos-de-fé, que estimulava a denunciação pública daqueles que ousassem contra a
Santa Madre Igreja (TAVARES, M. J. P. Ferro. 1987: 194-199). Em termos de alçada do
tribunal, o monitório estendeu o campo de atuação da Inquisição portuguesa para “o
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judaísmo dos cristãos-novos, acrescentando o luteranismo, o islamismo, as proposições
heréticas e os sortilégios” (BETHENCOURT, Francisco. 2000: 25).
Em termos de organização institucional e da relação entre os tribunais, a inquisição
estabeleceu uma série de traços permanentes que solidificaram um sistema de comunicação
entre os tribunais do reino, com o tribunal de Goa, assim como dos comissários, visitadores
e dos familiares do Santo Ofício no Brasil, nas regiões africanas e no oriente
(BETHENCOURT, Francisco. 2000: 34-41). Em outras palavras, a grande quantidade de
correspondências produzidas pelos funcionários da Inquisição, assim como, a troca de
informações e cartas com as Ordens religiosas, garantiu ao Santo Ofício o estabelecimento
de um padrão funcional, quer seja ele no reino ou em suas colônias. A padronização de um
modelo de funcionamento estimulou o caráter ortodoxo com que seus encarregados
tratavam os delitos contra a fé. Por mais que a confissão e a abjuração pública pesassem na
sentença do réu, os inquisidores, assim como seus comissários, tinham agarradas as suas
mãos e em sua consciência, os Santos Evangelhos e os Regimentos do qual estavam sob
juramento.
A uniformização do processo, assim como das penas, do aparelho burocrático e de
sua produção documental, permitia que qualquer inquisidor soubesse como proceder diante
de uma situação, mesmo fora de sua jurisdição (BETHENCOURT, Francisco. 2000). A
partir deste ponto, podemos entender o caso de Pedro Índio como fruto dessa padronização
de sistemas. Assim como os funcionários régios, os inquisidores tinham a noção de que
neste império construído por vias marítimas as pessoas circulavam de um local para o
outro (RUSSELL-WOOD, A.J.R. 1997). E foi assim que o réu natural do Ceilão, batizado
em Goa, foi preso no reino pela Inquisição lisboeta.
O debate sobre o caso de Pedro Índio estimula a pensarmos como a sociedade
portuguesa, assim como suas instituições, encarava os indivíduos oriundos de suas
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províncias ultramarinas. Autores como Laura de Melo e Souza, Ronaldo Vainfas e Sônia
Aparecida Siqueira afirmam que o imaginário europeu sobre o mundo colonial adquiriu a
visão de um território fadado a dicotomia entre o paraíso e o inferno na Terra, assim como
seus habitantes e suas práticas culturais (SOUZA, Laura de Mello e. 1986; VAINFAS,
Ronaldo. 1989 & SIQUEIRA, Sônia. 1978). Na visão de autores como Jorge Flores,
Francisco Bethencourt e A.J.R. Russel-Wood a visão do mundo colonial, passando por
essa característica ambígua, tornar-se um campo social e cultural favorável ao processo de
adaptação (FLORES, Jorge Manuel. 1998;
BETHENCOURT, Francisco. 1998. v.1).
Assim, essa imagem do paraíso e do inferno, com o qual o mundo colonial se apresentava,
estimulou a cobiça tanto de leigos quanto de eclesiásticos no sentido de desvendar seus
mistérios, usufruir de suas riquezas e de passar por suas provações pessoais.
Serge Gruzinski enfatiza o processo de mestiçagem cultural criado a partir da
interação constante entre colônia e metrópole (GRUZINSKI, Serge. 2001: 42). Com base
nas vias da construção de uma sociedade misturada, podemos nos referir a Pedro Índio
como aquele indivíduo que é levado para o reino e mediante ao batismo e a convivência
com os valores e costumes cristãos da sociedade portuguesa, passa a ser entendido pelos
historiadores e antropólogos recentes como um indivíduo híbrido. Assim, estes indivíduos,
apesar de estarem alocados em posições sociais desprivilegiadas são capazes de transitar
livremente entre as duas realidades, falando mais de uma língua, participando das
mudanças no seu cotidiano e mesclando suas práticas religiosas (TODOROV, Tzvetan.
2003)365.
Estimulados pelos estudos de Serge Gruzinski, historiadores como José Eduardo
Franco e Célia Cristina Tavares têm se dedicado aos trabalhos acerca das tensões entre a
inquisição e a atividade missionária. Suas reflexões se baseiam na dicotomia das ações
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Cf. o caso da ameríndia convertida conhecida pelo nome de La Malinche, por Cortez e pelos outros
conquistadores espanhóis.
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eclesiásticas entre o princípio da flexibilidade, característico dos missionários e o da
ortodoxia, característico da inquisição (FRANCO, José Eduardo e TAVARES, Célia
Cristina. 2007). O conflito entre essas duas instâncias foi uma realidade vivenciada tanto
no reino português quanto nos seus territórios coloniais, e tornou-se mais latente após o
estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício de Goa, na Índia portuguesa, em 1560. Como
parte da estratégia da catequese no Oriente, a adaptação a realidade do outro, assim como a
compreensão do idioma e a tentativa de entendimento das práticas religiosas locais fizeram
com que, em parte, os missionários, sobretudo, os jesuítas fossem acusados pela inquisição
de contribuírem para os desvios de doutrina. Em contraposição a esta perspectiva, os
jesuítas alegavam a Igreja romana que essa era a única forma de se aproximar do outro
para levar os Santos Evangelhos (TAVARES, Célia Cristina. 2006).
Devemos ter em mente que o fluxo migratório no império português se dava em
duas instancias, tanto do reino para as colônias quanto vice-versa. Se de um lado os
portugueses se deslocaram para os territórios do Além-mar, não podemos deixar de dizer
que essa sociedade mercantil levou para o reino partes das ultramarinas sociedades,
consideradas exóticas. Neste âmbito destacamos os trabalhos de José Ramos Tinhorão e de
Daniela Buono Calainho. Apesar de ambos trabalharem com a presença do negro em
Portugal, eles abrem espaço para um leque de reflexão acerca da presença desses
indivíduos no reino português e os impactos sobre a sociedade lusitana (TINHORÃO, José
Ramos. 1988 & CALAINHO, Daniela Buono. 2008).
Uma série questões teóricas tiveram que ser esboçadas em parágrafos anteriores
para que possamos explorar mais a fundo o caso de Pedro Índio. Este mesmo gentio
nascido no Ceilão e batizado em Goa levado, entre seus 25 ou 30 anos, foi levado para
Portugal como cativo de um juiz do Cível de Lisboa conhecido pelo nome de Diogo Lopez.
No decorrer da leitura do processo, é visível que grande parte das denunciações feitas
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mostram que o réu “não era gentio, mas era mouro” (IANTT, 1558) e de que quando
bêbado dizia em retornar para sua terra. Contudo, no decorrer da inquirição feita pelos
inquisidores, Pedro Índio é acusado de práticas de gentilidade. Porém, quase todo tempo os
mesmos inquisidores confundem essas práticas como “fazer alguma cerimônia dos
mouros” (IANTT, 1558) e procuram saber se o réu “conversava com mouriscos ou com
mouros. Ele disse que não, mas que conversava com índios” (IANTT, 1558).
Para o historiador Ronaldo Vainfas, o conceito de idolatria poderia estar ligado às
práticas de resistência da população nativa – seja ela ameríndia, africana ou oriental –
onde o que se buscava era persistir ou renovar os antigos ritos e crenças, mesclando-os
com a luta social como forma de reconstruir a identidade do indivíduo nessa nova
realidade, que o mundo colonial representava (VAINFAS, Ronaldo. 1995: 31-37). Porém,
estas manifestações também chamadas de gentilidades, foram confundidas, em sua
maioria, como a materialização do Diabo e das forças do mal, por isso, deveriam ser
combatidas pela inquisição.
No mundo colonial português, ser mouro poderia complicar ainda mais a situação
de um indivíduo cujo almejasse a graça do perdão oferecida pela Santa inquisição. Por
isso, no decorrer dos autos do processo é visível a preocupação do réu de não se dizer
mouro, assim como da presença de uma série de contradições que dificultavam os
inquisidores em alocar Pedro Índio na categoria de gentio ou de muçulmano (IANTT,
1558). Em uma denuncia, a taverneira Maria Fernandes relata perante os inquisidores que
Pedro Índio não houvera de ter praticado “coisas de mouro” (IANTT, 1558) , mas disse ele
“não creres que Deus que morreu nesta paixão por nós” (IANTT, 1558). Contudo, Maria
Fernandes se refere ao comportamento de Pedro Índio como fruto de seu problema com
bebidas alcoólicas. No mesmo rol das culpas contra o dito réu, Maria Fernandes, por volta
de 13 de dezembro de 1558, afirma perante os inquisidores que Pedro Índio havia lhe
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confessado que “na sua terra não batizavam, senão em outra. Os quais e que quando
estavam como criança a batizar” (IANTT, 1558). Resta a partir daí a dúvida gerada entre
os inquisidores que podem ter levado os mesmos a confundirem este gentio do Ceilão, com
um mouro. Pedro Índio fora batizado em outra terra – na verdade em Goa – e saiu de lá
ainda criança, o que nos leva a concluir que neste meio tempo, para os inquisidores, Pedro
Índio pôde ter sido instruído primeiramente, ou não, na doutrina islâmica para depois ser
batizado em outra cidade.
O decorrer do processo torna-se complexo, pois à medida que os inquisidores o
confundem como mouro, são feitos a ele uma série de perguntas e indagações acerca das
testemunhas que soam mais característicos de um apóstata do que de um herege
propriamente dito. Observemos :
E o dito Pedro Índio se perguntado se viu por acreditar em algo da
Paixão de Cristo. [...] e ele disse que não viu aquela pelo seu olho.
[...] ouviu-se também uma moça chamada Beatriz Domingues [...]
perguntada pela Santa Inquisição de o dito índio era cristão ou se
ainda era mouro. Ela disse quando perguntada eu o dito índio é
cristão e disse seu nome cristão. [...] e foi perguntada se o dito
índio estavam sóbrio quando disse as ditas palavras ou estava
tomado de vinho ou alguma outra paixão ou se disse as ditas
palavras rindo ou invocado. Ela disse que por Deus o dito índio
estava com seu olho posto que algumas vezes bêbado [...] (IANTT,
1558).
A partir deste trecho é identificada a preocupação dos inquisidores em tirar das
confissões e do próprio réu, algumas contradições da doutrina cristã que colocassem em
xeque o acusado. Em outro campo de denuncias que pairam sobre Pedro Índio está a de
que grande parte de suas testemunhas depõem em juízo não terem visto, na maioria das
vezes o réu freqüentar as missas. Para época este falta poderia ser considerado um
agravante numa situação de envolvimento com a inquisição, tanto para cristãos-velhos
quanto para os conversos.
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Em tempos anteriores as culpas de dezembro de 1558, um documento de 20 de
maio de 1558, contendo uma série de perguntas feitas pelos inquisidores ao dito réu,
demonstra a preocupação em se saber se Pedro Índio era mouro, porém a realidade foi
reveladora, uma vez que na verdade, ele havia se revelado uma espécie de converso
relapso. Como segue abaixo:
se confessava cada ano, mas não tomava o Santo Sacramento pelo
seu senhor não querer dá-lo a um cativo. Ciente disso pôs falar da
Ave Maria e disse que acreditava em muitas partes dela, mas que
não sabe a oração. Perguntado sobre a doutrina cristã, se antes de
cristão fora mouro. O dito disse que era gentio como os da ilha de
Ceilão donde ele era natural. (IANTT, 1558).
Em vista disso, os inquisidores passam a explorar mais a face em que se mostra o
dito Pedro Índio como relapso ou até mesmo de apóstata, do que de mouro. Porém, uma
série de contradições só tenderia a aumentar. Frente os testemunhos de acusação de Pedro
Índio que o taxavam de mal cristão ou praticante de gentilidades, quando inquirido pelos
inquisidores, o réu responde que “foi perguntado se depois de batizado deixou de crer em
Jesus Cristo e de crer no Deus da sua terra e que outra vez fora gentio. Ele disse que
sempre crera em Jesus Cristo depois de ser cristão”. (IANTT, 1558). Ou seja, que na
verdade ele abandonara suas antigas crenças assim que foi batizado. Porém, neste mesmo
documento de 16 de junho de 1558, o dito réu é posto em contradição mais uma vez com
as diversas acusações por parte das testemunhas. Agora, ele fora inquirido sobre sua
natureza e por suas práticas religiosas antes de sua conversão. Os inquisidores seguem a
inquirição tentando buscar quaisquer informações que os ajudassem a identificar
novamente no réu as práticas de mouro, como observamos no trecho abaixo:
e perguntado se foi mouro antes que fosse cristão, o gentio disse
que alguma vez que primeiro era mouro porque se fez na sua terra e
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que não cria no Deus dos cristãos [...] perguntado a que Deus ele
cria antes de ser cristão e ele disse que no pagode de sua terra. E
perguntado se estava algumas vezes no lugar do dito pagode para
adora seu Deus e se ele fazia orações ou cerimônias depois de ser
cristão. Lembrando-se do dito pagode dissera que na sua terra para
adorar ou tornar a crer no seu Deus e fazer algumas orações, disse
que na verdade era ele amoitado por ser cristão e entrava na casa do
dito pagode do qual tem uma imagem de um homem preto que está
dentro de uma casa. E ele encostado-se à parede, voltado em
direção ao chão, estava com as mãos para adorar seu Deus. [...] e
depois de ser cristão ele cria algumas vezes no dito pagode, mas
não disse que o seu Deus era Deus. (IANTT, 1558).
O fato é que em primeira instancia, os inquisidores consideram a posição do réu
como:
o dito foi perguntado se visse que depois de cristão tornara a crer
no seu pagode e se em seu nome deixara de crer no nosso senhor
Jesus Cristo, porque isto lhe convém para sua salvação. Foi levado
ao seu cárcere [...] e assinou aqui o juramento. (IANTT, 1558).
Viu-se que as denúncias sobre Pedro Índio ora o colocam em posição de mouro ou
de gentio, e que ser adepto do Islão poderia pesar na hora da decisão dos inquisidores.
Observamos também que os testemunhos sempre se contradizem com a palavra do réu.
Estas contradições colocaram os próprios inquisidores na dúvida de como se proceder
diante do caso.
No momento em que é batizado ainda no oriente, Pedro Índio passa a ingressar a
comunidade cristã e este deve se comportar como tal (BOURDIEU, Pierre. 1996)366. Daí a
preocupação dos inquisidores em saber se mesmo depois de batizado o dito réu havia ou
não abandonado suas antigas crenças. Do outro lado, seguindo os pressupostos da
hibridação cultural, assim como muitos outros, Pedro Índio era o exemplo vivo do
monumento do colonialismo ibérico (GRUZINSKI, Serge. 2001). Onde mesmo batizado e
366
Do ponto de vista social, tanto o indivíduo que recebe quanto aquele que confere o ato de consagração
partilham de responsabilidades sociais, características da etiqueta de cada instituição.
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crendo em Jesus Cristo e Igreja Católica, não conseguira se desprender por completo de
sua antiga religião, do qual praticava as escondidas. Contudo, como forma de subterfugiu
da grande armadilha que era o processo inquisitorial, o gentio foi forçado a desviar a
atenção dos inquisidores, assim como as testemunhas. Isto acaba ficando claro no trecho
que diz:
E sendo perguntado se o Réu é índio mourisco de nação natural de Ceilão e se
depois de batizado na cidade de Goa lhe puseram o nome de então e se o instruíram
nas coisas da Santa Fé, e por então se tratou e nomeou prometendo vir e fazer parte da
nossa Santa Fé como bom cristão. E depois de assim ser cristão lhe reduziu ao engano
pelo demônio e se apartou de nossa Santa Fé retornando-se aos seus erros e praticando
heresias e apostasias contra a Fé espiritual e estava ciente de seu juramento. (IANTT,
1558).
Parece que não se trata de um caso de mentira contra a verdade, mas sim de uma
persuasão psicológica que os inquisidores faziam com o réu, assim como da contradição
por parte dos testemunhos, capazes de provocar a reação contrária do réu diante de uma
situação de intensa pressão psicológica. Este fato pode ter levado Pedro Índio a mentir
perante os inquisidores e lhes afirmando, que havia ter caído em tentação a dizer tais
palavras. Isso sem contar no seu problema com a bebida alcoólica, e que fora relatado por
quase todas as testemunhas, onde pesou na decisão dos inquisidores. Para ser mais exato,
algumas testemunhas do processo alegaram que Pedro Índio chegava a estar tão
alcoolizado que o mesmo não conseguia se sustentar de pé para ir até a igreja.
Em mais uma denuncia denúncia, a esposa de Antônio Fernandes, a taverneira
Maria Fernandes, afirma que viu o dito réu: “uma vez se criar no poço de curamento com
todos os outros negros que a i estavam por diziam que andava e todo e assim ouviu dizer”
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(IANTT, 1558). De fato é inegável que Pedro Índio era adepto de certas idolatrias e
gentilidades, mas que praticava isso, por estar, segundo a própria testemunha, alcoolizado.
Contudo, outra parte do processo referente ao dia 31 de agosto de 1558 coloca o réu
em uma situação mais confortável, pois alega que:
Este Réu que está fora da Fé, parece que se foi apontado com muita
gentilidade errônea, como se prova que é errante, ele disse que não
cria no Deus dos cristãos e que cria no Deus de sua Terra e que este
padecera por ele, por isso, nunca viu o Deus dos cristãos e nem
motivos para crer. Sendo assim o dito réu respondeu por vezes que
se não viu ou ouviu dizer e que se não o que via. Para isso lhe
confirmam Pedro de Ataíde, Beatriz moça solteira, André Paiva,
Maria Fernandez, sua mulher e Francisco índio, cativo do mesmo
senhor. Que se diz convidado o réu por vezes para ir à missa ao
encontro de Deus e o mesmo dizia que não queria porque não via
Deus com seus olhos. Disse também que não se confessava nem
estava nos cultos que denotavam práticas de mouros ou gentios e
não estava fora da Fé [...] (IANTT, 1558).
É entendido a partir disso que Pedro Índio passa a ser visto como um indivíduo
diferente em meio ao cotidiano do reino. Ao afirmar que ele era considerado apenas mal
cristão, os perjúrios de mouro, por exemplo, deixam de ser uma preocupação com relação
ao futuro do réu. Suas práticas de gentilidade e de idolatria passam a ser identificadas
como um desvio natural da tentação do demônio. Contudo, sabemos que, ao contrário do
que os inquisidores pensavam, o réu na verdade se desviou naturalmente da fé por motivos
de resistência, a fim de reconstruir sua própria identidade que havia sido perdida desde que
havia sido batizado em Goa, quando criança.
No que toca o destino do réu, os inquisidores parecem ter ponderado uma série de
elementos, muitos dos quais foram citados ao longo deste trabalho. O Inquisidor que
acompanhou o caso, frei Jerônimo de Azambuja declara a seguinte decisão:
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Declarou-se que o foi herege e apóstata da nossa Santa Fé Católica
e que decorreu em excomunhão maior e nas outras penas em delito
contra a Fé, que some há eles instituídos. Porém, visto como ele
tem estado o conselho confessou suas culpas e pediu delas o perdão
e muito se confessa de arrependimento e o mais que dos ditos autos
se resulta. Recebem o réu, Pedro, à reconciliação a mão da Santa
Madre Igreja como pede, e lhe mandam que abjure publicamente
suas práticas heréticas e erros em forma de pena. E deles lhe assim
no cárcere o hábito penitencial pelos que depõe no parecer dos
inquisidores vistos a qualidade de suas penas e confissão [...] no
qual no cárcere será muito bem doutrinado nas coisas da Fé e que o
convidem para a salvação de sua alma [...] (IANTT, 1558).
Segue a abjuração do réu,
E se apartou de muitas de suas espécies de heresia e apostasia e
tornou a se batizar na Santa Fé Católica porque sua apostasia
espiritualmente está e que foi em sua confissão antes de vossas
mercês que aqui agora [...] e jurou de sempre por guardar a Santa
Fé Católica e o bem em da Santa Madre Igreja de Roma e que será
sempre obediente dos nossos muitos santos padres Papa Paulo IV,
presidente da Igreja de Deus [...] e prometo nunca me ajuda com
eles [gentios, hereges, pecadores etc.] e se souber direi aos
inquisidores seus pecados. E juro e prometo cumprir quanto em
muito for à punição que me foi imposta. [...] que o dito Pedro Índio
seja solto do colégio da doutrina da Santa Igreja e de volta
cumprindo com sua penitência nesta cidade [...] que o assistisse as
pregações nos domingos nas festas e à tarde dos ditos dias que será
ouvida a doutrina cristã desta freguesia [...] em Lisboa aos 20 de
outubro de 1558 anos. (IANTT, 1558).
A dúvida que pairava sobre sua origem muçulmana parece ter sido esclarecida no
desenrolar dos autos. Com isso, a idolatria e a gentilidade passaram ser o ponto de ataque
dos inquisidores. Devido à série de contradições existentes nas palavras do réu, assim
como nas de suas testemunhas, conseguiu-se transformar as culpas de heresia e apostasia
em arrependimento. Assim sendo, o réu pôde cumprir sua pena se instruindo novamente na
catequese, sendo obrigado revisar seus ritos de passagem da sociedade cristã (BOURDIEU,
Pierre. 1996). Por outro lado, este caso denota uma parte do conflito existente entre os
missionários e a Inquisição. Uma vez que no oriente, a estratégia missionária valeu-se do
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processo de adaptação. Este cenário mostrava-se contrário aos anseios da Inquisição,
dando espaço para que indivíduos como Pedro Índio, se misturassem culturalmente. Por
isso, na visão do Santo Ofício cabia aos inquisidores, juntamente com os eclesiásticos do
reino corrigir as falhas provenientes da estratégia missionária no mundo colonial
(TAVARES, Célia Cristina. 2006), e que no caso de Pedro Índio, foram capazes de
constituir um híbrido de características marcantes, no seio do reino português.
FONTES
Autos de Pedro Índio cativo do doutor Diogo Lopez Juiz do Cível desta cidade
preso no cárcere da Santa Inquisição. Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo
(Manuscritos da Inquisição de Lisboa), 1558.
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A Legítima Causa do Brasil: Uma análise do vocabulário político do periódico
Reverbero Constitucional Fluminense durante o processo de independência do Brasil.
Jorge Monteiro Vianna367
RESUMO: Insere-se o artigo na proposta de analisar algumas reflexões políticas
registradas no periódico Reverbero Constitucional Fluminense, dando ênfase nas
interpretações do vocabulário político e nos conceitos de pátria e nação que caracterizaram
os debates políticos nos anos de 1821 e 1822 durante o processo de independência do
Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: Independência do Brasil; Nação e Pátria; Imprensa.
ABSTRACT: This article proposes to analyse some policy reflections recorded in the
journal Reverbero Constitucional Fluminense, focusing on interpretations of the political
vocabulary and the concepts of homeland and nation that characterized the political debate
in the years 1821 and 1822 during the independence Brazil.
KEYWORDS: Independence of Brazil; the nation and homeland; Press
Em seu significado moderno e, portanto político, o conceito de nação é
historicamente recente, como afirma Hobsbawm368. Entretanto, a utilização do termo nação
é antiga. Herdado da Antiguidade romana, o antigo conceito tradicional de Natio referia-se
ao nascimento ou a raça como perspectiva de diferenciação entre os grupos humanos369.
Contudo, no século XIII europeu, identificamos que os estudantes das diversas regiões
367
Mestrando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. 4 ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 30.
369
SCHULZE, Hagen. Estado e Nação na História da Europa. Lisboa: Editora Presença, 1997, p. 107.
368
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européias eram divididos por nações na Universidade de Paris, não tendo como principal
critério a região de nascimento, porém, a língua ou o grupo lingüístico. 370 Desta forma,
como determinar a existência de uma nação? Há um marco? Uma data? Ou podemos
encontrar sua existência estabelecida por fatores como a língua, o território, ou a religião?
Seguindo algumas conclusões feitas por José C. Chiaramonte, partimos então,
desde o início, enfatizando a perspectiva de que mais importante do que definir o que uma
nação é questionar e investigar aqueles que utilizaram o conceito ao longo dos diversos
contextos históricos, ou seja, indagar como e porque utilizavam o termo nação e em quais
realidades o aplicavam. O historiador argentino afirma que o conceito foi usado por
séculos em seu sentido étnico. Entretanto, no século XVII já se encontra o sentido
estritamente político do termo nação (o que não significa o desaparecimento do sentido
anterior), que acaba por se generalizar durante o século XVIII, antes da Revolução
Francesa371.
Esclarecemos então, o objeto e o objetivo desse curto artigo. Nosso objeto é o
periódico Reverbero Constitucional Fluminense372, que circulou nas ruas do Rio de
Janeiro, nos anos de 1821 e 1822. O objetivo não é fazer exatamente uma avaliação do
periódico como obra, tentando mapear os acontecimentos políticos descritos em suas
páginas, mas buscar através da interpretação de algumas passagens e textos publicados, o
sentido que apresenta o constante termo nação (e algumas de suas variações) através da
análise de alguns elementos do vocabulário político presente nessas folhas impressas.
370
Ibid., p. 112.
CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y Estado en Iberoamérica. Buenos Aires, Editorial
Sudamericana, 2004, pp. 47-50.
372
O Reverbero Constitucional Fluminense teve seu primeiro número editado em 15 de setembro de 1821 e
último em 8 de outubro de 1822. Numa duração de 13 meses, o jornal se divide em dois tomos. O primeiro
tomo constitui-se num total de 28 edições, mais duas edições extraordinárias, e uma edição de suplemento ao
número 2. Já o segundo tomo é formado por 20 edições. Possuía uma variação de 11 a 12 páginas e
apresentou três locais de impressão, a oficina de Moreira e Garcez, a Tipografia Nacional e a oficina de Silva
Porto. No ano de 1821 foi publicado quinzenalmente, (com exceção da edição suplemento ao número 2),
porém, em 1822, começou a ser editado semanalmente. Em sua composição, continha, principalmente,
diversas reflexões dos redatores, passagem de outros jornais, principalmente Correio Braziliense e,
publicações de correspondências.
371
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A nação discutida, refletida e registrada nas páginas dos diversos periódicos que se
proliferaram nas principais cidades do Brasil, durante o processo de independência,
apresenta um caráter essencialmente político. As visões e os interesses políticos registrados
pelos redatores, estavam influenciadas pelo próprio ideal de nação no qual defendiam.
Concordamos, nesse sentido, com a visão da historiadora Lúcia Maria Bastos, que ao
analisar o vocabulário político presente nos diversos jornais e panfletos do contexto lusobrasileiro da independência, identificou que a nação não se confundia com uma simples
noção de um conjunto ou grupo de indivíduos. Ganhava um sentido de uma vontade geral,
donde vinham os poderes políticos e, por isso, invocava-se a nação como “um centro do
qual partiam as principais determinações políticos”, o que acabava por ligar o conceito de
nação as questões institucionais e políticas.373
Desta forma, longe de ser um fenômeno natural da história, o que chamamos hoje
facilmente de nação brasileira é produto de uma construção histórica. Construção que
começa a ser erguida e ganha seu rascunho no século XIX, mais precisamente durante o
processo de independência política da ex-colônia Portuguesa. Como nos enfatiza o
consagrado historiador pernambucano, Evaldo Cabral de Mello, o “Brasil não se tornou
independente porque fosse nacionalista, mas fez-se nacionalista por haver-se tornado
independente”.374
Os anos de 1821 e 1822 destacam-se pela consolidação de uma rede de debates,
tanto em Portugal quanto no Brasil. Para entendermos essa rede, é mister identificar o
movimento vintista português como responsável pela divulgação de um ideário político,
que tinha como principais características a defesa das idéias liberais e constitucionais, que
acabaram por impulsionar a proliferação de jornais e panfletos nesse contexto luso373
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionalistas: a cultura política da
independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan: FAPERJ, 2003, p. 210.
374
MELLO, Evaldo Cabral de. “A fabricação da nação”. Apud. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op.
cit., p. 374.
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brasileiro. É nessa realidade, que se insere a publicação do Reverbero Constitucional
Fluminense, redigido pelo líder maçônico Joaquim Gonçalves Ledo e cônego Januário da
Cunha Barbosa. Em suas páginas circulavam constantemente as palavras nação e pátria,
revestidas de sentidos tanto para aqueles que a escreviam, quanto para aqueles que as liam.
Pátria e Nação estavam longe de representarem conceitos antagônicos, entretanto, mesmo
com uma certa proximidade de sentido, guardavam suas diferenças, que iam além do uso
dos termos como uma forma casual.
Na Antiguidade clássica a Pátria apresentava freqüentemente um sentido de
agregação de valores políticos, morais, éticos e religiosos. Contudo, no período feudal,
onde os laços pessoais circunscritos a vassalagem determinavam os próprios laços e a vida
política, essa antiga noção de pátria se desintegra, o que ao mesmo tempo, não elimina a
utilização do termo, que continua a ser usado nas obras de alguns eruditos medievais ou na
linguagem cotidiana. Como no alemão “Heimat” ou no francês “pays” a pátria apresenta
um sentido de localidade, referindo-se ao povoado, aldeia ou província. As guerras que
eram travadas por exércitos de vassalos e cavaleiros feudais (e não por cidadãos), não
determinavam um sacrifício pela pátria, mas sim uma afirmação de lealdade ao senhor.375
Mónica Quijada nos mostra, analisando o contexto dos processos de independência
da América Hispânica, há uma importante diferença entre os conceitos de nação e de
pátria. O conceito de nação é mais ambíguo e mutável, quando comparado ao de pátria, ao
longo da Idade Moderna. Recorrendo a dicionários de língua espanhola, nos anos de 1611,
1726 e 1787, encontram-se definições, que em resumo, afirmam a pátria como terra, lugar,
país ou cidade de nascimento. A “Pátria aparece assim, na tradição hispânica, como uma
375
KANTOROWICZ, Ernest H. “A realeza centrada no governo: ‘Corpus Mysticum’”. In: Os Dois Corpos
do Rei. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 147.
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lealdade ‘filial’, localizada e territorializada”.376 Se recorrermos ao importante dicionário
de língua portuguesa de Antonio Moraes, percebemos que este sentido de pátria até 1823
não é diferente. Encontramos nele, pátria como “a terra donde alguém é natural”.377
É nesse sentido que Gladys Sabina Ribeiro afirma que o “Brasil não era uma ‘pátria
única’; era marcado por regionalismos. O termo ‘pátria’ não significava uma sociedade que
se reconhecia com uma identidade e culturas próprias”.378 Contudo, é importante
destacarmos junto com as análises de Lúcia Maria Bastos, que o ideário político advindo
do vintismo e as primeiras idéias de separatismo, que foi se desenvolvendo ao longo de
1822, acabou por adicionar no conceito de pátria uma nova dimensão, que o “identificava a
uma força criadora de grupos anônimos, que promovia o poder do espírito público em
oposição ao individualismo monárquico”.379 Foi assim, definindo-se diante as enfatizadas
animosidades políticas, entre as elites de Portugal e do Brasil no ano de 1822, que o
sentido de pátria vinculava-se ao lugar que se vivia e que se compartilhava benefícios.380
Nessa perspectiva, mais uma vez Mónica Quijada, nos mostra que tanto nos
discursos dos “independentistas hispanoamericanos”, quanto na luta dos espanhóis
peninsulares contra os invasores franceses, foi se adicionando uma carga revolucionária na
idéia de pátria. Desta forma, foi incorporada na idéia tradicional de pátria (concepção
territorial) um outro sentido que estava vinculado à busca pela liberdade contra o
despotismo, baseando-se em concepções cívicas. Gerava-se, portanto, uma crescente
376
QUIJADA, Mónica. “Qué nación? Dinâmicas y Dicotomías de la nación en el imaginario
Hispanoamericano”. In: ANNINO, Antonio, GUERRA, François-Xavier (Coord.). Inventando la Nación.
Iberoamérica. Siglo XIX. México: FCE, 2003, p. 291.
377
MORAES SILVA, Antonio de. Dicionário da Língua Portuguesa. (v.2). Lisboa: Tip. Lacerdina, 1823, p.
370. Apud. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. Cit. p. 205.
378
RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no
Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ, 2002, p. 47.
379
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. Cit. p. 205.
380
Ibid., p. 207.
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identificação da pátria com a idéia de liberdade nos escritos deixados durante o processo de
independência da América Hispânica.381
Retornando ao vocabulário político apresentado nos periódicos e panfletos escritos
durante o processo de independência da antiga América Portuguesa, também se encontra
uma “aliança verbal comum entre a liberdade e a Pátria”. 382 A luta contra o despotismo ia
reafirmando a luta pela liberdade da Pátria, segundo os escritos das elites intelectuais e
políticas luso-brasileiras. Reafirmando o despotismo como o símbolo do passado e do
atraso e o liberalismo-constitucionalismo como a imagem do futuro pretendido, os
indivíduos pertencentes a estas elites encontravam-se mergulhados numa cultura política
que tinha sua matriz na Ilustração portuguesa. Além disso, iam configurando um período
de politização da linguagem na vida pública, onde a literatura política transformava-se
numa rica fonte de identificação de palavras e valores que reafirmavam um novo
vocabulário político, influenciado pelas mesmas mitigadas luzes portuguesas.
As afirmações registradas no Reverbero exemplificam o sentido de pátria ligado à
busca pela liberdade, com o objetivo de combater o despotismo. Utilizando expressões
como o grito da pátria, os redatores iam construindo suas críticas diretas ao que
consideravam a antítese direta da liberdade, ou seja, sistema político onde independente
das leis e da vontade do Povo, o soberano abusava do poder.
Lembrai-vos somente do axioma eterno, reconhecido pelo maior
dos déspotas = o Povo que quer ser livre, há de ser livre = Poderá
talvez por algum tempo, ver abafados os seus esforços, mas os
ferros cairão ao primeiro bem dado grito da Pátria, e de toda a parte
rebentarão defensores (...)383
381
QUIJADA, Mónica. Op. Cit. pp. 291-292.
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. Cit. p. 205.
383
Reverbero Constitucional Fluminense, n. 12, terça-feira 29 de janeiro de 1822. Rio de Janeiro: Tipografia
de Moreira e Garcez, pp. 146-147.
382
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Porém, a liberdade para a elite luso-brasileira, atuante no processo de emancipação
política do Brasil, não ia além do que a lei proibia. Não se podia confundir liberdade com
abuso, tendo sempre como exemplo negativo, os acontecimentos da Revolução Francesa.
Tal perspectiva elucida que a.liberdade deveria estar vinculada à busca pela ordem social e
não da desordem, trazida pelo radicalismo popular. Tal questão acaba por refletir, o caráter
reformador e moderado da Ilustração portuguesa e, por conseqüência, do pensamento e das
novas propostas políticas das elites intelectual e política que atuaram nos turbulentos
primeiros anos da década de 20 do Oitocentos, para contexto histórico luso-brasileiro.384
Do mesmo modo, que escreviam: “Nós detestamos as agitações populares”, os
redatores do Reverbero comparavam o corpo político ao corpo físico e, por isso, no
primeiro as enfermidades também poderiam aparecer. Para tanto, acrescentavam que era
“necessário separar os membros gangrenados para salvar a vida da Sociedade. (...) todas as
Instituições humanas são susceptíveis de melhoramento, e este deve ser graduado pelo
Termômetro das Luzes do século”. E concluíam através de uma postura reformista que
apresentava o caráter negativo das revoluções:
Se os Povos, portanto, formam uma centralização de vontades, e de
sentimentos não há Revolução, porque não há força opoente. Ora se
os vínculos da Sociedade não se dissolvem, nem se quebram numa
reforma, que reorganiza a ordem, e destrói os abusos, e que sobre a
ruína da arbitrariedade restabelece o império das Leis e da Justiça,
como se pode chamar Revolução a um ato indispensável para o
bem do Todo, naqueles países em que não há uma Representação
Nacional, que intervenha, vigie, zele, e sustente o cumprimento do
Pacto Social? Nós detestamos as agitações populares; mas quem
são os que as promovem? Não são, por certo, nem os Publicistas,
nem os Filósofo, que dissipando as trevas do erro, patenteam as
fontes da verdade; são sim os abusos do poder,que cavam os
abismos da miséria Pública.385
384
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Liberalismo Político no Brasil: idéias, representações e práticas
(1820-1823)”. In: GUMARÃES, Lucia Maria Paschoal; PRADO, Maria Emilia. (Orgs.) O liberalismo no
Brasil Imperial: Origens, conceitos e práticas. Rio de Janeiro: Revan: UERJ, 2001, pp. 73-101.
385
Citações retiradas do Reverbero Constitucional Fluminense, n. 12, tomo I, terça-feira 29 de janeiro de
1822. Rio de Janeiro: Tipografia de Moreira e Garcez, p. 145.
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É na necessidade de fugir dos abusos dos poderes tanto dos déspotas, quanto do
radicalismo político revolucionário, que buscavam nas idéias liberais e constitucionais, um
ponto de equilíbrio para o sistema político. Questionavam até se a Revolução do Porto
poderia receber esse nome, pois não sabiam se desta forma deveriam chamar a luta da
justiça contra o despotismo.386 Assim, Monarquia Constitucional evitaria as desordens e os
excessos de liberdades. É neste contexto, que diferenciavam a pátria da nação. Na parte do
jornal destinada às reflexões de Januário e Gonçalves Ledo, registrava-se tal diferença.
Escreviam que
A Liberdade que a Nação proclamou anima o amor da Pátria, o
amor da pátria não pode separa-se do amor da Nação; o que
dizemos em favor do Brasil, redunda em benefício de Portugal;
somos livres, abraçamos a Causa que se identificou com o nosso
mesmo sangue; mas porque a abraçamos e com tanto entusiasmo,
deveremos ser menos do que éramos? Daremos calados tudo que
possuímos até no sistema de nossa extinta escravidão, só porque se
nos ensinou a ser livres? E aonde está a proclamada
confraternidade?387
A liberdade patriótica não poderia distanciar-se do amor da nação. Pois, essa
comunidade política imaginada388, como define a nação Benedict Anderson, é chave para
entendimento do que era considerado legítimo pelos redatores.
Para os redatores do Reverbero, o governo se estabelecia pela vontade dos
governados e, por tanto, era na nação que residia a legitimidade política e social do
governo. Perguntavam se “há de o governo ser a vontade dos governantes, ou dos
governados? De quem são os interesses confiados a esses administradores?” Logo em
386
Cf. Reverbero Constitucional Fluminense, n. 11, tomo I, terça-feira 22de janeiro de 1822. Rio de Janeiro:
Tipografia de Moreira e Garcez, p. 129.
387
Reverbero Constitucional Fluminense, n. 8, tomo I, 1º de Janeiro de 1822. Rio de Janeiro: Tipografia de
Moreira e Garcez, p. 88.
388
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexão sobre a origem e a difusão do
nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 32.
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seguida respondiam: “Da Nação: logo à nação compete mudá-los, reformá-los, corrigi-los,
quando se julga mal servida (...)”. Além disso, concluíam com firmeza que um governo só
“é legítimo, quando legitimamente administra; isto é, quando o governo rege segundo o
pacto e as leis existentes; quando a Nação satisfeita, vê desempenhando o fim de todos os
Sistemas de Legislação, isto é, = Liberdade, e Propriedade =”.389
A Legitimidade desta nação estava diretamente ligada a Causa que defendiam,
denominada diversas vezes de Causa do Brasil, Causa Nacional ou Causa Brasílica. É
nessa ligação entre Legitimidade e Causa que iam determinando a base das estruturas do
que denominavam de nação portuguesa, e logo depois (principalmente, a partir dos meados
de 1822) nação brasileira. Construíam nas páginas do Reverbero as bases da legitimidade
da nação e, ao mesmo tempo, a legítima nação.
Segundo os redatores que se intitulavam de “Dois Amigos da Nação e da Pátria”, os
Inimigos do Brasil estavam classificadas de duas formas: os “Inimigos da Assembléia
Brasílica” e os “Inimigos de uma liberal Constituição”. Os Inimigos do Brasil eram os
inimigos das causas eternas e constantes da força da nação. Logo, nada melhor que os
próprios amigos da nação e da pátria, citando as análises de Mr. Bonim, para exclamarem:
Sem Leis o Governo não é mais que Despotismo; os males do
Corpo Social tem o seu remédio nas Leis Liberais; Não vos
olvideis nunca que a Liberdade do Cidadão, o amor da Pátria, a
bondade das Leis, a sólida instrução, a agricultura, a indústria, as
Ciências, a Sabedoria, e a moderação no Governo, e atividade na
administração, a imparcialidade da Justiça, a perícia dos Generais,
o valor e a disciplina dos Exércitos, são causas eternas e constantes
da força da Nação, fazem a sua glória, e a sua prosperidade. Mas
para se obterem estes bens inapreciáveis estabelecei o regime
representativo sobre sólidas bases: tereis a melhor polícia, e o único
verdadeiro Governo.390
389
Citações retiradas do Reverbero Constitucional Fluminense, n. 11, tomo I, terça-feira 22de janeiro de
1822. Rio de Janeiro: Tipografia de Moreira e Garcez, p. 128.
390
Reverbero Constitucional Fluminense, n. 14 , tomo II, terça-feira 27de agosto de 1822. Rio de Janeiro:
Tipografia de Moreira e Garcez, p. 172.
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Como enfatiza Marcello Basile, a independência não produziu uma profunda
identidade nacional, portanto, “não produziu, a seu termo, propriamente uma nação”.391
Esta falta de uma identidade coletiva nacional, no que era genericamente chamado de
Brasil, acaba por ser elucidada pelo próprio sentido do conceito de nação encontrado pelo
Reverbero. A nação não era almejada, planejada e discutida tendo como base uma certa
identidade, mas sim, através das próprias questões políticas, pois, os brasileiros eram
definidos de acordo com o que os redatores do Reverbero chamavam de justa causa.
Brasileiros, a nossa Causa é justa, o nosso fim é grande, a nossa
votação é um ato da nossa da nossa Soberania. A Política e a
Religião assim o persuadem; sustentemos os nossos direitos,
elegendo Cidadãos que saibam e possam defender a nossa gloria.
Ah! Vós sois Portugueses, Brasileiros, o amor da Pátria é vosso
alvo, votai sem prejuízos, e Deus abençoará a nossa Causa. (...)
Quando digo Brasileiros entendo geralmente os habitantes do
Brasil, ou deste, ou do outro Hemisfério, (...) não faço diferença
entre Europeu e Brasiliense, a todos amo, quando sei que se
empenham pela nossa justa Causa.392
O vocabulário político que os periódicos traziam em cidades como o Rio de
Janeiro, no período aqui analisado, acabam por refletir características contidas nas
sociedades do período mais reveladoras do que pressupostos estruturais ou conjunturais,
para que se possa entender a própria dinâmica dos processos de independência que
ocorreram em toda a América. È na articulação entre o texto e o contexto que a linguagem
política apresenta-se como agente e produto da história. Como afirma Quentim Skinner,
quando retomamos os termos de um certo vocabulário normativo que um determinado
agente apresenta para descrever seu comportamento político, acabamos por identificar as
391
BASILE, Marcello Otávio N. de C. “O Império Brasileiro: Panorama Político” In: LINHARES, Maria
Yedda (org.).. História Geral do Brasil. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 207.
392
Reverbero Constitucional Fluminense, n. 10, tomo II, terça feira, 30 de julho de 1822, Rio de Janeiro:
Tipografia de Moreira e Garcez, p. 117.
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próprias “limitações aplicáveis a esse mesmo comportamento”, determinando suas próprias
ações.393
Concordamos com hobsbawm quando este nega a afirmação que as nações são “tão
antigas quanto a história”.394 A concepção moderna de nação, concebida como uma
associação voluntária de indivíduos (como afirma o ideário político da Revolução
Francesa) foi se associando as concepções políticas tradicionais nas Américas portuguesas
e espanholas no século XIX. Assim, superpostas as imagens clássicas do universo mental
do Antigo Regime foram aparecendo outras representações políticas que traziam aos
habitantes, principalmente suas elites políticas e intelectuais, uma concepção de nação,
marcada por características da modernidade política, que acabou por se afirmar durante o
século XIX.395
Por final, a nação brasileira imaginada, pretendida e refletida no Reverbero
Constitucional Fluminense elucida mais uma imagem de nação, que junto as diversas
outras encontradas durante desde a independência, formam a galeria das imagens nacionais
presentes ao longo do tempo. Sejam essas imagens caracterizadas pela visão negativa, pela
ausência ou pela visão paternalista do povo396, constituíram o quadro do processo da
invenção da nação, que precisa ser legitimada diante esse mesmo povo cotidianamente,
pois as nações estão sempre em processos de construções.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
393
SKINER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras,
1996, p. 12.
394
HOBSBAWM, Eric. Op. Cit. p. 13.
395
Para uma melhor análise sobre algumas características das concepções clássicas e modernas de nação,
Ver: GUERRA, François-Xavier. “El ocaso de la Monarquía Hispánica: Revolución y Desintegración”. In:
ANNINO, Antonio, GUERRA, François-Xavier (Coord.). Op. Cit. , pp. 122-127.
396
CARVALHO, José Murilo de. “Brasil. Naciones Imaginadas”. In: ANNINO, Antonio, GUERRA,
François-Xavier (Coord.). Op. cit. , p. 501.
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Memória da Mulher na Luta Armada
Pelos olhares aí afora...
J u l i a B i a n c h i R e i s I n s u e l a 397
RESUMO: O artigo apresenta a pesquisa sobre a memória das
mulheres
recuperar
na
as
organizações
luta
armada
visões
da
entre
acerca
esquerda
os
das
armada,
anos
1968
militantes,
nos
órgãos
e
1972.
no
de
P rocuro
interior
das
repressão
e
informação do regime e na grande imprensa. A memória coletiva da
luta armada construiu -se em função da lembrança da visão dos órgão s
de repressão e de informação e do esquecimento daquela presente na
grande imprensa. A pesquisa mostra como a percepção depreciativa
da mulher participante na luta armada, que estava nos órgãos de
repressão, era muito próxima à da grande imprensa e à da p rópria
sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: gênero, memória, ditadura civil -militar.
A B S T R A C T : The communication presents the research on the memory of the women
in the armed fight seted between the years of 1968 and 1972. I look for to recoup the
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Mestranda em História Social pela U niversidade Federal Fluminense
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visions concerning the militant, in the interior of the left armed organizations, in the organs
of repression and information of the regimen and in the great press. The collective memory
of the fight armed was constructed in function of the reminder of the vision of the organs
of repression and information and of the forgotten of that present in the great press. The
research shows as the contemptuous perception of the participant woman in the armed
fight, that was in the repression organs, was very next to the one of the great press and to
the one of the society itself.
K E Y W O R D S : g e n d e r , m e m o r y, c i v i l i a n - m i l i t a r y d i c t a t o r s h i p
A história é feita por homens e mulheres que a cada momento a
inventam e reinventam, no cotidiano de suas vivências. No presente
a r t i g o 398 o p t e i p o r t r a b a l h a r c o m a s m u l h e r e s . E s t a p e s q u i s a t e m
como problemática a análise da trajetória política de uma geração de
mulheres que se envolveu com o projeto de luta armada das esquerdas
revolucionárias, no período de 1968 a 1972, no Brasil.
O estudo paralelo das percepções das mulheres na luta armada
em
três
níveis
–
nas organizações,
nos órgãos
de repressão e
informação e na grande imprensa – sugere muitas aproximações (nem
sempre perceptíveis de imediato), para além das evidentes diferenças,
que dizem respeit o às representações das mulheres na sociedade da
época e suas mudanças e continuidades nas décadas seguintes.
O objetivo é identificar o universo comum entre esses níveis
diferenciados. Mesmo entre as organizações e a grande imprensa, por
398Este artigo refere-se a uma primeira parte de minha pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de
Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, em fase inicial.
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exemplo, ou entre as organizações e os órgãos de repressão e os de
informação, notamos, em meio a evidentes e importantes diferenças,
pontos de interseção, que dizem respeito a uma cultura na qual a
sociedade brasileira está imersa na época ou da qual é herdeira.
A busca pelas visões das militantes possibilitou a percepção de
pontos de interseção entre as visões da repressão, da imprensa –
principalmente pela linguagem utilizada e suas
conformam
um
universo
de
valores
–
e,
por
referências, que
conseguinte,
da
sociedade. Entretanto, a memória coletiva construída nas décadas
posteriores, baseia-se, sobretudo, na imagem presente nos órgãos de
repressão.
A década de 1960 ficou conhecida por sua forte excitação no
que permeia o ambiente cultural e político em todo o mundo. Foi um
momento em que surgiram questionamentos correspondentes a tudo
estabelecido, entre eles: a estrutura da sociedade, inclusive da
família, o capitalismo e o comportamento social, incluindo -se ai os
relacionamentos amorosos entre os indivíduos. É um períod o que nos
permite observar em que medida essa efervecência política e cultural
engendrou
uma
conscientização
e
uma
mobilização
de
diversas
camadas da sociedade, que procuraram intervir na realidade do país
buscando a transformação do cenário social.
As transformações sociais, culturais e políticas ocorridas na
sociedade brasileira, especialmente a partir dos anos 60, criaram as
condições mais gerais para a efetiva constituição da mulher como
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sujeito político. A partir da via política, estas mulheres se via m como
agentes capazes de efetuar mudanças. É nessa efervescência que o
sexo feminino sai do âmbito privado para buscar o seu lugar mais
expressivamente
no
espaço
público.
Ocorria
uma
movimentação
nestes campos, impelindo cada vez mais o sexo feminino para a luta
por modificações e sua permanência no campo público, oscilando
entre o ambiente conservador e moralista da sociedade e a atmosfera
contestadora e radical dos anos 60. Diante de uma leitura muito
própria,
considera-se
que
esse
período
foi
de
intensa
agitação
cultural e política em todo o mundo e no qual a trajetória de uma
geração de mulheres, as quais subvertem os seus papéis tradicionais
ao
militarem
em
organizações
de
esquerda
armada,
começa.
É
importante frisar que ao mesmo tempo em que os anos 6 0 são
marcados por rupturas – devido ao fato das mulheres entrarem de
forma mais significativa na vida pública – existe uma continuidade,
que pode ser evidenciada, por exemplo, ainda na existência de um
machismo,
inclusive
compreensão dos
nas
próprias
organizações.
A
part ir
da
caminhos percorridos por estas mulheres – que
ultrapassam fronteiras – podemos dizer que elas se comportariam
como vanguarda no avançar em direção ao púbico. Um paradoxo
existente no mesmo espaço, e que influenciou na construção da
“mulher militante”.
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A t r a v é s , e n t ã o , d o m a t e r i a l p e s q u i s a d o 399, p r o c u r o i d e n t i f i c a r
os
olhares
existentes
das
militantes
da
esquerda
armada.
Este
trabalho está dividido em três partes: a primeira, como a repressão
via as mulheres militantes; a segunda, o olhar da imprensa; e a
terceira, uma comparação entre os dois, notando se havia ou não
pontos de interseção entre essas duas percepções.
O primeiro enfoque diz respeito à percepção que os órgãos de
repressão e informação possuíam.A característica inicial que a s
colocou
como
alvo
do
regime
repressor
diz
respeito
a
serem
contrárias ao regime vigente e a revolução.
Para tal proposta, utilizo os documentos encontrados no Fundo
DOPS do APERJ. A primeira observação que posso fazer é que
existem diversas fichas das me smas pessoas em pastas diferentes, e
em setores diferentes. Ao mesmo tempo, nota -se o uso das mesmas
palavras que serviam de certa forma para qualificá -las.
No caso das mulheres, percebe-se o objetivo de depreciá -las e
tratá-las como um sujeito unitário. Todas são iguais diante dos olhos
da repressão. Para esta, só o fato de fazerem oposição ao regime já as
c o l o c a v a n u m a c a t e g o r i a u n i f i c a d o r a e p e j o r a t i v a : a d e t e r r o r i s t a s . 400
399A pesquisa viabilizou-se pela existência de fontes primárias e secundárias relacionadas ao assunto
abordado. Grande parte desse material encontra-se disponível por meio de coletâneas de documentos
microfilmado, como jornais, armazenados na Biblioteca Nacional, e fichas arquivadas no Arquivo DOPS,
estabelecido no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. O material recolhido condiz com o corte
cronológico privilegiado: entre os anos de 1968 e de 1972, por representarem a entrada da mulher no mundo
político engajado e por serem considerados os anos de maior radicalização da luta contra o regime ditatorial e
da luta armada
400Ver : Colling, Ana Maria . A Resistência da mulher à ditadura militar no Brasil.Rio Grande do Sul :
Rosas dos tempos , 1997
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A partir da análise do material catalogado repara -se que a
repressão
Contudo,
constrói
ao
o
primeiro
sujeito
olhar,
político
elas
“mulher
aparecem
s u b v e r s i v a ” 401.
não
como
mulheres
desviantes e que romperam com os padrões tradicionais, mas sim
como esposas, filhas e amantes de homens procurados. Tal fato
corresponde à concepção de que as mulheres não são capazes de
tomarem decisões políticas e que estariam na militância porque os
h o m e n s a s c o n d u z i r a m , a s s u b v e r t e r a m . 402
Isso corresponde a uma visão prévia do conjunto dos diversos
escritos. Ao aprofundar o estudo percebe -se que a mulher só ir á sair
da
postura
de
filha
ou
esposa,
ao
participar
efetivamente
de
atividades consideradas subversivas. Entre elas está o trabalho de
massa – visto como doutrinação – e/ou atividades correspondentes à
luta armada, entendidas como ações terroristas.
É
quando
construção
da
começam
imagem
a
participar
feminina
surge:
dessas
a
de
ações
mulher
que
outra
terrorista.
Ademais, deixam de serem filhas e esposas para se tornarem amantes.
Quando a militante participava de ações terroristas sua condição de
amante aparecia como fundamental. As fontes, então, acabam por
estipular um vocabulário específico e elementos que em conjunto
compõem a imagem dos órgãos de repressão e informação acerca das
m i l i t a n t e s 403.
A
imagem
cuja
construção
está
baseada
nos
401Ver: Ferreira, Elizabeth F. Xavier. 1996. Mulheres, Militância e Memória. Rio de Janeiro: Fundação
Getulio Vargas Editora.
402Idem notas 5 e 6
403Para melhor compreensão da denominação “órgão de repressão” e “órgão de informação” , os quais são
diferentes , ver : Fico Carlos. “Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da
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preconceitos da sociedade e do regime repressor aparece claramente
nas fichas – estabelecendo certo padrão – concebendo o olhar destes
órgãos em relação às mulheres militantes. As informações passadas
pelos órgãos de informação e repressão acabavam por configurar o
olhar preconceituoso e moralista, o qual não lhes era exclusivo:
estava muito presente na sociedade em geral.
A linguagem utilizada para caracterização remetem –se a formas
de depreciação, repletas de teor apelativo e conotação sexual. Vale
salientar que a repressão r essalta a questão da promiscuidade entre
elas,
afirmando
a
existência
de
relacionamento
com
vários
companheiros.
Chamam atenção outras referências que são recorrentes nos
documentos
do
DOPS,
com
o
intuito
dessa
caracterização.
Os
vocábulos: “desquitada”, “comunista”, “terrorista”, “marginada” e
“revolucionária” aparecem inúmeras vezes em diversas fichas. É
importante frisar que o emprego pejorativo desses termos condiz com
a visão preconceituosa que existia naqueles anos – anos 60 e 70 – e
que implicava, então, em um sentido negativo, configurando ao final,
uma visão depreciativa das militantes. É importante destacar que o
uso dessas palavras não era exclusivo da repressão. Na verdade,
incorporava os discursos e olhares vigentes da sociedade daquele
período.
repressão”, in Ferreira, Jorge e Delgado, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O tempo
da ditadura. Vol. 4. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003
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Os documentos encontrados no Fundo DOPS corroboram para a
caracterização
de
uma
imagem
ignominiosa
dessas
mulheres.
A
militante é um “desvio” de mulher.
Os argumentos supracitados expõem a construção feita pela
repressão acerca das mulheres militantes. Sobressaía a medida de
desmerecer
a
mulher,
cujo
desvio
seria
preponderante.
Como
mulheres desviantes, abandonam suas funções, lar, filhos e marido,
para dedicar-se às lides terroristas – as quais não dizem respeito à
sua suposta área de atuação (como mulh er) – aparecendo como
amantes e amásias.Entretanto, essa é uma parte das visões existentes.
A outra concerne ao olhar que a imprensa possuía sobre as
mesmas. Para melhor sintetizar essa temática, procuro trabalhar com
jornais da grande imprensa, que permi tiam o acesso à informação às
mais diversas camadas da sociedade .
Privilegiaram-se, especialmente, os periódicos
O Globo
e
Folha de São Paulo. O estudo dessas publicações revelou tanto seus
posicionamentos, como a interpretação que cada uma delas fazia d a
realidade histórica abordada. Ao analisar as reportagens selecionadas
percebemos uma determinada imagem das militantes de esquerda
armada. Os jornais, assim como a repressão, eram uma expressão da
sociedade,
que
não
aceitava
tais
mulheres.
Elas
represent avam
supostamente uma ameaça à família, instituição que não poderia ser
dissolvida e à “moral e aos bons costumes”. Este discurso não é
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isolado, a imprensa – tanto quanto a repressão – o reconhece e
verbaliza.
Neste sentido, podemos encontrar nas páginas d os jornais o
mesmo
estilo
encontrados
de
no
caracterização
DOPS.
A
e
vocabulário
tentativa
de
dos
desmerecer
documentos
a
mulher
é
constante, e para isso utiliza -se de descrições cujo leitor assimilaria
o teor negativo.
Assim, o conjunto dos diversos esc ritos destes dois periódicos
foi necessário para percebermos a difusão do discurso e dos ditames
éticos e morais da sociedade e, logo, da repressão. O enquadramento
das mulheres militantes como seres desviantes é presente a partir do
momento em que identificam em suas reportagens essas mulheres
como
“terroristas”,
“comunistas”,
“amásias”,
“amantes”,
“subversivas” e “traidoras.” Nota -se o tom deslegitimador e um juízo
de valor com intuito de alarmar e assustar a população. No descrever
das notícias percebe -se o tom negativo imbuído nelas. Sobre a
participação feminina vê -se que quase sempre nos jornais apareciam
acompanhadas
da
presença
de
homens.
Os
periódicos,
portanto,
recolhem e adotam os saberes construídos pela sociedade e pela
repressão, sendo um meio para difundir suas concepções.
Na investigação do papel da mulher ao longo da ditadura civil militar – mais especificamente na luta armada –constata-se que os
p e r i ó d i c o s 404
corroboram
com
a
visão
da
repressão,
a
qual
404Vale ressaltar que os periódicos selecionados são identificados como de direita. O motivo de sua escolha
se deve ao fato de serem considerados os de maior circulação e acesso à população, e por assim, como os
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compartilha da mesma com a sociedade cons ervadora. Os jornais
funcionam como via de transmissão e difusão desta visão, no intuito
de legitimá-la, pois enquadram e utilizam as mesmas categorias dos
órgãos repressivos e de informação. Como sabemos, as informações
não são imparciais, contemplando um juízo de valor arraigado no
âmbito social.
A imagem
fixada, portanto, nos jornais
é
a de
mulheres erradas e perigosas.
A
interpretação,
portanto,
dos
documentos
encontrados
no
Fundo DOPS e nas reportagens dos jornais de grande imprensa,
estimulada por uma comparação entre os dois é entendida como uma
corroboração
daqueles
por
estas,
pois
utilizariam
das
mesmas
categorias para tratar das mulheres na luta armada. O olhar seria o
mesmo. O preconceito que paira sobre a sociedade, aparecerá nas
folhas dos arquivos da repressão – que também é constituída por
parte dos indivíduos dessa sociedade – e se afirma nas páginas
jornalísticas. O tratamento público (periódicos) e privado (fichas
confidenciais) seria o de desmoralização. Na verdade, então, não
existiriam vários olhares, mas um hegemônico. Entretanto, ao voltar se para as memórias (re)construídas nas décadas posteriores nota -se
uma intensa discussão acerca dos órgãos de repressão e informação,
apagando desta memória o senso comum existente entre aqueles e a
grande
imprensa,
principalmente
em
relação
ao
vocabulário,
a
maiores jornais em suas regiões. Não se optou por eles por tenderem mais para a direita. Todavia, frisa-se o
fato de os dois maiores periódicos das duas maiores cidades do país tenderem para a direita. A afirmação de
que possuem o mesmo olhar da ditadura é baseada, então, nessa alegação e por encontrar termos empregados
pelo regime vigente, identificando-os, assim, como colaboradores da difusão da visão da repressão, esta
sendo de direita.
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linguagem e, na difusão de sua opinião, não atentando que esse olhar
também seria encontrado tanto na repressão como na sociedade.
Esses
dois
universos
eram
conectados,
a
exemplo
do
vocabulário e referências utilizadas, pois as reportagens jornalísticas
nunca utilizam uma linguagem estranha à sociedade, a qual não é
vítima da absorção da divulgação realizada pelos jornais. Não existe
um marco zero, e sim uma via de mão -dupla.
Esquecendo-se desses pontos de interseção entre eles, logo, se
silencia
a
afinidade
entre
esses
órgãos
e
a
sociedade,
desresponsabilizando esta de seus encargos na construção do regime.
A memória reconstruída baseia-se, sobretudo, nos órgãos de repressão
e
informação,
exclusivamente
levando
dessa
a
visão
crer
que
depreciativa
a
e
repressão
negativa
dispunha
acerca
das
mulheres militantes.
Ao analisarmos, portanto, a inserção da mulher na luta armada,
nota-se
para
além
dos
pontos
de
interseção
entre
esses
níveis
diferenciados, e assim uma afinidade presente entre eles, a existência
de um consenso que está sendo formado em torno da ditadura civil militar, o que nos remete a uma questão maior a qual diz respeito à
memória desse tempo: sua reconstrução.
Ao descartarem as referências sobre as militantes da esquerda
armada na grande imprensa – entendida como expressão da sociedade
– essa memória acaba por não perceber as presenças da sociedade na
construção do regime. O motivo pelo qual isso acontece se dá a partir
da concepção de que o regime civil-militar entrou para a história
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como um dos períodos de maior autoritarismo e violência praticados
pelo Estado contra a sociedade, e como tal, não se quer estar
relacionado
com
algo
tão
maculado.
Assim,
não
se
aceita
a
participação da sociedade no golpe de 1964 e na sua legitimação,
inclusive pela grande imprensa – a qual prefere enfatizar o seu
e n f r e n t a m e n t o c o m a c e n s u r a 405 e d e i x a r d e l a d o a
sua colaboração
com a repressão - sugerindo uma mudança de postura por parte dos
grupos que aderiram à ditadura civil-militar e, da mesma forma,
refletindo
essa
percepção
na
memória
social
do
período
e
c o n t r i b u i n d o , e n t ã o , p a r a u m a “ s a c r a l i z a ç ã o d a m e m ó r i a ” 406. O u s e j a ,
como uma memória sacralizada, que idealiza mitos e heróis, não tem
nenhuma função de co mpreensão. Por conseguinte, essa memória não
favoreceria a História, a qual implica na busca pelo conhecimento.
O conceito de memória permitirá o entendimento acerca das
construções feitas sobre essa problemática, nos questionando do
porquê recupera-se principalmente a memória coletiva em relação à
resistência, e no caso específico do trabalho, do porquê as mulheres
militantes de organizações de esquerda armada enfatizam tanto sua
militância
e
resistência,
enquanto as
manifestações de
apoio
e
consentimento, ficam renegadas ao silêncio. Essa questão recai na
capacidade que a memória tem de se construir e reconstruir com o
passar do tempo, principalmente devido às intenções para tal, estando
405Para melhor esclarecimento ver: Batista de Abreu, João. As Manobras da Informação: análise da
cobertura jornalística da luta armada no Brasil: (1965-1979). Niterói: EdUFF; Rio de Janeiro : Mauad ,
2000 ; Kushinir, Beatriz. Cães de Guarda: jornalista e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo,
Boitempo Editorial, 2004
406No mesmo sentido que a trabalhada por Tzevtan Todorov : Todorov , Tzevtan. Los abusos de la
memória.Paris : Arléa , 1995 .
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geralmente ligadas com a política. Vale destacar o caráter anacrônico
da
memória,
o
qual
influi
diretamente
nesta
problemática
de
r e c o n s t r u ç õ e s . 407
A memória pode ser usada como um
instrumento teórico -
metodológico para a compreensão desse questionamento e é de
importante uso para o trabalho historiográfico. Cabe destacar que a
memória construída sobre o regime civil -militar foi elaborada durante
o processo de abertura política, focando -se em torno da resistência.
Como o presente naquele momento era o da volta ao processo
democrático, a memória coletiva, ao olhar para o passad o prevaleceuse no sentido de uma interpretação de acordo com a qual a sociedade
desde
sempre
tivesse
resistido
ao
regime
e
não
teria
ocorrido
manifestações de respaldo – está ai um claro exemplo de como as
questões do presente, principalmente as políticas , influenciariam no
olhar para o passado e a formação de sua memória.
Debruçando-se
,
então,
sobre
esta
memória
construída
a
posteriori será possível refletir sobre a postura de esquecimentos,
lembranças e silêncios em relação à conformação do regime civi lmilitar, principalmente pela sociedade.
Fontes e referências bibliográficas
407A perspectiva adotada é a mesma de Beatriz Sarlo. Para melhor esclarecimento ver: Sarlo ,Beatriz.
Tiempo Passado: cultura de la memoria y giro subjetivo. Buenos Aires: Editores Argentina , 2005 .
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Fontes:
Periódicos e revistas:
- Jornal Folha de São Paulo
- Jornal O Globo
Fundos documentais:
- Departamento de Ordem Política e Social (DOPS):
- Arquivo da Polícia Política; setor: informações; pasta 163, página 751. Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro
- Arquivo da Polícia Política; setor informações; Pasta 163; página 751. Arquivo Público
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A Contribuição do Chorinho para a Inserção do Negro na Sociedade
Brasileira.
Leonardo Santana da Silva408
RESUMO: Esta pesquisa tem como originalidade o próprio tema sugerido, visto que
existem dois vieses específicos que consequentemente abordará dois temas distintos. Neste
caso, um está relacionado à questão da contribuição social do negro afro-brasileiro em
nossa sociedade, o outro está relacionado ao ponto de vista cultural através da criação de
um novo estilo musical num primeiro momento. Nossa proposta é justamente a junção dos
dois temas. Deste modo, a investigação apresentada no sentido teórico e metodológico
dentro das especificidades, propõe evidenciar a inserção e consequentemente a trajetória
social deste negro através desta prática cultural. A nossa investigação, propõe evidenciar a
proeminência socioeconômica desses músicos afro-descedentes no decurso deste novo
gênero musical, sendo visto como uma forma para a inserção do negro na sociedade
brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: Inserção Social; Gênero Musical; Chorões.
ABSTRACT: This research has the original theme suggested itself, since there are two
specific biases therefore address two distinct themes. In this case, one is related to the issue
of social contribution of the black african american in our society, the other is related to the
cultural point of view by creating a new musical style at first. Thus, the research presented
in the theoretical sense and in the specific methodology, evidence suggests the insertion
408
Mestrando em História/USS. Professor do Conservatório Brasileiro de Música. Membro do conselho
Editorial da Revista Caminhos da História do Programa de Mestrado da Universidade Severino Sombra.
[email protected]
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and consequently the social trajectory of black through this cultural practice. Our research
proposes to highlight the prominence of these musicians socioeconomic african descendent
in the course of this new genre, being seen as a way for the inclusion of blacks in Brazilian
society.
KEYWORDS: Social Inclusion; Musical Genre; Chorões.
INTRODUÇÃO
A pesquisa proposta tem por finalidade estudar a relação entre o “choro” – novo
estilo musical construído por músicos negros das classes médias baixas – e sua inserção
social, no período que compreende o final do séc. XIX e início do séc. XX. Este novo
gênero musical, portanto, será um divisor de águas na história cultural de nossa sociedade.
É necessário ressaltar que o período no qual surge o choro, a sociedade era escravista
(1870), embora se tenha uma política voltada para a questão da abolição. Nesta trajetória
muitas medidas foram tomadas para a libertação do negro, sejam elas através de leis
emacipacionistas gradualistas (Lei Eusébio de Queiroz, Lei do Ventre Livre e Lei dos
Sexagenários), alforrias concedidas, pecúlio legal, formas de resistência de um modo geral,
enfim as várias maneiras de se ver livre deste sistema opressor, o que deve ser colocado é
que só através da abolição da escravidão é que esta liberdade será legitimada. Então fica
claro que se manter como parte integrante desta sociedade, era uma tarefa árdua para estes
negros, considerando que para as elites, o negro era visto como propriedade. Portanto
mesmo com República instaurada houve uma resistência nas mentalidades das camadas
superiores desta sociedade, no entanto o negro que a partir deste momento da história passa
a ser livre, continuando a ser mal visto diante daqueles que ainda possuia aquela visão
escravista enraigadas em suas mentes.
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Utilizaremos as categorias e conceitos dos seguintes pesquisadores e historiadores:
André Diniz, José D`Assunção Barros, Ary Vasconcelos e José Ramos Tinhorão. No livro
intitulado de Joaquim Callado o pai do choro, seu autor o pesquisador André Diniz,
discorre sobre a trajetória inicial deste novo estilo musical, passando para origem do seu
gênero propriamente dito, consolidado como uma nova identidade musical. O autor cita
também, pelo menos quatro versões sobre a origem da palavra choro. São elas: a definição
de Baptista Siqueira (maestro); a do folclorista Luís da Câmara Cascudo; a do pesquisador
Ary Vasconcelos e a do pesquisador José Ramos Tinhorão. Em relação a estas definições,
faremos sua exposição no itém destinado ao quadro teórico.
A obra mostra a miscigenação dos gêneros musicais tanto europeus, quanto o
africano, iniciando então a sua nacionalização. Isso significa a transformação destes estilos
para um outro propriamente popular brasileiro.
O autor André Diniz demonstra as diversas gerações destes chorões, além de narrar
o cenário do ambiente social, econômico e político do Rio de Janeiro neste período,
evidenciando que os chorões, vinham das camadas médias da sociedade, ou seja,
trabalhadores dos correios, telégrafos, bandas militares, pequenos cargos públicos, entre
outros. 409
Em se tratando dos conceitos formulados pelo historiador José D`Assunção, nos
apropriaremos de duas obras de sua autoria, cujo o conteúdo se enquadra perfeitamente ao
tema proposto desta pesquisa. O primeiro é o livro denominado de: O Brasil e a sua
Música. Primeira parte: Raízes do Brasil Musical. O autor relata num primeiro momento a
história da chegada dos negros africanos no Brasil, em virtude da colonização e as várias
fases da escravidão até a o período Imperial. O que podemos compreender neste momento
409
DINIZ, André. Joaquim Callado o pai do choro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 31-32.
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inicial da obra, é a presença de uma representação e descrição conjuntural da condição
socio-econômica deste período – séc. XVI – XIX. 410
O historiador José D`Assunção, analisa a questão relacionada à construção da
identidade afro-brasileira, devido ao processo de miscigenação das raças, resultando assim,
numa formação de um novo padrão cultural. Esta mistura racial demonstra ser um caráter
positivo principalmente no âmbito cultural. Ainda imerso a esta obra, José D`Assunção
fala claramente da importância deste encontro inter-étnico, que possibilitou diferentes
experiências musicais não só no Brasil como nas Américas de um modo geral. Um
exemplo crucial disto é o blues, o jazz, o samba, o chorinho e a bossa-nova.411
Um outro ponto que merece muita atenção é a contribuição trazida pelas danças e
ritmos de origem africanas e européias, que ao se misturarem, originaria numa nova forma
musical na esfera popular, erudita e folclórica brasileira. Ex: maracatu, congada, jongo,
lundu, polca maxixe, batuque, samba, afoxé, frevo, chorinho, etc.
Vejamos agora algumas diretrizes estabelecidas por este mesmo autor, em sua
segunda obra denominada de Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira
nas seis primeiras décadas do século XX. Embora este seu livro esteja mais
especificamente direcionado para a construção do caráter nacional e moderno dentro da
música erudita brasileira, o autor desenvolve um capítulo interessante, onde relaciona a
influência do “choro” na música erudita brasileira.
O historiador José D`Assunção esclarece ainda a questão do que vem a ser o
“choro”. Assim sendo, ele fala sobre os elementos que contrói este gênero musical,
evidenciando a interação dos rudimentos folclóricos rurais e regionais do Brasil com a
música estrangeira. Afirma que a palavra “choro” surgiu para designar um estilo de grupo
410
BARROS, José D`Assunção. O Brasil e a sua Música. Primeira parte: Raízes do Brasil Musical. Rio de
Janeiro: 2002, p. 49.
411
Idem, p. 52-53.
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formado por músicos populares da época. O autor ainda descreve sobre a primeira
formação musical original, ou seja, a estrutura instrumental inicial (flauta, violão e
cavaquinho) e a função de cada instrumento. Menciona também a inclusão de outros
instrumentos na sua composição no decorrer dos anos.
Uma outra idéia que nos chama a atenção é quando José D`Assunção especifica a
passagem do termo “choro” (nome atribuído primeiramente por causa da formação musical
instrumental), para a consolidação do termo, passando a converter-se em um novo gênero
musical. Esta passagem ocorre quando estes músicos passam a adotar uma peculiaridade
em sua execução musical, ou seja, uma execução mais ligeira adquirindo assim uma
identidade própria.412
A visão que iremos trabalhar agora é de um outro intelectual fundamental nesta
discurssão: Ary Vasconcelos. Dentre algumas obras de referência em relação ao tema a ser
investigado, utilizaremos seu livro chamado Carinhoso etc. – História e Inventário do
Choro, com o propósito de elucidar um pouco mais a nossa apresentação.
No seu livro o autor aponta em que contexto nasce o “choro”: 1870 – final da
Guerra do Paraguai. Ressalta que o choro não é propriamente um gênero musical no seu
início, mas a designação de um conjunto instrumental que logo se transformou num jeito
brasileiro de se executar a música de gênero dançante vindo da Europa.
O livro segue com a divisão das gerações de chorões e a importância destes chorões
em sua respectiva época, ressaltando cada momento das diversas fases do “chorinho”. Uma
observação importante que deve ser destacada é o período da 3ª geraçãodos chorões (19191930), onde surge o maior nome do choro de todos os tempos: Pixinguinha. É neste
momento que o choro, segundo Ary Vasconcelos, irá chegar ao seu ápice. Aponta que em
1919 será formado os Oito Batutas, o mais importante grupo de choro existente. Com a
412
BARROS, José D`Assunção. Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira nas seis
primeiras décadas do século XX, vol. II. Rio de Janeiro: 2004, p. 257 a 259.
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formação deste conjunto, temos algumas mudanças significativas na composição
instrumental, como po exemplo, o ingresso da percussão no choro. Uma outra mudança é
no campo social, pois na maioria das vezes o choro era executado apenas em festas nos
subúrbios cariocas, passando a ser executado em festas da alta sociedade para figuras
importantes destas classes elitizadas, demonstrando uma convivência mais direta entre
estas classes. O autor nos dá exemplo da ocasião em que os reis da Bélgica estiveram no
Brasil, e foram executados “chorinhos” para essa realeza. Um outro exemplo foi o
financiamento de uma turnê pela Europa para os Oito Batutas, sendo essa de suma
importância, devido à divulgação de nossa cultura fora de nosso território nacional.413
Trabalhemos então neste momento os ensinamentos formados por José Ramos
Tinhorão. Na obra, História da Música Popular Brasileira, fala do surgimento da música
popular brasileira através de barbeiros. Afirma que devido às habilidades múltiplas dos
barbeiros e a sua condição privilegiada, por desenvolver uma atividade liberal, tinham
tempo para o desenvolvimento e aprendizagem de outras funções; dentro delas, a mais
procurada, seria a música. Destaca a presença de uma mistura de músicas, danças,
batuques, percussão e de tambores negros, que surgiram na Bahia e no Rio de Janeiro, na
metade do séc. XVIII, demonstrando ser o embrião para o nascimento do choro.
O autor relata a condição sociocultural desses instrumentistas negros (barbeiros),
destinados a um novo “serviço urbano”: “a música”. Deste modo, estes músicos passaram
a ser as principais figuras direcionadas a diversão em festas tanto na esfera pública quanto
na esfera privada. É neste contexto que o choro vai surgir, através da transformação da
música de barbeiros. Tinhorão indica a condição socio-econômica destes músicos,
destacando suas camadas e áreas de trabalho: funcionalismo público, funcionários dos
413
Vasconcelos, Ary. Carinhoso etc. – História e Inventário do Choro. Gráfica editora do livro Ltda. 1984,
p. 25.
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correios, repartições civis e militares, telégrafos, casa da moeda, estrada e ferro Central do
Brasil e entre outras. 414
CHORO E CHORÕES – UMA BREVE HISTÓRIA
Faremos agora um apanhado sucinto do que é o choro em se tratando do seu
conceito, pois a origem da palavra choro em si possui muitos sentidos, por esta razão, vão
existir diferentes concepções designadas para justificar e legitimar o nome dado a este
novo estilo musical, que ao passar do tempo, tornou-se um novo gênero na música popular
brasileira.
O choro vai surgir com a evolução da chamada música de barbeiros (estilo de
música vindo das camadas urbanas, onde se misturavam músicas, danças e batuques a base
de instrumentos de percussão negra, com os estilos brancos e mestiços), cedendo o lugar
para a criação de uma nova maneira de se executar a música que aqui havia:
O espírito de confraternização desses músicos se revela através do “choro”, música
que surgiu a partir da fusão do lundu, ritmo de sotaque africano à base de percussão, com
gêneros europeus. Suas interpretações musicais, ao sabor da cultura afro-carioca, eram o
tempero para as audições nos “arranca-rabos” e cortiços das chamadas populares, nos
bailes da classe média – batizados, aniversários, casamentos – ou mesmo nos salões da
elite da corte de D. Pedro II.415
Desta forma, temos como elementos básicos para a sua caracterização os seguintes
pontos: em primeiro lugar, é a sua formação instrumental original, que consistia de três
instrumentos básicos; flauta, violão e cavaquinho:
414
Tinhorão, José Ramos. História da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34: 1998 p. 155 a 157.
DINIZ, André. Almanaque do choro. A história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 14.
415
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Nos seus primórdios mesmo, particularmente na cidade do Rio de Janeiro que é o
seu berço, a palavra Choro surgiu para designar um tipo de grupo formado por músicos
populares. A formação de raiz era o chamado “terno”, que consistia de uma flauta, de um
violão (ou dois) e um cavaquinho.416
A segunda característica fundamental é a composição dos diversos gêneros
estrangeiros, sobretudo europeus, acoplado a ritmos africanos. A terceira característica, e,
por conseguinte a principal, seria a questão de transformar todos esses elementos em um
jeito brasileiro de se executar a música:
As interpretações diferenciadas dos gêneros estrangeiros da época – como a polca,
valsa, o xótis, a quadrilha – fizeram nascer um jeito “brasileiro” de tocar. O choro do
século XIX surgiu como uma maneira de frasear, ou seja, um estilo de executar os gêneros
europeus. A influência européia, portanto era clara, mas não foi à única. O lundu era outro
rio que iria desembocar no novo ritmo.
Principal ritmo de origem africana a aportar no Brasil, o lundu, música à base de
percussão, palmas e refrões, era cultivado pelos negros desde os tempos de trabalho
escravo nas lavouras de açúcar da Colônia.417
O que queremos dizer é que boa parte da produção musical que se tinha no Brasil
neste período, era vinda da Europa, porém, não podemos deixar de mencionar a existência
de uma música proveniente das senzalas, assim como nas aldeias indígenas. Então, foi
através deste repertório musical que os músicos brasileiros passam a executar tais obras,
com seus próprios estilos, ou seja, dizendo numa linguagem mais popular, seria um jeito de
tocar mais abrasileirado. Logo com o passar do tempo, essa forma de executar as músicas
estrangeiras, começam a ceder lugar para o repertório criado através das composições
416
BARROS, José D`Assunção. Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira nas seis
primeiras décadas do século XX, vol. II. Rio de Janeiro: 2004, p. 257.
417
DINIZ, André. Almanaque do choro. A história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 17.
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próprias que os chorões haviam realizados. Portanto, iniciaria uma nova etapa da música,
onde neste momento, passaria a existir, não só uma maneira de tocar, e sim um gênero
musical brasileiro.
Em se tratado dos chorões, podemos destacar alguns nomes importantes, que
compreende o período da fase inicial do “choro”. Dentro desse contexto, temos Joaquim
Callado (flautista e compositor) considerado pioneiro e pai dos “chorões”, Virgílio Pinto
(flautista e compositor), Saturnino (flautista), Juca Vale-violão (violonista), Miguel Rangel
(flautista), Luizinho (flautista), Viriato Figueira (flautista e saxofonista) entre outros.
André Diniz, em “almanaque do choro”, assim se refere:
Mestiço simpático, exímio flautista, mulherengo, e muito popular
na cidade do Rio de Janeiro, Joaquim Callado era filho da primeira
geração do choro. Ao seu lado estavam Viriato Figueira, também
flautista e saxofonista, Virgílio Pinto, compositor e instrumentista,
e o flautista Saturnino, entre tantos outros músicos que ajudaram na
criação do choro.
Geralmente o único que sabia ler a partitura, o flautista tinha papel
importantíssimo nos grupos de choro, pois incentivava o gosto pelo
choro aguçando as qualidades musicais dos acompanhadores de
ouvido.418
Podemos citar também, Alexandre Gonçalves Pinto em sua obra “o Chôro”:
“Os acompanhamentos eram violão, cavaquinho, oficlide,
bombardão, instrumentos estes que naquela época faziam pulsar os
corações dos chorões, quando eram manejados pelos batutas da
velha guarda, como sejam: Silveira, Viriato, Luizinho, etc.” 419
BIBLIOGRAFIA.
418
DINIZ, André. Almanaque do choro. A história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 15.
419
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Geraldo Sem-Pavor e Reconquista portuguesa: entre guerras pela memória e
histórias conectadas.
Luiz César de Sá Júnior
RESUMO: este artigo aspira a traçar algumas considerações a respeito da memória
constituída em Portugal de um dos heróis da chamada “Reconquista” contra os
muçulmanos, sobretudo a partir de crônicas produzidas por estes. Trata-se de Geraldo Sem
Pavor, figura que, procurar-se-á sustentar, em muito se assemelhou ao famoso El Cid
Campeador, de modo que suas histórias teriam estado, de algum modo, conectadas.
PALAVRAS-CHAVE:
Reconquista
portuguesa;
Histórias
Conectadas;
crônicas
muçulmanas medievais.
ABSTRACT: this article intends to understand the memory created in medieval Portugal
about one of the so-called Reconquest heroes against the Muslims, especially from
documents produced by them. The author also tries to show how close this captain
“Geraldo Sem Pavor” was to another important Iberic hero, El Cid Campeador, arguing
that their histories were somehow connected.
KEY-WORDS: Portuguese Reconquest; Connected Histories; Muslim medieval
chronicles.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Graduando do oitavo período do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Bolsista
de mobilidade acadêmica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) no primeiro semestre
do ano 2008-2009.
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Pretendo desenvolver, no presente texto, considerações iniciais – e um tanto
conjecturais - acerca de documentos de proveniência muçulmana concernentes a episódios
do processo de Reconquista e à posterior heroicização de alguns de seus personagens por
parte dos cristãos. Gostaria, sobretudo, de demarcar indícios que permitam-nos, hoje,
perseguir os caminhos de um dos expoentes de tais movimentos no reino de Portugal:
Geraldo Geraldes, aquele cujo nome que nos legou a tradição é Giraldo Sem Pavor. As
fontes escolhidas provêm da coletânea do professor António Borges Coelho, em Portugal
na Espanha Árabe (2 vols.)420.
Igualmente, é objetivo do artigo procurar surpreender a longevidade e os conflitos
em torno da memória constituída à volta dos guerreiros da Reconquista. Em geral
considerados bastiões da cristandade ibérica, seus salvadores, acabam por não parecer tão
virtuosos à luz da trama que se pode deles reconstituir a partir da leitura e cruzamento das
fontes. Portanto, também se coloca a questão de como as experiências medievais
sobreviveram, em constante mutação, durante séculos, tendo-lhes sido atribuídos variados
suportes - como se sabe, a figura mais proeminente desse período, El Cid, ganhou as telas
do cinema e dos quadrinhos, para ficar em exemplos gerais, inúmeras vezes. Tentar-se-á
demonstrar que, partindo de textos eruditos recuperados pela corte de D. Dinis e pelos
renascentistas, além de monumentos vários, o legado em debate alcançou uma posição de
destaque no âmbito do conhecimento enciclopédico ocidental. As tramas intrincadas nas
quais estiveram inseridos os ditos “heróis ibéricos” parecem ter se fincado solidamente
nesse imaginário, persistindo em suas representações de forma vigorosa. Todavia, cumpre
deixar claro que:
420
COELHO, António Borges. Portugal na Espanha Árabe: História. v. 2. Lisboa: Caminho, 1989. maxime
p. 304-310.
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“Não é absolutamente o caso de identificar, nas figuras e cenas de
heroísmo histórico, mentiras históricas e desmascará-las. Trata-se,
ao inverso, de tomar o mito histórico, as visualizações da História,
de seus agentes, contingências e produtos, como parte do
imaginário social – a outra face indissociável da prática social.”421
Ademais, cumpre ressaltar outra lente teórica pela qual passa o estudo.
A partir de recente trabalho do historiador Serge Grusinski422 – devedor confesso de
uma sugestão conceitual de Sanjay Subrahmanyam 423 -, pretendo utilizar a idéia de
“Connected Histories”, ou seja, a percepção de histórias que se desenvolvem sob o manto
protetor de um mesmo patrimônio cultural - muito embora tenham sido construídas
independentemente -, para demonstrar a interação peninsular da referida figura ambígua
que se evoca entre os personagens de destaque nas disputas contra os muçulmanos. Com
efeito, é de se insistir, para além de Geraldo e com uma relevância que o fez símbolo maior
dos movimentos supracitados, na figura de El-Cid Campeador.
Antes de antes de chegar aos referidos documentos, convém nuançar rapidamente o
contexto do aparecimento de Geraldo Sem Pavor e sua complexa relação com D. Afonso
Henriques, governante dos primeiros tempos daquele que viria a se consolidar como o
reino de Portugal.
Pouco se pode afirmar de suas origens. O aventureiro entra em cena por volta de
1165, quando D. Afonso Henriques, após seu estabelecimento em Coimbra, já havia
atingido a linha do Tejo, por meio de sucessivas investidas militares (impõem-se no
contexto as tomadas de Santarém e de Lisboa). Fato muito relevante, pois os grupos de
421
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Museus históricos: da celebração à consciência histórica. In: Como
explorar um museu histórico. Museu Paulista (USP): 1992, p.10.
422
GRUSINSKI, Serge. Les mondes mêlés de la Monarchie catholique et autres «connected histories».
Annales, Paris, v. 56, n. 01, 2001. p. 85-117.
423
SUBRAHMANYAM, Sanjay. Explorations in Connected History: from the Tagus to the Ganges. Nova
Iorque: Oxford USA trade, 2005.
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apoio do intempestivo Geraldo teriam sido arregimentados em Santarém, o que sugere um
primeiro momento de aproximação entre ambos.
Os ataques de Geraldo a diversos castelos e cidades explicar-se-iam pela delicada
conjuntura fronteiriça, que exigia grandes cuidados e promovia vultosas oportunidades de
ascensão e conquistas econômico-militares. Com Afonso Henriques estabelecido em
Coimbra, a perda de posições localizadas ao sul da cidade poderia ter sido fatal no que era
pertinente às suas pretensões. Portanto, as ações de Geraldo, se não foram decididas em
comum acordo com o governante, contaram, ao menos, com sua plena anuência.
Igualmente, convém lembrar a chegada de tropas almóadas procedentes do norte da África,
responsáveis por colocar os reinos de Taifas em xeque, e a campanha de enfraquecimento
de praças como a de Badajoz. Visto que tratava-se de um ponto estratégico – um baluarte
“desde a época califal” -, o emir convoca forças externas, valendo-se do argumento da
guerra santa. Também apresenta-se para a batalha Fernando II, rei de Leão424.
As praças tomadas com movimentos rápidos e, ao mesmo tempo, contrários à
prática militar dita honrada425, conferiram-lhe grande vantagem, para não mencionar a
desorganização em que se encontrava o inimigo; nas palavras de Christophe Picard, “c’est
avec une poignée d’hommes que Giraldo Sem Pavor s’empara des deux capitales de
l’Alentejo, Évora en 1165, Beja, en 1172, signe de l’absense d’un véritable investissement
militaire almohade dans la région.”426 Temos, pois, uma conjuntura de reorganização do
espaço ibérico, em que não um ou dois, mas diversos grupos embatem-se simultaneamente,
de modo a formar um espaço tempestuoso o suficiente para que dele se retirassem
424
“A intervenção do rei de Leão era compreensível. Em 1153, assinara em Sahagún um acordo com seu
irmão Sancho III, no qual reservava para si a zona do Alentejo e do Algarve, com os territórios de Niebla,
Montanchez e Mérida, enquanto Sancho III se propunha a conquistar as províncias que ficavam a oriente
dessas cidades. Sendo assim, a posse de Badajoz pelos Portugueses impedia a expansão dos Leoneses para
sul.” MATTOSO, José. História de Portugal: a Monarquia Feudal. v. 2. Lisboa: Editorial Estampa, s/d. p.
78
425
Veja-se, a esse respeito, o trabalho de DUBY, Georges. Uma batalha na Idade Média: Bouvines, 27 de
Junho de 1214. Lisboa: Terramar, 2005. maxime p. 85-90.
426
PICARD, Christophe. Le Portugal Musulman – L’Occident et l’Al-Andalus sous domination islamique.
Paris: Maisonneuve et Larose, 2000. p. 106.
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elementos para a posterior elevação de seus personagens a posições principais, entre os
virtuosos e os desgraçados. Onde estará Giraldo?
GIRALDO SEM PAVOR ENTRE A VILANIA E O HEROÍSMO.
Iniciemos com uma das crônicas muçulmanas, atribuída a Abd Al-Malik ben Sahib
Asala. Relata-nos o autor:
“O pérfido galego Afonso Henriques, senhor de Coimbra – o
maldito de Deus! - conhecia bem a valentia do cão do Giraldo. O
pensamento constante deste era tomar à traição as cidades e os
castelos, só com a sua gente: ele tinha os muçulmanos da fronteira
sob o terror (das suas armas).”427
Como se lê, podemos assumir a já citada possibilidade de Afonso Henriques agir
consciente das intenções de Giraldo como um dado pertinente428. De modo análogo, temos
respaldo documental que assegura que os ataques não dependiam das tropas regulares. A,
seguir, o autor discorre acerca dos métodos de batalha do mercenário, tal como se segue:
“Este cão (procedia assim): avançava, sem ser apercebido, na noite
chuvosa, escura, tenebrosa, e, insensível ao vento e à neve, ia
contra as cidades (inimigas). Para isso levava escadas de madeira
de grande comprimento, de modo que com elas subisse acima das
muralhas da cidade que procurava surpreender; e, quando a vigia
muçulmana dormia, encostava as escadas à muralha e era o
primeiro a subir ao castelo...”429
O cronista prossegue, afirmando que os homens de Giraldo entravam na cidade
com enorme furor, ora aprisionando, ora executando aqueles que foram surpreendidos.
427
COELHO, António Borges. Op. Cit. p. 304-305.
Fazem eco à interpretação MATTOSO, José. Op. Cit. p. 77 e PICARD, Christophe. Op. Cit. p. 113.
429
COELHO, António Borges. Op. Cit, p. 305.
428
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Parece que a prática de levar reféns que pudessem ser trocados por bens valiosos era
recorrente, sem mencionar a recolha do butim, ponto crucial das invasões. Chama a
atenção, ainda, o fato de que esse modus operandi perseguirá todas as representações
posteriores acerca do personagem em estudo. À partida, os procedimentos seriam
toleráveis por se tratar de uma batalha contra os inimigos da fé cristã – e entenda-se
aqui o peso da influência memorialista daqueles interessados em construir uma versão
gloriosa do passado nacional, rearticulando as declarações contidas nas fontes
muçulmanas disponíveis.
Encontramos, nesse sentido, uma descrição em pormenor da ação realizada em
Évora, publicada pelo humanista André de Resende. Seu trabalho, a “História da
Antigüidade da cidade de Évora”, atendia a um duplo interesse; por um lado, (i) visava
a solidificar na corte lusa de então o papel de destaque exercido por aquela localidade,
uma das primeiras regiões ao sul do Tejo a (re)confirmar-se cristã (uma cidade que
queria para si o prestígio que a permitia nomear-se “mui nobre e leal”430); por outro,
(ii) objetivava, anacronicamente, identificar identidades religiosas vitais no que
respeita ao estabelecimento de uma identidade nobre no passado mais distante
possível431. Os capítulos dedicados à história da região, diz-nos Resende, foram
traduzidos de uma obra árabe medieval, surgida pela pena do mouro Rasis. No entanto,
“segundo o escreve confuso, é necessário per conjecturas adivinhar”432, o que deve
despertar os maiores alertas ao historiador que confronta-se com o documento. Sob o
signo da interpretação do que não está claro, o humanista engendra um artifício
430
O professor Serrão demonstra-nos que o desejo maior de Resende era “apregoar: Évora, a segunda cidade
de Portugal, era bem a primeira em ‘lealdade amor e serviço da real coroa’. André de Resende fortalecia
assim a vontade dos eborenses que aspiravam a que a Monarquia para aqui transferisse a capital do reino”.
Cf. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Figuras e Caminhos do Renascimento em Portugal. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1994. p. 365.
431
Essas tentativas parecem ser recorrentes na tradição ibérica, basta pensar na mitologia criada para o
célebre episódio de Covadonga, que pretendia-se baluarte final da fé cristã, símbolo, por definição, do início
da Reconquista.
432
RESENDE, André. História da antiguidade da cidade de Évora. In: RESENDE, André. Obras
Portuguesas. Lisboa: Sá da Costa, s/d. p. 43.
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funcional, que o autoriza a “explicar”, trazer o texto à compreensão como bem
entender. Vejamos alguns excertos:
“Giraldo Sem-Pavor foi nobre cavaleiro em tempo de El-Rei D.
Afonso Henriques; e, como em o dito tempo com as revoltas das
guerras e novidade do reino os nobres eram desmandados, pode ser
que faria alguma delito que me nom consta, ou haveria outra cousa
per que viesse em desgraça de El-Rei, de maneira que lhe conveio
ausentar-se e sair da terra dos Cristãos para escapar da ira de El-Rei
e lançou-se em este Alentejo, que então era todo de mouros sob o
senhorio de El-Rei Ismar...433 [grifos meus]
Ainda que alguma dúvida seja lançada sobre a situação em que se achava
envolvido Geraldo, temos a clara intenção de que ele fosse um nobre cavaleiro em más
circunstâncias, sincero cristão apesar de ocasional mercenário. Resende, a seguir,
investe em cores mais realistas, definindo que “nom duvido que fariam alguns
desmandos em roupa de cristãos, ca [porque] com os Mouros tinham pazes; por a qual
razão este Sumário lhes chama ladrões”, mas o traço redentor já está definido.434
Assim, abre-se a possibilidade de apenas repetir o que fora dito por Rasis, que narra a
invasão de Geraldo em tom propositalmente cruel.
“Esta atalaia determinou Geraldo primeiramente tomar; e, sabendo
que em ela estava um mouro com uã moça, sua filha, e nom mais,
partiu de noite com seus cavaleiros a grão secreto e foi lançar
detrás do dito outeiro; e […] foi contra a torre; […] cercou-se todo
de rama.
Chegou à torre […], que o mouro que até então velara se fora a
dormir e encomendara a vela à filha, a qual, como moça e pouco
cuidadosa de tal cuidado, se socornou na janela e adormeceu.
Alegre o cavaleiro de tão boa conjunção, desatando-se com a rama
trepou e, lançando mão à moça, deu com ela abaixo, de modo que
nunca mais falou nem fez rumor algum; e, entrando na torre, cortou
433
434
RESENDE, André. Ibidem. p. 48-49
Ibidem, p. 49.
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a cabeça do mouro, que achou seguramente dormindo e entregue ao
primeiro sono, e por ver que a hora da noite era inda tal, que tinha
bem espaço para, sem fazer sinal, ele per si tornar aos cavaleiros,
cortou também a cabeça da moça e com elas ambas nas mãos se
tornou a eles, animando-os e dando-lhes bom agoiro com a cómoda
oportunidade que achara.435 [grifos meus]
Revela-se, claramente, que em se tratando de uma batalha contra o inimigo
ancestral, pouco importam os métodos e, para mais, uma imposição sangrenta tem
respaldo. O vilão mercenário ganha, pouco a pouco, contornos heróicos. Porém, nas
crônicas mais distantes no tempo, a figura que se nos apresenta é ainda incerta. Retomemonas.
Seguindo a crônica moura, alguns anos depois, em 1170, há novo cerco, em que
Geraldo tenta adiantar-se e capturar a cidade antes que Fernando II o faça, o que além de
tudo é um sinal da fragilidade da política de alianças empregada naquele período.
Durante o cerco, consegue interceptar um carregamento de víveres enviado pelos
almóadas de Sevilha, matando a maioria dos homens ligados a sua defesa.
De todo modo, acaba por ser derrotado, indo refugiar-se em Lobón, “na estrada que
ligava Badajoz a Sevilha”, o que o colocava, entretanto, em posição privilegiada para se
assenhorar de outros víveres e materiais diversos que passassem por aquele caminho.
Entre 1173 e 1174, teria conseguido invadir Beja, destruindo suas muralhas e
incendiando a cidade.
A partir daí, os caminhos trilhados por Geraldo tornam-se ainda mais confusos e de
difícil apreensão. As suas duas faces, a de herói da cristandande e da Reconquista, e a de
vil mercenário, disposto a atuar do lado que lhe pagasse mais, confundem-se. Podemos
seguir as pistas disponíveis em duas versões para a fase final de sua vida.
435
COELHO, António Borges. Op. Cit. p. 309.
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A primeira versão provém da crônica do Anônimo de Madrid e de Copenhague.
Nela temos que:
“No ano de 569 [11 de agosto de 1173 a 1 de agosto de 1174],
chegou (a Sevilha) o renegado, o infiel Giraldo que tomou por
surpresa a cidade de Beja e outros castelos e cidades, assim como
devastou as terras cultivadas e habitadas. Era alcaide de Ibne
Arrine (Afonso Henriques) e capitão de seus soldados.”436
Importa destacar que o autor do relato entende que Geraldo tinha uma posição
preciosa nas forças de D. Afonso Henriques, o que vai ao encontro do que proporá André
de Resende, e ao que se estabelecerá como versão canônica.
“Chegaram ele e seus companheiros à capital do califa (que era
Iúçufe) para, submissos e obedientes, se porem ao serviço deste e
provar-lhe que ele renegava os cristãos seus irmãos.”
“Foi o caso muito falado e o califa acolheu-o bem, mandando que
lhe dessem tudo o que precisasse e que o honrassem.”
“Ibne Arrine, senhor de Coimbra, quando disto foi sabedor, teve
dele muito pesar e escreveu-lhe secretamente para que voltasse,
usando de astúcia.437 [grifos meus]
O fato de Afonso Henriques procurar realocá-lo nas hordes cristãs denota sua
necessidade dos regimentos do Sem Pavor, que devia ter plena consciência disso. Jogava,
portanto, com ambos, procurando a posição que lhe seria mais rentável - e aqui afastamonos da faceta do herói sacralizado por cumprir com um dever puramente cristão.
Nessa versão, Giraldo é preso algum tempo depois, sendo conduzido ao norte da
África, onde permanece encarcerado. Pensa em fugir, mas seus planos são descobertos e é
assassinado, emblematicamente, por decapitação, o que poderia sugerir que o cronista tinha
436
437
Idem.
Idem, Ibidem.
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consciência dos métodos do mercenário, impondo-lhe, assim, o mesmo tipo de sofrimento
na hora da morte (em torno de 1174).
A segunda versão provém do códice de Albaidac – chama-se “A morte espera em
Drá”. Partamos do trecho principal:
“Depois o príncipe dos crentes (Iúçufe, que estava em Sevilha)
partiu para a cidade de Marraquexe e levou com ele o cristão
chamado Guerando (Giraldo) que mandou residir para o Suz (cuja
capital é Tarudante e onde está Agadir) com o seu senhorio.
Foi daí que ele escreveu para Lisboa a Ibne Arrine para lhe dizer as
condições favoráveis em que se achava ali, junto do mar, e
acrescentava:
“– Se te parecer, manda navios armados para te apossares deste
país, porque podes contar comigo.” [grifos meus]
Mas o portador desta missiva foi preso e o príncipe dos crentes
mandou a Guerando que viesse falar-lhe à cidade de Marraquexe.
Assim foi.438
A leitura indica que a suposta traição tem início com Geraldo, não com o rei, o que
clarifica uma diferença significativa para o outro relato. Resgata-se-lhe sua dimensão
heróica, com uma morte que só aconteceu porque partiu dele o interesse em admoestar seu
líder a atacar o Marrocos.
.Suas tropas (350 homens) teriam sido distribuídas entre os senhores muçulmanos,
que o mandaram matar quando isso foi feito. Os eventos referidos teriam ocorrido entre 24
de setembro de 1169 e 12 de setembro de 1170.
As datas possíveis da crônica entram em franca contradição com os relatos que
rememoram a tomada de Beja (em 1173). No entanto, José Mattoso aponta que essa data
pode estar incorreta, pois evento muito semelhante teria ocorrido 10 anos antes439.
438
439
COELHO, António Borges. Op. Cit, p. 310.
MATTOSO, José. Op. Cit. p. 78.
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Dadas as dificuldades em definir uma versão mais límpida, resta-nos perscrutar
possíveis interpretações para o que se fez dos vestígios de Geraldo e de sua memória.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seja como for, graças aos avanços de Geraldo tornou-se possível sustentar as
vitórias militares alcançadas nas últimas décadas, mormente a de Évora. Aquela cidade não
voltou a cair em mãos dos mouros, embora outras tenham sido perdidas entre 1184 e 1191,
com a retomada das invasões almóadas440.
Daí a necessidade de contemplar, neste breve estudo, a crônica do mouro Rasis e
sua interpretação por André de Resende. Évora conservou a memória heróica de Geraldo
de forma singular, concedendo-lhe status privilegiado. A figura que representa a mui nobre
e sempre leal cidade de Évora é, portanto, a de um não tão nobre e mui desleal cavaleiro.
Embora o estudo rigoroso dos textos revele ser quase impossível determinar se o caudilho
fora um vil ou um virtuoso cavaleiro, e esta é de fato uma questão desnecessária ao
trabalho historiográfico, podemos determinar com segurança que a imagem que se decidiu
ter dele foi preenchida pela segunda opção.
Por fim, não seria lícito questionar se ao Cid Português não se soma o Cid
espanhol? El campeador também teve sua trajetória marcada por acordos e conflitos entre
muçulmanos e defensores da cristandade. Teve, de modo análogo a uma das versões de
Geraldo, uma morte gloriosa e redentora; para mais, desfrutou de uma memória e de um
futuro de prestígio. Foi, desde então, de fato, la encarnación del heroismo y espiritu
caballeresco de la raza. Ambos cumpriram a função histórica de baluartes do
restabelecimento da “boa fé” nas terras ibéricas; mesmo sem jamais terem dividido o
440
Ibidem. p. 79.
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campo de batalha, suas trajetórias estiveram conectadas por obra das muitas gerações que
lhes sucederam. Igualmente, terão servido aos propósitos muçulmanos de propaganda –
basta retomar a suposta traição e perfídia de Geraldo, tão exaltada pelos cronistas mouros.
Na síntese de Boxer:
Como se sabe, os séculos durante os quais cristãos e muçulmanos
lutaram pelo domínio da península ibérica não foram épocas
permanentes de intolerância religiosa nem de guerra. Tanto o herói
castelhano El Cid Campeador como seu equivalente português
Geraldo Sem Pavor serviram aos governantes cristãos e
muçulmanos, conforme a ocasião.441
Tais premissas permitem postular a presença de um modelo ibérico do herói
reconquistador tramado muito tempo após a existência daqueles homens. Segundo o
conceito, já referido, que vem sendo elaborado por Serge Grusinski e Sanjay
Subrahmanyam, tratar-se-ia de uma história conectada, interligada por uma tradição
unificadora por ter propósitos análogos, embora especificidades, por óbvio, tenham
persistido. É possível que o movimento supracitado tenha tido seus primeiros instantes –
em termos de produção e/ou resgate de textos – na corte de D. Dinis.
“Enquanto o primeiro Livro de Linhagens se constituía à margem
da corte como reacção da nobreza senhorial a uma política régia
centralizadora (cfr KRUS 1993), a primeira tradução de uma
importante obra historiográfica era ordenada por D. Dinis (que
assim seguia os passos de seu avô Afonso X de Castela,
fomentando o desenvolvimento da historiografia pensinsular). A
Crônica do Mouro Rasis foi traduzida do árabe para o português
no início do século XIV, por Gil Peres (morto antes de 1315),
clérigo de Pero Anes de Portel, com a colaboração de mestre
Maomé. O texto resultante da tradução veio a ser parcialmente
integrado, com alterações, na Crônica Geral de Espanha de 1314,
compilada por D. Pedro, conde de Barcelos. O manuscrito
português da Crônica do Mouro Rasis perdeu-se no terramoto de
441
BOXER, Charles. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 16.
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1755, conservando-se dele apenas alguns fragmentos copiados por
André de Resende (1533), a quem o manuscrito pertenceu. Por
outro lado, tendo sido feita no século XIV uma tradução castelhana
do texto português, dela subsistem testemunhos que permitiram a
Diego CATALAN e Maria Soledad de ANDRÉS (1975) ensaiar a
reconstituição da crônica (em versão castelhana).442 [grifos meus]
Voltamos a vislumbrar o texto de Resende, escrito importante por seu caráter
confirmador das supostas virtudes da retomada de Évora a despeito dos vícios também por
ela trazidos. Partiu, como se vê, de um manuscrito consagrado pela corte lusa, dado o
destaque de ter sido o primeiro documento traduzido pela chancelaria do referido monarca,
imersa em um ambiente cultural propício.
O ideal de cavaleiro reconquistador acabou por ganhar espaço na tessitura das
mentalidades do Ocidente; coube a El Cid o papel principal. Não é por mero acaso que o
texto basilar de sua lenda conste como um dos tesouros da principal biblioteca espanhola;
também não é por acaso que, há algumas décadas, tenha tomado forma no cinema o
campeador e sua imagem messiânica, salvando seu exército da derrota já morto,
empalhado sobre seu cavalo – para não mencionar sua presença noutros suportes. No que
diz respeito a Geraldo, para além do brasão, há que lembrar que seu nome continua a ser
rememorado diariamente, em muito menor grau quando comparado ao seu duplo, pois a
cidade de Évora mantém a praça do Geraldo. Em seus arredores, temos uma estátua de
aparência cruel, na qual vemos o guerreiro no instante em que arrancou as cabeças do
mouro e da moura, como que exibindo o poder e o justo castigo merecido por aqueles que
desafiaram a fé cristã. A honra cavalheiresca desvaneceu; o mito, persistiu, entre batalhas
pela memória e a guerra pela Reconquista.
442
Martins, Ana Maria. Emergência e generalização do português escrito: de D. Afonso Henriques a D.
Dinis. In: MATEUS, Maria Helena Mira. Caminhos do português. Lisboa: BNL, 2001. p. 42, nota 24.
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A atuação dos oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica, 1711-1715.
Luiz Alberto Ornellas Rezende443
RESUMO: O objetivo deste artigo é expor a metodologia utilizada para estudar a atuação
dos homens que integraram o Senado da Câmara de Vila Rica, nos primeiros cinco anos de
seu funcionamento. A fonte utilizada são as atas do Senado da Câmara de Vila Rica. A
pesquisa foi dividida em duas partes: 1) elaboração da relação de nomes e cargos dos
indivíduos que aparecem nas atas; 2) elaboração de um plano de classificação dos assuntos
tratados nas reuniões. Os resultados deste trabalho servirão de base para um futuro
aprofundamento das relações da Câmara de Vila Rica e seus componentes.
PALAVRAS-CHAVE: metodologia; base de dados; Vila Rica.
ABSTRACT: The objective this article is to present the methodology used to study the
actions of men who joined the Senate Chamber of Villa Rica in the first five years of its
operation. The font used is the writing of the town council of Villa Rica. The research was
divided into two parts: 1) drawing up the names and positions of individuals who appear in
the writing; 2) develop a classification scheme discussed at the meetings. The results of
this study will serve as a basis for further development of relations of the Board of Vila
Rica and its components.
KEYWORDS: methodology; database; Vila Rica.
Há um fato que ocorreu no final do século XVII na região onde encontram-se
443
Graduando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e bolsista de Iniciação
Científica da FAPEMIG, no projeto “Os oficiais da Câmara Municipal de Vila Rica, 1711-1751”, orientado
pelo professor Dr. Angelo Alves Carrara (UFJF).
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atualmente as cidades de Mariana e Ouro Preto, que mudaria a história do Brasil: a
descoberta do ouro pelos bandeirantes paulistas. A descoberta transformou profundamente
a vida na colônia e criou uma verdadeira corrida para as áreas auríferas. Os paulistas,
descobridores, e os emboabas (reinóis e pessoas oriundas de outras regiões) travaram uma
disputa pelo poder, objetivando a ocupação e dominação dos espaços próximos aos pontos
de extração do metal precioso. Esta disputa se agravou e culminou, na primeira década do
século XVIII, no episódio conhecido como Guerra dos Emboabas.444
Poucos anos após o término do conflito armado, mais precisamente em julho de
1711, Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho transforma alguns povoados da região em
vilas. Isto inclui Ouro Preto, então Vila Rica de Albuquerque. A elevação destes locais e
conseqüente criação de suas respectivas Câmaras, demonstra a necessidade e urgência de
consolidar a ordem na região, de fazer presente o poder do rei nas áreas em que se extraia o
ouro, e principalmente, de tentar equilibrar paulistas e emboabas.
Muitos trabalhos de qualidade abordam vários aspectos e utilizam várias fontes
relacionadas ao Senado da Câmara de Vila Rica. Entretanto, a pesquisa que desenvolvemos
não pretende repetir, ou mesmo continuar os passos trabalhados por outros autores.445
Pretendemos aprofundarmos nas questões ligadas à atuação dos oficiais do Senado da
Câmara de Vila Rica. Queremos compreender melhor a dinâmica de funcionamento da
instituição, buscando, sempre que possível, estabelecer um paralelo entre o ideal
(representado pelo que mostra-se presente na legislação da época)446 e o real (entendido
como o que de fato ocorria na instituição).
Apresentaremos, neste artigo, a metodologia que utilizamos durante a pesquisa,
evidenciando os avanços e recuos que mostraram-se necessários, como ocorre em toda
444
Ver VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1999.
Por exemplo: RUSSEL-WOOD, A. J. R. O governo local na América portuguesa: um estudo de
divergência cultural. Revista de História (USP), v. 55, n. 109, São Paulo, p. 25-79, 1977.
446
Me refiro às Ordenações Filipinas, publicadas pelo Senado Federal em 2004.
445
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pesquisa científica, e abordando pontos de sucesso e outros que consideramos ainda
problemáticos, não solucionados. Portanto, o objetivo deste artigo é compartilhar com
outros pesquisadores e interessados pelo assunto, os métodos que estamos adotando nesta
pesquisa.
O artigo está dividido da seguinte forma: primeiro descrevo em detalhes a fonte
central que utilizo para iniciar a pesquisa, e, a partir desta descrição demonstro, também
em detalhes, os caminhos que adotamos; segundo, trato da primeira frente da pesquisa, que
tem como foco a relação de homens que ocuparam ofícios no Senado da Câmara entre
1711 e 1715; terceiro, trato da segunda frente da pesquisa, que tem como foco os assuntos
que aparecem nas atas da instituição, também entre 1711 e 1715; quarto, mostro alguns
encaminhamentos, que pelo pouco que revelam frente ao que virá com o desenvolver da
pesquisa, creio não podem levar o nome de resultados ou conclusões, mesmo que
acrescidos do termo “parcial”. São amostras, encaminhamentos, alguns pontos que revelam
o quanto interessantes podem ser os resultados futuros.
A fonte central, na qual me baseio para levantar os dados presentes até o momento,
são as Atas do Senado da Câmara de Vila Rica, 1711-1715. O original encontra-se na
Biblioteca Nacional. Contudo, este material foi transcrito e publicado nos Anais da
Biblioteca Nacional, número 49, de 1927, e encontra-se disponível no site da instituição.
Utilizo como base nesta pesquisa este material que foi transcrito e publicado.
Esta fonte é composta por uma série de termos de vereação. Estes termos são textos
escritos pelo Escrivão da Câmara que registram as questões discutidas nas reuniões da
Câmara e as decisões tomadas. São, até o final do ano de 1713, textos normalmente curtos.
A partir de janeiro de 1714, com o início da cobrança dos quintos pela Câmara, nota-se que
os textos tendem a ficar mais longos, com algumas exceções, evidentemente.
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O primeiro passo foi a leitura dos termos de vereação. Durante a leitura, foi feita a
extração dados importantes presentes na fonte. Alguns dos dados extraídos foram: data das
vereações, nomes dos oficiais presentes e referidos cargos exercidos e os assuntos tratados
nas reuniões.
Feito esta primeira etapa, sistematizamos os dados extraídos da fonte, montando um
banco de dados informatizado visando uma maior praticidade, organização, rapidez e
clareza na obtenção de resultados. Neste momento observamos a necessidade de se dividir
em duas frentes a pesquisa: a primeira deve se concentra na montagem de uma relação com
todos os nomes ligados à Câmara que aparecessem nas vereações, e ainda, as informações
ligadas à estes nomes, como por exemplo os títulos, cargos e funções exercidas; a segunda
frente consiste em definir os assuntos discutidos nas vereações, e neste ponto vi a
necessidade de dividir estes assuntos em dois subgrupos, rotinas administrativas e eventos,
os quais tratarei em detalhes nas linhas que seguem.
Uma observação faz-se necessária neste instante. Há uma diferença essencial que
legitima esta divisão metodológica em duas frentes. A primeira frente, referente, como dito
acima, à montagem de uma relação com os nomes e demais informações dos homens que
exerceram ofícios ligados ao Senado da Câmara no período selecionado, é, como se pode
imaginar, uma atividade que pode ser classificada como objetiva, pois os dados aparecem
explicitamente nos termos de vereação. Em oposição à objetividade da primeira frente,
temos a subjetividade da segunda frente. Nesta frente é necessário ler o termo de vereação
e então montar um rótulo para cada discussão estabelecida. Este rótulo é dado pelo
pesquisador a partir da interpretação das discussões presentes no documento, ou seja, é
uma tarefa que está nas mãos do pesquisador, uma tarefa onde ele influi diretamente.
Assim, deve haver uma coerência do pesquisador com as informações contidas no
documento. Esta coerência, ao meu ver, só pode ser alcançada mediante o contato
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prolongado do pesquisador com a fonte, pois é este contato que amadurece sua visão.
Enfim, o que quero dizer é que, embora subjetiva, a montagem de um plano de
classificação dos assuntos contidos nos termos de vereação não é necessariamente
artificial. Seria artificial se não respeitasse o tom das discussões presentes na
documentação, se não respeitasse a lógica de funcionamento da instituição, lógica esta que
se torna perceptível não com uma leitura simples das atas, mas com um incansável
exercício de leitura e releitura, avanços e recuos, tentativas e erros nas definições de
assuntos. Ao ler, por exemplo, um termo de vereação de 1711, pode-se ter dúvidas de
como classificar determinada discussão, então, coloca-se um rótulo temporário. Com o
prosseguimento da leitura, pode-se (e normalmente é o que ocorre com freqüência)
deparar, em outros anos, em outras conjunturas, com a mesma discussão sendo levantada,
mas agora, envolvendo outras pessoas e outro Escrivão, que pode, dependendo das
circunstancias, detalhar mais os fatos e fornecer mais elementos para uma definição mais
ajustada à dinâmica da instituição.
Na primeira etapa do trabalho, o objetivo básico era elaborar uma lista com o nome
dos oficiais ligados à Câmara que aparecem nos termos de vereação entre 1711 e 1715.
Além dos nomes, levanto outras informações relevantes que, as vezes, aparecem nas atas,
como cargos, títulos e funções.
Antes de prosseguir, devo alertar para o que estamos chamando de oficiais. Não
estamos, neste primeiro momento, nos limitando aos cargos de maior destaque, entenda-se:
Juiz Ordinário, Vereadores, Procurador do Conselho. Agora, além destes cargos, que são,
junto com o Escrivão da Câmara, os mais presentes nas reuniões, procuro listar todos os
nomes que exerceram algum oficio ligado à instituição. Ou seja, quando dizemos oficial,
neste momento, estamos nos referindo aos homens que exerceram algum ofício.
Feito este esclarecimento, prosseguimos. Relacionamos cerca de 140 nomes que se
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encaixam nesta descrição. Evidente que não iremos, ao seguir da pesquisa, trabalhar
profundamente com todos. O objetivo neste momento é listar todos, para, em seguida,
selecionar um grupo para trabalhar com mais profundidade, possivelmente os oficiais que
mais vezes aparecem nas reuniões, ou seja, os oficiais votantes. Todavia, ter uma lista dos
Juízes de ofício, almotacés, lançadores dos quintos (a partir de 1714, quando este passa a
ser arrecadado pela Câmara), entre outros cargos, seria mais que interessante, de grande
utilidade à outros pesquisadores.
Como dito anteriormente, alguns pontos foram problemáticos. Além de efetuar a
coleta e sistematização das informações relacionadas aos oficiais, tentamos, durante alguns
meses, sistematizar também a freqüência com que os oficiais freqüentavam as vereações.
Contudo, uma incoerência recorrente presente na fonte, fez com que levantássemos
dúvidas quanto à viabilidade do levantamento destes dados utilizando apenas esta fonte.
Normalmente encontramos, no final do termo de vereação, a assinatura dos oficiais
presentes, exceto a do Escrivão, que redige o termo. Mas, já em 1713 começa a constar na
abertura do termo os nomes dos presentes (ver exemplo abaixo), além das assinaturas
finais. O problema é que, em vários termos de vereação, alguns nomes que constam na
abertura não são iguais aos que contam nas assinaturas finais. Como afirmei acima, tal fato
é recorrente a partir de 1713, quando há esta mudança na abertura dos termos. Veja um
exemplo deste tipo de incoerência em um dos termos de vereação:
[...] Aos vinte e seis dias do mês de fevereiro de mil setecentos e
quatorze anos nas casas da Câmara, estando juntos os oficiais dela
o Juiz Ordinário Ventura Ferreira Vivas, os Vereadores Capitão
Manuel Gomes da Silva, Domingos Francisco de Oliveira, e o
Procurador do Conselho o Capitão Antônio Martins Lessa,
resolveram o seguinte: [...] Acordaram deferir as partes e despachar
petições, e por não haver mais o que despachar houveram a
vereação por acabada de que mandaram fazer este termo que todos
assinaram. E eu, Bento Cabral Dessa, escrivão da Câmara o
escrevi.
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Vivas – Silva – Costa – Lessa 447
O nome que grifamos, Domingos Francisco de Oliveira, não consta na assinatura, e
aparece outro vereador, de sobrenome Costa, que não consta na abertura. Se este fosse um
caso isolado, poder-se-ia relevar, mas, pelo contrário, é um fato recorrente, e ocorre não só
entre vereadores, mas entre vários cargos. Poder-se-ia alegar também que é um erro de
transcrição, mas, é recorrente, o que nos faz desacreditar nesta possibilidade. Fato é que,
com os elementos que temos, não conseguimos ainda compreender esta aparente
incoerência. Talvez haja alguma explicação, e em breve, cruzando os dados das vereações
com outras fontes, poderemos chegar a alguma conclusão.
Seguimos para a segunda frente, relacionada aos assuntos discutidos nas vereações.
Durante a leitura foi possível observar duas formas de discussão. Uma ligada ao que era
rotineiro, ligado à administração da vila, e outra que não estava inclusa nesta atividade
rotineira, ao contrario, era eventual. Assim, dividimos os assuntos extraídos dos termos de
vereação e rotulados, em: 1) rotinas administrativas; 2) eventos.
As rotinas administrativas são discussões relacionadas ao cotidiano da
administração da vila, e são geralmente: eleições, arrematações de rendas, correições
448
,
posturas, despacho de petições.
Os eventos são fatos que não ocorrem de tempos em temos, como as rotinas.
Alguns exemplos são: notícia de paz com a França em 12/11/1713449; ordem de colocação
de luminárias para se comemorar nascimento do infante em 17/11/1714450; prisão de oficial
447
BIBLIOTECA NACIONAL. Atas da Câmara Municipal de Vila Rica. Anais da Biblioteca Nacional, Rio
de Janeiro, v. 49, 1927. p. 314. Grifo nosso.
448
Para mais informações sobre a forma como eram feitas as correições, ver BOTELHO, Tarcísio Rodrigues;
ABDO, Patrícia Ferraz. Administração camarária e comércio na Vila Rica do século XVIII: os almotacés e as
correições, 1754-1777. Caminhos da História, Montes Claros, v. 13, n. 2, p. 23-40, 2008.
449
BIBLIOTECA NACIONAL. Op. Cit. p. 285.
450
Ibid., p. 345-346.
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de ferreiro por desacato aos oficiais do Senado da Câmara em 30/1/1714451 e discussão
visando a implantação de uma nova rotina no Senado da Câmara, a arrecadação dos
quintos, em 6/1/1714452.
Note que a metodologia adota para as rotinas não contempla os eventos. Para se
analisar as rotinas, é mais adequado utilizar o método quantitativo. Ao contrário, quando se
analisa os eventos, pouco numerosos, quase nulos se comparados às rotinas, o método mais
adequado é o qualitativo.
A quantificação destas rotinas administrativas e destes eventos está sendo feita, mas
ainda não há resultados conclusivos. Então, não temos ainda números para fornecer, e por
isso, como havia dito no início deste artigo, não tenho resultados concretos. Assim, retomo
a proposta inicial de demonstrar o método que estamos utilizando, seus pontos fortes e
fracos.
Há eventos que parecem pouco relevantes para a esfera local, como os que citei
acima, mas, há outros, que simplesmente mudam as prioridades da instituição em estudo.
Um exemplo é a discussão para se começar a arrecadar o quinto. Ela é eventual, pois não é
recorrente, é algo único. Não se pode confundir esta discussão com a que seguirá depois,
que é propriamente o correr da arrecadação, uma rotina administrativa, a rotina de se
arrecadar. Este evento é sim muito relevante, pois afeta profundamente a instituição e por
isso, em termos qualitativos, tem um peso maior, mas em termos quantitativos é
irrelevante.
Conforme explicado nas linhas acima, apresento alguns dados interessantes que já
possuímos. São dados simples, mas que revelam informações preciosas, que tentem a
reforçar a importância que acabei de destacar quanto à implantação da rotina de
arrecadação dos quintos.
451
452
Ibid., p. 305-306.
Ibid., p. 293-294.
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O recorte adotado, 1711 até 1715, embora pequeno, é relevante pois inclui a
mudança que ocorre em 1714, que, como já dito, corresponde ao momento em que o
Senado da Câmara passa a ficar responsável por arrecadar os quintos.453 Veja abaixo o
gráfico que mostra o número de reuniões do Senado da Câmara no período em questão:
Reuniões de 1711-1715
28,21%
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
78
18,37%
25,58%
22,86%
49
43
35
58,33%
total do 1º mês
total do ano
22
7
12
11
1711
9
8
1712
1713
1714
1715
Com base neste gráfico que elaboramos a partir da sistematização das reuniões da
instituição,
podemos
constatar
algumas
indicações
interessantes.
Analisando
primeiramente o numero anual de reuniões, vemos que no ano de 1711 tivemos apenas 12
reuniões, o que se explica por ser o ano de fundação, e pelas atividades terem começado
em julho, também pela própria falta de estrutura, visto que não havia se quer um prédio
próprio para abrigar a instituição. Em 1712, ano em que cria-se de fato uma estrutura
própria para Câmara, ocorre um número maior de reuniões, 43. Em 1713 as reuniões
somam 35. Em 1714 o número mais que dobra se comparado ao ano imediatamente
anterior, são 78 reuniões durante o ano, o equivalente aos anos de 1712 e 1713 juntos.
Observe que o ano seguinte, 1715, as reuniões voltam a um número próximo ao dos anos
453
Para mais informações quanto à forma de se arrecadar os quintos ao longo do tempo em Minas Gerais, ver
CARRARA, Angelo Alves. A Real Fazenda de Minas gerais: guia de pesquisa da Coleção Casa dos Contos
de Ouro Preto, volume 2. Mariana: UFOP, 2004.
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posteriores à 1714, embora o número continue acima da média, são 49 reuniões. Nota-se a
semelhança entre o excesso de reuniões de 1714, com o início da cobrança dos quintos
pelo Senado da Câmara, também neste ano.
Vamos agora analisar o total de reuniões realizadas no primeiro mês de cada ano.
Isto é importante pois, normalmente, é no primeiro mês que se concentra parte
considerável das atividades de todo o ano. Isto se da pois, no início do ano que
normalmente ocorre as eleições e posses e outras rotinas administrativas. Vemos que 1711
não pode ser levado em conta, visto que mais de 50% das reuniões do ano ocorreram em
julho, justo por ser o primeiro mês de funcionamento da instituição. Foi um mês atípico,
muito precisava ser definido, como atribuições e ganhos de cada cargo. Em seguida, no
ano de 1712, com as atividades mais estáveis, vemos que 25,58% das reuniões do ano
ocorrem em janeiro, ou seja, o primeiro mês concentra cerca de 1/4 de todos as discussões
do ano. Em 1713 mantém-se o padrão, 22,86%, pouco menos de 1/4 das reuniões ocorrem
em janeiro. Em 1714, embora o número não seja esmagadoramente maior, notamos sim um
predomínio das reuniões em janeiro, 28,21%. Todavia, temos que lembrar que o ano de
1714 contou com mais que o dobro das reuniões de 1713, foram, como já dito, 78 reuniões.
Assim, janeiro de 1714 foi um mês muito mais ativo em termos de reunião se comparado
aos outros primeiros meses do qüinqüênio. Foram 22 reuniões em janeiro de 1714 contra 7
em 1711, 11 em 1712, 8 em 1713 e 9 em 1715. Nota-se que em 1715 há uma queda da
relação do primeiro mês frente ao resto do ano, são 18,37% das reuniões em janeiro, menos
de 1/5.
O que se pode observar em linhas gerais, é a grande exceção que foi o ano de 1714.
Foram muitas reuniões no ano, muitas também as reuniões em janeiro, isto não só em
números relativos mas, principalmente em números concretos. São 22 reuniões em 31 dias.
É evidente que algumas destas reuniões ocorrem no mesmo dia, mas, de todo modo, são
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números que despertam a curiosidade.
Ora, o que estava ocorrendo em janeiro de 1714 era justamente a discussão sobre
como se daria a implantação dos quintos. Na reunião do dia 6 de janeiro de 1714
454
,
reuniu-se no Senado da Câmara de Vila Rica, vários representantes das vilas e demais
homens bons para decidir, junto com demais autoridades, como seria feita a cobrança. Este
é o evento, ou seja, a discussão sobre a implementação desta nova rotina, que muda a
órbita da Câmara. Creio que o excesso de reuniões de 1714 pode ser um indicador desta
transformação. É evidente que isto será confirmado com a quantificação dos assuntos
discutidos, tarefa que está sendo feita e em breve será divulgada.
Por fim, devemos reforçar a importância que noto, com base nas vereações, da
implantação da arrecadação dos quintos, e como, de certo modo, isto mudou as prioridades
da instituição. É possível que a discussão sobre os quintos não tenha ocupado a maioria
parte do tempo, mesmo em 1714. Mas, é certo que, grande parte das novas discussões que
surgem a partir de 1714, tem um vínculo ao menos indireto com a implementação da nova
rotina. Isto pois esta novidade exige a criação de novas funções, ou seja, esta rotina gera
um efeito em cadeira, e gera novas rotinas, como eleições e posses de novos oficiais.
Cabe, neste encerramento, reafirmar que o objetivo deste trabalho foi expor a
metodologia adotada, o que cumprimos. A divisão dos assuntos em rotinas e eventos
parece ser a característica elementar da pesquisa. A elaboração da lista dos oficiais
camarários, embora básica e pouco reveladora neste momento, é fundamental para o
próximo passo, que é o cruzamento desta lista com outras fontes. Por fim, os
encaminhamentos, as indicações que tecemos nestas últimas linhas, parecem demonstrar a
relevância do tema estudado e dos resultados futuros.
454
BIBLIOTECA NACIONAL. Op. Cit. p. 293-294.
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Fonte:
BIBLIOTECA NACIONAL. Atas da Câmara Municipal de Vila Rica. Anais da Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro, v. 49, p. 200-391, 1927.
Bibliografia:
VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia, 1999.
CARRARA, Angelo Alves. A Real Fazenda de Minas gerais: guia de pesquisa da Coleção
Casa dos Contos de Ouro Preto, volume 2. Mariana: UFOP, 2004.
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues; ABDO, Patrícia Ferraz. Administração camarária e
comércio na Vila Rica do século XVIII: os almotacés e as correições, 1754-1777.
Caminhos da História, Montes Claros, v. 13, n. 2, p. 23-40, 2008.
RUSSEL-WOOD, A. J. R. O governo local na América portuguesa: um estudo de
divergência cultural. Revista de História (USP), v. 55, n. 109, São Paulo, p. 25-79, 1977.
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Ensaio Sobre Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels: A abordagem
elitista da democracia.
Raphael Gustavo Ladeira Moreno
RESUMO: O artigo trata da exposição da chamada teoria das elites, a partir das
visões de seus precursores, os italianos Pareto e Mosca e o alemão Michels, que
como teoria científica política surgiu com forte carga polêmica antidemocrática e
anti-socialista, que refletia o grande temor das classes dirigentes dos países onde
conflitos sociais eram ou estavam para se tornar mais intensos.
PALAVRAS- CHAVE: democracia; teoria das elites; desigualdade política.
ABSTRACT: The article proposes to address exposure of so-called theory of elites,
from the precursors, the italians Pareto and Mosca, and the german Michels, as a
scientific theory that has emerged with strong political load undemocratic and antisocialist, which reflected the great fear of the ruling classes countries where social
conflicts were to become more intenses.
KEYWORDS: democracy; theory of elites; political inequality.
INTRODUÇÃO
No contexto da política democrática do final de do século XIX e inicio do
século XX, quando a desigualdade é questionada, que se reerguem as vozes dos que

Graduando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
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afiançam que ela é "natural" e "eterna" – o que talvez seja a definição mais simples
do elitismo. No seu sentido corrente, o elitismo pode ser descrito como a crença de
que a igualdade social é impossível, de que sempre haverá um grupo naturalmente
mais capacitado que deterá os cargos de poder.
Essa idéia não é novidade, conforme Finley, tanto Platão quanto Lipset
entregariam a política a especialistas. O primeiro, a filósofos de rigorosa formação,
que tendo aprendido a Verdade, seriam dali por diante guiados exclusivamente por
Ela. O segundo, a políticos profissionais (ou a políticos comprometidos com a
burocracia), que seriam guiados por suas experiências na arte do possível.455
A palavra "natureza" é crucial: para o elitismo, a desigualdade é um fato
natural, isto está na raiz da atração que o pensamento elitista tem sobre aqueles que
ocupam posições de elite. Em vez de estarem nessas posições por mero acaso, de
contingências ligadas à estrutura da sociedade, seriam recompensados por seus
méritos intrínsecos. Dando-lhes um reconfortante sentimento de superioridade,
acompanhado do desprezo pelos que não são tão bons.456
Este é o papel da teoria elitista sobre a política e democracia, desde que os
conservadores Mosca e Pareto às introduziram na Itália, na virada do século,
seguidos pelo alemão Robert Michels.
O interesse elitista esta em demonstrar que a história é repetitiva:
transformando-se numa monótona saga de conflitos, onde não contam os ideais, mas
a força e astúcia, e que as chamadas revoluções não são mais do que substituição de
uma classe dirigente por outra; e que as massas são apenas um exército de manobra
da nova classe política em ascensão457.
455
FINLEY, M. I. Democracia antiga e moderna. Trad. Waldéa Barcellos, Sandra Bedram. Rio de Janeiro:
Graal, 1988, p. 20.
456
SARTORI. Giovanni. A política: lógica e método nas ciências sociais. Brasília: UNB, 1981, p.47.
457
DAHL, Robert. Analise política moderna. Brasília: UNB, 1982, p.112.
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Há o entendimento da política como uma pratica de lideranças que, por suas
origem e formação, atribuem-se o direito de dirigir, comandar e reprimir as massas
populares as quais, por sua condição social e histórica, não são aptas a governar,
neste contexto é natural que os “inferiores” sejam dirigidos pelos “superiores” que
possuem conhecimento na arte de comandar.458
A Teoria das Elites foi plasmada no pensamento de Gaetano Mosca com sua
doutrina da classe política; Vilfredo Pareto com sua teoria da "circulação das elites"
e Robert Michels com sua concepção da "lei de ferro da oligarquia". É a partir
dessas visões que pretendemos abordá-la.
BURNHAM E OS NOVOS MAQUIAVÉLICOS
James Burnham (1905–1987), importante teórico político norte americano,
em sua obra, The Machiavellians de 1970, em contraposição à concepção idealista
da política e a realista personalizada por Maquiavel, teceu elogios aos novos
maquiavélicos: Mosca, Pareto e Michels. De acordo com a reinterpretação de
Burnham, teóricos da elite não eram mais apologistas de regimes totalitários. Ao
contrário, ao longo de toda obra Burnham muito habilmente tenta confirmar o
subtítulo da obra: defenders of freedom.459
Apesar de Gaetano Mosca ser tido como o fundador da teoria das elites no
final do século XIX, decidimos iniciar esta explanação por Vilfredo Pareto, pois ele
trata do conceito de elite de forma mais geral, o que facilita a sua exposição inicial.
458
Cf. LIPSET, Seymour. Política e ciências sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1972, p.74.
BURNHAM, James. The Machiavellians: defenders of freedom. New York: Freeport, 1970. A análise de
Burnham centra-se em 3 autores: Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels, os “maquiavélicos”,
com alguns breves comentários sobre Sorel. Portanto, a exemplo da obra de Burnham este artigo manterá o
foco neste trio.
459
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VILFREDO PARETO: A ELITE DOS MAIS HABILIDOSOS
Na perspectiva de Pareto (1848-1923) existem em todas as esferas, em todas
as áreas de ação humana, indivíduos que se destacam dos demais por seus dons, por
suas qualidades superiores, portanto a desigualdade é natural, fruto dos diferentes
talentos, seria impossível eliminá-la, para não dizer injusto. Eles compõem uma
minoria distinta do restante da população – uma elite. A existência das elites revela a
desigualdade – natural – entre os homens, da qual a desigualdade social seria um
mero efeito.
Para o conceito paretiano, a elite define-se através das habilidadedes
intrínsecas de seus integrantes – ao contrário do emprego corrente do termo, que
incorpora a capacidade de influência.
O termo elite não será atribuído apenas a uma aristocracia, e sim qualquer
grupo que se destaque - o mais habilidoso - em sua atividade especifica: o sociólogo
e economista, aplaina diferenças fundamentais, presentes na sociedade, ao tratar as
muitas elites como se fossem idênticas. Já que para Pareto, o mendigo que faz ponto
na frente da igreja matriz, e, portanto, é o mais bem-sucedido na sua atividade, é tão
"de elite" quanto o bilionário que ganha rios de dinheiro com a especulação
financeira, ou seja, é possível falar numa elite de guerreiros, numa elite religiosa,
numa elite econômica e até mesmo de ladrões.
Em síntese a desigualdades entre os indivíduos contribuem diretamente para
o surgimento das elites.
Entretanto, Pareto introduz uma distinção essencial no seio da elite: a que
separa a elite governante, que exerce o poder político, de todo o resto a chamada
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elite não-governante. A existência de um grupo minoritário que monopoliza o
governo é, para ele, uma constante universal das sociedades humanas.
Ao diferenciar os elementos dentro da elite introduz a constate: da rotação
entre os integrantes da elite a teoria da "circulação das elites", Pareto elabora a teoria
do equilíbrio social, que estuda a interação das diversas classes de elite, cujas
principais são as elites políticas que têm dois pólos: os políticos que usam a força (os
leões) e os que usam a astúcia (as raposas).
A dinâmica da teoria da "circulação das elites" e sua importância para o bom
andamento do governo, de acordo com Pareto: haveria necessidade tanto da astúcia
quanto da disposição para o uso da força, isto é, a elite governante deve possuir tanto
indivíduos caracterizados por: raposas (indivíduos da classe I) e leões (indivíduos da
classe II). Para se perpetuar, esse governo deve cooptar os indivíduos talentosos que
existam dentro da sociedade. Ora, os leões, justamente por serem leões, não são
dados a compromissos, e não aceitarão a cooptação, que ocorre em geral para postos
- a princípio - subalternos. Só as raposas ascenderão ao poder, causando um
desequilíbrio. Em primeiro lugar, haverá um governo formado total ou
majoritariamente por indivíduos da classe I, que preferem usar apenas a astúcia e
vacilam em empregar a força. A segunda conseqüência é um acúmulo de leões
privados de poder, mas desejosos de alcançá-lo, formando uma "contra-elite". Chega
um momento em que a pressão é grande demais, os indivíduos da classe II
promovem uma revolução e instauram um governo leonino. E o processo se reinicia
o que o torna cíclico, como dito na introdução.
Pareto generaliza, esse processo cíclico, ao tratar da Revolução Francesa: a
idéia de que todas as mudanças políticas são, por trás das aparências, repetições do
mesmo processo, a luta dos leões contra as raposas. Assim, discutir as
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transformações nas estruturas sociais, a economia ou a ideologia é inútil. Seja a
Revolução Francesa, partindo pressuposto que a massa é incapaz de intervir no
processo histórico. Se parece que o faz, é porque está sendo manobrada por outro
grupo mais habilidoso, atribuindo tal conquista a elite que emergiu dessa massa.
Enquadrando o movimento a sua teoria de circulação das elites.
Outro fato a se pensar dentro dessa dinâmica de “circulação das elites” é essa
presença da palavra força no que se aplica aos indivíduos da classe II – os leões:
Uma vez que segundo Pareto, nenhum governo persiste sem sua quota de
leões, o uso da força deve ser aceito como inevitável na sociedade. Fato que se apóia
para legitimar a repressão.
O que se deseja, aqui, não é refutar as idéias de Pareto. Caso fosse este o
objetivo, seria necessário observar que sua concepção da sociedade e do ser humano
é simplificadora ou, ainda, que, ao tratar de temas como o uso da violência, ele
aplaina diferenças significativas. Para os objetivos deste artigo, o que interessa é
perceber que todo o esforço intelectual de Pareto está voltado à demonstração de que
qualquer ordenamento democrático é ilusório.
Pareto tinha convicção na superioridade das elites econômicas e políticas
porque acreditava que as desigualdades sociais faziam parte da "ordem natural" das
coisas. Devido à sua intransigente defesa da dominação das elites, e também por ser
um crítico contumaz de qualquer forma de regime socialista, Pareto é apontado
como o ideólogo precursor do fascismo. Não obstante, ele nunca aderiu formalmente
ao regime fascista italiano.
Agora para o entendimento dos enunciados de Mosca, achamos por bem
fazer paralelos com o que foi exposto sobre Pareto.
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GAETANO MOSCA: PODER UMA QUESTÃO DE ORGANIZAÇÃO
Mosca
(1858-1941)
conforme
dito
anteriormente,
estabeleceu
os
pressupostos do elitismo, entendeu que um dos aspectos mais óbvios de todos os
organismos políticos: que havia duas classes de pessoas, uma mais e a outra menos
numerosa, sendo a primeira dirigida e a segunda dirigente. O que distinguia a
minoria da maioria, conferindo-lhe o poder de dirigir, era, inicialmente, a
organização. Para ele, o domínio da minoria sobre a maioria é uma constante
universal.460
Conforme sua obra La clase política, a chave, para entender esse fenômeno,
é que a minoria é organizada, enquanto a maioria, justamente por ser tão numerosa,
está fadada à desorganização. Se quiser se organizar, precisará constituir uma
minoria dirigente dentro de si. O fato de ser organizada torna, a minoria mais
numerosa do que a maioria. Ou seja, o membro da maioria que se insurgir estará
sempre isolado contra a classe dirigente, que age em bloco.461
Portanto, ao contrário de Pareto, Mosca não está preocupado em determinar
quais são os mais habilidosos ou qualificados. Ele despreza as explicações
psicológicas, vinculando o domínio da minoria a uma questão organizativa.
O passo seguinte, em sua teoria, é a discussão da legitimação: a minoria se
faz passar, diante da maioria, como dotada de certa qualidade superior. Assim, o
exercício do poder é justificado em nome de princípios morais universais. Tais
princípios mudam historicamente, de acordo com a transformação material na
sociedade. Era a valentia, nas sociedades inseguras do passado, quando o gozo da
vida e dos bens dependia de força militar própria e os guerreiros governavam. Em
460
461
MOSCA, Gaetano. The Ruling Class. New York: McGraw-Hill, 1939, p.50.
MOSCA, Gaetano. La clase política. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p.57-58.
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seguida, com o aumento da produtividade da terra e a redução da insegurança, a base
do poder passa a ser a propriedade rural, e assim por diante. Trata-se de uma
perspectiva materialista, que, em vez da luta entre leões e raposas, apresenta o
conflito contínuo entre antigas fontes de poder, que querem se manter, e novas
fontes de poder, que desejam emergir.
Introduziu a hereditariedade como um dos elementos destinados ao acesso à
classe dirigente. Essa idéia levou-o a sustentar que a classe dirigente não poderia se
manter no poder somente na base da força. Ela deveria pautar-se em algum outro
princípio, quer fosse ele religioso legal ou moral. Seguindo linha próxima à Pareto,
Mosca, portanto, entenderam que na sociedade existem indivíduos mais bens
dotados que outros, e que aqueles, por causa de seus atributos, estavam destinados a
dirigir a maioria.
Mosca deu entrada para uma interpretação não ideológica da teoria das elites,
distinguindo duas formas diferentes de formação das classes políticas segundo a qual
o poder se transmite por herança, de onde provêm os regimes aristocráticos, ou
buscando constantemente realimentar-se das classes inferiores, de onde nascem os
regimes democráticos, tratado amplamente nas criticas de Gramsci (1891-1937), no
sistema de que ele denomina transformismo: que seria a perda dos lideres
(intelectuais) das classes subalternas, quando acabam por aderir a política
dominante, para manter-se na sua posição de destaque.462
Como a de seu compatriota, sua teoria também investe contra as "ilusões" do
movimento operário, que se propunha reunir a maioria da população e levá-la ao
poder. Impossível: “já que a maioria nunca governa, no máximo pode entronizar
462
GRAMSCI, A. Escritos políticos: 1910-1920. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2004. vol. 1. p. 74.
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outra minoria” 463. Como visto, é uma teoria conservadora, pragmática: não adianta
tentar mudar o mundo, já que, em sua essência, ele permanece sempre o mesmo.
Enquanto Pareto e Mosca não se detinham em casos concretos, fazendo
grandes teorizações e depois pinçavam na história os exemplos que julgavam
adequados, Michels como veremos: adotava o percurso inverso.
ROBERT
MICHELS:
QUEM
DIZ
ORGANIZAÇÃO
DIZ
OLIGARQUIA
Já Robert Michels (1876-1936) observa a relação entre a organização e grupo
de poder, seja inverso da que foi apontada por Mosca, pois para este doutrinador, a
organização é um instrumento para a formação da minoria governante, enquanto
que, para Michels, é a mesma organização que tem por conseqüência a formação de
um grupo oligárquico.
Com base em evidências empíricas demonstrou que mesmo dentro das
organizações partidárias que funcionam num sistema político democrático, há fortes
tendências à elitização, ou seja, concentração de poder num grupo restrito de
pessoas. Michels chamou essa tendência à elitização de "lei de ferro das
oligarquias".
O núcleo de sua tese é que qualquer tipo de organização caminha para a
burocratização. Aqui, ele fica com Mosca: a massa, o grande número, é incapaz de
se organizar. Quando resolve fazê-lo, deve fatalmente constituir um pequeno comitê
para dirigi-la. Isto é a burocratização: não há mais um movimento espontâneo de
massa, e sim algo com uma hierarquia, com regras, com disciplina.
463
MOSCA, Gaetano. La clase política. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p.34-35.
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A burocratização assume uma característica especial, que é a oligarquização.
Para que a organização aja com eficiência, é necessária a criação de um quadro de
funcionários que se dediquem em tempo integral a ela. Ora, essa nova posição
funcional gera novos interesses, ligados a ela e diferentes daqueles que a base da
organização possui. O operário que se torna um quadro profissional do partido não é
mais um operário: é um burocrata ou um líder político. Para os militantes da base, a
organização é um meio para alcançar um determinado fim, que, no caso, era a
revolução socialista. Para o funcionário, a organização torna-se um fim em si
mesma, já que seu ganha-pão está no partido 464.
Segundo Michels, isto levaria inexoravelmente ao abandono dos ideais
revolucionários. Primeiro, porque seus líderes já alcançaram uma posição
privilegiada dentro da sociedade; depois, porque uma tentativa revolucionária
poderia causar a dissolução do partido (e a perda do ganha-pão). O poder, diz
Michels é sempre conservador. Tal construção teórica, é a "lei de ferro da
oligarquia". Segundo ela, toda organização gera uma minoria dirigente, com
interesses divergentes dos de sua base. Embora os caminhos traçados sejam
diferentes, a conclusão é idêntica à de Mosca: só a minoria pode governar.465
Michels tocou em um ponto crucial para a implementação da democracia,
que é a relação entre representantes e representados. Sua teoria é útil para analisar o
desgaste atual dos partidos políticos, que pode ser creditado aos vícios que ele
descreveu. Experiências organizativas que procuram contornar esses problemas,
como a busca da rotatividade e da participação direta.
464
MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Tradução de Arthur Chaudon. Brasília, UnB, 1982,
p.223.
465
MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Tradução de Arthur Chaudon. Braília, UnB, 1982,
p. 219.
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Em sua obra: Sociologia dos Partidos Políticos, Michels confronta o Partido
Verde alemão, enquanto ainda uma pequena organização na década de 70, que fez
um esforço consciente para evitar a Lei de Ferro da Oligarquia. Qualquer um podia
se tornar dirigente. Não havia cargos ou secretários permanentes. Mesmo as menores
e mais rotineiras decisões eram levadas à votação. Porém, quando o partido começou
a crescer e a necessidade de efetivamente competir em eleições, arrecadar fundos,
fazer passeatas e trabalhar com outros partidos uma vez eleito, surgiu, isso fez com
que os Verdes usassem estruturas mais convencionais. O que comprovou para
Michels: que menor oligarquia gera, também, menor eficiência.
Em suma, a aplicação da lei férrea de Michels, feita no interior de partidos
ditos revolucionários, se da assim que as direções dos partidos revolucionários,
olhando pela sua auto- preservação, tratam de garantir a sua aceitação na vida
política (dos outros partidos governistas), afastando-se das vias perseguidas nos
primeiros anos de sua historia. Assim passam a se preocupar mais com crescimento
do aparelho partidário, reforçando o controle interno, partindo para a burocratização
e imobilidade de seus lideres.
Michels sublinha o fato de a organização se auto-proteger quando enfrenta
um desafio, mas deixa pairar a idéia de que o movimento normal das organizações,
na oposição ou no poder, é transformar seus objetivos de classe, o que os levam a
muitas das vezes a abandona -los em função de articulações mais vastas e úteis para
a própria organização, não mais representando o ímpeto inicial de mudanças, ao
quais esse partidos ditos revolucionários são frutos.
Tal demonstração empírica de sua lei férrea, no seio destes partidos
(sobretudo da Alemanha e também dos italianos e franceses), faz com que o
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sociólogo alemão afirme que nem as sociedade mais modernas e democráticas
podem escapar a essa tendência a oligarquia.
O que segundo ele, a longo prazo, promoverá a unificação dos pontos de
vista e a perda de relevância da diferença de opiniões. E os chefes (lideres dos
partidos), que não eram mais que órgãos executivos da vontade coletiva, em breve se
tornam independentes das massas, traçando o seu caminho como melhor imaginam.
Robert Michels não anula a luta política nas democracias: apenas procura
demonstrar que as bandeiras são fictícias (uma escolha entre símbolos
propagandeados como opostos), tendendo as oligarquias partidárias a comungar em
princípios doutrinais cada vez mais alargados por causa da conquista de camadas
cada vez maiores da massa.
Portanto, a maior contribuição a teoria das elites formulada por Michels se
refere ao fato, inusitado e paradoxal, de que a elitização ocorre até mesmo no
interior das organizações comprometidas com os princípios de igualdade e
democracia, ou seja, os partidos políticos de massa, sindicatos, corporações e
grandes organizações sociais. A chamada “lei de ferro”.
Partindo de uma perspectiva puramente política, que é absurdamente amoral
por definição, é claro que não há muito que refutar – e de fato, a realidade brasileira
atual parece profeticamente imitar a teoria de Michels: basta ver os partidos que
vimos nascer, crescer e morrer completamente determinados pela Lei de Ferro. E a
mudança social efetiva? Parece realmente não ter havido.
CONCLUSÃO
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Foram apresentados argumentos a respeito da teoria das elites enquanto
precursora da idéia da existência de uma categoria de pessoas, componentes de uma
minoria, que, portadoras de atributos que as destacam das maiorias que formam as
massas, estariam destinadas ao governo e à liderança de forma natural. Tal teoria, na
visão desses autores, versou sobre o entendimento acerca da existência de uma
"nata" de pessoas dirigentes, representativas de uma minoria, que estavam,
irremediavelmente, destinadas à liderança, em conseqüência de suas aptidões
naturais e superiores e, ainda, em conseqüência da incompetência e da apatia das
massa.
O desafio imposto pelas teorias de Mosca, Pareto e principalmente Michels é
que elas são bem fundadas e ainda assim parecemos não estar inclinados a aceitá-las,
talvez por algum idealismo remanescente, ou quem sabe por um sentimento
verdadeiramente ético. E este problema está na base da noção de ciência aplicada a
políticas sociais, já que uma ciência necessariamente trabalha com determinações, e
apreciamos pensar o sujeito político como dotado de pelo menos certas liberdades.
Se o sujeito político possui ou não liberdade, isso de fato não é um problema
da ciência política. Porém fica evidente que nenhuma teoria descritiva será capaz de
indicar caminhos possíveis (com qualquer teleologia, moral ou de outro tipo), e viceversa
466
. Talvez seja apenas o caso de que um "revolucionário", seja por tolice ou
sabedoria, simplesmente não possa ser um político.
Portanto, é no trabalho desses teóricos, onde se encontrou uma abordagem
linha-dura que explicava porque a dominação de uma classe sobre outra era
inevitável nas sociedades humanas.
466
WEBER, Max. Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva IN: Metodologia das ciências
sociais, vol II. Campinas, UNICAMP, 1992. p.22.
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Conforme os “novos” maquiavélicos, as democracias modernas devem ser
consideradas oligarquias eleitas. Nesses sistemas, as diferenças efetivas entre os
rivais políticos são relativamente pequenas e limites estritos são impostos (pela elite
oligárquica) sobre o que constitui posições políticas “aceitáveis” ou “respeitáveis”.
Além disso, a carreira dos políticos como sabemos depende fortemente das elites
econômicas e intelectuais (mídia, etc.) que não foram eleitas.
Essencialmente a teoria das minorias governantes ou elitista, evolui
gradativamente para uma concepção desigual de sociedade, condizente com uma
visão cíclica da história e com uma atitude pessimista e uma incredulidade quase
total em relação aos benefícios da democracia, com uma crítica radical do
socialismo.
Tais interpretações sobre a democracia tendem a ser rebatidas com acusações
de que são: derrotistas, uma resposta a isso pode ser retirada das palavras de
Schumpeter “A comunicação de que um navio vai a pique nada tem de derrotista. O
espírito em que é recebida a comunicação, sim, pode ser classificado com
derrotista.” 467 ao rebater criticas a primeira edição de sua obra.
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Freeport, 1970.
DAHL, Robert. Analise política moderna. Brasília: UNB, 1982.
467
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História em Rodapés: Os folhetins de França Junior.
Raquel Barroso Silva*
RESUMO: Em suas crônicas França Junior (1838-1890) revelou-se um exímio observador
do comportamento político e social da elite urbana da Corte no Rio de Janeiro. Sua sátira
muitas vezes se direcionou aos costumes dessas classes privilegiadas, como a importação
de hábitos, as eleições, os tipos freqüentadores dos cafés da Rua do Ouvidor, o
apadrinhamento político, os casamentos por interesse, os bailes e jantares, entre outros.
Isso faz de seus folhetins um fecundo manancial para os historiadores que pretendem se
debruçar sobre a sociedade carioca do século XIX. Dessa maneira, minha intenção nesta
comunicação é, a partir da análise de seus folhetins, todos publicados nas três últimas
décadas do Império Brasileiro, observar elementos da construção da nacionalidade
assumida pelos homens de letras do século XIX.
PALAVRAS CHAVE: Segundo Império; Folhetim; França Junior
ABSTRACT: In his chronicles França Junior (1838-1890) proved to be an expert observer
of the political and social behavior of the urban elite of the court in Rio de Janeiro. His
satire is often directed to the customs of these privileged classes, such as importing habits,
elections, types who frequented the cafes located at Rua do Ouvidor, the political
patronage, marriages of interest, the dances and dinners, among others. This makes their
chronicles a rich source for historians who want to study the society of Rio de Janeiro in
the nineteenth century. Thus, my intention in this communication is based on the analysis
*
Mestranda em História - UFJF
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of their chronicles, all published in the last three decades of the Brazilian Empire, observe
the elements of the construction of nationality.
KEY WORDS: Second Empire; chronicles; França Junior
Em suas crônicas, França Junior (1838-1890) revelou-se um exímio observador do
comportamento político e social da elite urbana, ou burguesa, e até mesmo de parte da
aristocracia rural participante dos meios de sociabilidade da Corte no Rio de Janeiro. Sua
sátira muitas vezes se direcionou aos costumes dessas classes privilegiadas, como a
importação de hábitos e a supervalorização do estrangeiro, a moda afrancesada, as
eleições, os tipos freqüentadores dos cafés da Rua do Ouvidor, o apadrinhamento político,
os casamentos por interesse, os bailes e jantares, entre outros. Isso faz de seus folhetins um
fecundo manancial para os historiadores que pretendem se debruçar sobre a sociedade do
século XIX. Dessa maneira, minha intenção nesta comunicação é, a partir da análise de
seus folhetins, todos publicados nas três últimas décadas do Império Brasileiro, observar
elementos da construção da nacionalidade assumida pelos homens de letras do século XIX.
Em artigo publicado em janeiro de 1868, França Junior registrou qual era sua
concepção de folhetim:
O Folhetim é um verdadeiro salão de baile; “entra-se nele sem se
saber o que se vai dizer”. Ou antes, para me servir de uma imagem
que está mais à mão, é uma pasta de governo progressista, que o
ministro ainda imberbe aceita ignorando o que vai fazer468.
A partir das duas metáforas que o autor utiliza para definir o folhetim a passagem
revela idéias que vão guiá-lo em seus escritos. A primeira é de que o folhetim é algo
despretensioso, leve, com uma função menos informativa e mais de entretenimento ou
468468
FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de
Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.154.
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diversão do leitor ou leitora - a quem muitas vezes se remeteu diretamente. A segunda, um
tanto contraditória em relação à primeira é a utilização desses escritos como veículo de
crítica política. Ou seja, como uma maneira de intervir nos debates políticos de seu tempo.
Nascido na imprensa francesa, o folhetim apareceu pela primeira vez no Rio de
Janeiro em 1836, sendo denominado como tal dois anos depois quando ganha os rodapés
do Jornal do Comércio. Seu surgimento esteve ligado a difusão do hábito da leitura numa
pretensa sociedade moderna, através de um texto que visava, o entretenimento do(a)
leitor(a). Como ressaltou Marlyse Meyer, mesmo numa sociedade de maioria analfabeta as
leituras em voz alta despertavam aos poucos e em um público crescente o gosto pela
literatura469. Estudando a participação do folhetim e da imprensa na conformação de uma
esfera pública no Rio de Janeiro do século XIX, Jefferson Cano observou que não demorou
muito para o folhetim cair no gosto do público, o que contribuiu para um aumento do
faturamento dos jornais da Corte no período, devido ao grande aumento de suas tiragens.
Desferindo um julgamento estético sobre este tipo de literatura, seus pais franceses
consideraram-no parte de uma“literatura industrial”, cuja qualidade menor decorria de sua
regularidade e, relativamente ampla, produção. Contudo, no que tange a crítica lierária,
basta lembrar que no Brasil, os grandes romances do século XIX foram publicados
inicialmente em formato de folhetins470.
Ao menos no que concerne ao trabalho do historiador, o que nos chama a atenção é
justamente este caráter “industrial” que nos sugere que as crônicas e romances publicados
nos rodapés dos jornais brasileiros – da Corte em especial – tenham sido largamente
responsáveis pelo forjamento de nossa “nação imaginada” e da retórica que a confirma e a
469
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma História. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CANO, Jefferson. Folhetim: Literatura, Imprensa e a conformação de uma esfera pública no Rio de
Janeiro do século XIX. Disponível em:< http://www.ifcs.ufrj.br/~nusc/cano.pdf >. Acesso em: 27/10/2009.
470
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recria, conforme a tese de Benedict Anderson, segundo a qual o advento da imprensa
capitalista é fundamental para explicar o surgimento da nação moderna471.
Além do romances em folhetim e dos romance-folhetins também eram publicados
no mesmo formato um tipo de artigo mais parecido com a crônica atual. Era um misto de
“jornalismo e literatura de ficção, que serviu de espaço tanto para devaneios,
entretenimento, crítica teatral, exercícios de estilo, como para, no caso de França Junior,
José de Alencar, Machado de Assis e outros, falar de política, sociedade e costumes”472.
Este tipo de folhetim foi caracterizado em seu tempo como um gênero leve e sem
pretensão à perenidade. Ou como o definiu França Junior “um verdadeiro salão de baile”
onde “entra-se (...) sem se saber o que se vai dizer”. Em 1875, José de Alencar já alertava
que essa despretensão era apenas aparente: “É uma arte difícil essa, de dizer tudo, não
dizendo nada”.
Diferentemente dos romances, que falam a todas as épocas, seu assuntos são mais
específicos da sua contemporaneidade. A leitura dos mesmos remete a uma “cumplicidade
construída entre autor e público”, uma nescessidade de articulação dos mesmos símbolos a
fim de viabilizar a comunicação entre ambos. Disso decorre uma certa dificuldade de sua
compreensão a posteriori473.
Na crítica política embutida na segunda metáfora que França Junior utiliza para
definir o folhetim, “é uma pasta de governo progressista, que o ministro ainda imberbe
aceita ignorando o que vai fazer”, percebemos esta tentativa de intervenção na realidade.
471
ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do
nacionalismo. São Paulo Companhia das Letras, 2008.
472
FREITAS, Luiz Eduardo Viveiros de. Folhetins e Máscaras: a obra de França Júnior. PUC/SP.
Dissertação de mestrado em Ciências Sociais.
473
CHAULHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (orgs).
História em cousas miúdas. Capítulos de história Social da crônica no Brasil. Campinas, Ed. da Unicamp,
2005.
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Essa característica dialógica, apesar de mais evidente nos folhetins, não esteve ausente das
demais formas de literatura do período.
As divergências teóricas, ideológicas e, até estéticas, que se apresentavam entre os
letrados do Segundo Reinado tiveram como campo de batalha principal, além da tribuna e
palcos, os jornais. Foi, principalmente, através de seus folhetins regulares para a imprensa
que esses homens exerceram sua política. E foi a partir de seus desempenhos teórico e
argumentativo nessas batalhas, nas quais utilizavam como arma a pena, que eles
adquiriram adeptos para as suas idéias, formando, e ao mesmo tempo servindo de caixa de
ressonância, da opinião pública.
Como destacou Norbert Elias: “Nenhuma pessoa isolada, por maior que seja sua
estatura, poderosa sua vontade, penetrante sua inteligência, consegue transgredir as leis
autônomas da rede humana da qual provêm seus atos e para qual eles são dirigidos”
474
.
Um indivíduo não pode transformar a sociedade sozinho e nem rapidamente, mas sua
posição pode determinar uma margem de decisão maior ou menor sobre essas
transformações. O letrado, detentor/manipulador da opinião pública possuía como poucos
o poder de influenciar nas transformações em curso na sociedade brasileira da segunda
metade do século XIX. França Junior tal como os demais, utilizou sua crônica como
instrumento, ou arma, na participação nestes debates. Conforme destacou Alexandre
Lazzari ao estudar Afonso Arinos de Melo Franco, literato contemporâneo a França Junior:
Tendo vivido em uma época de intensa elaboração e de polêmica a
respeito da identidade nacional entre a elite de literatos e bacharéis
do final do século XIX no Brasil, seus pontos de vista
representavam uma das vertentes de intensos debates e
antagonismos em torno de temas como raça e nação, tradição e
progresso, nacionalismo e cosmopolitismo475.
474
ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. p. 201.
LAZZARI, Alexandre. O buriti solitário e outras invenções: história, lugares e memórias da nação de
Afonso Arinos de Melo Franco (1868-1916). (mimeo)
475
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As mesmas considerações poderiam ser feitas a respeito de França Junior.O que
mostra que o autor estava imerso neste mesmo meio literário, compartilhando deste
ambiente cultural na segunda metade do século XIX.
Ao terminar a faculdade de direito em São Paulo e transferir-se novamente para o
Rio de Janeiro, França Junior trabalhou na redação do Bazar Volante, e iniciou sua carreira
como folhetinista no lugar de Ferreira de Meneses no jornal Correio Mercantil476 no qual
permaneceu até 1868. Adotara a essa época o pseudônimo Osíris, “metáfora da dispersão,
da fragmentação”477 como os artigos que pretendia escrever. Depois de quase dez anos
envolvido em outras atividades começou a escrever para a Gazeta de Notícias, e foi
correspondente deste jornal em Paris por ocasião da exposição de arte em 1878. Colaborou
ainda com outros jornais cariocas como, O Globo Ilustrado (1881-1882), O Paiz (a partir
de 1885478) e Vida Fluminense, do qual ainda pouco sabemos e respeito de sua
participação.
Seus folhetins escritos para o jornal Correio Mercantil entre 29 abril de 1867 a 26
de julho de 1868, coincidem com o período em que esteve em vigor o terceiro gabinete
presidido por Zacarias de Góis e Vasconcelos principal alvo das críticas do folhetinista, já
que o Mercantil era, à época, um jornal conservador, descrito por ele próprio como órgão
genuíno deste partido. O folhetinista lançou mão de críticas e ofensas de todos os tipos
para enfatizar os defeitos de seus adversários políticos. Praticamente todos os folhetins
publicados fazem referência ao gabinete, aos progressistas ou aos liberais. Eram raros os
momentos em que França Junior se comportava como o que ele mesmo havia considerado
476
Seus folhetins publicados no Correio Mercantil durante os anos de 1867 e 1868 foram reunidos em
JUNIOR, França. Política e Costumes: Folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia:
Civilização Brasileira S/A, 1957.
477
FREITAS, Luiz Eduardo Viveiros de. Folhetins e Máscaras: a obra de França Júnior. PUC/SP.
Dissertação de mestrado em Ciências Sociais.
478
FREITAS, Luiz Eduardo Viveiros de. op.cit.
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“um folhetinista de regra”, aquele que deveria ocupar-se de acontecimentos sociais, bailes,
teatro e corridas de cavalo. Como uma maneira de justificar a política como alvo constante
de seus escritos o autor reclamava não haver outros assuntos interessantes naquela
“quadra”, por isso só o resta a presença diária na câmara dos deputados. “Sendo embora
uma distração ilícita e nociva, habituei-me a ela como ao charuto”.
Os ministros foram seus personagens constantes. Nesta série, os governantes são
tratados por várias expressões irônicas e satíricas como: os sete pecados capitais; os deuses
do Olimpo brasileiro; sete figuras sinistras; família composta de sete membros e diversos
agregados; sete pica-paus; sete gatos, entre outras. Ao chefe do gabinete referia-se,
ironicamente, como “o Guizot brasileiro”.
França Junior parece ter tomado para si a tarefa de relatar o período para a
posteridade. Mais de uma vez revelou, sempre com ironia, estar prestando um serviço para
a história de seu país através de seus comentários satíricos dos acontecimentos de sua
contemporaneidade:
Nos meus folhetins está a crônica da fase mais brilhante do
progressismo. (...)Cada um carrega como pode a sua pedra para o
edifício da pátria. Homero e Virgílio cantaram os seus heróis em
versos. Eu canto em prosa os feitos do meu tempo. 479
A Guerra do Paraguai (1865- 1870), como não poderia deixar de ser, foi tema
constante de seus comentários, que variaram entre elogios e críticas. Como patriota e
conservador defendeu e louvou as vitórias da Guerra e seus heróis e, por outro lado,
lançava criticas ferinas às decisões e omissões do gabinete frente ao conflito. Para ele o
aumento dos impostos, que o ministério justificava como decorrente dos gastos com a
Guerra era na verdade fruto da má administração “de um ministério à cuja frente está uma
479
FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Um relatório Tipo. In: Política e Costumes: folhetins esquecidos
(1867-1868) Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.128.
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capacidade financeira” (Rio, 6 de outubro de 1867) e por isso deveria contribuir para a
resolução do problema.
Também se opôs ao recrutamento de negros, que muitas vezes eram oferecidos
como voluntários da pátria por seus senhores que em troca recebiam honrarias e
condecorações. Em 6 de outubro de 1867, constata: “um escravo começou a valer um
hábito da Rosa, quatro a comenda da dita e assim sucessivamente (...)”, em 3 novembro do
mesmo ano volta a tocar no assunto de que os progressistas “mandam negros para a
guerra” em 19 de janeiro do ano seguinte vai ainda mais longe:
Outrora um hábito de qualquer ordem simbolizava em uma farda
um feito de heroísmo, em uma casaca, um título nobre de serviços.
Presentemente as condecorações já não honram ninguém. Quem for
vaidoso e quiser se desfazer de um negro capenga... Para que
repetir o que todos já sabem? 480
A crise político-econômica decorrente da Guerra e de “outros contratempos que
afetavam o bom desempenho da economia, a exemplo do aumento das importações e da
queda acentuada do preço do café no mercado externo”
481
culminou na dissolução da
câmara e na exoneração do ministério Zacarias. Apesar de publicamente o ministério
declarar apoio ao comandante-chefe das tropas Paraguaias, o Marquês de Caxias, era
sabido que, na verdade, as divergências partidárias entre este e o general conservador
nunca deixaram de existir. Elemento chave para o desencadeamento desta desinteligência
entre o Marquês e o ministério foi a publicação de um artigo na Anglo Brasilian Times pelo
inglês Wiliam Scully culpando Caxias pela onerosa e demorada batalha em que a Guerra
havia se transformado. Como o periódico era subsidiado pelo governo, este foi
imediatamente responsabilizado pelo conteúdo do artigo. O fato serviu como gota d’água
480
FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de
Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.161.
481
VAINFAS, Ronaldo (org.) Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. pp.724-5.
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para o Marquês, que pediu sua substituição no comando das tropas brasileiras alegando
problemas de saúde. França Junior vai lembrar do fato em 2 de fevereiro de 1868 ao dar
provas aos leitores de que estavam vivendo no “reinado dos disparates”:
Instado pelas folhas de oposição a declarar se aquele jornal [o
Anglo Brasilian Times] era subvencionado pelos cofres públicos, o
Sr. Zacarias mandou escrever no Diário Oficial que o Sr. Scully
tinha, é verdade uma subvenção, mas tão somente para ‘proteger os
interesses da imigração no estrangeiro’. E então? O governo quer
chamar emigrantes ao seio do país, e é o próprio a desmoralizar a
idéia, afirmando que paga um jornal para advogar seus interesses.
Que importância podem receber os artigos do Sr. Scully, á vistas de
uma tal declaração?482
Quando a notícia da vitória na, até então considerada invencível, passagem de
Humaitá chegou ao Rio de Janeiro, França Junior escreveu um folhetim intitulado A
passagem de Humaitá dando vivas aos heróis da pátria: “Viva a nação brasileira! Viva Sua
Majestade o Imperador! Viva o Marquês de Caxias! Viva o Barão de Inhaúma! Vivam o
exército e a armada!” (Rio, 3 de março de 1868). Na semana seguinte irá voltar ao tema
descrevendo o “regozijo que tem se apoderado” da população carioca desde que recebeu a
notícia “do brilhante triunfo de 19 de fevereiro” e da “terrível dor de dente” com que
“alguns”, leia-se os progressistas, receberam-na. Além disso, faz uma irônica retratação
quanto aos “vivas” que dera ao fim do folhetim anterior: “As glórias do acabamento
“honroso” da guerra não pertencem àqueles supostos heróis, mas sim ao imortal e
benemérito gabinete de 3 de agosto. Viva o invicto gabinete de 3 de agosto!!”. Com
extrema ironia irá registrar a “fundamental” participação de cada ministro na vitória de
Humaitá. Destacando a participação do então ministro da guerra João Lustosa da Cunha
Paranaguá pergunta: “Pode por ventura alguém contestar que o acabamento da guerra não
482
FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de
Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.166.
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seja devido ao – recrutamento dos negros-minas, o feito mais brilhante do tino
administrativo daquele distinto estadista?” (Rio, 15 de março de 1868).
Com o advento do ministério conservador no dia 16 de julho o segundo qüinqüênio
liberal (ou liberal-progressista) havia chegado ao fim. No folhetim publicado quatro dias
depois, a mudança de temática a que o autor se submete é notória. A primeira parte deste
folhetim intitula-se “novos horizontes”.
Afastemos por um momento as vistas do quadro da política. Novos
horizontes se rasgam para o Brasil. No fundo daquele painel que
ainda ontem nos amedrontava com as cores mais negras, brilha
felizmente o arco íris, percussor da bonança. A política já não nos
causa receio. Nas ameias da pátria está içada a bandeira da ordem;
o sistema representativo vai entrar em seus eixos, sobre a liberdade
individual já não pesam os caprichos do arbítrio. (...) O folhetinista,
mais do que ninguém, deve ocupar o espírito com as diversões;
hoje aqui amanhã ali, vive de episódios (...) Se até aqui nos
preocupava a mente uma idéia fixa, não trepidamos em prometer ao
leitor que doravante havemos de ser um folhetinista em regra. 483
Aqui o autor retorna as duas idéias as quais foram destacadas no inicio desta seção;
o ataque aos inimigos políticos e a concepção do folhetim como um texto destinado ao
entretenimento do leitor(a). Prometendo cessar com as críticas políticas, seus folhetins a
partir de então deverão tratar de assuntos mais amenos, visando “ocupar o espírito com
diversões”. Com os conservadores no poder ele acredita poder abandonar o que ele mesmo
se referiu como uma “idéia fixa” e se destinar aos assuntos que “realmente” interessam ao
leitor(a) como “o baile da véspera, o acontecimento mais importante da semana, os dramas
que andam em voga nos teatros, a cantora que aportar às nossas plagas, o livro que vir á luz
da publicidade”.
483
FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de
Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.277.
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Sua contribuição para a Gazzeta de Notícias, quase dez anos depois de haver
contribuído para o Correio Mercantil, realmente caracterizou-se por um tom mais leve,
mais de acordo com o que ele considerava ser o papel do folhetinista. Nesta série, o caráter
direto e ofensivo que demonstrara antes não está tão presente, os textos, em sua maioria,
são destinados a descrição satírica dos costumes da burguesia carioca. A leitura de alguns
títulos publicados neste período revela um espírito moralizador, elitista e urbano. Alguns
exemplos são: Bailes, Jantares, Visitas, O Namoro, Casamentos, Dilettanti, Os recitativos,
O cassino de Petrópolis, As nossas filhas484. Em Visitas, assinala: “É na classe média, em
que figura a nossa boa burguesia, que as visitas devem ser estudadas”
485
. E a partir da
leitura dos demais folhetins podemos observar que o namoro, o casamento, os jantares e
etc., também foram “estudados” a partir da mesma perspectiva. A burguesia parece ter sido
a matéria prima e destino final de seus escritos, nesta série em especial.
A repetição de idéias e até de folhetins inteiros que já haviam sido publicados
rendeu-lhe muitas críticas por parte de alguns colegas de profissão que escreviam no
Besouro e na Revista Illustrada. Outro fator que foi motivo de muito chiste foi que seus
folhetins, enviados de Paris quando lá esteve, por ocasião da exposição de arte, tratavam de
piqueniques, feijoadas e outros assuntos tipicamente brasileiros. O que foi, literalmente,
um prato cheio para seus críticos que o alfinetavam com comentários do tipo: “Não é
exacto, como espalha a Gazeta, que o França Junior esteja em Paris. Sabemos de fonte
limpa que o autor das Feijoadas está bem perto de nós, em Guaratinguetá. E senão leiam os
seus folhetins”486. Em outro número da Revista é simulado um encontro de França Junior
com o editor do Figaro (periódico parisiense) “- Eu sou o França Junior, folhetinista da
484
FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Folhetins: Publicados na Gazeta de Notícias. 3.ed. Rio de Janeiro:
Livraria Jacintho Ribeiro dos Santos, 1915.
485
Idem. Ibidem, p.49.
486
Revista Illustrada. Ano 3 - 21 de Julho de 1878 – n°121 {1}.Biblioteca Pública do Estado do Rio de
Janeiro – Acervo digital – Periódicos.
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Gazeta, autor das Feijoadas e vim a Paris para não escrever cousa alguma sobre a
exposição...”487.
Prometendo várias vezes não falar de política para não entediar a leitora,
perpassava pelo tema de maneira indireta. Como podemos observar em Mudanças, que
inícia-se com o aviso:
É de mudanças de casas e não de mudanças ministeriaes que vamos
nos occupar. Fazemos desde já esta observação, afim de que os
leitores e sobretudo as leitoras, para quem especialmente
escrevemos, não atirem a Gazeta, para um lado, e exclamem:
-Ora esta, temos política!488
Sempre prevendo uma reação negativa caso entrasse neste assunto ele inicia o
folhetim A República dando voz a um leitor imaginário que repugna assuntos políticos. E,
assim como em Mudanças, o folhetinista irá, antes de entrar no assunto a que se destina
naquele dia, fazer uma introdução onde suas opiniões políticas são expostas.
Porque chamam república o lar escolástico? Será porque a
desordem, entrando pela porta da rua, alli se installa com todo o seu
cortejo de extravagâncias e excentricidades, desde a sala, (...) até a
cosinha (...)? Será porque alli não há meu nem teu? Será porque...
Com os diabos, lá ia eu escorregando para a maldita política.489
Apesar de tranquilizar o leitor dizendo que irá falar de república como “a casa do
estudante”, simula ser traído pelo hábito e deixa registrada sua opinião a respeito deste
sistema político que cada vez mais se aproximava do único Império das Américas.
Os Folhetins publicados no O Globo Ilustrado (1881-1882) receberam a designação
de Notas de um Vadio. Nesta série França Junior não escrevia em seu nome e prometeu
487
Revista Illustrada. Ano 3 -17 de agosto de 1878 - n°125. Idem.
FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Folhetins: Publicados na Gazeta de Notícias. 3.ed. Rio de Janeiro:
Livraria Jacintho Ribeiro dos Santos, 1915. p.63
489
Idem. Ibidem, p.199.
488
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publicava as notas que tinha em seu poder “tais quais” havia recebido. Em O Paiz , para o
qual contribuiu a partir de 1885490 sua contribuição foi maior. Sessenta e cinco de seus
Echos Fluminenses foram recolhidos e publicados por Alfredo Mariano de Oliveira para a
quarta edição ampliada de Folhetins. Nestes o tom cômico e satírico de seus folhetins
anteriores perderam-se em grande parte. Em algumas passagens sente-se a falta de assunto
(“Perguntar ao desgraçado Sizypho moderno, chamado jornalista, si quer um assunto é o
mesmo que perguntar ao pobre: - Queres uma esmola?”) ou até mesmo as restrições de
quem deveria escrever para agradar a todos (“não podemos externar com franqueza certos
pensamentos, sem ferir suscetibilidades e incorrer em desagrado” 491) isso, de maneira bem
mais intensa que nos outros jornais. Também fez sentir um tom melancólico em relação a
própria vida, principalmente pelo fato de não ter tido filhos e em relação a um passado
mais glorioso. Características que se tornam compreensíveis quando pensamos esses anos
como anos em que tudo que ele sempre havia defendido, como o sistema monarquista e a
cultura conservadora, estava sendo destruído pelo progresso e pela força irreversível que o
movimento abolicionista e republicano havia ganhado então492.
A partir desta pequena análise não pretendo reivindicar a elevação do nome de
França Junior para a lista dos grandes literatos do século XIX como Machado de Assis e
José de Alencar. Para o historiador esta análise literária tem valor secundário, pois o que
buscamos (a história) pode ser encontrado no mais brilhante romance ou no mais
corriqueiro folhetim. Posicionando-se abertamente a respeito das principais questões que
emergiram na segunda metade do século XIX, França Junior, assim como outros letrados
de seu tempo, fez da realidade “a uma só vez, a sua matéria prima e horizonte de
490
FREITAS, Luiz Eduardo Viveiros de. op.cit.
FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Folhetins. 4.ed. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Ribeiro dos
Santos, 1926.
492
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e científica do final do
Império. Rio de Janeiro: Editor FGV: Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Edur), 2007.
491
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intervenção”493. Essa atitude nos permite utilizar seus folhetins como importante fonte
histórica para a compreensão da cultura letrada no segundo império.
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MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e científica
do final do Império. Rio de Janeiro: Editor FGV: Editora da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (Edur), 2007.
493
CHAULHOUB, Sidney; op.cit.
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Cataguás: historiografia e imaginário social494
Renata Silva Fernandes495
RESUMO: De modo geral, a história mineira é apresentada por meio de conceitos e idéias
gerais pré-estabelecidos, reduzida na maioria dos casos aos movimentos políticos e
econômicos. Neste discurso os indígenas que habitavam a região quase nunca são
referenciados ou eleitos como sujeitos ativos que integram a história. Refutando estas
abordagens, no presente trabalho, apresentaremos os resultados preliminares da pesquisa,
cujo eixo principal, se volta para um determinado grupo indígena - os Cataguá. Este grupo
teria habitado o Sul, Oeste e Centro Oeste mineiro sendo apontado como aquele que mais
incutira terror aos bandeirantes paulistas. Nosso objetivo consistiu em confrontar fontes
variadas com o intuito de verificar a existência de grupos Cataguá.
PALAVRAS-CHAVE: Cataguás; Minas Gerais; Imaginário Social
ABSTRACT: In general, the Minas Gerais history is presented through concepts and
general pre-determined ideas reduced in most cases to political and economical
movements. In this discourse, the indigenous people who inhabited the region are almost
never referenced or elected as active subjects that integrate, interact and constitute the
history. Rejecting these approaches, in this paper, we present the preliminary results of the
study, whose major axis, turns to a particular indigenous group - the Cataguá. This group
would have inhabited the South, West and Midwest Minas Gerais, being hailed as the one
494
Trabalho de pesquisa elaborado sob orientação da Profª. Drª. Ana Paula de Paula Loures de Oliveira no
âmbito dos projetos do Museu de Arqueologia e Etnologia Americana da Universidade Federal de Juiz de
Fora.
495
Graduanda do curso de história da Universidade Federal de Juiz de Fora e estagiária do MAEA-UFJF (email: [email protected])
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who instilled more terror to the Paulist. Our objective consisted to compare various sources
in order to verify the existence of groups Cataguá.
KEY-WORKS: Cataguás; Minas Gerais; Social Imaginary
INTRODUÇÃO
Durante a colonização do Brasil não foram poucas as incursões realizadas ao
território mineiro. Bandeiras oriundas da Bahia, do Espírito Santo e de São Paulo
adentravam os sertões em busca de terras e metais preciosos. Quando esses desbravadores
passavam pela região, esta não estava despovoada e , ao contrario, era habitada por
variados grupos indígenas que possuíam costumes, línguas e tradições diversas. Além da
busca por metais e terras estava também a captura de indígenas, que quando não
escravizados, tinham suas terras doadas a outrem. Assim, estas bandeiras foram
determinantes para o “desbravamento” e povoação de Minas Gerais, e não menos
responsáveis pela “dizimação” de diversos grupos indígenas (Resende, 2003).
Ainda de acordo com Resende (2003), ao longo do século XVII e início do século
XVIII, pode-se considerar que o contingente de desbravadores saídos de São Paulo
conhecia de forma mais intensa a região Sul e Centro Oeste do atual estado de Minas
Gerais. Também durante tal período, estes sertões eram conhecidos pela toponímia Minas
Gerais dos Cataguás. Esta denominação desperta indagações acerca de sua origem: seria
Cataguás um grupo étnico que habitava essa região ou apenas uma denominação genérica
diante o desconhecido a frente dos bandeirantes que desbravaram essas paragens?
HISTORIOGRAFIA TRADICIONAL
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Inicialmente vale explicitar que estamos reconhecendo enquanto historiografia
tradicional aqueles trabalhos que são referenciados como pioneiros sobre a história dos
indígenas de Minas Gerais. Estes trabalhos foram produzidos quando a escrita da história
era bem diversa, mesmo diante a diferença temporal existente entre as obras. Os pioneiros
da temática que tratamos- Nelson de Senna e Diogo Vasconcelos estiveram ligados ao
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB) em seus primórdios, o que torna como
características de suas obras o teor regional / local. Como observa Martins (2009) neste
período, fim do século XIX e início do século XX, no qual as pesquisas foram produzidas,
no Brasil ainda não havia sido construído um ambiente “propriamente acadêmico”, e as
corografias eram as publicações mais freqüentes. Estas corografias, “estudos geográficos
de um país ou de uma de suas regiões associados a fatos históricos”, muitas vezes são
caracterizadas, de acordo com Martins (2009), pelo emprego de informações orais
advindas de “testemunhas” ou originários da tradição coletiva. Esta adoção de relatos orais
como fontes atualmente vem ganhado espaço nas pesquisas históricas através da história
oral. Entretanto a história oral quando utilizada como fonte envolve uma gama de
pressupostos, não correspondendo assim à simples coleta de depoimentos, tal como ocorre
nas corografias.
Durante a revisão bibliográfica atentamos para a aceitação generalizada por
parte dos autores representantes da historiografia tradicional dos quais as obras foram
consultadas, Senna (1843), José (1965), Vasconcelos (1999), Barbosa (1979), acerca da
existência dos Cataguás enquanto grupo étnico. Barbosa (1979), por exemplo, apenas
aceita a existência do referido grupo indígena, sem maiores referências, através de
afirmações como: “Ali o nome [Minas Gerais dos Cataguás] se justificava: o Sul de Minas,
zona limítrofe de São Paulo, fora o domínio dos índios Cataguá” (Barbosa, 1979, p.35). Já
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José (1965), Senna (1843) e Vasconcelos (1999), dedicam alguns parágrafos de suas
pesquisas a tal grupo apesar das divergências quanto ao conteúdo do discurso.
Para Senna (1843) os Cataguás eram “terríveis índios da região Centro, Oeste e
Sul de Minas”. Descendentes dos Tremembés, o grupo teria saído do Jaguaribe em direção
aos Vales do Alto São Francisco e Rio Paranaíba. Para os Cataguás (gente boa) os paulistas
e os índios de além Mantiqueira eram a “gente ruim” (os Pixi-auás). Os sertanistas, com
auxílio dos Tremembé, no século XVII, repeliram os Cataguás do Sul (Sapucaí e Rio
Grande) para o Oeste (Rio das Mortes, Piumhy, Tamanduá e Abaeté). Ainda segundo
Senna, a memória “desses belicosos índios” é guardada por dois topônimos: o da cidade de
Cataguases, na Zona da Mata Mineira e o de um vilarejo no município de Prados,
conhecido como Catauá, visto que tal grupo foi “completamente batido” por Lourenço
Castanho Taques.
Barbosa (1979) discorda da informação referente à Cataguases. Para ele, o nome
original desta cidade mineira era Meia Pataca, e não há nenhuma relação entre o topônimo
e os Cataguás, mesmo porque este grupo se situava em uma região bem diversa da qual
está à cidade. Tal nome teria sido colocado quando o arraial foi elevado à vila, e por
influência do Coronel José Vieira, a toponímia foi determinada por fazê-lo lembrar da
infância, quando morava perto de uma localidade chamada Cataguás.
Vasconcelos (1999) é de opinião semelhante. De acordo com este autor os
Tremembés, saídos do Jaguaribe, se dividiram em dois seguimentos: uma parte do grupo
subiu o São Francisco até as suas nascentes e a outra percorreu o Parnaíba, ambas
encontrando-se no vale do Rio Grande. As duas levas lutaram entre si pelo domínio do
território e a posse foi decidida nas proximidades do Rio Sapucaí. Os derrotados
transpuseram a Serra da Mantiqueira, instalando-se nos arredores de Taubaté e os
vencedores permaneceram no território conquistado, espalhando-se até o Rio das Mortes.
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Na guerra eles chamavam a seus inimigos de pixaiauá (gente ruim) e a si mesmos de
Cataguá (gente boa). Aqueles, que haviam sido derrotados, se aliaram a bandeira de Felix
Jaques, repelindo seus inimigos para Pium-í e Tamanduá. Mais tarde, os Cataguás foram
definitivamente derrotados e massacrados pela bandeira de Lourenço Castanho Taques, em
1675, sendo que o lugar onde foi travada a luta ficou conhecido como Conquista.
Derrotados ou já miscigenados, os Cataguás debandaram em outras hordas.
José (1965) adota perspectiva semelhante. A única variação considerada
significativa é que segundo este autor os Cataguás não eram descendentes dos Tremembés
e sim foram expulsos da região de Jaguaribe pelos mesmos.
Podemos observar através deste recorte algumas informações fornecidas possuem
coerência. Revisando, alguns pontos parecem ser cruciais nestas abordagens: a) em todas
são estabelecidas analogias entre os indígenas Cataguás e os Tremembés; b) em relação à
geografia, o Rio São Francisco, o Rio Grande e o Rio Sapucaí são sempre citados; c) uma
possível briga interna do grupo sempre é mencionada; d) comumente o bandeirante
paulista Lourenço Castanho Taques é apontado como aquele que “derrotou
definitivamente” os indígenas Cataguás. Com vistas à compreensão de alguns destes
elementos individualmente – os Tremembés e a bandeira de Lourenço Castanho Taques vale explicitar o que frequentemente é narrado sobre eles.
De acordo com Gomes et al. (2000), o nome Tremembé parece ter sido dado a este
grupo indígena pelos portugueses devido aos locais que habitavam, conhecidos como
“tremedais”, “tremembés” e “tramembés” – equivalentes a pântanos. Para Pompeu
Sobrinho (1951) os Tremembés eram caçadores e pescadores nômades, que vagavam em
pequenos grupos abrigando-se em choupanas simples e pouco elaboradas. Ainda segundo
Gomes et al. (2000), estudos lingüísticos concluíram que a língua dos Tremembés era
autônoma, ou seja, sem possibilidade de enquadramento em uma das famílias e/ou troncos
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lingüísticos conhecidos. Resende (2003) discorda desta posição afirmando que os
Tremembés pertenciam à família lingüística dos cariris, grandes inimigos dos tupis.
Quanto à bandeira de Lourenço Castanho Taques, comumente é narrado que
adentrou o território mineiro e consolidou os caminhos para as Gerais em 1668. Segundo
Villanueva496 o sucesso desta bandeira se deveu a derrota imposta aos índios ‘cataquazes e
araxás’. Vasconcelos (1999) é de mesma opinião e afirma que: “A glória de Castanho foi,
sem a menor dúvida, o aniquilamento dos Cataguás...”. (Vasconcelos, 1999, p.96)
De todo modo, esta análise, apesar das especificidades, nos indica dois caminhos
possíveis: estes autores se basearam nas mesmas fontes, porém as interpretaram de forma
diversa, o que parece pouco provável visto a ausência de indicação das mesmas, ou, todos
seguiram os passos de um autor, neste caso Senna (1843), modificando aquilo que lhes
convinha ou acrescentando dados de acordo com outras fontes. Adotando-se esta segunda
perspectiva, as narrativas não deixam de ser relevantes, tendo em vista que estas pesquisas
foram produzidas em determinado contexto e aceitas por seus contemporâneos. A recepção
da informação, ou mesmo, o fato de que quem as escreveu acreditar em sua veracidade já é
significativo para a história, neste caso mais especificamente, para a história das
ideologias.
ABORDAGENS RECENTES
Ao contrário do que observamos em relação à historiografia tradicional, pesquisas
recentes vêm polemizando e colocando em dúvida a existência da Nação Cataguá. Isto
decorre principalmente do fato de que autores (Vasconcelos, Senna e Barbosa)
496
http://www.ifch.unicamp.br/ciec/revista/artigos/dossie5.pdf (25/08/09)
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considerados como principais referências acerca de tal grupo, não citam as fontes primárias
nas quais se apoiaram.
Tomaremos como exemplo o trabalho Arqueologia Regional da Província Cárstica
do São Fancisco de Henriques (2006). Antes de adentramos nos pressupostos estabelecidos
por esse pesquisador, cabe destacar que muitas de suas idéias já eram defendidas por
autores como Taunay (1948). Henriques (2006) afirma que algumas hipóteses associam
erroneamente os indígenas Cataguás as culturas ceramistas UNA e ARATU/SAPUCAÍ,
pois, no encalço de Senna (1843) e Vasconcelos (1999), os Cataguás, nestes casos, são
referenciados como grupo étno-histórico. Para Henriques (2006), os bandeirantes paulistas,
que não raramente eram fluentes na língua tupi, utilizavam o termo Cataguá para designar
os grupos indígenas que não habitavam as florestas. Desta forma Cataguá significa aquele
que vive no mato - caá (campo, mato ou árvore); tã (duro ou bruto) e guá (vale). Seria a
denominação genérica para os grupos indígenas que habitavam o atual território mineiro.
As hipóteses que fazem a associação entre os indígenas Cataguás e as culturas
ceramistas UNA e ARATU/SAPUCAÍ são encontradas nos trabalhos de Prous e Dias Jr.
Prous (1992).
Prous (1991), apresentando o sítio da fazenda São Geraldo, no município de Ibiá,
Minas Gerais, informa que a cerâmica encontrada inclui urnas globulares de superfície
áspera, com a boca circundada por uma incisão, e urnas intermediárias, reservadas
provavelmente a sepultamentos de crianças. O material lítico por sua vez, é formado por
lascas e pequenos blocos, além de alguns machados. Neste sítio, há coexistência de
cerâmica SAPUCAÍ com vasilhames assemelham-se com os da tradição UNA. Sobre este
aspecto comenta que Dias Jr., fez observações semelhantes:
falou na reunião em Goiás que o material da tradição Sapucaí
apresentava características por vezes mais próximas da tradição
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UNA do que da ARATU, da Bahia; no entanto não se estendeu em
pormenores sobre esse assunto. Esses sítios da região sudoeste
mineira costumam ser atribuídos aos Cataguás, que resistiram
demoradamente aos invasores brancos, mas não chegaram a ser
estudados. (Prous, 1991, p. 352)
Portanto, tanto Prous quanto Dias Jr. aceitam a existência dos indígenas da Nação
Cataguá enquanto grupo étno-histórico específico. A tradição ARATU é descrita por Prous
(1991) como originária do Nordeste, visto que, a datação mais antiga desta tradição (400
AD) foi obtida no Litoral Norte e no Recôncavo Baiano. A cultura UNA, presente em
extensa área do Brasil Central pode ser encontrada nos estados do Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Goiás e Espírito Santo.
Tomaremos Resende (2003) como referencial dos trabalhos recentes de perspectiva
diversa a de Henriques (2006). Esta autora afirma que recentemente vestígios
arqueológicos dos indígenas da Nação Cataguá foram encontrados na Fazenda dos
Dutra497, no município de Entre Rios de Minas onde ainda existe um lugarejo denominado
de Cataguá. A perspectiva adotada por Resende (2003) assemelha-se àquela narrada por
Senna (1843) e Vasconcelos (1999), no entanto, esta autora traz um novo elemento: a
citação de uma fonte primária que faz referência direta a este grupo, contrapondo deste
modo, um dos principais argumentos daqueles que tratam o etnômio Cataguás como uma
denominação genérica. Segundo esta autora, no Arquivo da Biblioteca Nacional498, há
documentação de meados de 1730, segundo a qual o Conde de Sarzedas, através de
determinação régia, permitiu que Antonio Pires Campos escravizasse os indígenas
Cataguás “por causa das mortes, roubos e insultos que tem feito os gentios Cataguases e
mais bárbaros que infestam essas Minas”.
497
O sítio referido é denominado de João Maia e possui caráter multicomponencial pré-colonial. Foram
encontrados urnas funerárias e artefatos cerâmicos ao longo do trabalho realizado na área pela equipe de
arqueologia da UFMG. (www.iphan.gov.br/) (16/09/2009)
498
Arquivos da Biblioteca Nacional, sessão de manuscritos, Papéis Vários Manuscritos 1, 4, 1, doc. 18
(22/09/2009)
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Podemos observar através da análise das informações fornecidas pelos trabalhos
recentes, que os difusores da concepção da existência dos Cataguás, possuem um discurso
semelhante àquele proferido pelos autores da historiografia tradicional. Entretanto, as
principais críticas tecidas pelos que defendem a idéia de que essa era uma denominação
genérica, tal como Henriques, se fundamentam em uma atitude crítica em relação aos
trabalhos produzidos pela historiografia tradicional. Portanto, também não citam as fontes
primárias que conduziram suas interpretações. Trata-se de uma postura semelhante à
adotada pelos autores considerados tradicionais, que foram atacados justamente por este
motivo.
Independentemente das fontes aqui analisadas, sabe-se que os portugueses e os
bandeirantes identificavam os indígenas por termos que não correspondem à toponímia
com a qual tais indígenas se reconheciam, dificultando assim a pesquisa. Estes povos eram
denominados de “gentios”, “brasis”, “negros da terra” e mais, recebiam nomes advindos de
estereótipos estabelecidos. Por exemplo, os coroados não se reconheciam enquanto tal pois
esta designação lhes foi dada pelos portugueses, fazendo referência a forma circular dos
cabelos que estes utilizavam. O mesmo acontece com “tremembés”, “puris” e “botocudos”,
todas estas denominações externas499.
IMAGINÁRIO SOCIAL
Além do trabalho dos pesquisadores já mencionados é possível encontrar
referências em relatos de indivíduos da região sul/oeste/centro oeste mineiro acerca dos
indígenas Cataguás.
499
Ver: FREIRE, Carlos augusto da Rocha & OLIVEIRA, João Pacheco de. Presença Indígena na Formação
do Brasil. Brasília: Edições MEC/UNESCO, 2006.
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A título de exemplo, em relatos informais500, encontramos informações501 de que o
último chefe indígena da Nação dos Cataguás era conhecido como Itajibaçú e seu filho
como Jaquariuna, sendo que este último teve como descendente a Sra. Delfina Constança
de Magalhães ilustre moradora de Baependi, Minas Gerais. Há também lendas locais
acerca deste grupo502, como a de São Tomé das Letras, segundo a qual, Lourenço Castanho
Taques, perseguindo os Cataguás, os encurralou na serra onde hoje se localiza o município
de São Tomé das Letras. Os índios depuseram as armas em uma gruta, na qual há
inscrições rupestres indecifráveis. Taques intrigado com as escrituras perguntou quem as
havia feito e os indígenas responderam: “Foi Sumé”. Os padres, quando chegaram á região,
aproveitaram-se da semelhança entre as nomenclaturas Sumé e São Tomé, atribuindo as
escrituras a este santo, que somados as letras da caverna deram o nome à cidade, São Tomé
das Letras.
Topônimos de cidades também são justificados mediante a presença dos índios
Cataguás. O nome Caxambu, por exemplo, segundo Maurício Ferreira503 tem origem no
dialeto dos nativos habitantes Cataguás, onde Caxambu derivaria de Catã-mbu (algo
semelhante a borbulhas na água).
Visto estes aspectos, constatamos a presença dos Cataguás no imaginário social.
Este elemento nos leva a indagar: se Cataguás era uma denominação genérica para os
grupos de além Mantiqueira, que não habitavam as florestas, por que os mesmos estão
presentes no imaginário social de uma região específica? Por que autores como Senna
(1843) e Vasconcelos (1999) afirmam a existência deste grupo?
500
Estamos denominando de “relatos informais” depoimentos de indivíduos dessa região retirados da
internet, que por isso, não reconhecemos enquanto fonte. Neste caso, estão representando uma tradição oral,
agora transcrita, porém que não foi coletada mediante o trabalho de história oral ou outra metodologia
acadêmica.
501
http://www.pedigreedaraca.com.br/barao_de_alfenas.doc?pedigree=c0351877e6d63baaa6 (25/07/2009)
502
http://www.viafanzine.jor.br/fonseca_mat.htm (01/08/2009)
503
http://www.descubraminas.com.br/DESTINOSTURISTICOS/hpg_pagina.asp?id_pagina=1660&id_pgiSu
per (25/07/2009)
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A primeira indagação talvez seja a resposta da segunda. Como mencionado
anteriormente,
estes
–
autores
Senna
(1843)
e
Vasconcelos
(1999),
não
descontextualizados de seu meio (as corografias) podem ter-se baseado em relatos orais.
Além do mais, a inexistência da escrita indígena somada ao fato de que as fontes escritas
que possuímos acerca deste período foram produzidas pelo “outro”, portanto carregadas de
estereótipos,
torna
evidente
a
importância
da
tradição
oral
nesta
temática,
independentemente do modo como os relatos orais foram recolhidos.
Mas e quanto à resposta a primeira indagação? O conceito de imaginário social é
definido de diversas maneiras, muitas das quais conflitantes. A perspectiva que adotamos
neste trabalho está relacionada com a concepção de que o imaginário social “compreende o
conjunto de imagens que formam a memória afetivo-social de uma coletividade,
permeadas por aspectos ideológicos”. Durand (apud Carvalho 2009) afirma que o
imaginário social é o estado de espírito de um grupo, de um país, de uma comunidade etc,
sendo que ele estabelece vínculo, é “o cimento social”. Por esta perspectiva, o imaginário
social é de significativa importância para o estudo desta temática, principalmente devido a
pouca disponibilidade de fontes documentais primárias. Pretendemos com o trabalho de
história oral, previsto para a segunda etapa, adentrar nesta perspectiva e com isso
compreender melhor a presença dos Cataguás na memória coletiva e também, somar
elementos que auxiliem a confirmação ou não de nossas hipóteses. Afinal, como observa
Silva (2004) o imaginário é uma representação mental, que ocorre de forma consciente ou
mesmo inconsciente, muitas vezes formada a partir de “vivências, lembranças e percepções
passadas”, que, no entanto, podem se modificar em decorrência de novas experiências.
CONCLUSÃO
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Diante análise das fontes secundárias e tendo em vista a presença deste grupo
indígena no imaginário social, arriscamo-nos a fazer proposições. Possivelmente os
Cataguás faziam parte de alguma coletividade que permitia aos colonizadores os
enquadrarem especificamente a esta denominação. Isto significa, por exemplo, que
possuíam língua, atitude ou aparência física e/ou cultural específica. Esta hipótese pode ser
confirmada pelo seguinte trecho, retirado do Códice Costa Matoso:
Entraram a conquistar desde São Paulo por esse lugares que hoje
são vilas. Itu, Parnaíba, [Mogi?], Jacareí, Pindamonhangaba,
Guaratinguetá, Piedade. Passando ao sertão, deram com uma aldeia
neste distrito de Rio das Mortes, a que chamam Cataguases, onde
prendendo muito gentio do beiço e orelhas furadas, estes falaram,
perguntando por que os perseguiam; se era pelo que traziam no
beiço e nas orelhas, que os largassem, que lhes iriam mostrar. Não
levados os paulistas detas oferta, nunca deixaram ” de os prender, e
logo para o rio das Mortes foi uma bandeira com seu capitão
chamado Jaguara, que na língua dos carijós é cachorro. A estes
mostrou um dos capitães do gentio o ouro no capim, em folhetas, e
outro, como grãs de minição. (p.218)
Ao que parece, o etnômio Cataguá (Cataguases) pode ter sido dado pelos
bandeirantes paulistas aos grupos que ali viviam, visto que são os “conquistadores” que
chamam a “aldeia” deste modo, o que contradiz a informação da autodenominação.
Entretanto, não é descartada a hipótese que estes indígenas podem realmente ter
constituído um grupo étnico, integrante dentre aqueles conhecidos genericamente como
botocudos, os gentios “do beiço e orelhas furadas”. Os botocudos, segundo Cunha (2008),
receberam esta denominação genérica, dada pelos colonos, devido à utilização de botoques
labiais e auriculares de madeira. Pertencentes a família Macro-Jê, como observa Marinato
(2007) os subgrupos denominados genericamente de botocudos, que inclui diversas etnias
como Poxijá, Jiporoc, Naknenuk, krenak, dentre outras, caracterizavam-se por diversidades
internas, inclusive lingüísticas, sendo muitos dentre eles rivais. Apesar das diversidades,
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segundo Mattos (2002) os botocudos compartilhavam um sistema sociocosmológico
semelhante. De acordo com Cunha (2008), os botocudos eram caçadores seminômades,
caracterizados pelo “constante fracionamento do grupo, pela divisão natural do trabalho e
por um sistema religioso centrado na figura dos espíritos encantados dos mortos”. Os
botocudos também eram conhecidos, segundo Marinato (2007) como “ferozes” e
“antropofágicos” devido à resistência e belicosidade por eles demonstrada aos
colonizadores sendo tratados por isso como “gentios bravos”.
Deste modo, encontramos informações pertinentes que induzem a aceitação da
existência dos Cataguás enquanto grupo étnico. Tanto os Cataguás como os botocudos são
caracterizados por divisões internas e ambos eram conhecidos como “gentios bravos” no
caso dos botocudos e como “aquele que mais incutira terror aos bandeirantes paulistas” no
caso dos Cataguás. Entretanto, o trabalho de história oral será necessário para confirmação
ou refutação desta hipótese e mais ainda para compreensão deste grupo no imaginário
social.
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Quando o “Libertino” Escreve Sobre Mulheres: Uma análise sobre as
personagens femininas nos romances de Voltaire.
Renato Sena Marques*
RESUMO: Este trabalho tem como principal objetivo discutir as representações de
Voltaire acerca das mulheres. Para tal intento, utilizo romances como fontes primárias.
Trabalho também partindo de um pressuposto: as representações das mulheres para o
Voltaire romancista diferem das tidas pelo Voltaire enquanto tratadista. Objetivo
apresentar os romances enquanto fontes possíveis para um melhor entendimento da
Ilustração, além de aumentar as possibilidades de conhecimentos sobre as diferentes visões
de Voltaire, enquanto romancista, sobre as mulheres dos setecentos. Trago também uma
discussão, tendo como sujeito de análise as mulheres, sobre a aplicabilidade (ou não) do
termo “libertino” para Voltaire.
PALAVRAS-CHAVES: Voltaire, mulheres, romances, libertinos.
ABSTRACT: This work has as main objective to argue the representations of Voltaire
concerning the women. For such intention, I use romances as primary sources. Work also
leaving of one estimated: the representations of the women for the romancista Voltaire
differ from the had ones for the Voltaire while author of a scientific treatise. Objective to
present the romances while possible sources for one better agreement of the Illustration,
beyond increasing the possibilities of knowledge on the different visões of Voltaire, while
romancista, on the women of the seven hundred. I also bring an analysis quarrel, having as
subject the women, on the applicability (or not) of “the libertine” term for Voltaire.
*
Universidade Federal de Juiz de Fora.
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KEYWORDS: Voltaire, women, romances, libertines.
François Marie Arouet, o ”Voltaire” (1694-1778), está entre os personagens mais
importantes do movimento conhecido por Ilustração. De suas cartas, passando pelos
tratados e chegando até seus romances, a obra de Voltaire é deveras abrangente. Neste
trabalho, especificamente, utilizaremos o Voltaire romancista.
Observaremos como este autor se posiciona com relação às mulheres. Sabemos, a
propósito, que Voltaire já teria pensando a “mulher” em seu Dicionário Filosófico (1764;
Dictionnaire Philosophique). Contudo, vemos ali um estudo sobre um conceito. É a mulher
analisada sem a influência de um tempo específico.
504
E nisso não estamos interessados.
Queremos, ao contrário, compreender como Voltaire via a mulher dentro de um contexto
delimitado: o século XVIII. E nesse aspecto os romances, fontes principais deste artigo,
nos concede um apoio de suma importância. Por quê?
Para Ian Watt, os romances do século XVIII poderiam ser vistos como “modernos”.
Tal adjetivo se justificava, segundo o autor, pelo fato destes, ao contrário de gêneros
anteriores (as obras de “belas letras”, por exemplo) se comprometerem com uma descrição
de um pretenso “real”. Seria preciso (sem querer aqui acorrer em anacronismos) que os
leitores se identificassem com as ações descritas. Mesmo que para isto os romances
abdicassem de uma narrativa mais formal. Para Watt,
(...) já que o romancista tem por função primordial dar a impressão
de fidelidade à experiência humana, a obediência a convenções
formais preestabelecidas só pode colocar em risco seu sucesso.
Comparado à tragédia ou a ode, o romance parece amorfo –
504
Não negligenciamos, no entanto, que mesmo na própria formulação deste conceito exista a influência de
uma conjuntura setecentista.
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impressão que provavelmente se deve ao fato de que suas
convenções formais seria o preço de seu realismo. 505
Além deste rompimento com um certo formalismo narrativo os romances
buscavam, em sua maioria, descrever todas as ações com minúcias. E isto se vê tanto nas
especificações sobre o tempo e os espaços focalizados, quanto nos nomes das personagens.
Por essas características, Watt chega a comparar os romances com um
(...) outro grupo de especialistas em epistemologia, o júri de um
tribunal. As expectativas deste como as do leitor de um romance,
coincidem sob muitos aspectos: ambos querem conhecer “todos os
particulares” de determinado caso - a época e o local da ocorrência;
ambos exigem informações sobre a identidade das partes
envolvidas (...) e também esperam que as testemunhas contem a
história com suas próprias palavras. 506
Evidentemente, existiu um contexto por onde essa busca pela precisão se inscreveu.
Aceitamos, para balizar tal assertiva, o cenário traçado por Paul Hazard. Para este, parte da
Europa, no final do século XVII e início do século XVIII, teria experimentado uma “crise
de consciência”.
507
A despeito da pertinente opinião de Rouanet, que vê no século XVIII
não uma “crise de consciência”, mas uma “cristalização” de um ideal de civilização,508 não
nos circunscrevemos, no entanto, no recorte proposto por Hazard. Em outros termos:
entendemos que a “crise de consciência” não teria se findado em 1715. A “Fronda
Espiritual”509, termo dado por Hazard à inquietação dos homens de finais do século XVII e
inícios do século XVIII, teria, em nosso parecer, permanecido nos debates que envolveram
505WATT, Ian. A Ascensão do Romance. Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução de
Hildegard Feist, 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 15.
506
Ibidem, p.31.
507C.f. HAZARD, Paul. Crise da Consciência Européia. Lisboa: Edições Cosmos, 1971.
508C.f. ROUANET, Sérgio Paulo. Dilemas da Moral Iluminista. In: NOVAES, Adauto (org). Ética. São
Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
509HAZARD,Paul, op, cit.
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os homens de letras em todo os setecentos. Para Cassirer, seria nesses debates que o
movimento iluminista encontrava força para sua permanência e sua ascensão.
(...) o pensamento iluminista consegue sempre extravasar do
quadro rígido do sistema e libertar-se, justamente nos espíritos mais
fecundos e mais originais, da sua estrita disciplina. Não é nas
doutrinas particulares, nos axiomas e teoremas em que ele acaba
por fixar-se que esse pensamento manifesta com maior clareza a
sua estrutura e a sua orientação característica, mas quando se deixa
empolgar no próprio devir de sua elaboração, quando duvida e
averigua, quando derruba e constrói. A totalidade desse movimento
incansavelmente flutuante, em permanente fluxo, não poderia
reduzir-se a uma simples soma de opiniões individuais. 510
E, de certa forma, serão nas conseqüências destes debates que podemos ver
inseridos (e por que não surgirem?) os romances.
A “crise de consciência” é também uma crise de paradigmas. Trata-se de uma
percepção (e uma inquietação) dos indivíduos com um contexto de mudanças. Kosseleck
nos fala sobre uma modernidade que teria trazido, dentre outras, uma redução no campo
das experiências e um alargamento dos horizontes de expectativas. 511 É o que parece sentir
Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Até mesmo para o filósofo genebrino a modernidade
lhe causa uma sensação de estranhamento:
Eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e
tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando
diante de meus olhos, vou ficando aturdido. De todas as coisas que
me atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas
perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que
eu sou e qual meu lugar. 512
510CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. (Tradução: Álvaro Cabral). Campinas: Editora da
Unicamp, 1994, p. 12.
511C.f. KOSSELECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2006.
512ROUSSEAU, Jean Jacques, apud BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo,
Companhia das Letras, 1987, p 17.
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Os romancistas escreviam, pois, nesta (e para esta) conjuntura. Destarte, não é de se
estranhar que homens como Montesquieu (1689-1755) e Jonathan Swift (1667-1745)
tenham ridicularizado o “reino do fantástico” contido em gêneros anteriores aos romances.
Em Cartas Persas (1721; Lettres Persanes), Montesquieu assim caracterizará os romances
de cavalaria: (...) “esses seriam nossos romances: aventuras tão insulsas e que a cada passo
se repetem, nos enfadam e nos repugnam os prodígios disparatados de que estão cheios”.
513 Swift, por sua vez, afirma desejar
(...) que fosse decretado por lei que, antes de qualquer viajante
publicar a relação das suas viagens, jurasse em presença do grãchanceler que tudo o que mandasse imprimir, fosse exatamente
verdadeiro, ou, pelo menos, que assim o julgasse. O mundo não
seria enganado como é todos os dias. 514
Não somente uma literatura anterior aos romances setecentistas foi criticada. A
História, com seu pouco apego à veracidade dos fatos e demasiada proximidade com as
belas descrições, também se constituiu alvo das críticas ilustradas. Rousseau, em seu
Emílio ou Da Educação (Émile ou De L’éducation), percebe a História como um trabalho
que distancia o leitor daquilo que é observado. Tal característica o leva, inclusive, a fazer
com que seu Emílio conheça os homens pela História. Somente assim, este último não se
aproximaria demasiadamente dos demais indivíduos. Distintamente, os romances, para o
genebrino, traziam situações “reais” que, por conseguinte, aproximava o leitor daquilo que
se narrava. A História, pensada por Rousseau, não poderia trazer qualquer tipo de
ensinamento moral. Era “distante”, “fria”, e, para muitos letrados (inclusive para
Rousseau), um trabalho falseado pelos historiadores. Os romances, ao contrário, poderiam
513MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Cartas Persas. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1969, p.237.
514SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. São Paulo: Editora Brasileira, 1950, p. 334.
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fornecer algum tipo de ensinamento moral. Era íntimo ao leitor 515 e à conjuntura vivida
por este. Por esta razão, Rousseau, ao que tudo indica, enxerga nos romances – naquele
contexto específico – algo superior a História.
(...) pouca diferença vejo entre esses romances e vossas histórias, a
não ser pelo fato de que o romancista entrega-se mais à sua própria
imaginação, e o historiador submete-se mais à de outrem; ao que
acrescentarei, se quiserem, que o primeiro propõe-se um objeto
moral, bom ou mau, com que o outro pouco se preocupa.516
Rousseau nos traz um elemento novo: a idéia de uma “edificação moral” a ser
fornecida pelos romances. É o que também parece propor Daniel Defoe (1660-1731) em
seu Moll Flanders (1722; Moll Flanders).
Através da imensa variedade deste livro, apegamo-nos estritamente
a uma idéia básica: não incluir, em nenhuma parte, alguma ação
perversa que não dê origem a conseqüências infelizes: não por em
cena um autêntico vilão sem que acabe mal ou seja levado a se
arrepender: não mencionar qualquer ato criminoso sem condená-lo
na própria narrativa e nenhuma ação virtuosa e justa que deixe de
receber seu louvor. 517
Pelo trecho acima, podemos entender que a “edificação moral” seria, grosso modo,
o castigo para o “vício” e o louvor (uma difusão?) a ações vistas como “virtuosas”. E aqui,
ao que tudo indica, reside a “instrução” dos romances. Instruir seria, portanto, apontar o
caminho a ser seguido em um tempo de estranhamento. Os romancistas, sob esse prisma,
teriam um duplo papel: formar uma opinião pública e instruir aqueles que, em seus pontos
de vista, possuíam menos luzes518. Mesmo que renunciassem a uma glória como homens
de letras (pois os romances eram, frequentemente, vistos como gêneros "menores"), os
515
É preciso, no entanto, ser cauteloso com o conceito “público”. Segundo Rouanet, a opinião pública, para
qual se dirigia os romances é distinta de uma opinião popular. C.f. ROUANET, Sérgio Paulo, op.cit.
516
ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou Da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.314.
517
Ibidem, p. 12.
518
C.f. ROUANET, Sérgio Paulo. Mal estar na modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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romancistas acreditavam no valor de tal sacrifício. Afinal, e assim acreditavam, era para o
bem público que escreviam. Segundo Swift,
(...) talvez me aconteça o mesmo; viajantes irão aos países em que
estive, inquirirão das minhas descrições, farão cair o meu livro e
esquecer (...) Veria isso como uma verdadeira mortificação, se
escrevesse para a glória; como, porém, escrevo para a utilidade
do público (negrito meu), nenhum cuidado me dá e estou
preparado para todas as eventualidades. 519
A importância dos romances para a pesquisa histórica reside, sobretudo, na
possibilidade de observarmos como certos conceitos foram aplicados dentro de uma
conjuntura específica. Existe, em nosso ponto de vista, uma diferença entre os
pensamentos do filósofo enquanto tal e os pensamentos do filósofo enquanto romancista.
Adotando uma postura um tanto generalizante, podemos dizer que o primeiro trata sobre
um conceito no âmbito do universal. Por sua vez, o segundo, pelas próprias características
do romance, expõe seu conceito à vivência (ou a percepção de vivência por parte do autor)
em um determinado contexto. E, especificamente para os romances setecentistas, que
procuravam “divertir, instruir e edificar”520 seus leitores, essa exposição de um
determinado conceito, em um tempo de “crise de consciência”, poderia acarretar uma
instabilidade para um determinado “ordenamento social”. E em tal cenário, estariam os
próprios romancistas isentos de sofrerem as conseqüências de suas obras?
Uma resposta a tal questionamento deve passar, assim supomos, por uma
observação às biografias de alguns destes “filósofos romancistas”. Voltaire, por exemplo,
está longe de abandonar uma vida de prazeres na corte. Sua distância com relação à
canaille521 é tão evidente quanto sua dificuldade em se aproximar de uma ética burguesa
519SWIFT, Jonathan. op, cit, p. 333.
520 C.f. VILLALTA, Luiz Carlos. Censura e Romances: perspectivas distintas de instruir, divertir e
edificar?
521 C.f. ROUANET, Sérgio Paulo, op.cit.
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do trabalho, nos moldes propostos por Max Weber.522 Daniel Defoe, por seu turno, é, ao
contrário de Voltaire, alguém mais distante dos salões. Seu prazer, a julgar por suas obras,
é a recompensa ao lucro. Se observarmos Robinson Crusoé vemos que este, através do
trabalho, vence uma ilha inóspita transformando-a em uma próspera colônia. Destarte tais
diferenças em suas biografias, tanto Voltaire quanto Defoe se aproximam ao pensar o
público para quem destinavam suas obras. De acordo com Defoe, em sua apresentação de
Moll Flanders, o romance não se dirigia a um público irrestrito. Era preciso que o romance
encontrasse um leitor que compreendesse o ensinamento moral e não que se abandonasse
na “mundalidade” de Flanders.
Mas, como esta obra se destina principalmente aos que saibam
lê-la e utilizar-se bem do que é recomendado ao longo de toda
ela (negrito meu), pode-se esperar que esses leitores fiquem mais
interessados pela moral que pela fabulação; mais com a aplicação
daquela que com a narrativa; mais com a intenção do escritor que
com a existência da personagem a respeito da qual escreve.
É nesta tensão – escrever sobre o “real” e limitar a apreensão deste a um público
específico – que Voltaire representava a mulher em seus romances. Talvez por essa razão
não nos seja possível circunscrever suas obras a uma “libertinagem de costumes”. Não
existia apenas a diversão. Em Voltaire fica evidente, especificamente ao tratar sobre as
mulheres, também o caráter “instrutivo e edificante” de suas narrativas. 523
Observemos três de suas protagonistas: Cunegundes, de Cândido ou O otimismo
(1759; Candide ou l'optimisme), Astartéia, de Zadig ou O destino (1747; Zadig ou La
Destinée) e Formosante de A Princesa de Babilônia (1768; La Princésse du Babylogne).
522C.f. WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1992.
523
Sobre a relação entre romances e libertinagem: C.f. PRADO, Raquel de Almeida. Ética e Libertinagem
nas Relações Perigosas. In: NOVAES, Adauto (org). Libertinos Libertários, op.cit.
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A principal característica, comum a essas personagens, é a beleza física.
Cunegundes é assim descrita: “(...) contava dezessete anos, era corada, fresca, rechonchuda
e apetitosa”.
524
Astartéia, por sua vez, “(...) era muito mais bonita do que aquela Semira
que tanto odiava aos caolhos, e do que aquela outra mulher que quisera cortar o nariz ao
esposo”. 525
Formosante é tida como (...) o que havia de mais admirável em Babilônia, o que eclipsava tudo o
mais, era a filha única do rei chamada Formosante. Foi segundo os seus retratos e estátuas que,
séculos após, Praxíteles esculpiu a sua Afrodite e aquela a que chamaram a Vênus das belas nádegas.
Que diferença, ó céus, do original para as cópias! De modo que Belus era mais orgulhoso da sua filha
que do seu reino. Tinha esta dezoito anos (...). 526
Essa idealização da beleza feminina, nos romances de Voltaire, parece ter um
propósito: realizar um contraste entre o belo – personificado na “pureza das formas” de
suas protagonistas – e um contexto onde determinados valores passaram a ser repensados.
Em outros termos: como se insere (ou deveria se inserir) uma bela mulher em um tempo de
“crise de consciência”?
O “Voltaire romancista”, ao pensar a mulher não como um conceito atemporal (que
parece ser a estrutura de seu Dicionário Filosófico), mas como um determinado ser
vivendo em determinada conjuntura (que é, a nosso ver, a proposta dos romances
setecentistas) cumpre um dos objetivos pensados por tais gêneros: o da instrução. Como já
dissemos, a mulher volteriana (pelo menos suas protagonistas) possui juventude e beleza.
Essas duas características, entretanto, poderiam ser maléficas àquelas que não possuíssem
524VOLTAIRE, François Marie Arouet. Cândido ou O Otimismo. Rio de Janeiro: Ediouro. São Paulo:
Publifolha, 1998, p. 12.
525_____________________________. Zadig ou O Destino. In: MORES, Ridendo Castigat, eBookLibris.
Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/zadig.html.
526_____________________________. A Princesa de Babilônia. In: MORES, Ridendo Castigat,
eBookLibris. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/babilonia.html.
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conhecimentos. Jovens e belas, as mulheres, nos romances de Voltaire, são alvos da cobiça
masculina. Estes, por sua vez, nem sempre possuíam intenções “virtuosas”. 527
Como fugir a isso? Pelo uso da razão. E aqui devemos nos ater a um ponto: a
“Razão”, entendida como o valor da observação sobre preceitos já preestabelecidos,
528
é
também uma possibilidade feminina. Mais do que isso: é algo imprescindível para o bem
viver da mulher, pois ela é “em geral mais fraca do que o homem”
529
e propensa ao
domínio masculino: “não é espantoso que em todos os países o homem se tenha tornado
senhor da mulher, pois tudo está fundamentado na força e normalmente ele apresenta uma
superioridade muito grande tanto na força corporal como também na espiritual”.
530
É
assim que duas (Cunegundes e Formosante) das três protagonistas que selecionamos,
possuem destinos distintos.
Cunegundes, protagonista de Cândido ou O otimismo, é bela, porém, sem “luzes”
(no sentido do conhecimento como importante instrumento para se conter as paixões).
Cunegundes é para Voltaire o oposto do que foi, para Jean-Baptiste de Boyer (Marquês
D'Argens)531 a personagem Teresa, do romance Teresa Filosofa
(1748; Thérese
Philosophe ou Mémories pour servir à l’historie du pére Dirrag et Mademoiselle Eradice).
Tanto uma quanto outra presenciam uma determinada relação sexual. As ações posteriores
a isso é que definirão o destino destas personagens.
527Em seu Dicionário Filosófico, Voltaire define o conceito “virtude” como sendo a “Beneficência para com
o próximo”. C.f. VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dicionário Filosófico (tradução de Marilena de Souza
Chauí, Bruno da Ponte e João Lopes Alves). In: Voltaire. (Coleção “Os Pensadores”). São Paulo: Abril
Cultural, 1978, p. 294.
528C.f. VILLALTA, Luiz Carlos, op.cit.
529VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dicionário Filosófico (tradução de Marilena de Souza Chauí,
Bruno da Ponte e João Lopes Alves). In: Voltaire. (Coleção “Os Pensadores”). São Paulo: Abril Cultural,
1978, p. 253.
530Ibidem, p. 254.
531Atribui-se a autoria deste romance à D'Argens, mas não existe uma certeza sobre isso. C.f. DARNTON,
Robert. Os best-Sellers proibidos da França pré-revolucionária. São Paulo: Schwarcz, 1998.
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Cunegundes não resiste às conseqüências de sua experiência como voyeur e procura
por Cândido. Ambos, ao que parece estar implícito na narrativa do romance, teriam
iniciado uma atividade sexual.
Um dia, em que passeava nas proximidades do castelo, pelo
pequeno bosque a que chamavam parque, Cunegundes viu entre as
moitas o doutor Pangloss que estava dando uma lição de física
experimental à camareira de sua mãe, moreninha muito bonita e
dócil. Como a senhorita Cunegundes tivesse grande inclinação para
as ciências, observou, sem respirar, as repetidas experiências de
que foi testemunha; viu com toda a clareza a razão suficiente do
doutor, os efeitos e as causas, e regressou toda agitada e pensativa,
cheia do desejo de se tornar sábia, e pensando que bem poderia ela
ser a razão suficiente do jovem Cândido, o qual também podia ser a
sua.
(...) No dia seguinte, depois do jantar, Cunegundes e Cândido
encontraram-se atrás de um biombo; Cunegundes deixou cair o
lenço, Cândido apanhou-o, ela tomou-lhe inocentemente a mão, o
jovem beijou inocentemente a mão da moça com uma vivacidade,
uma sensibilidade, uma graça toda especial; suas bocas
encontraram-se, seus olhos fulguraram, seus joelhos tremeram, suas
mãos perderam-se... Ora, o senhor barão de Thunder-ten-tronckh
passou junto ao paravento e, vendo aquela causa e aquele efeito,
correu Cândido do castelo, a pontapés no traseiro; (...). 532
A situação vivida por Teresa é muito parecida. Ao presenciar uma relação sexual
entre o Abade Dirrag e a noviça Eradice, a protagonista de D'Argens também sente as
sensações de uma voyeur. Todavia, duas situações a diferenciam de Cunegundes. Teresa
possuía a possibilidade de se instruir por seu próprio círculo de relações. O próprio
aristocrata, com quem Teresa se inicia na vida sexual, é caracterizado como um ilustrado
que possui “virtudes” (no sentido da virtude volteriana, já acima assinalada). Em outros
termos: a filosofia que permeia o romance (e a própria Teresa) não é uma filosofia
ridicularizada pelo autor. Cunegundes, ao contrário, acredita na filosofia do “melhor dos
532VOLTAIRE, François Marie Arouet. Cândido ou O otimismo. In: MORES, Ridendo Castigat,
eBookLibris. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/candido.html.
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mundos”, personificada na figura do filósofo Pangloss (uma ironia de Voltaire à filosofia
leibniziana).
Um outro aspecto que diferencia Teresa de Cunegundes é a postura de ambas com
relação àquilo que presenciaram (e que, para as duas, foi uma visão nova). Cunegundes
não procura a instrução sobre aquilo que viu e sobre aquilo que sentiu após observar
Pangloss e a camareira de sua mãe. Teresa, ao contrário, procura se instruir. E é nesse
sentido que a protagonista de D'Argens é vista como “filosofa”.
Diferentemente de Cunegundes, a princesa Formosante, de A Princesa de Babilônia
não se entrega à paixão que sente pelo protagonista da obra, Amazan. Sente, é verdade,
todos os “efeitos” deste sentimento. Mas não existe, até o momento escolhido por Voltaire,
qualquer contato físico entre os protagonistas. Formosante é descrita como uma mulher
que possui conhecimentos. E, ao contrário de Cunegundes, procura a instrução (inclusive
pelos romances) para sensações que ainda desconhece. “(...) A princesa, durante aquele
século de oito dias, fazia a camareira ler-lhe romances (...) esperava encontrar naquelas
histórias alguma aventura que se assemelhasse à sua e que: embalasse o seu pesar.” 533
Pode-se observar, nos destinos finais dados à Cunegundes e Formosante, que
Voltaire se posiciona, de certa forma, como o “público” que julga. Respeita, em boa
medida, a idéia de que mulher e homem possuem uma “origem natural” comum. Contudo,
o “Voltaire romancista” não desconsidera determinadas convenções sociais. E será por
essas que a mulher, em seus romances, serão julgadas. E isto, é preciso dizer, não se
restringe às duas personagens acima. É algo extensivo a todas suas outras protagonistas
(com exceção da personagem Cosi-Sancta, de conto homônimo).
O respeito de Voltaire às convenções sociais pode ser visto, assim entendemos,
como um reflexo do próprio aspecto edificante a que se propõe os romances (e,
533Idem.
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evidentemente, também os romancistas). Tal como Daniel Defoe, com seu Moll Flanders,
Montesquieu em Cartas Persas, Rousseau, em Júlia ou A Nova Heloísa (1761; Julie ou La
Nouvelle Heloise), também Voltaire criará “belas formas” para observá-las no mundo. De
observador a juiz, não se furtará, caso assim o entenda, em puni-las. É a punição que
servirá de exemplo a algo maior: ao público leitor.
Nesse sentido, Voltaire não é, como já dissemos, apenas um “libertino dos
costumes”. Pode, é verdade, também assim ser visto. Mas para assim o vermos, devemos
entender por tal conceito, além de um “livre pensamento”, uma separação entre moral e
religião534. Voltaire é, sobretudo, um “libertino filosófico”.
535
Ou seja, é o “libertino” que
observa e julga seu contexto.
Como “libertino dos costumes”, Voltaire não teme expor suas protagonistas a, por
exemplo, uma depravação de homens da Igreja. Como “libertino filosófico”, por sua vez,
Voltaire utilizará deste fato (o sexo -às vezes estupros- realizado por padres) para se
posicionar com relação tanto a Igreja e seus dogmas, quanto ao próprio clero.
A mulher, nas obras de Voltaire, possui um peso fundamental. Através delas,
“visitará” a intimidade de padres, enfatizará o valor da experiência em oposição a dogmas
estabelecidos, se oporá a uma sobreposição da paixão em detrimento da razão e que, enfim,
demonstrará que por detrás de um Voltaire “circunstancial”, existe um Voltaire com
objetivos constantes: produzir para “instruir, divertir e edificar”. E este Voltaire não é
apenas o filósofo. É também o Voltaire romancista. Tentamos, neste artigo, apresentar,
através das mulheres, um pouco deste Voltaire.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
534Afinal, para Voltaire, “A moral não reside na superstição, não reside nos cerimoniais, nada tem de
comum com os dogmas. Nunca será demais repetir que todos os dogmas são diferentes e que a moral é a
mesma em todos os homens que usam a razão. Assim, a moral vem de Deus, como a luz. As nossas
superstições são apenas trevas”. Op.cit, p. 253.
535C.f. PRADO, Raquel de Almeida, op.cit.
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Entre o Largo de Cima e o Largo de Baixo: memórias da política coronelista
na cidade de Montes Claros/MG no período da Primeira República.
Vítor Fonseca Figueiredo536
Camila Gonçalves Silva537
RESUMO: Pautada na utilização de depoimentos orais, a presente comunicação visa
analisar os reflexos da política coronelista na cidade de Montes Claros/MG, durante o
período da Primeira República (1889-1930). Destaca-se, nas análises, a cisão social
operada pela constante rivalidade política entre os dois grupos político-familiares da
cidade, as parentelas “Chaves, Prates e Sá” e a “Alves, Versiani e Veloso”.
PALAVRAS-CHAVE: Coronelismo, memória, política.
ABSTRACT: Guided in the use of oral testimony, this communication aims to analyze the
effects of the policy coronelista the city of Montes Claros/MG, during the First Republic
(1889-1930). Stands out the analysis, the social division operated by constant political
rivalry between the two groups political family of the of the city, the kindreds “Chaves,
Prates and Sá” and “Alves, Versiani and Veloso”.
KEYWORDS: Coronelismo, memory, politic.
O regime republicano instaurado em 1889 não trouxe qualquer alteração legal no
que se refere a mudanças profundas na política. Muito pelo contrário, a carta constitucional
de 1891, ao prever a participação política de todo e qualquer cidadão alfabetizado maior de
536
FIGUEIREDO, Vítor Fonseca. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Juiz de Fora/UFJF. Bolsista de Monitoria UFJF. Orientadora: Profª Drª Cláudia M. R. Viscardi.
537
SILVA, Camila Gonçalves. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Juiz de Fora/UFJF. Orientador: Profº Drº Ignácio Godinho Delgado.
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21 anos possibilitou a inserção às hostes de eleitores de todo um agregado de indivíduos
que viviam à dependência dos coronéis e demais chefes. Ao se verem na condição de
eleitor, lavradores, sitiantes, vaqueiros, foiceiros, jagunços, comerciantes e até mesmo
profissionais liberais se encontravam na obrigação de atender o pedido ou a indicação de
voto do coronel. Caso contrário, o indivíduo deixaria de ser assistido e passaria a ser
perseguido.
Portanto, ao invés de refrear o tradicional poder privado dos coronéis, a carta de
1891 acabou surtindo efeito contrário ao proporcionar novo fôlego “a decadente influência
social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terra”538. Pois, lhes possibilitava o
controle de determinada quantia de votos, todos passíveis de barganha com os chefes
superiores. Em troca, os coronéis podiam auferir todo um universo de benefícios, tais
como: nomeações a cargos públicos, isenções fiscais e uma miríade de favores advindos da
administração pública. Esta era a essência de um compromisso em que “o Presidente do
Estado atendia aos pedidos de nomeação ou de força do chefe local – este fazia as eleições
com o Presidente”539.
Em nossas análises, pretendemos, por meio dos depoimentos orais e registros
memorialisticos, estudar a condução da política coronelista na cidade de Montes
Claros/MG durante a Primeira República. Alia-se a essa proposta a possibilidade de
perceber em alguns momentos a atuação de importantes grupos de parentela que
dominaram o cenário político local por todo o período.
Foi por meio da análise dessas relações tão tradicionais e intrincadas da Primeira
República que Victor Nunes Leal se deparou com um padrão de comportamento político
pautado, sobretudo, na continuidade do mandonismo local e no binômio dependência e
538
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São
Paulo: Alfa-Omega, 1986. p.20.
539
FLEICHER, David V. O Recrutamento político em Minas Gerais 1890/1918. Revista Brasileira de
Estudos Políticos, Belo Horizonte: UFMG, v.30, 1971. p.56.
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compromisso. Para ele, a origem dessa situação residia na superposição de formas
desenvolvidas do regime representativo, advindos com a constituição de 1891, a uma
estrutura econômica e social inadequada que concorreu, inevitavelmente, para a formação
de “(...) uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em
virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido
coexistir com um regime político de extensa base representativa”540. A esse tipo de
comportamento, Leal atribuiu o nome de coronelismo, em alusão a mais alta patente da
Guarda Nacional detida geralmente pelos grandes chefes políticos ou a eles conferida
nominalmente pela população em virtude do poder e status. Em depoimento, o seleiro
aposentado José Santos descreve com extraordinária lucidez como se dava à obtenção da
referida patente e relaciona alguns coronéis montesclarenses:
Os coronéis? Eram coronéis mas coronéis só de nome, ninguém
tinha patente, tinha alguns que tinha patente comprado, patente de...
(...) Coronel da Guarda Nacional! Eles comprava patente como
tinha de Capitão, de Major, de Coronel, cada uma tinha o seu
preço! De Tenente... Eu mesmo conheci aqui o... Coronel Filomeno
Ribeiro, Tenente Elis, Capitão... deixa eu ver... tinha outros, tinha
Capitão, tinha Major cada um tinha a patente mas porque
comprava. Pagava pra ter a patente, vinha aquelas farda bonita,
farda azul marinho toda cheia de dourado. Aquelas coisas toda de...
dourado da... coisa, sabe? E assim por diante, na ocasião de festa
eles vestiam aquilo, sabe? Eu conheci aqui conheci na Bahia todo
canto, no Brasil inteiro eles vendiam aquilo! Vendia. Essas fardas,
essas patente, era patente da Guarda Nacional, né? Era conhecido
assim. Era... conhecido patente da Guarda Nacional, Tenente,
Major, Capitão, Coronel tudo isso tinha as farda, a mais alta era a
do Coronel, sabe?541
Pelo relato pode-se constatar que somente os mais abastados poderiam lançar mão
de recursos para desfrutar do mais caro e alto posto da Guarda Nacional, ou seja, os que
ocupavam o topo da hierarquia política e econômica. Todavia, deter uma patente militar,
540
541
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto... Op.Cit. p.20
José Santos. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 22/01/2009.
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mesmo que de grau inferior, era algo bem quisto e almejado pela maioria dos homens. A
patente seja qual for conferia status e distinção. Ademais, nada impedia a posterior
ascensão. Em uma de suas incursões pelo sertão norte-mineiro o memorialista Nelson
Vianna se deparou com a curiosa situação de um velho fazendeiro que por muito ostentou
o título de Tenente, mas que havia conseguido a elevação à Coronel. No entanto, o hábito
da população e dos amigos de lhe chamarem pela antiga patente lhe causava
aborrecimento, por isso mesmo, mandou emoldurar e afixar em uma das paredes da sala a
carta de Coronel. Quando algum incauto se esquecia da advertência exposta, o fazendeiro
bradava: “Ou o senhor me de tudo a que tenho direito ou não me de nada! Há que tempo já,
que sou Coronel!”542
A distinção militar imiscuía-se de tal forma à imagem do indivíduo que precedia ou
até mesmo substituía o seu nome. Além disso, a preocupação com a correta designação do
posto refletia a necessidade de afirmar constantemente sua posição na hierarquia social
local, posição também asseverada nos momentos públicos por meio da típica e chamativa
farda azul marinho com dourado tão bem descrita e gravada na memória de José Santos.
Portanto, eram nas bases, na vida cotidiana das pequenas cidades e lugarejos que o
coronelismo se desenvolvia de modo mais claro, mais intenso e violento ao abarcar nas
disputas políticas não apenas as facções, mas toda a população. Afinal, era o resultado das
urnas eleitorais de cada cidade que definiam as alianças a serem forjadas e, principalmente,
qual facção receberia o apoio governamental com suas benesses e a carta branca para agir
contra os adversários. Acerca do modus operandi da política interiorana à Primeira
República, notadamente em Montes Claros, o depoimento de Santos é elucidativo:
A política em Montes Claros antigamente o eleitor era, (...) eleitor
de cabresto, era o eleitor era o que o chefe queria, então o sujeito
542
VIANNA, Nelson. Foiceiros e Vaqueiros. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1956. p.24.
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tinha que votar, tinha eleitor que eles até desconfiava do eleitor eles
tomava o título do eleitor e só fornecia no dia da eleição e os eleitor
todos era no cabresto sabe? De maneira que tinha o chefe político e
tinha os eleitores sabe? E tinha os cabo eleitoral como tinha esses
chefes político como Dr. João Alves, tinha os braço forte assim
como Carlos Leite era um fazendeiro e pecuarista que tinha muitos
eleitor, era amigo de João Alves. Tinha mais outros sabe? Como
tinha em São João da Ponte, tinha lá... o chefe lá em São João da
Ponte que era muito amigo de João Alves, trazia os eleitor (...),
trazia carros e carros cheios, naquele tempo eles transportava,
transportava o eleitor pra vim, pra vim votar sabe? E era uma coisa
que a gente não podia facilitar muito porque você via na rua
entendeu? Encontrava-se as vezes um senhor vestido com uma
capa colonial debaixo da capa tava-se uma espingarda e uma
capanga de bala né? Tanto aquilo era jagunço do chefe político de
maneira que se precisasse tava ali esses homem inteiramente as
ordem e (...) dava na ocasião de política tinha a casa cheia desses
homens ai tudo armado se precisar eles... taí pronto pra dar tiros
como eu assisti...543
O depoimento acima ilustra muito bem como se davam às relações entre chefes
políticos, correligionários, jagunços e eleitores em Montes Claros. Isto é, desconfiança,
clientelismo e violência compunham os ingredientes de uma amálgama que pressionava o
eleitor às urnas, seja a favor de uma facção, seja de outra. Neste sentido, todos os fatores
convergiram, inevitavelmente, para um acirramento das disputas políticas ao nível local
elevando os níveis de pressão sobre a comunidade como um todo e, conseqüentemente, da
instabilidade e divergência já existentes em Montes Claros. Soma-se a tudo, dois fatos
cruciais para o futuro político local: as eleições à edilidade de 1897 e a construção do
Mercado Municipal entre 1897 e 1899.
Em 1897, a parentela “Chaves, Prates e Sá” se encontrava sem os seus principais
chefes: o Doutor Chaves estava no Rio de Janeiro cumprindo com as obrigações do Senado
Federal; Camillo Prates, em Belo Horizonte exercia o múnus de senador estadual e
Francisco Sá, nesse mesmo ano, assumiu o cargo de Deputado Estadual no Ceará. O
resultado dessas ausências foi, logicamente, um enfraquecimento momentâneo do grupo a
543
José Santos. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 22/01/2009.
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nível local. Mediante a proximidade das eleições da Câmara Municipal e da percepção de
certa divergência entre os chefes adversários, Honorato José Alves e Celestino Soares da
Cruz, a parentela tentou uma manobra que não a alijasse totalmente do poder. “Chaves,
Prates e Sá” indicaram a candidatura de um adversário, Major Simeão Ribeiro dos Santos.
A indicação foi apoiada por Honorato, mas repudiada por Celestino. A divergência
culminou com a cisão entre os dois. Já a base de apoio montada para a candidatura Simeão
Ribeiro foi recebida pela população com surpresa, surgiu até uma sátira: “Prates, Chaves,
Versiani & Cia... Quem diria?”544
Entretanto, ao invés do esperado, a aliança arquitetada trouxe maléficas
conseqüências para o grupo dos Prates, uma vez que o Major Simeão Ribeiro deu
continuidade aos planos de construção do Mercado Municipal no Largo de Cima, área
habitada pelos “Alves, Versiani e Veloso”, e não no de Baixo, local em que residiam. O
fato foi encarado como uma verdadeira catástrofe, já que a questão comercial era um dos
pontos fulcrais de toda a comunidade e envolvia parcela significativa da classe política
local, composta, em sua maioria, por fazendeiros e comerciantes.
A esse período Montes Claros representava o importante papel de empório regional
congregando tanto operações de venda quanto de compra de produtos para o abastecimento
do mercado Norte-mineiro. Havia a crença de que a ereção de um centro comercial em um
dos largos automaticamente suplantaria o comércio do outro, por isso mesmo, as
discussões em torno da construção do mercado eram sempre tão problemáticas e
inviabilizadas pelos representantes políticos de um dos lados. Ademais, todos os sitiantes e
lavradores possuíam o hábito de concorrer às feiras e intendências sediadas no largo de seu
coronel. Mas, no caso da criação de um mercado único em território rival como ficariam as
relações de compromisso para com os seus chefes? Ou seja, a questão era complexa e não
544
PAULA, Hermes Augusto. Montes Claros: sua história, sua gente e seus costumes. Belo Horizonte:
Minas Gráfica Editora Ltda, 1957. p. 169.
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ficava restrito ao campo político e econômico, mas perpassava também os meandros das
relações sociais estabelecidas.
As lutas travadas por “Chaves, Prates e Sá” e “Alves, Versiani, Veloso” pela
construção do mercado em seus largos foram primaciais para que toda uma profunda onda
de divergências suplantasse os limites da Câmara e se alojasse no seio da comunidade. Isto
é, todos os tipos possíveis de relacionamento entre moradores do Largo de Cima e do
Largo de Baixo passaram a ser surpreendentemente informados pelo signo da divergência
política. A cidade literalmente se cindiu em duas!
O escritor Cyro dos Anjos em sua famosa obra memorialística “A Menina do
Sobrado” narra com profundo carinho e saudosismo as suas recordações da infância e
adolescência na Montes Claros das décadas de 1910 e 1920. Não obstante, Cyro foi um
observador privilegiado das questões políticas e econômicas locais, já que era filho do
comerciante Coronel Antônio dos Anjos e neto do médico Carlos José Versiani. Tal
combinação de fatores permitiu-lhe observar o impacto da construção do mercado sobre a
sociedade montesclarense, segundo ele foram “(...) nas últimas décadas do Império –
quando, ao inaugura-se o Mercado, o Largo de Cima arrebatou à antiga Intendência a sua
clientela de feirantes – a emulação foi crescendo com o tempo, até identificar os dois
logradouros públicos com as duas facções políticas: os Pelados passaram a ser os de Cima,
e os Estrepes, os de Baixo”545. Outro bom relato sobre a cisão de Montes Claros, porém
identificando a continuidade histórica das divergências locais e os grupos familiares que
compunham as redes das duas parentelas foi feito pelo memorialista Hermes A. de Paula:
Eram os Ximangos e os Cascudos, os Liberais e Conservadores,
que estiveram em guerra durante todo o Segundo Reinado.
Depois, na República, vieram os Estrepes e os Pelados.
545
ANJOS, Cyro Versiani dos. A Menina do sobrado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p.76.
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Os estrepes mandavam nas ruas de Baixo. Os Prates, os Chaves, os
Teixeira, os Dias, os Fróes, os Figueiredos, os Souto, os Mendonça,
os Freitas, os Abreu, os Costa, os Durães, os Soares, os Guimarães,
além de muitos outros, compunham o partido.
Nas ruas de Cima , habitavam os Pelados. Os Alves, os Miranda, os
Ribeiro, os Versiani, os Sarmento, os Salgado, os Maurício, os dos
Anjos, os Peres, os Velosos, os Câmara, os Vale, dentre vários
outros, formavam os seus quadros.
Tudo era separado. As divergências políticas cortavam a cidades
em duas.
Duas bandas de música - a Euterpe e a União Operária, donde
saíram os apelidos de Estrepes e Pelados - animavam os dois
grupos adversários.
Ambos morriam de amores pelos governos do Estado e da
República. Tinham a mesma origem, o mesmo programa, a mesma
formação.
Eram, no entanto inimigos irreconciliáveis na política municipal.
Nas suas lutas, algumas vezes correu sangue.
Foi no calor da chama dessa velha rivalidade, que Montes Claros
cresceu e progrediu.546
Pelo relato de Paula pode-se inferir que o elemento político agia em Montes Claros
como forte instrumento de desagregação social ao colocar em lados opostos conterrâneos
que só se distinguiam, muitas vezes, pelo local de residência e não por vínculos familiares
ou alianças políticas, pois, conforme os números apresentados (2.524) nem todos os
cidadãos, mesmo os da sede do município, eram eleitores. Todavia, passaram a
compartilhar cotidianamente, assim como a classe política, das divergências, lutas,
campanhas e provocações aos rivais. Era sem dúvida, uma forma de integrar um dos lados
e de não estar desamparado no fogo cruzado. Conforme José Santos: “(...) a política o
sujeito tinha... a tinha dois nome, Política de Cima e Política de Baixo. Porque a Política
Baixo é de quem morava lá embaixo e quem morava cá em cima acompanhava a Política
de Cima.”547 Isto é, todos que moravam nas mediações das casas dos atuais chefes das
parentelas eram automaticamente identificados como adeptos dela. Aqueles que como o
Deputado Camillo Philinto Prates residiam na parte inferior da cidade, nas imediações da
546
547
PAULA, Hermes Augusto. Montes Claros... Op.Cit. p.16.
José Santos. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 22/01/2009.
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praça da Matriz ou do Largo de Baixo, como era conhecida, recebiam a pecha de
Camilistas ou adeptos do “Partido de Baixo”. Já os que residiam na parte superior, junto ao
Largo de Cima, a exemplo das famílias “Versiani, Veloso” e da família do novo chefe, o
médico e Deputado Honorato José Alves, eram designados como Honoratistas ou
correligionários do “Partido de Cima”.
O fato, na verdade, não constitui algo de todo incomum, vários são os estudos de
caso sobre o poder local que identificam a formação de grupos faccionais rivais
estruturados em parentelas. O próprio sistema coronelista propiciava a rivalidade, a
violência e a cisão nas bases ao apoiar apenas o grupo vitorioso. Desse modo, os conflitos
ficavam restritos ao âmbito das cidades e vilas não perpassando aos níveis superiores.
Mesmo rivais incontestes como Camillo Prates e Honorato Alves não trocavam “farpas”
enquanto deputados federais no Rio de Janeiro, as suas disputas se davam apenas em
Montes Claros. Era essa a tônica de um arranjo capaz de conter as lutas no interior, mas de
ostentar na capital estadual e federal um grupo único, forte e cordato como o Partido
Republicano Mineiro/PRM. Ademais, a constituição política bi-faccional não pode ser
compreendida apenas como o reflexo de condicionantes internos e externos à comunidade,
como a temos apresentando, mas também, como fruto de uma cultura política nacional
historicamente construída com base na percepção do rival, na violência e na luta pelo e
para o poder.
Todavia, o caso de Montes Claros é extremamente representativo sobre a
capacidade do coronelismo de influir na sociabilidade do homem simples. Tanto o jeca que
vivia na roça quanto o citadino humilde não sabiam e não entendiam a origem das disputas
e conflitos, no entanto, defendiam com cólera seus coronéis, se identificavam enquanto
integrantes do séqüito de um dos largos e alteravam profundamente seu círculo de relações
sociais com base na orientação política.
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Nessa perspectiva, respaldada por critérios políticos, cada ala da cidade foi se
imbuindo de suas singularidades e passou a constituir espaços de sociabilidade distintos.
Esse processo de diferenciação é perceptível ao longo das memórias do escritor Cyro dos
Anjos. Para ele, o Largo de Cima representava o “centro nervoso da cidade”548, a zona do
comércio forte, do progresso! Em contraposto, o Largo de Baixo é apresentado como uma
área decadente que apenas transpirava história e tradição”549. Essa distinção dos dois largos
é perfeitamente compreensível. Para se afirmar enquanto identidade, um grupo necessita,
em primeiro lugar, marcar suas diferenças com relação ao outro. Em geral, esse processo
de diferenciação se dá com base na crença da superioridade. Por isso, apesar do escritor
reconhecer a imponência do Largo de Baixo o condena ao passado, principalmente após a
construção do mercado na área adversária. Todavia, ao fazer as distinções, Cyro não
apenas marca diferenças, mas ratifica sua identidade enquanto representante e defensor do
Largo de Cima.
Outra possibilidade de diferenciação, porém conciliada com provocação, se dava
pela atribuição de apelidos. Essa prática, muito comum no interior brasileiro visa
caracterizar e ao mesmo tempo hostilizar os membros do grupo rival. Entretanto, o próprio
ato de ultrajar e provocar o adversário por meio de rótulos acabava, contraditoriamente,
fortalecendo o sentimento de identidade e união do grupo ofendido. Isso se dava porque a
desforra não seria nutrida apenas por uma pessoa, mas por todo o grupo que compartilhava
tal alcunha. Desse modo, a ofensa do “outro” e a luta contra o “outro” detinha o potencial
de fortalecer os vínculos de identificação e solidariedade interna do grupo humilhado.
Contudo, a prática de atribuição de apelidos era algo comum, muitos surgiam baseados nas
características da facção ou do seu chefe. Em Minas Gerais, por exemplo, temos na cidade
de Andrelândia os “Veados” e os “Caranguejos”, em Passos os “Patos” e “Perus”, em
548
549
ANJOS, Cyro Versiani dos. A Menina do sobrado... Op.Cit. p.71.
ANJOS, Cyro Versiani dos. A Menina do sobrado... Op.Cit. p.75.
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Januária os “Luzeiros” e os “Escureiros” e assim em várias outras cidades. Em Montes
Claros, diversos apelidos foram utilizados, inicialmente, o grupo dos “Alves, Versiani e
Veloso” foram denominados de “Baratas” e os “Chaves, Prates e Sá” de “Molotros”, em
seguida, vieram as designações de “Carecas” e “Metidos”. Entretanto, as expressões que
ficaram consagradas na memória coletiva foram “Estrepes” e “Pelados”, originadas da
corruptela do nome das bandas de música de cada um dos lados, Euterpe Montesclarense e
União Operária.
Apesar de pouco estudadas, as bandas de música desempenhavam à Primeira
República um importante papel na vida social e política das pequenas cidades. As festas
animadas que se davam ao som das bandas serviam para quebrantar um pouco da
pasmaceira cotidiana da vida no interior. No entanto, eram as apresentações públicas
realizadas no coreto das praças, nas passeatas pelas ruas, nas eleições ou nas recepções de
autoridades que os shows tomavam grande proporção e entusiasmo popular. No caso de
Montes Claros, as bandas tiveram um contato estreito com a política, por isso mesmo,
serviram de base aos apelidos de cada facção. Após o racha de 1897 entre os chefes da
antiga ala conservadora, Honorato José Alves e Celestino Soares da Cruz, a banda Euterpe
Montesclarense optou por apoiar a política de ‘Baixo’, já a União Operária se devotou à
causa dos de ‘Cima’550. A partir de então, cada um dos lados podia contar com uma
verdadeira banda marcial que animavam as suas festas e campanhas políticas. Hermes de
Paula relembra a participação da Euterpe durante as eleições: “A banda Euterpe tocava um
dobrado marcial. Os foguetes pipocando no ar. Os cavalos inquietos, fogosos. Os
aboiados... Era véspera de eleição e, justamente nesta praça passavam todos eleitores numa
demonstração de força e como que uma visita de apoio ao chefe”551. Já a supervisora
educacional aposentada Ruth Tupinambá Graça prefere rememorar a rivalidade política
550
551
PAULA, Hermes Augusto. Montes Claros... Op.Cit. p.232.
PAULA, Hermes de Augusto de. Jornal “Gazeta do Norte”, 24 de janeiro de 1960. p.01.
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nutrida pelas bandas de cada um dos largos. Pelos seus relatos, a apresentação semanal
realizada em praça pública ia bem além de lazer e entretenimento. Todo cidadão
independente do nível socioeconômico, mas adepto a uma das parcialidades políticas
concorria apenas às retretas de sua banda. Neste sentido, o fosso da divergência só tendia a
aumentar, pois se evitava os contatos de toda a população; por outro lado, os vínculos de
identidade de cada um dos largos tendiam a serem reforçados pelo convívio.
De modo gradual, as diferenças entre os de ‘Cima’ e os de ‘Baixo’ foram aflorando
e, praticamente tudo passou a ser separado ou passível de separação. Até a década de 1930,
todas as entidades existentes ou que vieram a existir na cidade tiveram que conviver sob o
sigma da dissidência, pois, qualquer altercação entre os membros tendia a declinar para o
viés político e culminar em cisão. Foi assim com a banda de música, com o jornal, com o
grupo de teatro, com o time de futebol, com a escola, com as rodas de bate-papo, com as
brincadeiras de criança e com uma infinidade de relacionamentos. A professora aposentada
Yvonne de Oliveira Silveira relata suas lembranças acerca da divisão:
A política no tempo que eu era criança foi... era muito violenta.
Meu pai era político, fazia parte do partido de Honorato Alves e
doutor João Alves era o partido de Cima chamado. E Camillo
Prates dirigia o partido de Baixo, então eles... era uma rivalidade
muito grande cada qual tinha a sua banda de música, cada qual
tinha o seu jornal. Mas acontece que o jornal de Camillo Prates
desapareceu logo e ficou o (...) do partido de doutor João Alves que
meu pai era proprietário, diretor, redator, fazia tudo ao lado de um
amigo dele. E... então eles brigaram, brigavam, ninguém
freqüentava o mesmo local.552
Ao fim do relato, Silveira ressalta: “(...) ninguém freqüentava o mesmo local.”553.
Essa também é afirmação de José Santos quando perguntado sobre o assunto: “Não,
relacionava não, porque quem era do Partido de Cima era do Partido de Cima, quem era do
552
553
Yvonne de Oliveira Silveira. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 16/01/2009.
Idem.
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Partido de Baixo era de Baixo, sabe? De maneira que cada um vivia...”554. A mesma
resposta dos dois aposentados é emblemática, pois, apesar de se ligarem de algum modo ao
“Partido de Cima” ambos pertenciam a classes sociais distintas. Silveira era filha do
farmacêutico, jornalista e correligionário Antônio Ferreira de Oliveira, portanto, vinculada
diretamente ao ambiente de sociabilidade da elite política local; já Santos, pertencia aos
setores mais humildes da população e por residir na parte superior da cidade acompanhava
o “Partido de Cima”. Logo, ao contrário do que se possa pensar, não era apenas a classe
política que nutria sentimentos de rivalidade e antagonismo entre as partes, mas também os
extratos inferiores da sociedade que de algum modo seriam ao final atingidas pelos
resultados eleitorais.
Pode-se concluir que as lembranças da população montesclarense acerca dos
coronéis se devem especialmente pelo alto grau de rivalidade que afetava todos os
seguimentos da sociedade. Ou seja, desde os correligionários e políticos até o homem
simples do campo. Revolver a memória das pessoas que vivenciaram esse período, permitinos auferir um mundo rico em histórias e registros os modos que a política interiorana
utilizava para se suster.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANJOS, C. A menina do sobrado. Rio de janeiro: J.Olympio; Brasília: INL,1979.
FLEISCHER, D.V. O Recrutamento Político em Minas Gerais; 1889-1918. Revista
Brasileira de Estudos Políticos-UFMG, Belo Horizonte, 1971.
LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil.
4 ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1978.
554
José Santos. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 22/01/2009.
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PAULA, H. A. Montes Claros: sua história, sua gente e seus costumes. B.H: Minas
Gráfica, 1957.
PAULA, H. Gazeta do Norte. Montes Claros, 24 jan. 1960, p.1
PORTO, C. H.Q. Paternalismo, Poder Privado e Violência: o campo político NorteMineiro durante a primeira República. 2002, Dissertação (Mestrado) – UFMG.
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Cinema, Tropicalismo e Antropofagia no Brasil a Partir de um Olhar Sobre o
Filme “Macunaíma” (1969)
Wallace Andrioli Guedes*
RESUMO: O presente trabalho busca analisar o filme Macunaíma (1969), de Joaquim
Pedro de Andrade, em seus diálogos estabelecidos com alguns dos principais movimentos
artístico-culturais dos anos 60, como o Cinema Novo e principalmente o tropicalismo,
assim como destrinchar a apropriação que o filme faz do conceito oswaldiano de
antropofagia.
PALAVRAS-CHAVE: Macunaíma, antropofagia, tropicalismo.
ABSTRACT: This paper intends to analyse the film Macunaíma (1969), directed by
Joaquim Pedro de Andrade, studying its dialogues with some of the most important artistic
and cultural moviments of the sixties, such as Cinema Novo and, specially, tropicalismo.
The paper also intends to work with the apropriaton that the film does of the concept of
anthropophagy, created by Oswald de Andrade.
KEY-WORDS: Macunaíma, anthopophagy, tropicalism.
INTRODUÇÃO
O presente artigo busca apresentar algumas questões, e mesmo resultados
preliminares, da pesquisa por mim desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal Fluminense, na qual investigo as relações estabelecidas
*Mestrando em História Social – Linha de pesquisa História Contemporânea II pela Universidade Federal
Fluminense
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pelo cinema brasileiro de fins da década de 1960 com um dos mais controversos e
estudados movimentos artístico-culturais do período: o tropicalismo.
Centro meu olhar, entretanto, em um caso específico: o do filme Macunaíma
(1969), do cineasta carioca Joaquim Pedro de Andrade, tido costumeiramente como
exemplo máximo de “cinema tropicalista” produzido no Brasil. Ao olhar para Macunaíma,
busco compreender tanto as possibilidades de análise estética do filme, ou seja,
concernentes ao discurso interno à sua narrativa, quanto suas relações externas, a partir,
especialmente, de um acompanhamento detalhado de sua trajetória nos cinemas nacionais e
internacionais, sua repercussão em festivais e na crítica especializada – consequentemente,
estendo essa análise para a trajetória de seu diretor, acompanhando suas entrevistas em
jornais e revistas da época555.
Feita essa análise, caminho então para a investigação das proximidades e
afastamentos do filme de Joaquim Pedro em relação ao tropicalismo, utilizando-me, para a
compreensão deste movimento, do grande número de obras publicadas a seu respeito,
assim como do já citado acervo digital da revista Veja, onde encontra-se inúmeras
referências ao movimento, tanto em seu mais conhecido campo, o musical, quanto em suas
ramificações para outras formas artísticas – o cinema entre elas.
Há, no entanto, um ponto fundamental em minha pesquisa, que na realidade
constitui-se em seu ponto de partida: o estudo do conceito de antropofagia. Explico: tanto o
tropicalismo, em sua vertente musical, quanto o filme Macunaíma recuperaram, naqueles
últimos anos da década de 1960, as discussões em torno da prática antropofágica na cultura
brasileira apresentadas, entre as décadas de 1920 e 1950, pelo (poeta, filósofo, ensaísta,
romancista, dramaturgo, jornalista) modernista Oswald de Andrade. Entretanto, e isso é
555Utilizo-me, até o presente momento de minha pesquisa, principalmente de fontes recolhidas no arquivo
da Agência O Globo, que resumem-se a uma série de recortes de jornais e revistas reunidos sob uma pasta
intitulada “Joaquim Pedro de Andrade”, e no acervo digital da Revista Veja, disponibilizado no endereço
eletrônico http://veja.abril.com.br/acervodigital
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algo que busco explicitar em meus escritos, essa recuperação se dá de formas diversas, e,
logo, podemos falar em diferentes antropofagias nesse momento do cenário artísticocultural do país.
Julgo necessário aqui um esclarecimento: iniciei minha pesquisa de mestrado tendo
como ponto central desta justamente este estudo do conceito de antropofagia no filme
Macunaíma,
buscando
diferenciá-lo
do
“original”
oswaldiano,
historicizando-o,
colocando-o no tempo, lançando sobre ele um olhar diacrônico. Esta é uma ambição que
mantenho no estágio atual de minha pesquisa. Entretanto, o contato com determinadas
fontes fez com que a antropofagia, ou melhor, essa busca por uma “história do conceito de
antropofagia”, deixasse de ser o ponto central da pesquisa, tornando-se então uma espécie
de chave, responsável por abrir-me portas para a compreensão da complexa relação entre o
Cinema Novo brasileiro, e mais especificamente o filme Macunaíma, e o movimento
tropicalista. Essa é uma relação geralmente naturalizada. O que intento aqui é contribuir no
sentido de problematizá-la.
CINEMA NOVO NO BRASIL: MULTIPLICIDADE E CONTRADIÇÕES DE UM
MOVIMENTO
É provável que, mesmo evitando-se qualquer esforço de julgamento e comparação
imprópria, o movimento conhecido como Cinema Novo represente o momento mais
relevante da história do cinema brasileiro. Foi o ápice artístico dessa arte no país. Teve
inúmeras limitações (algumas das quais buscarei apontar adiante), mas trouxe reflexões e
novidades ausentes até então do métier cinematográfico brasileiro, e deixou marcas
profundas neste – e não é preciso procurar muito, hoje em dia, para observar-se a
permanência destas marcas.
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Numa apresentação breve e simplista, o Cinema Novo foi uma tentativa conduzida
por um grupo de jovens cineastas – liderados pela figura incontornável do baiano Glauber
Rocha – de produzir um cinema no Brasil marcado pela condição de subdesenvolvimento
do país, tematizando pela primeira vez o povo, os despossuídos, os marginalizados, os
oprimidos (no campo e na cidade). Um cinema muitas vezes rústico, no sentido de
preocupar-se muito mais com um papel revolucionário (socialmente) da arte que produzia
do que com um grande apuramento estético. “Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”,
proclamava Glauber Rocha. Mais vale uma idéia revolucionária, concretizada em uma arte
revolucionária, do que um excessivo debruçar sobre o cuidado técnico com os filmes
produzidos. Faço uma mea-culpa: como disse no início desse parágrafo, essa é uma
apresentação simplista da prática cinemanovista; o movimento foi muito mais complexo do
que isso, promovendo, em muitos casos, pesquisas de linguagem em suas obras, que
revelaram-se fundamentais para o avanço da prática cinematográfica no país.
Na verdade, há uma diferenciação importante a ser feita: ainda que tocando-se e
compartilhando temas e preocupações, existem grupos e momentos distintos dentro do
Cinema Novo. É difícil definir, afora os filmes de Glauber, o que é e o que não é Cinema
Novo. O próprio cineasta baiano aponta o início do movimento no ano de 1960. Entretanto,
Nelson Pereira dos Santos, posterior participante do núcleo central cinemanovista, é, antes,
um grande influenciador de Glauber, produzindo filmes – dois especialmente, Rio
Quarenta Graus (1955) e Rio, Zona Norte (1957) – fortemente marcados pelos princípios
do neo-realismo italiano, e anteriores ao início da carreira de Glauber Rocha e da
sistematização de suas idéias, sendo tido, por este, como um modelo a ser seguido pelos
filmes do Cinema Novo.
Existem também filmes sendo produzidos segundo pressupostos próximos aos dos
cinemanovistas, mas ligados a forças políticas e partidárias muito claras: refiro-me aqui à
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produção cultural dos Centros Populares de Cultura (os CPC's) da União Nacional dos
Estudantes – no caso do cinema, do filme Cinco Vezes Favela (1962). Este consistiu em
um longa composto por cinco episódios (cada um a cargo de um diretor), todos trazendo
temáticas populares, um olhar positivo sobre os oprimidos, tidos como agentes de uma
revolução que estava por vir. Joaquim Pedro de Andrade dirigiu um desses segmentos,
provavelmente o mais elogiado deles, Couro de Gato. E também aquele que foge um
pouco do esquema nacional-popular das produções dos CPC's (até porque o filme foi feito
antes do início do projeto Cinco Vezes Favela, sendo posteriormente incorporado ao
longa).
Para esse cinema, seja o Cinema Novo de Glauber, seja aquele produzido pela
UNE, a tematização do povo não bastava por si só: era preciso que o povo assistisse a esses
filmes. E aí esteve o grande dilema desses cineastas. Seus filmes, em sua grande maioria,
foram grandes fracassos de bilheteria no país – mesmo premiados em alguns dos principais
festivais de cinema do mundo. O público do Cinema Novo era uma classe média
intelectualizada, universitária principalmente. O “povo” não assistia aos filmes de Glauber,
Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues
entre outros. O debate em torno dessa questão foi pungente no seio do movimento,
provocando grandes discussões sobre a facilitação ou não da linguagem dos filmes para
que o público almejado fosse alcançado556.
Joaquim Pedro de Andrade inseriu-se nesse movimento, ainda que de uma forma
bem particular. Participou do grupo central (o chamado “núcleo histórico”) do Cinema
Novo, era bastante próximo de Glauber Rocha, entretanto, seu cinema sempre foi dotado
de características muito peculiares, que, por mais que dialogasse com os pressupostos
556Nesse sentido, é de enorme riqueza o livro de Alex Viany O Processo do Cinema Novo, organizado por
José Carlos Avellar. Tal livro consiste, na realidade, em uma série de entrevistas realizadas por Viany com
alguns desses cinemanovistas, onde debates em torno da questão da falta de público para o cinema produzido
pelo movimento aparece com particular força.
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cinemanovistas, jamais demonstrou total sujeição a eles. Por mais que essa denominação
possa ser estendida a boa parte dos participantes do movimento, Joaquim Pedro parece-me
ser um típico caso de auteur557. Não deixa de ser instigante, então, que seja um filme seu,
Macunaíma, o primeiro grande sucesso de público de uma obra produzida por um
cinemanovista.
ANTROPOFAGIA E TROPICALISMO NO BRASIL: UMA TORTUOSA VIAGEM
DOS ANOS 20 AOS ANOS 60
Muito já foi dito, debatido e escrito sobre o movimento tropicalista brasileiro – ou
simplesmente Tropicália. As propostas musicais-artísticas-estéticas-políticas do grupo
liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil (e que acabou por envolver, de alguma forma,
um sem número de artistas, como Maria Bethânia, Gal Costa, Tom Zé e Os Mutantes)
foram polêmicas desde seu surgimento, nos idos de 1967-68. Definir a Tropicália,
portanto, pode ser, ao mesmo tempo, um exercício de repetição do que já foi dito (logo,
mais do mesmo), e também uma tarefa de grande dificuldade. Vamos aqui a duas
definições que parecem-me opostas, e vejamos o que se pode tirar delas.
A primeira é José Ramos Tinhorão, no livro História Social da Música Popular
Brasileira:
557Vale aqui a citação de sua clássica resposta, em uma entrevista, à pergunta “por que você faz cinema?”,
que acabou até mesmo musicada pela cantora Adriana Calcanhoto: “Para chatear os imbecis/ Para não ser
aplaudido depois de sequências dó de peito/ para viver à beira do abismo/ para correr o risco de ser
desmascarado pelo grande público/ para que conhecidos e desconhecidos se deliciem/ para que os justos e os
bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo/ porque de outro jeito a vida não vale a pena/ para ver e mostrar
o nunca visto, o bem, o mau, o feio e o bonito/ porque vi Simão do Deserto/ para insultar os arrogantes e
poderosos quando ficam como cachorros dentro d'água no escuro do cinema/ para ser lesado em meus
direitos autorais.” Essa resposta me parece uma demonstração de seu olhar sobre a arte que pratica, um olhar
ao mesmo tempo romântico, no sentido de reconhecer um potencial subversivo do cinema, e prático, ao
reconhecer o lado profissional de sua atividade, a necessidade de ganhar dinheiro com ela. Joaquim Pedro
não parece, ao menos aqui, preocupado com um “projeto de Brasil”, mas com um “projeto de cinema”, ainda
que não seja um projeto que funcione como uma prescrição para outros cineastas.
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“[o tropicalismo] constituiu a tentativa de – como definiria o
próprio líder do grupo, Caetano Veloso – obter 'a retomada
da
linha evolutiva da tradição da música brasileira na medida em que
João Gilberto fez'. (...) o tropicalismo propunha-se a representar,
em face da linguagem 'universal' do rock, o mesmo que a bossa
nova representara em face da linguagem 'universal' do jazz. (...)
Assim, enquanto os criadores de música de linha nacionalista,
politicamente preocupados com a invasão do internacionalismo
programado pela multinacionais, reagiam usando recursos da
bossa nova (não mais americanizada) na procura de um tipo de
canção baseada em sons da realidade rural (Edu Lobo, Vandré) ou
da vida popular urbana (Chico Buarque), os baianos ligados ao
tropicalismo fariam exatamente o oposto. Alinhados com o
pensamento expresso por seu líder Caetano Veloso, 'Nego-me a
folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as
dificuldades técnicas', os tropicalistas renunciaram a qualquer
tomada de posição político-ideológica de resitência e, partindo da
realidade da dominação do rock americano (então enriquecido pela
contribuição inglesa dos Beatles) e seu moderno instrumental,
acabaram chegando à tese que repetia no plano cultural a do
governo militar de 1964 no plano político-econômico. Ou seja, a
tese da conquista da modernidade pelo simples alinhamento às
características do modelo importador de pacotes tecnológicos
prontos para serem montados no país.”558
A segunda definição é do próprio Caetano Veloso, em seu livro de memórias
Verdade Tropical:
“(...) um impulso criativo surgido no seio da música popular
brasileira, na segunda metade dos anos 60, em que os protagonistas
(...) queriam poder mover-se além da vinculação automática com as
esquerdas, dando conta ao mesmo tempo da revolta visceral contra
a abissal desigualdade que fende um povo ainda assim
reconhecivelmente uno e encantador, e da fatal e alegre
participação na realidade cultural urbana universalizante
e
internacional, tudo isso valendo por um desvelamento do mistério
da ilha Brasil (...) movimento que tentava equacionar as tensões
entre o Brasil-universo paralelo e o país periférico ao Império
Americano (...) Um movimento que queria apresentar-se como a
imagem de superação do conflito entre a consciência de que a
versão do projeto do Ocidente oferecida pela cultura popular e de
massas dos Estados Unidos era potencialmente liberadora –
reconhecendo sintomas de saúde social mesmo nas demonstrações
mais ingênuas de atração por esta versão – e o horror da
558José Ramos Tinhorão. História Social da Música Popular Brasileira, pp. 323-325.
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humilhação que representa a capitulação a interesses estreitos de
grupos dominantes, em casa ou nas relações internacionais.”559
As duas visões são passíveis de críticas, mas críticas em sentidos diferentes. O que
se poderia repudiar no olhar de Caetano Veloso sobre o movimento seria justamente fazer
o que Tinhorão faz, ou seja, julgar negativamente o tropicalismo, vinculá-lo aos interesses
do capitalismo internacional do período, e ao desejo do governo militar brasileiro por
alienação da população jovem do país. Já o sentido da crítica à interpretação de Tinhorão
me parece puramente metodológico-estético. Metodológico por ele chamar o que faz de
“História Social”, entendendo isso como simplesmente realizar um panorama econômico e
político do contexto estudado, inserindo posteriormente, de forma subordinada, as
manifestações culturais daquela sociedade. E estético pela simples ausência de estética em
sua análise. Não há nenhuma preocupação com elementos artísticos do tropicalismo – há
somente uma busca por análise político-ideológica do movimento.
Nesse sentido, parece-me mais válida, ao menos para a proposta de meu trabalho, a
definição dada por Veloso, o que não significa ignorar o fato de tratar-se talvez da
principal figura de tal movimento, nem o fato de Verdade Tropical ter sido escrito 30 anos
após o surgimento da Tropicália.
Pois bem, escolhida a definição de tropicalismo a ser trabalhada aqui, falta
acrescentar a esta um elemento fundamental, também apresentado por Veloso em seu livro:
os diálogos estabelecidos entre os tropicalistas e o pensamento do modernista Oswald de
Andrade, particularmente com seu conceito de antropofagia. Conceito profundamente
contestador e subversivo da realidade sócio-cultural brasileira, que buscou, nas palavras de
Randal Johnson e Robert Stam, a criação de uma cultura nacional genuína, através da
consumação e da reelaboração crítica tanto da cultura nacional quanto das influências
559Caetano Veloso. Verdade Tropical. pp.16 e 17.
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estrangeiras560. “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”561,
dizia Oswald em determinada passagem do Manifesto Antropófago de 1928. “Contra o
mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é
dinâmico. O indivíduo que é vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das
injustiças românticas (...)”562, continua o escritor. O antropófago devora o que não é seu, o
estrangeiro, para digerí-lo e devolvê-lo sob uma nova forma, marcada pelo primitivismo.
Na efervescência dos anos 60, nos embates estabelecidos com os defensores de
uma arte nacional-popular, a antropofagia oswaldiana seria de grande valor às intenções
dos tropicalistas. Recorro novamente à Caetano:
“A idéia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como
uma luva. Estávamos 'comendo' os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas
argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas
encontravam aqui uma
formulação sucinta e exaustiva. Claro
que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem
cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a
adotamos. (...) Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as
diferenças entre a experiência modernista dos anos 20 e nossos
embates televisivos e fonomecânicos dos anos 60.”563
Caetano, como o próprio conta em seu livro, descobrira Oswald de Andrade em
1967, por conta da encenação da peça O Rei da Vela (escrita pelo modernista 30 anos
antes), pelo Teatro Oficina, comandado por José Celso Martinez Corrêa. Segundo o
tropicalista, ali percebera que “havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um
movimento que transcendia o âmbito da música popular.”564 Seria esse um movimento
amplo de redescoberta da antropofagia, que ecoaria também, para além da música e do
teatro, no cinema. Aqui entra Macunaíma-filme.
560Randal Johnson & Robert Stam. op. cit.
561Oswald de Andrade. op. cit.
562Ibidem, pp. 48-49.
563Ibidem, pp. 247 e 248.
564Ibidem, p. 244.
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MACUNAÍMA E O “CINEMA TROPICALISTA BRASILEIRO”
Como apontado anteriormente, Macunaíma foi a primeira obra de um
cinemanovista a alcançar verdadeiro êxito de bilheteria – tendo, inclusive, tornado-se
referência nesse sentido entre os cineastas do período565. O sucesso de público venho
acompanhado de premiações em festivais, nacionais e internacionais566, o que contribuiu
para o fortalecimento do filme como um exemplo a ser seguido.
Ao adaptar para o cinema a rapsódia escrita 40 anos antes por Mário de Andrade,
Joaquim Pedro trilhou caminhos arriscados. Primeiramente, abriu de qualquer pretensão de
fidelidade exagerada. Percebeu ser impossível transpor o texto de Mário para o cinema da
forma como este estruturava-se no papel – o que deveria ser feito era reinventar
Macunaíma, em diálogo com o Brasil dos anos 60. Para isso, Joaquim Pedro realizou um
movimento que já vinha ocorrendo em outros setores do campo artístico brasileiro – como
apontou Caetano Veloso: o de redescoberta de Oswald de Andrade e da antropofagia. A
antropofagia é fundamental para a compreensão de Macunaíma-filme. Como aponta Ismail
Xavier,
“(...) Macunaíma-filme elege (...) a antropofagia como princípio de
interação entre as personagens, regra da sociedade. Ela aparece,
portanto, como núcleo temático de seu discurso sobre a barbárie
moderna (entenda-se, o capitalismo num país periférico)”567
565Como aponta Fernão Ramos Pessoa: ““O filme [Macunaíma], na época foi constantemente citado em
entrevistas de integrantes do Cinema Novo como exemplo da possibilidade de atingir o grande público sem
as fórmulas gastas da narrativa clássica”. Fernão Ramos Pessoa. História do Cinema Brasileiro. São Paulo:
Art Editora, 1987.
566Macunaíma ganhou, entre outros, os prêmios de melhor ator, melhor roteiro, melhor argumento, melhor
cenografia e melhor ator coadjuvante no Festival de Cinema de Brasília de 1969, melhor filme do Festival de
Cinema de Marília, em São Paulo, melhor ator e melhor fotografia no I Festival de Cinema de Manaus, em
1969, e melhor filme do Festival de Mar del Plata, Argentina, também em 1969. In: Ivana Bentes. Joaquim
Pedro de Andrade. A Revolução Intimista. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.
567Ismail Xavier. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1993. p. 150.
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Nessa passagem de Xavier está um primeiro indício do caminho analítico a se
seguir no que concerne às relações do filme com o movimento tropicalista. Macunaíma é,
tradicionalmente, considerado um “filme tropicalista”. Mais: ao lado de Terra em
Transe568, de Glauber Rocha, é comumente tido como exemplo máximo dessa “vertente”
no cinema brasileiro, um fase que teria surgido no interior do Cinema Novo, a partir de
1967-68, rompendo com a busca pelo nacional e o popular, sofrendo forte influência dos
feitos de Caetano e Gil na música – nesse caminho, uma série de outros filmes teriam sido
feitos seguindo pressupostos tropicalistas, como Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr.
Vejamos alguns comentários que comprovam essa caracterização de Macunaíma-filme
como tropicalista.
Na edição do dia 29 de outubro de 1969, a revista Veja noticiava o encerramento do
I Festival Norte do Cinema Brasileiro, em Manaus, do qual Macunaíma sagrou-se o grande
vencedor. Diz a reportagem:
“O primeiro festival de cinema brasileiro deste ano, encerrado
domingo último em Manaus sob um calor de 36 graus, confirmou,
com a vitória de Macunaíma, (...) um tendência para premiar filmes
coloridos, de produção cara e cuidada, com temas bem nacionais. E
é certo que o tropicalismo, morte e enterrado na música popular,
continua cada vez mais vivo no cinema brasileiro.”569
Ainda a Veja, agora na edição do dia 24 de dezembro do mesmo ano, anuncia a
estreia do filme de Joaquim Pedro em São Paulo:
568A relação de Terra em Transe com o tropicalismo é, no mínimo, curiosa. Também naturalizado como um
“filme tropicalista”, aquele que talvez seja a obra máxima de Glauber foi, na verdade, um catalisador do
movimento, um dos elementos deflagradores deste, como afirma o próprio Caetano Veloso: “Se o
tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas idéias, temos então que considerar como
deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, em
minha temporada carioca de 66-7”. Caetano Veloso. Op. Cit. p. 99).
569Revista Veja. Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1969. p. 71. In: http://veja.abril.com.br/acervodigital
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“(...) versão colorida e tropicalista do livro de Mário de
Andrade...”570
Nove anos depois, em 1978, o diretor de teatro Antunes Filho, que encenava uma
adaptação da rapsódia modernista, ao ser entrevistado pela revista Veja, e questionado
sobre a semelhança ou não de sua versão de Macunaíma com a de Joaquim Pedro, declara:
“Joaquim Pedro, a quem eu admiro muito, estava na época
engajado no movimento do tropicalismo e fez um filme
decididamente tropicalista, que servia ao movimento. Eu
particularmente não gosto do filme: acho que,
ao
servir
às
contingências de um determinado momento, Joaquim Pedro
reduziu muito o livro de Mário de Andrade...”571
Por fim, as palavras de Robert Stam e Randal Johnson, dois grandes estudiosos do
cinema brasileiro do período:
“Macunaíma is generally classified as part of the (...) so called
'cannibal-tropicalist' phase. (...) Because of rigorous censorship, the
films of this period tends to work by political indirection, often
adopting alegorical forms...”572
Pois bem, vale questionar aqui o seguinte: ser antropofágico, ou tematizar a
antropofagia, nesse contexto, significa necessariamente ser tropicalista? Parece-me que
não. Existem formas diversas de apropriar-se do pensamento oswaldiano, e significados
múltiplos para a antropofagia em fins da década de 1960. Por isso a relevância do que diz
Xavier na citação acima. Assim, se Caetano Veloso vê na antropofagia oswaldiana paralelo
com o que os tropicalistas estavam fazendo, em sua devoração indiscriminada e sem
570Idem, 24 dezembro de 1969, p. 15.
571
Idem, 4 de outubro de 1978, p. 4.
572Randal Johnson & Robert Stam. Brazilian Cinema. Austin, Texas: University of Texas Press, 1988.
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preconceitos das mais diversas referências, nacionais e estrangeiras – “só me interessa o
que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” – Joaquim está falando de outra
antropofagia. “O núcleo temático de seu discurso sobre a barbárie moderna (entenda-se, o
capitalismo num país periférico)”, aponta Xavier. Ou seja, Joaquim Pedro de Andrade está,
em Macunaíma, falando do canibalismo que move as relações capitalistas de uma
sociedade em processo de industrialização e modernização, daqueles que são engolidos,
devorados nesse processo. Mais: naquele ano de 1969, Joaquim Pedro falava também de
Macunaíma como “um brasileiro devorado pelo Brasil”, que sucumbe, ao som do hino
patriótico Desfile aos heróis do Brasil, de Villa-Lobos, e deixa para trás sua jaqueta verdeoliva, de onde emerge seu sangue. Enfim, parece-me inegável que existem diferenças
visíveis entre a antropofagia dos tropicalistas e a de Macunaíma-filme.
No entanto, se poderíamos questionar o enquadramento de qualquer filme do
período dentro do tropicalismo – mesmo que fosse para, no final, concordar com tal
classificação, mas ao menos embasando-a empiricamente – no caso da obra máxima de
Joaquim Pedro há ainda um outro problema, que extrapola os sentidos intrínsecos à sua
narrativa. Refiro-me aqui ao esforço do próprio cineasta por afastar-se ideologicamente da
Tropicália, algo explicitado em declaração sua à revista Fatos e Fotos, em 1970:
“Macunaíma mostra que o balão inchado e colorido do
tropicalismo estava furado mesmo e tinha que se esvaziar, do
mesmo jeito que Macunaíma, personagem, festeja muito, mas
acaba comido pelo Brasil.”573
Nesse sentido, parece-me óbvio que essa relação entre Macunaíma e o tropicalismo
é uma relação a ser problematizada, complexificada, discutida. Algo que, até o momento,
573Joaquim Pedro de Andrade. In: JOÃO, Antônio. “Dizem que meu filme é grosso. Também acho.”, in
Fatos e Fotos, Rio de Janeiro, 2 abril de 1970. Apud: Heloísa Buarque de Hollanda. Macunaíma: da
literatura ao cinema. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora e Embrafilme, 1978.
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somente foi esboçado por Heloísa Buarque de Hollanda, em seu clássico livro sobre o
filme de Joaquim Pedro – e não deixa de ser curioso que esta tenha sido a primeira obra
escrita sobre Macunaíma-filme, ainda em 1978. Como mostra esta citação da autora:
“No caso do filme Macunaíma (feito em 1969, época em que o
tropicalismo já tendia a se dissolver em 'curtição'), se a imagem,
por um lado, pode sugerir a aproximação com os traços de
representação acumulativa e anacrônica da alegoria tropicalista, a
opção pela articulação unívoca e didaticamente política da linha
narrativa do filme se opõe à adesão.”574
CONCLUSÃO
Heloísa Buarque de Hollanda aponta então que há aproximações, especialmente na
estruturação da linguagem do filme, entre Macunaíma e o tropicalismo. Não se trata,
portanto, de uma mera negação de tal relação, desqualificando todas as análises realizadas
em que tal aproximação é feita. Como disse anteriormente, o objetivo aqui é complexificar,
problematizar – e não negar. Afinal, tal aproximação não é, e nem poderia ser, gratuita.
Estudar minuciosamente o filme de Joaquim Pedro. Estudar minuciosamente o
tropicalismo. Esse é o caminho que pretendo seguir nesta pesquisa, para alcançar o
objetivo proposto. O que faz com que retorne, aqui, ao olhar sobre o conceito de
antropofagia. Como dito na introdução deste texto, foi o estudo desse conceito que levoume a essa temática de pesquisa. E parece-me que um olhar crítico, rigorosamente empírico,
sobre os usos da antropofagia no cenário artístico-cultural brasileiro da década de 1960 é a
chave para o êxito de minha proposta. Afinal, parece ser ela a principal responsável pela
confusão, ou melhor, pela naturalização das relações entre Cinema Novo (e Macunaíma,
574
Heloísa Buarque de Hollanda. Op. Cit., pp. 101-102.
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no caso que me interessa mais) e tropicalismo – e pode ser também a responsável pela
mudança nesse olhar. Assim espero.
FONTES:
Acervo digital revista Veja: http://veja.abril.com.br/acervodigital
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Mário de. Macunaíma. 23 ed. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1986.
ANDRADE, Oswald de. A Utopia Antropofágica. Obras completas. Rio de Janeiro,
Editora Globo, 1995.
BENTES, Ivana. Joaquim Pedro de Andrade: a revolução intimista. Rio de Janeiro,
Relume Dumará, 1996.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Macumaíma: da literatura ao cinema. Rio de Janeira,
Livraria José Olympio Editora e Embrafilme, 1978.
JOHNSON, Randal & STAM, Robert. Brazilian Cinema. Austin, Texas, University of
Texas Press, 1988.
PESSOA, Fernão Ramos. História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987.
TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed.
34, 1990.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
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XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1993. p. 150.
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