Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 27 e 28 de outubro de 2009 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora Centro Acadêmico de História Gestão “Flor no Asfalto” (2009-2010) Comissão Organizadora: Felipe Cazetta – mestrando (UFJF) Heitor Loureiro – graduando 8° período (UFJF) Luiz Alberto Rezende – graduando 5º período (UFJF) Luiz César de Sá Júnior – graduando 8º período (UFJF) Paulo Victor Franco – graduando 5º período (UFJF) 2 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Sumário: Conferência de Abertura ............................................................. pág. 4 Comunicações ............................................................................. pág. 20 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2010. ISSN: 2317-045X. 409 p. 1-Anais; 2-Seminário de História; 3-Comunicações Comissão Organizadora: Felipe Cazetta – mestrando (UFJF) Heitor Loureiro – graduando 8° período (UFJF) Luiz Alberto Rezende – graduando 5º período (UFJF) Luiz César de Sá Júnior – graduando 8º período (UFJF) Paulo Victor Franco – graduando 5º período (UFJF) Diagramação e Formatação: Antonio Gasparetto Júnior 3 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Conferência de Abertura O Ofício do Historiador* Ricardo da Costa** No início da década de 90, o ex-beatle Paul McCartney (1942- ) e seu antigo produtor George Martin (1926- ) encontraram-se nos AIR Studios, em Londres.1 Conversaram sobre os velhos tempos e o quanto eles estavam se tornando “velhos esquisitos”. De repente, eles discordaram a respeito de um detalhe em suas lembranças sobre os Beatles, quando então caíram em uma gargalhada: “Meu Deus”, disse Martin, “se não pudermos acertar, quem diabos poderá?”.2 Essa pequena anedota a respeito dos Fab Four ilustra muito bem um dos problemas centrais da História. O que pensamos ter acontecido realmente aconteceu? Qual é exatamente o nosso ofício? O quão confiável é o que nós produzimos? E, afinal, o que é a História? Essas foram as questões a mim propostas pelo C. A. e o Departamento de História da UFJF (aqui representado pelo Prof. Angelo Alves Carrara), aos quais eu agradeço profundamente o convite para a conferência de abertura de seu I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos. Questões difíceis, tão difíceis, que Peter Burke (1937- ), em uma recente entrevista a respeito da falta de consenso do que seria uma boa explicação histórica, afirmou que “...se algo mudou a respeito disso, é que há ainda menos consenso * Conferência de abertura do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da UFJF, proferida no dia 27 de outubro de 2009. ** Medievalista e Prof. Associado I da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Acadêmico correspondente da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona. Site: www.ricardocosta.com 1 Site: www.airstudios.com 2 MARTIN, George. Paz, Amor e Sgt. Pepper. Os bastidores do disco mais importante dos Beatles. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995, p. 9. 4 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 que antes”.3 De qualquer modo, arriscar-me-ei a apontar algumas reflexões minhas, naturalmente, oriundas de meu exercício com aquilo que Carlo Ginzburg (1939- ) chamou de rastros do passado.4 *** A constatação da incerteza quanto ao resultado de uma investigação histórica já fora percebida há tempos por Arnold Toynbee (1889-1975). Em sua monumental obra intitulada Um Estudo da História, ele afirmou: “...o pensamento não pode impedir que se façam violências à realidade no ato de tentar apreendê-la”.5 Essa fundamental insegurança de nosso ofício fez com que, nos últimos anos, crescessem nas Ciências Humanas o relativismo, o cinismo e o ceticismo (correntes pertencentes ao que eu designo como pacote pós-moderno, um dos filhos de Maio de 68 e da crise do marxismo do final da década de sessenta).6 Todas essas formas de incredulidade foram combatidas por Ginzburg (segundo ele, correntes já em declínio na Europa)7, que, por sua vez, não teve e não tem nenhum escrúpulo em reiterar sua defesa do positivismo das fontes (inclusive com suas distorções) e sua crítica (e reparo) a conceitos ambíguos como, por exemplo, o de representação.8 Para isso, o historiador italiano se vale especialmente da Filosofia e do resgate de obras clássicas – notadamente de Platão e de Aristóteles.9 3 4 5 6 7 8 9 BURKE, Peter. “O passado é um país estrangeiro”. Entrevista concedida ao Jornal O Globo e ao Globo Universidade no dia 16.05.2009. GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. TOYNBEE, Arnold. Um Estudo da História. Brasília: UnB; São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 506. “Simplificando ao extremo, considera-se que o pós-modernismo é a incredulidade em relação às metanarrativas”, LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989, p. 12. Particularmente eficiente é sua defesa na obra Relações de Força. História, Retórica, Prova (São Paulo: Companhia das Letras, 2002). GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 85-103. Esse procedimento já fora realizado por Ginzburg na obra Olhos de Madeira (p. 42-84), supracitada, mas, sobretudo, em O fio e os rastros. 5 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Seja como for, a consciência da dificuldade de se recontar o passado por parte dos historiadores nunca desestimulou as tentativas de construção de conhecimento desse mesmo passado, nem o constante fascínio causado por esse processo. Desde os processos de indulto na França moderna analisados por Natalie Zemon Davies (1928- )10, até os sermonários e poemas apresentados por Georges Duby (1919-1996) em sua investigação sobre as mulheres medievais11, passando pelos milhares de documentos, magnificamente sondados e interpretados por Fernand Braudel (1902-1985)12, são inúmeros os depoimentos dos especialistas de suas maravilhosas estupefações com o que descobrem com a leitura das fontes.13 As fontes. O contato com elas. Esse é o momento em que o historiador é, de fato, um verdadeiro artista.14 É quando então consegue o contato direto com os rastros do passado e tenta, com a “timidez do homem de ciência”, como bem disse Fernando Domínguez Reboiras (1943- ), “analisar os testemunhos reunidos para elevar sobre eles conjecturas e uma teoria dentro dos limites da verdade”.15 As fontes e a verdade. A História como arte. Primeiro tratarei das fontes. Para afirmar sua importância capital na investigação histórica, em um artigo publicado na Harper’s Magazine, Barbara Tuchman (1912-1989) fez algumas considerações muito interessantes para as minhas divagações nesse momento, as quais transcrevo a seguir: 10 11 12 13 14 15 DAVIES, Natalie Zemon. Histórias de perdão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo, Séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995-1996, 03 volumes. DUBY, Georges. Eva e os padres – Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. É verdade que poucos são os historiadores brasileiros que fazem essa declaração de amor de fé à pesquisa arquivística. Por exemplo, na recente obra Conversas com Historiadores Brasileiros (organizada por José Geraldo Vinci de Moraes, São Paulo: Ed. 34, 2002), quinze eminentes colegas de profissão são entrevistados, mas preferem discorrer por outros temas, como a política e suas relações com partidos de esquerda, ou correntes teóricas que os influenciaram. Para Hans-Georg Gadamer (1900-2002), a verdade das ciências humanas “...envolve uma análise da experiência da arte (...) mais próxima da experiência da verdade como se encontra nas ciências humanas do que da que é característica das ciências naturais.” – NEVES, Guilherme Pereira das. “História e Hermenêutica: uma Questão de Método?”, conferência de encerramento do I Seminário Nacional de História e Historiografia Brasileira, proferida no dia 31 de outubro de 2008 na UERJ. DOMÍNGUEZ REBOIRAS, Fernando. “Introdução”. In: Raimundo Lúlio e as Cruzadas. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2009, p. xviii. 6 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 “Nunca pude ver nenhum sentido em referirmo-nos ao vizinho da universidade ao lado como fonte. Para mim, isso não constitui fonte nenhuma: quero saber de onde veio, originalmente, um fato, e não quem o usou pela última vez. Quanto à referência de um livro de nossa autoria como fonte, isso me parece o cúmulo do absurdo.16 Disseram-me que os alunos são obrigados a citar historiadores secundários para mostrar que conhecem a bibliografia, mas se eu estivesse distribuindo diplomas, exigiria conhecimento direto das fontes primárias. As histórias secundárias são necessárias quando partimos de uma ignorância total de um assunto (...) mas depois que me colocaram no caminho, prefiro seguir o resto da estrada sozinha. Se eu fosse professora, reprovaria qualquer aluno que se contentasse em citar uma fonte secundária como sua referência para um fato.”17 Os problemas que Barbara Tuchman levanta para os EUA da década de sessenta do século XX são particularmente importantes para o estudo da História em nosso país nos primeiros anos do século XXI. Isso porque, infelizmente, a maior parte dos historiadores formados atualmente em nossos cursos sai das universidades após quatro, cinco anos, sem nunca ter lido um documento de época, o que só acontece, em boa parte dos casos, durante a pós-graduação. Essa distorção em nossa metodologia de estudo do passado faz com que habituemo-nos a pensar em termos de autoridade: algo só é válido na medida em que foi dito por alguém em um posto acadêmico. Ou seja: em nosso país não importa o que se diz, mas quem diz! Ora, o argumento da autoridade sempre foi o mais fraco, tanto em um debate quanto em prova documental. Nesse aspecto, por mais paradoxal que possa parecer, os 16 17 Curiosamente, há pouco foi lançado um livro organizado por Carla Bassanezi Pinsky intitulado Fontes Históricas (São Paulo: Editora Contexto, 2009) em que há um ensaio (de Maria de Lourdes Janotti) em que, ao contrário de Barbara Tuchman, a autora defende que o livro Fontes Históricas pode ser utilizado como fonte! TUCHMAN, Barbara W. A prática da História. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 34. 7 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 universitários da Idade Média têm muito a nos ensinar. No distante século XIII, na Universidade de Paris, os estudantes de Tomás de Aquino (1225-1274) já sabiam, que não importa quem diz, mas o que se diz: “O argumento de autoridade fundado na razão humana é o mais débil [dos argumentos]; já o argumento de autoridade fundado na revelação divina é o mais sólido.”18 Então já se privilegiava a razão, a capacidade argumentativa – e com base em dados empíricos (inclusive para questões metafísicas, como, por exemplo, as cinco provas de Tomás para a existência de Deus).19 Por isso, em nosso métier, o conhecimento e a análise das fontes é – e sempre foi – condição sine qua non para se fazer qualquer afirmativa, especialmente, para se construir uma sólida narrativa do passado, e não a afirmação da autoridade! Construídas a partir da investigação das fontes, nossas narrativas, em que pesem os silêncios e vácuos, distorções e névoas dos documentos que consultamos, ancora-se sempre na esperança de que é possível saber, com razoável grau de certeza, o que aconteceu. Todo historiador que se preza alimenta essa crença: dominar a crítica interna e externa do(s) documento(s) escolhido(s), para assim poder montar o seu quadro do passado. A esse respeito, é notável perceber que a antiga (e clássica) obra de Henri-Irénée Marrou (1904-1977) Sobre o Conhecimento Histórico20, ainda seja citada, quando se tem que criar um verbete como o “Método Histórico” em um Dicionário das Ciências Históricas!21 E o que Marrou defende tradicionalmente não é muito diferente do que hoje 18 19 20 21 TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teología (pres. Damián Byrne, op.), Primeira Parte, Questão 1, Artigo 8, ad 2. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), 2001, p. 96. TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes: Sulina; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1990, Livro I, Parte I, Cap. XIII, p. 37-44. MARROU, Henri-Irénée. Sobre o Conhecimento Histórico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. DUMOULIN, O. “Método Histórico”. In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993, p. 537-539. 8 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 afirma Ginzburg. Para o italiano, as fontes não são nem janelas escancaradas como pensavam os positivistas do século XIX, nem muros que impedem a visão, como os céticos do final do século XX: são espelhos deformantes.22 Basicamente, essa é a mesma tese de Georges Duby23, que também define nossa profissão como “uma tentativa da maior aproximação possível da verdade e de suspeição perante tudo o que pode deformar o testemunho”.24 Por esse motivo, há um ponto em comum entre historiadores e juízes: ambos se preocupam em definir os fatos.25 Portanto, analisar as deformações das fontes (quando elas as têm) também torna o conhecimento histórico possível – e, é claro, só se pode pensar em deformação de algo que era originalmente uniforme – isto é, a verdade da realidade. Christopher Brooke (1927- ) resumiu maravilhosamente bem a base de toda investigação humana: a responsabilidade de perseguir a verdade!26 Mas o que é a verdade? É o êxito de um procedimento cognoscitivo, no qual se constrói uma correspondência — por mais difícil e esquiva que seja a verdade daquilo que oferecem os testemunhos de uma época. Um conhecimento é verdadeiro na medida em que seu conteúdo concorda com o objeto intencionado, isto é, quando há conformidade entre o intelecto (do observador) e a coisa (observada).27 Mas também é verdade que apreender a realidade vivida a partir das fontes nunca foi um trabalho fácil. O verdadeiro historiador constantemente se depara com esse 22 23 24 25 26 27 GINZBURG, Carlo. Relações de Força. História, Retórica, Prova, op. cit., p. 44. DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/Editora UFRJ, 1993. DUBY, Georges, e GEREMEK, Bronislaw. Paixões comuns. Conversas com Philippe Sainteny. Lisboa: Edições Asa, 1993, p. 76. GINZBURG, Carlo. Relações de Força. História, Retórica, Prova, op. cit., p. 62. BROOKE, Christopher. O Casamento na Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p. 16. Segundo Aristóteles, “Isso é evidente pela própria definição do verdadeiro e do falso: falso é dizer que o ser não é ou que o não-ser é; verdadeiro é dizer que o ser é e que o não-ser não é”, ARISTÓTELES, Metafísica, IV, 7, 1011 b 25ss., e “As coisas se dizem falsas neste sentido: ou porque não existem, ou porque a imagem que delas deriva é de algo que não existe” (V, 29, 1024 b, 25). São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 179 e 261. 9 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 problema diante de si.28 Para os estudos históricos, a verdade deve ser um conceito relacional: quanto maior o número de comparações evidenciais, maior será a possibilidade de precisão do resultado. Isso é muito patente nos registros de batalhas feitos pelos dois lados combatentes. A confrontação de diferentes perspectivas é sempre muito rica, pois permite matizar e moderar todas as versões.29 Ademais, quando é encontrada, a verdade costuma causar incômodo – e isso não é privilégio nem das correntes de direita, nem das de esquerda (por vezes, inclusive, tanto uma quanto a outra fazem o possível para ocultála). Como a perplexa estupefação dos estudantes de Cirurgia na Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632) (figura 1), famoso quadro de Rembrandt (1606-1669)30, a busca da verdade por parte do historiador é a honesta exposição das vísceras, pequena pedra no sapato de todos os ideólogos, de todas as ideologias, essas mitologias históricas (expressão de Eric Hobsbawm [1917- ]31) que povoam nosso imaginário coletivo globalizado. Figura 1 28 29 30 31 DUBY, Georges. A História Continua, op. cit., p. 33-42. Em mais de uma oportunidade eu pude realizar esse trabalho de crítica comparativa das fontes: quando do estudo dos pogroms ocorridos em 1096 na região renana (antes da Primeira Cruzada) – quando confrontei as informações contidas nas crônicas judaicas e cristãs – e em duas batalhas do rei Afonso VIII de Castela, pois há registros árabes e cristãos. Para isso ver COSTA, Ricardo da “Então os cruzados começaram a profanar em nome do pendurado”. Maio sangrento: os pogroms perpetrados em 1096 pelo conde Emich II von Leiningen (†c. 1138) contra os judeus renanos, segundo as Crônicas Hebraicas e cristãs”. In: LAUAND, Jean (org.). Filosofia e Educação – Estudos 8. Edição Especial VIII Seminário Internacional CEMOrOc: Filosofia e Educação. São Paulo: Editora SEMOrOc (Centro de Estudos Medievais Oriente & Ocidente da Faculdade de Educação da USP), Factash Editora, 2008, p. 35-61, e COSTA, Ricardo da. “Amor e Crime, Castigo e Redenção na Glória da Cruzada de Reconquista: Afonso VIII de Castela nas batalhas de Alarcos (1195) e Las Navas de Tolosa (1212)”. In: OLIVEIRA, Marco A. M. de (org.). Guerras e Imigrações. Campo Grande: Editora da UFMS, 2004, p. 73-94. Tanto a escolha de Rembrandt quanto de Caspar David Friedrich (figura 2) são propositais, pois ambos possuem características artísticas afins com o método histórico. Por exemplo, Rembrandt retratava seus temas com gestos dramáticos e vívido tratamento de luz (CHILVERS, Ian [ed.] Dicionário Oxford de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 441), e se opunha ao paternalismo de Rafael e Rubens com cenas realistas de gentalha mal-ajambrada (BELL, Julian. Uma nova História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 246). Hobsbawm afirma que “A História é atualmente revista ou inventada por gente que não deseja o passado real, mas somente um passado que sirva aos seus objetivos. Estamos hoje na grande época da mitologia histórica.”. Citado em COSTA, Ricardo da. “Para que serve a História? Para nada...”. In: Sinais 3, vol. 1, junho/2008. Vitória: UFES, p. 43-70. 10 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Serenamente exposta pelo historiador, a verdade do passado é como a exposição das vísceras diante dos olhares atônitos e incrédulos dos estudantes frente às infinitas e múltiplas possibilidades das sociedades humanas ao longo do tempo. A Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632), de Rembrandt (óleo em tela, 169,5 × 216,5 cm, Royal Picture Gallery Mauritshuis).32 Aliás, Hobsbawm é outro que defende com vigor que aquilo que os historiadores investigam é o real, e que as declarações históricas devem ser baseadas em evidências comprováveis.33 Portanto, para o historiador, a verdade, a verdade da história, não é nem o objetivismo puro, nem o subjetivismo radical, e sim, a simultânea apreensão do objeto (o passado) e a aventura espiritual do sujeito do conhecimento (o historiador).34 32 33 Site: http://www.mauritshuis.nl. HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 8. 11 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 E como o historiador apreende seu objeto para, a seguir, recontá-lo, recriá-lo, enfim, revivê-lo? Como ele cria essa imagem mental do que aconteceu e, ao narrá-la, se torna esse artista do passado? É fundamental que ele se reconheça no texto, que tente se ver espelhado no que lê, que se transporte para o espírito daquela época e compartilhe o que Marc Bloch (1886-1944) chamou de experiência comum de humanidade, entre ele e seu objeto.35 Nesse breve instante de imaginação consciente, ele quase se encontra, no ritmo do texto, em uma certa sintonia, que nada mais é do que o tempo comum entre ambos: trata-se de uma espécie de hiato temporal criado pela sua leitura36, quando então partilha historicamente algo dos sentimentos, dos pensamentos e das perspectivas do passado, e sente o anacronismo para chegar à diacronia. Fazer História, dessa forma sensitiva, sensível, é compreender existencialmente.37 E a imaginação é uma artística e ativa parte desse processo histórico-mental, mas não uma imaginação em devaneio, porém, delimitada precisamente pelo passado que chegou até nós pelas fontes. É o que Duby afirma peremptória e belissimamente: “Imaginemos. É o que os historiadores sempre se vêem obrigados a fazer. Seu papel é o de recolher vestígios, os traços deixados pelos homens do passado, de estabelecer, de criticar escrupulosamente um testemunho.”38 34 35 36 37 38 MARROU, Henri-Irénée. Sobre o Conhecimento Histórico, op. cit., p. 184. “Marc Bloch já havia percebido a necessidade de existência, tanto na natureza quanto nas sociedades humanas, de um fundo permanente por trás da passagem do tempo, pois sem esse pano de fundo existencial que damos o nome de humanidade, os próprios nomes homem e sociedade não teriam qualquer significado”. COSTA, Ricardo da. “O conhecimento histórico e a compreensão do passado: o historiador e a arqueologia das palavras”. In: ZIERER, Adriana (coord.). Revista Outros Tempos. São Luís, Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), volume 1, 2004. Bloch afirma isso na clássica obra Introdução à História (Lisboa: Publicações Europa-América, 1997, p. 99). SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante. Para ler os medievais. Ensaio de hermenêutica imaginativa. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 19-33. KOSELLECK, Reinhart, GADAMER, Hans-Georg. Historia y hermenêutica. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1997, p. 69. DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 1. 12 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Munido espiritualmente desse preparo compreensivo, o historiador sai à procura da caça humana39, à procura do passado, como O Caçador na Floresta (1814) do pintor romântico alemão Caspar David Friedrich (1774-1840) (figura 2).40 Solitário e vulnerável, ele sabe que a História será tão ameaçadoramente impenetrável como a imponente parede de pinheiros à sua frente, caso ele, como um corajoso soldado prussiano, não se muna de todo esse aparato reflexivo e, por alguns momentos, abandone o seu efêmero presente (que aqui pode ser metaforizado como o minúsculo e sombrio corvo empoleirado no tronco cortado) e torne-o destroços atrás de si.41 Só assim, em seus escombros mentais do presente, o historiador poderá tatear o passado e encontrar a melhor perspectiva possível para descrever sua contemplação temporal. John Lewis Gaddis (1941- ) já havia percebido as possibilidades interpretativas de se utilizar a pintura de Caspar David Friedrich como metáfora para explicar como os historiadores mapeiam o passado.42 39 40 41 42 A frase, muito famosa, de Marc Bloch, é: “O bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde farejar carne humana, sabe que ali está a sua caça”, Apologia da História ou O Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 54). Friedrich é considerado um dos gênios mais originais de toda a história da pintura de paisagens. O uso de seus quadros como visualização do ofício do historiador é notável: ele baseava-se na contemplação profunda para conceber mentalmente as imagens expressas em suas telas. CHILVERS, Ian (ed.) Dicionário Oxford de Arte, op. cit., p. 201. Por exemplo, um de seus quadros é descrito por um especialista como “um vislumbre do eterno devir” (BELL, Julian. Uma nova História da Arte, op. cit., 307). A solidão do soldado e o caráter ameaçador da floresta foram interpretados por Simon Schama. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 114-116. GADDIS, John Lewis. Paisagens da História. Como os historiadores mapeiam o passado. Rio de Janeiro: Campus, 2003. 13 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Figura 2 A vasta e imponente imensidão do passado diante da pequenez e pobreza do presente. Entre ambos, o solitário e corajoso historiador, que pretende penetrar mata adentro, munido com suas armas compreensivas. Nesse caso, o encontro do Historiador com a História será como o do filósofo estóico Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.) com a divindade, exatamente no seio da floresta: “Sem a divindade, ninguém pode ser um homem de bem (...) Se penetrares num bosque cheio de velhas árvores, de altura fora do comum e tais que 14 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 a densidade dos ramos entrelaçados uns nos outros oculta a vista do céu, a própria grandeza do arvoredo, a solidão do lugar, a visão magnífica dessa sombra tão densa e contínua no meio da planura, tudo te fará sentir a presença divina.”, Cartas a Lucílio, 41, 3.43 O caçador na floresta (1813/1814), 65,7 x 46,7 cm. Coleção particular. Umberto Eco (1932- ) definiu o estilo do pintor alemão como a poética das montanhas, e o que disse a esse respeito – um viajante que sempre se sente fascinado por rochas inacessíveis, glaciares sem fim, abismos sem fundo, extensões sem limite – também é uma admirável analogia da relação entre o historiador e a História, o viajante e as paisagens de sua viagem.44 Por sua vez, Simon Schama (1945- ) se valeu maravilhosamente bem da arte para explicar o modo de olhar o que já possuímos, mas que nos escapa ao reconhecimento e apreciação.45 E a História não será sempre essa constante e renovada exploração apreciativa do passado que insiste em escapar à nossa compreensão? *** Caso o historiador explore os vestígios do passado com aquela curiosidade determinada, eleve o seu espírito, amplie sua experiência, vislumbre e interrogue incisivamente a paisagem do tempo que se descortina à sua frente através dos documentos, e a reapresente aos seus contemporâneos com o lirismo e a verdade, a riqueza e a dramaticidade que as sociedades passadas e seus mortos o exigem, será um agradável e consciente viajante contemplativo, e saberá explorar todas as possibilidades de sua interpretação histórica. Terá, enfim, alcançado a maturidade da consciência histórica.46 Será um Historiador. 43 44 45 46 LÚCIO ANEU SÉNECA. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 141. ECO, Umberto. Historia de la Belleza. Barcelona: Editorial Lumen, 2004, p. 282. SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória, op. cit. O significado da maturidade nas relações humanas é, para Gaddis, o reconhecimento da identidade pelo caminho da insignificância: “...eu definiria a consciência histórica como a projeção dessa maturidade ao longo do tempo”, GADDIS, John Lewis. Paisagens da História, op. cit., p. 19-20. 15 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Caso contrário, estará fadado a ser um mero e provinciano ideólogo, representante do último modismo acadêmico, e a desaparecer nas pobres brumas de sua insignificância. Será um historiador.47 Este pequeno trabalho é dedicado ao querido mestre Guilherme Pereira das Neves Bibliografia citada ARISTÓTELES, Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2005, 03 volumes. BELL, Julian. Uma nova História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2008. BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América, 1997. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo, Séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995-1996, 03 volumes. BROOKE, Christopher. O Casamento na Idade Média. Lisboa: Publicações EuropaAmérica, s/d. CHILVERS, Ian [ed.] Dicionário Oxford de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2007. COSTA, Ricardo da. “Amor e Crime, Castigo e Redenção na Glória da Cruzada de Reconquista: Afonso VIII de Castela nas batalhas de Alarcos (1195) e Las Navas de Tolosa (1212)”. In: OLIVEIRA, Marco A. M. de (org.). Guerras e Imigrações. Campo Grande: Editora da UFMS, 2004, p. 73-94. 47 Agradeço sobremaneira a leitura crítica feita pelos amigos Stan Stein e Armando Alexandre dos Santos. 16 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 COSTA, Ricardo da. “O conhecimento histórico e a compreensão do passado: o historiador e a arqueologia das palavras”. In: ZIERER, Adriana (coord.). Revista Outros Tempos. São Luís, Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), volume 1, 2004. COSTA, Ricardo da “Então os cruzados começaram a profanar em nome do pendurado”. Maio sangrento: os pogroms perpetrados em 1096 pelo conde Emich II von Leiningen (†c. 1138) contra os judeus renanos, segundo as Crônicas Hebraicas e cristãs”. In: LAUAND, Jean (org.). Filosofia e Educação – Estudos 8. Edição Especial VIII Seminário Internacional CEMOrOc: Filosofia e Educação. São Paulo: Editora SEMOrOc (Centro de Estudos Medievais Oriente & Ocidente da Faculdade de Educação da USP), Factash Editora, 2008, p. 35-61. COSTA, Ricardo da. “Para que serve a História? Para nada...”. In: Sinais 3, vol. 1, junho/2008. Vitória: UFES, p. 43-70. DAVIES, Natalie Zemon. Histórias de perdão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. DOMÍNGUEZ REBOIRAS, Fernando. “Introdução”. In: Raimundo Lúlio e as Cruzadas. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2009, p. xvii-xxix. DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988. DUBY, Georges, e GEREMEK, Bronislaw. Paixões comuns. Conversas com Philippe Sainteny. Lisboa: Edições Asa, 1993. DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/Editora UFRJ, 1993. DUBY, Georges. Eva e os padres – Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. DUMOULIN, O. “Método Histórico”. In: BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993, p. 537-539. ECO, Umberto. Historia de la Belleza. Barcelona: Editorial Lumen, 2004. 17 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 GADDIS, John Lewis. Paisagens da História. Como os historiadores mapeiam o passado. Rio de Janeiro: Campus, 2003. GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. GINZBURG, Carlo. Relações de Força. História, Retórica, Prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. KOSELLECK, Reinhart, GADAMER, Hans-Georg. Historia y hermenêutica. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1997. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989. MARROU, Henri-Irénée. Sobre o Conhecimento Histórico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. MARTIN, George. Paz, Amor e Sgt. Pepper. Os bastidores do disco mais importante dos Beatles. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. MORAES, José Geraldo Vinci de (org.). Conversas com Historiadores Brasileiros. São Paulo: Ed. 34, 2002. PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Editora Contexto, 2009. SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 18 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante. Para ler os medievais. Ensaio de hermenêutica imaginativa. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. LÚCIO ANEU SÉNECA. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes: Sulina; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1990. TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teología (pres. Damián Byrne, op.) Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), 2001. TOYNBEE, Arnold. Um Estudo da História. Brasília: UnB; São Paulo: Martins Fontes, 1987. TUCHMAN, Barbara W. A prática da História. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. 19 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Comunicações: Experiência Mutualista em Juiz de Fora: a Associação Beneficente dos Irmãos Artistas (1908-1950). Antonio Gasparetto* RESUMO: Este artigo desenvolve um estudo de caso sobre associativismo urbano em Juiz de Fora na primeira metade do século XX. A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas foi uma das maiores e mais influentes mutuais existentes na cidade e na região. Essa observação mostra como tais instituições foram importantes no desenvolvimento da cultura cívica e associativa no país. PALAVRAS-CHAVE: Mutualismo; Associativismo; Associação Beneficente dos Irmãos Artistas ABSTRACT: This article is a study of case about urban’s associativism in Juiz de Fora, first half of century XX. The “Associação Beneficente dos Irmãos Artistas” was one of the bigger and most influentials that existing in this city and region. That look shows how these institutions were importants for development of civicals and associativist culture in Brazil. KEYWORDS: Mutualism; Associativism; Associação Beneficente dos Irmãos Artistas Introdução * Graduando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. 20 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 O fenômeno mutualista foi muito marcante no Brasil na primeira metade do século XX, espalhou-se por várias regiões do país oferecendo uma alternativa de organização de trabalhadores. Esse movimento possibilitou o florescer de uma cultura de classe, em simultaneidade com a ação dos sindicatos, e também de uma cultura civil, despertando para o conhecimento público as deficiências do Estado nas políticas públicas de assistência. Em Minas Gerais os estudos sobre o associativismo urbano, no que diz respeito especialmente às associações mutualistas, estão começando a tomar corpo. Procurando engrossar a quantidade de informações e as reflexões sobre o tema no estado, o presente artigo busca inserir Juiz de Fora na discussão através do estudo do caso de uma das maiores e mais influentes mutuais do município, a Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. A associação em questão funcionou em Juiz de Fora durante praticamente cinqüenta anos, nos quais promoveu uma consciência organizativa nos trabalhadores através de seus preceitos de promoção de espaços de sociabilidade, lazer e de amparo para seus associados. A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas se relacionou abertamente com outras mutuais, com sindicatos e com órgãos públicos. Esse leque amistoso de relacionamentos a possibilitou grande notoriedade na região, recebendo doações, conquistando benefícios, estabelecendo contato e até mesmo tendo como associado o presidente do estado de Minas Gerais, Antônio Carlos. Este artigo faz parte de uma série de estudos que vem sendo realizados sobre mutualismo e a própria associação em Juiz de Fora. Trata-se de uma prévia de um trabalho de mais fôlego a ser publicado sobre as movimentações sociais na cidade. O Fenômeno Mutualista 21 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Ao longo do tempo a classe trabalhadora foi se consolidando e organizando através de diferentes formas de manifestações de resistência. Assim como ocorreu em outras partes do mundo, é importante abrirmos os olhos para o que se desenvolvia em território brasileiro e aflorarmos as maneiras pelas quais os trabalhadores encontraram para se organizarem. Uma das vias que permitiu a estruturação de uma classe em busca de melhores condições sociais se apresenta através das experiências associativas mutualistas, que serviu muito bem para o processo de consolidação da cidadania no Brasil. O fenômeno mutualista coexistiu com outras formas de organização dos trabalhadores, com notificação especial para os sindicatos. Assim, antes de se pressupor uma evolução dos movimentos associativos deixamos claro que o fenômeno associativo foi simultâneo ao movimento sindical, logo, abre-se o caminho para as variadas formas de relação encontradas entre as mutuais e as sociedades de resistência. O mutualismo, entretanto, caminhou mais proximamente das irmandades e associações filantrópicas constituindo passos iniciais para a organização da sociedade civil brasileira. O princípio das mutuais era oferecer algum suporte e amparo social, integrando os trabalhadores através de espaços de sociabilidade e lazer para seus membros. Dessa forma, suas atividades podem ter influenciado para a cultura cívica brasileira, organizando a sociedade civil para consolidar as estruturas necessárias da cidadania. É ainda nas décadas finais do século XIX que as associações mutualistas começam a se proliferar. Ronaldo de Jesus identifica vários casos no Brasil Imperial e encontra elementos de trabalhismo e corporativismo, que seriam típicos das primeiras décadas do século XX, já em 185748. Até 1940 as mutuais apareceram e tiveram grande destaque na 48 JESUS, Ronaldo Pereira. História e historiografia do fenômeno associativo no Brasil monárquico (18601887). In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Orgs). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. 22 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 sociedade brasileira, mas segundo Cláudia Viscardi “o progressivo esvaziamento das mutuais se dá na medida em que o Estado vai chamando a si responsabilidades no campo da seguridade pública” 49 . Mas anteriormente a isso ainda, Abram Swaan argumenta que quem primeiro roubou o espaço das mutuais foram as seguradoras, munidas de maior organização e com uma estruturação profissional50. De todo modo, somando-se as duas coisas, os anos 1940 apontam mesmo para a derrocada de tais associações. As mutuais brasileiras eram muito diversificadas, mas reuniam o que Ronaldo de Jesus chama de “gente comum” 51 . Em recente estudo desenvolvido juntamente com Cláudia Viscardi, levantou-se que as categorias mais freqüentes das mutuais em Minas Gerais eram as associações de ofício, filantrópicas, literárias e de lazer, étnicas e as seguradoras52. Embora as associações fossem ambientes para união de trabalhadores, podese perceber que pelo próprio fato de se ramificarem em tantas categorias acabavam exercendo também um papel de exclusão. Certas fronteiras formalizadas impediam o acesso a algumas mutuais de determinados grupos, além disso, para atender as necessidades de uma mutual, era preciso que o indivíduo possuísse uma renda mínima para cumprir com os encargos e que o permitisse dispensar tempo com os trabalhos em sua associação. Um pobre dependente de salário dificilmente teria tempo e condições para tantas responsabilidades. Assumir a presidência de uma mutual era algo que dependia de muito esforço e trabalho, sem haver remuneração para tal cargo, a recompensa obtida por tanta dedicação ligava-se a uma questão de status social. Devido à representatividade social das mutuais em seu período de apogeu, os frutos que se poderiam colher socialmente 49 VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Mutualismo e Filantropia. In: Lócus – Revista de História. Juiz de Fora: EDUFJF, 2004, Vol. 10, Nº. 1. P. 107. 50 SWAAN, Abram. In Care of The State: health care, education and welfare in Europe and the USA in the modern era. Cambridge: Polity Press, 1988. P. 283. 51 JESUS, Ronaldo Pereira. Op. Cit. P. 287 52 VISCARDI, Cláudia & GASPARETTO, Antonio. O Mutualismo em Juiz de Fora: as experiências da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. In: À Margem do Caminho Novo. Cláudia Viscardi e Mônica Ribeiro (Orgs.) (Prelo). 23 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 eram notáveis, esse é talvez o grande motivo pelo qual determinados membros ocupavam o cargo de presidente da associação por tantos anos. Cláudia Viscardi sintetiza bem essa questão: As lideranças raramente eram pobres ou analfabetas. Muitas se mantinham indefinidamente no poder. Não porque quisessem, mas, na maioria das vezes, por não disporem de concorrentes. Permanecer na direção soava como ônus, um preço alto que deveria ser pago pelo bem coletivo. 53 Entre as atividades promovidas pelas mutuais estavam as festas. De acordo com Mary Clawson as festividades faziam parte do arsenal simbólico das associações, que provinham em grande parte da Maçonaria54. Quanto aos socorros, ofereciam financiamento para funerais pensões para viúvas, auxilio para viagens ao exterior, cobertura para acidentes de trabalho, compra de remédios, entre várias outras possibilidades. “O grau de cobertura dependia dos recursos disponíveis pela associação, que estavam diretamente relacionados ao número e ao poder aquisitivo dos sócios” 55 , como comentam Cláudia Viscardi e Ronaldo de Jesus. Como as atividades das mutuais procuravam suprir as lacunas do Estado, em muitos casos os presidentes de algumas associações recorriam ao poder público para conseguir recursos. Entretanto, representantes do poder público alegavam serem as mutuais de caráter privado e, em geral, nada faziam. Era mais comum o oferecimento de verbas para organizações filantrópicas que, todavia, tinham demandas muito semelhantes. Na verdade não havia uma noção clara na cabeça dos governantes que diferenciasse 53 VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio interpretativo. In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Orgs). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. P. 309 54 CLAWSON, Mary A. A Constructing Brotherhood: class, gender and fraternalism. Princeton University Press, 1989. 55 VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro & JESUS, Ronaldo Pereira. A experiência mutualista e a formação da classe trabalhadora no Brasil. In: A Formação das Tradições (1889-1945). Col. As Esquerdas no Brasil, Vol. 1. Jorge Ferreira (Organizador). P. 26. 24 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 mutualismo e filantropia56, o que favoreceu também para que estas tenham sobrevivido em maior número do que as primeiras até hoje. Grande parte das mutuais não tinha interesse em se envolver com a política, a preocupação se dava mais no oferecimento de sociabilidade e lazer para os membros, tanto que muitas se auto-definiam como organizações cooperativas de amparo aos trabalhadores em situações de doença57. No caso das associações étnicas o interesse se dava em manter determinada identidade cultural de um povo, tratava-se de um espaço onde os imigrantes poderiam viver em conformidade com suas raízes. Na grande maioria prevaleciam associados do sexo masculino com uma faixa etária média entre 15 e 55 anos, pressupondo-se uma renda suficiente para arcar com as mensalidades cobradas. Em Juiz de Fora as mais numerosas eram as associações de ofício, uma vez que houve concentração de pequenas manufaturas e fábricas agregando grande número de trabalhadores no município. Nesse sentido, faremos uma abordagem de uma das maiores e mais influentes associações mutualistas de ofício existente em Juiz de Fora na primeira metade do século XX, a Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. Associação Beneficente dos Irmãos Artistas A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas foi fundada em Juiz de Fora no dia 15 de maio de 1908, com 25 sócios. Em seu estatuto58 já determinava que fosse composta de um número limitado de sócios, seguindo um mesmo princípio encontrado em outros 56 Sobre a questão de mutualismo e filantropia ver VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Mutualismo e Filantropia. In: Lócus – Revista de História. Juiz de Fora: Departamento de História/ Pós-Graduação em História/ EDUFJF, 2004, Vol. 10, Nº. 1. 57 VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio interpretativo. In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Organizadoras). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. 58 Segue uma série de informações retiradas diretamente dos estatutos encontrados no Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. 25 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 países59, mas neste caso sem distinção de nacionalidades. Definia-se, como a grande maioria das associações, como uma organização cooperativa que ofereceria amparo aos membros. Para os associados que estivessem em dia com as obrigações da Associação eram conferidos socorros nos casos de moléstia, desastre ou invalidez e auxílio para o funeral daqueles que morressem em pobreza. A Associação dos Irmãos Artistas contava com médicos e contas em farmácias para sustentar a necessidade de medicamentos. Mas os socorros tinham suas particularidades e dependiam da condição que o associado ocupava dentro da Associação, para avaliar os tipos de ajuda, em casos de doenças mais graves, o conselho administrativo dispensava atenção maior para dar o parecer necessário. A administração da Associação Beneficente dor Irmãos Artistas cabia a um conselho administrativo composto de doze membros, onde seis possuíam cargos designados. Constava de um presidente, um primeiro secretário, um segundo secretário, um tesoureiro, um procurador e os seis conselheiros. Eram eleitos para ocupar os cargos no período de um ano administrativo, que segundo o estatuto se encerrava a cada dia 15 de maio. Para auxiliar o conselho em suas funções, eram nomeadas, logo na primeira reunião, comissões de sindicância e beneficência, composta por três membros cada, além de um conselho fiscal composto por outros três membros. A Assembléia Geral era o órgão máximo da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. Tratava-se de reuniões de todos os sócios quites e era convocada pelo presidente do conselho administrativo por meio de jornais impressos de maior circulação na cidade. Nela se definiam todas as questões da Associação: eleições do conselho administrativo e do conselho fiscal; julgar os atos do conselho, discutir e resolver questões submetidas à sua decisão; decidir a reclamação dos sócios; revogar deliberações do conselho quando contrárias ao estatuto; promulgar medidas necessárias para o desenvolvimento social; 59 JESUS, Ronaldo Pereira. Op. Cit. P. 291 26 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 dissolver o conselho em todo ou em parte quando for para o bem da Associação e alterar ou reformar o estatuto. Assumir o cargo de presidente era uma função fatigante e poucos tinham interesse e condições para exercê-lo. No caso da Associação dos Irmãos Artistas um nome permaneceu no cargo por grande parte de sua existência, Antonio Scanapieco. Este se tornou um individuo fortemente associado à mutual, assumiu o cargo em maior de 1921 e permaneceu até 1938. Foi responsável pela liderança da Associação na maior parte do período de apogeu das mutuais na cidade e também no início da fase de queda. Em seu lugar entrou José Teixeira da Silva Sobrinho que não deu conta do momento de crise pelo qual passavam as mutuais, enfrentando uma redução significativa do número de associados e conseqüentes crises orçamentárias. Segundo relatórios da Associação percebe-se que a administração de José Teixeira da Silva Sobrinho foi muito conturbada e incompetente durante os sete anos em que esteve na liderança. Para tentar superar a delicada situação em que estava a mutual, Antonio Scanapieco foi eleito novamente presidente em 1945 e permaneceu no cargo até a fusão da Associação dos Irmãos Artistas com outra mutual, que terminou resultando em seu fim60. A construção da sede era objeto de grande desejo das mutuais em geral, não foi diferente com a Associação dos Irmãos Artistas. Já no ano seguinte a fundação da Associação, 1909, foi adquirido um terreno na Avenida Rio Branco, região bem central da cidade. Para construção do prédio da sede foi necessário tomar empréstimo, até ficar pronto a Associação funcionava em uma sala alugada da loja maçônica Fidelidade Mineira. Várias foram as ações promovidas entre os sócios para auxiliar nos gastos com a construção, recebendo inclusive doações financeiras de grandes políticos regionais da 60 De acordo com cartas, relatórios de reuniões e ofícios da mutual encontrados no Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. 27 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 época. Com muito esforço e após muito tempo de arrecadação de recursos a sede ficou pronta, foi inaugurada no dia 7 de outubro de 1927. A Associação admitia sócios nacionais e estrangeiros que tivessem ocupação honesta e bons costumes. Exigia-se que não tivessem defeito físico, doenças crônicas ou incuráveis, ter entre 15 e 55 anos e deveria obrigatoriamente ser proposto por um associado. Quando aceitos, os associados se dividiam em fundadores, contribuintes, remidos, honorários, beneméritos, benfeitores e protetores. A cada uma dessas categorias cabiam condições especiais, mensalidades com valores diferenciados, posições sociais diferenciadas, regalias, direitos e deveres. Por exemplo, segundo Cláudia Viscardi e Ronaldo Jesus: Os chamados beneméritos eram os que despendiam contribuições significativas para a associação e não precisavam usufruir as benesses conferidas aos demais associados. A vantagem residia no status ou no reforço de seu poder junto à comunidade. Na Associação Beneficente dos Irmãos Artistas, o líder político e depois presidente do estado, Antônio Carlos, constava como sócio protetor pelo fato de ter doado significativas quantias para a Associação. Na Associação dos Irmãos Artistas, quando algum sócio ilustre falecia, sua foto ficava permanentemente exposta na sede, ou uma das salas recebia o nome do falecido benemérito, sem contar as sessões especiais que eram programadas em homenagem aos protetores da Associação. Todo ritual de enaltecimento era prerrogativa apenas dos grandes doadores, como forma de realçar seu poder sobre a comunidade. 61 De acordo com levantamentos feitos, o perfil dos sócios aponta para um destaque de profissionais urbanos. Ente eles apareciam principalmente indivíduos do setor de serviços e assalariados industriais. Acreditamos que o número médio de sócios durante toda a existência da mutual tenha sido entre 250 e 300 associados. Em conformidade com 61 VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro & JESUS, Ronaldo Pereira. A experiência mutualista e a formação da classe trabalhadora no Brasil. In: A Formação das Tradições (1889-1945). Col. As Esquerdas no Brasil, Vol. 1. Jorge Ferreira (Organizador). P. 29. 28 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 os relatórios anuais da Associação encontrados, sabe-se que no período de finalização e após a entrega da sede houve um momento de crescimento por causa da visualidade conquistada. Por outro lado, a progressiva ação do Estado no campo das políticas públicas durante o governo de Getúlio Vargas causou um declínio no número de associados62. Quanto às nacionalidades, apareciam sobrenomes portugueses, italianos, alemães e judeus, nesta respectiva ordem de quantidade. A análise dos sobrenomes pode apresentar sutilezas quanto à nacionalidade efetiva do indivíduo, mas de toda forma demonstra uma forma de constituição da Associação. Era comum a realização de festivais para captações de recursos extras para a Associação e para promoção de espaços diversificados de sociabilidade entre os associados da mutual e também com associados de outras mutuais. Comumente também se dava o relacionamento com movimentos sindicais, embora a Associação dos Irmãos Artistas se declarasse apenas como provedora de amparo, sociabilidade e lazer para seus associados. Na verdade, a Associação tinha relações amistosas com sindicatos, órgãos públicos, outras mutuais, imprensa e agentes econômicos locais. O que trazia muitos benefícios para a mutual. A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas colocava-se de forma ambígua em relação à política. Participou de congressos operários nacionais, frequentemente reunia-se com uma associação de resistência da cidade vizinha em caráter festivo, mas reafirmava sempre seu caráter exclusivamente beneficente. 63 62 VISCARDI, Cláudia & GASPARETTO, Antonio. O Mutualismo em Juiz de Fora: as experiências da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. In: À Margem do Caminho Novo. Cláudia Viscardi e Mônica Ribeiro (orgs.) (Prelo). 63 VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio interpretativo. In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Organizadoras). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. P. 308-309 29 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A partir da metade de década de 1930 a Associação dos Irmãos Artistas enfrentou consideráveis problemas. Já na década de 1920 as mutuais em geral enfrentaram um balanço causado pelo aparecimento das seguradoras, que infiltravam a competição no lugar da cooperação, mas esse momento foi superado e foi possível que as associações continuassem gozando de estabilidade. Entretanto, na década seguinte, com a ação do Estado no campo das políticas públicas e o progressivo melhoramento das condições sociais e de vida implementadas durante o governo de Getúlio Vargas, a procura pelas mutuais caiu drasticamente. O momento mais crítico dessa fase foi enfrentado por José Teixeira da Silva Sobrinho, na liderança da Associação, que se deparou com uma grave crise no número de associados e também financeira. Antonio Scanapieco voltou a assumir a presidência da Associação em 1945 acusando as administrações anteriores de incompetência e irresponsabilidade na condução da mutual, mas ele também não teria mais condições de levar a Associação de volta aos tempos áureos. Scanapieco tentou adotar várias medidas mais radicais para reerguer a mutual, chegou inclusive a convocar uma Assembléia Geral para se legitimar um novo estatuto que estivesse adaptado aos novos tempos. Este foi reformado e promulgado em 5 de junho de 1947, mas não mudaria em muita coisa o caminho que apontavam as condições do momento. Muito endividada, com número de sócios em progressiva queda e falta de perspectiva de crescimento, a Associação Beneficente dos Irmãos Artistas tentou fugir do naufrágio completo fundindo-se com outras mutuais, conseguiu finalmente, após vários fracassos, em 1950 fundir-se com a Associação Ítalo-Brasileira Anita Garibaldi, uma associação cultural que oferecia serviços jurídicos e dentários para seus associados que havia sido fundada em março de 194664. Levou para a Associação Anita Garibaldi todos 64 CHRISTO, Maraliz. Italianos: trabalho, enriquecimento e exclusão. In: Solidariedades e Conflitos: histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora. Célia Maia Borges (organizadora). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2000. P. 160 30 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 seus sócios e suas dívidas, mas deixou estabelecido em contrato a manutenção dos direitos de seus associados. Conclusão A Associação Beneficente dos Irmãos Artistas expressa muito bem os caminhos seguidos por várias outras associações mutualistas não só em Minas Gerais, mas como em todas as regiões do país. As práticas e ações apresentadas dessa associação demonstram o seu tipo de inserção na sociedade, abordando o relacionamento com o poder público e organizações de resistências dos trabalhadores. Ilustra como as associações tinham sua representatividade no dia a dia do Brasil. Nesse sentido, associações como a dos Irmãos Artistas ofereceram para os trabalhadores espaços sociais que permitiram o acúmulo da experiência associativa, de vivências administrativas, de experimentos jurídicos, de debate político, de comunicação de várias formas, contato com as autoridades e eventos de festividade. Todo esse arsenal de situações favoreceu na formação de uma cultura cívica, oferecendo espaços de consolidação de consciência dos trabalhadores, o que foi fundamental para a organização da sociedade civil brasileira. As mutuais eram, ao mesmo tempo, organizações de direito privado, que cultivavam valores de autonomia, agiam com propriedade para resolver seus próprios problemas através do auxilio mutuo, promovendo a troca de favores e situações que enalteciam determinados indivíduos; e eram também espaços de exclusão bem determinados, que prezavam pela masculinidade – embora tenham sido encontradas fichas de registro de mulheres, mas que pode ser um indício do desespero na busca por novos associados no período de declínio da Associação –, exigiam a boa saúde para aceitação no 31 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 grupo, indivíduos que tivessem reconhecida moral e bons costumes, mas principalmente que possuíssem uma renda fixa advinda de um trabalho qualificado e que fosse capaz de suprir as exigências e responsabilidades com a instituição. Assim, as associações mutualistas, como foi expresso aqui através do caso da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas em Juiz de Fora, eram ambientes que propagavam interesses de um grupo bem específico, defendendo sua autonomia e promovendo os mais representativos nomes e ao mesmo tempo excluindo pobres e durante muito tempo as mulheres. Mesmo considerando as ambigüidades e os desafios e dificuldades enfrentados pelas associações, é de se notar o importante serviço prestado por tais organizações à cultura cívica e à construção da cidadania no país. Referências Bibliográficas CHRISTO, Maraliz. Italianos: trabalho, enriquecimento e exclusão. In: Solidariedades e Conflitos: histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora. Célia Maia Borges (organizadora). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2000. CLAWSON, Mary A. A Constructing Brotherhood: class, gender and fraternalism. Princeton University Press, 1989. JESUS, Ronaldo Pereira. História e historiografia do fenômeno associativo no Brasil monárquico (1860-1887). In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Organizadoras). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. SWAAN, Abram. In Care of the State: health care, education and welfare in Europe and the USA in the modern era. Cambridge: Polity Press, 1988. VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio interpretativo. In: Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Carla Maria Carvalho de Almeida & Mônica Ribeiro de Oliveira (Organizadoras). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. 32 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 __________, Cláudia Maria Ribeiro. Mutualismo e Filantropia. In: Lócus – Revista de História. Juiz de Fora: Departamento de História/ Pós-Graduação em História/ EDUFJF, 2004, Vol. 10, Nº. 1. VISCARDI, Cláudia & GASPARETTO, Antonio. O Mutualismo em Juiz de Fora: as experiências da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas. In: À Margem do Caminho Novo. Cláudia Viscardi e Mônica Ribeiro (orgs.) (Prelo). VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro & JESUS, Ronaldo Pereira. A experiência mutualista e a formação da classe trabalhadora no Brasil. In: A Formação das Tradições (1889-1945). Col. As Esquerdas no Brasil, Vol. 1. Jorge Ferreira (Organizador). 33 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Filantropia e Mutualismo: afinidades e diferenças 65 Camila Pereira Martins 66 RESUMO: Este artigo parte da pesquisa bibliográfica para analisar comparativamente o mutualismo e a filantropia entre os anos de 1860 e 1930, período anterior a plena expansão das relações capitalistas de troca, o que leva ao debate sobre o conceito de reciprocidade. O motivo desta comparação é identificar afinidades e diferenças existentes entre as práticas da filantropia e do mutualismo, de acordo com o conjunto de valores predominantes nas associações. PALAVRAS-CHAVE: reciprocidade, filantropia, mutualismo. ABSTRACT: I review the literature for comparative analysis of the mutualism and philanthropy in the years 1860 and 1930, a period prior to the full development of capitalist relations of exchange, which leads the debate on the concept of reciprocity. The reason this comparison is to identify affinities and differences between the practices of philanthropy and mutualism, in accordance with the set of values prevailing in the associations. KEYWORDS: reciprocity, philanthropy, mutualism. INTRODUÇÃO O presente texto trata-se de um estudo comparativo acerca de dois fenômenos associativos: mutualismo e filantropia. Esta comparação será feita com o objetivo de estudar as associações filantrópicas e mutuais brasileiras entre os anos de 1860 e 1930, 65 66 Artigo desenvolvido no âmbito de pesquisa do LAHPS através de uma bolsa PIBIC. Graduanda de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 34 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 para identificar as afinidades e diferenças existentes entre as práticas da filantropia e do mutualismo de acordo com o conjunto de valores predominantes nas associações a partir da visão que os seus próprios contemporâneos possuíam sobre seu papel social67. Para tanto, a partir das fontes secundárias pesquisadas, será feita uma breve introdução sobre o desenvolvimento histórico das duas práticas associativas no Brasil. Em seguida faremos um debate teórico sobre o conceito de reciprocidade baseada nas ações de dar, receber e contra-doar, para enfim descrevermos estes dois fenômenos associativos, analisando como a reciprocidade é praticada nessas associações, com quais intenções são feitas as doações e como a associação funciona nesses processos. ASSOCIAÇÕES MUTUAIS E FILANTRÓPICAS As ações filantrópicas de caráter privado tiveram início no Brasil na segunda metade do século XVI com a transposição das Irmandades de Misericórdia de Lisboa para a colônia, sendo elas responsáveis pelo atendimento da saúde de grande parte da população brasileira. Acompanhando o processo de progressiva ocupação do território brasileiro tais iniciativas tiveram considerável proliferação nos séculos XVII e XVIII ampliando a inserção da Igreja Católica no Brasil, mas é no século XIX que a filantropia se ampliará consideravelmente68. Com a separação do Estado da Igreja, realizada na Constituição 1891, a Igreja passa a ver nas Santas Casas de Misericórdia a possibilidade de uma expansão compensatória em relação a uma possível perda de adeptos69. 67 VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo Pereira de. Associações Mutualistas e Filantrópicas: estudos comparativos. (mimeo), 2007. 68 VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo Pereira de. Associações Mutualistas e Filantrópicas: estudos comparativos. (mimeo), 2007. 69 VISCARDI, Cláudia M. R. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio interpretativo. In: ALMEIDA, Carla M.; OLIVEIRA, Mônica R. de (orgs.). Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: editora UFJF, 2006. 35 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 O Código Penal brasileiro de 1890 previa a reclusão de menores infratores, por isto, no início do século XX, foram criadas as primeiras instituições públicas de acolhimento, não só da criança e adolescente infratores, como também de vadios e órfãos em internatos correcionais. Assim, neste período, proliferam-se construções de asilos e orfanatos, de caráter público e privado. Essas instituições, quando privadas, eram obra de religiosos – católicos, protestantes e espíritas –, sendo que, no caso brasileiro, a dupla dimensão, pública e privada, coexistem. O Estado coloca-se como um incentivador de tais práticas, regulamentando-as de modo a facilitar o seu funcionamento, concedendo isenções fiscais, incentivando a contribuição e o trabalho voluntário70. As mais antigas associações de socorro mútuo brasileiras datam da primeira metade do século XIX e foram progressivamente esvaziadas ao longo das décadas de 1930 e 1940 com a criação da previdência pública pelo Estado Novo, pois a maior parte das mutuais tinha como objetivo principal oferecer aos associados proteção na ausência dos mecanismos formais de previdência pública. Portanto, as mutuais tem um duplo papel – desempenhavam funções públicas, ao mesmo tempo em que eram organizações de direito privado –, o que lhes rendia muitos problemas, mas também, em alguns casos, boas soluções, pois isto lhes permitia recorrer ao Estado à procura de ajuda alegando que cumpriam funções públicas71. As associações mutualistas proliferaram-se largamente no Brasil durante as últimas décadas do século XIX e as quatro primeiras décadas do século XX. Acreditamos que este grande impulso associativo se explica, sobretudo, pela migração dos trabalhadores do campo para a cidade, o que gerou uma procura por proteção diante de uma nova conjuntura de mudança que os ameaçava fazendo-os recorrer a práticas tradicionais. Nesse sentido, 70 VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo Pereira de. Associações Mutualistas e Filantrópicas: estudos comparativos. (mimeo), 2007. 71 VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo P. de. A experiência mutualista e a formação da classe trabalhadora no Brasil. In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel A. (orgs.). As Esquerdas no Brasil: A Formação das Tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 1, cap. 1, 2008. 36 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 podemos dizer que as mutuais estão visceralmente relacionadas à necessidade de reforçar as relações de parentela diante da introdução de valores como a competição e o individualismo, sendo uma nova estratégia de sobrevivência72. Nas mutuais prevaleciam associados do sexo masculino com idade média entre 15 e 55 anos, dos quais se pressupõem renda fixa, e portando, não se encontravam a margem dos “avanços” do capitalismo no Brasil. Algumas vezes as mutuais reuniam associados por etnia, outras por categoria profissional, ou também podiam reunir indiscriminadamente várias etnias e trabalhadores de diversos setores. Em geral, as mutuais tinham base local, sendo minorias as associações de alcance regional ou nacional. O tempo de vida de uma mutual era em média 20 anos, havendo casos de extinção quase imediata à criação, mas também há associações que funcionam até hoje. O principal fator responsável pelo fechamento das mutuais foi à incapacidade das lideranças de realizarem um bom planejamento orçamentário calculando os riscos que envolviam a manutenção da associação como a inadimplência73. Era difícil arregimentar sócios que se dispunham a gerenciar as mutuais, por isto havia dificuldades no preenchimento de cargos e no estabelecimento de quorum para as assembléias deliberativas. Deste modo, seja pela ausência de outros interessados, ou pelo esforço dos dirigentes em manterem-se à frente das mutuais, era comum a permanência dos mesmos dirigentes na presidência dessas associações, usufruindo dos potenciais benefícios advindos do exercício do poder74. Além disto, algumas associações tinham diferenciações 72 VISCARDI, Cláudia M. R. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio interpretativo. In: ALMEIDA, Carla M.; OLIVEIRA, Mônica R. de (orgs.). Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: editora UFJF, 2006. 73 VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo P. de. A experiência mutualista e a formação da classe trabalhadora no Brasil. In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel A. (orgs.). As Esquerdas no Brasil: A Formação das Tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 1, cap. 1, 2008. 74 VSICARDI, Cláudia M. R. Mutualismo e Filantropia. Lócus: Revista de História. Juiz de Fora: Editora UFJF, vol. 18, 2004, PP. 99-113. 37 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 entre os sócios, como os chamados beneméritos que contribuíam com somas significativas para a associação e não precisavam usufruir das assistências prestadas aos demais sócios75. Contudo, filantropia e mutualismo compunham categorias indiferenciadas para seus próprios contemporâneos, pois os valores que compartilhavam eram extra-econômicos não limitando suas ações às regras de mercado. Por serem organizações da sociedade civil, as associações mutualistas preocupavam-se em oferecer socorro aos necessitados que podiam ou não ser sócios, sendo que alguns estatutos previam ocasiões em que os não sócios poderiam ser contemplados com algum tipo de auxílio. Desta forma, apelava-se igualmente para a generosidade de seus associados com vistas ao fortalecimento da associação76. Ambas as modalidades de associativismo (mutuais e filantrópicas) atendiam a interesses e estratégias de sobrevivência dos setores despossuídos que, na ausência de um Estado que promovesse assistência se propunham a preencher tais lacunas. Assim, a filantropia e o mutualismo cumpriam na ocasião um importante papel: o de inibir conflitos sociais, o de garantir um exército de reserva e o de disciplinar uma mão-de-obra avessa ao trabalho, em geral mal visto por estar associado à escravidão77. Tanto as associações filantrópicas quanto as mutualistas necessitam de doações para perpetuarem-se no decorrer da história. Devido ao fato de seus valores serem extraeconômicos será usado os conceitos de reciprocidade baseados no dom e no contra-dom para analisar a relação estabelecida entre doador e associação. Mas antes disso se faz necessário um debate a cerca destes conceitos. A QUESTÃO DA RECIPROCIDADE 75 VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo P. de. A experiência mutualista e a formação da classe trabalhadora no Brasil. In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel A. (orgs.). As Esquerdas no Brasil: A Formação das Tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 1, cap. 1, 2008. 76 VISCARDI, Cláudia M. R. Experiências da prática associativa no Brasil (1860-1880). Topoi, Revista de História. Rio de Janeiro: volume 9, número 16, 2008. 77 VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo Pereira de. Associações Mutualistas e Filantrópicas: estudos comparativos. (mimeo), 2007. 38 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Marcel Mauss, em “Ensaio sobre a dádiva”, ao observar as relações de trocas existentes em algumas sociedades “primitivas”, diz que nas economias e nos direitos précapitalistas não se constata uma troca simples de bens, pois, em primeiro lugar não são as individualidades que se contratam e sim as coletividades, em segundo lugar essas prestações e contra-prestações assumem a forma de um presente aparentemente voluntário, embora, sejam no fundo obrigatórias. Assim, Mauss chama essas trocas de prestações totais “no sentido que é de fato todo clã que contrata por todos por tudo que possui e por tudo que faz, através do chefe como intermediário”, quando estas prestações se revestem de competitividade lhe é reservado o nome de potlatch, que é caracterizado como “prestações totais de tipo agonístico”, pois nestas trocas “assiste-se, antes de tudo, a uma luta dos nobres para assegurar entre eles uma hierarquia que resultará em proveito de seus clãs”. Em relação à obrigação de retribuir Mauss diz que no fundo é o hau – o espírito da coisa dada – “que quer regressar ao local de nascimento, ao santuário da floresta e do clã e ao proprietário”, mas além da obrigação de retribuir supõem-se a obrigação de dá-los e de recebê-los, pois recusar-se a dar ou recusar-se a receber “equivale a declarar guerra; é recusar a aliança e a comunhão”. Uma quarta obrigação seria dar aos deuses, pois “com eles que era mais necessário trocar e mais perigoso não trocar”, sendo que a esmola “é a antiga moral de dádiva transformada em princípio de justiça; os deuses e os espíritos consentem que as partes que lhes seriam destinadas e seriam destruídas em sacrifícios inúteis sirvam para os pobres e para as crianças” 78. Já Maurice Godelier, em “O enigma do dom”, diz que “o dom é um ato voluntário, individual ou coletivo, que pode ou não ter sido solicitado” e que a “obrigação objetiva, que estes grupos componentes das sociedades arcaicas teriam, de trocar entre si para poder 78 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Edições 70, Lisboa, 1974. 39 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 subsistir encontraria, portanto, sua expressão ‘bastante direta’, mas imaginária ou simbólica”. Godelier tem duas principais críticas a Marcel Mauss, a primeira seria sobre o silêncio de Mauss em relação às “relações de dominação e exploração” presentes nestas sociedades, sendo que as trocas realizadas ali são “processos de produção-reprodução de hierarquias”, onde “dar e guardar desempenham papéis distintos mas complementares”. A segunda seria que Mauss não teria considerado todo o contexto histórico do potlatch, privilegiando “uma forma historicamente tardia e patológica desta instituição”. Por fim, Godelier ressalta que “o que pôs em movimento” o potlatch “foi a vontade dos indivíduos e/ou dos grupos de produzir (ou reproduzir) entre eles relações sociais que combinam solidariedade e dependência” 79. Giovanni Levi, em “Reciprocidad mediterránea”, parte dos conceitos de equidade, analogia e reciprocidade para sugerir uma polarização entre países com direitos fortes que restringem a capacidade dos juízes de interpretar a lei e países onde o direito tem um princípio de justiça de origem religiosa, o que permite aos juízes ter uma margem muito grande de interpretação através de leituras análogas e equitativas, pois as múltiplas fontes de reprodução das normas possibilitam a movimentação com relativa liberdade entre sistemas normativos contraditórios, sendo que a permanência de um sentido comum de equidade em oposição às normas codificadas goza de tal vigor que tem chegado a ser a um aspecto constitutivo da política destes países. Giovanni Levi considera que os princípios de reciprocidade devem ser contextualizados na complexa estratificação de uma sociedade desigual, porém equitativa, pois a mescla de economia e ética, de valores gerais da sociedade e de valores específicos que entram na reciprocidade que se manifesta nos intercâmbios, complica e dificulta a determinação das medidas da sociedade equitativa e desigual que obedecem a essas regras. Por isto, Giovanni Levi acompanha Karl Polanyi na 79 GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 40 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 idéia de que a reciprocidade vinda dos atos de dom e contra-dom tem lugar em ocasiões diferentes, segundo um cerimonial que impede qualquer noção de equivalência, pois atitudes individuais carecem de efeitos sociais. Deste modo, só em um ambiente organizado simetricamente, as atitudes de reciprocidade darão lugar a instituições econômicas de certa importância, onde uma pessoa justa recompensará um dom com um objeto justo em um momento justo a uma pessoa que se encontra em uma posição simétrica80. Geoffrey MacCormack, em “Reciprocity”, critica o uso dos conceitos de reciprocidade, pois para ele os pesquisadores não têm distinguido com suficiente claridade entre a função do princípio de reciprocidade e uma descrição do fenômeno social, não esclarecendo se a função é um modelo ou um instrumento de análise em termos do que a estrutura e a estabilidade da sociedade podem explanar. E mais, às vezes é atribuído à reciprocidade o papel de manutenção social fazendo com que a distinção entre o princípio de reciprocidade e a reciprocidade desapareça. Além disso, quando o principio é usado na descrição do estado de negociação obtido dentro da sociedade nem sempre é claro se o investigador a considera uma regra, um padrão, um ideal, um desejo, uma vontade, uma expectativa, ou um hábito. Geoffrey MacCormack também faz críticas diretas a Marcel Mauss dizendo que em “Ensaio sobre o dom” não está explícita uma conexão entre a reciprocidade e as obrigações de dar, receber e retribuir, assim, ele utiliza a palavra recíproco para referir-se livremente a prática do retorno, que no contexto geral expressa mais do que uma prática uma obrigação. Por fim, MacCormack conclui dizendo que a linguagem da reciprocidade deve ser evitada ou usada com grande cautela81. 80 LEVI, Giovanni. Reciprocidad Mediterránea. Hispania (Madrid), LX/1, num. 204 (2000), pp. 103-126. MacCormack, Geoffrey. Reciprocity. Man, New Series, Vol. 11, n. 1 (mar., 1976), pp. 89-103. Disponível em: <http://links.jstor.org/sici?sici=00251496%28197603%292%3A11%3A1%3C89%3AR%3E2.0.CO%3B2-4 > Acesso em: 25 de jan. 2008. 81 41 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A discussão sobre os conceitos de reciprocidade é longa, contudo cabe fazer algumas ponderações sobre o uso de tais conceitos no presente trabalho. Mauss diz que o dom é “imposto e interessado”82, porém, pelo menos no que diz respeito às associações filantrópicas e mutualistas, pudemos observar que o dom não é imposto, contudo é interessado. Desta forma, no presente trabalho Godelier explica melhor as relações de troca estabelecidas entre doador e instituição, assim, concordamos com ele quando diz que “o dom é um ato voluntário, individual ou coletivo”, e que, portanto, a “obrigação objetiva” de trocar encontraria “sua expressão ‘bastante direta’, mas imaginária ou simbólica”, pois o que fez as pessoas praticarem o dom “foi a vontade dos indivíduos e/ou dos grupos de produzir (ou reproduzir) entre eles relações sociais que combinam solidariedade e dependência” 83. CONCLUSÃO Portanto, mesmo com as criticas feitas por Geoffrey MacCormack sobre o uso dos conceitos de reciprocidade84, utilizarei tais conceitos, tentando explicitar a diferença entre princípio de reciprocidade e reciprocidade. Desta forma, destacamos que se supõe que há um princípio de reciprocidade embasado em uma moral compartilhada pelos sócios, no caso das mutuais, e pelos doadores, no caso das filantropias, que governa as ações de reciprocidade praticadas nestas associações. Melhor explicitando, direi que no nosso entendimento, o princípio de reciprocidade é uma moral, e a reciprocidade em si é um ato, e que a moral contida no princípio de reciprocidade serve muitas vezes para encobrir o interesse contido no ato de reciprocidade. 82 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Edições 70, Lisboa, 1974. GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 84 MacCormack , Geoffrey. Reciprocity. Man, New Series, Vol. 11, n. 1 (mar., 1976), pp. 89-103. Disponível em: <http://links.jstor.org/sici?sici=00251496%28197603%292%3A11%3A1%3C89%3AR%3E2.0.CO%3B2-4 > Acesso em: 25 de jan. 2008. 83 42 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 No caso do Brasil, supomos, que assim como no que foi observado por Giovanni Levi no mediterrâneo85 o princípio de justiça é de origem religiosa o que permite aos sócios das associações mutualistas – que no caso funcionam como juízes de seus estatutos nas assembléias das associações – terem uma margem muito grande de interpretações através de leituras análogas e equitativas, havendo assim uma permanência de um sentido comum de equidade em oposição às normas codificadas. Assim, a moral religiosa que embasa os estatutos governa as ações praticadas nas associações mais do que o próprio estatuto, o que talvez explique a confusão que os contemporâneos das associações pesquisadas faziam sobre o caráter da associação ser filantrópico ou mutualista. Sabendo que o princípio de reciprocidade é embasado em uma moral religiosa, falta saber quais interesses esta moral pode esconder nos atos. Em relação às associações filantrópicas pudemos observar que as instituições ao receberem as doações podem funcionar como mediadoras entre doador e sociedade, mediadoras entre o doador e Deus ou como doadora, recebedora e contra-doarora. Devido ao fato das filantropias realizarem um papel social, doar a elas é doar a sociedade e tal doação pode ter a intenção de aquisição ou manutenção de um “capital social”, que é “um capital com base cognitiva, apoiado sobre o conhecimento e o reconhecimento” 86 . Doar à sociedade é também doar aos pobres, o que em último caso é doar a Deus, pois os deuses consentem que os sacrifícios inúteis sirvam aos pobres e as crianças87. No caso das Santas Casas de Misericórdia, além das funções das demais filantropias, podemos falar que a instituição funciona como doadora, recebedora e contra-doadora, pois ela oferece um serviço hospitalar em troca da doação. 85 LEVI, Giovanni. Reciprocidad Mediterránea. Hispania (Madrid), LX/1, num. 204 (2000), pp. 103-126. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. 87 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Edições 70, Lisboa, 1974. 86 43 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Já as associações mutualistas funcionam como doadoras quando ajudam pessoas necessitadas que não fazem parte do seu quadro de associados e tal ato contém a intenção de aumentar o alcance da associação. Contudo, no caso do mutualismo temos que fazer a distinção entre os sócios comuns e os beneméritos. Os sócios beneméritos doam quantidades maiores e não tem nenhuma preocupação com uma crise futura, sua clara intenção é a manutenção de laços verticais de solidariedade como os do clientelismo e, portanto, sua doação não é feita à entidade e sim à sociedade que a entidade engloba. O mesmo pode ocorrer com os presidentes das mutuais. Nestes casos, a associação é a mediadora entre o sócio benemérito e a aquela sociedade, o que o doador espera em troca é manter aquelas pessoas sobre a sua tutela. E os sócios comuns doam a associação com a intenção de receberem a contra-doação em um momento de necessidade, e aqui as associações funcionam como recebedoras e contra-doadoras. Contudo, na maioria dos casos não é nem mesmo a moral que governa a ação de prestação dos homens e sim um hábito, que foi constituído e é reforçado pela moral. Assim, as intenções contidas nos atos de reciprocidade “só muito raramente estão assentadas em uma verdadeira intenção estratégica” 88 . Ou seja, ele não tem um ato de caridade no seu projeto de chegar ao céu, mas sim, doar faz parte do trajeto que ele está pondo em curso. O ato de doar pode até ser mais consciente quando é feito a procura de reconhecimento, mas em geral é um hábito, um costume, seu pai fazia, seu avô fazia, seus amigos fazem. Não há como negar que haja um interesse por de trás do ato, porém, este interesse é realizado na maior parte das vezes de uma forma inconsciente. Portanto dar, receber, retribuir e doar aos deuses tem uma moral religiosa, mas tais atos constituem-se num hábito realizado inconscientemente. 88 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. 44 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Para concluir, falta dizer que até a presente fase desta pesquisa o que notamos é que a confusão que os sócios das associações mutuais e filantrópicas fazem sobre a função das associações deve-se ao fato de ambas compartilharem valores extra-econômicos e terem interesses que vão muito além do altruísmo, ou mesmo da sobrevivência, sendo práticas que tendem a estender-se a vários níveis de interação social e ao comportamento cotidiano das pessoas. BIBLIOGRAFIA BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. LEVI, Giovanni. Reciprocidad Mediterránea. Hispania (Madrid), LX/1, num. 204 (2000), pp. 103-126. MACCORMACK, Geoffrey. Reciprocity. Man, New Series, Vol. 11, n. 1 (mar., 1976), pp. 89-103. Disponível em: <http://links.jstor.org/sici?sici=0025-1496%28197603%292% 3A11%3A1%3C89%3AR%3E2.0.CO%3B2-4 > Acesso em: 25 de jan. 2008. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Edições 70, Lisboa, 1974. VSICARDI, Cláudia M. R. Mutualismo e Filantropia. Lócus: Revista de História. Juiz de Fora: Editora UFJF, vol. 18, 2004, PP. 99-113. VISCARDI, Cláudia M. R. As experiências mutualistas de Minas Gerais: um ensaio interpretativo. In: ALMEIDA, Carla M.; OLIVEIRA, Mônica R. de (orgs.). Nomes e Números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. 45 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 VISCARDI, Cláudia M. R. Experiências da prática associativa no Brasil (1860-1880). Topoi, Revista de História. Rio de Janeiro: volume 9, número 16, 2008. VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo Pereira de. Associações Mutualistas e Filantrópicas: estudos comparativos. (mimeo), 2007. VISCARDI, Cláudia M. R. e JESUS, Ronaldo P. de. A experiência mutualista e a formação da classe trabalhadora no Brasil. In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel A. (orgs.). As Esquerdas no Brasil: A Formação das Tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 1, cap. 1, 2008. 46 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Cordialidade e Censura no Espaço de Sociabilidade: O paradoxo da censura na imprensa de Montes Claros/MG no período do Governo Militar 1964 a 1968 Camila Gonçalves Silva89 RESUMO: A presente comunicação possui como objetivo compreender a memória dos jornalistas que atuaram na imprensa escrita de Montes Claros-MG durante os anos de 1964 a 1968, contexto político em que estava em vigor em âmbito nacional no Brasil o Regime Militar (1964 – 1985). Neste sentido, compreenderemos no decurso de cada trajetória de vida a memória social e profissional daqueles que exerceram seu ofício com a presença de censores nas redações. Por conseguinte, entenderemos também como era feita a censura e como os jornalistas burlavam a mesma. As fontes utilizadas constam em entrevistas com os jornalistas, respaldadas pela metodologia da História Oral. Também utilizaremos exemplares da Revista Montes Claros em Foco, periódico bimestral local e para nossa análise selecionamos as publicações dos anos de 1963, 1964 e 1967. PALAVRAS-CHAVE: Imprensa, Censura, Montes Claros. ABSTRACT: This communication has the purpose of understanding the memory of journalists who worked in the press of Montes Claros-MG during the years 1964 to 1968, the political context in which was in force at the national level in Brazil the military regime (1964 to 1985). In this sense, understand the course of each trajectory of life professional and social memory of those who exercised their craft with the presence of censors in the newsroom. Therefore, also understand how it was done as censorship and journalists 89 Mestranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora –UFJF. 47 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 laughed at it. The sources used included interviews with journalists, backed by the methodology of oral history. We also use copies of the magazine Focus in Montes Claros, bimonthly journal site and our analysis we selected publications of the years 1963, 1964 and 1967. KEYWORDS: Press, Censure, Montes Claros. Introdução A presente comunicação é resultado parcial da coleta de fontes para a escrita da dissertação de mestrado intitulada “Censura, Auto-censura e repressão: A censura a Imprensa escrita de Montes Claros durante o Governo Militar nos anos de 1964 a 1978”. Neste sentido, este texto procura compreender o espaço de sociabilidade das redações de Montes Claros através da Metodologia da História Oral, as entrevistas concedidas pelos jornalistas que atuaram em nosso contexto. As nossas fontes constam não apenas em entrevistas90, como também em exemplares da Revista Montes Claros em Foco, periódico bimestral local referente aos anos de 1963 e 1964. A censura nas redações da cidade de Montes Claros se fixa em nosso estudo como marco, o ano de 1964 como ponto de partida para análise do aparato repressor nas redações dos jornais. Postulamos como ponto final em nossa presente abordagem o ano de 1968. Conseqüentemente, analisaremos os primeiros e mais intensos anos em que a censura atuou nas redações. Consideramos importante destacar que o sistema de censura em nosso recorte espacial: Montes Claros, cidade pequena e com ares de provincianismo possuiu uma singularidade. Ao contrário dos jornais impressos que circularam em nível nacional, como o Estado de São Paulo, Opinião, Tribuna da Imprensa, que vivenciaram o período 90 Para resguardar as nossas fontes optamos por não divulgar os nomes de nossos entrevistados. 48 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 situado entre os fins da década de 1970 até o processo de abertura política como o momento de desmantelamento da censura, as redações dos jornais de Montes Claros ficaram sob o sistema de cerceamento até o ano de 1985. Os jornais escritos de Montes Claros apenas enxergaram o final da censura quando o último Presidente Militar da República deixou o poder. Conseqüentemente, todo o aparato repressor somente retirou os pés das redações dos jornais depois dos 21 anos de Governo Militar. Nesse sentido, o nosso objeto de análise incorporou todo o aparato repressor de modo prematuro se comparado aos periódicos em âmbito nacional, ao passo que se livrou desse mesmo aparato tardiamente, tendo como fator indispensável para o cumprimento das ações cerceadoras o 10º BP de Montes Claros.i Os militares em âmbito nacional apoiados pela Doutrina de Segurança Nacional que postulava que era necessário eliminar qualquer possibilidade de implantação do comunismo, em 31 de Março de 1964 inicia-se o período obscuro no cenário político nacional. Conforme Julio José Chiavenato91 em âmbito mundial vivíamos o período da Guerra Fria, o chamado Mundo Bipolar encabeçado pelos Estados Unidos (capitalismo) e pela extinta União Soviética (socialismo) estabeleciam áreas de influência no intuito de angariar cada vez mais aliados e poder. O Brasil, mais precisamente os homens que permeavam poderes políticos e econômicos, e, principalmente tinham interesses em estabelecer relações de comércio com o EUA, impetraram sentimentos de oposição a ideologias socialistas ou comunistas. O general Golbery do Couto e Silva um dos principais ‘teóricos’ da Ditadura Militar e criador do Sistema Nacional de Informação (SNI) faziam declarações tórridas sobre o momento: “Essa é a guerra – total, permanente, global e apocalíptica – que se perfila, desde já, no horizonte sombrio de nossa agitada 91 CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe Militar e a Ditadura Militar. 2004. 49 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 época. E só nos resta, nações de qualquer quadrante do mundo, prepararmo-nos para ela, com determinação, com clarividência e com fé92. Acerca desse discurso ‘apocalíptico’ podemos inferir que o mesmo estava inserido em todas as patentes do corpo militar, a necessidade de ‘salvar’ ou libertar o país dos preceitos comunistas ou socialistas perpetuou nos discursos dos militares. O Coronel do 10º BPMMG de Montes Claros na época, Georgino Jorge de Souza foi a figura que materializou a nível local através da censura a imprensa a necessidade de ‘salvar’ a sociedade local das injúrias do comunismo/socialismo. O paradoxo da censura na imprensa de Montes Claros/MG no período do Governo Militar 1964 a 1968 Nesse sentido, se torna primordial em nossas análises haja vista a influência dessa instituição em nosso objeto compreender dois elos que norteiam nosso objeto. O primeiro refere-se à instituição do 10º BPMMG, e o segundo a pessoa que inseriu por conta própria a censura, utilizou para isso a própria instituição que comandava: Coronel Georgino Jorge de Souza. O Coronel Georgino Jorge de Souza teve grande relevância para a história do 10º Batalhão de Montes Claros. O mesmo conduziu a sua tropa até Brasília – capital federal – no intuito de apoiar em 1964 o Golpe Militar. Montes Claros, no mesmo ano (1964) tinha conhecimento de algo no meio político havia mudado, de um presidente civil, João Goulart, passamos a ter como presidente um militar, o General Castelo Branco. Entretanto, no cotidiano da população através dos depoimentos dos jornalistas podemos compreender que essa mudança não alterou a rotina das pessoas, mas também não houve nenhuma negativa de ocorrência durante os anos da Ditadura Militar de focos relacionados 92 CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe Militar e a Ditadura Militar. 2004. P.84 50 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 a resistência por parte de estudantes, políticos, jornalistas e artistas locais. Apesar de não ser o esse o foco de nossas análises, expressões públicas e opiniões contrários à implantação do Governo Militar aconteceram, entretanto, não foram de grandes dimensões como as que sucederam no cenário nacional.Conforme podemos evidenciar na citação a seguir de um de nossos depoimentos. A comunidade de Montes Claros com exceção de algumas pessoas como o próprio Darci Ribeiro que é montesclarense e o Mario Ribeiro, esses mais antigos da política, essas pessoas tinham consciência do que estava acontecendo, mas a população em si passava despercebida dessas coisas, sabe? (...) A sociedade começou normal, almoçando e jantando e tomando café, as crianças indo para a escola, a diversão acontecendo, como se nada tivesse acontecendo... 93 Logicamente podemos inferir que não é que a população da cidade seja alienada as questões políticas de nosso país, mas em sua grande maioria os debates em torno do Golpe de 1964 era tema proibido pela sociedade, de modo que apenas aqueles que tinham acesso a cargos políticos, em contato com intelectuais ou inserido nesses círculos sociais tinham uma melhor noção do que na realidade estava acontecendo, por ser círculos reservados os diálogos não iriam chegar no meio repressor da cidade. Além desse aspecto, o debate via meios de comunicação na imprensa escrita era proibido, simultaneamente informações políticas ficavam restritas a apenas alguns indivíduos. Na posterior publicação da revista Montes Claros em Foco do ano de 1964 trouxe em edição extra dedicada quase exclusivamente conteúdo relacionado às homenagens feitas ao 10º BPMMG por atuar na manutenção e concretização do conhecido Golpe Militar. O 10º BP local viajou até a capital do Brasil para contribuir com a operação e êxito da inserção dos militares na presidência da República. A matéria intitulada “Generais da 93 CEDRO, 2006. 51 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Revolução” é rica em enaltecer o sentimento de heroísmo no cumprimento do dever da corporação recém chegada de Brasília. A sociedade montesclarense comparece a esse momento de homenagens ao Regimento Local: Carinhosas e entusiásticas homenagens foram prestadas pela sociedade de Montes Claros, por ocasião do regresso à cidade dos valorosos soldados do Décimo Batalhão de Infantaria, pelo seu comportamento durante as operações revolucionárias. Como representante do governador Magalhães Pinto compareceu o Comandante Geral da Polícia Militar Cel. José Geraldo de Oliveira que também foi alvo de significativas e justas homenagens. Constituiu assim, uma nota de grande imponência a chegada das tropas, entusiasticamente aplaudidas e recebidas com flores. O Desfile foi aberto pela Banda de música do Batalhão. A seguir, num jeepe aberto, passou o Cel. Georgino Jorge de Souza ilustrado comandante do Décimo, com oficiais e depois os expressivos contingentes, sendo, os líderes da revolução delirantemente ovacionados pela multidão. De um palanque armado em frente ao prédio da Prefeitura Municipal, assistiram ao desfile o Cel. José Geraldo de Oliveira, Comandante Geral da Polícia Militar, o Prefeito Municipal Dr. Pedro Santos, o Presidente da Câmara Sr. Orlando Ferreira Lima, Deputado Federal Dr. Francelino dos Santos, Monsenhor Gustavo Ferreira e outras autoridades fazendo-se ouvir diversos oradores, sendo os líderes da revolução delirantemente ovacionados pela multidão. (grifo nosso)94 É praticamente incontestável o entusiasmo da população frente a presença dos militares no desfile que os prestigiava, conforme percebemos no trecho anterior, de representantes do governo Estadual, municipal e até mesmo da Igreja Católica. O comportamento de saudações e contentamento frente aos membros do corpo militar postulava um comportamento que nada terá de análogo ao dos profissionais da imprensa escrita local. 94 Revista Montes Claros em Foco. Junho e Julho de 1964. Edição Extra - Número 25, Ano VII. Matéria: Generais da Revolução. 52 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 O 10º Batalhão de Polícia Militar local não apenas marchou até Brasília, como também inseriu no cotidiano das redações dos jornais da cidade soldados fardados ou à paisana e em alguns momentos superiores com patente de coronéis para exercerem o papel de cercear os assuntos a serem publicados na imprensa escrita, conforme nas palavras de um dos jornalistas: Nós tivemos é... no caso do Diário de Montes Claros foi até um Coronel, Antônio, acho que era Antônio ele era Major, não, não era não, acho que ele era Coronel, no Jornal de Montes Claros com um Capitão, que era chamado de Capitão Lázaro é... nesse do Diário de Montes Claros ele era Capitão, Capitão Antônio, depois foi até presidente, foi diretor do Colégio Tiradentes, veio a ser diretor do Colégio Tiradentes, depois... era uma pessoa muito culta, muito bondosa, muito boa de tratar.95 Nesse mesmo trecho em que podemos comprovar a existência do aparato repressor contém o aspecto principal que ensejamos discutir: a convivência e a relação dos censores com os jornalistas. No entanto, precisamos definir inicialmente quem eram esses censores. Nas três entrevistas realizadas que utilizamos como fontes para a presente pesquisa podemos comprovar através dos depoimentos que o corpo de censores era formado essencialmente por soldados, coronéis e capitães do próprio regimento local, mas em alguns casos conforme os depoentes expressam os censores pareciam ser do Serviço de Informação ou da Polícia Militar ou Polícia Federal, eram distinguidos pela farda ou uniforme usado. A cidade de Montes Claros nesse período alçava desenvolvimento comercial e urbano com casas antigas dando lugar as novas construções e a substituição paulatina das ruas de poeira pelo asfalto, porém ainda estava envolta pelos ares de um cotidiano conservador e provinciano. Pequenas e simples aparições em festas da sociedade local tais 95 CEDRO, 2006. 53 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 como: casamentos, formaturas, inaugurações de comércios ou inserção em festas organizadas por damas da sociedade denotavam em engrandecimento pessoal, dos costumes e da moral. Sendo assim, quase todos sempre podiam indicar quem possuía algum filho ou conhecido que atuava no Batalhão de Polícia local. Assim podemos concluir que a convivência com os censores era algo que estava no cotidiano dos jornalistas antes mesmo da convivência em nível profissional. Da mesma maneira era fácil identificar aqueles profissionais que eram membros do corpo de redação dos jornais do período. A possibilidade de fácil identificação de ambos os membros já nos faz compreender a singularidade da repressão exercida na imprensa na cidade do interior. Em grandes centros urbanos como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, dentre outros dificilmente um jornalista tinha qualquer tipo de convívio pessoal fora do ambiente de trabalho ou até mesmo convivência e modos comportamentais cordiais com o censor. Quando os depoentes são questionados sobre a possibilidade de Montes Claros, assim como nos grandes centros urbanos do Brasil possuir aparato repressor, respondem categoricamente: A maior parte militares, não é? Militares que permaneciam fardados e também à paisana. Mas eram pessoas do governo, eram pessoas do governo! Do Serviço de Informação, do Exército, da Polícia Militar, da Polícia Civil, não é? Da Polícia Federal, né? Então reunia todos os órgãos que faziam a repressão.96 Tinha, tinha censor! ... Existiam vários censores, eu não vou conseguir dizer o nome de todo mundo... Mas tinha censor sim! Para ficar fiscalizando as matérias... Apesar da habilidade dos repórteres, né? Dos editores para driblar as fiscalizações, mas sim já existiam censor sim, que cortavam, não deixavam sair qualquer coisa, não é? Não sair muita coisa, aliás! Entendeu? Então era um trabalho previamente fiscalizado. Mesmo! Então assim não conseguia publicar muitas, muitas matérias, muitas informações polêmicas com êxito, não! Não conseguia! 97 96 97 PEREIRA, 2006. CARVALHO, 2006. 54 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Da mesma maneira, em nossos estudos podemos afirmar que quando os depoentes descrevem o cotidiano das redações dos jornais e as maneiras de contornar a censura é notório um misto de raiva e política de boa convivência. Pois, era inevitável a convivência entre ambos em um mesmo ambiente atuando de acordo com as necessidades de suas profissões: um cerceando a liberdade de expressão e o outro tentando contornar a censura imposta a sua escrita. O jornalista sofria basicamente dois tipos de pressões: a de cunho social em que era fácil encontrar no dia a dia o censor que trabalha na redação do jornal conversando com a sua família, tendo contato com seus amigos e colegas; e a outra pressão de fácil identificação que é a profissional, o jornalista tem que acatar a todo o momento a censura porque precisa se manter na profissão para sustentar seus filhos, sua mulher, sua família... Somado a esse aspecto temos ainda a pressão psicológica do jornalista que teme fazer algo de errado sob pena de não apenas ele sofrer a conseqüência, como também a possibilidade de ocorrer qualquer penalidade por burlar a censura na sua própria família ou no seu circulo social. Por outro lado estava o militar, independente da patente exercida o mesmo tinha a vantagem de que apenas os profissionais das redações tinham detalhes de suas atitudes, ou seja, a grande maioria da população local não tinha noção do que estava acontecendo. Além desse aspecto sendo o censor o militar, o mesmo estava em uma posição superior, ele não sofria danos psicológicos, pessoais ou profissionais. No que tange a pressão profissional e psicológica a fala de um jornalista ao descrever a sua “visita” forçada ao Batalhão de Polícia de Montes Claros reflete satisfatoriamente esse aspecto descrito: E o... esse coronel, ele tinha o meu currículo, ele sabia mais da minha vida do que eu sabia da minha vida! Entendeu? Ele falou comigo: “Você...” E foi me dando, ele decorou meu currículo, ele decorou meu currículo, ele falou: “Você tem isso, você tem aquilo...” e Falou: “Oh, vai cuidar da sua família que é melhor!” Ele me sugeriu que eu parasse de escrever sobre o PMDB sobre 55 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 ARENA, parasse de escrever sobre política em geral, que eu iria virar o alvo! E eu realmente até em respeito a mim mesmo eu parei de escrever sobre política com medo de ser mandado para Juiz de Fora (Risos). Eu fiquei realmente com esse, com esse trauma na cabeça! Entendeu? (grifo nosso) 98 Podemos perceber através da leitura da citação anterior que o jornalista deixa claro o receio dele e de sua família serem alvos da repressão, desse modo o mesmo deixa de expressar suas idéias em relação a sua posição contrária as questões políticas do Regime Militar. Ao mesmo tempo existiam alguns artifícios utilizados pelos jornalistas no ambiente de trabalho para contornar a censura que podemos perceber que é algo singular no que tange ao convívio entre jornalistas e censores nas redações. Outro jornalista descreve em seu depoimento que para “enrolar” um pouco os censores muitas vezes até mesmo os convidavam para irem a bares ou botecos e, chegavam na redação do jornal para realizar a impressão dos jornais em horários mais tardes que o normal no intuito de deixar menor o tempo de análise feito pelo censor antes da conclusão das páginas a serem impressas. Essa atitude em muitas ocasiões como afirma o jornalista alcançou êxito, como podemos atestar: Para não dar tempo de chegar alguém e censurar tal material... e assim, assim e tal. E eles deixavam... Iam para o boteco, para o boteco, para os botecos, bebiam e tomavam umas cervejas e tal... Depois... de um certo tempo é que eles viam para a redação, por volta de 22:30, 23:00 que é aí que eles iam finalizar a edição para soltar no outro dia. E aí se tiver que censurar alguma coisa então já era, né? O jornal já estaria nas bancas e tal. Mas foi um período assim de muita tensão, o pessoal ainda tinha medo de escrever qualquer coisa, não tinha essa liberdade de falar... 99 Essa distinta relação entre jornalistas e censores resultava em um trato particular e inusitado que em muito pode ter como fator essencial à singularidade de um cotidiano 98 99 CEDRO, 2006. CARVALHO, 2006. 56 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 próprio de uma cidade pequena do interior em que as relações sociais se mesclam, caracterizando esse convívio no dia a dia como paradoxal: cordialismo nas relações sociais com um misto de aversão por ser censurado, necessidade de convivência de ambos em um mesmo ambiente e somado a esses dois aspectos a convivência fora do ambiente de trabalho, o cotidiano na cidade. È importante salientar que não foi apenas utilizando esses artifícios da convivência que os jornalistas conseguiram contornar a censura, apesar do ato de contornar a censura ser algo mais complicado devido a essa constante relação de proximidade profissional e pessoal em que as conseqüências da descoberta desse “contorno” pode ser também mais rápidas devido a essa mesma adjacência, os profissionais das redações dos jornais utilizaram muitos dos mecanismos que os órgãos de imprensa nacional utilizaram, tais como: metáforas e linguagem subliminar, como fica expresso na citação que se segue: (...) por exemplo, se a imprensa fosse noticiar: “Ladrão de galinha é preso”. Sabe? Aquele ladrão de galinha é preso, mesmo que falasse que ele realmente, toda matéria que um rapaz que foi preso apanhando uma galinha na casa de um vizinho e não falasse mais nada, mesmo assim, sabe? A sociedade poderia indagar ou questionar: “E quem rouba além de uma galinha?” Então era tudo nas entrelinhas, não é? Chico Buarque de Holanda foram um dos que mais falavam: “Pai afasta de mim esse cálice” que a maioria o cálice era tão simbolista, tem tanto simbolismo nessa palavra cálice, que você pode escrever: C-A-L-E um – S E, como um cala a boca; e com CÁLICE que representa uma dor, né? O sangue de Cristo, então tudo vinha nas entrelinhas, sabe? Então você tinha que ter as metáforas, dos artistas também na sua concepção para você poder entender as mensagens. Então era tudo camuflado! (grifo nosso).100 Os assuntos relacionados principalmente às temáticas: política, sociedade, economia e artes tiveram seus textos jornalísticos proibidos de serem vinculados, ou na mais leve realidade, se publicados antes passaram por leituras cerceadoras, recortes e 100 CEDRO, 2006. 57 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 depois de novamente organizados, afastando suas idéias consideradas perigosas, poderiam enfim ser impressas para chegarem conseqüentemente às mãos dos leitores. Como expressa em sua obra A ordem do Discurso o Michel Foucault explica como o discurso pode ser metodicamente analisado no intuito de minimizar ou retirar tudo aquilo que é considerado nocivo para a sociedade: “(...) suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm a função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”.101 O discurso, que em nosso tema é elaborado pelos jornalistas da cidade de Montes Claros foi materializado em reportagens que na personificação do aparato repressor passaram por censores que determinavam quais as manchetes e de que forma os temas deveriam ser redigidos para serem convenientes para a sociedade. O Censor representa a instituição que procura de todos os modos evitar e eximir a publicação de discursos que expressam de maneira concreta idéias, conteúdos e fatos que proporcionassem elevo contrário ao Governo Militar. Conclusão Por fim, podemos inferir que a imprensa de Montes Claros, no período do Regime Militar, possuiu características análogas as da imprensa nacional e individual quando enviesamos análises da censura em âmbito de cidade do interior como por exemplo, o cordialismo entre jornalistas e censores e aplicação da leis de imprensa nas redações dos jornais da cidade. Através do resgate da memória dos entrevistados, podemos perceber, na 101 Foucault, Michel. A ordem do Discurso. São Paulo: Loyola. 9º Ed. (Coleção Leituras Filosóficas). p.8-9. 58 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 inflexão e tenacidade da voz dos depoentes, o tom de “desabafo” quando os mesmos narraram ou caracterizaram as suas trajetórias como profissionais do período. Trajetórias marcadas por cerceamento de liberdade e de opinião que acarretaram em constrangimentos como profissionais; aos moldes da História Oral trouxe a público as recordações do momento. Referências: REVISTAS Revista Montes Claros em Foco. Janeiro e Fevereiro de 1964. Número 24, ano VII. Revista Montes Claros em Foco. Junho e Julho de 1964. Edição Extra - Número 25, Ano VII. Matéria: Generais da Revolução. POLLAK, Michel. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos: Rio de Janeiro, vol.2, n° 3, 1989, p. 3 – 15. POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos: Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. SITES Site com conteúdo relativo a História da Polícia Militar de Minas Gerais e 10º Batalhão de Polícia Militar: Encontra-se textos disponíveis em: http://www.pmonline.com.br/modules/smartsection/category.php?categoryid=3 e http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/02/275183.shtml . Acesso em 22 de Junho de 2008 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. (Org) Usos e Abusos da História Oral. 3ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 277, 2000. ARAÚJO, Maria Paula; FERNANDES, Tânia Maria O diálogo da História Oral com a Historiografia Contemporânea. In:VISCARDI, M. R. Cláudia; DELGADO, Lúcia de A 59 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 (org). Neves. História Oral: Teoria, Educação e Sociedade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. ASSUNÇÃO, Luís Fernando. Assassinados pela ditadura. Santa Catarina – Florianópolis: Insular, 2004. BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1992. BARROS, José D’ Assunção. O Projeto de Pesquisa em História: da escolha do tema ao Quadro Teórico. Rio de Janeiro: Editorado em junho de 2002, p. 308. DO VALLE, Maria, Ribeiro. 1968 O diálogo é a violência: Movimento estudantil e Ditadura Militar. São Paulo: Unicamp, p. 269, 1999. (teses). FICO, Carlos. Além do Golpe. FOUCAULT, Michel. A ordem do Discurso. São Paulo: Loyola. 9º Ed. (Coleção Leituras Filosóficas). FERNANDES, Florestan. Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucetec, 1980. GORENDER, Jacob.Combate nas Trevas. São Paulo: Ática, 4ºed, 1990. JEANNENEY, Jean-Noël. A Mídia.RÉMOND, René. Por uma História Política. Rio de Janeiro: FGV, 2003. MARCONI, Paolo. A censura política na Imprensa Brasileira 1968-1978.São Paulo: Global. (Passado & Presente) NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais Rio de Janeiro: Revan: FAPERJ, p. 36, 2003. ORLANDI, Eni . Análise de Discurso. 4º ed. Campinas, SP:Pontes, 2002, 100p. PRINS, Gwyn. História Oral. In: BURKE, Peter (org.) A Escrita da História: Novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. 60 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 SILVA, Camila Gonçalves. Silenciados pela Ditadura: As vozes daqueles que fizeram a imprensa de Montes Claros de 1964-1985. Monografia apresentada ao Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros/MG. (UNIMONTES). SMITH, Anne-Marie. Um Acordo Forçado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, p. 247, 2000. STEPHANOU, Alexandre Ayube. Censura no Regime Militar e Militarização das Artes. Porto Alegre: EDIPUCRS, p. 328, 2001. (Coleção História). 61 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 De “Portas a dentro”: Serviços especializados e bons rendimentos dos escravos de aluguel na cidade do Rio de Janeiro em 1864. Carlos Eduardo de Medeiros Gama* [email protected] RESUMO: Objetivamos interpretar a autonomia e a negociação de cativos e senhores frente ao mercado de mão-de-obra especializado em serviços domésticos e as particularidades dos proprietários de escravos da urbe. Os preços dos cativos, as diferentes atividades ocupacionais, a valorização e os bons rendimentos do escravo de aluguel perante o escravo ao ganho estão relacionados ao sistema escravista que no pós-1850 passou por mudanças estruturais. Procuramos interpretar os arranjos de senhores e escravos para sobreviverem “juntos” a um mercado disputado e concorrido por escravos, libertos e livres – brasileiros e imigrantes – e pela grande demanda do tráfico interno de escravos gerado pela expansão das grandes lavouras cafeeiras. PALAVRAS-CHAVE: Escravos de aluguel; escravidão urbana; jornal. ABSTRACT: We aim to interpret the autonomy and trading of slaves and masters in the marketplace of skilled manpower specialized in domestic services and characteristics of the slave owners of the city. The price of the captives, the different occupational activities, recovery and good income from rent of the slave in front of the slave gain are related to the slave system or at the post-1850 has undergone structural changes. We triend to interpret the arrangements of masters and slaves to survive "together" in a crowded and competitive * Especialização História - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. 62 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 market for slaves, freedmen and free - Brazilian and immigrants - and by strong demand from domestic slave trade generated by the expansion of large coffee plantations. KEYWORD: Slaves rental; enslavement urban; journal. Na tentativa de mostrar o dinâmico mercado de aluguel de escravo na cidade do Rio de Janeiro catalogamos 1.020 anúncios no Jornal do Commercio, no período de janeiro e julho de 1864, na Seção de Periódicos da Fundação Biblioteca Nacional. Objetivamos interpretar a autonomia e a negociação de cativos e senhores frente ao mercado de mão-de-obra especializado em serviços domésticos dos proprietários de escravos da urbe Justificaria o alugar seu escravos o maior controle do poder senhorial, o escravo de aluguel ao contrário do ganho, tinha a previa demonstração pelos proprietários em anúncios publicando as boas qualidades dos cativos: obediência, fidelidade e bons serviços. O aluguel seria sinônimo de menor mobilidade dos cativos na urbe comparados com os escravos ao ganho. José Roberto Góes afirma que: “Os pequenos escravistas tendiam a ser relutante a autonomia dos cativos uma razão muito simples: se qualquer direito assegurado ao escravo é um direito tomado ao seu senhor (em tese, o escravo não tem direito), muito mais ameaçador e custoso é ao pequeno escravista qualquer margem de autonomia escrava” (GÓES, 1998, p.155-156) Roberto Guedes Ferreira propõe outra abordagem: “(...) mesmo nas cidades, escravos estariam sob severa disciplina quando trabalhassem junto a seus senhores, isto é, diante da presença física destes, aqueles teriam seus espaços de autonomia reduzidos. A proximidade, ao que parece, seria física e de categoria.” (FERREIRA, 2000, p.118.) 63 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Rodrigo de Aguiar Amaral discorda desse laço apertado que poderia prover aos cativos uma menor autonomia nas relações senhores e cativos: “(...) nas cidades onde a escravidão levou um grande contingente de cativos às ruas e estes dispuseram de parte de seu tempo enquanto trabalhavam, o poder senhorial se misturava e em parte dissolvia-se na autonomia que este escravos poderiam abocanhar. Mas isso não significa que estes senhores estivessem perdendo o poder sobre seus cativos. Eles estavam adaptando-se à conjectura urbana.” (AMARAL, 2006, p.117) Em uma dessa “conjectura urbana” da escravidão, proprietários podiam não negociar definitivamente seu cativo e tentar de tudo para mantê-lo, em alguns casos sua única fonte de renda. Foi nesse período de 1860 a 1865, que o preço da compra de um escravo teve sua maior alta: “Tomando-se a evolução do valor nominal do escravo típico – um homem entre 15 e 40 anos de idade -, observa-se haver seu preço dobrado entre o final do século XVIII e a década de 1820, o que novamente se repetiu nos anos 30. Após o fim do tráfico com a África o valor desse escravo triplicou em ralação à década de 1840, atingindo o pico (cerca de 1:500$000 reis) nos anos 60.”(FLORENTINO, 2002, p.16-17) O pico no valor do cativo a ser vendido no mês de fevereiro de 1864 se comparado ao pico do valor do escravo de aluguel de 40$000 réis mensal, no mesmo ano da publicação da venda do moleque de 20 anos. Preços diferentes e serviços bem diferenciados dos escravos que são alugados ao expressivo valor de 30$000 réis, no mesmo mês: 64 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 “Alugão-se por 30$ e para portas a dentro, uma escrava, perfecta mucama e prendada na costura e no engommado, e outra boa cozinheira e engommadeira;na rua do Espírito-Santo n. 11.”102 A diferença entre a média do preço do aluguel das cativas que é de 23$400 réis e o pico de 40$000 réis nos mostra os diferentes serviços que os cativos são empregados e a cotação real de cada atividade. Além, é claro que as cativas correspondem à maioria dos escravos de aluguel anunciados em 1864. Esse elevado número de cativas anunciadas 60% ou 653, contra 427 cativos ou 40% de escravos de aluguel, são bem parecidos com os números de cativos apresentados por Roberto Guedes Ferreira no tocante as atividades ocupacionais. Roberto Guedes trabalhando com expressões usadas por avaliadores e senhores sobre as ocupações dos escravos contidos nos inventários post-mortem na cidade do Rio de Janeiro de 1801 a 1844 (FERREIRA, 2005,p. 243), são 145 escravos com as atividades ocupacionais: cozinheiras, lavadeiras, engomadeiras, ensaboadeiras, rendeiras e bordadeiras. Entre essas atividades ocupacionais existem 40 Homens (28%) e 104 Mulheres (72%). Possivelmente esses escravos dispunham, segundo Roberto Guedes, da possibilidade de oferecer algum rendimento ou jornal a seus senhores. (FERREIRA, 2005,p. 242) Dos 145 escravos ou 10,6% do total de escravos, Roberto Guedes Ferreira afirma que possivelmente poderiam gerar algum rendimento como escravo de aluguel ou ganho. A atividade ocupacional de cozinheiro era representada por 51% (74) dos cativos, sendo 51% (38) Homens e 49% (36) Mulheres. Essa maioria de cativos que se ocupava como cozinheiro vão se mostrar numericamente superiores a todas as atividades ocupacionais dos escravos de aluguel do sexo masculinos anunciados no Jornal do Commercio formando uma mão-de-obra muito ofertada em 1864. 102 Jornal do Commercio, 26.02.1864, Sexta-feira n° 56. 65 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 O preço de 72% dos escravos de aluguel anunciados variava entre 21$000 réis e 30$000 réis, se compararmos com o escravo ao ganho Alexandre, que pagava 640 réis de jornal diário ao seu senhor José Antonio Peixoto em 1860 103 , trabalhando o mês inteiro gerava no final de trinta dias uma renda de 19$200 réis. É bem menos que o preço médio dos escravos de aluguel ofertados nos anúncios, que era de 25$500 réis. Com o seu escravo de aluguel tendo uma rentabilidade maior que o escravo ao ganho, os proprietários que anunciavam o preço do aluguel do seu cativo correspondiam 19% dos 1.020 anúncios catalogados no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Entre o aluguel e a venda, os anúncios revelam a valorização dos escravos nesse período: “Aluga-se, por 30$, ou vende-se por 1:350$, uma escrava parda, que engomma, lava, cose e cozinha muito bem,na Rua do EspíritoSanto n.11.”104 Essa boa rentabilidade do escravo de aluguel em comparação ao escravo ao ganho – rentabilidade só para o proprietário - estaria ligada diretamente à atividade ocupacional desse cativo. Os preços dos escravos anunciados em 1864 tem a sua variação de preço entre 31$000 réis a 40$000 réis mensais, correspondem a 25 % dos escravos anunciados: “Aluga-se um preto moço, escravo, bom pedreiro, ou para qualquer serviço, por 32$ mensais; na rua do Senado n.61. Acima do morro.”105 “Aluga-se uma escrava muito boa ama de leite, por 40$ mensaes; na Rua do Hospício n.32.”106 Tabela 1 103 Inventário Post-Mortem, ANRJ, José Antonio Peixoto, 1860. Apud AMARAL, Rodrigo de Aguiar. op. cit., p. 112. 104 Jornal do Commercio, 16.04.1864, Sabbado, n° 106. 105 Jornal do Commercio, 08.01.1864, Sexta-feira, n° 08. 106 Jornal do Commercio, 31.03.1864, Quinta-feira, n° 90. 66 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Distribuição (%) pelo preço (em mil-réis) mensal e pelo sexo dos escravos de aluguel anunciados no Jornal do Commercio(RJ) em 1864. Homem Faixa de preço (em mil-réis) Faixa 1 N 31$000 - 30$000 %° 9 1 Faixa 3 10$000 20$000 10 4 6 3 8 2 5 9 4 3 6** - - - - 4 4 7 1 1 17 % 6 2 1 6 Total 7 5 1 4 N %° 90 21$000 - Criança* N ° 40$000 Faixa 2 Mulher 6 2** 2 4 ** Fonte: Jornal do Commercio 1864, n° 01 ao n° 212. Janeiro a julho. *menor de 14 anos. Nos preços mais altos, que variam de 31$000 réis a 40$000 réis mensais as cativas representam 10% dos escravos anunciados, ou apenas 1 anúncio. Porém nos preços que vão de 21$000 réis a 30$000 réis por mês, a porcentagem de cativas alcança os 62%. Essa faixa corresponde a 72% dos anúncios com o valor do preço publicados (Gráfico 1). Essa predominância das cativas nos anúncios com preços de 21$000 e 30$000 ou 62%, é determinada pela importância dada as atividades ocupacionais domésticas no cotidiano da 67 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 cidade: os serviços internos e os serviços externos de uma casa eram executados pelas cativas alugadas. Sobre as atividades ocupacionais domésticas as cativas de aluguel desempenham funções diferenciadas no trato a executar serviços exclusivamente dentro ou fora das residências dos locatários. As cativas que são mais anunciadas com o preço que varia de 21$000 réis a 30$000 réis realizam “serviços de portas a dentro”, ou 77%, das cativas ofertadas nos anúncios; “Todo serviço interno de uma casa”, “todo serviço da cozinha”, “os arranjos de uma casa”, “ensaboa”, “cose”, “engoma”, “cozinha”, “costura e borda” e “lava” 107 . Os serviços externos de uma casa correspondentes aos 20% das atividades executadas pelas cativas; “fazer compras”, “carregar água” e trabalhar como “quitandeira” ou nas vendinhas de “doces”, disponibilizando para as cativas mais mobilidade pelas ruas da cidade. Nos anúncios com preços que variam de 10$000 réis a 20$000 réis, as atividades ocupacionais estão ligadas aos serviços domésticos, porém há limitações quanto à idade, se carregam seus filhos para o serviço e outras particularidades: Dos 49 anúncios com os preços entre 10$000 réis e 20$000 réis, 24% dos cativos anunciados são homens, 8% dos cativos são menores de 14 anos e 68% são mulheres, das quais 45% são anunciadas para o aluguel e carregam seus filhos. Um fator que parece ser determinantes para o baixo preço do aluguel das escravas anunciadas. Mas há outros fatores que parecem interferir no preço do aluguel: “Aluga-se uma escrava que lava e cozinha muito bem, por 20$ mensaes, com a condição de não sahir a rua, por se embriagar; na rua S. Pedro da Cidade Nova n. 54.” 108 107 108 A partir de 1860 a cidade já começa disponibilizar de sistema público de abastecimento de água nas casas. Jornal do Commercio, 16.03.1864, Terça-feira, n° 74. 68 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Os escravos de aluguel do sexo masculino destacam-se os “cozinheiros do trivial” 42% e “bom ou perfecto cozinheiro” 17%. Os “copeiros” correspondem a 18% das atividades ocupacionais dos cativos anunciados. Serviços internos de uma casa especificamente valorizados e ligados à gastronomia carioca, ou 77% dos serviços desempenhados pelos cativos ofertados nos anúncios são para servir a mesa. A relação dos escravos de aluguel como “os peritos cozinheiros” e sua ótima rentabilidade no mercado em destaque com o preço entre 31$000 réis e 40$000 réis, um escravo “bom pedreiro” a 32$000 réis: “Aluga-se um preto moço, escravo, bom pedreiro, ou para qualquer serviço, por 32$ mensais, na rua do senado n. 61. acima do morro.” 109 E 3 anúncios com cozinheiros especializados aparecem supervalorizados a 35$000 réis mensais: “Aluga-se, de casa de particulares, um escravo perito cozinheiro de forno e fugão, massa e doce, muito humilde e asseiado, de conducta afiançada, seu ultimo preço e 35$ pagos adiantados; para ver e tratar, na rua da Quitanda n. 63.” 110 “Aluga-se tres bons escravos, sendo um bom cozinheiro por 35$, e dous para todo o serviço menos despejos ou mascate, sabendo tratar de animaes, a 26$ cada um; na rua do Espírito-Santo n.11.”111 “Aluga-se um escravo perfeito cozinheiro à franceza e à portugueza, por 35$ por mez; na rua do ouvidor n. 57.” 112 109 Jornal do Commercio, 09.01.1864, Sabbado, n° 09. Jornal do Commercio, 23.01.1864, Sabbado, n° 23. 111 Jornal do Commercio, 20.04.1864, Quarta-feira, n° 110. 112 Jornal do Commercio, 26.04.1864, Terça-feira, n° 116 e 29.04.1864, Sexta-feira, n° 119. 110 69 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 O escravo ao ganho é predominante nos serviços de cargas e transportes na Corte, na venda de quitutes, frutas, miudezas, barbeiros, sapateiros, carpinteiros, pedreiro, marceneiros e outros. Luiz Carlos Soares relaciona na Tabela II (SOARES, 1988,p.140) as atividades exercidas pelos escravos ao ganho, segundo as informações que os seus senhores forneceram nos pedidos de licença para os seus escravos irem ao ganho encaminhado à Câmara Municipal.113 Segundo Luis Carlos Soares, 96% escravos de ganho do sexo masculino não tinham a sua atividade ocupacional declarada no pedido de licença, e provavelmente estavam ligados as atividades que não necessitariam de muita especialização: “(...) estes cativos fossem empregados em grande parte como carregadores, pois como esta atividade não exigia nenhuma especialização, apenas o dispêndio da força física, os senhores simplesmente não declaravam as suas ocupações, inclusive porque isso não era um procedimento obrigatório.” (SOARES, 1988, p.116) Apenas 5% ou 140 escravos ao ganho, tiveram sua atividades declaradas por seus proprietários no período de 1851-1870. A maioria exercia atividades ocupacionais ligadas a vendas: vendedores de café, carne, fazendas, frutas e legumes, artigos de armarinho, pão e biscoito, peixe e calçados. E menos de 1% que tiveram suas atividades declaradas como: “Ao ganho com cesto”, carregadores, cocheiro e serventes de obra. Podemos identificar a partir das atividades ocupacionais dos escravos ao ganho a diferenciação dos serviços executados pelos cativos. Se fosse possível aceitar que 95% dos escravos que foram ao ganho exerciam atividades ligadas ao transporte na cidade do Rio de Janeiro estaria estabelecida uma dicotomia entre os escravos de ganho e os escravos de aluguel: ao primeiro os piores serviços, os mais labutares e pesados com os mais baixos 113 Documentação disponível no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. 70 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 rendimentos. O segundo os serviços de “portas a dentro” especializados e com os mais altos rendimentos. Fácil, simples e economicamente lógico. O curto período aqui analisado, o ano de 1864, nos revela uma tendência a indicar o escravo de aluguel como investimento mais lucrativo que o escravo ao ganho dentro do período pesquisado. A visão dos proprietários que viviam ou complementavam a sua renda com jornais pagos pelos cativos, ao ganho ou de aluguel, é um fator que determina o rendimento que os cativos forneciam versus a mobilidade cativa nas áreas urbanas. Segundo Sidney Chalhub, “(...) uma das dimensões deste afrouxamento da “sujeição dominical” no meio urbano era a adaptação do investimento em escravos às condições de mercado.” (CHALHOUB,1990,p. 215) Essas “condições de mercado” variam tanto para os escravos ao ganho que começa a disputar serviços com pessoas livres – na maioria imigrantes portugueses –, quanto para os escravos de aluguel anunciados que mesmo especializados em atividades ligadas a gastronomia correm o risco de trabalhar nas plantações das freguesias rurais da Corte. As negociações entre senhor e escravo passam pelas condições do mercado de escravos no Rio de Janeiro e estariam extremamente ligadas as relações pessoais: “(...) que a população escrava estava diminuindo devido a mortalidade, a emigração para as regiões rurais, à alforria e à baixa taxa de natalidade, os senhores buscavam outras fontes de mão de obra, ou seja os imigrantes da Europa ou do resto do Brasil, tanto cativos quanto livres.” (KARASCH, 2000 p. 477) No meio desse declínio da escravidão urbana no Rio de Janeiro nos meados de 1860, com o número de cativos diminuindo ainda encontramos o mercado de escravos de aluguel vivo e ativo; as alforrias sofriam aumentos significativos, entre 1860 e 1864 foram 71 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 registradas 3.931114 das quais 58% eram gratuitas (FLORENTINO, 2002, p.19). Manolo Florentino reconduz a discussão sobre o valor nominal dos escravos e a negociação das alforrias: “Cedo ou tarde a extrema valorização do escravo cobraria seu quinhão, e a compra da liberdade perderia o passo. Assim é que, entre 1840 e 1864, as alforrias compradas foram as que mais declinaram. As cartas gratuitas afirmaram a sua dominância para homens e mulheres de todas as idades, independentemente da ocupação, da cor e da naturalidade.” (FLORENTINO, 2002, p.20) Sidney Chalhoub tempera o assunto sobre alforria com a conclusão que as alforrias não são concedidas só por boas oportunidades de um grande negócio: “(...) a resolução de comprar ou vender escravos e, principalmente, a decisão de alforriá-los ou não envolviam certamente cálculos estritamente econômicos. Mas frequentemente implicava também avaliações afetivas e em considerações de segurança individual.” (CHALHOUB,1990,p. 198) Os anúncios de jornal nos fazem entender como a segunda fase de um processo de decisão tomada pelo senhor ou pelo escravo tendo que encarar e “adaptando-se à conjectura urbana”, teria seu começo durante uma crise financeira ou mesmo na ausência do seu proprietário da cidade para uma longa viagem com sua família: “Aluga-se, para casa de família capaz para os serviços de portas a dentro, uma boa escrava, dando-se mais em conta por levar em sua companhia um filho de 3 annos, com a expressa condição de não sahir à rua por ser escrava de estimação de seus senhores, que estão ausentes; trata-se á rua das Violas n.1, esquina, das 8 horas da manha em diante.”115 114 115 Idem. p. 478. Tabela 11.12. Jornal do Commercio 7.03.1864 Segunda-feira, n° 66. 72 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Formulada a estratégia senhorial de alugar o seu cativo para não deixar o mesmo desprotegido e sem ter como se sustentar seria uma “escrava de estimação de seus senhores” e que não poderia “sahir à rua”. Esse é um entre vários senhores que precisavam ter alguma renda, e usavam o seu escravo para obter, e ainda diminuíam as despesas da casa com alimentação e vestes do cativo e sua cria. E ainda em todo o caso não se desfazia do seu escravo em momentos de dificuldade financeira ou viagens, mantendo assim aparente os laços de afetividade e gratidão com o seu escravo. Já estabelecemos uma estratégia pautada numa boa rentabilidade financeira e na proteção e preservação do escravo a ser alugado por parte do seu senhor. Dos cativos necessitamos entender o porquê aceitar ser alugado a outro senhor, prestar seus serviços à outra casa. Uma pista das mais valiosas foi o comentário feito pelo Cônsul português no Rio de Janeiro em 1845 e que está nos Arquivos em Lisboa: “Segundo o cônsul português, as lusitanas- geralmente originarias dos Açores – recusavam-se a aceitar o isolamento e a submissão característicos dos empregos domésticos exercidos pelas cativas.” (ALENCASTRO, 1988, p.41) Isoladas sem poder ir à rua? Ou separadas no árduo trabalho doméstico de cada dia? Em vários anúncios a expressa determinação de não poder sair à rua isolava o cativo só da cidade? Ou separava dos demais, trabalhando solitariamente no cotidiano de uma vida familiar? As imigrantes portuguesas eram livres e não cativas, e se vieram para uma sociedade essa sociedade era escravistas. E dentro dessa estratégia dos escravos, e bem diferente dos imigrantes portuguesas que depois receberam licença para retornar aos Açores, os cativos estabeleciam seus laços para não ser vendidos ao eito, estabelecem uma rede de interação com outros senhores, pretender a liberdade se possível através dos bons serviços prestados – sendo fiel, submisso 73 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 e grato – pois a compra da alforria era nesse período muito pouco provável. Uma autonomia bem repartida entre senhor/escravo: Tendo não todos os escravos urbanos da cidade do Rio de Janeiro como objeto mais delimitando no espaço e no tempo, vislumbramos que os grandes anúncios das agências ou casas de aluguel de escravos foram direcionados aos períodos sazonais. Assim como entre o tronco e a fuga a escravidão foi dinâmica, os anúncios de aluguel também se dinamizaram. A “válvula de escape” do sistema escravista, ou seja, a alforria, como diz Antônio Carlos Jucá Sampaio, pressupunha a existência da escravidão, com a possibilidade de alforriar alguém depende diretamente da possibilidade de se escravizar novos indivíduos (SAMPAIO,2005,p. 310). O término desse fluxo de mão-de-obra cativa com o fim do tráfico transatlântico em 1850, o elevado valor do preço do escravo, o tráfico para as áreas da cafeicultura fluminense e paulista, o aumento das manumissões gratuitas, a expansão da atividade mercantil e o crescimento da área urbana da corte foram determinantes na tomada de decisão de mandar o cativo para o aluguel. No quantum da população cativa (SAMPAIO,2005,p. 310) muito alterada em comparação ao início do século XIX, tinha no mercado de escravos de aluguel, a confluência constante na politização da relação senhor/escravo, a única estabilidade no comércio de cativos. Lugar onde o escravo e seu proprietário corriam para o mesmo ponto juntos: com o aluguel quase tudo poderia ser resolvido. As dificuldades do cotidiano, a proteção senhorial, a disciplina e fidelidade cativa, a renda que vinha em boa hora, as necessidade, os sentimentos, as gratidões, revoltas, castigos e fugas. O mercado, que de um lado tinha proprietários e escravos disputando anúncio a anúncio com libertos, livres e estrangeiros os serviços domésticos dos fogos da cidade. E do outro um comércio licenciado das casas especializadas que cobrava seus 10 % a sua 74 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 estabelecida clientela de bons senhores para intermediar os aluguéis de seus escravos com grandes proprietários das áreas rurais da corte. Assim o mercado de aluguel de escravos tinha uma lógica diferenciada entre proprietários e agências. Os proprietários de escravos na cidade uma lógica: a de negociar diretamente com seu bom e fiel escravo ou entregar e aceitar o intermédio de terceiros em troca de boas garantias das agências. Um mercado cotidiano nos impressos do jornal tão dinâmico pelas exigências quanto pelas soluções. Referências Bibliográficas: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Proletários e Escravos: Imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872. Revista Novos Estudos, N°. 21 – Julho de 1988. pp. 30-55. AMARAL, Rodrigo de Aguiar. Nos limites da escravidão Urbana: A vida dos pequenos senhores de escravos na urbes do Rio de Janeiro, 1800-1860. Dissertação de Mestrado UFRJ. Rio de Janeiro. 2006. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. FERREIRA, Roberto Guedes. Autonomia escrava e (des) governo senhorial na cidade do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. In: Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX) organização Manolo Florentino. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. FLORENTINO, Manolo. “Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa.” In: TOPOI. Revista de História n° 5. Rio de Janeiro: PPGHIS/ 7 Letras, 2002, pp.9-39. ___________________. Tráfico, Cativeiro e Liberdade. (Rio de Janeiro, século XVIIXIX)/organização Manolo Florentino. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. GÓES, José Roberto. Escravos da Paciência. Estudo sobre a obediência escrava no Rio 75 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 de Janeiro (1790-1850). Tese de Doutorado. PPGHIS-UFF. Niterói:UFF, 1998. KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo, Companhia das Letras, 2000. SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá. “A produção da liberdade: padrões gerais das manumissões no Rio de Janeiro colonial, 1650-1750.”pp. 287- 329. In: Florentino, Manolo (org.), Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. SOARES, Luiz Carlos. “Os Escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX”. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol. 8, n°16, março de 1988/agosto de 1988. 76 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Teorias no espelho: as máscaras – Análises entre O Labirinto da Solidão e o Espelho de Próspero Daiana Pereira Neto116 RESUMO: O tema do presente trabalho são as máscaras que encobrem o povo mexicano e o norte-americano, máscaras formadas historicamente, que se caracterizam aqui no sentido psicológico e cultural. Como principais instrumentos para analisar essas máscaras, utilizamos o “Labirinto da Solidão” de Octavio Paz, ensaísta mexicano, e “O Espelho de Próspero”, de Richard Morse, historiador norte-americano. PALAVRAS- CHAVE: Máscaras, Octavio Paz, Richard Morse. ABSTRACT: The theme of this work are the masks that hide the Mexican people and North American, masks formed historically, characterized here in the psychological and cultural sense. The main instruments used are “O Labirinto da Solidão”, by Octavio Paz, Mexican essayist, and “Prospero’s Mirror”, by Richard Morse, North American historian. KEYWORDS: Masks, Octavio Paz, Richard Morse As funções de uma máscara são várias: proteger, esconder, liberar, transformar, e esconder a identidade de quem a usa. As expressões nas máscaras são muitas, elas podem ser risonhas, malignas, diabólicas, mas sempre são obras de arte. Muitas dessas características são encontradas nas máscaras do México. A cultura mexicana cobre-se de máscaras. No presente trabalho buscaremos trabalhar com as máscaras apresentadas no sentido de Octavio Paz, máscaras psicológicas, 116 Graduanda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). 77 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 de caráter e de cultura. Buscaremos através do presente texto identificar as máscaras do povo mexicano e do povo norte-americano, tendo como principais instrumentos para essa análise “O Labirinto da Solidão”, de Octavio Paz e “O Espelho de Próspero”, de Richard Morse. Em “O Labirinto da Solidão”, nos deteremos mais nos capítulos iniciais: “O Pachuco e outros extremos”, “Máscaras mexicanas”, “Todos os Santos”, “Dia de Finados”, “Os Filhos da Malinche”. E para apresentar as máscaras norte-americanas nos deteremos na terceira parte do livro de Morse. Buscaremos assim compreender as máscaras que esses povos carregam, usando-as para protegerem-se de um mundo de solidão, as máscaras que encobrem o verdadeiro eu dessas sociedades. Como afirma Paz, o “Labirinto da Solidão” foi um exercício da imaginação crítica, o que verdadeiramente o intrigava era o que estava por trás da máscara. Uma máscara que representa uma muralha para encobrir do olhar alheio, e ao mesmo tempo é uma máscara que o expressa e o sufoca. O homem é inseparável de suas ficções e enquanto vivemos criamos uma máscara para nós. Se é possível descobrir o que há por baixo da máscara, não sabemos, mas tentar compreender um pouco mais dessa realidade humana é sempre algo válido. 1-A falsa face: Festas, amores e religião em um universo ìbero-americano Ao nos encontrarmos com o universo mexicano apresentado por Octavio Paz, nos deparamos com um universo de cores, medos, máscaras e explosões de sentimentos. O mexicano é um ser complexo, que manifesta sua personalidade em diversas situações. As máscaras do mexicano se estendem a quase todas as suas relações com seu próximo. Ele não teme ser usado pelo outro, mas se abrir, deixar a sua solidão. Diante da 78 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 simpatia, da doçura, do amor, a resposta do mexicano é a reserva. Como a maioria dos povos ele encara a vida como luta, mas ao invés de atacar, fica na defensiva pronto para repelir o ataque.117 Seu caráter fechado expressa-se nas suas artes, nos seus amores. As artes mexicanas tem um apelo a forma, a métrica na poesia, por exemplo. Essa forma por várias vezes vai sufocar esse povo. Para evitar de propor coisas novas, o que uma sociedade realmente livre propõe e permite, o mexicano vê no seu tradicionalismo um refúgio uma proteção diante do mundo ao qual parece não pertencer. O excesso de cortesia, o excesso de rituais e etiquetas, são uma forma de demonstrar esse amor a forma, e ao isolamento. O mexicano não teme ser humilhado, tem na resignação uma de suas maiores qualidades. Ele teme simplesmente se abrir para o mundo. Para Paz, a mentira do mexicano não destina-se a enganar o outro, mas a si mesmo isso seria o que o diferencia dos outros povos. A mentira mexicana é fértil, e a simulação é tanta e tão refinada e recriada constantemente, que a mentira acaba se misturando com a verdade e ao final do jogo, não se consegue mais a diferença entre ambas. Ao analisar a diferença entre o ator e o simulador, Paz defende que o ator após entregar-se a personagem e interpretar em sua apresentação do outro ser, abandona-o e volta a ser ele mesmo. O simulador tem uma necessidade constante de simular, o seu personagem fundi-se a ele, e não parará de simular até o fim de sua vida, a cumplicidade entre simulador e personagem não pode ser quebrada. O mexicano dissimula, e quem dissimula procura se esconder e se fechar, não permitir que o outro o veja. O mimetismo do mexicano demonstra seu horror as aparências, ele dissimula tanto que acaba se fundindo com os objetos que o cercam. Basicamente ignora a sua existência, e busca ser ninguém. 117 PAZ, Octavio. O Labirinto da Solidão e Post Scriptum. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1984. 79 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 As festas segundo Paz são o momento em que o mexicano expõe todos os seus sentimentos, são um momento de explosão. Por isso o calendário mexicano é repleto de feriados, e grande parte do orçamento de municípios pobres são gastos com as festas. Ao contrário do que parece, as festas são o único luxo dessa sociedade, o mexicano não quer se divertir ele quer se arrebatar, ultrapassar os seus limites, e pular o muro da solidão que o isola durante todo o ano. Se eles esquecem de si mesmos e mostram a verdadeira face não há como saber. O que se sabe é que numa explosão de cores, sons e cheiros ele se vê envolto pelo arrebatamento e pela violência. As festas são o contrário do silêncio e da resignação do mexicano. Festa é participação é encontro com o outro, embora possa-se pensar que seja um desperdício dos recursos acumulados penosamente durante um longo tempo. A festa é para Paz uma revolta, na qual a sociedade se dissolve, e imerge completamente em uma dose de vida pura, livre das normas sufocantes, é o momento em que o mexicano ri de si mesmo de sua sociedade, da etiqueta, da religião e de seus deuses. A festa mexicana é fonte de criação de força. Ao contrário das festas modernas individualizantes, a festa mexicana com seus ritos, faz com que as pessoas comunguem entre si e que se encontrem na confusão original. Graças as festa o mexicano comunga com seus semelhantes, e encontra o sentido para sua tendência religiosa ou política. Se na vida cotidiana o mexicano se esconde, nas festas ele se abre. O mexicano só conhece, a confusão, a canção e o delírio, diálogo ele não conhece e não busca conhecer. Enveredando mais pelo labirinto de Paz temos, os filhos da Malinche, o mexicano tem o sentimento de ser o filho da xingada, diferentemente do que imaginamos com a nossa expressão, “filho da puta”, a xingada no México corresponde a figura feminina passiva que sofre ação de um ser ativo, masculino e que então é abandonada a sua sorte. Ser o filho da mãe violada faz com que o mexicano envolva-se cada vez mais na sua 80 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 máscara de solidão, ele seria o fruto de uma violação, da passiva entrega da mãe, e da ação violenta do pai. 2- As máscaras Anglo-americanas- Morse e as aparências de uma sociedade perfeita Morse em “O Espelho de Próspero” busca mostrar uma América latina, onde a Anglo-América possa se espelhar e enxergar suas enfermidades e defeitos. Não busca mostrar a Ibero-América como uma parte do continente ultrapassada e vítima de uma colonização que não teria dado certo. Destacamos para essa pequena análise a terceira e última parte do livro, a “Sombra do Porvir”, acreditamos que aqui o autor deixa transparecer um olhar sobre a sua própria sociedade que nos permite identificar um Estados Unidos da América, como não havíamos nos deparado tão claramente e de maneira tão inteligente antes. Embora Morse não se refira a máscaras, tão claramente quanto Paz, podemos enxergar elementos de subterfúgio nos norte-americanos. A organização da sociedade se estrutura de modo que ninguém esqueça o seu lugar no jogo. Nos encontramos assim em uma sociedade de massa onde o indivíduo perde-se em meio a um mundo complexo onde é descaracterizado, cobrado e confundido. Vemos um ser maquinizado. O exemplo da guerra é claro, o norte-americano vê na guerra um negócio como outro qualquer, mantém-se psicologicamente longe do outro. A piedade e a compaixão tornam-se desonrosas. Daí um norte americano não ter a capacidade de sentir pena de um mendigo, este é visto como um incapaz. A massificação dessa sociedade cria uma falsa individualidade em estilo de vida e improvisações. O ser individual encontra-se dividido entre a vida pública e a vida privada. 81 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Cabe aqui exemplificar com a música, da forma como é vista por Morse, segundo ele o indivíduo em uma danceteria, não estaria experimentando algo coletivo, cada um escuta a música e da-lhe a percepção que deseja, o jazz, o rock, o country norte -americanos condenam o indivíduo ao isolamento e a impotência. Estamos em uma sociedade em que dizer “eu” é quase um impropério, estamos no mundo do “nós”. Esse isolamento Morse compara ao samba carioca, uma escola vibrante. Por sua vez, nos remeteremos as festas mexicanas, como vemos as festas anglo-americanas, se opõe a idéia da festa mexicana demonstrada por Paz, são o lugar onde falsamente o indivíduo pensa estar participando de alguma coisa. A festa mexicana é participação, é um mergulho na vida. Assim como o mexicano se esconde o americano, mostra-se como um ser espontâneo, simpático. Na verdade ele se relaciona com os outros sem entregar nada de si. Seria então, a máscara anglo-americana tão próxima da máscara mexicana, a diferença está em que o mexicano faz de tudo para não ser visto. O estadunidense ao contrário tenta ser visto, entre o abismo de sua vida pessoal e pública, confronta-se com um casamento amargo, e com a solidão que o devora, e o coloca em luta consigo mesmo e com os demais. Enquanto o mexicano de Paz mantém uma série de rituais e fórmulas para se relacionar com o outro, o americano estabelece uma objetividade que pensa eliminar a distância entre as pessoas, tratam-se pelo primeiro nome como íntimos, e essa erosão da etiqueta, esta objetividade revela o caráter doentio dos contatos. Uma sociedade em desespero que busca, portanto, manter o indivíduo sob controle. Segundo Morse, essa situação foi fruto da trajetória do liberalismo. Enquanto os beneficiários do sistema eram uma minoria privilegiada, a segurança cumpriu as expectativas. Mas quando se estendeu aos outros, o indivíduo tornou-se um ser de ego encolhido, e que esqueceu os usos intelectuais de outrora. Esse novo ser se esconde imerso em grupos, de amigos, de interesses, sindicatos, terapias. Se tornou um ser solitário. 82 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A indústria cultural norte-americana, que vemos se espalhar pelo mundo e chegar até o Brasil, segundo Morse é uma publicidade massificante que transmite a mensagem de que o indivíduo deve resignar-se a ser vítima e a sofrer violências. As séries mostram situações limite, como monstros tidos como mais normais que humanos. Estão em um universo que oferece resposta para tudo, e uma vez existindo essas respostas, a pessoa perde sua individualidade. É impedido de se expressar, de compreender, submetido a humilhações cotidianas, e por fim sucumbe a fúria, que dirige a alvos substitutos, e tornam-se meramente mais um problema a enfrentar. Ele é assim liberado da culpa e da responsabilidade por seus atos. A essa visão de Morse, podemos ilustrar, com os atentados cometidos por jovens norte-americanos a suas escolas e faculdades. Eles sucumbem a fúria contra um sistema escolar despersonalista. A sociedade protesta contra a corrupção do governo, mas não contra as regras do jogo. O que segundo Morse, faz com que todos o norte-americanos pareçam iguais para os latino americanos. O que interpretamos é que o norte-americano possui a certeza, o sentimento de fazer parte da administração, que sua opinião importa, por isso, seu protesto dirige-se contra uma figura única, contra o presidente, contra a corrupção, mas não contra o sistema. Esse sentimento não é compartilhado pelos sul-americanos, a frase: “você sabe com quem está falando?” ainda povoa essas áreas, temos a consciência de que o poder é para poucos. A sociedade anglo-americana é uma sociedade desencantada. Embora a América Latina seja tomada como ultrapassada, parada no tempo, importadora de tradições, é nas artes latinas que vemos a necessidade dos artistas em criarem um universo encantado do qual sejam o centro e não a periferia, referimo-nos ao chamado “realismo maravilhoso”118. 118 Para saber mais ver: MORSE, Richard. A volta do Mchuhanaíma. São Paulo: Cia. Das Letras, 1985. 83 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Ao lermos Morse compreendemos que a máscara do anglo-americano é uma máscara, de máquina, o ser é programado pelas universidades, no trabalho, na sua vivência cotidiana, e tem a ilusão de ser o centro do mundo, se não são perfeitos, pelo menos se contentam com a idéia de serem o melhores que existem. Ao chegarmos nesse ponto acreditamos ser plausível, inserir o pensamento de Vasconcelos, em sua La Raza Cósmica. Vasconcelos defende, que os ibero-americanos são o povo que tem a maior capacidade de criar algo novo. Ao tornarmo-nos independentes muitos dos latinos desejaram pertencer ao mundo anglo, desejaram ter sido colonizados pelos ingleses. Os norte-americanos segundo o autor nunca perderam a idéia, o ponto fixo no horizonte, de que eram parte fundamental na história, de que possuíam um destino de constituírem um império para supostamente trazer liberdade para todos os povos, a liberdade norte-americana. A América Latina é um lugar de uma grande diversidade, um mundo ainda encantado, que segundo Vasconcelos possui uma missão muito maior, a missão de criar a raça única.119 3-As máscaras e a solidão: Distinções entre as máscaras e a solidão mexicana e norte-americana Para Paz “a solidão é sentir-se só e saber-se só, desligado do mundo e alheio a si mesmo, separado de si, e não é característica exclusiva do mexicano”. O homem é o único ser que se sente só, sua natureza consiste em aspirar e se realizar em outro. A comunhão com o outro e a plenitude da união é o que espera o mexicano e todos os homens no fim do labirinto da solidão. 119 VASCONCELOS, José. La Raza Cósmica. Essa versão digital segue a versão de Buenos Aires, EspasaCalpe, 1948. Disponível em:<http://ensayo.rom.uga.edu.antologia/XXA/vasconcelos>Acesso em: 15 de outubro de 2009 84 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A história do mexicano é uma contínua busca por si mesmo, neste ensaio Paz vê a história do México como uma tentativa de recuperar a origem e a tradição e, conseqüentemente, a identidade. Tenta refazer o caminho perdido para encontrar sua identidade e a identidade do México, o “outro eu” escondido sob a máscara. Saindo assim da solidão que os sufocam a tanto tempo. Sucessivamente afrancesado, hispanista... o mexicano quer voltar a ser sol, a ser o centro de vida de onde um dia foi arrancado. A solidão mexicana é assim um sentimento de orfandade e uma contínua busca por restabelecer os laços coma criação. Um detalhe muito interessante é o fato de Octavio Paz ter escrito “O Labirinto da Solidão”, quando de sua primeira estada nos Estados Unidos. Isso permitiu a Paz, perceber as distinções entre as máscaras dos norte-americanos e sua solidão, das máscaras e da solidão do mexicano. Para Paz, o norte-americano encontra-se em um mundo que tem seu sentimento de solidão, extraviado em um mundo abstrato povoado por máquinas, concidadãos e preceitos morais. Nada mais afastado do sentimento mexicano que o do norte-americano, ele não sente ter sido arrancado do centro, ele é o centro, o mundo foi feito a sua imagem, como um espelho. Porém esses espelhos, também já não fazem com que o norte-americano se encontre, está só entre um mar de espelhos que os oprimem. Como Morse, Paz afirma que ao chegar aos Estados Unidos, assombrou-se com a aparente segurança, confiança, alegria e conformidade das pessoas. As críticas dos norteamericanos são críticas reformistas. Assim como enxerga Vasconcelos, Paz afirma que eles se sentem uma sociedade forte, que irão realizar seus ideais e sobreviver a um futuro ameaçador para todos os homens. Para Octavio, os norte-americanos vêem o mundo como algo que pode ser aperfeiçoado, para o mexicano é algo que pode redimir. Ao contrário do norte-americano o 85 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 mexicano acredita na comunhão e na festa. O forte catolicismo mexicano também é união. O norte-americano só deseja enxergar a parte positiva da realidade, desde a infância são submetidos a um processo de adaptação, seus princípios são repetidos em todas as partes do país, na imprensa, na rádio, nas escolas, nas igrejas, e por suas mães e esposas. Presos nesse esquema o homem e a mulher não crescem, o sistema os sufoca. Semelhante sufocação só pode produzir rebeliões individuais. A espontaneidade tem de se vingar e aparecer de alguma forma, a máscara benevolente, atenta e sem expressão, substitui a mobilidade de expressões do rosto humano, eles estão sob a máscara da mecaniquicidade. A máscara que fixa dolorosamente o sorriso humano mostra como é doloroso a vitória dos princípios sobre os instintos. Talvez, como afirma Paz, o sadismo de quase todas as relações americanas, seja apenas mais uma forma de fugir a petrificação que a máscara da pureza impõe. Nem o norte-americanos nem o mexicanos conseguiram obter uma reconciliação com o todo, com o universo. Todavia a diferença é a de que a solidão do mexicano é a das águas paradas e a do norte-americano é a solidão do espelho. Nenhuma das duas sociedades é para Paz uma fonte. Nenhuma é auto-suficiente, ambas precisam do outro para se completar e para não serem sós. Considerações Finais Ao tentarmos entender as máscaras que encobrem a solidão dessas duas sociedades, buscamos demonstrar como sociedades tão aparentemente opostas podem se sentir e serem sós. E como as análises de Octavio e Morse, podem se complementar. Paz afirma que sua preocupação em “O Labirinto da Solidão” não foi o caráter nacional do mexicano, mas o que estaria por debaixo desse caráter, o que a máscara 86 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 escondia. Não estava preocupado em definir o mexicano, mas em realizar uma crítica sobre esse ser que esta sempre em busca de seu verdadeiro ser, que subjaz imerso sobre a máscara sufocante do cotidiano. Ao lermos Morse, temos um deslumbre de uma sociedade desencantada, mecanizada. Vale transcrever um trecho da conclusão do livro de Morse: “... cabe pensar se alguma recompensa, ou até mesmo uma incerta liderança mundial, não está reservada a um povo que conserve a capacidade de visualizar e refletir sobre sua própria condição, a um povo que, no espírito de Vitória e Suaréz, consiga enxergar uma lei natural para o mundo em sua diversidade, ao invés de defender, no espírito de Hobbes e Locke, uma forma mecanicamente repetitiva de direitos naturais egocêntricos”.120 Os Estados Unidos da América precisam aprender a dialogar com o outro e só poderão fazer isso quando começarem a dialogar consigo mesmos. Segundo Octavio Paz, sorridentes ou coléricos, com a mão aberta ou fechada, os Estados Unidos não ouvem nem olham o mexicano; mas andam e andando invadem suas terras e os esmagam, o puritano fala com Deus e consigo mesmo, mas não fala com o outro. Se sobressaem eloqüentemente em seu monólogo. Quando Paz escreveu esse ensaio, se manifestava nos Estados Unidos uma poderosa corrente de opinião, que colocava em discussão as crenças e os valores bases da civilização norte-americana. Para Octavio os estadunidenses só poderão dialogar com o mexicano ou com qualquer outro povo, quando conseguir dialogar com sua outridade: negros, “chicanos”, e com seus jovens. Talvez o primeiro passo para esse diálogo foi dado de modo decisivo no ano de 2008, pela primeira vez na história estadunidense, vimos um candidato negro ser eleito para a presidência. Talvez as máscaras comecem a cair. 120 MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero: cultura e idéia nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.164. 87 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Pesquisas afirmam que Barak Obama recebeu 63.589.985 votos populares (51% do eleitorado), 349 votos no Colégio Eleitoral contra 162 para seu adversário republicano. Conquistou estados-chave como: Pensilvânia, Florida, Ohio, Colorado, New Mexico121 . O desejo por mudança se expressa nessa nova geração. Para Paz pela primeira vez na História, o objeto de reflexão do mexicano não é diferente da de outros povos: como criar uma sociedade, uma cultura que não negue a humanidade nem a transforme em uma abstração vã. Para ele o mexicano, assim como o norte-americano, ainda não encontrou o que venha a reconciliar sua liberdade com a ordem, a palavra com o ato, e ambos com uma evidência que seja humana. Como todos os homens modernos, o mexicano vive em uma sociedade de simulação, da solidão fechada, que defende e oprime, da máscara que esconde desfigura e mutila. Se o mexicano arrancar a máscara e se abrir, se enfim se enfrentar, começará a viver e a pensar de verdade. Quando vencer essa solidão e arrancar as máscaras sairá do labirinto sufocante e sombrio Para finalizar, inserimos a nossa reflexão um pequeno poema de Paz: Hermandad Homenagem a Claudio Ptolomeu Soy hombre: duro poco y es enorme la noche. Pero miro hacia arriba: las estrellas escriben. Sin entender comprendo: también soy escritura 121 MARTINS, Marília. Obama nomeia líderes para seu time de transição. In__Diário de Nova York. Disponível em<www.oglobo.globo.com/blogs/ny> Acesso em 15 de novembro de 2008. 88 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 y en este mismo instante alguien me deletrea.122 No fim das contas todo os homens duram pouco, mas todo homem possui o dom de ser escritura, de ser uma linguagem universal. O céu é o mesmo para todos os homens. Nenhum ser humano é uma ilha e é no outro que nos encontramos para deixar de sermos sozinhos e nos entendermos, é o outro que nos soletra. Referências Bibliográficas: AGUIAR. Maria Alice. Um Diálogo com o Labirinto da Solidão e Post Scriptun de Octavio Paz. Anais do 2 Congresso Brasileiro de Hispanistas, outubro de 2002. Disponível em: <www.scielo.com > Acesso 20 de outubro de 2009. CORREA, Ana Maria M. A Revolução Mexicana. São Paulo: Brasiliense, 1984. KARNAL, Leandro. Contexto, 2001. Estados Unidos: A Formação da Nação. São Paulo: Editora MONTEIRO, Pedro Meira. As Raízes do Brasil no Espelho de Próspero. IN__: Novos Estudos- CEBRAP, nº 83. São Paulo: março de 2009. MORSE, Richard M. O Espelho de Próspero: cultura e idéia nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. PAZ, Octavio. O Labirinto da Solidão e Post Scriptum. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1984. 122 Este poema está disponível em:< www.antoniomiranda.com.br /México /Poesia /OctavioPaz.htm> Acesso em : 20 de Outubro de 2009. 89 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 REYES, Alfonso. "Notas sobre la inteligencia americana". Disponível em:< http://ensayo.rom.uga.edu/antologia/XXA/reyes/> Acesso em: 15 de outubro de 2009. VASCONCELOS, José. La Raza Cósmica. Essa versão digital segue a versão de Buenos Aires, Espasa-Calpe, 1948. Disponível em:<http://ensayo.rom.uga.edu.antologia/XXA/vasconcelos>Acesso em: 15 de outubro de 2009. 90 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Os “Povos Selvagens” e um novo modo de existir: relações de compadrio na Freguesia de Rio Pomba. Daiana Lucas Vieira RESUMO: Neste trabalho, vamos tratar da questão do apadrinhamento dos indígenas aldeados inseridos no processo de cristianização durante a segunda metade do séc. XVIII em Minas Gerais. Para tal, serão analisados os registros de batismo da Freguesia do Mártir São Manuel dos Sertões do Rio da Pomba e Peixe dos índios Croatos e Cropós de 1767 a 1800. Assim como, as obras que se dedicam a discussão da questão indígena no Brasil, e as que se referem às possíveis estratégias sociais forjadas na escolha dos padrinhos de batismo. Destarte, pretendemos corroborar a idéia de que foram adotadas estratégias pelos indígenas, lógicas ou naturais, que podem ser reveladas por meio de um estudo mais detalhado dos indivíduos envolvidos nas cerimônias de batismo. PALAVRAS- CHAVE: Apadrinhamento, indígenas, laços sociais. ABSTRACT: On this work we are going to discuss the issues of tribal indigenous people supporting, which were included in the process of Christianization during the first half of the XVIII century in the state of Minas Gerais, Brazil. For that, Croatos and Cropós indigenous baptism registries, which were made in Freguesia do Mártir São Manuel do Rio Pomba e Peixe, will be analyzed between the years of 1767 and 1800. This is going to be dealt with according to the pieces of work dedicated to discuss the indigenous issues in Brazil and to the ones which were dedicated to discuss the possible forged strategies of Gradunda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista de iniciação científica da FAPEMIG ligada ao projeto “Nobres e Principais desta Terra(...)” desenvolvido pela Prof. Doutora Carla Maria Carvalho de Almeida. E-mail: [email protected] 91 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 choosing a Godfather for these indigenous. Firstly, we intend to corroborate the idea of logical or natural strategies created by the indigenous. Such strategies can be revealed through more detailed studies of individuals involved in the Christian baptism ceremonies. KEYWORDS: Godfather, indigenous, social connections Este trabalho tem como objetivo enfatizar as mais diversas formas de estratégias dos envolvidos na cerimônia de batismo reveladas através da análise dos envolvidos nesta, assim como o perfil de padrinhos e dos pais do batizando, dentre outras questões pertinentes ao tema. Visando aperfeiçoar o conhecimento sobre os povos indígenas e as relações existentes entre os membros presentes nos aldeamentos. Assim como, contribuir para os debates e novas reflexões acerca do tema que por muito tempo foi objeto de resistência entre os historiadores.123 Buscando entender as estratégias de resistência, associação e as relações forjadas pelos indígenas, de modo racional ou irracional, com os índios de outra etnia, escravos, agregados, proprietários de terras, missionários e demais membros do aldeamento.124 Tentaremos observar as características presentes no ato do compadrio referente à Freguesia do Mártir São Manuel dos Sertões do Rio da Pomba e Peixe dos índios Croatos e Cropós. Com tal finalidade, são analisados os registros de batismo da freguesia em um recorte temporal de 33 anos, de 1767 a 1800. 123 Sobre este debate historiográfico ver; MONTEIRO, John M. TUPIS, TAPUIAS E HISTORIADORESEstudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese Apresentada para o Concurso de Livre Docência. Campinas, agosto de 2001. Pag. 1-235. 124 A respeito das associações forjadas por indígenas veja-se: GARCIA, Elisa Frühauf. Quando os índios escolhem os seus aliados: as relações de “amizade” entre os minuanos e os lusitanos no sul da América portuguesa (c.1750-1800). VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 24, nº 40: p.613-632, jul/dez 2008; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003; RESENDE, Maria Leônia Chaves de. “Brasis Coloniales: o gentio da terra em Minas Gerais setecentista (1730-1800)”. p.1. Disponível em: <http://lasa.international.pitt.edu/Lasa2001/ChavesdeResendeMaria.pdf> Acessado em: 30/06/09. 92 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Para entendermos o funcionamento deste aldeamento que possui além das características comuns aos aldeamentos da segunda metade do século XVIII as suas particularidades se faz necessário inseri-lo em seu contexto histórico. Durante o auge da exploração do ouro permaneceram desconhecidas as “Áreas Proibidas” dos sertões de Minas Gerais, até o declínio deste em Mariana e Ouro Preto. Os sertões do leste de Minas Gerais ficaram conhecidos como “Áreas Proibidas” devido ao controle exercido pela coroa, que pretendia evitar o aumento da comunicação entre as capitanias mantendo as matas e os indígenas como obstáculos para o extravio de ouro e possíveis invasões. Todavia, mesmo com as medidas da coroa alguns homens tentaram penetrar nestas terras em busca de ouro ou terras, porém estes não obtiveram êxito. Com o declínio da mineração tornou-se necessário a incorporação de novas terras agricultáveis. Somado a esta necessidade temos a criação do diretório Pombalino que tinha em vista aldear os índios incentivando a miscigenação, utilizando destes para a ampliação das fronteiras, conferindo aos índios direitos e deveres, dentre outras coisas mais, que faziam “parte da política assimilacionista que apesar dos esforços não vingou”.125 Neste contexto surgem as primeiras bandeiras e entradas rumo ao leste de Minas Gerais e é criado o Aldeamento da Freguesia do Mártir São Manoel. Em 1765 D. Luis Diogo Lobo da Silva Informou ao rei os gastos operados com o gentio da Pomba que encontrou. O Rei aprovou tais despesas realizadas pelo governador, pelas boas informações do “sítio” do qual vieram os nativos para “estabelecer alguma negociação pelos rios acima”, além de 125 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios Aldeados no Rio de Janeiro Colonial- novos súditos cristãos do império português. Campinas, SP. Tese (doutorado), 2000. Pag. 175. 93 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 recomendar a aplicação de todos os meios necessários para “estabelecer com os mesmos índios povoações civis”.126 Assim sendo, o governador se dedica em aldear o gentio Cropó e Croato dos Matos do Rio da Pomba e do Peixe cumprindo as ordens da coroa. Segundo Roberta Monteiro “no ato do batismo, a figura do padrinho representa uma espécie de “pai espiritual” do batizando, assumindo o papel de representante da criança na cerimônia, seu guardião e protetor em potencial” 127 . Ao padrinho era dada, teoricamente, a função de “ensinar a doutrina cristã e os bons costumes ao afilhado e a madrinha representava uma auxiliar na criação do afilhado, uma segunda mãe para a criança.”.128Assim sendo, esta deveria ser uma escolha bem pensada visto que esta era a escolha de um “parente espiritual”. Devemos nos atentar ao fato de que a sociedade de Antigo Regime era regida pela lógica da graça e mercê onde os laços criados poderiam ajudar a definir o posicionamento e a função que seriam incumbidas a cada indivíduo. Precavidos desta lógica podemos notar a importância que uma possibilidade de ampliação de laços, como oferecia a relação de compadrio, adquiria na sociedade colonial.129 Como bem destaca Maria Regina Celestino, os índios atribuíam aos “rituais dos padres seus próprios significados”. A autora cita o exemplo dos índios do Pará que “pediam batismo todos os anos, escolhendo o padrinho com antecedência e quando não os 126 PAIVA, Adriano Toledo. “Pelas águas do batismo: A Freguesia de São Manoel da Pomba e a civilização do gentio”. Anais do Primeiro Colóquio do LAHES. Juiz de Fora, 13 a 16 de Junho de 2005. Pag. 2. 127 MONTEIRO, Roberta Ruas. Compadrio de Escravos no Rio de Janeiro Setecentista. Anais do XIII Encontro de História AnphuRio. Pag. 2. Disponível em:<http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1212953674_ARQUIVO_Compadriodee scravos_anpuh.pdf >.Acessado em:10/10/09 128 Ibidem. 129 Idem. Pag. 3. 94 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 conseguia em uma freguesia, iam para outra em busca de novos padrinhos que lhe dariam novos presentes”.130 No momento em que os indígenas passam a conviver com pessoas inseridas em uma cultura diferente da sua, eles acabam por estabelecer “novas praticas culturais e políticas que manejavam em busca de seus interesses que igualmente se alteravam.” 131 Segundo Ricardo Batista de Oliveira “a descrição sobre povos indígenas ora apresentadas não refletem precisamente a situação em que estes se encontravam”.132 Motivados por esta inconsistência das análises existentes cruzamos alguns dados presentes nos registros de batismo que esperamos que possam vir a contribuir com as novas reflexões “acerca da inserção de diferentes grupos indígenas no interior do espaço colonial”133. Tabela I Condição social dos padrinhos segundo a legitimidade dos batizandos, freguesia do Rio da Pomba, 1767-1800 CONDIÇÃO DO PADRINHO B ATIZANDO Le A gregado A lferes 0 C apitão 8 scravo 1 gitimo 5 Na 0 E 0 orro 4 3 1 2 ALMEIDA, Op. Cit. Pag.146. ALMEIDA, Op. Cit. Pag.34. 132 OLIVEIRA, Ricardo Batista de. Povos Indígenas e Ampliação Dos Domínios Coloniais: resistência e associação no Vale do rio Doce e Zona da Mata, séculos XVIII e XIX. Tese de Mestrado. UFOP, Mariana. Maio de 2009. Pag.1-150 133 MONTEIRO, John M. Op. Cit. 131 95 3 51 0 130 N ão Consta 2 3 tural F 8 1 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Nã 1 1 2 8 3 o Consta 3 4 3 5 48 Fonte: Livro de batismo da Freguesia do Rio da Pomba. Tabela II Condição social das madrinhas segundo a legitimidade dos batizandos, freguesia do Rio da Pomba 1767-1800 CONDIÇÃO DA MADRINHA B ATIZANDO A gregada Le Í ndia E scrava 0 1 gitimo orra 3 2 Na 0 0 F N ão Consta 5 3 81 9 tural 3 8 4 Nã 2 0 o Consta 6 3 98 Fonte: Livro de batismo da Freguesia do Rio da Pomba. De acordo com as tabelas acima devemos primeiramente destacar o fato de um grande numero de padrinhos e madrinhas não terem sua condição social registrada.134 Como a maioria desta população era composta por indígenas que ainda não tinham uma condição social estabelecida, muitos foram incorporados as fazendas ou trabalhavam em 134 As principais informações destes registros de batismo foram agrupadas em um banco de dados feitos por: CARRARA, Ângelo Alves. Estruturas demográficas em áreas de fronteira; a freguesia de Rio Pomba. Mariana: Departamento de História/UFOP, 2002 (relatório de pesquisa). 96 5 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 roças de subsistências criadas pelo Padre Manuel de Jesus Maria, a condição social destes ainda não estavam, ou, ficavam difíceis de serem definidas. Ainda temos a possibilidade de uma necessidade de omissão da condição social devido a diversos fatores e finalidades, como por exemplo, a escravidão indígena e a tentativa de uma dissolução da etnia índia em meio aos registros de batismo. Os agregados, reconhecido como tal pelos registros, aparecem apadrinhando treze batizandos que não tem sua legitimidade registrada. Destes, doze são de etnia índia. Os agregados escolhiam para seus filhos e para si mesmo, já que oito destes batizandos eram adultos, padrinhos de condição social igual a sua. Fortalecendo, assim, laços de companheirismo e amizade já existentes entre os agregados as fazendas. Como a etnia destes padrinhos não é registrada não podemos afirmar que foram estabelecidos laços étnicos, mas sim social. Estes dados ainda nos mostram a incorporação da mão de obra indígena as fazendas. Outro fato interessante, é que até na escolha destes padrinhos agregados encontramos alguns mais condecorados como o casal João Alves de Melo e Ângela Maria, e Luiz Homem Serpa que recebem cada um, quatro afilhados. A madrinha dos dois batizandos que aparece na tabela II é a Ângela Maria que tem seu nome dado a um destes dois batizandos. É provável que estes fossem pessoas de “liderança” entre os agregados, ou, admirada por estes. Os 22 afilhados de Alferes não apresentam um perfil comum, 8 são legítimos e o resto não tem a legitimidade registrada.135 Quanto à idade 6 são adultos, 13 inocentes e 3 não tem idade registrada. Dos pais com condição registrada temos; um escravo forro e um cabo de esquadra. A etnia de nem um destes pais é registrada, mas como 13 dos batizandos 135 Este artigo é uma continuação do trabalho A Formação das “Áreas proibidas”: a Freguesia do Mártir São Manuel dos Sertões do Rio da Pomba e do Peixe, de minha autoria, publicado anteriormente. Alguns dados nas tabelas que dizem respeito a apadrinhamento divergem. Já que neste trabalho incorporei a condição social daqueles em que esta vinha antes de seu nome. Como por exemplo, no caso dos Alferes onde não se tinha uma condição social isolada, mas sim um nome “Alferes fulano de tal”. 97 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 eram de etnia índia sabemos que a maioria destes pais eram índios. Outrossim, vemos na escolha destes padrinhos pais diversos; índios, escravos, homens com patente militar, tecendo laços que poderiam trazer algum beneficio tanto para seus filhos como para eles. Na medida em que através do ato de compadrio era estabelecido um vínculo de parentesco espiritual entre os envolvidos - o padrinho, os pais e o batizando.136 Outros 41 batizandos tiveram padrinhos capitães. As anotações do Padre Manuel de Jesus Maria nos permitem deduzir que vários destes capitães escolhidos para apadrinhar algumas crianças, eram reconhecidos como tal pelos indígenas não possuindo realmente a patente. Nas palavras do Padre: “João era chamado entre os índios de capitão e fui eu padrinho por não querer o dito índio que se admitisse outro.”137 Sabemos que as tabelas construídas a partir dos dados dos registros de batismo camuflam a relação entre os indígenas, visto que estes nos primeiros anos da freguesia ainda não deveriam estabelecer um padrão de escolha de padrinho que fugisse dos laços de afinidade já existente. Afinal de contas, estes ainda não deviam ter assimilado as “vantagens” que um padrinho poderia lhe oferecer. Uma única madrinha é registrada na condição de indígena e tem como afilhado um inocente da tribo Cropó. Porém, o numero deste tipo de relação de compadrio deve ter sido muito maior. Dando continuidade a nossa analise daremos vez aos padrinhos e madrinhas escravos que aparecem apadrinhando 60 vezes. Destes afilhados todos que tem sua etnia e condição registrada são escravos, 70% são legítimos e 83% são inocentes. Ou seja, o mais comum eram escravos apadrinhando escravos ainda crianças e fruto de uma união sancionada pela Igreja Católica. Neste aspecto as relações entre os escravos das fazendas da freguesia do Rio Pomba indicam alguma divergência do que comumente é relatado 136 137 MONTEIRO, Roberta Ruas. Op. Cit. Pag. 2. Observação feita pelo Padre Manuel Maria em um dos registros de batismo da Paróquia de São Manuel. 98 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 pelos demógrafos que trabalham com apadrinhamento escravo138. Jonis Freire, por exemplo, encontra para a freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo uma maior porcentagem de escravos amadrinhando e apadrinhando as crianças ilegítimas.139 Destarte, podemos perceber que mesmo estes escravos convivendo com os indígenas, que viviam como agregados na fazenda de seus donos, estes não quiseram ter uns aos outros como “parentes espirituais”. O que demonstra uma preferência destes escravos em criar “alianças mais “para dentro”, entre iguais”140 mantendo a idéia de comunidade escrava. Todos os pais destes escravos, que eram afilhados de escravos, pertenciam ao mesmo dono. Já os padrinhos em 65% dos casos não pertencem ao mesmo dono, 17% são do mesmo dono e em 28% não aparece a quem o padrinho ou a madrinha pertence. Nestes casos em que padrinho e madrinha não pertenciam ao mesmo dono tentamos observar se algum dos dois pertencia ao mesmo dono dos pais do batizando, e em apenas 20% dos casos o padrinho ou a madrinha tem um dono em comum com os pais do batizando. Todavia, concluímos que havia nesta freguesia uma grande mobilidade social a ponto dos pais de batizandos escolherem para seus filhos padrinhos que eram escravos de outro dono. O que também nos remete a idéia de “comunidade escrava”, mencionada anteriormente, e discutida pelos autores que se dedicam aos estudos da cultura escrava. Dos batizados por padrinhos forros 2 eram de etnia croata e o restante não consta a etnia. Estes eram filhos de mãe escrava com pais escravo (maioria) ou forro, exceto os pais dos croatas que não tiveram sua condição registrada. Muito provavelmente estes Croatas também eram escravos ou agregados das fazendas em que viviam ou viveram seus 138 Até o presente momento não encontramos estudos que nos permitam uma comparação mais aprofundada. FREIRE, Jonis. “Casamento, Legitimidade e Família em uma freguesia escravista da Zona da Mata Mineira: século XIX”. Locus: Revista de história, Juiz de Fora. Vol. 11, n. 1 e 2, p. 51-73, 2005. 140 MONTEIRO, Roberta Ruas. Op.Cit. Pag. 4. 139 99 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 padrinhos. Aqui, pela primeira vez e em um numero muito singelo vemos uma relação entre índios e negros. A mobilidade social transparece novamente na análise das madrinhas forras. Destas madrinhas forras cinco são casadas com escravos, e destes, três não tem o mesmo dono que o pai ou a mãe do batizando. Chamou-nos atenção o padrinho pardo, forro, que era feitor da fazenda onde vivia a escrava mãe do batizando que ele é padrinho. A legitimidade do batizando não é registrada e não é registrado nada sobre o pai. Este caso nos remete a duas possibilidades de estratégia na escolha deste padrinho. A primeira seria que a mãe pretendia proporcionar ao seu filho proteção e possível ascensão social. Uma segunda possibilidade é a de que este feitor era pai da criança já que a madrinha era casada com outro individuo e as chances de uma escrava ter “afinidades” com um feitor são pequenas. De mais a mais, essa não é a primeira vez que tal tipo de relação é registrado dessa forma. Além daqueles que possuíam alguma distinção social, como uma patente militar, por exemplo, três homens que constituem a base da freguesia do rio da Pomba - Padre Manuel de Jesus Maria, Diretores Manuel Pires Farinho e Francisco Pires Farinho poderiam ser vistos como símbolo de distinção, por uns, ou rivais, por outros. Estes foram escolhidos aqui para um breve estudo de caso. Tabela III Elegidos e afilhados, freguesia do Rio da Pomba 1767-1800 LEGITIMIDADE NOMES L EGITIMO ATURAL N ÃO CONSTA 100 N OTAL T Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Padre 8 0 1 Manuel de Jesus Maria 4,6% % Diretor Manuel Pires Farinho 2 0,7% ,4% Diretor Francisco Pires Farinho. 4 7,6% ,8% 5,4% 3 5,9% 4 7,6% 1 3 7 2 9 4 2 1 Fonte: Livro de batismo da Freguesia do Rio da Pomba. O padre Manuel de Jesus Maria não foi um dos mais pensados no momento da escolha do padrinho, este foi contemplado com 13 afilhados. Deste 84,6% eram legítimos141 e 14,3% não têm sua legitimidade registrada. O fato da criança ser tida como natural resultava em uma não aceitação por parte do padre nos seus apadrinhamentos. Fato compreensível, já que estamos tratando de uma Freguesia que foi criada inicialmente como um aldeamento onde a função do vigário era catequizar e civilizar, o que implica na não aceitação de antigos hábitos tidos como ilícitos.142 Estes dois batizandos que não tem sua legitimidade registrada eram de etnia índia e já se encontravam em idade adulta. Nem um destes afilhados lhes foi dado durante o período em que a freguesia era um aldeamento, o que reflete a resistência e a desconfiança inicial dos indígenas. Tiveram como padrinho o Diretor Manuel Pires Farinho 29 afilhados. Um alto numero destes, 75,9%, não tiveram sua legitimidade registrada, o que não parece ter sido 141 Entendem-se como legítimos os batizados frutos de uma união reconhecida pela Igreja, e como natural aqueles originados de uma união não sancionada pela Igreja. 142 Sobre o Padre Manuel de Jesus Maria ver: CASTRO, Natália Paganini Pontes de Faria. “Civilização e cristianização dos índios Coropós e Coroados: a atuação catequética do reverendo Manuel de Jesus Maria na Região do Rio Pomba (1767-1811)”. ANPUH Rio. Disponível em: <http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/.../1212973540_ARQUIVO_TrabalhocompletoAnpuh-Rio.pdf > Acessado em: 25/06/09 101 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 sinônimo de desagrado por parte do Diretor. Pelo contrario este parece ter estendido sua redes sociais com as mais diversificadas camadas daquela sociedade. O perfil de apadrinhamento do Diretor Manuel Pires Farinho nos remete a uma estratégia que é proveitosa para o Diretor e aparentemente para os indígenas. Este é agraciado com 10 afilhados de etnia Cropó que deveriam se sentir “protegidos” e honrados por ter um padrinho de tal importância. Estes afilhados podem ser interpretados como fruto da “simpatia dos indígenas pelo Diretor”, o que é muito pouco provável, já que este é um dos agentes deteriorantes da cultura indígena nesta Freguesia. Ou como uma possibilidade de se estreitar relações e buscar proteção em uma pessoa com a qual aqueles pais dos batizandos conviviam diariamente nas fazendas onde estes eram utilizados como mão de obra. Para o Diretor era adequado e proveitoso apadrinhar estes indígenas criando solidariedades verticais e reforçando a idéia de atenção e zelo para com estes. Com isso, ele criava uma importante base de sustentação para o seu poder de mando. O irmão do Diretor Manuel Pires Farinho, Diretor Francisco Pires Farinho, apesar de ter menos afilhados, tem um perfil de apadrinhamento muito semelhante ao do seu irmão. Também estendeu seus laços sociais para com indígenas e escravos. A família Pires Farinho, que exerceu um papel importante na desbravação dos sertões do rio Pomba, apadrinha um considerável numero de batizandos devido à proteção que o estreitamento das relações com essa família poderia oferecer. Além disso, como já indicado acima, nas Minas Setecentistas uma das maneiras mais eficazes de garantir a autoridade era a consolidação de relações clientelares (com os iguais, mas principalmente com os grupos subalternos). Alguns homens apadrinhavam com mais freqüência. A maioria dos padrinhos tinha mais de 3 afilhados, sendo que muitos tinham de 6 a 14 afilhados. No entanto, sendo o batizando legítimo, ou ilegítimo, os pais constituíam padrão muito semelhante na escolha 102 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 de seus compadres, que eram sempre alguém que vivia em uma condição igual ou superior a sua, e que preferencialmente fosse de uma etnia “superior” a sua com bases nas hierarquias étnicas existentes no período colonial. A relação entre os indígenas e os demais que habitavam a freguesia do rio Pomba esta longe de ser exaurida com esta análise que fizemos. O grande numero de legitimidade e condição social não registrados nos livros de batismo, a forma de trabalho adotada na freguesia, que também influencia na escolha de compadrio, merecem maiores reflexões. Diante do acima exposto, podemos deduzir que através do perfil recorrente dos padrinhos escolhidos no ato de batismo, há uma estratégia sendo forjada, consciente ou inconscientemente. Estratégias estas que ajudariam os indígenas a se relacionar com os demais agentes do aldeamento na busca de suas prioridades e objetivos que mudavam de acordo com as circunstancias. Nesse sentido, cabe ressaltar que independentemente de ser índio, agregado, forro, escravo, colono, capitão a escolha dos padrinhos reflete a busca por melhores condições de vida. Deixando claro que estas tribos indígenas tão relatadas como altamente hierarquizada e fechada dentro de seus costumes souberam fazer, bem ou mal, suas escolhas e abandonar quando necessário suas hierarquias. Perceberam o que melhor lhes convinha naquele momento de inserção em uma nova cultura, na busca por dias mais tranqüilos. Referencias Bibliográficas ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Índios Aldeados no Rio de Janeiro Colonialnovos súditos cristãos do império português. Campinas, SP. Tese (doutorado), 2000 103 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003 CASTRO, Natália Paganini Pontes de Faria. “Civilização e cristianização dos índios Coropós e Coroados: a atuação catequética do reverendo Manuel de Jesus Maria na Região do Rio Pomba (1767-1811)”. ANPUH - Rio. Disponível em: <http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/.../1212973540_ARQUIVO_TrabalhocompletoAn puh-Rio.pdf > Acessado em: 25/06/09 FREIRE, Jonis. “Casamento, Legitimidade e Família em uma freguesia escravista da Zona da Mata Mineira: século XIX”. Locus: Revista de história, Juiz de Fora. Vol. 11, n. 1 e 2, p. 51-73, 2005. GARCIA, Elisa Frühauf. Quando os índios escolhem os seus aliados: as relações de “amizade” entre os minuanos e os lusitanos no sul da América portuguesa (c.1750-1800). VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 24, nº 40: p.613-632, jul/dez 2008 MONTEIRO, John M. TUPIS, TAPUIAS E HISTORIADORES-Estudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese Apresentada para o Concurso de Livre Docência. Campinas, agosto de 2001 MONTEIRO, Roberta Ruas. Compadrio de Escravos no Rio de Janeiro Setecentista. Anais do XIII Encontro de História AnphuRio. Pag. 2. Disponível em:<http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1212953674_ARQUI VO_Compadriodeescravos_anpuh.pdf >.Acessado em:10/10/09 OLIVEIRA, Ricardo Batista de. Povos indígenas e ampliação dos domínios coloniais: resistência e associação no Vale do rio Doce e Zona da Mata, séculos XVIII e XIX. Tese de Mestrado. UFOP, Mariana. Maio de 2009. 104 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 PAIVA, Adriano Toledo. “Pelas águas do batismo: A Freguesia de São Manoel da Pomba e a civilização do gentio”. Anais do Primeiro Colóquio do LAHES. Juiz de Fora, 13 a 16 de Junho de 2005 RESENDE, Maria Leônia Chaves de. “Brasis Coloniales: o gentio da terra em Minas Gerais setecentista (1730-1800)”. p.1. Disponível em: <http://lasa.international.pitt.edu/Lasa2001/ChavesdeResendeMaria.pdf> Acessado em: 30/06/09. 105 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 O Grotesco Romântico em “O vermelho e o negro”: alguns aspectos da interiorização no livro de Stendhal... Daniel Eveling RESUMO: Caracterizado por Mikhail Bakhtin como um dos autores pertencentes a uma tradição do realismo grotesco, Stendhal, pseudônimo de Henri Beyle, teve como um dos seus escritos considerado por muitos como uma das suas “obras primas”, o livro “O vermelho e o negro”, escrito em 1830. Procuro realizar apontamentos que ressaltem semelhanças entre o grotesco do tipo romântico, também chamadas de grotesco de câmara, com a escrita de Stendhal. A partir das proposições de Bakhtin, juntamente com uma perspectiva interdisciplinar, marcada pelo uso da História, Filosofia e Literatura (apontada no Giro Lingüístico). Recorrerei à tal obra, além de autores que abordaram a “domesticação” dos instintos e sentimentos do homem, como Friedrich Nietzsche e Norbert Elias. Mostrarei caracteres que acredito serem aplicáveis a obra de Stendhal. PALAVRAS-CHAVE: Stendhal, O vermelho e o negro, grotesco. ABSTRACT: Characterized by Mikhail Bakhtin as an author belonging to a tradition of grotesque realism, Stendhal, pseudonym of Henri Beyle, had one of his writings considered by many as one of his "masterpieces," the book "Red and Black " written in 1830. I will try to perform this work, notes and highlight similarities between the grotesque of the romantic kind, so-called grotesque chamber, with the writing of Stendhal. From the propositions of Bakhtin, together with an interdisciplinary perspective, marked by the use . Mestrando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais. Desenvolve a pesquisa orientado pela Professora Doutora Beatriz Helena Domingues. 106 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 of History, Philosophy and Literature (Language and pointed in the Giro). I refer to literary work and authors who have addressed the "domestication" of instincts and feelings of man, as Friedrich Nietzsche and Elias. I will show characters, which in my opinion, apply to the work of Stendhal. KEYWORDS: Stendhal, The red and black, grottesque. Para começar os meus apontamentos, de aproximação da obra de Stendhal, em específico “O vermelho e o negro”, inicio com a citação do filósofo russo Mikhail Bakhtin, O realismo em grande estilo (Stendhal, Balzac, Hugo, Dickens, etc.) esteve sempre ligado (direta ou indiretamente) à tradição renascentista, e a ruptura desse laço conduziu fatalmente ao abastardamento do realismo, à sua degeneração em empirismo naturalista143. Tomando com base o acima, parto para realizar algumas aproximações do que Bakhtin definiu como grotesco de câmara, ou romântico, e a escrita do livro de Stendha nessa corrente o sentido de não pertencimento ao contexto epropicia a sensação de uma espécie de carnaval que o individuo representa a solidão, com a consciência aguda de seu isolamento. A sensação carnavalesca do mundo transpõe- se de alguma forma à linguagem do pensamento filosófico idealista e subjetivo, e deixa de ser a sensação vivida (pode- se dizer corporalmente vivida) da unidade e do caráter inesgotável da existência que ela constituía no grotesco da Idade Média e Renascimento144. A comunhão que o indivíduo possuía com o mundo, em um período anterior, se quebra neste grotesco de câmara: os românticos deixam de viver “corporalmente” as 143 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987, p. 45. 144 . Op.cit. p., 33 107 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 sensações do que os cercam, uma vez que os instintos naturais são podados, assumindo formas sublimadas. O indivíduo possui uma condição de outsider145 na sua solidão, isso é propiciado pelo não enquadramento nos grupos. Stendhal apresenta uma similitude com uma obra “Werther”,de Goethe, pois nessa última “há por um lado, superficialidade, cerimônia, conversas formais; por outro,vida interior, profundidade de sentimentos, absorção de livros, desenvolvimento da personalidade individual”146. A posição de “stranger” ou “outsider” refletiu em Julien voltando- se em determinados momentos para o caráter do infinito interior, “com um indivíduo subjetivo, profundo, íntimo, complexo e inesgotável”147. A característica do estranhamento, que é diferente da condição de “stranger”, em obras literárias, para Carlo Ginzburg pode fornecer alguns aspectos, pois “é um antídoto eficaz, contra o risco, a que todos nós estamos expostos: o de banalizar a realidade”148. Friedrich Nietzsche, em “Genealogia da Moral”, ao analisar a consciência humana destaca a seguinte ponderação, que acredito se aproximar do “infinito interior”, apresentado por Bakhtin tratado mais abaixo, Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam- se para dentro- isto é o que chamo de interiorização do homem:é assim que no homem cresce o que depois se denomina “alma”. Todo o mundo interior, originalmente delgado, como entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que foi inibido em sua descarga para fora.149 145 Cf.:ELIAS, Norbert. Introdução. In.: ______. Os estabelecidos e outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 146 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes.vol. 1. Tradução de: Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p., 37 147 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular. p.,38 148 GINZBURG, Carlo. Estranhamento: Pré- História de um procedimento literário. In.: _______. Olhos de Madeira: Nove reflexões sobre a distancia. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p.,41. 149 NIETZSCHE. Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução de: Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2009,p. 67. 108 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Deve-se fazer apenas o socialmente aceitável. A própria questão que envolve o riso é visto como algo infernal, sombrio e maligno, o “diabo encarna o espanto, a melancolia, a tragédia”150. Ainda segundo Bakthin “no romantismo a máscara dissimula, encobre, engana, etc”151, e se elas tem a preocupação de não deixar transparecer as verdadeiras intenções, ressalto, que uma das grandes preocupações de Stendhal foi a arte de mentir. Como outros nascem policiais, ele parecia ter nascido diplomata, com as complicações do mistério da duplicidade hábil, que faziam a glória legendária do oficio [...] Stendhal colocava igualmente a superioridade humana nesse ideal de um espírito poderoso que se dá ao prazer de enganar aos homens e de ser o único a usufruir de seus embustes152 Stendhal condenava a Sociedade da Restauração Francesa, para ele o enfado e as tramas que permeavam as posições dos grupos envolvidos nesse período. Devido a isso ele tenta, na escrita do livro, demonstrar opiniões contrárias ao posicionamento que toma. Nessa percepção o livro II é marcado pela vida aristocrática, sendo muito preponderante nesse aspecto o fato da teatralização153, da sociedade de corte uma vez o que se considera é muito mais o individuo em seu contexto social, em sua relação com os outros. Aqui também se mostram os vínculos estreitos entre o cortesão e a sociedade (...) Trata- se de uma observação de si mesmo para a disciplina do convívio em sociedade: “ Um homem conhecedor da corte é senhor de seu gesto, de seus olhos, de seu semblante; ele é profundo, impenetrável; dissimula os maus serviços, sorri a seus inimigos, 150 Idem. 36 Idem 35 152 ZOLA,Emile. Do Romance: Stendhal, Flaubert e os Goncourt. São Paulo: EDUSP/ Imaginário, 1995, p., 71 153 Cf.: GOULEMONT, Jean Marie As práticas literárias ou a publicidade do privado. In: ÁRIES, Philippe & CHARTIER, Roger (orgs.). História da vida privada. Vol. 3: da Renascença ao Século das Luzes. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 Ou REVEL, Jacques. Os usos da civilidade. In: ÁRIES, Philippe & CHARTIER, Roger (orgs.). História da vida privada. Vol. 3: da Renascença ao Século das Luzes. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 151 109 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 domina o seu humor, disfarça suas paixões, desmente o seu coração, fala, age contra seus sentimentos”154. No filme “Ligações Perigosas”155, há uma cena emblemática, nesse sentido de dissimulação, quando a Marquesa De Merteuil discute com o Visconde de Valmont. Transcrevo a fala da marquesa para elucidar: Quando entrei na sociedade aos quinze anos já sabia que o papel ao qual estava condenada o de permanecer em silencio e o de obedecer dar-me- ia a chance perfeita de ouvir o observar. Não o que me diziam, que nenhum interesse tinha, mas o que as pessoas tentavam esconder.Pratiquei o distanciamento, aprendi a parecer alegre enquanto me espetava com o garfo debaixo da mesa. Torneime uma virtuose do engodo. Não buscava prazer, mas, sim, conhecimentos. Consultei um moralista para saber como me portar. Filósofos, para saber o que pensar. E escritores, para saber do que ficar impune. Resumi tudo a um principio maravilhosamente simples: Vencer ou morrer!156 Na fala da marquesa, do filme, o que me interessa são as observações sobre a sociedade, sabia que as pessoas escondiam seus verdadeiros pensamentos e opiniões, inclusive ela mesma fazendo isso. Seu papel, destinado desde a nascença, era de ser uma mulher obediente e calada e com a arte de observar falada por Elias tirou o melhor proveito possível. Ao manipular os “brios” sociais, as pessoas para que não tivessem seus papéis 154 ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001, p. 121. A citação entre aspas e de La Bruyère, na obra de Elias. 155 Ligações Perigosas. Stephen Frears.Warner Bros, 1987. 120, som, cor. O livro escrito em uma sociedade que ainda não passara pela Revolução Francesa, o livro de Chordelos foi ambientando em um grupo aristocrático sem a presença forte de uma burguesia. Resumidamente a história gira em torno de Visconde de Valmont e da Marquesa de Merteuil. Essa o procura para que seduzisse sua prima Cecile e a srª de Tourvel. Como um dos maiores conquistadores românticos Valmont aceita tal missão, porém só se interessava, em um primeiro momento, por Tourvel que era uma das damas mais devotas da França. Conquista essa, por quem se apaixona, e Cecile. Depois manipulado por Merteuil se afasta de Tourvel, que morre de “infelicidade” e rompeu com Merteuil. Valmont morre em um duelo e com uma amante de Cecile e Merteuil morre socialmente ao ser vaiada na Ópera pelo que havia feito. Uma vez que Valmont guardava todas as cartas que Merteuil escrevia para ele e aparecia toda a armação feita por ela, e entrega para que fossem divulgadas. Condenando assim a marquesa ao ostracismo social. Tal filme e baseado no romance “Relações Perigosas”, de Chordelos de Laclos, escrito, em 1787. 156 Cf.: Ligações perigosas. Op. cit. 110 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 ameaçados acabavam cedendo aos desígnios de tão grande dama. Ao usar da dissimulação escondia o que realmente desejava e assim adquiria ares lúgubres. Pelo colocado acima posso perceber dentro da estrutura da Corte a necessidade de saber qual sua posição e seu papel, para que isso ocorresse inúmeras vezes acontecia a dissimulação dos verdadeiros sentimentos, com uma postura de mentir, já mencionada. As “máscaras” são usadas para o disfarce157, percebo exatamente os ares lúgubres do romantismo. A máscara, passa a ser utilizada em Julien da seguinte forma: ele aparentemente é um perfeito “domestique”, sabendo qual lugar possui na sociedade, não cria qualquer problema com relação a isso. Mas, internamente demonstra que todas as posturas que está tendo são meramente para que ele consiga, os seus verdadeiros interesses, isso pode ser visto como as táticas, definidas por Michel de Certeau158, isso ilustra perfeitamente o caráter da máscara que passou a ser utilizada apenas para encobrir os verdadeiros sentimentos, para Bakhtin “no grotesco romântico, a mascara arrancada da unidade da visão popular e carnavalesca do mundo empobrece- se e adquire várias outras significações alheias a sua natureza original: a máscara, dissimula, encobre, engana, etc159”. Em Paris, para Balzac, no meu entender, uma outra forma de teatro é executado, já que Sentimentos genuínos são a exceção; são quebrados pelo jogo de interesses, esmagados entre as rodas desse mundo mecânico. Aqui, a virtude é difamada; aqui a inocência é vendida. As paixões são vendidas barato para gostos e vícios ruminosos, tudo é sublimado, analisado, comprado e vendido. É um bazar, onde tudo tem seu 157 As máscaras na obra de Bakhtin são vistas como uma das mais fortes expressões populares através delas ocorriam renovações na sociedade medieva. 158 As táticas de Michel de Certeau, são vistas como a arte de pobre, quando pessoas afastadas de um centro de poder politico, econômico, social e mesmo simbólico agem de acordo que consigam as seus interesses. CERTEAU, Michel de. Entre táticas e estratégias. In.: ______. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1992. 159 BAKHTIN. Op. cit, p. 33 e 35 111 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 preço, e os cálculos são feitos em plena luz do dia, sem escrúpulo160. Uma das epígrafes do “O vermelho e o negro” é: “Em Paris há pessoas elegantes; na província, pode haver pessoas de caráter”161. Creio, que o aspecto salientado por Balzac junta- se perfeitamente com o que Stendhal, a capital francesa é vista como um antro de vicissitudes e falsidades, para conseguir sobreviver nesse lugar é necessário que fossem fingidas as reações. Um aspecto que coaduna com a teatralização, apontada mais acima, e que muda na percepção do grotesco de câmara é o fato da rua e a praça passarem a servir de espaços de diferenciação social, por exemplo, nos séculos XVII e XVII, apontados por Bakhtin como sendo os que não souberam “ler” a obra de Rabelais e quando começaram a haver a morte do riso começaram a existir leis que reforçavam o uso de determinados trajes e objetos, somente por determinadas parcelas da sociedade somente podia utilizar algumas cores, insígnias, carros162... Nessa perspectiva o hierarquia, era reforçada e mantida, o sentindo de um mundo carnavalesco não era passível de ser compreendido o que era radicalmente diferentemente do grotesco medieval quando as praças e ruas eram o centro das discussões e da “mistura” dos grupos. No fim do romance, quando Julien já havia sido condenado a guilhotina e a morte certa se aproximava de seu protagonista, lê-se: E pôs- se a rir como Mefistófeles. Que loucura discutir esses grandes problemas! [ sua morte ] 1º ) Sou hipócrita, como aqui houvesse alguém para escutar- me 160 161 162 BALZAC, Honoré de apud SENTÉ, Richard. O declínio do homem público. Op. cit. p, 197. STENDHAL. O vermelho e o negro. Op. cit, p. 76. Cf.: SENNET, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Cia das Letras, 1993. 112 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 2º ) Esqueço de viver e amar, quando me restam tão poucos dias de vida... Ai! A Srª de Rênal está ausente; talvez seu marido não a deixar mais voltar a Besançon e continuar a desonrar- se163. Ressalto que essa citação de Mefistófeles, pode ser entendido como o “herói danado, (muitas vezes herdeiro do diabo miltoniano)”, pois se Kant “ainda sustentava que a feiúra que provoca repulsa não pode ser representada sem que destrua qualquer prazer estético, com o romantismo este limite foi superado”164. Assim o protagonista do romance, pode carregar perfeitamente em si, aspectos que anteriormente eram insustentáveis em seu comportamento, essa perspectiva de Humberto Eco, a meu ver, coaduna perfeitamente com a teoria de Bakhtin, ao esse último nos dizer que o método grotesco, propiciou que as obras fossem liberadas, no meu ponto de vista, com isso a própria questão de um protagonista ser o inverso de um “bom moço”, pode ser elucidativo. Creio que alguns pontos da análise de Bakhtin podem ser visualizados na citação de Stendhal, sobre Mefistófeles, colocada mais acima: primeiro a questão do riso maligno. Como sabemos, a figura do Mefistófeles, seja de Marlowe ou Goethe, envolve a figura do diabo que arrasta pelo desejo de uma sabedoria e um poderio econômico para o “lado das trevas”. Julien, na sua ânsia de adquirir status quo, faz um movimento bem próximo ao de Fausto,165 passando por cima de princípios para conseguir atingir seus objetivos. O caráter diabólico, de Mefistófeles, é “apenas na medida em que é dialeticamente insinuante e convincente” e se tornou mais perigoso e preocupante, “pois já não é inocentemente feio como se costumava pinta- lo” 166 . Julien utiliza essas táticas por exemplo, ao não se importar ao fingir mudanças de posturas, freqüentemente, para 163 STENDHAL [Henry Beyle]. O vermelho e o negro.Op. cit. P., 500 . Para Milton, em sua obra “Paraíso Perdido”, de 1667, as características do diabo seriam: rebelião contra o poder estabelecido; uma beleza decaída; uma indômita dignidade; não é revolucionário, “pois lhe falta um objetivo que vá além do sentimento de vingança e da afirmação do próprio Eu, mas é um modelo de pura energia em revolta”. ECO, Humberto. História da Feiúra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p.179. 165 Cf.: WATT, Ian. Mitos do Individualismo Moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robson Crusoé. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 166 ECO, Humberto. História da Feiúra. Op. cit., p..182. 164 113 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 conseguir as coisas almejadas por ele. Por exemplo, se em um primeiro momento tenta atingir seus objetivos através de Mathilde, declarando- se apaixonado por ela, e de certa maneira estando envolvido, ao perceber que ela o ignora ele flerta com a Marechala de Fervaques. Ao despertar ciúmes na filha do Marquês, ela se mostra completamente transtornada com o envolvimento de Julien com a outra nobre e declara seus sentimentos a ela. Julien, após esse episódio, simplesmente passa a ignorar a Marechala e volta suas atenções a srª de la Mole. O próprio Stendhal deixou indícios que havia compartilhava da percepção sobre “Fausto”, de Goethe, além das passagens no “O vermelho e o negro”, há em “Armance ou algumas cenas de um salão de Paris em 1827” a seguinte passagem, quando a mãe de Octavio, este o grande amor da personagem principal, preocupada pelo excesso de leitura e afastamento do filho escreve Querido Octávio, esse desejo extravagante resulta possivelmente da tua paixão desordenada pela ciência. Os teus continuados estudos fazem- me tremer. Receio que venhas a acabar como o Fausto de Goethe. Queres voltar a jurar- me, como fizeste no domingo, que não lerás apenas maus livros?167 Esse desejo de assumir postos que não condizem com a realidade de deve ao caráter de interiorização, sua descoberta pelos românticos só foi possível graças ao emprego do método grotesco, da sua força capaz de superar qualquer dogmatismo, qualquer caráter acabado e limitado. Num mundo fechado, acabado, estável, no qual se traçam fronteiras nítidas e imutáveis entre todos os fenômenos e valores, o infinito interior não poderia ser revelado168 167 STENDHAL [ Henri Beyle]. Armance ou algumas cenas de um salão de Paris em 1827. Lisboa: Gris Impressores, 1971 ,p., 16. 168 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular. Op.cit. p.,39 114 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Essa ordenação do mundo com papéis muito rígidos e estabelecidos e o infinito interior desempenhando o lugar o qual todas as possibilidades e tentativas poderiam ser executadas, pode explicar um grande ponto de “O vermelho e o negro”: o surgimento da paixão de Mathilde “pelo domestique de seu pai é toque de mestre de Stendhal”169. Ou ainda a total entrega srª de Rênal a Julien a ponto de, no fim do livro, desafiaras convenções, expõe de certa maneira essas relações que eram guardadas no mais íntimo dos personagens. Esta atitude de Mathilde “ajuda a libertar- se do ponto de vista dominante sobre o mundo, de todas as convenções e de elementos banais e habituais”170. Fugindo totalmente do habitual, Stendhal envolvia nas linhas de seu romance um caso de amor entre um domestique e a filha de um dos maiores pares da França. Podemos pensar que muitos aristocratas tinham amantes entre seus serviçais, mas a grande questão é um autor expor de forma tão clara esse envolvimento, quebrando toda uma série de hierarquias e posicionamentos que cercavam os franceses do período. Ainda percebemos no grotesco do século XIX um ponto levantado por Nietzsche sobre o riso o homem descobre sua solidão em um universo que não tem sentido preestabelecido. Enquanto acreditamos, durante séculos, que havia um piloto no comando que nos guiava para um destino conhecido, Nietzsche nos ensina que “Deus está morto”, ou antes, que ele nunca existiu e que estamos a bordo de um barco à deriva que não vai a lugar nenhum. É, de fato, para morrer de rir!171 Uma das maiores crises de Julien no final do livro se dá exatamente no momento em que 169 AUERBACH, Erich. Mimesis:A representação da realidade na literatura ocidental. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.,405. 170 BAKHTIN, MIkhail. A cultura popular. Op. cit.p., 30 171 MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: UNESP, 2003.p.,517. 115 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Ele foi agitado pelas lembranças dessa Bíblia que sabia de cor ... Mas como a partir do momento em que são três pessoas numa só,acreditar nesse grande nome de DEUS, com o terrível abuso que fazem dele nossos padres? Viver isolado!...Que tormento!... Eis o que me isola {a ausência da srª de Rênal], e não a ausência de um Deus justo, bom, todo poderoso, sem maldade, sem avidez de vingança. Ah! Se ele existisse... eu cairia a seus pés! Mereci a morte, lhe diria; mas devolve- me; ó Deus grande, Deus bom, Deus indulgente, aquele que amo! 172. De uma forma diferente de Nietzsche, Stendhal questionava dogmas religiosos, não de uma forma tão aberta e explícita, mas com pequenas inserções em seus textos. Até porque, conforme bem lembrado por Octavio Paz, a “literatura moderna não demonstra nem predica nem raciocina, seus métodos são outros: descreve, expressa, revela, descobrem expõem, ou seja, põem a descoberto as realidades reais e as irrealidades não menos reais de que são feitos o mundo e os homens”173, .Stendhal queria recusar o embelezamento de seu livro e declarava orgulhosamente, não é bonito: é imediato, direto, áspero [...] Por meio de um relato baseado em personagens e acontecimentos inventados, ele procurava alcançar uma verdade histórica mais profunda174 Ao recusar esse “embelezamento” das palavras Stendhal tem o grande mérito de “repudiar o falso brilho verbal dos românticos e trazer a si um fundo de verdade humana indiscutível”175. Também percebendo essa forma de uma escrita que vai ao cerne das questões, sendo visto a questão dos “petit fait vrais”176, segundo Leyla Perrone, pois 172 STENDHAL [ Henry Beyle] O Vermelho e o negro. Op. cit. p.,499- 500 PAZ,Octavio. Propósito. In:______. O ogro filantrópico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p 12. 174 GINZBURG, Carlo.A áspera verdade- Um desafio de Stendhal aos historiadores. In:______. O Fio e os rastros:Verdadeiro, Falso, Fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p.174 175 CARONI, Italo. A Utopia Naturalista. In: ZOLA, Emile. Do Romance: Stendhal, Flaubert e os Gouncourt. Tradução de: Plínio Augusto Coelho. São Paulo: EDUSP/ Imaginário, 1995,p. 17. 176 Cf.: PERRONE- MOISÉS, Leyla. Flores da Escrivaninha: Ensaios. São Paulo: Cia das Letras. 173 116 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 através de elementos que podem ser vistos como de inspiração real tentava- se mostrar a “feiúra” da sociedade, em uma perspectiva angustiada. Ou seja, queria- se evidenciar as hipocrisias e a falsidade que rondava os ambientes de inícios do século XIX. Sobre mostrar esses caracteres da vida Mérimeé afirmava que alguém havia acusado Stendhal do mais grave dos delitos, de desnudar e pôr em plena luz certas chagas do coração humano que são demais repugnantes em se ver. “Essa observação me pareceu justa”, escreveu Mérimeé. “O caráter de Julien [protagonista de um de seus livros] tem traços atrozes; são inegavelmente verdadeiros atrozes, mas nem por isso deixam de ser horríveis177. O interior da sociedade e suas formas de pensamento eram expostos com todos os seus detalhes sórdidos o que chocava e tornava a obra de Stendhal tão controversa. A própria personalidade dele, que não levava, muito, a sério a sociedade de corte e cobrindoa de sarcasmos as solenidades, são reveladoras de sua atitude contestadora. E a meu ver, podem ser entendidos como, em certo momento, contestando e expondo uma sociedade que estava coberta de vícios e falsidades, na percepção do autor, pois como já foi discutido a Restauração Francesa era combatida, uma vez que havia trago para a sociedade todo um estabelecimento de antigos valores e percepções, criticava assim uma “dominação subliminar, não necessariamente discursiva”178. Um aspecto que se mostra revelador para determinada feiúra do século XIX está presente em Erich Auerbach ao discorrer sobre o enfado nos salões da sociedade francesa e 177 GINZBURG, Carlo. A áspera verdade- um desafio de Stendhal aos historiadores. In:______. O Fio e os rastros: Verdadeiro, Falso, Ficção. Tradução de: Rosa Freire d’ Aguiar; Eduardo Brandão. São Paulo: Cia das Letras, 2007. p.185. 178 Cf.: LAMHA, Gibran Grunewald. A teatralidade em Rabelais, no estudo de Mikhail Bakhtin. 2008. 24 f. (Bacharelado em História). Instituto de Ciências Humanas e Letras, da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2008, p.19. Lamha, nessa parte da na monografia discute a problemática que envolve o “Clown”, palhaço de origem inglesa, que segundo ele tem como função demonstrar e problematizar a sociedade, acredito que a problematização da questão do palhaço, nesse aspecto de denunciar a dominação em mínimas coisas se aproxima da forma a qual Stendhal tentava se expressar. 117 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 as discussões não serem mais pautadas em sua grande maioria por pensadores que eram marcados por um livre pensamento. Explico, com o advento do “le monde”, os grandes intelectuais passaram a depender das benesses de grandes senhores para que pudessem viver, digamos com um maior conforto, como Robert Darnton mostra. Entretanto, os pensadores passaram a ser controlados e vigiados por esse “le monde”, em especial a aristocracia, que determinava quais autores poderiam ou não participar dele, isso já ocorria em finais do século XVIII. Uma das maiores críticas, que percebo, no livro é justamente o fato desses salões se tornarem a “porta de entrada” para o “le monde”, desde o acadêmico que só freqüenta para conseguir postos na Academia para si e seus familiares, chegando a se ajoelhar frente a srª de La Mole, até mesmo pela hipocrisia das atitudes que são tomadas no interior do Hôtel De La Mole. Concordo com Aeurbach, ao demonstrar que os “philosophes”, para usar a nomenclatura de Darnton, passaram a deixar de serem pensadores para se submeter aos padrões dos grandes senhores, assim a “feiúra”, quando não se tem uma liberdade de pensamento, é um dos pontos que são colocados a baila pela análise de Bakhtin e perpassa a obra de Stendhal, criticava dessa forma o filósofo/ pensador que se “domesticava”179 que “integravam- se a uma sociedade de ricos patrocinadores e cortesãos, para mutuo beneficio:” a gens du monde ganhava entretenimento e instrução, a gens de lettres refinamento e posição social. Desnecessário acrescentar que a promoção à alta hierarquia social”180. Assim Stendhal criticava um ciclo vicioso que estava inserido, mas que enxergava como problemático e que garantiu sua sobrevivência financeira, afinal era “homem de carne e osso, desejoso de encher a barriga”181 assim como também manteve outros. 179 DARNTON, Robert. Boêmia Literária e Revolução: O submundo das letras do Antigo Regime. Tradução de: Luís Carlos Borges. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p.17. 180 Idem.p, 23. 181 Idem. p,14. 118 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Stendhal conhecia a trajetória de Rousseau, inclusive sendo um admirador da obra de tal pensador, mas sabia que Jean- Jacques alcançou o “monde” com o “Discurso sobre as Artes e Ciências” e decaiu com “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, pesaroso que pesasse sobre ele o “ostracismo” financeiro e social, e porque não dizer simbólico, que caiu sobre Rousseau após sua obra resolveu ser mais sutil em suas ironias e “desmascaramentos”. Um outro aspecto do grotesco apontado por Norma Discini e que corrobora com as análises bakhtininas, foi que ao se conseguir controlar os gestos, e conseqüentemente, as reações isso serve como marca características do grotesco de câmara, Merteuil, a marquesa de Chordelos de Laclos citada mais acima. Discini ressalta que duas estéticas são presentes, o amor tangível, que é marcadamente de cunho grotesco, e o amor intangível que é de cunho platônico. O amor tangível, é consumado e realizado no livro, pois quebrando convenções sociais e hierárquicas, pois como sabemos primeiro com a srª de Rênal, depois com Mathilde se relacionando com Julien os amores são realizados. Concordo com Discini ao colocar o grotesco como da ordem das coisas tangíveis. Mas, acredito também que nem toda forma de “amor grotesco” vai ser marcado pela forma de ironia, em “O vermelho e o negro”, o amor, de certa forma é corporalmente vivido, lembrando e citando Bakhtin ao mostrar o período medieval. Pelo acima acredito que a aplicabilidade da noção de tangível para a caracterização do amor é perfeitamente adequável para a obra de Stendhal, sei também que para Bakhtin no grotesco de câmara, em alguns momentos as sensações deixam de ser corporalmente vividas, entretanto creio, que isso não impede de apresentar outras consonâncias com diferentes formas do grotesco. Ainda com relação a um grotesco e posturas disso no século XIX Georges Minois ressalta uma posição de Nietzsche sobre a relação com um riso filosófico: se por um lado 119 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 não gosta do agelasta Hobbes, por outro coloca nas alturas “aqueles que são capazes de risos dourados”; e se ele admira Chamfort é porque vê nele “um pensador que julgava o riso necessário como remédio contra a vida e que considerava quase perdido o dia que não conseguia rir”182 Ele ilustra isto com um trecho de Nietzsche: “A Gaia Ciência”, aforismo é o seguinte É singular que apesar de um tal amigo e defensor- temos as cartas de Mirabeua para Chamfort- , esse mais espirituoso dos moralistas tenha permanecido um estranho para os franceses, de modo não diferente de Stendhal, que talvez tenha tido, entre os franceses deste século, os olhos e ouvidos mais ricos de pensamento.Será que este, no fundo, tinha demasiado do alemão e de inglês para que os parisienses o suportassem? – enquanto Chamfort, um homem rico de profundidades e segundos planos da alma sombrio, ardente, sofredor- um pensador que achava o riso necessário como remédio para a vida e que considerava praticamente perdido o dia que não dava uma risada-, parece antes um italiano, um parente de Dante e Leopardi do que um francês!183 Nietzsche, neste aforismo, refere-se não apenas a Chamfort como um adepto do riso, mas também a Stendhal: aliás, Nietzsche considerava Stendhal como um dos poucos escritores que não pertenciam ao “rebanho”184, esse é para o filósofo alemão o grupo de pessoas que aceitam as proposições que são passadas sem questionar, formando assim um senso comum. BIBLIOGRAFIA. 182 MINOIS, Georges. História do Riso e do escárnio. Op. cit. p.,518. NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de: Paulo César de Oliveira. São Paulo: Cia das Letras, 2005, p.120 184 Cf.: LEFORT, Claude. O "sentido histórico": Stendhal e Nietzsche. In: NOVAES, Adauto (org). Tempo e História. São Paulo: Cia da Letras, 1992. 183 120 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 AUERBACH, Erich. Mimesis:A representação da realidade na literatura ocidental. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987. DARNTON, Robert. Boêmia Literária e Revolução: O submundo das letras do Antigo Regime. Tradução de: Luís Carlos Borges. São Paulo: Cia das Letras, 1989. ECO,Humberto. História da Feiúra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001. _____. Introdução. In.: ______. Os estabelecidos e outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. _____ O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes.vol. 1. Tradução de: Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. GINZBURG, Carlo.A áspera verdade-Um desafio de Stendhal aos historiadores. In:______. O Fio e os rastros:Verdadeiro, Falso, Fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2007. __________. Estranhamento: Pré-História de um procedimento literário. In.: _______. Olhos de Madeira: Nove reflexões sobre a distancia. São Paulo: Cia das Letras, 2001. LAMHA, Gibran Grunewald. A teatralidade em Rabelais, no estudo de Mikhail Bakhtin (Bacharelado em História). Instituto de Ciências Humanas e Letras, da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2008. 24 f. MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: UNESP, 2003. NIETZSCHE. Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução de: Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2009. 121 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 ___________. A Gaia Ciência. Tradução de: Paulo César de Oliveira. São Paulo: Cia das Letras, 2005, PERRONE- MOISÉS, Leyla. Flores da Escrivaninha: Ensaios. São Paulo: Cia das Letras. O Bonde e o Tempo: do surgimento à consolidação do meio de transporte. David José da Silva RESUMO: O meio de transporte coletivo sobre trilhos, em perímetro urbano é denominado no Brasil bonde, que advém da palavra inglesa bond. O sistema é composto por um compartimento de passageiros, adaptado sobre trilhos de ferro e tracionado por animais eqüinos. O pioneiro do meio de transporte foi o francês Alphonce Loubat e a primeira cidade a implantá-lo foi Nova Iorque/EUA. Posteriormente, várias cidades instalaram o sistema de transporte ferro-carril, devido ao êxito da experiência norteamericana. PALAVRAS-CHAVE: Bonde; Ferro-carril; Transporte. ABSTRACT: The means of collective transport, in urban area in the Brazil is called bonde, which comes from the word English bond. The system consists of a passenger compartment, adapted on iron rails and pulled by animals horses. The pioneer of the means of transport was the French Alphonce Loubat, and the first city to implement it was New York/USA. Subsequently, several cities have installed the system of the railway rail due to the success of the American experience. KEYWORDS: Tram; Iron-track; Transports. Graduado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2008. 122 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Para Rui Barbosa, O Bonde foi, até certo ponto, a salvação da cidade. Foi o grande instrumento do seu progresso material. Foi ele que dilatou a zona urbana, que arejou a cidade, desaglomerando a população, que tornou possível a moradia fora da região central. O bonde foi – é preciso dizê-lo – uma instituição providencial. Se não existisse, era preciso inventá-lo.185 Na década de 1830 surgiu nos Estados Unidos uma nova forma de transporte dentro das cidades: o bonde. Posteriormente, o meio de transporte foi instalado nas principais cidades do mundo, pois o novo sistema além de diminuir os custos do transporte de cargas e de passageiros, possibilitou conforto, segurança e agilidade ao trânsito. O que é um bonde? Bonde é a palavra empregada no Brasil para designar o veículo de transporte coletivo sobre trilhos, em perímetro urbano. Mais apropriadamente, o termo “ferro-carril” indica os trilhos, aos quais é adaptado um compartimento, semelhante ao trem convencional. O dicionário Aurélio aponta “carril” como “sulco deixado pelas rodas do carro”, como lusitanismo adota “trilho”, que por sua vez, abrasileirado é exposto como “cada uma das barras de aço paralelas que, assentadas sobre dormentes, suportam e guiam as rodas dos trens de ferro, dos bondes, etc.”.186 O termo “ferro-carril” designa os trilhos de ferro com suas determinadas composições. Waldemar Correa Stiel cita em seu livro História do transporte urbano no Brasil, alguns textos que elucidam a questão do acréscimo de sentido à palavra bond, que dá origem ao termo bonde, usado para designar o transporte ferro-carril no Brasil, dentre eles destaco o trecho retirado do dicionário Folk-lores, o qual sintetiza a idéia e dá possibilidade de produzir uma conclusão óbvia: o termo “bonde” é uma adaptação aportuguesada da palavra bond que, por sua vez, representa um ticket com uma determinada valoração financeira. Por conseqüência do uso dos “bonds”, pelos usuários, 185 STIEL, Waldemar Corrêa. História do Transporte Urbano no Brasil. Brasília: Pini, 1984. p. XVI. Dormentes são as peças colocadas transversalmente à via, e onde são assentados e fixam os trilhos das ferrovias. In: FERREIRA, A. B. H. Miniaurélio Século XXI Escolar: o minidicionário da língua portuguesa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 245 - 687. 186 123 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 para efetuarem o pagamento da passagem, o termo passou a designar o próprio veículo de transporte coletivo sobre trilhos, em perímetro urbano: BONDE – Veículo de tração animal ou elétrica. É um brasileirismo. Pelo decreto n.°4.244, de 15 de setembro de 1868, o Visconde de Itaboraí, presidente do Gabinete, emitiu um empréstimo nacional até 30 mil contos, com juros pagáveis em ouro, mediante apresentação de apólice, cautelas, bonds; operação financeira que despertou atenção geral. Em novembro, a “Botanical Garden Road Company”, fez circular os primeiros veículos no rio de janeiro e o carioca aplicou aos carros o nome abrasileirado das pequenas apólices, bonds, registrado na imprensa da época e posteriormente vulgarizado por todo Brasil. 187 Cogita-se também que a incorporação do termo bonde ao sistema de transporte, possa ter ocorrido devido á inauguração, em Belém capital do Pará, de uma linha de bondes em 1º de novembro de 1871. Os serviços de transporte coletivo foram contratados, segundo Stiel, pelo governo da província em 1º de setembro de 1869, com um cidadão de nome “James B. Bond”. Porém, antes da inauguração, o concessionário transferiu os direitos à firma Bueno & Cia., de propriedade de Manoel Antônio Pimenta Bueno, que organizou uma sociedade anônima de nome “Companhia Urbana de Estrada de Ferro Paraense”. Dificilmente o meio de transporte herdou o nome do antigo proprietário da empresa “James Bond”, uma vez que este esteve presente apenas nos momentos iniciais desta companhia. 188 Como já citado, o Brasil é o único país a utilizar o termo ‘bonde’ para designar o veículo ferro-carril. O termo mais usado mundialmente é tramway, como na Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Austrália, entre outros. Nos Estados Unidos adota-se também o termo street car, empregado para designar o transporte ferro-carril e o ônibus de tração 187 188 DICIONÁRIO do Folk-lores Brasileiro – Luiz da Câmara Cascudo – pág. 128. In: STIEL, op. cit., p. 5. STIEL, op. cit., p. 19 - 20. 124 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 elétrica. Portugal, o norte da Inglaterra e a Escócia adotam “tram”189. Em Portugal adota-se também o termo elétrico. Os alemães chamam de Straßenbahn, que pode ser traduzido como “trem de rua” 190 . Estrutura dos bondes de tração animal O bonde de tração animal foi o primeiro e mais comum veículo de transporte coletivo sobre trilhos de ferro no Brasil. Sobre a gênese do meio de transporte, Stiel descreve da seguinte forma: “Tratava-se de um pequeno bonde, ao qual era atrelado a uma parelha de ‘muares’191, que sob as ordens de um cocheiro experimentado, conduzia o veículo, que rodava sobre trilhos de ferro, pelas nossas ruas”. 192 Para Clarck e Chemin, os bondes eram mais creditados nas ocasiões onde as estradas eram ruins ou não existiam, para facilitar o tráfego pesado e contínuo. O bonde era composto por um compartimento central dotado de assentos, atrelado a um par de muares e adaptado sobre trilhos de ferro. Ele era guiado por um condutor que através de arreios, ditava a velocidade e a direção do veículo.193 Observa-se abaixo de forma mais detalhada e objetiva as imagens produzidas por “Leandro Trindade”194, no “Museu do Transporte Público Gaetano Ferolla” 195 . As fotografias retratam uma réplica dos bondes que circularam em São Paulo, da “Empresa de 189 A palavra tram, deriva na língua inglesa do termo escandinavo usado para designar tábua ou trave de madeira. Quando essas tábuas ou traves de madeira começaram a ser usadas como guias para as vagonetas das minas e em outras atividades industriais no século XVII, a elas criou-se o habito de serem chamadas tram ways, traduzido para o português quer dizer “caminhos de tábuas”. In GARDÉ, Emídio. Os tramways.2008, p. 26. no prelo. 190 SILVA, Ayrton Camargo e. Bondes sobreviventes no Brasil. Disponível em: <http://hist.antp.org.br/telas/Downloads/Bondessobreviventes.PDF>. Acesso em: 12 de novembro de 2008. 191 Palavra usada para designar animal pertencente à raça do mulo (FERREIRA, op. cit., p. 474). 192 STIEL, op. cit., p. 54. 193 CLARCK, D. K.; CHEMIN, M.O. Tramways: construction et exploitation. Paris: Dunod, 1880. p. 2. 194 Graduando da Faculdade de Ciências da Computação/USP, em novembro de 2008. 195 Museu do Transporte Público Gaetano Ferolla - Avenida Cruzeiro do Sul, nº 780, São Paulo/SP. 125 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Bondes de Sant’Anna”196. As fotografias expostas nas figuras 1 e 2, possuem indicações numeradas que apontam para os caracteres estruturais do veículo, com explicações das indicações na tabela 1. Figura 1: Características do bonde 196 Ultima empresa de bondes de tração animal de São Paulo. Foi estabelecida em 07 de agosto de 1890 e se manteve até maio de 1907. Esta empresa estabeleceu seus serviços fora da zona central da cidade e dado a este motivo, não foi incorporada pela Companhia Viação Paulista (STIEL,op. cit., p. 453). 126 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Figura 2: Características do bonde Tabela 1 Engate para os moares. Nele é adaptado um sistema de arreios, que 1 possibilita ao condutor guiar o animal, através de um instrumento metálico, colocado na cavidade oral do animal. 2 Sistema de freios. Trilho. São dois trilhos, assentados de forma paralela sobre dormentes de 3 madeira. 4 Eixo. 5 Lugar do condutor. 6 Alavanca de freios. 7 Chaminé Sino, serve para avisar sobre o condutor ou os passageiros sobre as 8 intenções de parada ou de deslocamento. 127 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Estribo: Degrau ou plataforma das viaturas (FERREIRA, 2000, p. 298). No caso, 9 taboa de madeira adaptada na lateral do bonde, que permite aos usuários um melhor acesso ao veículo, além de possibilitar também o estacionamento destes. 1 Cortina. 0 Banco. Observa-se que este modelo de bonde foi fabricado para contemplar 1 o transporte de 20 passageiros. São 5 bancos, com a possibilidade de assento de 4 1 pessoas por banco. 1 Lampião. 2 1 Roda, com encaixe para a adaptação à fenda do trilho. 3 Parte integrante do sistema de sustentação do veículo, a “fenda”197 possibilita o deslocamento do bonde sobre o trilho, uma vez que, quando adaptado este passa a se deslocar no caminho delimitado pelo veio do trilho, conforme exposto na figura 3 e esclarecido na tabela 2: 197 Fenda é uma abertura numa superfície, ou em objeto fendido; é qualquer abertura estreita. No caso dos trilhos, um exemplo desta estrutura esta demonstrada na figura 3, apontada pela seta de numero 2 (FERREIRA, 2000, p. 317). 128 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Figura 3: Esboço do trilho de bonde instalado em Nova Iorque – Estados Unidos Tabela 2 1 Trilho de ferro. 2 Fenda. 3 Base de madeira. Prego ou estrutura semelhante, usada para fixar o trilho sobre a base de 4 madeira. O bonde no mundo As formas mais rudimentares deste meio de transporte foram instaladas há mais de quatrocentos anos, nos distritos mineiros de Inglaterra, haja vista a necessidade de transporte para os portos. A gênese deste meio de transporte é explicada da por Clark e Chemin da seguinte forma: Pode se fazer confortavelmente uma idéia da dificuldade que se teve para manter as estradas que conduziam para as minas de carvão. As estradas de terra que se vê hoje em dia são um espetáculo no Egito, o que poderia ser o nosso (França no século ilustra o modelo de trilho instalado na 2.ª Avenida em Nova Iorque (CLARCK; CHEMIN, op.cit. p. 5). 129 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 XIX) antes da pista sobre o pavimento. Depois de uma chuva forte, são formados alguns lagos de lama que constituem grandes obstáculos à circulação ao invés de facilitar. Nossos antepassados foram dirigidos para colocar algumas tábuas ou pedaços de madeira no fundo dos buracos; eles acharam isto mais conveniente que os encher de pedras. Os inconvenientes buracos trouxeram a idéia de colocar tábuas ou grandes pranchas de madeira. Em 1676, os bondes consistiram em carros sobre grades de madeira “que vai da mina para o rio calmo, direto seguindo linhas paralelas. 198 O novo método de se fazer o transporte das cargas facilitou os trabalhos, de forma relevante, e possibilitou o aumento da produção. O cavalo que em uma estrada aberta puxava 860 quilos de carvão, com o novo sistema de trilhos era capaz de puxar 2130 quilos de carvão, regularmente. Na década de 1830, pensou-se em mecanizar o transporte coletivo, fruto da Revolução Industrial. Foram feitas no Reino Unido algumas tentativas com o uso da tração a vapor. Em 1831 foi criado um serviço de transportes entre Cheltenham e Gloucester, numa extensão de 14 quilômetros e 500 metros. Em 1833, surgiu em Londres, uma carruagem para 12 passageiros, a qual, por razões de ordem técnica, teve uma duração efêmera. Já em 1836, havia em circulação duas outras viaturas, com capacidades para 18 e 22 passageiros. Mas estas linhas não galgaram um expressivo êxito. 199 Segundo Belo: Estas tentativas não foram, contudo, bem sucedidas. Aliado ao fato de o pavimento das estradas ser de má qualidade, a tecnologia mecânica ainda era incipiente, pelo que os acidentes com explosões das caldeiras eram demasiado freqüentes – daí que tal tipo de transporte se tenha extinto rapidamente, dado o medo e a indiferença do público potencial utilizador. 200 Os primeiros bondes a tração animal surgiram em 1832, em Nova Iorque, com capacidade para trinta passageiros sentados, pertencentes à New York & Harlem Railroad 198 CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit., p. 2. idem., p. 3. 200 BELO, José Luís Garcia. Autocarros Urbanos, a sua Evolução e Perspectivas de Futuro. Dissertação (Mestrado) - Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, 1998. In: GARDÉ, op. cit., p. 38. 199 130 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Company. 201 Esta companhia foi a primeira no mundo a implantar um serviço de transporte coletivo sobre trilhos de ferro em perímetro urbano, mas sua aceitação, como as já citadas, não foi expressiva. A linha foi instalada na 4ª Avenida e, devido à colocação dos carris acima do nível do solo, o tráfego no restante da rua foi dificultado. Este foi o principal empecilho para o surgimento de novas iniciativas neste âmbito em vinte anos. 202 Hadler acrescenta que “sua aceitação pelo público não deve ter se dado de maneira imediata”. 203 No ano seguinte, foi instalada em Nova Orleans uma linha de bondes de tração animal, na qual, segundo o Taplim, os trilhos servem ainda hoje para os bondes de tração elétrica, sendo mais de 150 anos de serviço contínuo.204 O francês Alphonse Loubat foi o pioneiro dos transportes ferro-carrís na França, e de grande importância para a evolução e disseminação do meio de transporte coletivo. Nascido em 1799, foi para os Estados Unidos da América, onde estabeleceu residência. Os bondes foram restabelecidos em Nova Iorque, em 1852, graças a ele, responsável pela construção de um composto, formado por trilhos de ferro sobre dormentes de madeira. Os trilhos apresentavam, na parte superior, um encaixe ou buraco, para guiar as rodas dos carros e sobre eles, foram adaptados a vagões. 205 Segundo Gardé, Alphonse Loubat foi um rico e próspero negociante de vinhos que, na época vivia em Nova Iorque, onde percebeu as potencialidades do novo meio de transporte. O bonde, no seu entendimento, representava o contrário dos ônibus, que contavam com rodas de madeira e sem qualquer tipo de suspensão amortecida, tinham que percorrer os muito irregulares pavimentos das ruas em pedra ou em terra batida tornando a 201 HADLER, Maria S. D. Trilhos da modernidade: memórias e educação urbana dos sentidos. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. 2007.p. 36. 202 GARDÉ, op. cit., p. 28. 203 Ibidem. 204 TAPLIM, Michael. The History of Tramways and Evolution of Light Rail. Disponivel em: <http://www.lrta.org/mrthistory.html>. acesso em: 07 de novembro de 2008. 205 CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit, p. 4. 131 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 viagem altamente incomoda. Pelo viés econômico, o bonde usava menos animais para tração transportando o mesmo número de pessoas. 206 Procurando sanar o problema verificado após a implantação dos primeiros bondes em 1832, Loubat instalou na 6.ª avenida uma linha, onde a maior parte da estrutura ficava imersa sob o pavimento da rua, deixando aparente somente os trilhos, aos quais fora adaptado o compartimento de passageiros. Esta é a segunda linha de bondes de Nova Iorque. 207 Os bondes avançaram rapidamente nos Estados Unidos. Em Nova Iorque, além das linhas instaladas em 1852 na 6ª Avenida, foi implantada outra linha na 8ª Avenida. Em 1853, mais duas linhas de bondes foram inauguradas nas 3ª e 2ª Avenidas. E em 1854 foi inaugurada uma linha no Brooklin, linha esta que atravessava o rio Hudson. 208 Para Clarck e Chemin, o meio de transporte vantajoso em vários aspectos: O bonde obteve vantagens incalculáveis e se tornou um elemento característico indispensável nas cidades principais dos Estados Unidos. As longas distâncias para percorrer, o estado geralmente ruim das ruas e das estradas, a raridade comparativa dos outros veículos; formaram uma coincidência que impôs o uso dos bondes para todas as classes. 209 Na Filadélfia foi construído um tipo diferente de trilho, em 1855, o qual a população conseguia ultrapassar. Este novo tipo de trilho foi colocado na 5ª e 6ª ruas e consistia em uma modelo onde as irregularidades do solo eram suavizadas, uma vez que, planejou-se a extinção dos buracos no interior dos trilhos e em suas margens, além da diminuição da profundidade das fendas. O modelo de trilho potencializou o uso deste meio de transporte coletivo, por satisfazer a necessidade de garantir o deslocamento dos bondes 206 GARDÉ, op. cit., p. 28. Idem. 208 GARDÉ, op. cit., p. 38. 209 CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit., p. 5. 207 132 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 em comunhão com o restante tráfego de viaturas, tais como os carros de aluguel, os ônibus, etc.. Este novo método representou um menor obstáculo para o trânsito que partir de então, foi adotado em muitas cidades.210 Este trilho implantado na Filadélfia trouxe novos problemas, mas também novos benefícios para o tráfego. Segundo Clarck e Chemin, houve objeções no que se refere à terra, que era ruim para as patas dos animais que tracionavam os bondes e, com relação às irregularidades do solo provocadas pela instalação dos trilhos, embora os autores relatem que os ressaltos no pavimento das ruas nunca ultrapassavam dois centímetros e meio de altura. Porém, estes ressaltos foram suficientes para causar um obstáculo considerável para os carros, que os cruzavam transversalmente, por forçar as rodas e os eixos. Entretanto, este novo trilho não representou um impedimento ao trânsito dos demais veículos, pois além de não apresentar encaixes onde o pó e o lixo pudesse se acomodar e criar obstáculos para o tráfego dos bondes, não há elementos de atração para as rodas dos demais veículos.211 Como pode se observar na figura 4: Figura 4: Esboço de trilho instalado na Filadélfia - Estados Unidos.212 Observando o método de Loubat de assentar os dormentes sob o pavimento das ruas, um engenheiro inglês de nome M. Charles L. Light estudou o caso de Nova Iorque e 210 Ibidem, p. 8. CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit., p. 9. 212 O trilho indicado pela seta foi colorido em vermelho, para facilitar na visualização e compreensão. No original, o esboço esta em preto e branco. 211 133 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 construiu em 1856-57, uma linha de bondes em Boston com uma particularidade: esta linha possuía uma fenda menor que as fendas das linhas implantadas por Loubat. Ele avaliou que seria menos inconveniente uma fenda menor nas linhas dos bondes, onde em um plano inclinado, possibilitariam que os encaixes das rodas se adaptassem e que estas se deslocassem com facilidade, enquanto o pó ou as pedras pequenas seriam superados facilmente. A América Latina acompanhou o desenvolvimento mundial dos transportes, contando com as primeiras vias férreas a vapor a partir da década de 1830, logo após o surgimento das mesmas na América do Norte. Os bondes também acompanharam o desenvolvimento global, com ferro-carris de tração animal implantados na Cidade do México, no dia 1º de janeiro de 1858. Esta linha implantada só foi precedida das linhas de Nova Iorque, Nova Orleans, Paris e Boston.213 Segundo Morrison, o México inaugurou sua primeira via férrea a vapor em 1850 e o primeiro bonde oito anos após. Ele acrescenta que os bondes levaram os passageiros da catedral para a praça de touros e para o subúrbio de Tacubaya. Estes bondes eram os mesmos veículos que foram implantados em Nova Iorque.214 Também em 1858, foi inaugurada a primeira linha de bondes em Santiago, no Chile, sete anos após a abertura da primeira via férrea. Ela foi construída pelos mesmos engenheiros norte-americanos, e contaram com os mesmos modelos de bondes, que foram instalados na Cidade do México e em Nova Iorque. Estes bondes eram construídos pela Eaton Gilbert & Company.215 Em 1859 começaram a trafegar no Rio de Janeiro os primeiros bondes de tração animal, três anos após a autorização dada pelo governo ao inglês Thomas Cochrane, para 213 MORRISON, Allen.Tramway Pionners. Disponível em: <http://www.tramz.com/tw/p.html>. Acesso em: 30 de outubro de 2008. 214 idem. 215 MORRISON, op.cit. 134 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 organizar um serviço urbano de veículos sobre trilhos de ferro. Foi feita em 30 de janeiro uma viajem de experiência, a qual galgou um expressivo êxito e, em 26 de março, foi efetuada a inauguração solene.216 Morrison acrescenta, dizendo que a linha foi batizada pelo imperador.217 Em 1861, Train estabeleceu o serviço de transporte em Londres, com a autorização de autoridades locais.218 Foi construída uma linha na estrada de Blayswater, entre o portico de “Notting Hill e a Arca de Marmore”. Em 1863, uma linha de bondes de dois quilômetros e oitocentos metros, foi aberta, em “Cerâmic District”, para a companhia Ceramic of Staffordshire, entre Burslem e Hanley. Segundo Gardé, os bondes que circularam em Londres foram construídos na Filadélfia e a administração local não gostou de tal iniciativa, uma vez que, além de encerrar coercivamente as linhas, colocou o original empreendedor na cadeia.219 O fracasso destas iniciativas na Inglaterra se deu devido ao estado relativamente bom das ruas e estradas e da difusão de ônibus e carros, aos quais um número grande de pessoas tinham acesso a um preço razoável. Estes fatores apontaram para uma necessidade menos urgente dos bondes na Inglaterra. Ele acrescenta que os defensores dos bondes foram desencorajados pelo fracasso manifesto dos primeiros bondes, e se afastaram durante certo tempo.220 Clarck e Chemin concluem o assunto de forma taxativa: “o tempo do bonde com trilho “Para Pisar” tinha passado. Embora as pessoas tolerassem isto na América, eles foram odiados na Inglaterra; e só depois de um intervalo de vários anos, - em 1865 e 1866 - recuperaram o movimento para a construção dos bondes”.221 216 STIEL, op. cit., p. 315. MORRISON, op.cit. 218 CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op cit., p. 12. 219 GARDÉ, op. cit., p. 38. 220 CLARCK , D. K.; CHEMIN, M.O. op. cit., p. 12. 221 Idem. 217 135 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Mesmo com os problemas diversos enfrentados por cada companhia e em cada localidade, este meio de transporte comprovou sua grande utilidade e versatilidade, com a implantação de linhas nas principais cidades do mundo. O uso do bonde variou desde o transporte de carvão nas minas, até o transporte de cadáveres, ao qual farei menção posteriormente. Portanto, em consonância com Clarck e Chemin, o bonde provocou uma revolução nos transportes de sua época, uma vez que, permitiu, através de sua estrutura composta por trilhos assentados sobre o pavimento das vias aos quais é adaptado o compartimento, seja de passageiros ou de carga, uma redução no tempo das viagens, conforto aos passageiros, redução nos custos devido ao uso de menos animais para tracioná-lo, além de um desgaste menor dos animais e a possibilidade de transporte de maior quantidade de passageiros ou de cargas. Bibliografia BELO, José Luís Garcia. Autocarros Urbanos, a sua Evolução e Perspectivas de Futuro. Dissertação (Mestrado) - Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, 1998. In: GARDÉ, Emídio. Os Tramways. 2008. No prelo. CLARCK, D. K.; CHEMIN, M.O. Tramways: construction et exploitation. Tradução própria. Paris: Dunod, 1880. DE AMTUIR, Les transports urbains à travers le temps: les origines. Disponível em: <http://www.cnam.fr/hebergement/ amtuir/ a_histo1.htm a 2002-01-02>. In: GARDÉ, Emídio. Os Tramways. 2008. No prelo. Dicionário do Folk-lores Brasileiro – Luiz da Câmara Cascudo – Pág. 128. In: STIEL, Waldemar Corrêa. História do Transporte Urbano no Brasil. Brasília: Pini, 1984. ESTEVES, Albino. Álbum do Município de Juiz de Fora. Bel Horizonte: Imprensa Oficial, 1915. 72 p. 136 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 FERREIRA, A. B. H. Miniaurélio Século XXI Escolar: o minidicionário da língua portuguesa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. HADLER, Maria S. D. Trilhos da modernidade: memórias e educação urbana dos sentidos. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. 2007. MORRISON, Allen. Tramway Pionners. Disponível <http://www.tramz.com/tw/p.html>. Acesso em: 30 de outubro de 2008. em: ROBERT, Jean. Cent vingt cinq ans de tramways en France. Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/Tramway_parisien#cite_ref-MG58_12-1> . Acesso em: 04 de novembro de 2008. SILVA, Luiz Costa de Lucca. As características do bonde. Disponível em: <http://br.geocities.com/gurnemanzbr/acbant/ferr ocarris_a.html#tramuei>. Acesso em: 14 de outubro de 2008. STIEL, Waldemar Corrêa. História do Transporte Urbano no Brasil. Brasília: Pini, 1984. TAPLIM, Michael. The History of Tramways and Evolution of Light Rail. Disponivel em: <http://www.lrta.org/mrthistory.html>. acesso em: 07 de novembro de 2008. 137 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Notas Sobre a Trajetória Individual do Conde de Funchal (1760-1833). Debora Cristina Alexandre Bastos e Monteiro de Carvalho222 Resumo: Em meio aos acontecimentos de inícios do século XIX, algumas figuras se destacaram em meio ao caos ocasionado pela iminência das invasões das tropas francesas em Portugal. Dentre essas figuras, estava D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho. A comunicação pretende abordar a vida desse ator político, apontando para isso alguns elementos de sua trajetória em seus anos de vida, de 1760 a 1833. Utilizo alguns métodos da História Política Renovada, principalmente, em relação a utilização de fontes como as correspondências. As fontes utilizadas são as correspondências do Conde de Funchal, bem como os impressos da época como o Correio Braziliense, além de fontes secundárias como as memórias de José Liberato, editor do impresso Investigador Portuguêz em Inglaterra, mas também, as referências bibliografias que remetam ao período abordado. PALAVRAS-CHAVE: D. Domingos; trajetória; diplomacia. ABSTRACT: Amid the events of the early nineteenth century, few figures stand out amid the chaos caused by the imminence of the invasion of French troops in Portugal. Among these figures, was D. Domingos Antonio de Sousa Coutinho. It intends to address the political life of this actor, pointing out that some elements of his career in his lifetime, from 1760 to 1833. I use some methods of renewed political history, especially regarding the use of sources such as matches. The sources used are the matches of the Earl of Funchal and the forms of the season as the Correio Braziliense, and secondary sources as the memoirs of José 222 Aluna do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 138 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Liberato, editor of Research Portuguez printed in England, but also references bibliography referring the period covered. KEYWORDS: D. Domingos, trajectory; diplomacy. Este artigo tem por finalidade abordar a trajetória de D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho, de maneira parcial. Mesmo não sendo a intenção primeira no desenvolvimento dessa pesquisa a biografia desse diplomata português, -se torna importante para que entendamos o contexto em que ele viveu, algumas de suas escolhas e transformações com o passar do tempo. Estudos que abordem a trajetória de um indivíduo merecem atenção devido aos percalços com que o historiador poderá se deparar. Uma atitude individual que a primeira vista poderia ser considerada uma contradição, nada mais pode indicar que o homem não segue uma linha reta e que ele não possui uma linearidade, e que tudo o que esse indivíduo é, faz parte das várias influências, experiências, expectativas, que estão em profunda confluência já que não são estáticas e estão em constante tensão. Baseada nisso, pretendo desenvolver um artigo que demonstra alguns resultados parciais da pesquisa sobre D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho, o Conde de Funchal. A noção de trajetória desenvolvida por autores como Giovani Levi, Pierre Bourdieu e Jaques Le Goff, e as idéias de micro e macro utilizadas pelo sociólogo Daniel Cefai, de certa forma se encontram223. Acredita-se que o micro, representado pelo próprio ator e o macro pelo contexto o qual ele pertence são indissociáveis, e que, se, pensados separadamente não fazem sentido. Segundo Daniel Cefai, é possível pensar o micro, não apenas como uma redução de escala, e que é plausível fazer o estudo sobre este indivíduo. Tal estudo, ajuda na compreensão de como os atores se relacionam, colaboram, expressam 223 CEFAI, Daniel. Expérience, culture et politique. In: Cultures politiques. Paris: PUF, 2001. 139 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 ou solucionam seus problemas. O indivíduo, nessa perspectiva não deve, contudo, ser isolado. É um estudo do micro, que permite perceber o ambiente em que o ator esteve envolvido mas que, ao mesmo tempo, nos dá uma noção estrutural.224 A relação estabelecida entre a História Política e as biografias formam um ponto essencial. Os trabalhos de Giovani Levi, Pierre Bourdieu e Jaques Le Goff são referências. Para Le Goff, ao produzir uma biografia o historiador deve indagar a trajetória do biografado a ele próprio, tendo por base o local de seu nascimento, estudo, suas relações sociais, as idéias que defendeu, bem como o contexto em que viveu.225 Outro autor importante na construção de trajetórias é Pierre Bourdieu que em sua “ilusão biográfica” considerou ser indispensável a reconstrução do contexto, ou seja, a “superfície social” em que o indivíduo age em campos de componentes diversas226 tal idéia foi compartilhada por Giovanni Levi. Este último, por sua vez, chama a atenção para a idéia de acharmos que os biografados “obedecem a um modelo de racionalidade anacrônico e limitado227”, demonstrando que não se deve achar que a vida do biografado segue uma linha reta, sem curvas. Levando em consideração esses três autores, podemos perceber que todos possuem um ponto em comum: acreditam que a biografia não deve seguir uma linearidade, e que os atores estudados não possuem uma “cronologia ordenada, uma personalidade estável, ações sem inércia e decisões sem incertezas”.228 A partir dos autores elencados acima, podemos ter em mente a noção de Cultura Política, principalmente, quando tratamos das trajetórias políticas de “nomes próprios”.229 Segundo Serge Bernstein, o conceito de Cultura Política pode adaptar-se a complexidade 224 Cf.: CEFAI. Op. Cit. LE GOFF, Jacques. Comment écrire une biographie historique aujourd’hui? Le débat, Paris, nº 54, mars/avril, 1989, pp. 48-54. 226 BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, Marieta e AMADO, Janaína (org). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. 227 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: Usos e abusos da História Oral. FERREIRA, Marieta e AMADO, Janaína (org). Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. 228 Idem. 229 BERSTEIN, Serge. A Cultura Política. In: RIOUX, Jean-Pierre e Sirinelli, Jean-François. Para um História Cultural. Lisboa: Editora Estampa, 1998. 225 140 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 dos comportamentos, rompendo ainda com a idéia de Cultura Política no singular, levando em consideração as várias componentes que a cercam e que estão em constante confluência. Se olharmos por esse âmbito, percebemos que os valores apreendidos pelo ator, não são estáticos e se modificam de tempos em tempos230. D. Domingos viu o caos na Revolução Francesa quando foi enviado como observador em 1790. Na França revolucionária, se deparou com o terror, o delírio e a anarquia231, talvez esse tenha sido o motivo de sua posição anglófila na política portuguesa. E é dessa maneira que pretendo reconstruir a vida de D. Domingos e as idéias que o influenciaram, que o formaram. Pode-se perceber que todas os vértices que foram levantados possuem uma ligação harmônica entre si. No estudo acerca de D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho, todas essas concepções são bastante plausíveis, já que se trata de um ator político, que possuía seus ideais, suas escolhas políticas, suas culturas políticas. De fato, alguns pontos de sua vida ainda não são conhecidos, já que a pesquisa ainda se encontra numa fase inicial. Mas é importante ressaltar que a bibliografia citada servirá de base para o desenvolvimento desse trabalho. Dito isso, o próximo passo é apresentar alguns pontos já conhecidos sobre o Conde. D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho, primeiro e único Conde de Funchal, título nobiliárquico que recebeu em 1808 da Rainha Maria I, juntamente com seu irmão, O Conde de Linhares. Foi também primeiro Marquês do Funchal, título que recebeu em 1833, pouco antes de sua morte. D. Domingos nasceu em Chaves232, e morreu na Inglaterra em 1833. Vindo de uma família da nobreza era filho de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho233 que foi 230 Cf.: CEFAI, Daniel. Expérience, culture et politique. In: Cultures politiques. Paris: PUF, 2001. ARAÚJO, Ana Cristina Bartolomeu de. As invasões francesas e a afirmação das idéias liberais. In: MATTOSO, José (org). História de Portugal. vol. V, Lisboa, Estampa, 1994. 232 Segundo Andree Mansuy, D. Domingos teria nascido em 1762, enquanto para Hélio Vianna, ele teria nascido em 1765. 231 141 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Conselho de S. M. F, sargento-mor dos Dragões de Chaves, Coronel de Cavalaria na praça Almeida, Governador e Capitão-general dos Reinos de Angola e de Benguela, embaixador em Madrid, entre outros e de D. Ana Luisa da Silva Teixeira de Andrade234. D. Ana Luisa, era filha de Maria Barbosa da Silva e neta de Matias Barbosa da Silva, um dos devassadores das Minas Gerais na época da exploração aurífera235. Seus irmãos também ocuparam lugares de destaque no Reino: o conhecido D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o Conde de Linhares, que fora diplomata e Ministro e Secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, cujo título, de Conde de Linhares, recebeu no mesmo dia em que seu irmão, também em 1808.236 Era igualmente irmão de D. José de Sousa Coutinho, principal diácono da patriarcal de Lisboa, entre os anos de 1811 e 1817, e de D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho que por treze anos foi governador do Grão-Pará.237 Segundo Hélio Vianna, D. Domingos descendia de duas das mais antigas casas do Reino, as do Coutinho, que vinham do tempo da fundação da monarquia e as do Sousa, descendentes de Afonso III, o Bolonhês. D. Domingos foi um homem de letras, poliglota, muitas de suas correspondências foram escritas em inglês, italiano e francês. Como nobre que o era, formou-se em Leis. Formado pela Universidade de Coimbra depois das Reformas Pombalinas.238 Segundo Hélio Vianna, em finais do século XVIII e inícios do XIX, onde se passou das idéias absolutistas e autoritárias do Marquês de Pombal aos ideais da Revolução Francesa e, posteriormente, do constitucionalismo liberal tanto Portugal quanto o Brasil, contou com uma geração de bacharéis que haviam saído, da recém-reformada Universidade de 233 O pai de D. Domingos, D. Francisco Inocêncio foi o negociador do tratado preliminar de Santo Ildefonso, acordado com a Espanha em 1777, fixando assim os limites territoriais. 234 VIANNA, Hélio. Um diplomata português neto de brasileira. In: Jornal do Comércio, 1957 235 Idem. 236 ZUQUETE, Afonso Eduardo Martins. Nobreza de Portugal e do Brasil. Lisboa. Editora Zairol, 1989. Vol 2. 237 Cf: VIANNA, Op. cit. 238 Idem. 142 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Coimbra. Segundo o mesmo autor, o que também é compartilhado por Kenneth Maxwell239, foi essa universidade que forneceu estadistas, diplomatas e cientistas, inclusive, D. Domingos: que segundo Hélio Vianna era “ (...) dos mais interessante, porém dos menos conhecidos (...).”240 Iniciou sua carreira diplomática na Dinamarca em 1788, depois foi enviado a Turim de 1796 a 1803, quando se tornou embaixador na Inglaterra até 1814. Mais tarde, foi enviado a Roma onde ficou até 1828.241 José Liberato, editor do Investigador e contemporâneo de D. Domingos nos deixou uma fonte bastante rica e que nos ajuda a compreender melhor a figura de Funchal, descrevendo “Era aquele nosso embaixador, bem que de figura externa pouco gentil, homem muito instruído, de maneiras agradáveis e até engraçadas, e inimigo declarado de três altas classes da sociedade, como eram - padres, inquisidores e desembargadores, dos quais dizia tinham vindo todos os males a Portugal; porque por eles as leis tinham sido feitas, e por sempre tínhamos sido governados”242 Gozava de grande prestígio, fato que fica claro, quando de sua saída da embaixada londrina em 1814, em que fez uma grande festa em que estava presente o Príncipe Regente inglês, ainda segundo José Liberato: “A quem ele mais familiarmente tratava, porém ao mesmo tempo sem faltar a toda etiqueta de uma rigorosa civilidade, era o Conde de Funchal, a quem ele denominava o seu Sousa. (...) De estatura mui pequena como era, mal feito de corpo, e ainda mais de figura, e agora vestido com a sua rica farda de embaixador sobre a qual cabiam uma gram-gruz, e os crachás de muitas ordens, 239 MAXWELL, Kenneth. Geração de 1790 e a idéia de Império Luso Brasileiro. In: Chocolate, Piratas e outros malandros: Ensaios Tropicais. São Paulo, Ed: Paz e Terra, 1999. 240 Idem. 241 SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portrait d’um homme d’Etat : D. Rodrigo de Souza Coutinho, Comte de Linhares 1755-1812. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian; 2002-2006. vol 1. 242 CARVALHO, José Liberato Freire. Memórias da vida de José Liberato. Tipografia de José Baptista Morando, Lisboa, 1855. 143 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 representava um papel tão fora do comum, que parecia interessar muito o Príncipe, que dele muito gostava “243. O período vivido pelo Conde de Funchal foi bastante conturbado. Em finais do século XVIII e inícios do XIX, a política internacional se tornou decisiva para a Europa. Em inícios do século XIX, Napoleão Bonaparte, auto intitulado imperador da França, viu como entrave aos seus interesses a Inglaterra. Na tentativa de atingir a economia britânica, Napoleão decretou o bloqueio continental em 1806, que proibiu todas as nações da Europa de comercializarem produtos com a Grã-Bretanha.244 O bloqueio alvejou diretamente o Império Português que, na iminência de uma invasão das tropas francesas, teve que mudar sua estratégia diplomática tradicionalmente neutra245, por imposição tanto da Inglaterra quanto da França.246 Internamente, Portugal encontrava-se igualmente dividido, havendo dessa maneira, “duas orientações diplomáticas em confronto”247, em que “o interesse e o sentimento associam-se nas representações que se criam da conduta dos diplomatas”. 248 De um lado, simpatizantes dos franceses eram representados pelo “partido francês”, que tinha como maior nome Antônio de Araújo Azevedo, futuro Conde da Barca, que mais tarde fez inúmeras acusações a D. Domingos e ao Conde de Linhares, acusações essas que mereceram uma resposta por parte de D. Domingos, em uma impressão denominada Resposta pública a denúncia secreta que tem por título “Representação que sua 243 CARVALHO, Op. Cit. pg 150-151. SCHWARCZ, L. K. M., AZEVEDO, Paulo César e COSTA, Ângela Marques da. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. 1. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. vol. 1. Og. 194. 245 Cf: ARAUJO. Op. Cit. Portugal, diante dos acontecimentos que envolviam a Independência das Treze Colônias manteve-se Neutro. Anos mais tarde, em 13 de julho de 1782, aderiu a Liga dos Neutros,negociada por Luís Pinto de Sousa Coutinho. Este, assinou acordos bilaterais com os Estados Unidos e Rússia. 246 Cf: SCHWARCZ, L. K. M., AZEVEDO, Paulo César e COSTA, Ângela Marques da. Op. Cit. 247 PEDREIRA, Jorge e COSTA, Fernando Dores. D. João VI, um príncipe entre dois continentes. São Paulo: Companhia das letras, 2008. Pg. 88 248 ARAÚJO. Op. Cit pg 28. 244 144 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Magestade fez Antonio de Araujo de Azevedo em 1810”. sob o pseudônimo de R. da C. Gouveia.249 Por outro lado em Portugal se tinha o grupo dos liderados por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, partidários do governo britânico, oriundos do “partido inglês”. Em meio a essa divisão, D. Domingos também se posicionou, aí pode-se perceber a influência das culturas políticas que o cercavam. Sobre sua postura política gozamos de uma gama de opúsculos sobre assuntos diplomáticos e políticos . Além da Resposta dada a Antônio de Araújo Azevedo era de sua autoria Notas ao Pretendido Manifesto da nação portuguesa aos soberanos da Europa, Carta escrita El-Rei Nosso Senhor pelo Conde de Funchal, quando nomeado um dos governadores do Reino em 1819, e tantos outros que nos dá indícios sobre suas culturas políticas.250 Alguns de seus contemporâneos falaram do posicionamento dele, assim como José Liberato em suas memórias declarou que Funchal passara parte de sua vida em Londres onde havia se tornado um anglófilo convicto, descrevendo: “ Quanto a política era inglês nos ossos, inimigo figadal dos franceses, e monarquista exaltado”.251 Isso fica claro em uma publicação sua no periódico Correio Braziliense, em que D. Domingos anonimamente escreve uma carta sobre a conduta de Araújo de Azevedo, em setembro de 1812. Nesta carta, ele fala sobre as invasões francesas em Portugal e da vinda Família Real para o Brasil, chamando Napoleão Bonaparte de tirano.252 Segundo Valentim Alexandre, o conceito que melhor definiu as circunstâncias vividas pelo Império Português, foi o da “vulnerabilidade estrutural”, mas não de crise. Tal vulnerabilidade já era visível desde o século XVII, tornando-se ainda mais clara após os conflitos internacionais que atingiram a Europa em finais do século XVIII, que se 249 GOUVEIA, R. da C..Resposta pública a denúncia secreta que tem por título “Representação que sua Magestade fez Antonio de Araujo de Azevedo em 1810”, Londres, 1820. 250 Cf: ZUQUETTE, op cit. 251 CARVALHO apud VIANA, 1957. 252 Correio Braziliense, 1812. Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Digital.Disponível em www.bn.br. 145 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 acentuaram no início do século XIX e que culminou com acontecimentos de 1807 253. As pretensões portuguesas eram amplas para uma pequena potência como Portugal, entre os pontos fundamentais para o Estado lusitano estavam: a defesa do território metropolitano, especialmente contra os ideais expansionistas da Coroa Espanhola; a proteção dos tráficos coloniais, essenciais para o comércio externo; a fixação de fronteiras favoráveis, principalmente para o Brasil; e a preservação das colônias na costa Africana, principal fonte de mão-de-obra escrava.254 O apoio fundamental a essas aspirações veio da GrãBretanha, com quem o Império Português fixou tratados desde o século XVII, fato que não se alterou até 1807255. Apesar disso, diante de um possível conflito pós-bloqueio continental, o governo Português não desejava um enfrentamento com a França, tentando permanecer, dessa maneira, neutro. A tentativa de estabelecer acordos secretos com os dois lados, não agradou o governo britânico. O Príncipe Regente havia enviado uma carta ao Rei Inglês, pedindo que salvasse a monarquia portuguesa fingindo estar em guerra. D. Domingos negociou a convenção de 22 de outubro de 1807, que visava regulamentar as relações entre Portugal e Inglaterra em tempos de crise. A assinatura dessa convenção tornava quase que obrigatória a retirada da Corte para o Brasil e a ruptura com a França. O artigo no 60 que garantia a proteção da Grã-Bretanha para que a Família Real Portuguesa chegasse à colônia do Brasil, não estava definido devido à insatisfação do governo inglês com uma ratificação parcial na convenção, e se recusava a endossá-la. Às vésperas da transposição da Coroa Portuguesa, o acordo que remetia a escolta britânica às esquadras reais, não estava totalmente estabelecido. Inclusive como exemplo da desconfiança inglesa, além da que foi citada anteriormente, a ocupação britânica na Ilha da 253 ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império: Questão nacional e questão colonial na crise do antigo regime português. Lisboa.Edições Afrontamento, 1992. Pg 105. 254 Idem. 255 Idem. Pg 93. 146 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Madeira , também fez parte da ação ressabiada dos ingleses em relação ao Governo Português.256 Nesse momento, D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho, teve papel preponderante nas negociações. E como ele próprio expressou: a “Autoridade Soberana boiava sobre o Oceano”257, enquanto o reino português encontrava-se sem meios de agir, tanto no contexto internacional quanto em seus territórios. “O embaixador em Londres, D. Domingos de Sousa Coutinho – tomava sobre si ‘representá-la e defendê-la’ velando ‘por todas partes da Monarquia que tratam com a Grã-Bretanha’ apesar de desprovido de instruções ou ‘ordens de qualidade alguma‘”.258 D. Domingos acordou com o representante inglês, ministro Canning, a sanção para que tudo fosse resolvido. Em troca dessa escolta, seria certo de que o Governo Português deveria aceitar todas as estipulações impostas, o que resultou posteriormente na abertura dos portos às nações amigas em 1808 e nos tratados de 1810. Após o acordo feito com Canning em 1807, no contexto da vinda da Família Real para o Brasil. D. João VI, conferiu plenos poderes a D. Domingos para um congresso de paz realizado na Grã-Bretanha259. No contexto dos tratados de 1810, esteve envolvido nas negociações que abarcavam um acordo entre os dois países. O primeiro documento relacionado a esses tratados foi feito e redigido pelo embaixador português,260 a pedido do 256 Idem. Pg 170. Idem. Pg 170. 258 Idem. PEREIRA apud ALEXANDRE. Pg 170. 259 Carta do príncipe regente de Portugal a D. Domingos Antônio de Sousa Coutinho de 20/01/1809. Fundação Biblioteca Nacional/ Manuscrito I-29,14,55 n° 01-02. 260 Cf: PEDREIRA E COSTA, 2008. pg. 229 257 147 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Lord Stragford, com quem teve uma relação de proximidade261 e levou o projeto para ser novamente discutido no Rio de Janeiro junto a Imperial Corte Lusitana.262 Firmados os tratados em 1810, o descontentamento com o Governo Português ficou clarificado com a reação demonstrada por Hipólito da Costa na Inglaterra, editor do periódico Correio Braziliense. Publicou, no entanto, o tratado e exibiu um exame deste em que alguns pontos eram criticados. Segundo Evaldo Cabral de Mello, o tratado com a Inglaterra teria desiludido o jornalista e redator do Correio Braziliense.263 O que ocasionou um certo mal estar entre Hipólito e D. Domingos. As publicações de artigos contra a Coroa Portuguesa no Correio Braziliense, numa Inglaterra onde a imprensa era livre, fez com que, em 1811, esse jornal fosse proibido em Portugal.264 Em oposição às críticas feitas no Correio, foi criado em 1812, O investigador Portuguez em Inglaterra, impresso português editado na Grã-Bretanha, que perdurou com esse objetivo até 1814.265 Em 1812, D. Rodrigo de Sousa Coutinho morreu e D. Domingos enviou uma carta ao Lord Strangford, lamentando o acontecido266. A morte de D. Rodrigo parece ter feito muita diferença na vida de D. Domingos dali para frente, em meio a divisão do que poderia ser chamado de “partido inglês” e “partido francês”, até mesmo em relação a corte, um perdia o prestigio frente ao outro. Depois disso, D. Domingos, foi inclusive convidado a se retirar da embaixada inglesa, coisa que não o agradava, trazendo problemas para que o Conde de Palmela assumisse o seu posto em Londres. Após sua saída de Londres, D. Domingos foi enviado a Roma, onde ficou de 1814 a 1828. Em 1828, ainda se mostrava 261 A relação de amizade entre o Lord Strangford e D. Domingos, pode ser conferida nas correspondências trocadas por ambos estão disponíveis no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Lata 434. Pastas 15 a 17. 262 Cf: ALEXANDRE, 1992. Como podemos perceber, a participação de D. Domingos nos tratados de 1810 fica clara tanto em suas correspondências oficial, guardadas no Arquivo do Itamaraty, quanto em suas correspondências particulares trocadas tanto com seu irmão, Conde de Linhares, quanto com o Lord Strangford, ministro inglês no Brasil de 1808 a 1815, em Lisboa desde 1806. 263 MELLO, Evaldo Cabral. Um imenso Portugal. São Paulo. Editora 34,2002. Pg. 50-51. 264 VARGUES, Isabel Nobre. O Processo de formação do primeiro movimento liberal: A Revolução de 1820. In: MATTOSO, José (org). História de Portugal. vol. V, Lisboa, Estampa, 1994. Pg 46. 265 Idem. Pg 48. 266 COUTINHO, Domingos Antônio de Sousa. Carta ao Lord Strangford. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1970. Manuscrito/ Lata 434, pasta 14. Documento 6. 148 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 um monarquista exaltado, como dito por José Liberato. Um fato interessante relacionado ao seu posicionamento frente a Corte, pode ser demonstrado no artigo de Pedro Vilas Boas Tavares em que D. Domingos, então embaixador português junto da Santa Sé (assim como o Conde Palmela embaixador de Portugal em Londres) suspendeu toda a correspondência com Lisboa, com prévia aprovação romana a essa resolução, quando do golpe no trono de D. Miguel em Portugal.267 Em 1833, já de volta a Londres, D. Domingos morreu pouco depois de receber o título de primeiro Marquês de Funchal. É importante ressaltar que a trajetória de D. Domingos não está completamente descrita nessas páginas, alguns pontos sobre sua vida ainda estão por serem descobertos., Mas mais importante ainda, acredito que seja perceber que ele nos deixou um grande número de fontes os quais poderemos utilizar para o desenvolvimento dessa pesquisa. A importância de D. Domingos para as relações diplomáticas lusitanas se torna clara após a iniciação deste estudo. Havendo lacunas sobre sua vida, suas relações políticas, que influenciaram na diplomacia portuguesa, tenho como intenção neste trabalho, que ainda se encontra em gestação, preencher tais lacunas, tão obscuras mas ao mesmo tempo interessantes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Fontes Primárias: Carta Régia de Janeiro de 1808. Ver Arquivo Nacional - S.M.I.J.J. - 317: Memorial dirigido pelo conde da Ponte a d. João, príncipe regente, solicitando a abertura dos portos. Bahia, 27 jan. 1808. 267 TAVARES, Pedro Vilas Boas. Depois da tempestade... D. Jerónimo José da Costa Rebelo,Bispo do Porto: contexto para duas cartas suas, Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 149 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 CARVALHO, JOSÉ LIBERATO FREIRE. Memórias da vida de José Liberato. Tipografia de José Baptista Morando, Lisboa, 1855. Correio Braziliense, Fundação Biblioteca Nacional, Biblioteca Digital.Disponível em www.bn.br. GOUVEIA, R. da C..Resposta pública a denúncia secreta que tem por título “Representação que sua Magestade fez Antonio de Araujo de Azevedo em 1810”, Londres, 1820. MORENO, Carmen Tereza Coelho(org). Colecção de Linhares. Centro de Estudos Damião de Góis: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 2001. Fundação Biblioteca Nacional. Coleção de Correspondências do Conde de Funchal, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1970. Manuscrito/ Lata 434, Pastas 15 a 17. O Investigador Português em Inglaterra. Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Periódicos/ Periódicos Raros. Artigos e livros: ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império: Questão nacional e questão colonial na crise do antigo regime português. Lisboa.Edições Afrontamento, 1992. ____________, A carta régia de 1808 e os tratados de 1810. In: OLIVEIRA, Luís Valente de. e RICUPERO (org). A Abertura dos portos. São Paulo: Editora Senac São Paulo,2007. ARAÚJO, Ana Cristina Bartolomeu de. As invasões francesas e a afirmação das idéias liberais. In: MATTOSO, José (org). História de Portugal. vol. V, Lisboa, Estampa, 1994. BERSTEIN, Serge. A Cultura Política. In: RIOUX, Jean-Pierre e Sirinelli, Jean-François. Para um História Cultural. Lisboa: Editora Estampa, 1998. BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, Marieta e AMADO, Janaína (org). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. 150 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 CEFAI, Daniel. Expérience, culture et politique. In: Cultures politiques. Paris: PUF, 2001. ELIAS, Nobert. A Sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro. Ed. Jorge Zahar, 1994. LE GOFF, Jacques. Comment écrire une biographie historique aujourd’hui? Le débat, Paris, nº 54, mars/avril, 1989, pp. 48-54. LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: Usos e abusos da História Oral. FERREIRA, Marieta e AMADO, Janaína (org). Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. MAXWELL, Kenneth. Geração de 1790 e a idéia de Império Luso Brasileiro. In: Chocolate, Piratas e outros malandros: Ensaios Tropicais. São Paulo, Ed: Paz e Terra, 1999. MELLO, Evaldo Cabral. Um imenso Portugal. São Paulo. Editora 34,2002. PEDREIRA, Jorge e COSTA, Fernando Dores. D. João VI, um príncipe entre dois continentes. São Paulo: Companhia das letras, 2008. SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portrait d’um homme d’Etat : D. Rodrigo de Souza Coutinho, Comte de Linhares 1755-1812. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian; 2002-2006. vol 1. SCHWARCZ, L. K. M., AZEVEDO, Paulo César e COSTA, Ângela Marques da. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. 1. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. TAVARES, Pedro Vilas Boas. Depois da tempestade... D. Jerónimo José da Costa Rebelo,Bispo do Porto: contexto para duas cartas suas, Faculdade de Letras da Universidade do Porto. VIANNA, Hélio. Um diplomata português neto de brasileira. In: Jornal do Comércio, 1957. 151 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 VARGUES, Isabel Nobre. O Processo de formação do primeiro movimento liberal: A Revolução de 1820. In: MATTOSO, José (org). História de Portugal. vol. V, Lisboa, Estampa, 1994. ZUQUETE, Afonso Eduardo Martins. Nobreza de Portugal e do Brasil. Lisboa. Editora Zairol, 1989. Vol 2. 152 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Política Industrial Comparada: o caso de Brasil e Espanha268 Maedison de Souza Email: [email protected] Diogo Gomes de Campos Email: [email protected] RESUMO: Na Espanha a preocupação tecnológica marca as últimas décadas e que não se modifica no período aqui tratado. No Brasil, tendo em vista que o governo anterior ao aqui tratado havia uma diferente concepção de política industrial e de pouco resultado, o governo do presidente Luiz Inácio Lula de Silva assume com os olhos voltados para esse setor da economia. O presente texto tem por objetivo apresentar uma abordagem sobre a política industrial durante o governo representado pelo presidente José Luis Rodriguez Zapatero, em comparação com a gestão do governo de Luis Inácio Lula da Silva. PALAVRAS-CHAVE: Política Industrial; Brasil; Espanha. ABSTRACT: In Spain the concern technology marks the last decades and that does not change during the period that is here. In Brazil, considering that the previous government had treated here to a different conception of industrial politics and poor results, the government of President Luiz Inacio Lula de Silva took his eyes focused on this sector of the economy. This paper aims to present an approach to industrial politics during the government represented by President José Luis Rodriguez Zapatero, compared with management by the government of Luis Inacio Lula da Silva. 268 Texto apresentado no I Seminário de graduandos e pós‐ graduandos em História da UFJF por Maedison de Souza e Diogo Gomes de Campos (Graduandos em História – UFJF) 153 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 KEYWORDS: Industrial Politics, Brazil, Spain INTRODUÇÃO Ao nos debruçarmos sobre o tema de Política Industrial acreditamos que primeiramente o significado dessa expressão deva estar claro, com o intuito de melhor compreendermos o assunto aqui tratado. Entendemos como Política Industrial o conjunto de medidas propostas e aplicadas por determinado governo, que visa o direcionamento da cena industrial de um país. É aqui que percebemos os delimitadores da produção da nação, ou seja, a dinâmica produtiva aplicada por um país. Passando pelas propostas de investimento nas áreas mais inovadoras até aquelas que pouco são transformadas. Acreditamos que PI (Política Industrial) “propõe que há uma co-evolução de tecnologias, de estruturas de empresas e de indústrias, e de instituições em sentido amplo, incluindo instituições de apoio à indústria, infra- estruturas, normas e regulamentações, tendo a inovação como força motora. Assim, neste enfoque a PI é ativa e abrangente, direcionada a setores ou atividades industriais indutoras de mudança tecnológica e também ao ambiente econômico e institucional como um todo, que condiciona a evolução das estruturas de empresas e indústrias e da organização institucional, inclusive a formação de um sistema nacional de inovação. Isto determina a competitividade sistêmica da indústria e impulsiona o desenvolvimento econômico.”269 No estudo do setor industrial é importante considerarmos que aqui tratamos da sua forma mais ampla. Não nos referimos às unidades produtivas que são as empresas ou firmas, mas sim, ao complexo de produtividade. As firmas podem ser consideradas como “unidades primárias de ação” que produzem na forma de capital, trabalho, tecnologia e 269 SUZIGAN & FURTADO; 2006 154 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 terra, podendo variar de tamanho e sendo classificadas como grandes, medias, pequenas ou microempresas. A indústria consiste no conjunto de firmas que produzem artefatos idênticos ou semelhantes na sua constituição física, ou baseados na mesma matéria prima.270 Como descrevemos acima, a PI é sugestiva a cada país como iniciativa governamental e que portanto está vinculada à sua cultura política. É observando dois países de diferentes trajetórias históricas, tal qual Brasil e Espanha, é que podemos perceber que nações que investem com mais intensidade em inovações tecnológicas estão dentro do circulo dos ditos países desenvolvidos, ou centrais, enquanto que os subdesenvolvidos, ou periféricos, são receptores de inovação e principais produtores de bens de consumo.271 Os governos que se prestam a ter um planejamento de sua governabilidade durante o seu período de atuação buscam uma organização de sua estrutura para que se tenha uma melhor harmonia entre os setores que pretende abarcar. Percebemos que Espanha e Brasil possuem estruturas completamente diferentes e que assim possuem papeis diferentes no cenário mundial. O primeiro está entre os países centrais em que a sua produção está mais voltada para produtos que envolvem maior desenvolvimento tecnológico. Já o segundo está sustentado por uma política que visa a produção de bens de menor perenidade. Nossas fontes primárias retratam o ano de 2005 em que Luiz Inácio Lula da Silva é o presidente brasileiro que se propõem a pensar uma estrutura de PI para o Brasil, tendo e vista os anos de ostracismo da década de 1990. Já Espanha é governada pelo primeiro ministro José Luis Rodriguez Zapatero que mantém uma prática de planejamento que seu país faz regularmente. BRASIL 270 271 KON; 1994 GOLDENSTEIN; 1994 155 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Com a implementação definitiva no início da década de 90 do neoliberalismo no Brasil, a Política Industrial, como entendida nesse trabalho, foi deixada de lado, isso porque ela requer uma forte intervenção do Estado na economia, atitude essa contrária aos neoliberais que estavam no Governo. O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assume a Presidência com a proposta de retomada da PI na tentativa de acender o crescimento do setor industrial que estava estagnado. Para isso ele lança a Política Industrial Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE). A PITCE, foi lançada pelo Governo Lula em 2004. Com o objetivo de inovação, agregar valor aos produtos e serviços das indústrias brasileiras e elevar o padrão de competitividade da indústria nacional. Ela abrange três eixos, o primeiro é formado por um conjunto de instrumentos horizontais que colaboram para a modernização industrial, para o aumento da capacidade inovadora das empresas, para uma melhor inserção das firmas brasileira no mercado internacional e para o aperfeiçoamento do ambiente institucional1. O segundo eixo determina como opções estratégicas os setores de software, semicondutores, bens de capital e fármacos e medicamento. Alguns desses setores como software, semicondutores e bens de capital, são elementos fundamentais para modernização da indústria brasileira. E por fim, o terceiro eixo se refere as ações portadoras de futuro, como a biotecnologia, nanotecnologia e energias renováveis. Espera-se com a implantação desses eixos colocar o Brasil em condições de disputar de igual para igual o desenvolvimento desses setores com os principais países do mundo. 2 Propomos-nos agora a fazer um detalhamento de cada eixo de atuação da PITCE, dando destaques para alguns programas e metas que o Governo pretende alcançar. O 1 Acompanhamento da Política Industrial Tecnológica e de Comércio Exterior, PITCE 2 anos e PITCE 3 anos. 2 idem 156 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 primeiro eixo é as Linhas de Ações Horizontais, que destacamos de princípio alguns marco regulatórios criados para dar andamento a PITCE, como a Lei 10.973/2004 ou Lei de Inovação, que indica uma nova relação entre universidades e institutos públicos de pesquisas e empresas privada, além de possibilitar uma participação mais ativa do Estado no apoio à inovação empresarial, por exemplo a lei permite o investimento público em empresas privadas e cria estímulos para que as empresas contratem pesquisadores para seu quadros ou que pesquisadores constituem suas próprias empresas. Outro marco é a Lei 11.196/2005, ou a Lei do Bem, que estabelece um conjunto de instrumentos para apoio à inovação na empresa, esses instrumentos reduzem o custo e o risco da inovação na grande empresa, através de incentivos fiscais. Lei de Biosegurança, Lei 11.105/2005, é um marco decisivo ao viabilizar a pesquisa com organismos geneticamente modificados e com as células-troncos. Um dos obstáculos para a inovação é o financiamento e o Brasil vem corrigindo isso. Ao lodo dos marcos legais citados acima, vale destacar a (re)entrada do BNDES como grande financiador de projetos de inovação e isso se soma a elevação do orçamento da Finep. Foram criadas novas linhas de financiamento para pesquisas, desenvolvimento e inovação e alguns programas de apoio a empresas promovido pela Finep, como Pro Inovação que estimula projetos de inovação de médias e grandes empresas, com taxas de juros anuais entre 4% e 9%. E o Programa de Apoio à Pesquisa na Pequena Empresa (Pappe) também da Finep, para alavancar micro e pequenas empresas de base tecnológica. Outro programa para micro e pequenas empresas é o Juros Zero, que atende empresas inovadoras no aspecto gerencial, comercial, de processo ou de produtos/serviços. 3 Dentro da proposta de crescimento, desenvolvimento industrial e estimulo à inovação tecnológica, um ponto importante é a inserção externa ou exportações. O Brasil 3 idem 157 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 vem aumentando sua participação no comércio exterior, em 2002 as exportações brasileiras eram de 0,96% das exportações mundiais, já esse número em 2005 chegou a 1,17%. Esses resultados não resultam apenas na expansão do mercado mundial, mas também a uma série de medidas de políticas como: A) apoio às exportações com financiamento, simplificação de procedimentos e desoneração tributária; B) promoção comercial e prospecção de mercados; C) estimulo à criação de centros de distribuição de empresas brasileiras no exterior e sua internacionalização; D) apoio a inserção em cadeias internacionais de suprimentos; E) apoio a consolidação da imagem do Brasil e de marcas brasileiras no exterior. A grande responsável pela articulação dessas políticas é a APEX-Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimento). Criada sob a égide do Sebrae, é um serviço social autônomo recebendo investimentos do chamado Sistema S. Com o início do Governo Lula, a agência passou a ser ligada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). A APEX-Brasil atua na alavancagem das vendas em mercados alvos e em mercados não tradicionais. Uma das missões da APEX é ir até o país que seja interessante fazer negociações para levantar as possibilidades de negócios. A promoção comercial também é atividade da APEX-Brasil, ela apóia e incentiva a participação das empresas brasileiras em eventos internacionais. Ainda dentro das orientações do primeiro eixo da PITCE, um fator importante para o desenvolvimento tecnológico e a inovação, é a modernização industrial, apesar de ser um fator clássico nas políticas que obtiveram o desenvolvimento, a PITCE traz algumas novidades como o apoio ao desenvolvimento organizacional, gerencial, creditício e para a certificação de produtos e processos de pequenas e médias empresas e o apoio articulado a arranjos produtivos locais (APLs)4 . Chamamos a atenção para o Modermaq e o Cartão 4 idem 158 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 BNDES, o primeiro é um programa de modernização de equipamentos voltado para pequenas e médias empresa e o segundo, que também é destinado para pequenas e médias empresas, funciona como um cartão de credito pessoal, porém, são empréstimos para as empresas realizarem seus investimentos em bens de produção. Um ambiente institucional também é muito importante para que as políticas proposta pela PITCE dêem resultados, por isso, a desoneração produtiva, um ponto importante para o desenvolvimento industrial é a redução ou até mesmo a eliminação da tributação sobre o investimento, esse era um ponto que atrapalhava o crescimento do Brasil, porque se pagava para investir. Um elemento importante para estimular o investimento é a simplificação de abertura e fechamento de empresas. Diminuindo a burocracia e os impostos, o individuo ou grupo fica mais à vontade para investir ou abri uma nova empresa. O segundo eixo da PITCE é a chamada opções estratégicas, que foram definidas com base em alguns critérios como: portadoras de dinamismo crescente e insustentável; responsáveis por parcelas expressivas do investimento internacional em P&D; promotoras de novas oportunidades de negócios; envolvida diretamente com inovação de processos, produtos e formas de uso; capazes de adensar o tecido produtivo; importantes para o futuro do país; com potencial para o desenvolvimento de vantagens comparativas dinâmicas. Segundo a PITCE, a área de semicondutores é de extrema importância para o desenvolvimento do país, se o Brasil não desenvolver projetos de desenvolvimento de chips, grande parte da renda das cadeias internacionais de inúmeros produtos tendem a serem drenados para fora do país. O programa referente a área de semicondutores tem dois pilares: a capacitação local em projetos de prototipagem e a atração de investimentos em fabricação. Um outro programa na área dos semicondutores que em breve entrará na vida de toda a população brasileira é a TV Digital, que em algumas cidades do Brasil já é uma 159 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 realidade. O segmento que mais cresce no setor de tecnologia da informação é o de software, e o Brasil teve uma participação muito pequena, por isso foram desenvolvidos alguns programas com os seguintes pilares: fortalecimento da indústria através de melhores esquemas de financiamento e apoio à consolidação e criação de grupos nacionais de maior porte; atração de atividades de prestação de serviços, envolvendo basicamente grupos multinacionais do setor, para ajudar na melhoria da imagem mercadológica do software brasileiro no exterior e na formação de mercados de trabalho mais amplo; formação de pessoal e fomento ao desenvolvimento de segmentos de futuro. O financiamento é um dos fatores principais na decisão de compra de bens de capital, daí a importância das linhas especiais de financiamento do BNDES, que está nos pilares do programa de bens de capital, junto com a; facilitação para aquisição de máquinas e equipamentos por todos os segmentos da economia via o programa já citado Modermaq; e o esforço de comercialização internacional, através de contratos entre o setor produtor e a APEX-Brasil.5 Os medicamentos são bens sociais e estratégicos por isso também merecem destaque na PITCE. Foram desenvolvidos programas para estimular a produção de medicamentos, e de medicamentos genéricos, incentivar atividades de P&D, a biotecnologia, a exploração insustentável e modernização de laboratórios. Cabe também por em relevo implementação dos Fóruns de Competitividade que é uma iniciativa do Governo para proporcionar um canal de comunicação entre o setor produtivo e o Estado, canal esse que havia sido extinto pelas administrações anteriores e que são de extrema importância para que o Governo saiba quais as dificuldades que o setor produtivo está tendo e como soluciona-los. O Terceiro e último eixo da PITCE corresponde às Atividades Portadoras de Futuro, são aquelas com potencial para transformar radicalmente produtos, processos e 5 A APEX-Brasil transita por toda a PITCE, facilita o acesso ao mercado exterior por todos os setores da economia brasileira. 160 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 formas de uso a médio e longo prazo. Dentro dessas atividades, a biotecnologia e a nanotecnologia se destacam, junto com as energias renováveis. De acordo com um estudo do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) é apontado o segmento de nanotecnologia como uns dos mais promissores para o desenvolvimento de vantagens comparativas dinâmicas pelo Brasil. Está havendo uma aproximação de setores produtivos com o desenvolvimento de nanotecnologia no âmbito da Iniciativa Nacional para Inovação. Na área de biotecnologia, a ação mais importante foi a criação do Fórum de Competitividade de Biotecnologia, coordenado pelos Ministérios do Desenvolvimento, da Ciência e Tecnologia e da Saúde e contando com representantes do Estado, da iniciativa privada e da comunidade acadêmica. O foco inicial do Fórum foi a elaboração de algumas estratégicas como o Programa de Biotecnologia do Ministério da Ciência e Tecnologia, e o Centro de Biotecnologia da Amazônia. Na área de energias renováveis, o álcool desponta como uma alternativa energética e com uma grande oportunidade para o Brasil, devido aos programas de adição de álcool na gasolina. O Biodiesel também está se tornando uma realidade, o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel, estimula o desenvolvimento tecnológico e o desenvolvimento regional e social, ao incentivar a produção oriunda da agricultura familiar. ESPANHA Numa economia mundializada em que os países buscam, não apenas sua melhoria interna existe também a preocupação da representatividade no cenário mundial. O ambiente doméstico tem de estar em sintonia com as interações internacionais. É fato que cada país do globo possui uma intencionalidade quando das suas proposições produtivas. Alguns possuem seu foco na produção de bens básicos ao consumo, outros se colocam 161 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 como produtores de tecnologia e direciona a forma produtora. Debate esse bastante trabalhado pelos teóricos que entende a organização mundial dividida entre países centrais (produtores de tecnologia) e periféricos (produtores de produtos). Os países do continente europeus são considerados como aqueles que se dispõe a ditar o sentido tecnológico a ser seguido pelos países ditos periféricos, e na Espanha não é diferente.272 Ao focarmos nossos olhos para os documentos oficiais apresentados pelo governo espanhol, no que tange suas preocupações produtivas, podemos perceber o quanto é substancial o investimento em programas que visam as inovações tecnológicas. Escolhemos para esse trabalho o documento “Memoria de Actividades de Investigación Cientifica, Desarrollo Tecnológico e Innovación” de 2005. Esse documento descreve quais foram as iniciativas do governo espanhol dentro das atividades que visam a qualificação e especificação na produção. É o resultado anual (2005) baseado na proposição maior estabelecida no “Plano Nacional de Investigación Cientifica, Desarrollo Tecnológico e Innovación 2004-2007” (Plano de I+D+I). O plano de I+D+I 2004-2007 tem como objetivos: incrementar o nível da ciência e tecnologia espanhola, tanto em tamanho quanto em qualidade; Aumentar o numero e a qualidade dos recursos humanos, tanto no setor público quanto no privado; Fortalecer o processo de internacionalização da ciência e tecnologia espanhola, com especial atenção ao Espaço Europeu de Investigação e Inovação; Potencializar o papel do sistema público na geração de conhecimento de caráter fundamental; Melhorar a visibilidade e comunicabilidade dos avanços da ciência e tecnologia na sociedade espanhola; Reforçar a coordenação entre a administração geral do Estado e as Comunidades Autônomas e, em particular, melhorar a coordenação entre o plano de I+D+I e os planos de I+D+I das 272 Não é considerado no grupo dos países centrais apenas os do continente europeu. Estamos considerando nesse texto o foco específico na Europa, como uma escolha didática para que possamos descrever melhor o país aqui tratado que é a Espanha. 162 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Comunidades Autônomas; Melhorar a coordenação entre os órgãos de gestão do Plano Nacional (PN), assim como aperfeiçoar os procedimentos de avaliação e gestão; Impulsionar a cooperação e coordenação entre as instituições do setor público de I+D+I; Elevar a capacidade tecnológica e inovadora das empresas; Promover a criação do tecido empresarial inovador; Contribuir para a criação de investimento em I+D+I; Melhorar a interação, colaboração e associação entre o setor público de I+D e o setor empresarial. 273 Tendo todos esse objetivos em mãos podemos perceber que o propósito governamental passa diretamente por uma proposta Estatal, ou seja, mais do que um plano de governo existe um caráter futurista que visa a qualidade e tecnológica na sua PI. A organização dos países centrais, e principalmente os europeus, é visível. Temos mais uma prova quando observamos o Plano Nacional de Reformas que é lançado em 2005 e que possui os seguintes eixos: Plano de fomento empresarial; Mercado de trabalho e Diálogo Social; Mais competência, melhor regulação, eficiência das administrações públicas e competitividade; Estratégia I+D+I (INGENIO 2010); Aumento e melhora do capital humano; Plano estratégico de infra estrutura e transporte (PEIT) e programa AGUA; Reforço da estabilidade macroeconômica e orçamentária. Dentro desses sete eixos, elaborados pela Unidade Permanente de Lisboa conjuntamente com a Oficina Econômica do Presidente de Governo e o conjunto interministerial, existe a preocupação de fazer com que a Espanha corrija seus pontos falhos e busque cada vez mais proeminência da produção industrial tecnológica. Para esse estudo separamos em especial o eixo Estratégia I+D+I (INGENIO 2010). Programa esse que salienta os recursos destinados a I+D+I e uma aprimorada organização dessas fontes de investimentos. Dentro dele encontramos sub programas, como é o CÉNIT que promove a colaboração entre o público e o privado através de consórcios, capital de 273 Plano Nacional 2004-2007; 2003 163 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 risco para empresas tecnológicas e incorporação de doutores a empresas; o sub programa AVANZ@ que tem como foco empresas e procedimentos ligados a tecnologia da informação; e por último o sub programa CONSOLIDER que busca a excelência em pesquisas, inclusive no âmbito da União Européia. Se nos propormos a pensar num conceito de política industrial em que a presença do Estado é fundamental e que o planejamento prévio e constante é tido como importante para o bom funcionamento do corpo nacional, ao analisarmos o anuário de 2005 do Plano Nacional de I+D+I 2004-2007, podemos perceber o governo Zapatero segue com a tradicional linha dos países centrais, em que a PI é pensada e feita de forma ampla e bem estruturada. CONCLUSÃO Nesse trabalho pudemos apresentar como que a preparação, de uma Política Industrial de Estado é aplicada a médio ou longo prazo sendo mantida e aprimorada nos países centrais, tendo a Espanha como exemplo. Enquanto que nos países periféricos ainda é insipiente a postura de planejamento e investimento nas modalidades mais tecnológicas. Durante o governo Lula a Política Industrial Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE) teve um papel importantíssimo para o desenvolvimento industrial do Brasil. A participação do Estado na economia é fundamental para desenvolver o setor industrial, algumas medidas como abaixar as tarifas, facilitar os créditos, dar subsídios acarretam numa segurança maior para o empresário investir cada vez mais. O Estado não pode apenas garantir a estabilidade macroeconômica tem que ser mais ativo, por isso a (re)criação de espaços de diálogos entre o setor produtivo e o Governo e as medida de incentivo a inovação estão entre as grandes novidades da PITCE, mas esse tipo de trabalho 164 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 já é algo permanente na Espanha. No país europeu podemos observar que existe uma preocupação que perpassa sobre o governo de Zapatero e estabelece um projeto não apenas governamental, mas de caráter permanente. BIBLIOGRAFIA GOLDENSTEIN, Lígia; Repensando a independência; Rio de Janeiro; paz e Terra; 1994. KON, Anita; Economia Industrial; São Paulo; Nobel; 1994. Comissão Interministerial de Ciência e tecnologia; Plano Nacional de Investigação Científica Desenvolvimento e Inovação Tecnológica 2004-2007; Ministério de Ciência e Tecnologia; 2003. Plano Nacional de Reformas: em http://www.lamoncloa.es/PROGRAMAS/OEP/PublicacionesEInformes/PNR/default.htm acessado em novembro de 2009. SUZIGAN, Wilson & FURTADO, João; Política Industrial e Desenvolvimento; Revista de Economia Política, vol. 26, nº 2 (102), pp. 163-185 abril-junho/2006. Acompanhamento da Política Industrial Tecnológica e de Comércio Exterior, PITCE 2 anos e PITCE 3 anos. 165 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Igreja de São Pedro: Olhar e perspectiva de um patrimônio. Fabiana Aparecida de Almeida274 RESUMO: O presente trabalho falará sobre a história da Igreja de São Pedro, situada na Av. Senhor dos Passos, s/n. no bairro São Pedro; seu tombamento municipal realizado em 2002; sua ampliação iniciada no ano de 2001 e terminada em 2006 e todas as controversas envolvendo essa reforma que ampliou a referida igreja. O trabalho apresentará também um retrospecto da história da chegada dos imigrantes alemães em Juiz de Fora e da questão de preservação do patrimônio histórico e artístico da cidade. PALAVRAS-CHAVE: Igreja de São Pedro; Tombamento; Reforma ABSTRACT: This paper is about the history of the church of São Pedro, located on Senhor dos Passos Avenue, in São Pedro neighborhood; its municipal toppling was conducter in 2002; started its expansion in 2001 and completed in 2006 and all the controversies surrounding this reform that expanded the church. The work also shows the retrospect of the history of the arrival of German immigrants in Juiz de Fora city and the question of preservation of historical and artist heritage of the city. KEYWORDS: Church of São Pedro; Toppling; Reform. INTRODUÇÃO 274 Graduada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. 166 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A Igreja de São Pedro sempre foi muito importante para a memória das pessoas do bairro São Pedro e proximidades, assim como para o patrimônio histórico da cidade de Juiz de Fora. Dessa forma, o presente trabalho terá como tema central a questão que envolveu a referida igreja em um processo de tombamento e em uma reforma realizada após o seu tombamento, assim como a questão da memória de alguns moradores antigos do bairro São Pedro em relação à igreja. A história da Igreja de São Pedro deve ser associada com a vinda de imigrantes alemães para Juiz de Fora na segunda metade do século XIX, uma vez que a igreja foi construída por colonos que se instalaram naquela região. Esses imigrantes vieram para Juiz de Fora por dois motivos principais: construir a Estrada União Indústria (empreendimento do financista Mariano Procópio Ferreira Lage) e formar a Colônia Agrícola D. Pedro II (para o abastecimento do mercado interno). Para esses dois empreendimentos, a Companhia União e Indústria (responsável pelos empreendimentos) pretendia contratar 2000 imigrantes europeus que vieram para o Brasil em cinco barcas: Tell, Rhein, Gundela, Gessner e Osnabr:uck.275 Ao desembarcarem no porto do Rio de Janeiro, seguiram viagem até Juiz de Fora a pé e a carroça, em uma viagem que durava cerca de quinze dias. Em 59 dias, 1162 colonos chegaram à cidade do Paraibuna (a Cia suspendeu o embarque de 832) que triplicou a população da cidade (de 600 para 1762 habitantes) e trouxe para a Cia um grande problema: onde alojar os imigrantes. A solução foi acomodálos em um acampamento improvisado junto a uma lagoa infecta aos pés do Morro da Gratidão (atual Morro da Glória). Com a falta de higiene, muitos imigrantes pegaram a 275 STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os alemães. Juiz de Fora: Esdeva, 1979. p. 161-164. 167 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 tifo, que inclusive causou a morte de 34 imigrantes.276 Assim, a Cia começou a construção de casas para os colonos. Em 1863 todas as famílias foram alojadas. Os colonos foram então, divididos em quatro grupos: os que ocupariam a Colônia de Cima (atual bairro São Pedro), a Colônia do Meio (atual bairro Borboleta), e a Colônia de Baixo (região do bairro Fábrica). Os colonos que iriam participar da construção da estrada, instalaram-se no bairro Villagem, região mais próxima do centro e que hoje seria o bairro Mariano Procópio.277 Logo que se instalaram na cidade, os colonos se queixaram à Cia da ausência de um templo religioso que os assistisse. Dessa forma a Cia doou um terreno para a construção de uma Igreja que seria consagrada a Nossa Senhora da Glória no ano de 1879.278 Com os anos a igreja foi ficando pequena para acolher os fiéis e em 1916, decidiu-se construir uma nova igreja atrás da atual. Em 1920 a igreja começou a ser construída, sendo entregue ao culto em 1924.279 A igreja foi tombada pelo processo 5308/97, decreto n. 6840 de 26/09/00, solicitado pela firma Século 30. Infelizmente a primeira capela foi destruída por um incêndio na madrugada de 12 de abril de 1923 que teria sido causada por ladrões que, não encontrando nada de valor na capela, colocaram fogo nessa propositalmente ou acidentalmente. A população tentou ajudar no combate as chamas com vasilhas d’água, mas o esforço foi em vão. A capela foi destruída, salvando-se a nova igreja, o convento e as imagens dos santos.280 Mesmo com a igreja consagrada a Nossa Senhora da Glória, os colonos da colônia de cima e da colônia do meio continuaram sem assistência espiritual, uma vez que o local 276 Idem. p. 186-187. OLIVEIRA, Mônica Ribeiro. Entre o rural e o urbano: a trajetória dos imigrantes alemães e italianos em Juiz de Fora (1854-1920). 1991. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1991. p. 22. 278 STEHLING, op. cit. p. 252-253. 279 LEITE, Pe. João Boaventura. Igreja Nossa Senhora da Glória – Juiz de Fora: 1ª fundação. Juiz de Fora: Redentoristas do Leste Brasileiro, s. d. v. 2. p. 46-47. 280 Idem. p. 53. 277 168 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 onde se instalaram era longe da nova igreja. Dessa forma os colonos das duas colônias resolveram construir suas igrejas. Na colônia do meio foi construída uma capela consagrada a São Vicente de Paulo no ano de 1937281, e na colônia de cima uma capela consagrada a São Pedro. Em relação a construção da colônia de cima, tema desse trabalho, foi realizado um Conselho Distrital para a construção de uma capela e de um cemitério. Para a construção desses, os colonos Sebastião Kunz e sua esposa Bárbara doaram parte do prazo 108. 282 Para arrecadar fundos para a construção da capela, forma realizados leilões de prendas e a Festa de São Pedro, que ficou conhecida em toda a cidade. Dessa forma, a capela começou a ser construída em 5 de novembro de 1884 e consagrada, juntamente com o cemitério nos dias 5 e 6 de janeiro de 1886. Na ocasião da consagração ocorreu grande festa na localidade.283 O TOMBAMENTO DA IGREJA DE SÃO PEDRO O processo de tombamento referente à Igreja de São Pedro encontra-se disponível no DIPAC, que funciona no prédio da Prefeitura de Juiz de Fora, na rua Halfeld, e se desdobra em 85 folhas. A iniciativa partiu do Instituto Teuto Brasileiro William Dilly, em documento datado de 16 de abril de 1999 à Comissão Permanente Técnico Cultural (CPTC) pedindo o tombamento da igreja para a preservação da memória da cidade. O documento falou da importância da igreja como marco da fé e da presença germânica na cidade alta, cuja 281 CLEMENTE, Vicente de Paulo. O bairro Borboleta e a Igreja de São Vicente de Paulo: suas origens e sua história. Juiz de Fora: Concorde, 1990. p. 24 e 25 282 STEHLING, op. cit. p. 267. 283 STEHLING, op. cit. p. 264-265. 169 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 história se confunde com a história das primeiras famílias. O documento foi assinado por José Roberto Dilly (diretor do Instituto) e por Juraci Scheffer. Após o pedido do Instituto Willian Dilly, o diretor do DEPLAN/IPPLAN-JF, o arquiteto Álvaro Giannini, pediu, em 7 de julho de 1999 para avaliar o caso e, se fosse preciso, iniciaria os estudos para seu tombamento. Em 4 de agosto, o IPPLAN-JF solicitou a abertura do processo de tombamento ao SMA/DICOM, sendo o documento assinado por seu diretor geral, José Eustáquio Romão.284 O relato do processo foi feito em 2 de agosto de 2000 por Marcos Olender que destacou a importância da arquitetura da igreja para a história do período na cidade e se mostrou favorável ao tombamento: De “arquitetura simples” como afirma o documento, mas “expressiva, nos seus aspectos formais (...) (conservando) de maneira marcante a tipologia chamada tradicional” como ressalta parecer técnico acerca dos aspectos arquitetônicos, feito pela DIPAC, é extremamente representante de um período fundamental da consolidação urbana da nossa cidade. (...). Marcando a paisagem urbana local, conclui o citado parecer, o templo se insere no importante contexto histórico da colonização alemã na parte alta da cidade. (...). Edificada pelos antigos colonos alemães “a igreja é referencial na vida de milhões de descendentes, cuja história se confunde com a história das primeiras famílias povoadoras do bairro”, como ressalta o ofício do Instituto Teuto Brasileiro Willian Dilly. (...). Sendo assim, sou favorável ao tombamento do citado imóvel.285 Dessa forma, a ata da reunião da CPTC de 17 de agosto de 2000 aprovou com unanimidade o tombamento da igreja. Chegou-se também a conclusão do tombamento da fachada e volumetria da igreja. Nesse momento do processo, foi enviado à Mitra Arquidiocesana de Juiz de Fora, um documento comunicando a mesma da aprovação de tombamento pela CPTC. Antônio 284 FUNALFA. Processo de tombamento, n. 3504/99, decreto n. 7548/18.09.02. Disponível na Divisão de Patrimônio Cultural de Juiz de Fora. 285 FUNALFA. Op cit. 170 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Cornélio Viana (vigário geral da arquidiocese) respondendo legalmente pelo arcebispo D. Clóvis Frainer, mandou documento ao prefeito recusando o pedido de tombamento da volumetria da igreja, uma vez que a comunidade precisar aumentar a igreja para proporcionar mais conforto aos fiéis. Somente a proposta de tombamento da fachada foi aceita. Em anexo a esse pedido, encontrou-se no processo, um abaixo assinado datado de 27 de setembro de 2000, encaminhado ao arcebispo Clóvis Frainer, pedindo o não tombamento da igreja, pois, a comunidade pretendia aumentá-la longitudinalmente, “sem alterar a arquitetura alemã”. A análise desse abaixo assinado nos chamou a atenção durante nossa pesquisa por alguns pontos. O primeiro ponto se refere à repetição de alguns nomes na listagem. O segundo por só ter assinaturas de pessoas que participavam e ajudavam nos afazeres da igreja, sendo que alguns moradores entrevistados durante a pesquisa não assinaram a lista por não saberem de sua existência. O terceiro ponto foi o esquecimento de alguns moradores em assinar o documento, alegando não se lembravam, mas afirmaram que devem ter assinado porque a igreja tinha que ser ampliada. A última particularidade do abaixo assinado foi ele ter sido assinado pelo padre Luiz Eduardo de Ávila em 27 de setembro de 2000, sendo que, em entrevista o padre disse não saber da existência desse abaixo assinado e se ele aconteceu, a iniciativa deveria ter sido do pároco anterior.286 Mesmo com a reprovação da Mitra, o documento permitindo o tombamento da igreja de São Pedro foi assinado pelo prefeito Tarcísio Delgado em 18 de setembro de 2002 e publicado no jornal “Tribuna de Minas”, na parte dos Atos Legislativos da Câmara Municipal de Juiz de Fora.287 286 Depoimento do Padre Luiz Eduardo de Ávila concedido a Fabiana Aparecida de Almeida em 20 de maio de 2009. 287 TRIBUNA DE MINAS. Atos Legislativos da Câmara Municipal de Juiz de Fora. Juiz de Fora: Esdeva, 19/set./2002. Caderno Brasil, ano XXI, n. 2989, quinta-feira. 171 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 AS REFORMAS DA IGREJA DE SÃO PEDRO Desde a sua construção, a igreja de São Pedro passou por duas reformas em sua estrutura, sendo que ambas foram feitas por causa do crescimento do número de fiéis. A primeira reforma ocorreu na década de 1970 e nessa reforma, segundo Antônio Dilly (antigo morador do bairro e colaborador da igreja), algumas características da igreja construída pelos alemães foram perdidas. Nas paredes foram colocadas pedras até a altura das janelas, pois originalmente era apenas reboco. O piso que era de pinho de riga foi substituído por piso frio, uma vez que estava afundando, se tornando inclusive perigoso para os fiéis. Foi construído também um “toldo” na porta principal, já que essa era de madeira e estava se desfazendo pela ação das chuvas e do sol. Mais tarde, esse “toldo” começou a rachar e foi demolido.288 Outra mudança foi a retirada do altar, que ocorreu por causa do Concílio Vaticano II que mandou que se retirasse todos os altares alemães das igrejas católicas.289 Esse altar era todo em madeira, tipo “capelinha”, com várias torres e que compreendia toda nave da igreja.290 Em relação à segunda reforma (iniciada em 2001 e terminada em 2006) não deveria ter ocorrido do jeito que aconteceu porque a igreja já havia sido tombada pelo município nessa época. Segundo Roberto Dilly, o padre da paróquia na época, Luiz Eduardo de Ávila, juntamente com o apoio do prefeito Tarcísio Delgado e de Juraci Scheffer, que ocupava o cargo de vereador na época, conseguiram fazer com que o tombamento fosse desprezado para acontecer a reforma.291 A igreja então passou por uma reforma que a descaracterizou profundamente, sendo preservada apenas sua fachada principal. Dessa forma, confirmaram-se os dizeres de Érika Aleixo: “É inegável a interferência do poder público 288 Depoimento de Antônio Dilly concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 2 de maio de 2009. Antônio Dilly disse ter achado precipitado a retirada do altar, uma vez que a igreja da Glória e a igreja de São Vicente de Paulo, no bairro Borboleta, mantiveram seus altares. 290 Depoimento de José Roberto Dilly concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 30 de abril de 2009. 291 Idem. 289 172 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 na tomada de decisões, passando por cima dos pareceres dos técnicos, deixando-se pressionar pela cúria juizforana”.292 No entanto, segundo Paulo Gawryszewski (diretor da Divisão de Patrimônio Cultural – DIPAC), a reforma não seguiu os procedimentos corriqueiros de reformas em imóveis tombados, sendo realizada arbitrariamente, uma vez que, não houve fiscalização na realização da reforma.293 Paulo Gawryszewski aliais, disse não saber com exatidão como a reforma aconteceu, pois o imóvel não foi destombado e para qualquer tipo de intervenção em imóveis tombados, têm que haver autorização do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (COMPPAC). Mesmo quando o pedido de reforma em imóveis tombados chega para a prefeitura, eles são encaminhados para a DIPAC e pedem a análise e o parecer do Conselho. Em relação à igreja de São Pedro, esse processo não aconteceu. Na época de seu tombamento, existia também um Conselho Pastoral da igreja de São Pedro. André Geraldo Dilly, um dos participantes do Conselho, disse que houve a idéia de construir outra igreja maior. Porém, ao lado da igreja existente já havia o centro pastoral e se ela fosse construída atrás ficaria escondida. Essa idéia, segundo André Geraldo Dilly não agradou o Conselho Pastoral porque achavam que a igreja matriz não poderia ficar escondida. O padre da época (Padre Miguel) sugeriu alargar a igreja na parte de trás, de forma que se desenhasse um cálice no chão da igreja. Porém, com a chegada do padre Luiz Eduardo de Ávila o Conselho Pastoral foi se desfazendo e o padre acabou por reformar a igreja do jeito que achou melhor.294 Roberto Dilly acredita que o problema dos padres, depois da secularização da Igreja Católica, seria a não identificação com a comunidade que “pastoreiam”. Como não criam raízes com o local, podendo ser 292 SILVA, Érika Aleixo Ferreira. Os inventários e a política de proteção do patrimônio cultural de Juiz de Fora. 2008. Monografia do curso de especialização em Gestão do Patrimônio Cultural, Faculdade Metodista Granbery, Juiz de Fora, 2008. f. 103. Apesar da frase fazer referência à intervenção na Igreja da Glória em 2006, empregou-se muito bem nesse contexto. 293 Depoimento de Paulo Gawryszewski concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 7 de maio de 2009. 294 Depoimento de André Geraldo Dilly concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 2 de maio de 2009. 173 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 substituídos a qualquer momento, preferem deixar uma marca física, principalmente uma obra para serem lembrados. Dessa forma destroem tudo sem se preocupar com a identidade da comunidade.295 Em entrevista cedida, o padre Luiz Eduardo de Ávila, pároco de São Pedro na época, disse que na sua chegada à Igreja foi procurado por Juraci Scheffer que lhe comunicou que havia um processo de tombamento da igreja. O padre disse então ter concordado alegando que achava que era um pedido da comunidade e que não seria ele quem iria impedir. No entanto, foi procurado pelo arcebispo metropolitano e comunicado que não havia um interesse por parte da Igreja Católica em tombamentos de bens eclesiásticos. Dessa forma, o padre relatou ter procurado os responsáveis pelo pedido de tombamento e pediu para que esse não ocorresse para acontecer a ampliação da igreja de São Pedro. 296 No processo de tombamento, a Igreja de São Pedro foi descrita como um exemplar de arquitetura simples e tradicional “apesar de uma leve tendência a uma forma mais trabalhada, como se percebe nos chanfros da planta do altar-mor”.297 Foram descritos também os nichos que antes não abrigavam imagens de santos. Hoje encontramos uma imagem de São Pedro à direita e de São Paulo à esquerda, que foram colocadas recentemente. No interior da igreja, o impacto da reforma foi ainda maior. No processo, encontramos a seguinte descrição: Internamente, suas paredes recebem imagens sacras abrigadas em nichos e se destaca por sua volumetria típica, onde a nave central de abertura mais elevada se contrapõe ao altar-mor e suas sacristias laterais, de altura menor. Um coro ao fundo, acessado por escada helicoidal, de guarda corpo em madeira trabalhada e com piso original em tábua corrida, compõe a ambientação. O altar recebe 295 Depoimento de José Roberto Dilly concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 30 de abril de 2009. Depoimento do padre Luiz Eduardo de Ávila concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 20 de maio de 2009. 297 FUNALFA, op. cit. 296 174 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 aberturas estreitas em arco pleno e fachadas por vidros lisos transparentes que permitem a penetração dos raios solares; todo o revestimento do piso da nave e do altar é feito em material cerâmico.298 Hoje não há mais imagens sacras nas laterais da igreja, uma vez que sendo as paredes revestidas de gesso, não suportariam o peso das imagens. No altar, as sacristias laterais foram destruídas para o alongamento da igreja e a “abertura em arco pleno e fachadas por vidros lisos” não existe mais. O coro mencionado na descrição teve sua escada, piso e guarda corpo, todos em madeira, substituídos por concreto. A Igreja de São Pedro foi então aumentada longitudinalmente. A frente foi mantida mudando apenas a porta principal, que não era a original. Em entrevista, o padre Luiz Eduardo de Ávila, disse que a reforma para os fundos foi feita buscando a não descaracterizar a igreja de sua feição original: as janelas e as portas foram mantidas do mesmo estilo (arredondadas) e a largura continuou a mesma. Ainda segundo o depoimento do padre, a frente da igreja foi mantida a mesma por aconselhamento de Cidinha Louzada e Juraci Scheffer.299 CONCLUSÃO A pesquisa aqui apresentada propôs mostrar como se realizou o processo de tombamento da Igreja de São Pedro bem como a intervenção sofrida na igreja por uma reforma que a ampliou, mas não a respeitou como patrimônio do municipal. Nossa crítica a essa reforma se baseia pela completa falta de consciência das autoridades eclesiásticas quanto à memória da região de São Pedro. As igrejas são 298 FUNALFA, op. cit. Depoimento do Padre Luiz Eduardo Ávila concedido à Fabiana Aparecida de Almeida em 20 de maio de 2009. 299 175 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 geralmente as primeiras construções na formação de uma cidade ou de um bairro e trazem consigo toda uma carga simbólica e memorialística que acabou se desfazendo junto com a reforma da igreja de São Pedro. Não se pode questionar que havia a necessidade de uma reforma na referente igreja, porém, existiriam alternativas mais “eficientes” para se preservar o pouco que restou da antiga igreja (já que a igreja original já havia sido modificada na reforma da década de 1970). A questão é ainda mais contraditória pelo fato da igreja ter sido tombada pela Prefeitura de Juiz de Fora e mesmo assim essa não ter tomado nenhuma medida que impedisse a reforma que a descaracterizou. O processo de tombamento da igreja de São Pedro acabou acontecendo, mas acabou sendo desprezado e a igreja sofreu uma reforma que a deixou mais espaçosa, porém sem nenhuma característica da igreja construída pelos colonos alemães que iniciaram a população do bairro São Pedro. No entanto, sua fachada principal foi mantida fazendo os mais velhos terem uma pequena lembrança da igreja antiga. Dentro da questão patrimonial, muitos estudiosos discutem a memória dos imóveis tombados. A identidade de um grupo tem que está presente no bem tombado se não esse tombamento não causa um reconhecimento às pessoas que vivem perto daquele bem. Para que o patrimônio seja visto como algo positivo por uma população é necessário que essa se identifique com aquele patrimônio. O que podemos concluir com nossa pesquisa, é que as pessoas possuem uma memória da igreja e a vêem como portadora de seu passado, porém, deixaram ser influenciadas por um discurso de necessidade de ampliação da igreja como única forma de se resolver o problema da lotação da igreja nas missas de domingo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FONTES ORAIS: 176 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 André Geraldo Dilly. Antônio Dilly. José Roberto Dilly. Luiz Eduardo de Ávila, Padre. Paulo Gawryszewski. FONTES BIBLIOGRÁFICAS: CLEMENTE, Vicente de Paulo. O bairro Borboleta e a Igreja de São Vicente de Paulo: suas origens e sua história. Juiz de Fora: Concorde, 1990. FUNALFA. Processo de tombamento, n. 3504/99, decreto n. 7548/18.09.02. LEITE, Pe. João Boaventura. Igreja Nossa Senhora da Glória – Juiz de Fora: 1ª fundação. Juiz de Fora: Redentoristas do Leste Brasileiro, s. d. v. 2. OLIVEIRA, Mônica Ribeiro. Entre o rural e o urbano: a trajetória dos imigrantes alemães e italianos em Juiz de Fora (1854-1920). 1991. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1991. SILVA, Érika Aleixo Ferreira. Os inventários e a política de proteção do patrimônio cultural de Juiz de Fora. 2008. 167 f. Monografia do curso de especialização em Gestão do Patrimônio Cultural, Faculdade Metodista Granbery, Juiz de Fora, 2008. STEHLING, Luiz José. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os alemães. Juiz de Fora: Esdeva, 1979. 177 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 TRIBUNA DE MINAS. Atos Legislativos da Câmara Municipal de Juiz de Fora. Juiz de Fora: Esdeva, 19/set./2002. Caderno Brasil, ano XXI, n. 2989, quinta-feira. As Narrativas do Poder: discursos de supremacia política e cultural no seio da sociedade romana imperial Felipe Henrique Alves de Andrade300 RESUMO: O artigo pretende uma abordagem acerca da formulação de discursos de enaltecimento da civilização e do povo romanos, bem como das instituições e costumes a ele associados. Toma o período do Principado, encabeçado por seu primeiro princeps senatus, Otávio Augusto, como delimitação temporal. Há interesse em descrever esforços alçados pelo próprio Augusto no que toca às narrativas de supremacia e afirmação, além de fenômenos culturais contemporâneos que validam as observações, sendo Virgílio o agente mais notável a esse respeito, com sua obra épica Eneida. PALAVRAS-CHAVE: Otávio Augusto; supremacia; civilização romana; Virgílio; Eneida ABSTRACT: The article aims to an approach about the making of discourses on the praising to roman civilization and people, as well about relative institutions and customs. As to timely boarders, it takes the Principate, headed by his first princeps senatus, Octavianus Augustus. There’s the interest on describe efforts used by Augustus himself in supremacy and claim’s narratives, also cultural contemporary phenomena which assure the remarks; on this matter, Virgil is the more remarkable, with his epic Aeneid. KEYWORDS: Octavianus Augustus; supremacy; roman civilization; Virgil; Aeneid 300 Acadêmico do 8° período do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). 178 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 INTRODUÇÃO “Esta é uma cópia – tirada do original gravado em Roma sobre dois pilares de bronze – que contem as empresas por meio dos quais o divino Augusto subjugou o mundo inteiro ao domínio do povo romano, e as despesas que ele fez em prol do Estado e do povo de Roma.” 301 Estas são as célebres palavras com as quais Caio Júlio César Otaviano Augusto – ou simplesmente Otávio Augusto – inicia o relato de seus feitos, consecuções e glórias realizados no período de sua governança, conhecido como Res Gestae Divi Augusti (“Atos do Divino Augusto”) ou Index Rerum Gestarum Divi Augusti. Trata-se de um forte testemunho em favor de um projeto engendrado por Augusto, referente à sua ascensão e conservação do poder. O inteiro documento nos permite contemplar um elogio à própria figura, uma espécie de panegírico auto-dirigido carregado de um visível sentido de vitória pessoal, atestada pelas virtudes exibidas pelo autor/receptor do elogio (justitia, clementia). Sem dúvida, o Index é pródigo em nos revelar evidências de um discurso legitimador, glorificador em benefício da pessoa de César Augusto, perpassando intenções de afirmação política que se vêem latentes desde os idos do Prinicipado Romano inaugurado em 27 a.C. Mas há algo mais envolvido... Note-se que há um outro aspecto que marcará a fala de Augusto e que se faz perceber mesmo na introdução de seu Index: a razão dos esforços de Otávio (alegadamente) não são puramente pessoais. O que até aqui foi dito deve-se a uma percepção dos sentidos subliminares contidos na obra analisada. Enxergamos a existência de um discurso articulado em torno do interesse de perpetuação do legado deixado por César, notadamente a memória que deixa e o espaço que prepara para os que hão de sucedê-lo no exercício do poder. Mas é de interesse especial as palavras que ressoam na 301 LEONI, Giovanni D. (Trad.) Res Gestae Divi Augusti. São Paulo: Livraria Nobel S/A, 1957. 179 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 superfície do texto, aquilo que se vê num primeiro nível de leitura. Para tanto, recordemos uma passagem: “o divino Augusto subjugou o mundo inteiro ao domínio do povo romano”. Eis o mote das conquistas e vitórias de César Augusto (segundo ele próprio)! Promover expansão, alcançar vitórias contra os inimigos, traçar o rumo do desenvolvimento – tudo isso em “prol... do povo de Roma” e para afirmar o “domínio do povo romano”. Assim, é possível apontar a existência de uma preocupação dotada de caráter político, ou não, centrada em priorizar o povo de Roma e permitir a sua prevalência sobre os demais, sua superioridade, digamos de forma mais clara. Vemos aqui um sinal de afirmação da civilização romana e daquilo que se configure nos quadros de sua sociedade. Vemos, tomando o Index como ponto de partida, a veiculação de discursos de poder e supremacia em benefício de Roma, mas também vindo ao encontro dos intentos de Otávio. Falemos, contudo, do contexto em que tais discursos aparecerão. A ERA DE AUGUSTO Sabe-se que a entrada de Otávio no cenário político se dá numa conjuntura delicada no que tange aos fatos e questões que se avultavam desde o 2° século a.C. Roma passava por um período permeado de crises políticas, sociais e econômicas, caracterizado por um estremecimento do pacto intra-elites e por uma incerteza no jogo político dados os conflitos entre grupos de famílias tradicionais e o temor pela mobilização da plebe. Ademais, o processo de expansão trazia à tona um novo fio para fortalecer a trama incerta que se alargava e se estendia sobre os latinos: como administrar eficientemente um corpo cívico que crescia, se avolumava em vista da expansão territorial da República por meio 180 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 das instituições que antes valiam para os habitantes do Lácio? Ou como se expressa John Scheid em obra escrita colaborativamente com François Jacques302: En elargissant le corps civique au-delá de tout ce que le monde des cités avait connu, les lois accordant le droit de cité aux alliés italiques créaient un problème institutionnel nouveau, car elles rendaient illusoire, sinon impossible, le fonctionnment traditionnel de la vie politique. 303 Havia muitas questões por resolver ainda no 1° século a.C., mas como aponta Scheid : “ l’elite n’était plus à même de résoudre lês nombreaux problèmes intérieurs et extérieurs de la République romaine”.304 Veria esta elite, junto com o Senado, a formação de um triunvirato em tônica de conciliação e resolução dos problemas que se formavam. Este seria formado por Pompeu, Crasso e Júlio César. Entretanto, as disputas não cessam, especialmente entre Pompeu e Júlio César (Crasso morre numa expedição militar contra os partos). César é assassinado, o que contribuiria para a piora das contradições levantadas. Com a morte deste, veremos o campo preparado para a ascensão dos pretendentes ao poder, os “herdeiros” de César – Marco Antônio, companheiro de Júlio César, que tentara se impor como o sucessor direto de Pompeu ou de César, e Otávio, o qual toma para si o dever de vingar seu pai adotivo, busca reivindicar sua herança e fazer cumprir os valores da res publica, haja vista os desvios sentidos neste período crítico. Além desses, houve também Lépido, que apoiou Antônio militarmente a princípio e foi indicado como pontifex maximus. Tais homens, por meio de acordo validado pelo Senado, formam então o segundo triunvirato, por meio do qual dividiriam a administração das províncias. 302 JACQUES, François; SCHEID, John. Rome et l’integration de l’Empire. Paris: Presses Universitaires de France,1990. (Coleção “Nouvelle Clio”) 303 “Alargando o corpo cívico para além de tudo que o mundo das cidades havia conhecido, as leis atribuindo o direito de cidade aos aliados itálicos criavam um problema institucional novo, pois elas tornavam ilusório, senão impossível, o funcionamento tradicional da vida política.” (Tradução Livre) 304 “A elite não era mais a mesma para resolver os numerosos problemas internos e externos da República romana”. (Tradução Livre) 181 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Neste momento, vemos a disputa se acirrar entre Marco Antônio e Otávio Augusto (título futuro, note-se). Seguem-se conflitos, intercalados por acordos e tréguas, ao passo que, após o exílio de Lépido, ordenado por Otávio, os outros dois triúnviros se ocupariam em fortalecer sua posição e perseguir suas tarefas imediatas, como informa John Scheid.305 O autor descreve o sucesso do jovem César, mencionando que este adquiriu a confiança da plebe romana, dos veteranos e dos centuriões, favorecendo a promoção social mas também o apoio às elites romanas e itálicas. Paralelamente, Otávio põe em prática um empreendimento de denegrimento sistemático de Antônio. Um dos pontos mais visíveis dessa manobra é perceptível na associação que faz da figura de Marco Antônio com o traidor, aquele que abandonou a civilização romana para se aliar à barbárie (representada pelo Egito, na pessoa de Cleópatra), o que se fortalece enquanto rei, um tirano, e assim fere as instituições republicanas de Roma. O fim do conflito será marcado pela vitória definitiva de Otávio na Batalha do Áccio em 31 a.C., ponto de simbolismo notável quanto à nova era que agora se configurava, relacionada ao governo isolado de César Augusto, enquanto princeps senatus (“Príncipe do Senado”, o primeiro dentre os senadores). As instituições e magistraturas republicanas são mantidas, mas o poder passa a ser exercido de forma mais centralizada pelo Príncipe. Desde o tempo em que Augusto vinha nutrindo suas pretensões de acesso ao poder e recebimento da justa herança que lhe cabia enquanto sucessor de Júlio César, notamos esforços da sua parte no sentido de se afirmar e se legitimar em oposição a seus rivais. Isso ficaria evidente, por exemplo, ao assumir para si o epíteto de Imperator Caesar, divi filius, ou seja, “Imperador César, filho do divino (Júlio)”, quando recebe uma ovação após a Paz de Brindisi.306 Ademais, ele recusa o poder que lhe é oferecido pelo Senado enquanto ditador, convenientemente restringindo-se da imagem de monarca para aceitar a de um 305 306 JACQUES, François; SCHEID, John. Op. Cit. Idem. 182 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 tribuno, um magistrado como os demais, mas com uma carga de poder maior. Cada gesto demonstra a elaboração hábil por parte de César de criar contextos e linguagens que lhe fossem favoráveis – a formulação de discursos que se perpetuariam até o fim de sua vida e se revestiriam de um sentido mais elevado, qual seja, o da defesa dos interesses da Urbe romana. Ademais, a época de Augusto notabilizar-se-ia, dentre outras coisas, por se instaurar a paz entre os romanos – a pax romana – alcançada após o término das guerras civis e a solução dos problemas sociais e políticos que se arrastavam desde o 2° século a.C., mas haveria de se fazer notar também pelas manifestações desse poderio em outros campos, como a arquitetura e literatura. Tais espaços seriam o locus privilegiado para a promoção do ideal de civilização romana e da supremacia cultural e política, se não o foi diretamente por Augusto, então pela política de dominação empreendida por ele. Um tema muito interessante que dá conta de fornecer provas da inovação presente no Principado de Otávio é o das transformações nas obras arquitetônicas públicas. A esse respeito, é de chamar a atenção as observações feitas pelo arquiteto William MacDonald em seu artigo “Empire Imagery in Augustan Architecture”.307 O autor nota como a “Era de Augusto” abarca valores presentes nos modelos arquitetônicos utilizados na arquitetura romana. Sabe-se, por exemplo, que esta se caracterizava por sua solidez, estabilidade, austeridade e funcionalidade antes da época de César Augusto. Um expoente desse conjunto de princípios é o arco romano, cujo papel se resumia à fria funcionalidade de entrada/saída. MacDonald percebe, todavia, que com o advento dos tempos augustanos, o arco passa a ser carregado de uma complexidade crescente que o torna um monumento, um edifício dedicado à celebração ou memória. Observa que há duas principais mudanças em princípios composicionais formais, quais 307 MACDONALD, William. Empire Imagery in Augustan Architecture. In: WINKES, Rolf. (Editor) The age of Augustus. [S.d.]: [S.e.], 1985. 183 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 sejam: o grau de complexidade do design aumentou substancialmente, movendo a arquitetura para composições mais complexas e articuladas; o enriquecimento da arquitetura tradicional, a multiplicação e redesenvolvimento dos elementos clássicos de design, baseada em parte nas invenções helenísticas, foi fundida a formas arquetípicas romanas. Novas formas de se levantar edificações estavam sendo gestadas no entremeio dessas influências tradicionalmente greco-romanas e dos modelos novos que se criavam desse caldeirão cultural (o melting pot das influências culturais concernentes aos modelos arquitetônicos). O arco do tipo triplo, composição aAa (um arco principal ladeado por arcos secundários) é o que será mais marcante para definir a época de governança de Augusto, atribuindo uma imagem que poderá ser associada com tal momento histórico e dessa forma permitir uma leitura como realizada por William MacDonald, conforme segue: The effect was rather like that found in some contemporary literature, a reworking and refashioning of the old, with results that reflected Augustus’s political and social programs by showing that although tradition was by no means dead, a new age arrived.308 É digno de nota que haveria outros aspectos consonantes com essa reinvenção de padrões imagéticos percebidos nos edifícios públicos e monumentos, de acordo com o autor. Diga-se de passagem: o ático colocado sobre os arcos, que pode ser entendido como uma estrutura que encimava os arcos com objetivo de enriquecer seu poder de narração monumental; os cenotáfios (semelhantes a obeliscos, igualmente de função monumental) que se multiplicavam dentro do território latino e fora dele. Não há aqui espaço para detalhar os nuances das escolhas no que respeita a edificações, tomando as associações 308 “O efeito era mais semelhante ao encontrado em algumas literaturas contemporâneas, uma reestruturação e remodelação do antigo, com resultados que refletiram os programas políticos e sociais de Augusto por mostrar que, apesar de a tradição não estar morta, uma nova era chegara.” (Tradução Livre) 184 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 com o esforço ufanista de César Augusto. Mas vale o esforço superficial esboçado neste artigo, devedor das contribuições de MacDonald, para se dar uma idéia de tal política glorificadora. VIRGÍLIO – O POETA DA GRANDEZA ROMANA Falar a respeito da cultura romana contemporânea a Otávio Augusto e de suas relações com o papel desempenhado por este pede que falemos de um importante personagem, co-artífice do ideal de grandeza da história de Roma. Estamos nos referindo a Virgílio, ou na língua latina original, Publius Vergilius Maro (70 a.C. – 19 a.C.). Natural de Mântua, Virgílio já era poeta conhecido por obras compostas em sua juventude e notabilizar-se-ia por grandes obras que lhe asseguraram fama – as Bucólicas e as Geórgicas. Tendo tal caminho já construído, o mantuano procederia à composição de importante obra de caráter épico, cuja realização atraiu a atenção de Otávio Augusto. Tanto que Pierre Grimal nos informa do interesse ativo que o princeps senatus nutriria acerca do empreendimento poético, mencionando fragmentos de correspondências que o mesmo trocou com Virgílio pedindo-lhe alguma parte ou resumo da referida obra – a Aeneis (Eneida).309 Há quem diga que o próprio Otávio teria solicitado a realização de tal obra, mas não encontramos subsídios mais concretos para tal afirmação.310 Interessa saber, acima de tudo, em que medida tal obra seria tão adequada para o projeto augustano referente a uma formulação de elogio à pátria romana, incluindo aí uma sugestiva afirmação de poder pessoal. 309 GRIMAL, Pierre. Virgílio ou o segundo nascimento de Roma. Ivone Castilho Benedetti (Trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1992. (Coleção O homem e a história). p. 192 310 Referimo-nos a uma afirmação presente em: CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 10 185 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Desde sempre a Eneida tem recebido reconhecimento quanto à sua realização no que tange “glorificação de Roma, da sua missão civilizadora”, sendo descrito ainda como “expressão máxima da cultura romana”.311 Mas por que tanta segurança nessas assertivas? A segurança, que pode ser questionada pelo espírito crítico de que devem se revestir os historiadores, esclarece-se por uma análise de passagens da obra que nos permitem entender que Virgílio teria importância capital na constituição de política enaltecedora quanto à cultura e civilização do povo romano, à época de Augusto. O poeta concebia sua epopéia enquanto desenvolvimento do destino da raça romana, guardando o tom sublime de que se valem as epopéias tradicionais haja vista o objetivo elevado contido na Aeneis de Virgílio – a história de Enéias, herói dotado de pietas, e por isso identificado pelo epíteto de pius – valor tipicamente romano e por isso indicativo de uma consciente aproximação da realidade latina para contemporizar o alcance da obra – saído de Tróia que se imbui de um fado (fatum) legado a ele em oráculo de ir à terra de origem dos Penates que carrega consigo e fundar uma cidade. Tal viagem desembocaria no Lácio, mas teria seus percalços e interrupções como o desvio para Cartago, onde o pio guerreiro conheceria Dido, rainha da cidade que futuramente rivalizaria com Roma. Enéias se revela como homem decidido a cumprir sua missão, cujo resultado a longo prazo é a fundação da cidade de Roma por um de seus descendentes, Rômulo.312 Notamos que o herói virgiliano tem aspectos de uma mentalidade romana, notável pela ciência do dever de cumprimento de missões, além da justitia e clementia, ou ainda a pietas que matizam o pensamento e costumes dos romanos. Enéias sabe-se portador de uma tarefa suprema, definida pelo destino que os deuses lhe anunciam que não 311 Ambas as citações provêm de: PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. 2 ed. Vol. II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. 312 Ocorre aqui, às mãos de Virgílio, uma fusão das lendas e explicações míticas concernentes ao surgimento da cidade romana: Rômulo pertenceria à linhagem dos reis de Alba Longa, reino que teria sido fundado por Ascânio, filho de Enéias, que por sua vez era da família real troiana (seu pai, Anquises, era primo em 3° grau de Príamo, rei de Tróia à época da conhecida guerra narrada na Ilíada, de Homero). 186 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 pode ser modificado ou interrompido nem mesmo por eles ou por um forte amor que encontra em Dido. Uma missão elevada sobretudo por preparar o caminho para a ascensão daquele que devolveria os tempos de paz a Roma e introduziria nela os tempos áureos – César Augusto. Há dois momentos interessantíssimos para que atribuamos a Virgílio o esforço premeditado de fazer coincidir a obra máxima do povo romano com a história recente, tendo por eixo de condução a figura de Augusto. Um deles é a revelação que Anquises faz a Enéias, quando este desce aos Infernos, relativa ao futuro dos seus descendentes, confirmando-lhe a urgência em desincumbir o fatum que lhe é imposto. Além de explicar a condição dos mortos, descrevendo os estados e moradas das almas no mundo inferior, o pai a quem Enéias tantas vezes expressou devoção filial (em consonância com a pietas que lhe cabe) mostra-lhe a sucessão de heróis, homens notáveis, ilustres personagens que descendem de Enéias e participam da história romana. Tal linha explicativa encontra sua conclusão em Augusto, sobre quem Anquises diz: Vira agora os olhos para aqui: olha esta nação; são os teus Romanos. Eis César e toda a descendência de Iúlo, destinada a surgir sob a grande abóbada do céu. Eis o herói, eis aquele que tão amiúde ouves ser-te prometido, Augusto César, filho de um deus; ele recriará a idade de ouro no Lácio, entre os campos onde outrora reinou saturno; ele levará o seu império mais longe que o país dos Gamarantes e dos Indianos, até às terras que se estendem para além das constelações, para além das sendas do Sol e do ano, e onde Atlas que sustenta o céu faz rodar sobre o seu ombro o eixo do mundo semeado de estrelas cintilantes. Desde já, ao rumor da sua chegada, estremecem os reinos cáspios ante as respostas dos deuses, e a terra meótica e as bocas do Nilo de sete braços tremem confusamente.313 313 VIRGÍLIO. A Eneida. Mem-Martins: Publicações Europa-América, Lda., [S.d.] 187 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Trata-se de um excerto que dispensa extensos argumentos em favor de sua potencialidade quanto à elaboração de um discurso de exaltação. Há que se notar, por exemplo, a referência a César Augusto, descendente de Iulo (outro nome de Ascânio, filho de Enéias), filho de um deus – uma referência a Júlio César, seu pai adotivo que fora divinizado – e herói prometido a Enéias que recriaria a idade de ouro no Lácio, trazendo de volta tempos satúrnicos. Augusto é referido também em tom profético por Anquises como um grande conquistador, cujas vitórias significariam a ampliação do império romano para terras distantes (Anquises menciona até mesmo a Índia), tão distantes que nem mesmo os fenômenos celestes as tocam, e é até mesmo possível encontrar Atlas, titã responsável por sustentar os céus. Augusto é também pintado como poderoso comandante a quem seus inimigos temem, incluindo o Egito, aqui representado pelas “bocas do Nilo de sete braços”. A menção de Augusto na epopéia de Virgílio é de uma profunda significância, haja vista o sentido que o autor atribui a sua obra enquanto revelação dos destinos da raça romana, da soberana raça romana. Além do mais, Virgílio escreve sabedor do que ocorre no presente, dos planos de Augusto. “O poeta, portanto, achava-se depositário dos pensamentos do vencedor, talvez tivesse até contribuído para defini-los e, naquele momento, vira, sentira e compreendera o presente de Roma, ao situá-lo no conjunto do futuro.” 314 Não é inocente a inclusão de Otaviano na linha de descendentes do herói épico de que falamos na Aeneis, bem como a coleção de feitos e virtudes associadas ao divino legatário de Enéias, a quem cabe a condução dos rumos, dos destinos romanos enquanto líder consagrado pela história e por suas aptidões (posto que se espelhe em seu antepassado e seja descrito em paralelismo com o mesmo). O outro momento da Eneida de Virgílio que merece atenção para se atestar as intenções do autor relativas à instrumentalização da obra, seu direcionamento para 314 GRIMAL, Pierre. Op. Cit. 188 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 objetivos políticos, com implicações culturais, é a descrição do escudo de Enéias. Encontrada no Canto VIII da Eneida, tal descrição do escudo preparado por Vulcano fornece apelos visuais para a lembrança de fatos e pessoas notáveis da história romana, como a amamentação dos gêmeos Rômulo e Remo por uma loba, o rapto das Sabinas, defesa do Capitólio contra os Gauleses, c. 390 a.C. etc. Mas o que mais chama a atenção é a cena central: uma representação da Batalha do Áccio, a tão marcante batalha que pôs fim definitivo ao Segundo Triunvirato com o triunfo de Augusto, cuja ascensão ao poder teve seu alicerce lançado com a batalha naval talhada no escudo do semideus. Mais uma vez Augusto tem sua menção na Eneida de maneira elogiosa, sendo correlacionado aos destinos romanos traçados à frente de Enéias, sob a natureza de missão divina. Mais uma vez, as narrativas do poder ganham espaço no contexto da Era de Augusto, particularmente na obra épica que estamos considerando, sendo moldadas pelo discurso de supremacia dirigido a Roma e seu dirigente. Discursos que levam em conta a subjugação do inimigo, a qual perpassa a sugestão ou empenho de perspectivas negativas sobre os oponentes, como se faz com Marco Antônio na representação da Batalha do Áccio no escudo de Enéias.315 CONSIDERAÇÕES FINAIS A título de conclusão, ou a menos de desfecho das questões e elucubrações que procuramos delinear aqui, vale concordar com as sugestões que historiadores e estudiosos tem feito sobre o Principado Romano em seu início: tratou-se de uma conjuntura cujos alcances políticos, sociais e culturais sem dúvida se beneficiaram da conduta da notável 315 É de se notar como a descrição virgiliana promove uma distinção profunda entre as duas figuras do embate que se observa, no caso Otávio e Marco Antônio. Uma distinta oposição, diga-se de passagem, que remete ainda às características de cada um que propiciam as interpretações, sejam elas positivas ou negativas. Antônio, por exemplo, é associado à barbárie, uma vez que se associou ao poder oriental na sua forma monárquica e desposou Cleópatra, rainha do Egito. Vide a Eneida, Canto VIII, verso 675-728, para a descrição da cena central no escudo de Enéias. 189 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 figura de Otávio Augusto. Um contexto marcado pela ambivalência do projeto político do princeps senatus, identificada pela necessidade de afirmação pessoal na esfera das simbólicas relações de poder mas ao mesmo tempo pela afirmação do caráter elevado da civilização cujos interesses e valores Augusto se dispôs a representar e fazer valer perante os demais povos. Logo, é possível discernir nas manifestações culturais identificados com o período conhecido como Pax Romana (governança de César Augusto) efeitos daquilo que vimos no início, na citação da Res Gestae Divi Augusti: uma consciência política da missão de que o imperador se imbui, compreendendo o valor de coligá-la com a mensagem de patriotismo, de auto-suficiência romana no campo mental e civilizacional. Sem dúvida, as transformações sentidas na passagem da República em sua forma tradicional para o Império deveram-se às contribuições desse grande personagem, cuja perspicácia residiu em se fazer agente essencial na continuação da missão de grandeza do povo romano, como um Enéias fadado a um destino grandioso, a quem importa sobretudo a execução de seu dever legado pelos deuses. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. São Paulo: Martins Fontes, 2003 GRIMAL, Pierre. Virgílio ou o segundo nascimento de Roma. Ivone Castilho Benedetti (Trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1992. (Coleção O homem e a história) JACQUES, François; SCHEID, John. Rome et l’integration de l’Empire. Paris: Presses Universitaires de France,1990. (Coleção “Nouvelle Clio”) LEONI, Giovanni D. (Trad.) Res Gestae Divi Augusti. São Paulo: Livraria Nobel S/A, 1957 190 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 MACDONALD, William. Empire Imagery in Augustan Architecture. In: WINKES, Rolf. (Editor) The age of Augustus. [S.d.]: [S.e.], 1985 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. 2 ed. Vol. II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989 VIRGÍLIO. A Eneida. Mem-Martins: Publicações Europa-América, Lda., [S.d.] A Mácula Positivista: críticas e apropriações feitas por Plínio Salgado Felipe Cazetta * RESUMO: O artigo em questão tem como proposta a análise da inserção do positivismo na teoria de Plínio Salgado, fundador e chefe da Ação Integralista Brasileira (AIB). Por ser conhecida como o fascismo brasileiro, a pesquisa busca como objetivo demonstrar outros afluentes teóricos que revestem a AIB, sem relaxar a idéia de o movimento ter como projeto político para o Brasil o autoritarismo e o totalitarismo. PALAVRA-CHAVE: Plínio Salgado; Integralismo; Positivismo. ABSTRACT: The article in question proposes the analysis of the insertion of positivism in the theory of Plinio Salgado, founder and head of the Ação Integralista Brasileira (AIB). Because it is known as Brazilian fascism, the research seeks to demonstrate how other tributaries theorists who take the AIB, but do not relax the idea of the movement have the political project for Brazil authoritarianism and totalitarianism. KEY-WORD: Plínio Salgado; Integralism; Positivism. A rejeição de Plínio Salgado, líder da Ação Integralista Brasileira (AIB)*, pelo *Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFJF 191 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 materialismo, seja ele o burguês ou o marxista, chegando até mesmo a fundi-los, para simplificar a teoria de ambos, empobrecendo-as, e facilitando o foco de ataques. (“A visão estreita da burguesia é a mesma do marxismo. Mas a burguesia passiva e gozadora é muito mais materialista do que o marxismo. Quem nega está afirmando a seu modo” 1). Neste âmbito, o positivismo, não escapa das investidas enredadas por Salgado, devido à crítica, feita por Comte e seus antecessores, aos dogmas religiosos e à exacerbação das virtudes do progresso, promovidas pela ciência, em detrimento da Palavra da Igreja. Estes caminhos metodológicos desenhados pelo positivismo devem reverência à filiação desta escola teórica para com a filosofia das luzes. Devido ao citado retrospecto, Condorcet, filósofo pioneiro a consolidar os pilares do positivismo, afirmava que a ciência positivista deveria ser regida por moldes objetivos e quantificáveis, com a finalidade de tornar translúcidos os estudos da nova ciência, posto que esta seria intangível, segundo os anseios de Condorcet, aos dogmas atemporais da Igreja e à legitimidade divina da coroa dos reis. Nesta medida, o elaborador da doutrina, e seu sucessor Saint-Simon, arrogavam uma ciência que fugisse ao controle da classe dominante 2. Seguindo estas diretrizes, o positivismo repudiava as paixões e interesses nas ciências da sociedade. Contudo, Comte, principal difusor daquela teoria, migra para a esteira oposta de seus predecessores. Por considerar que aqueles caíram nas próprias armadilhas, devido ao radicalismo de Condorcet e de seu discípulo, o socialista utópico Saint-Simon, Comte remodela o positivismo com forte conservadorismo, acreditando não estar, ele póprio, cometendo o erro oposto. Este estigma se deu principalmente, pelo ruído na interpretação de objetividade quanto ao exame sociológico. Comte codificou a metodologia *A AIB foi o primeiro movimento de massa em solo nacional, sendo esta de extrema-direita e vastas semelhanças com os fascismos europeus. 1 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. in. Obras Completas. vol. 5. 2ª edição. São Paulo: Editora das Américas, 1957. p 99. (Grifo meu) 2LÖWY, Michael. Ideologia e Ciência Social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Editora Cortez, 1985. p. 37. 192 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 anteriormente proposta, inspirada nas leis físicas e naturais - deduzindo daí um suposto equilíbrio que deveria ser transposto para a realidade social -, como manutenção da ordem instaurada, não descartando mudanças, mas que estas aconteçam de forma lenta e estável, com a finalidade de evitar o “estado anárquico da sociedade.” 3 Sob este imperativo de manter a ordem, Comte elabora sua nova abordagem sobre o positivismo, calcada na progressão evolutiva da sociedade em três estágios, que caminham do nível teológico, de presença permanente de deuses e totens na vida cotidiana da comunidade, culminando ao último estágio, o estado positivo, ou científico, notoriamente materialista, objetivo e racional, consequentemente ateu, perpassando pelo estado intermediário, chamado de metafísico ou abstrato. É necessário, portanto, aprofundar um pouco mais na análise destes três estados expostos por Comte, visto que representam o eixo central da teoria positivista, além de conter pontos que serão destacados não só como ataques de Salgado ao materialismo comtiano, mas também aproximações entre ambas as doutrinas, das quais o líder da AIB não explicita, todavia são evidentes. Deste modo, há uma citação bastante elucidativa do próprio Comte sobre o que viriam a ser os três estados: No primeiro, idéias sobrenaturais servem para ligar o pequeno número de observações isoladas de que a ciência então se compõe. Em outros termos, os fatos são explicados, isto é, vistos a priori, segundos fatos inventados. (...). Ele fornece, por conseguinte, o único meio pelo qual se possa raciocinar sobre os fatos, sustentando a atividade do espírito que tem necessidade, acima de tudo, de qualquer ligação. Numa palavra é indispensável para permitir que se vá mais longe. (Grifo do original) O segundo estado é unicamente destinado a servir de meio de transição para o terceiro. Seu caráter é bastardo, liga os fatos com idéias que já não são inteiramente sobrenaturais e que não são tampouco inteiramente naturais. Numa palavra, essas idéias são abstrações personificadas, nas quais o espírito pode ver à vontade o nome místico de uma causa sobrenatural ou enunciado abstrato de 3 COMTE, Augusto. Reorganizar a Sociedade. São Paulo: Escala, 2000. p. 15. 193 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 uma simples série de fenômenos conforme estiver mais próximo do estado teológico ou científico. (...). (Grifo meu) O terceiro estado é o modo definitivo de toda e qualquer ciência, uma vez que os dois primeiros não foram destinados senão a prepará-lo gradualmente. Então os fatos são ligados por idéias ou leis gerais de uma ordem inteiramente positiva, sugeridas ou confirmadas pelos próprios fatos e que muitas vezes, não passam de fatos bastante gerais que se transformam em princípios. Procurase sempre reduzi-los ao menos número possível, mas sem instituir nenhuma hipótese que não seja de natureza a ser verificada algum dia pela observação e deixando de considerá-los, em qualquer caso, senão como um meio de expressão geral para os fenômenos.4 (Grifo meu) Isto posto, parece inevitável que um católico fanático tal como Salgado era, tecesse duras críticas ao materialismo apresentado pelo positivismo de Comte. Tais investidas vão de encontro justamente com o desligamento do “(...) Homem dos seus compromissos com Deus”, pois o positivismo “apresenta-se como o verdadeiro egocentrismo materialista, traçando a pantômetro a figura do próprio homem no objeto da sua adoração” 5. Nada mais lógico para uma liderança que preconizava a ascensão prática do slogan “Deus, Pátria e Família.” Plínio Salgado mantém a coerência de seus ataques em A Quarta Humanidade, dissertando contra a organização da democracia liberal. Neste vetor, o integralista difere golpes não só em Comte, mas também, e inevitavelmente, em Adam Smith e H. Spencer, inserindo todos, e sem explicações muito contundentes, na filosofia estóica. Salgado expõe que: “As linhas mestras das democracias modernas inspiram-se no velho estoicismo. Toda a doutrina econômica é estóica: o Estado cruza os braços. É esse o mesmo sentido do 4 Idem, p. 46. 5 “O positivismo de Comte, criando uma divindade irreal, no culto de um humanidade abstrata, e abstendo-se da consideração da metafísica, isto é, desligando o Homem dos seus compromissos com Deus, apresenta-se como o verdadeiro egocentrismo materialista, traçando a pantômetro a figura do próprio homem no objeto da sua adoração.” SALGADO, Plínio. Aliança do Sim e do Não. In. Obras Completas. v. 6. São Paulo: Editôra das Américas, 1955. p. 38. 194 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 evolucionismo spenceriano e do positivismo comtista.” 6 Entretanto, ainda na obra A Quarta Humanidade, mesmo investindo duramente contra o positivismo, Plínio apresenta esquemas de desenvolvimento de suas quatro humanidades – estágios dos quais as civilizações deveriam obrigatoriamente passar – de maneira bastante similar à organização dos estados positivistas, com ênfase às duas primeiras Humanidades, quando comparadas aos estados positivistas de Comte. O segundo tipo de Humanidade (a Monoteísta) apresenta um caráter de fusão como a primeira (Politeísta) apresentou a índole de adição. Na primeira somam-se os clãs, somam-se os deuses, somam-se as províncias, somam-se as causas. Na segunda, todos êsses elementos fundem-se numa idéia totalitária, que abarca tôda a compreensão do universo e todos os movimentos humanos. 7 (Grifo meu) A Segunda Humanidade dissertada por Plínio Salgado, pouco ou nada muda no aspecto “bastardo, [que] liga os fatos com idéias que já não são inteiramente sobrenaturais e que não são tampouco inteiramente naturais.”8 Ao que se refere ao modelo de desenvolvimento das sociedades, a Segunda Humanidade conserva o caráter de de transição e bastardia – utilizando o termo de Comte – pois esta nada mais é que a fusão do que se desenvolveu na primeira. A Humanidade primeira, por sua vez, conserva a característica de primitivismo totêmico das “sociedades arcaicas”, onde os fenômenos naturais se confundem com as manifestações de divindades, e onde ciência e religião eram intrínsecas9. A Terceira Humanidade mantém a mesma perspectiva ensejada por Comte, em 6 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. . in. Obras Completas. vol. 5. 2ª edição. São Paulo: Editora das Américas, 1957. p. 38. 7 Idem, p. 33. 8 COMTE, Augusto. op.cit. p. 46. 9 “O totem traz consigo uma interpretação da idéia revelada quando o Homem ainda não havia se degradado em conseqüência do pecado original. O significado imediato do animal totêmico, atingia a extensão do do domínio tribal, começa a ampliar-se na correspondência com os fenômenos cósmicos, através dos processos analógicos, em que o Homem Primitivo comunga no conjunto das expressões naturais.” Idem, p. 21. 195 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 outras palavras, de destaque do desenvolvimento científico-tecnológico em detrimento das explicações e relações sociais calcadas na religiosidade. Contudo, as opiniões sobre estes avanços são evidentemente divergentes, haja vista o já destacado fanatismo religioso qual Salgado era embebido, contrastante ao objetivismo pregado por Comte. É ilustrativa a designação oferecida pelo líder da AIB a esse estágio, que é “A Terceira Humanidade, a Ateísta, tem uma índole de dissociação, de desagregação.”10 Esta percepção pessimista é defendida pelos mesmos motivos do deslumbramento de Comte. Para o difusor do positivismo vulgar: O destino da sociedade, que atinge sua maturidade, não é o de habitar para sempre a velha e decadente choça que se edificou em sua infância (...) nem o de viver eternamente sem abrigo (...), mas, com a ajuda da experiência adquirida, o de construir para si, com todos os materiais que acumulou, o edifício mais apropriado a suas necessidades e a seu prazer.11 (Grifo meu) Em Salgado as diferenças são sutis, porém bastante esclarecedoras para que se desenhe a Quarta Humanidade integralista. Para Plínio, “A Terceira Humanidade funda-se nas conclusões científicas, nas verdades em trânsito, da hipótese para a tese e da tese para a hipótese.” Portanto, nestes termos a perspectiva se mantêm em relação ao descrito por Comte. Contudo, o que é inconveniente e torna desagregadora esta Humanidade, para Plínio Salgado, é o seu teor de “Verdades em Trânsito”, consolidando o prelado do ateísmo. O dogma e os sistemas de crença são fundamentais para a manutenção da religião, seja ela de viés espiritual, seja ela de viés cívico. Para tanto é que as grandes religiões de massas e partidos que se apóiam no carisma popular lançam mãos de imagens (sejam elas materiais ou linguísticas) simplificadoras, disseminadoras de ideologias. 10 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. p. 39. 11 COMTE, Augusto. op. cit. p. 26. 196 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Destarte, é válido tocar numa discussão que tangencia este artigo: a construção do mito oficial. Para que seja posto de pé um sistema ideológico que faça sentido para a massa, e ao mesmo tempo represente as ambições particulares de uma casta ou classe dirigente, é pertinente a simplificação e justaposição do discurso em formato de imagens de fácil apreensão, a transformação do conceito em imagem, e associações livres de imagens12. A capacidade de dinamismo, em sentido dialético de mobilização-justificação é dada à ideologia, a partir da simplificação e esquematismo da qual é revestida. Ricoeur expõe que “Seu papel não é somente o de difundir a convicção para além do círculo dos pais fundadores, para convertê-la num credo de todo o grupo, mas também o de perpetuar a sua energia inicial para além do período de efervescência.” 13 Por outro lado, a ciência se faz a partir da instabilidade das teses postas e da efemeridade de “verdades temporárias”. Desta forma, a ciência tem como oposto a crença incondicional e dogmática. Assim sendo, com a finalidade de afastar a humanidade das “trevas do ateísmo” é fundado o último Estado, a utopia integralista. O Estado, que salve o homem da ditadura cruel do materialismo finalista e da ditadura sem finalidade da ditadura da plutocracia democrática e das oligarquias políticas e financeiras. O Estado que defenda o Indivíduo contra a Sociedade e a Sociedade contra o Indivíduo. O Estado que seja impositor do equilíbrio, o mediador máximo, o juiz, o orientador, o propulsor. (...) Esse estado realizará a possível felicidade da Terra, baseada na confiança em Deus, no amor ao próximo, sem excluir os valores científicos, mas subordinando a ciência a um pensamento superior de finalidade humana. 14 Em síntese, Salgado busca através da construção do Estado Integralista, pela ordem e equilíbrio, a reestruturação dos pilares do integralismo, que são resumidos pela tríade 12 CHAUÍ, Marilena. Apontamentos para uma crítica a Ação Integralista. In. CHAUÍ, Marilena & Franco, Maria Sylvia de Carvalho. Ideologia e Mobilização Popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. . p.40. 13 RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S/A.,1983. p. 68. 14 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. p. 65. 197 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 “Deus, Pátria e Família”. Tripé este que dialoga de maneira intensa o lançado pelos positivistas de “Família, Pátria, Humanidade” 15. Na humanidade utópica desenhada por Salgado, mesmo alterando o lema positivista, inserindo “Deus” em lugar de “Humanidade, ando sim há encontros entre uma e outra doutrina. O líder da AIB examinava a massa popular, nas palavras de Cavalari, como “(...) imatura, incapaz, inconsciente e estúpida, ela não tinha condições de, sozinha, conduzir-se na vida. Havia a necessidade de que alguém as virtudes que lhe faltavam, interpretasse suas aspirações e guiasse 16 . Não faltam passagens na obra de Salgado que comprove a afirmação da professora Rosa Maria, dentre várias cito apenas uma presente em Palavra Nova de Tempos Novos, onde o líder da AIB compara a massa com o selvagem shaekspeariano Calibã: “Calibã é a grande massa popular inconsciente, (...)” 17 “Não conhece a lógica. Não entende os ritmos superiores das harmonias. É forte e poderoso, mas é estúpido e cego. Não conhece a palavra 'construção', porque só aprendeu a palavra 'destruição'.” 18. Para que “este monstro estúpido” seja domado e mantido sob controle, Salgado recorre absolutamente aos mesmos personagens que Comte, para realizar esta a tarefa de levação do nível cultural das massas 19 que são os sábios 20. Nesta tarefa, Salgado ressalta a 15 “O que o comtismo introduzia eram as formas de vivência comunitária, a família, a pátria e, como culminação do processo evolutivo, a humanidade (que Comte escrevia com h maiúsculo).” CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 22. 16 CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo: ideologia e organização de um partido de massa no Brasil(1932-1937). Bauru, SP: EDUSC, 1990.. p.44. 17 SALGADO, Plínio. Palavra Nova de tempos Novos. in. Obras Coletivas. vol. 7. São Paulo: Editôra das Américas, 1955.p. 325. 18 Idem, p. 329. 19 “Um dos grandes planos, pois, que temos a executar no Brasil, não é simplesmente o da alfabetização: é o da elevação cultural das massas.” SALGADO, Plínio. Despertemos a Nação. In. Obras Completas. v. 10. 2ª edição. São Paulo: Editora das Américas, 1954.p. 149 20 “A natureza dos trabalhos a executar indica por si, do modo mais claro possível, a que classe compete empreende-los. Sendo teóricos, esses trabalhos, é claro que os homens que se especializam em formar combinações teóricas seguidas metodicamente, ou seja os sábios que se ocupam do estudo das ciências de observação são os únicos cuja espécie de capacidade e de cultura intelectual preenche as condições necessárias.” COMTE, Auguste. op. cit., p. 39. 198 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 importância dos quadros de juristas, políticos e intelectuais 21 no intuito de disseminar a “Revolução do Pensamento” no intuito de recompor o equilíbrio, abalado sempre que, segundo a liderança integralista, alguns elementos da sociedade se hipertrofiam em detrimento de outros 22 . Na tarefa de adestrar a “massa popular”, Plínio Salgado elenca aspectos interessantes para sanar a “enfermidade social” que assola o país. O problema da ordem não é um problema de polícia, mas é um problema de regímen. A desordem é um sintoma de enfermidade social. Quando um país entra em anarquia, quando se multiplicam os distúrbios, quando proliferam os descontetamentos, os brados de rebeldia e as atitudes de desespêro, cumpre examinar o quadro social, o valor e a disposição das fôrças econômicas, numa palavra, as forças da arritmia dos movimentos sociais, das superexcitações nervosas das multidões. 23 A preocupação com a manutenção da ordem e do equilíbrio no seio da sociedade, mantendo a massa no lugar mais distante possível do poder, não são preocupações originais de Salgado. Comte enseja este exercício de problematização logo nas primeiras páginas de “Reorganizar a Sociedade”. Diga-se de passagem, o trecho de “Páginas de Ontem”, acima citado, guarda semelhanças consideráveis com o excerto do positivista: Um sistema social que se extingue, um novo sistema que chaga a sua inteira maturidade e que tende a se construir, esse é o caráter fundamental destinado à época atual pelo andamento geral da civilização. Em conformidade com esse estado de coisas, dois movimentos de natureza diferente agitam hoje a sociedade: um de desorganização, outro de reorganização. No primeiro, considerado isoladamente, a sociedade é arrastada para uma profunda anarquia moral e política que parece ameaçá-la por uma próxima e inevitável dissolução. No segundo, ela é conduzida para o estado social 21 “Aos pesados juristas, aos tardos magistrados, aos medalhões da política e da literatura, convidamos a tomar parte nos conflitos que a juventude impetuosa promove, ou a escutar as heresias e barbaridades com que achincalhamos em nossas tertúlias o velho Direito, a velha Literatura e as velhas Constituições.” SALGADO, Plínio. Palavra Nova de tempos Novos. p.191. 22 SALGADO, Plínio. Páginas de Ontem. In. Obras Completas. V. 10. São Paulo: Editora das Américas, 1955. pp. 184-185. 23 Idem, p. 193. 199 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 definitivo da espécie humana, (...). É na coexistência dessas duas tendências opostas que consiste a grande crise experimentada pelas nações mais civilizadas. É sob este duplo aspecto que essa crise deve ser encarada para ser compreendida. 24 Após estas citações, é valido que se efetiva as devidas comparações, considerando as semelhanças entre um discurso e outro. Ambos os autores, partindo de uma perspectiva conservadora de progresso dentro da ordem, embasam seus respectivos discursos. Salgado se aproxima a tal ponto da ótica de Comte, que cria um conceito próprio de Revolução25, onde esta se realizaria, em primeiro momento, na esfera mental, para somente a posteriori se concretizar no plano da ação. Desta forma, a Revolução do Pensamento seria a verdadeira revolução, sendo está possível de ser realizada apenas pelas elites, eleitas por Salgado e formadas pelos Departamentos de Estudos, submetidos ao crivo do Departamento Nacional de doutrina, ambos, órgãos integralistas. 26 Em suma, mesmo impelindo duras críticas ao materialismo, Salgado lança mão de grandes contribuições à obra de Comte, sendo o mesmo, nas palavras de Salgado, um materialista burguês. Entretanto, na concepção do Estado Integral, ou a Quarta Humanidade, há aspectos que evidentemente não constam na obra positivista, mas remetem ao passado modernista do Chefe da AIB. BIBLIOGRAFIA COMTE, Augusto. Reorganizar a Sociedade. São Paulo: Escala, 2000. 24 COMTE, Augusto. Op.cit. p. 13. 25 “As Revoluções, sejam de que natureza forem, têm, lógicamente, um caráter ético, uma finalidade moral. Todas as revoluções são atos ideais, porque toda alteração da marcha social pressupõe a autonomia da Idéia, o seu valor intrínseco, a sua prevalência sobre as fôrças desencadeadas pelo determinismo dos fatos.” SALGADO, Plínio. Psicologia da Revolução. in. Obras Completas. vol. 7. São Paulo: Editôra das Américas, 1955. p. 33. 26 CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. op.cit. p. 48. 200 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo: ideologia e organização de um partido de massa no Brasil(1932-1937). Bauru, SP: EDUSC, 1990. CHAUÍ, Marilena. Apontamentos para uma crítica a Ação Integralista. In. CHAUÍ, Marilena & Franco, Maria Sylvia de Carvalho. Ideologia e Mobilização Popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. LÖWY, Michael. Ideologia e Ciência Social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Editora Cortez, 1985. RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S/A.,1983 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. in. Obras Completas. vol. 5. 2ª edição. São Paulo: Editora das Américas, 1957. _______________. Aliança do Sim e do Não. In. Obras Completas. v. 6. São Paulo: Editôra das Américas, 1955. _______________. Despertemos a Nação. In. Obras Completas. v. 10. 2ª edição. São Paulo: Editora das Américas, 1954. _______________. Palavra Nova de tempos Novos. in. Obras Coletivas. vol. 7. São Paulo: Editôra das Américas, 1955. _______________. Páginas de Ontem. In. Obras Completas. V. 10. São Paulo: Editora das Américas, 1955. _______________.Psicologia da Revolução. in. Obras Completas. vol. 7. São Paulo: Editôra das Américas, 1955. 201 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Estado Português e Igreja Católica: auxílios e disputas na manutenção do domínio social e os Cristãos-novos como alvo deste processo nas Minas setecentistas. Franciany Cordeiro Gomes316 RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar a participação da Igreja como instrumento de domínio e repressão social do Estado português, visando suas motivações para a perseguição aos cristãos-novos estabelecidos nas Minas durante o século XVIII, que foram as principais vitimas deste processo de união de forças das respectivas instituições. PALAVRAS-CHAVE: Inquisição, Cristãos-novos, relação Estado e Igreja. RÉSUMÉ: Ce travail a pour son but analyser la participation de l’Église comme un instrument de domination et répression sociale de l’État Portuguais, en visant ses motivations à la persécution aux nouveaux chrétiens qui se sont fixés à Minas pendant le XVIIIe siècle, ceux-ci, les principales victimes de ce processus d’union de forces entre ces deux instuitions. MOTS CLÉS: Inquisition, Nouveaux chrétiens, relation entre l’État et l’Église. Introdução A partir de uma analise ainda inicial sobre os processos inquisitoriais disponíveis digitalizados na página do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, vários questionamentos se tornaram evidentes para a feitura deste trabalho. Como foi a ação inquisitorial na 316 Aluna do 5° período de graduação do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora e bolsista de iniciação cientifica no Laboratório de História Econômica e Social (LAHES) coordenado pela professora doutora Carla Maria Carvalho de Almeida. 202 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 colônia brasileira, mais especificamente em Minas? Em que ela consistiu? Quem foram suas maiores vitimas? Qual a importância destes personagens? Qual foi a atuação do Estado dentro deste processo? Qual e como ocorreu a relação entre Estado e Igreja católica neste período? E, o que isso influenciou no processo de extração aurífera nas minas? Com estas perguntas em mente e trabalhando com os documentos, selecionando aqueles que mais se encaixavam dentro deste contexto, pôde-se chegar a algumas respostas que ainda poderão ser posteriormente melhor trabalhadas num futuro desdobramento. Para a conclusão deste trabalho, uma analise superficial sobre a história da Inquisição na Europa e no que se entende como Império Português foi de grande necessidade para o melhor entendimento da natureza desta instituição. Após este primeiro momento, a relação entre Estado Português e Igreja Católica se tornou o foco da narrativa, esclarecendo o tipo de relação e quais foram os resultados desta para a repressão social. Observando o contexto social em Minas Gerais e sua composição, o personagem cristão-novo veio à tona por sua importância tanto econômica como social, e sua freqüente aparição dentre os processados pela inquisição nas Minas tornou-os objeto de estudo. De forma geral, o trabalho tenta saber de que forma esta instituição foi usada para uma tentativa de centralização do poder, que objetivava afetar aqueles que mais possuíam condições de desafiar esta ordem que se pretendia estabelecer. Sobre a Inquisição A Igreja Católica, durante a Idade Média, era uma das mais importantes instituições do período, se não a mais. Era ela a referência moral e comportamental, que determinava e influenciava o cotidiano e a concepção de mundo das pessoas. Esta situação perdurou 203 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 inquestionável até o final da Baixa Idade Média quando se iniciou um movimento questionador de seus dogmas e de sua conduta perante o meio social. Objetivando manter sua predominância, acabando com as controvérsias surgidas com o movimento reformista, a Igreja decide por reformular suas posições e sua conduta, porém, antes disso, cria um meio de repressão e dominação daqueles que se opunham ou não seguiam seus princípios, os denominados hereges. Pra isso a Igreja convocou a Ordem dos Dominicanos e a incumbiu de perseguir e punir aqueles que se desviavam das “leis da Igreja”. Para cumprir essa missão os Dominicanos criaram a Milícia de Jesus Cristo. Inicialmente essa perseguição não possuía uma organização nem uma instituição regular que cumprisse este papel. Eles somente investigavam e interrogavam, não usando ainda os artifícios de tortura, e quando necessário, puniam somente aqueles que se encaixavam dentro de uma lista de desvios de conduta ou de pecados que a Igreja formulou para esse fim. Após algum tempo surgiram os Tribunais Inquisitoriais que possuíam uma administração hierarquizada e intimamente ligada a Igreja, mas durante a transição dos tempos medievos para os modernos essa sofreu uma pausa em suas ações. Foi na Idade Moderna que esta instituição alcançou seu auge, quando os reinos católicos ibéricos, Portugal e Espanha, sofrendo com a invasão dos mouros e vendo o grande progresso econômico do povo judeu que ali estava estabelecido, resolveram pedir ao papa a permissão para retornar com a inquisição em seus territórios. A Espanha, em 1478, foi a primeira a estabelecer um tribunal inquisitorial em seu território de domínio. Seguindo seu exemplo, Portugal, em 1536, também foi contemplado. Como Portugal é o nosso objeto de estudo, enfatizaremos a analise da ação Inquisitorial neste reino. 204 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Com a Bula Papal Cum ad nihil magis, foram nomeados três bispos para exercerem o cargo de Inquisidores-gerais, deixando uma vaga a ser ocupada por um escolhido do rei D. João III. A instituição portuguesa demonstrava a grande intervenção régia que sofria, que de acordo com a autora Anita Novisky, esta serviu para centralizar o poder da Coroa317. A atuação deste Tribunal iniciava-se com as visitações periódicas as províncias e vilas do reino, onde investigavam e colhiam denúncias, depoimentos e confissões dos moradores daquelas localidades. Era estabelecido no início das visitações o “tempo da Graça”, no qual qualquer um poderia confessar seus crimes e ser absolvido pelas bênçãos de Deus. Posteriormente os alvos de denuncia eram convocados para serem submetidos a interrogatórios que poderiam demorar semanas ou até meses, nos quais o indivíduo sofria torturas para confessar seus crimes, já que a instituição não admitia ser questionada em suas posições, por isso às confissões eram forçadas. Após admitirem seus pecados, estes indivíduos, se sobrevivessem, ficavam encarcerados nos Cárceres secretos da Inquisição até poderem participar do Auto-de-fé, cerimônia simbólica que contava com a participação das autoridades locais e do clero, e eventualmente do próprio rei, onde as sentenças eram lidas publicamente. Os réus eram conhecidos, vexamados e encaminhados para um possível relaxamento à autoridade secular, se caso fosse punido com a pena de morte. Os que não eram punidos com a pena capital poderiam ser encaminhados para exílios, ou serem expostos ao julgo popular, serem obrigados a usarem sambenitos túnicas que eram desenhadas com imagens denunciantes do pecado que aquele individuo 317 NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1983, pág. 37. 205 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 havia cometido - ou cumprir determinações espirituais como orações cotidianas, benfeitorias e etc. A Inquisição portuguesa teve como seu maior objetivo a perseguição dos cristãosnovos (judeus convertidos ao cristianismo durante sua expulsão em 1492). Esta estava sob jurisdição da Coroa portuguesa que pagou uma quantia significativa à Roma para que esta não influenciasse em sua ação318. A ação inquisitorial em Portugal pode ser considerada como mais rigorosa e mais feroz que a espanhola, pois atuou em um território mais vasto e usou de procedimentos mais cruéis. Toda a sua atuação era mantida em sigilo rigoroso, nem mesmo o réu sabia quem o havia denunciado e sobre o que estava sendo julgado, não podendo assim se defender. Seus funcionários seguiam uma hierarquia pré-determinada. A maior autoridade dentro da instituição eram os inquisidores-gerais, logo abaixo vinham os comissários inquisitoriais, por fim entravam os familiares, os escrivãos, os clérigos designados para funções especiais e etc. Pertencer a este corpo administrativo concedia aos indivíduos status social e privilégios, como isenção de impostos, por exemplo. Para ser escolhido o individuo deveria passar por uma investigação sobre sua “limpeza do sangue”, já que deveria ser descendente de uma família ligada às tradições da Igreja, não tendo assim ascendentes originários de outras frentes religiosas, o que demonstra que esta instituição se baseava no preconceito religioso. A relação que o Estado e a Igreja mantinham era uma união de forças, mas com certa rivalidade na disputa de poder. O Estado português tentava atenuar, de certa forma, a influência e o poder que a Igreja exercia através de beneplácitos régios e a regia protectio, a fim de centralizar o poder em suas mãos, que, segundo Anita Novinsky, a Igreja era uma 318 Ibdem pág. 36 206 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 arma a mais para o Estado319. Mas como a sociedade em si era corporativista e a Igreja possuía grande poder influenciador sobre a população, o qual continuava a ser dividido entre as instituições320. A Inquisição em Minas Gerais A Inquisição no Brasil se deu em forma de visitações eclesiásticas, iniciando suas atividades em 1579 e se estendendo até as proximidades da Independência. Sua atuação tinha como finalidade os âmbitos políticos e econômicos, como na metrópole. Não houve o estabelecimento de um tribunal como na América espanhola, ficando esta sob jurisdição do Tribunal de Lisboa. A ação inquisitorial seguiu as regiões produtoras de riqueza da colônia. Com o período de grande exploração de ouro e diamantes nas Minas, esta não deixou de estabelecer seu cerco de domínio e repressão neste local. As vilas e províncias mineiras, como nas demais regiões da colônia, eram fiscalizadas inicialmente com a ajuda dos clérigos locais que fiscalizavam e levavam as denuncias ao conhecimento de Lisboa quando necessário ou resolviam as pendências in loco. Após este primeiro momento, com o desenvolvimento e crescimento da colônia como um todo, houve a formação de um aparato burocrático em auxílio às visitações, esta se tornando mais complexa, com a nomeação de pessoas de variados graus de importância dentro da sociedade para os cargos de comissários, familiares e cargos de base. 319 Idem. Esta posição vem de acordo com uma nova corrente historiográfica, que não vê a colônia brasileira como um simples apêndice da metrópole e questiona a real centralidade do poder da metrópole, visando certa autonomia dos componentes sociais. 320 207 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Através de visitas periódicas às diversas localidades existentes nas regiões das minas, os comissários ou os clérigos locais promoviam como na Europa o “tempo da Graça”, e após investigações a fundo no cotidiano dos habitantes, os denunciados eram julgados ali mesmo, dependendo da heresia cometida, ou era feita a solicitação de visitadores de Portugal, ou mesmo, o denunciado era diretamente encaminhado para Lisboa. Para se fazer uma denuncia à inquisição, bastava a palavra do denunciante, não sendo necessárias provas ou quaisquer outras formas de confirmação desta denúncia para abrir as investigações contra o acusado. Por isso, muitas famílias ou inimigos locais usavam deste artifício para “agredir” politicamente seus contrários. O poder local e a Coroa também se serviam deste caminho para derrotar seus opositores. Crimes como blasfêmia, sodomia, concubinato, bigamia, feitiçaria e judaísmo eram os mais comuns nas regiões das minas. Dentre estes crimes, o que era bastante visado nas ações cotidianas das pessoas era seu envolvimento com o contrabando de mercadorias e de ouro, além da usura e da luxuria, vistoriando o correto pagamento de dízimos e impostos. Isso proporcionava um grande controle das riquezas e dos bens dos indivíduos, conseguindo controlar de certa forma a produção e os desvios de ouro que poderiam ocorrer neste momento. Outra forma de controlar as riquezas pessoais que a inquisição usava era o confisco de bens, como anteriormente citado, de grande uso e de extrema importância para o funcionamento da instituição, e neste quesito as grandes vítimas eram os cristãos-novos. Alguns autores como Schwartz321 acreditam que foram poucos os casos de acusação por judaísmo para os cristãos-novos, mas Novinsky322 e Salvador323 se colocam 321 LOCKHART, James & SCHWARTZ, Stuart B. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 322 NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1983 208 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 contrários a esta opinião constatando a grande presença de processos inquisitoriais relativos a eles. Os cristãos-novos nas Minas Vítimas de preconceito e perseguição na Europa, muitos cristãos-novos vieram para a colônia luso-americana com a esperança de reconstruir suas vidas e alcançar patamares que a eles eram negados no Velho Mundo. À procura de enriquecimento e prestígio, estes indivíduos vieram em quantidade, povoando uma variada gama de regiões, percorrendo quase todo o território colonial do período em busca de melhores condições de vida. Minas Gerais foi uma das rotas percorridas por eles, mas não há evidências concretas de que algum deles possuísse minas de ouro e de diamantes. Sua aptidão econômica para o comércio, com a ajuda de seus laços familiares espalhados por várias regiões, além de tantas outras atividades por eles desenvolvidas como o artesanato, profissões liberais e etc., influenciaram para o desenvolvimento da região, chegando alguns deles a exercerem cargos de mando e participando da aristocracia local, tendo sua inclusão neste grupo por sua vultuosa riqueza acumulada. Por possuir esta grande importância local dentro de uma região que produzia a maior parte da receita reinol, e por estarem direta ou indiretamente ligados a extração destes minérios, os cristãos-novos foram perseguidos, já que o controle de sua conduta representava de certa forma o controle desta produção e de seu deslocamento [???]. Heresias como luxuria e usura, que eram constumadamente ligadas à tradição judaica, influenciavam no julgamento destes indivíduos, pois restringia seu comportamento 323 SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro, 16951755: relações com a Inglaterra. São Paulo: Pioneira, 1992. 209 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 econômico e, de certa forma, controlava suas atividades de maior lucro, pois era por meio destes “erros” que suas riquezas eram formadas, em alguns casos. Por estarem vinculados as atividades de metalurgia, mineração e comércio de abastecimento acreditava-se que o controle destes homens poderia amenizar o contrabando muito utilizado nesta região o que provocaria o barateamento da manutenção e o não pagamento de impostos ao reino. Outra forma de ação repressora a estes indivíduos foi o confisco de bens, citado anteriormente. Esta atividade muito usada pela instituição era de interesse de todas as partes envolvidas, excluindo é claro os próprios réus e seus familiares. “Familiares e outros colaboradores apropriavam-se de bens que não lhes pertencia, por ocasião dos confiscos.” (SALVADOR, 1992, pág. 175). O resultado destes confiscos aos cristãos-novos e seus familiares eram devastadores. Suas fortunas, bens e atividades lucrativas foram totalmente anulados, ficando os dependentes destes na miséria algumas vezes, isso retirava sua influência local que dependia de seu dinheiro. Homens como Diogo Nunes Henriques, Francisco Ferreira Isidoro e Manuel Nunes da Paz são exemplos deste tipo de perseguição. Os cristãos-novos eram inicialmente acusados de judaísmo, que não necessariamente representava uma heresia concreta, pois a simples ascendência longínqua desta religião já representava um crime cometido. Posteriormente, durante o decorrer do processo, sua vida íntima e sua conduta tanto social quanto econômica eram colocadas em foco. Não existem comprovações de que isso ocorreu verdadeiramente, mas como foi um artifício por várias vezes usado, a acusação destes ao Tribunal poderia ser motivada por disputas políticas, pois para se abrir um processo, ou melhor, uma investigação contra alguém, não era necessário provas concretas inicialmente. Assim, devido ao fato de 210 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 exercerem certa representação política na região, os aristocratas opositores a eles poderiam usar deste instrumento para seus fins políticos, podendo saber anteriormente de sua ascendência que certamente os levariam aos cárceres. Conclusão A partir das informações supra citadas podemos verificar que desde o início do estabelecimento da Inquisição nas terras de Portugal, o Estado estava extremamente vinculado a esta instituição, e intuía usar da força deste instrumento para centralizar o poder em suas mãos. Este objetivo foi ocasionalmente atendido, mas na maioria das vezes a disputa de poder entre estas instituições impedia a centralização, já que a Igreja ainda exercia grande poder na determinação do cotidiano das pessoas, inclusive do próprio Estado. Os cristãos-novos tiveram participação efetiva neste processo de disputa por serem objeto de aversão entre as duas partes, um por motivos financeiros e outro por motivos morais, além de sua inquestionável importância social e econômica nesta sociedade. Referências Bibliográficas Fontes primárias324: PT-TT-TSO/IL/28/9542 - ANTT (processo inquisitorial referente a Manuel Nunes da Paz) 324 As fontes primárias usadas, em maioria foram somente superficialmente trabalhadas, sendo usados todos os nomes de cristãos-novos referentes a Minas Gerais que constam no acervo digitalizado do Arquivo Nacional da Torre do tombo. As fontes citadas foram analisadas a titulo de exemplo, pois atendem o objetivo do trabalho. 211 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 PT-TT-TSO/IL/28/11965 - ANTT (processo inquisitorial referente a Francisco Ferreira Isidoro) Fontes secundárias: NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1983. NOVINSKY, Anita Waingort. Marranos e a Inquisição: sobre a Rota do Ouro em Minas Gerais. In: Os judeus no Brasil: inquisição, imigração e identidade/ Keila Grinberg (org). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. RODRIGUES, Isis Meneses de. Visitações Eclesiásticas: do delito a punição - Mariana (1722-1743), dissertação de mestrado. Juiz de Fora, 2009. LOCKART, James & SCHWARTZ, Stuart B. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2000. SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro, 1695-1755: relações com a Inglaterra. São Paulo: Pioneira, 1992. BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 212 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A Queda Genocida da Casa do Islã - O Genocídio Armênio (19151923): pela sobrevivência do Império Turco-Otomano325. Heitor de Andrade Carvalho Loureiro326 “Can you feel their haunting presence?” System of a Down – Holy Mountains RESUMO: Veremos brevemente como os povos turcos se instalaram na Anatólia e Ásia Menor, territórios historicamente ocupados por armênios. Veremos também, de forma mais aprofundada, como a presença turca alterou as relações históricas e sociais ali existentes até a configuração do quadro genocida no século XX. PALAVRAS-CHAVE: Império Turco-Otomano; Armênia; Genocídio. ABSTRACT: This paper analyzed how the Turkish people joined in Anatolia and Minor Asia. It will be analyzed how the Turkish presence changed the historical and social relationships to the start of the Armenian Genocide in twentieth century as well. KEYWORDS: Ottoman Empire; Armenia; Genocide. O Império Turco-Otomano: instituições sócio-políticas Por volta do século XI, povos nômades oriundos dos planaltos da Ásia Central migraram rumo ao ocidente, em busca de melhores condições para os seus. Chegando à 325 Este paper é parte da nossa monografia de bacharelado em História pela UFJF, intitulada “A Queda da ‘Casa do Islã’: O Genocídio Armênio (1915-1923) como práxis paradigmática no século XX”. 326 Graduado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). 213 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Anatólia, ainda como nômades, conseguiram se instalar em um terreno inóspito, onde os árabes haviam logrado derrota anos antes327. Entretanto, a terra recém-conquistada não era inabitada. Diversos povos já se encontravam ali desde tempos imemoriáveis e possuíam peculiares organizações sociais. Entre estes, havia os armênios. Descendentes do antigo povo mesopotâmio de Urartu, instalado no sopé do Monte Ararat há 2500 anos a.C., os armênios viram seu Estado chegar à extensão máxima sob o governo de Tigranes, o Grande, entre os anos de 95 e 56 a.C., o que fez dos armênios aliados imprescindíveis do Império Romano, que precisavam deste povo para conter a ameaça persa que vinha do oriente. A essa altura, os armênios funcionavam como uma espécie de “tampão”, a última fortaleza ocidental contra os “bárbaros” orientais328 (SAPSEZIAN, 1997). É na era cristã, porém, que a história dos armênios ganha novo significado e importância. Já sem a força de um Estado estável que fora outrora e sempre ameaçados pelas potências romana, bizantina e persa, os armênios encontraram na sua fé o elo político, social e cultural que os mantém até hoje ligados, forjando uma identidade comum, mesmo na Diáspora pós-genocídio329. 327 Perry Anderson (1989, pp. 361-362), sustentado por argumentos de pesquisadores do Islã, chama a atenção para as condições geográficas da Anatólia, que se assemelham à região de origem turca, inclusive para a adaptação dos camelos – principal meio de transporte destes. 328 Por sua localização geográfica, a Armênia foi por vezes assediada por diversos povos que passavam pelos territórios no Cáucaso e no nordeste da Anatólia a fim de alcançar a o centro da Ásia Menor e a Europa. Por causa desta posição privilegiada geograficamente e por vezes, cobiçada por diversos povos, Henry Morgenthau chama a Armênia de “A Bélgica do oriente” (MORGENTHAU, 1918, p. 166). A comparação com a Bélgica também é feita pelo candidato a presidência dos EUA, Charles E. Hughes, em 1919: “The atrocities in Belgium, terrible as they were, were but slight as compared with the incredible cruelties and massacres that took place in unfortunate Armenia” (DADRIAN, 2004, p. 16). 329 É importante percebermos que a trajetória da Igreja Apostólica Armênia – também referenciada como Igreja Gregoriana – não é um mero episódio na história deste povo. A Igreja é uma forte instituição com um papel de suma importância para os armênios, tanto durante o genocídio, quanto para articulá-los nos vários países onde a diáspora armênia se firmou. O romance Os Quarenta Dias de Musa Dagh ilustra a importância da Igreja Armênia como liderança até mesmo na hora da morte ou de enfrentar o algoz turco que se precipitava sobre as comunidades armênias da Anatólia (WERFEL, 1995). Sobre a diáspora brasileira, o trabalho de Roberto Grün (1992) discorre com clareza sobre o papel da Igreja Apostólica Armênia no Brasil como instituição filantrópica e mutualista para os novos imigrantes que chegavam à colônia. Em outro trabalho, foi este também o tom que nós demos à história da Igreja: como a sua história é um alicerce da identidade armênia (LOUREIRO, 2006). 214 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Os turcos, por sua vez fixados na Anatólia, aos poucos foram conquistando terreno sob as possessões árabes. A decadência deste no Oriente Médio facilitou vida dos nômades forasteiros, que conquistaram Bagdá e fundaram um Império Seljúcida já sedentarizado, aproveitando toda a estrutura jurídica e administrativa deixada pelos árabes (ANDERSON, 1989, pp. 361-362). Em meados do século XIII, as invasões mongóis fragmentaram a unidade existente dos Estados turcos, transformando-os em um mosaico de emirados, sem unidade. Deste cenário heterogêneo, o sultanato osmanli – origem dos Otomanos – surge como força capaz de dominar as demais instituições e unificá-las em torno de um grande Império (Ibid., p. 363). Anderson nos chama a atenção para a convergência de instituições culturais e religiosas que teriam dotado, segundo ele, o Império Turco-Otomano do poderio que este teria durante os próximos 500 anos. Para o autor, a racionalidade administrativa islâmica, herdada pelos turcos, somada ao zelo militar, próprio do espírito ghazi destes330, teria propiciado a este Império os contornos peculiares que nenhum Estado absolutista europeu poderia criar (Idem). Os turco-otomanos mantinham então uma relação dúbia com os não-islâmicos que se encontravam sob jugo durante a expansão da dinastia otomana: se por um lado o espírito ghazi colocava como condição a conversão do “infiel” para que o Império prospere; por outro lado, a conversão de todos os cristãos – ainda que isso fosse possível – não era viável do ponto de vista administrativo, uma vez que a fé islâmica prevê a tolerância a nãomuçulmanos desde que estes sejam devidamente tributados pelo Estado. Tal tributação, 330 Segundo Anderson, é “uma fé militante de cruzada muçulmana que rejeitava toda a acomodação com o infiel, do tipo que viria a definir os Estados constituídos do Antigo Islã” (Ibid., p. 362). 215 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 seja em gêneros alimentícios, metais, animais, ou mesmo em pessoas – devshirme331 – era vital para a sobrevivência do Império. Entre os anos de 1839-1876, o Império sofreu uma profunda reorganização – em turco, tanzimat – em suas estruturas políticas e sociais. O tanzimat colocava fim às interações paternalistas existentes na estrutura da Porta, tornando através de dois decretos – sendo o mais importante deles o Rescriptum Imperial332 – o Otomanismo333 a nova política do Império Turco-Otomano. O Otomanismo englobava todos os habitantes do Império, sejam muçulmanos ou não, colocando um fim assim na supremacia turco-islâmica que permeava as instituições da Porta através dos séculos. Desta forma, muitos armênios ascenderam no aparelho estatal do Império, mas ainda eram tratados diferenciadamente. Estes, por exemplo, não podiam ocupar cargos nas pastas de relações internacionais e finanças do Império (ASTOURIAN, 2004, p. 5). A Comunidade Armênia – “Ermeni Millet” Para organizar as minorias foi criado o sistema denominado de millet. O termo significa “comunidade religiosa” e nada mais é do que uma instituição que agrupa uma mesma coletividade que vivia sob o controle otomano. O Ermeni Millet – comunidade 331 O devshirme – criado na década de 1380 – constituía no recrutamento de crianças oriundas de terras cristãs, enviadas para serem educadas sob a égide do islã. Essas crianças, uma vez formadas, constituíam um corpo de escravos que eram empregados na burocracia do Império Turco-Otomano e no exército (ANDERSON, 1987, p. 366). Ainda segundo Anderson, tal status de escravo não continua um sentido pejorativo, uma vez que a falta da propriedade privada da terra no Império não denotava um vínculo do escravo a um latifúndio, como acontecia na Europa. No Império Turco-Otomano, ser escravo via devshirme era, antes de tudo, um sinal de proximidade com o poder do Império (Ibid., pp. 365-367). 332 Em turco, Hatt-i Hümayun. 333 Os ideais do Otomanismo, segundo Yves Ternon (1997, p. 164) são: “Rétablir en Turquie la liberté et la justice, et soumettre la nouvelle génération à um système d’éducation et d’instruction solide qui puísse être em rapport avec les libertes modernes et lê pouvoir constitucionnel dont elle sera dotée... Établir entre lês différents peuples et races de l’Empire une entente qui assurera à tous, sans distinction, la pleine jouissance de leurs droits, reconnus par les hatt-i impériaux [cf. nota anterior] et conserves par les traités internationaux...” [grifos nossos]. Percebamos que o discurso aqui não segrega as minorias otomanas, mas pelo contrário, agrega-as em prol de um Império dotado das liberdades constitucionais modernas das quais todos possam gozar. 216 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 armênia – recebeu das autoridades turcas em 1461 a nomeação de um patriarca armênio – ou catholicos –, com sede na cidade de Constantinopla, a fim de balancear a grande influência do millet grego e de seu patriarca no Império334. Yves Ternon (1996, p. 33) nos chama a atenção para a peculiaridade que havia nesta prerrogativa do sultanato em nomear o chefe do millet: no limite, a Sublime Porta escolhia àquele que chefiaria a Igreja Armênia dentro de suas fronteiras. Ainda segundo o autor, embora pareça concisa a formação de agrupamentos étnico-religiosos desta estirpe, eles podem por vezes esconder nuances e diferenças. No caso dos armênios, o único millet existente reunia sob sua esfera de influência, armênios apostólicos – gregorianos –, católicos e protestantes, o que gerava desconforto e desgaste dentro da própria coletividade (Ibid., pp. 35-36). Tal ação rotulava como iguais os armênios de diferentes religiões, o que causava atritos dentro da coletividade. Por volta das décadas de 1820 a 1850, as minorias das minorias armênias – ou seja, católicos e protestantes – conseguem junto às Potências ocidentais a solicitação para que o Sultão outorgasse a tais segmentos, o status de comunidades religiosas autônomas335. Entretanto, os armênios ainda eram vistos vulgarmente como um único millet e este teria o direito de chamar uma assembleia constituinte para criar uma Carta que regesse os cidadãos que estavam sob sua jurisdição. Em 1863, após anos de discussão entre posições políticas distintas no millet, a Porta ratifica um documento chamado de “Regulamento da Nação Armênia” contemplando algumas aspirações dos cristãos, que alcunharam o texto de “Constituição Nacional Armênia” (Ibid., p. 52). O Regulamento permitia aos armênios gozarem de liberdades 334 Atualmente, a Igreja Armênia conta com quatro patriarcados: O mais importante e central, na cidade de Etchmiadzin, na Armênia, onde o Catholicos Karekin II ocupa o trono gregoriano; o patriarcado da Grande Casa da Cilícia, sediado na cidade de Antelias, no Líbano; o patriarcado de Jerusalém; e o patriarcado de Constantinopla, hoje Istambul. Estes dois últimos estão subordinados administrativamente à Sé, em Etchmiadzin (SAPSEZIAN, 1997, pp. 205-208). 335 Assim, podemos observar aqui um exemplo claro de como era incisiva a influência dos países europeus na política interna otomana (TERNON, 1997, pp. 48-50), prática que causaria inúmeros desgastes entre todas as partes envolvidas, poucos anos mais tarde 217 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 religiosas e culturais ímpares entre as minorias otomanas no momento. Tal concessão foi propagandeada pela Porta como um voto de confiança naqueles que eram chamados pelas autoridades turco-otomanas de millet leal336. Em suma, a Constituição Nacional Armênia e a institucionalização do millet armênio são partes de um metafísico “pacto de domínio” feito entre o povo armênio e o Estado turco-otomano, a fim de garantir a coesão interna do Império337. Entretanto, a relativa autonomia política e a vigência de uma compilação de leis que garantiam aos armênios alguns direitos não eram suficientes para que elas atingissem com eficácia todas as partes do Império. A mera presença de uma Constituição não garante por si só a integridade de uma nação (OHANIAN, 2004, p. 6). Entrementes, a constituição do Ermeni Millet se mostrou um importante passo rumo à configuração ideal para a ocorrência genocida. O sociólogo armênio-americano Vahakn Dadrian chama a atenção em um de seus textos para a “síndrome da obediência”. Segundo ele, armênios – e posteriormente judeus – aceitavam a submissão a uma força política e militar exógena e estranha, como estratégia de sobrevivência dentro de uma instituição na qual eles não teriam força política expressiva. O perigo de tal síndrome, segundo Dadrian, era o grupo dominante ter a percepção de que a submissão nada mais era que um ardil pela manutenção da minoria indesejada naquele corpo político e administrativo – no nosso caso, o Estado Otomano (DADRIAN, 2005, p. 90). Em Marx 336 Interessante perceber que a Turquia atual, em seus documentos revisionistas acerca do Genocídio, reforça o status de millet-i sadıka – nação leal – como forma de argumentar que os armênios eram estimados pela Porta em 1915. A intenção com este discurso é desqualificar as acusações contra o Império TurcoOtomano, que teria agido deliberadamente contra os armênios durante o século XIX e XX. Para uma argumentação revisionista nesta linha, ver ÖZDEMİR, 2007. Ainda na obra citada, podemos observar que a sua publicação foi feita por diretórios ligados ao Ministério da Defesa da Turquia, revelando assim como a Questão Armênia é tida como estrategicamente vital para a soberania nacional turca ainda hoje. 337 Em Para a Questão Judaica, o jovem Karl Marx (2009, p. 25) retira do judeu alemão do século XIX a sua particularidade religiosa a fim de compreender melhor o papel deste povo em sua esfera política, sem o véu de minoria religiosa que o caracteriza tão fortemente. Devemos aqui fazer o mesmo exercício com os armênios organizados no millet. Embora sejam caracterizados justamente pela diferença religiosa com os turcos, não podemos nos enganar que esta seja a diferença essencial entre os dois grupos. É mais do que isso. O Ermeni Millet torna os armênios atores políticos com larga importância dentro do Império Turco-Otomano e devem ser analisados como tais. A partir do momento que os armênios recebem este status político e social pela Porta, eles são reconhecidos por esta como um povo com ativo poder social e político não só entre os seus, mas no conjunto do Império. 218 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 (2009, p. 40) há a proposição que a concessão de direitos para as minorias residentes em uma nação “estrangeira”, no limite, gera privilégios para estas que os próprios autóctones não possuem. Assim, a diferença de status das diversas unidades étnicas e políticas dentro de um mesmo espaço nacional pode vir a se tornar um poderoso estopim para conflitos. Contudo, não podemos enxergar o millet como uma instituição verticalizada, imposta aos armênios pelos turco-otomanos. Era mais do que isso. O millet era uma aspiração nacionalista armênia que ganhava corpo após anos de embates políticos. O nascimento do nacionalismo armênio, como foi de praxe nas demais Questões Nacionais, não foi fomentado puro e simplesmente por uma retórica de uma nação livre. Ao contrário, o nacionalismo estava sempre em simbiose com reformas sociais e políticas pretendidas pelos membros do grupo em tela338 (HOBSBAWM, 2008, p. 148). Segundo Eric Hobsbawm (Ibid., p. 144), em situações de ameaças externas, uma determinada coletividade de reúne em torno de idéias como “família”, “ordem”, “tradição”, “religião”, “moralidade”, etc. sob um mote nacionalista. Evidentemente, tais ameaças externas servem para ambos os lados – armênios e turcos - organizarem em torno de ideais nacionalistas. E, quanto mais um dos grupos se organiza, mais o outro se sente ameaçado, gerando uma crescente radicalização dos movimentos. Posto às claras como funcionava a instituição do millet e a condição dos povos nãomuçulmanos dentro do Império Turco-Otomano, mostra-se agora essencial para a presente análise discorrer sobre o sistema fundiário vigente dentro das fronteiras otomanas, entre os séculos XVI e XX. 338 Para os armênios, o exemplo da Federação Revolucionária Armênia – FRA – nos parece muito útil. A FRA, fundada em 1890 (KERIMIAN, 1998, p. 253) era – e ainda é – a principal instituição nacionalista armênia e possui orientação socialista, afiliada inclusive com a Internacional Socialista. Ou seja, a principal voz do nacionalismo armênio é um partido socialista que luta também por reformas sociais. 219 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Sistema fundiário do Império Turco-Otomano e a inserção dos armênios na economia do Império Anderson afirma que virtualmente, não havia propriedade privada de terra nos limites do Império, sendo todos os latifúndios - dos Bálcãs à Anatólia - pertencentes ao Sultão. Tal prática não permitia a criação de uma nobreza fundiária. Esta era de caráter essencialmente administrativa onde a “honra e riqueza confundiam-se efetivamente com o Estado e a posição social derivava simplesmente dos postos ocupados em seu seio” (ANDERSON, 1989, p. 365). Quais seriam as consequências da institucionalização de tal prática otomana? Podemos dividi-las em três partes. Primo, nos Bálcãs, houve uma mudança de status do campesinato e dos senhores de terra. Os camponeses da região, antes subjugados pelos latifundiários cristãos, viam-se mais livres que seus congêneres europeus, graças à dominação otomana, que extinguiu o regime de propriedade de terra vigente a fim de implantar a instituição fundiária supracitada. Alguns membros da nobreza étnica balcânica – bósnios, principalmente – foram absorvidos pelo Islã. Concomitantemente, a eliminação da aristocracia étnica da região prestou um desserviço à “dinâmica endógena”, uma vez que o modus operandi otomano provou uma “efetiva regressão às instituições clânicas e às tradições particularistas entre a população rural dos Bálcãs”. Ou seja, foi um retorno ao período pré-feudal, com a interrupção da evolução autóctone rumo a uma ordem feudal mais avançada. Uma “longa estagnação em toda a evolução histórica da península balcânica” (Ibid., pp. 371-373). Secundo, as províncias da Anatólia, Síria e Egito viviam seu apogeu no século XVI, beneficiando-se pelo deslocamento do eixo político, econômico e administrativo do Império para os Bálcãs. A unidade otomana no Oriente Médio criara um cenário de paz, 220 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 ideal para a prosperidade dos comércios de especiarias que cruzava a região. A população rural da Anatólia aumentou dois quintos ao longo do século e assistiu a um surto de crescimento urbano, tendo Istambul cerca de 400 mil habitantes. Entretanto, este crescimento econômico teria limites bem definidos: o abastecimento de alimentos não era suficiente para suprir o excedente populacional que surgiu na região durante o século XVI, fruto da sedentarização de povos nômades (Ibid., pp. 373-375). Além disto, o aumento dos gastos com exército para a conquista e controle das províncias supracitadas foi subsidiado pelas populações rurais339 otomanas até o ponto de se tornar insustentável, forçando a Porta a abandonar o sistema timar340 (PAMUK, 2001, p. 83). Tertio, havia uma resistência do sultanato à industrialização e urbanização. As cidades do Império Otomano não possuíam autonomia e sequer existiam juridicamente, o que não permitia o desenvolvimento de uma burguesia autóctone na região. Eram os gregos, judeus e armênios quem faziam as vezes de burguesia comercial, executando o movimento de entrada e saída de mercadorias e capital. Aos turcos eram destinadas as pequenas atividades citadinas de artesanato e lojistas (ANDERSON, 1989, p. 376). Segundo dados do relatório do Comitê Americano, instaurado para averiguar os morticínios no Império Turco-otomano em 1915, os armênios dominavam 90% do comércio no interior do Império, no começo do século XX (TOYNBEE, 2003, p. 111) 341. Façamos aqui um destaque a este elemento que é o armênio burguês, pois entendemos tal configuração endógena das etnias minoritárias e suas atribuições na 339 Segundo Pamuk, de 30 a 40% dos gastos militares oriundos deste processo foram cobertos pelas áreas rurais do Império (2001, p. 83). 340 Taxas agrícolas para manter a cavalaria otomana em tempos de guerra (Idem). 341 Tal estatística é significativa, embora Arnold J. Toynbee não traga uma explicação pormenorizada acerca da coleta deste dado. Portanto, citamo-la aqui com esta ressalva. Mas de fato, a vocação armênia para o comércio estava espalhada pelo mundo. Astourian cita relatos de viajantes alemães para ilustrar tal caracterização: “But why, then, are the Armenians so hated? The main reason is the commercial talent of the Armenian race. The Armenian are born merchants. Their skills and craftiness in all trades are superior” (ASTOURIAN, 2004, p. 9). 221 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 economia otomana como sintomática do fenômeno genocida que aconteceria séculos mais tarde. A perpetuação deste status quo de uma burguesia comercial armênio-cristã, ainda que incipiente, coexistindo com uma massa de turco-muçulmanos relegados a atividades secundárias na sociedade e economia do Império, a longo prazo, criou uma radicalização étnico-nacionalista – análoga à posição judaica na Europa ocidental – otimizada com a independência dos Bálcãs durante o século XIX. Arnold J. Toynbee frisa incessantemente em seu livro, este aspecto burguês do armênio como gerador de sentimentos de ódio e inveja entre a população turca (Ibid., pp. 27; 31; 34; 38-39; 69; 109 e 111). Roberto Grün indica que os armênios foram conduzidos a “nichos de especialização funcionais no Império”, tendo em vista a sua posição minoritária e subalterna (GRÜN, 1992, p. 15). Citando R. Mirak, o autor encaminha a argumentação: Nesta sociedade muçulmana turca, alguns armênios assumiram o papel de alguma forma parecido com o que os judeus ocupavam na Europa predominantemente cristã: eles transformaram-se em banqueiros, artesãos habilidosos, burocratas e homens de negócio, alguns mesmo chegando ao papel de conselheiros dos sultões (Idem). Além destes, o embaixador dos EUA no Império Turco-Otomano Henry Morgenthau na época do Genocídio também destaca o ímpeto burguês de gregos e, principalmente, armênios – mais civilizados e industriais que os turcos –, força motriz do Império: What is definitely known about the Armenians, however, is that for ages they have constituted the most civilized and most industrious race in the eastern section of the Ottoman Empire. (…) They are [Greeks and Armenians] so superior to the Turkys intellectually and morally that much of the business and industry had passed into 222 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 their hands. With the Greeks, the Armenians constitute the economic strength of the empire (MORGENTHAU, 1918, p. 166). Entretanto, segundo Stephan Astourian (2004, p. 9), cerca de 70% dos armênios que viviam no Império Turco-Otomano eram camponeses, bem distantes dos capitais oriundos do comércio de longa distância342. Esta imagem clássica dos armênios como industriais e mercadores par excellence é tributária do lócus que estes ocupavam principalmente em Constantinopla – capital do Império Turco-Otomano – onde de fato eles operavam nestes nichos sócio-profissonais (BALAKIAN, 2003, p. 212). Assim como no Caso Judeu durante o III Reich, uma minoria de armênios burgueses – comerciantes ou banqueiros – definiu o status de toda a etnia. Dadrian (2004, p. 36) cita em um dos seus trabalhos uma comparação de um oficial nazista do alto escalão hitlerista que chama os armênios de “judeus do oriente”, por serem ambos exímios negociantes. Todavia, a caracterização dos armênios como componentes de uma burguesia não era apenas uma definição feita pelos ocidentais ou pelos próprios armênios. Em cidades comerciais do Império – como Adana e Mersin –, os turcos rotulavam os armênios como comerciantes e mercadores, ainda que estes últimos fossem majoritariamente camponeses nestas localidades (BALAKIAN, 2003, p. 148). Durante a Guerra dos Bálcãs, nos primeiros anos da década de 1910, houve um boicote as lojas e estabelecimentos de gregos e armênios, tidos como causadores do mal que assolava o Império (Ibid., p. 165). Ou seja, interessava aos turcos homogeneizar e demonizar as vítimas, rotulando-os e definindo-os como alvos. O estilo de vida dos armênios efetivamente membros da burguesia de Adana, 342 Vahakn Dadrian (2004, p. 18) ratifica essa estatística: “Nevertheless, most of the Armenian and Jewish populations were neither affluent nor particularly prosperous. For instance, seventy to eighty percent of the Armenians were apolitical peasants engaged in agricultural work in their ancestral territories”. 223 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 por exemplo, era considerado provocativo, uma vez que estes nunca se furtaram de continuar a professar sua cultura, fé e nacionalismo (Ibid., p. 148). Voltando à explanação inicial: Com o fim da expansão das fronteiras otomanas rumo à Europa, no século XVII, a Porta perdeu força (ANDERSON, 1989, p. 377). Assim como aconteceu com Roma, no período da pax romana no século I a. C., o Império TurcoOtomano viu-se frente a um dilema: sem meios de fazer frente às tropas europeias que reconquistavam as possessões turcas no leste do Velho Continente, os otomanos também não poderiam manter as suas instituições sem o botim das conquistas. Segundo Anderson (Ibid., p. 378), as terras conquistadas e as riquezas confiscadas pelos exércitos da Porta eram essenciais para manter a sociedade de privilégios do Império. Como não havia a propriedade privada de terras, a concessão do uso destas, bem como de cargos administrativos, eram as principais distinções aristocráticas turco-otomanas. Destarte, torna-se compreensível o efeito devastador que o estancamento das fronteiras e da influência otomana teve sobre a sociedade. Ademais, na esfera econômica, Şevket Pamuk chama a atenção para a grande onda inflacionária que tomou conta do Império. Segundo o autor turco, entre 1469 e 1914, os preços de produtos cotidianos e essenciais – principalmente gêneros alimentícios – subiram cerca de 300 vezes, em média 1,3% ao ano (PAMUK, 2001, p. 73; 2004, p. 454). A partir de finais do século XV, o dinheiro passou a ser usado não só no comércio exterior, mas também em transações urbanas e rurais dentro das fronteiras otomanas, de forma a tornar a alta dos preços sensíveis a vários setores da sociedade otomana (PAMUK, 2001, p. 82; 2004, p. 461). No século XIX o Império Turco-Otomano assistiu ao seu declínio. O equilíbrio de poder das Potências, mediado pela chamada Santa Aliança, gerava uma orquestração pela 224 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 paz na primeira década do século XIX343. A evolução do capital na Europa não poderia tolerar a guerra, que freava a expansão deste (POLANYI, 2000, pp.17-21). Com isso, as fronteiras se tornaram estáticas e as possessões otomanas nos Bálcãs mostraram graves rachaduras. A paralisia administrativa da Porta no final do século XVIII permitiu o crescimento dos poderes agrários locais, criando um processo não consumado de “feudalização” na Anatólia e de explosões nacionalistas na península balcânica. As tentativas de reformas liberais por volta do ano de 1820, patrocinadas pelo ocidente, foram fadadas ao fracasso (ANDERSON, 1989, pp. 387-388). Outro Império, o Russo, emergia como protagonista no teatro das nações mundiais. Foi justamente no nicho de poder deixado pelos otomanos, desde o século XVII, em regiões balcânicas, onde os russos se instalaram e trouxeram para perto de si a aristocracia autóctone, criando uma zona de influência no antigo centro nevrálgico da Porta344 (Ibid., p. 383). A disputa entre as duas forças se tornou belicosa em 1877, não obstante o esforço alemão para evitar o conflito. Uma vez instalado, a Grã-Bretanha e o Império Alemão ficaram ao lado dos turcos, contra o Império Russo, como forma de manter a todo custo o equilíbrio de poder que se encontrava sob ameaça. Entretanto, no Congresso de Berlim, firmado entre as partes após o término do litígio, as possessões otomanas na Europa que anos antes eram vistas como partes indissociáveis da Porta, agora também em nome da manutenção da estabilidade de forças, se encontravam fragmentadas (POLANYI, 2000, pp. 22-23). Para agravar a complexa situação da região, o Império Habsburgo que há muito havia se lançado em uma campanha expansionista sobre os Bálcãs, viu-se dilacerado em 1890 pelas várias etnias que compõem a região. A derrocada otomana acirrou os ânimos e 343 “Foi uma era de paz sem paralelo no mundo ocidental, que gerou uma era de guerras mundiais sem paralelo” (HOBSBAWM, 2003, p. 24). 344 Eric Hobsbawm (Ibid., p. 393) ressalta a importância que teve o fator religioso no apoio do Império Russo, cristão, aos também cristãos balcânicos, para a fragmentação da região. O autor inglês destaca ainda a influência da Áustria e da Hungria na região, trazendo para as suas esferas de influência vários países da região, agora autônomos (Ibid., p. 432). 225 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 alterou ainda mais o fiel da balança naquele canto de mundo que seria o estopim do barril de pólvora na Grande Guerra, em 1914 (HOBSBAWM, 2003, pp. 445-446). Para concluir De protagonista no teatro das nações mundiais à marionete dos interesses das Potências europeias. Eis a trajetória otomana até a segunda metade do século XIX. Porém, essa nação em decadência, cujo “feudalismo não presidiu à formação (...); o absolutismo não participou de seu declínio” (ANDERSON, 1989, p. 390) ainda daria lampejos para provar que estava viva. Os próprios conflitos com o Império Russo são exemplos disto. E é neste contexto que surge a figura do Sultão Abdul-Hamid II, em 1878, como o seu “despotismo pessoal frágil, porém brutal”, repressor radical das nacionalidades e entusiasta do centralismo otomano (Idem). É neste contexto, enfim, que devemos situar o Genocídio Armênio: um ato sistematicamente pensado pelas autoridades otomanas para salvar o Império de sua derrocada, encoberto pela Grande Guerra que assolava o mundo. 1914 e a entrada na Guerra representam somente a ponta do iceberg da crise cujo governo turco estava instalado (HOBSBAWM, 2003, p. 384). Destarte, 1915 foi o espasmo imperial que buscaria reanimar o cadáver otomano não-sepultado, mesmo que fosse à custa de 1,5 milhão de armênios. Referências Bibliográficas ANDERSON, Perry (1989). Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 2ª ed. 226 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 ASTOURIAN, Stephan H. (2004). Modern Turkish Identity and the Armenian Genocide: from prejudice to racist nationalism. Yerevan: Museum-Institute of the Armenian Genocide of the National Academy of Sciences of Republic of Armenia. BALAKIAN, Peter (2003). The Burning Tigris: the Armenian Genocide and America’s response. Nova York: Harper Perennial. DADRIAN, Vahakn (2004). The Historical and Legal Interconnections between the Armenian Genocide and the Jewish Holocaust: from impunity to retributive justice. Yerevan: Museum-Institute of the Armenian Genocide of the National Academy of Sciences of Republic of Armenia. DADRIAN, Vahakn N. (2005). “Configuración de los genocídios del siglo veinte”. In: FEIERSTEIN, Daniel [org.]. Genocidio: La administración de la muerte en la modernidad. Buenos Aires: Eduntref. GRÜN, Roberto (1992). Negócios e Famílias: armênios em São Paulo. São Paulo: Sumaré. Série Imigração. HOBSBAWM, Eric J. (1996). The Age of Extremes. Nova York: First Vintage Books. _____ (2003). A Era dos Impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 8ª ed. _____ (2008). Nações e Nacionalismo Desde 1780. São Paulo: Paz e Terra, 5ª ed. KERIMIAN, Nubar (1998). Massacres de Armênios. São Paulo: Comunidade da Igreja Apostólica Armênia do Brasil, 2ª Ed. LOUREIRO, Heitor. (2006). “Breve história dos primórdios da Igreja Apostólica Armênia”. In: Rhema. Juiz de Fora: ITASA, v. 13, nº 40, pp. 96-108. MARX, Karl (2009). Para a Questão Judaica [1844]. São Paulo: Expressão Popular. MORGENTHAU, Henry. (1918). Ambassador Morgenthau’s History. Nova York: Doubleday, Page and Company. 227 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 OHANIAN, Pascual Carlos (2004). The Protection of Human Rights and the Genocide by the Turkish State against the Armenian Nation. Yerevan: Museum-Institute of the Armenian Genocide of the National Academy of Sciences of Republic of Armenia. ÖZDEMİR, Hikmet (2007). Issues Mıssed in the 1915 Armenıan Debate. Ancara, Turquia: Turkish General Staff/Military History and Strategic Studies Directorate/Strategic Ressearch and Study Center. PAMUK, Şevket (2001). “The Price Revolution in the Ottoman Empire reconsidered”. In: Journal Middle East Studies. Nº. 33, EUA: Cambridge University Press. _____ (2004). “Prices in the Ottoman Empire”. In: Journal Middle East Studies. Nº. 36, EUA: Cambridge University Press. POLANYI, Karl (2000). A Grande Transformação Elsevier/Campus, 14ª tiragem. [1944]. Rio de Janeiro: SAPSEZIAN, Aharon (1997). Cristianismo Armênio. São Paulo: Bentivegna Editora. TERNON, Yves (1996). Les Arméniens: Histoire d’um génocide. Paris, França: Seuil, 1ª reimpressão. TOYNBEE, Arnold J. (2003). Atrocidades Turcas na Armênia [1916]. São Paulo: Paz e Terra. WERFEL, Franz (1995). Os Quarenta Dias de Musa Dagh [1933]. São Paulo: Paz e Terra. 228 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Identidade Nacional e Questão do Negro em Oliveira Vianna Iara Andrade* RESUMO: O presente artigo examina algumas propostas para a construção da identidade nacional, desenvolvidas pelo intelectual Oliveira Vianna. Os livros analisados neste trabalho foram “Raça e Assimilação” e a “Evolução do Povo Brasileiro”, nos quais, Vianna desenvolve a idéia de “raça” como fator de “atraso” ou “prosperidade nacional”. PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Oliveira Vianna; Identidade nacional. ABSTRACT: This article examines some proposals for the national identity building, developed by the intellectual Oliveira Vianna. The books examined were “Race and Assimilatation” and the “Evolution The Brazilian People”, in which Oliveira Vianna develops the idea of “race” as a factor of “delay” or “national prosperity”. KEYWORDS: Identity; Oliveira Vianna; National identity. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objeto de estudo os discursos de Oliveira Vianna, no qual se busca enfatizar suas propostas para a formação da identidade nacional. Em meio a tantos mitos, discursos e teorias que tentaram construir a identidade da nação, Oliveira Vianna desenvolve sua teoria sobre a “diferenciação das raças” alegando que “[...] uma * Mestranda em História – USS/Vassouras 229 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 nação não pode ser indiferente nem a qualidade, nem à quantidade de elementos raciais que entrem na sua composição”345. Tentar impor coesão a uma sociedade tão heterogênea como a brasileira, buscando configurar a identidade nacional, era impossível. Porém com esse intuito dispuseram-se homens como Silvio Romero, Nina Rodrigues, e Euclides Cunha, entre outros. A construção da identidade nacional, tão almejada pela Geração de 1870 346, passou a ser vista como algo a ser atingido senão no presente, pelo menos no futuro. Isso porque em pleno século XIX e até mesmo para alguns autores do século XX, entre eles, Oliveira Vianna, o Brasil era composto por “raças” consideradas inferiores, e futuramente com a miscigenação, a sociedade se branquearia. Com o objetivo de dar uma visão mais científica, validando tais suposições, muitos intelectuais desenvolveram teorias sobre a identidade nacional, tendo como um de seus fatores determinantes a “raça”. A discussão a que se propõe este artigo está embasada na História Social, inserida na linha de pesquisa de História Política. Tendo como objeto de estudo as obras de Oliveira Vianna, o que se pretende é analisar as relações de poder no âmbito ideológico pela criação de teorias de diferenciação racial, que justificariam a formação da identidade nacional, e estigmatizaria a figura do negro pela concepção de inferioridade racial. Discutindo-se a Identidade Nacional Identidade é um substantivo polissêmico e ainda surgem na atualidade diversas indagações sobre o que vem a ser identidade nacional e os interesses que levaram à sua criação. 345 VIANNA, Oliveira. Raça e assimilação. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1959. p.39. A Geração de 1870 preocupou-se, fundamentalmente, com a formulação de projetos capazes de tornar o Brasil um país moderno, possuia vários representantes entre eles: Nina Rodrigues, Euclides Cunha e Sílvio Romero. 346 230 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Apesar da dificuldade em se conceituar o termo Identidade Nacional, Renato Ortiz, desenvolve uma definição que apresenta certa clareza quanto ao significado. Ortiz afirma que “Toda identidade se define em relação a algo que lhe é exterior, ela é uma diferença [...] e possui uma dimensão que é interna, [...] é necessário mostrar em que nos identificamos”347. Muitas foram as propostas que buscaram homogeneizar as diferenças buscando formar uma proposta de identidade para nação, alguns países advogaram que a língua seria este fator de identificação, outros a etnia, outros o território e em alguns países até mesmo o caráter da população. “[...] Sérgio Buarque de Holanda buscou as raízes do brasileiro na cordialidade, Paulo Parado na tristeza, Cassiano Ricardo na bondade; outros escritores procuraram encontrar a brasilidade em eventos sociais como o carnaval ou ainda na índole malandra de ser nacional”348. Este é um dos problemas de se conceituar Identidade Nacional de modo fechado, a identidade nacional é uma comunidade imaginada, e por isso dinâmica, se modificando no momento e no espaço. Se no Brasil do final do século XIX uma das propostas de identidade nacional estava baseada na “raça” e no meio, na década de 20 do século XX, irão surgir outras propostas que entrarão em conflito com as concepções formuladas anteriormente. Retornando, porém às propostas de identidade nacional desenvolvidas no final do século XIX, visto que serão elas que influenciarão Oliveira Vianna, e aplicando o conceito de Renato Ortiz baseado nas diferenças e semelhanças, tentaremos identificar quais foram os fatores escolhidos pela Geração de 1870 como determinantes para a formação de uma consciência nacional. Segundo Renato Ortiz, a Geração de 1870 identificou dois fatores que diferenciaria os brasileiros dos demais povos: a “raça” e o meio, e tais fatores eram 347 348 ORTIZ, op.cit. p.8-9. ORTIZ, op.cit. p.137. 231 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 visíveis no Brasil. Porém, se as diferenças eram claras, as semelhanças não. É neste momento que surge um problema fundamental para o século XIX: Como tratar a identidade nacional diante da disparidade racial? A mestiçagem foi vista como solução para este problema. Oliveira Vianna, posteriormente, também desenvolverá seus estudos sobre a mestiçagem brasileira. Dissertando sobre o termo melting-pot (interfusão das “raças”) elabora idéias sobre a identidade e desenvolvimento nacional. O termo Identidade Nacional apesar de gerar várias divergências entre estudiosos, oferece um caminho para entender aquilo que Ortiz afirmou estar em primeiro plano: os agentes que constroem as interpretações sobre a realidade. São eles; os intelectuais, que desempenharão o papel de mediadores simbólicos entre o nacional e o popular. Alguns como Oliveira Vianna terão relação direta com o Estado, defendendo sua atuação de forma autoritária, outros como Gilberto Freyre um relação indireta exprimindo “ [...] a nostalgia de um Estado que se esgotou historicamente”.349 “[...] a procura de uma ‘identidade brasileira’ ou de uma ‘memória brasileira’ que seja em sua essência verdadeira é na realidade um falso problema. A questão que se coloca não é de se saber se a identidade ou memória nacional apreendem ou não os ‘verdadeiros’ valores brasileiros. A pergunta fundamental seria: quem é o artífice desta identidade e desta memória que se querem nacionais? A que grupos sociais eles se vinculam e a que interesses elas servem?350 O contexto histórico 1920 a 1932 – O intelectual Oliveira Vianna Foi durante o final do século XIX e a primeira metade do século XX que alguns estudiosos brasileiros elaboraram várias teorias nacionalistas com intuito de criar uma 349 350 ORTIZ, op. cit, p. 139. ORTIZ, op. cit, p. 139. 232 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 identidade para a nação, inventaram-se então, mitos unificadores, romantizaram a história brasileira e criaram-se teorias científicas. Uma dessas teorias que muito interessou Oliveira Vianna retoma a idéia do século XIX de identificar a “raça” como fator degenerativo nacional, o que contribuiu para formação de um amparo ideológico que justificou a dominação política sobre certa parte da população brasileira que foi considerada inferior. O recorte de tempo, mais específico que vai de 1920 a 1932 se deve ao fato de ser nesse período, que Oliveira Vianna escreveu várias obras sobre o Brasil, focando a questão racial, entre elas podemos citar Evolução do Povo Brasileiro (1923), e Raça e Assimilação (1932), tais estudos continham discursos sobre a diferenciação das “raças”, onde Vianna identificava a “raça” como fator de atraso nacional e defendia a eugenia. A década de 20 fora o período dos manifestos, segundo Bresciani, [...] se vivia o momento propicio para propor e executar modificações radicais na sociedade351, os conflitos ideológicos, expressos nos projetos políticos até então se intensificavam. Segundo Chartier “As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio” 352. Os projetos formulados por Vianna entravam em conflito com novas concepções que surgiam na década de 20 e 30. Bresciani analisando a proposta ideológica de Oliveira Vianna sobre a identidade nacional afirma: [...] (Oliveira Vianna) em seu manifesto político de 1922, O idealismo na evolução política do Império e da República, desenvolve uma concepção voluntarista de integração nacional na proposta de ser mediante conhecimento do povo, sua estrutura, sua 351 BRESCIANI, op.cit. p. 155. CHARTIER, Roger, A História Cultural entre Práticas e Representações .2ed. Rio de Janeiro: Difel, 2002. p.17. 352 233 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 economia intima e sua psique que se projetaria o modelo político adequado a forjar essa unidade pela ação centralizada no estado autoritário353. Oliveira Vianna tinha uma proposta para o desenvolvimento nacional e político baseada nos estudos das “raças” e na ação do Estado forte sobre esse povo mestiço, população esta, que segundo Vianna, seria incapaz de se articular se não houvesse um grupo de intelectuais os governando, sobre isso Oliveira Vianna afirma: A realização de um grande ideal nunca é obra coletiva da massa, mas sim de uma elite, de um grupo, de uma classe, que com ele se identifica, que por ele peleja354. Tal concepção de cunho autoritário já era criticada, na década de 20 por homens como Sérgio Buarque de Holanda; e Gilberto Freyre posteriormente já apresentava outras propostas. Segundo Bresciani [...] há também nesses anos de 1920 uma disputa declarada pela primazia de determinadas partes do Brasil no que diz respeito à força formadora da “identidade nacional”355. Gilberto Freyre, no Manifesto regionalista de 1926, reivindicava esta posição ao Nordeste, se opondo à Vianna que reivindicava a posição aos habitantes do centro-sul, segundo Bresciani a reivindicação pela hegemonia Nacional, através do padrão cultural, expressava também um conteúdo político que asseguraria os interesses administrativos de cada região. Outro conflito entre tais autores se deve ao fato de Freyre postular a integração nacional mantendo a diferença regional. Já Vianna apesar de reconhecer a diversidade regional, propunha apagar as diferenças para se atingir a unidade, que se daria através da mestiçagem com “raças” pré-selecionadas. Situação esta que ocorria no Sudeste com a imigração e que era visto por Freyre como mau cosmopolitismo e falso modernismo. 353 BRESCIANI, op.cit. p.45. PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: - entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990. p. 29 355 BRESCIANI, op.cit. p.45. 354 234 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Devido a sua atuação política e seus estudos na área de ciência social, Oliveira Vianna foi muito criticado. Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, rotulou os estudos de Vianna como “um retrocesso do ponto de vista acadêmico”, e não hesita em relacionar as idéias do consultor no Ministério do trabalho (cargo assumido por Vianna, durante o governo de Vargas) com a “doutrinação dos fascismos”356. Segundo Bresciani, Oliveira Vianna é mantido no rol dos malditos pelo mundo acadêmico sendo consequentemente rejeitado pelos historiadores brasileiros. Muito lido nas décadas de 1920 e 1930, Oliveira Vianna sofreu oposição cerrada de juristas liberais, como Waldemar Ferreira, ainda na década de 1930 e caiu em desgraça nos anos de 1940, para não mais se recuperar das críticas de intelectuais importantes, como o historiador Sérgio Buarque de Holanda, e já em meados dos anos de 1960, de Antonio Candido357. Apesar de não concordar com várias de suas afirmações – a teoria da diferenciação das “raças” é uma delas -, descartar toda a obra de Vianna, seria lançar fora importantes e inteligentes análises da direita conservadora que seria de grande valia ser questionada. Embora seja bastante combatido, Oliveira Vianna também contribui com vários estudos que posteriormente foram reconhecidos por alguns historiadores entre eles Caio Prado Júnior. Sua proposta de revisar a história do Brasil, na certeza de que os problemas do presente encontravam-se em vícios da origem, foi compartilhada por vários intelectuais seus contemporâneos, autores que como ele, se propuseram a reapresentar esse percurso de quatrocentos anos. Constituem trabalhos de interpretação histórica[...] Caio Prado Júnior [...] reconhece em Oliveira Vianna, a despeito das “por vezes adulterações grosseiras dos fatos” ter sido, o “primeiro, e o único até agora (1933), a tentar uma análise 356 357 BRESCIANI, op.cit. p.27. BRESCIANI, op.cit. p.21. 235 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 sistemática e séria de nossa constituição econômica e social do passado” 358 Os discursos de Oliveira Vianna Vianna buscou explicar a evolução do povo brasileiro, tendo como parâmetros o determinismo biológico e mesológico. A estrutura social de um povo seria influenciada pela geografia, pelo clima e pelos grupos étnicos que nesse meio passaram a viver e se miscigenar. A influência recíproca entre meio e “raça” gerariam as características do povo brasileiro e moldariam a sociedade. Alegava que as “raças” humanas se encontrariam em estágios diferentes na escala evolutiva, deduziu que as “raças” mais evoluídas biologicamente também seriam as mais evoluídas em relação à cultura. Em seus estudos desenvolve a idéia da superioridade intelectual ariana. Segundo Vianna: [...] o negro puro revela na sua generalidade, uma menor fecundidade do que as “raças” arianas ou semitas, com que ele tem estado em contato. Para os tipos de classe F de Galton, ou para os supernormais, como diz a tecnologia psicométrica contemporânea, o negro, com efeito, não me parece poder competir com as “raças” brancas ou amarelas359. Segundo o historiador, a “raça” de um indivíduo poderia influir dentro de um coeficiente de probabilidades muito alto sobre as suas predisposições patológicas, temperamento e inteligência. Muller então descreve o temperamento do negro. 358 359 Apud BRESCIANI, op.cit. p.26-27. VIANNA, Oliveira. Raça e assimilação. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1959. p.195. 236 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 [...] o Afer em seus vários tipos tem uma predisposição particular para gerar temperamentos ciclotímicos. [...], o negro em todas as cousas é sensitivo, em que a fantasia o domina. [...] Da alegria mais intensa e mais insensata ele passa ao mais amargo dos desesperos360. Indo um pouco mais longe, Vianna conclui que o tipo constitucional de um indivíduo não só determina seu temperamento, mas também o tipo de inteligência, ou seja, a “raça” seria um fator que influenciaria numa probabilidade maior ou menor de indivíduos com níveis de inteligência superiores. Compreende-se agora porque uma nação não pode ser indiferente nem à qualidade, nem à quantidade de elementos raciais que entrem na sua composição. Trazendo para a formação do plasma racial os seus tipos de constituição mais freqüentes, estes elementos raciais determinam os tipos de temperamento e de inteligência que devem preponderar na massa social361. Observa-se que para o intelectual, uma seleção dos tipos raciais se faria necessário no Brasil, visto que, o temperamento e a inteligência do grupo humano influenciariam no próprio futuro da nação. Um grupo de indivíduos com temperamento indeciso levaria o país ao clima de instabilidade, ou pelo contrário, um grupo de indivíduos impulsivos levaria ao aumento da criminalidade e à intensificação dos conflitos sociais. Pior ainda, a seu ver, seria uma nação formada por elementos negros, fator degenerador, de fisionomia repulsiva, inteligência inferior e caráter duvidável. Para Vianna, haveria um encadeamento de problemas ou benefícios que teriam como principal causa a “raça”. Segundo ele, a “raça” influiria no tipo de constituição do indivíduo, esse determinaria o tipo de inteligência e temperamentos. Por conseguinte, estes condicionariam as manifestações culturais e sociais. 360 361 Apud VIANNA, op.cit. p.33-34. VIANNA, op.cit. p.39. 237 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Se a “raça” influi diretamente no destino da nação, a distribuição regional deveria ser bem planejada. Conhecendo as três “raças” e a sua distribuição pelo território nacional, saberíamos a especialização funcional na economia de cada região: em regiões onde preponderasse a “raça” branca, ali, encontraríamos os cargos relacionados ao poder voltados para o latifúndio e a vida intelectual; dos locais onde preponderassem índios e negros encontraríamos os trabalhadores braçais, que deveriam ser tutelados. Segundo o historiador, o estudo da diferenciação racial era importante para o processo de eugenia; - termo criado por Francis Gaton - que a definiu como o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente. Vianna critica a teoria das três “raças”, já pensando na problemática da eugenia, alegava para tanto, que era um erro dividir a população brasileira em brancos, negros, cablocos e mulatos. Estar de acordo com essa afirmação seria negar a existência de vários tipos antropológicos europeus: nórdico, celta, eslavônico... Segundo o intelectual, era sabido que, grupos formados por etnia nórdica não se adaptavam ao clima tropical e através de um recenseamento feito em 1921, na África Inglesa, os descendentes se revelaram fracassados, degenerados, ou seja, os descendentes provenientes da mistura do negro africano com o branco europeu causaram a diminuição do número de brancos puros, e por isso o tipo antropológico nórdico não era um dos melhores para se misturar ao negro, ao contrário do grupo mediterrâneo, por exemplo, que se adaptam ao clima tropical rapidamente e seus descendentes não apresentam nenhum sinal sensível ou positivo de degeneração, nem no físico, nem na moral. Para Vianna o estudo das “raças” seria de extrema importância, visto que verificar quais foram os tipos de mestiços que se adaptariam melhor ao meio evitariam problemas futuros de não assimilação (melting-pot baixo) ou de cruzamentos que poderiam prejudicar a formação nacional (elemento negro). O mulato, por exemplo, era fruto de cruzamentos 238 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 infelizes, comparando-se a um grupo grande, muitos vinham a falecer, seja pelo fato de serem dotados de poucas qualidades, ou porque não agüentavam a luta pela vida, a competição sexual, a emigração, que eliminariam as espécies inferiores; em resumo seriam vencidos pela seleção natural e social. Vianna se preocupou muito com a mestiçagem, pois, a etnia que contribuísse com maior parcela para o melting-pot, consequentemente imporia seu tipo morfológico, psicológico e cultural sobre os demais, influenciado na formação política e social do país. De acordo com Clóvis Moura, a miscigenação não era estigmatizada por Vianna, porém o melting-pot preconizado por aquele, deveria ser muito bem estruturado, visto que a população deveria se embranquecer. “O processo civilizatório, por seu turno, era um atributo da “raça” branca que mesmo quando se misturava com os negros e outras “raças” inferiores arianizava-os” 362. Porém o embranquecimento não poderia se dar com qualquer “raça” branca, e muito menos com qualquer “raça” negra, os negros eugênicos eram os melhores para se misturarem aos brancos e se embranquecerem, não é necessário dizer que os negros eugênicos eram aqueles que possuíam feições de indivíduos brancos e eram mais facilmente submetidos. O conceito de “raça” e a distinção entre as etnias foram usados por muitos intelectuais entre eles Oliveira Vianna como noção ideológica, para construir uma proposta de identidade nacional, tendo como fator determinante a questão racial; atualmente sabe-se que afirmar a existência de uma “raça” pura seria tornar ilusória qualquer definição fundada em dados étnicos e genéticos estáveis. CONCLUSÃO 362 MOURA, op.cit. p.198. 239 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A discussão em questão buscou desenvolver uma breve análise das obras de Oliveira Vianna, enfatizando a sua função como intelectual que identificou no fator racial, mecanismos que construiriam a identidade da nação. Propõe assim, a idéia da interfusão racial, ou seja, a mestiçagem com “raças” pré-selecionadas. Se a miscigenação era criticada pelas teorias raciais no estrangeiro, no Brasil passou a ser identificada como solução para os problemas nacionais. De acordo com Vianna, éramos um povo cuja diversidade étnica se traduzia em malefícios para nação devido à concepção de inferioridade racial -, mas através da mestiçagem com “raças” selecionadas, a população se branquearia e se construiria uma nação forte. Segundo, Oliveira Vianna a construção de uma nação próspera teria como causa dois fatores determinantes. O primeiro seria a “raça de seu povo”, visto que era a “raça” que iria influenciar no intelecto, no temperamento e consequentemente nas manifestações culturais e sociais. Por isso uma nação não poderia ser insensível à qualidade de elementos raciais que entrariam em sua composição. O segundo fator seria um Estado forte, que pelejasse pela massa populacional, que segundo Vianna, seria incapaz de mobilizar-se. O povo não tinha condições sociais e nem preparo político para desfrutar das idéias liberais importadas de povos mais à frente na escala da civilização, era o Estado que deveria se responsabilizar por conduzir a nação, sem interferências de homens de moralidade duvidosa e de nível intelectual baixo que prejudicariam as tomadas de decisões sobre o futuro do país. Apesar das críticas, Oliveira Vianna, foi um historiador importantíssimo para o estudo do Brasil, considerado até então, um de seus intérpretes, descartar toda sua obra, seria invalidar importantes contribuições trazidas para o meio acadêmico, porém é sabido também que algumas de suas teorias, entre elas a diferenciação das “raças” serviu de 240 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 amparo ideológico, visto que ao se forjar uma proposta de Identidade Nacional embasada em fatores étnicos, estigmatizou-se o negro e o mulato, pela concepção de inferioridade racial. FONTES VIANNA, Oliveira. Evolução do povo brasileiro: 4. ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1956. ________, Raça e Assimilação. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1959. ________, Ensaios inéditos. Campinas: Unicamp, 1991. ________, Instituições Políticas Brasileiras. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1999. BIBLIOGRAFIA ABREU, Alzira Alves de (org). Dicionário Histórico- Biográfico Brasileiro: pós 1930. Rio de Janeiro: Editora FGV; CPDOC, 2001. BASTOS, Elide Rugai, João Quatim de Moraes (org). O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Unicamp, 1993. BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre intérpretes do Brasil. 2ª ed. São Paulo: UNESP. 2007. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O Racismo na história do Brasil. 3. ed. São Paulo: Ática, 1996. 241 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 CHARTIER, Roger, A História Cultural entre Práticas e Representações .2ed. Rio de Janeiro: Difel, 2002. COELHO, Geraldo M, História e ideologia: o IHGB e a república. Belém: Universidade Federal do Pará, 1981. HOBSBAWN, Eric J. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. 5ª ed. São Paulo: PAZ e Terra, 2008. LAMEGO FILHO, Alberto. A Planície do Solar e da Senzala. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 1996. LEVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. MADEIRA, Marcos Almir. Obra e exemplo de Oliveira Vianna: Vulnerabilidades da crítica. Rio de Janeiro: Academia Brasileira das letras, 1999. MARTIUS, C. F. P. v. “Como se deve escrever a história do Brasil” in O Estado do Direito entre autóctones do Brasil. São Paulo: Editora Itatiaia/EDUSP, 1982. MENEZES, Geraldo Bezerra.Oliveira Vianna - Intérprete do Brasil -.Rio de Janeiro: [s.n.], 1983. Edição comemorativa do centenário de seu nascimento. MICELI, Sergio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel/difusão editorial S.A, 1979. MOURA, Clóvis. As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira. Belo Horizonte: Oficina dos Livros, 1990. PÉCAUT, Daniel.Os intelectuais e a política no Brasil:entre o povo e a nação.São Paulo: Ática, 1990 REGO, W. G. D. L. Tavares Bastos e Oliveira Vianna: Contraponto. In: BASTOS, E. R. & MORAES, J. Q. de. (orgs.): O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993, p. 167-185. 242 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 REIS, As identidades do Brasil 2:de Calon a Bonfim: a favor do Brasil: direita ou esquerda. Rio de Janeiro: FGV, 2006. 243 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 O Caso De Pedro Índio: Inquisição e gentilidade em Portugal Quinhentista Jorge Henrique Cardoso Leão363 RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar o caso do réu Pedro Índio, nascido em Ceilão e julgado, em 1558, no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, pelo crime de gentilidade. O mesmo mostra-se interessante por fornecer informações que nos ajudam a compreender o comportamento da inquisição portuguesa face às práticas de gentilidades praticadas no próprio reino. PALAVRAS-CHAVE: Inquisição em Portugal – Comunidade cristã no Oriente – Práticas de gentilidade. ABSTRACT: This article aims to analyze the case of Pedro Índio, born in Ceilão and judged in 1558 by th Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, for the delict of gentility. This case is interesting to understand the Portuguese Inquisition behavior against the gentility practiced in their own kingdom. KEYWORDS: Inquisition in Portugal - the Christian community in the East - Practices of gentility. Este artigo tem por objetivo analisar o caso do réu Pedro Índio, nascido em Ceilão e julgado, em 1558, no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, pelo crime de gentilidade. O mesmo mostra-se interessante por fornecer informações que nos ajudam a 363 Mestrando em História Social pela UERJ, pós-graduado em História Militar Brasileira pela UNIRIO e graduado em História pela UGF. Bolsista de pesquisa pela FAPERJ e vinculado como estudante ao Núcleo de Estudos Inquisitoriais da UERJ e a Companhia das Índias da UFF. Áreas de interesse e pesquisa como: História do Império Português; Jesuítas e Inquisição no Oriente; Relações Luso-Nipônicas nos Séculos XVIXVII. Contato: [email protected]. 244 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 compreender o comportamento da inquisição portuguesa face às práticas de gentilidades praticadas no próprio reino. Em primeiro lugar, podemos enxergar a relação do réu com o Santo Ofício através dos pressupostos dos ritos da instituição (BOURDIEU, Pierre. 1996). É certo dizer que as instituições valem-se dos rituais de passagem para impor limites e legitimar toda ação do poder perante o indivíduo e a sociedade. Em outras palavras, a catequese e o batismo serviam de métodos que consagravam o indivíduo a entrar na comunidade Católica. Neste sentido podemos observar o papel do Santo Ofício como instituição responsável por inquirir também sobre os desvios cometidos por aqueles instituídos na comunidade de Cristo. Do outro lado, devemos compreender o comportamento religioso do réu como fruto do processo de mestiçagem cultural característico das sociedades ibéricas, durante a época colonial (GRUZINSKI, Serge. 2001)364. Delineado nosso objeto de estudo, fica claro que não podemos compreender o caso de Pedro Índio isoladamente, mas sim, dentro do próprio contexto do Santo Ofício português. Durante os séculos XII ao XIII, na Europa, a Igreja Católica começava a praticar os primeiros atos de inquirição sobre as comunidades heréticas e mais tarde o IV Concílio Ecumênico de Latrão, em 1215, estabeleceria de forma embrionária as bases de um tribunal religioso. Durante os finais da Época Medieval, a Igreja havia dedicado maior parte de seus esforços em conter o avanço das heresias no Velho Continente, assim como deva início as práticas inquisitoriais referentes à aplicação de penas espirituais e seculares (TAVARES, M. J. P. Ferro. 1987). Na Península Ibérica, nos finais do século XV a presença da heresia judaizante parece ter dado a verdadeira tônica da intolerância religiosa, que levou o estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição na Espanha (1478) e em Portugal (1536). Em 364 Serge Gruzinski caracteriza como hibridismo o resultado da mistura entre tradições distintas já existentes desenvolvido a parir de uma mesma conjuntura histórica. 245 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 termos de zelo pela unidade religiosa, a presença dos mouros fora combatida pelos ibéricos desde os tempos da reconquista da península, entendendo-se para Norte da África e mais tarde, com o advento da Expansão Ultramarina, para as regiões do Oriente português (CORTESÃO, Jaime. 1993). As primeiras décadas do século XVI são marcadas pelo acirramento da tensão entre o reino de Portugal e Castela. Nota-se que a Inquisição espanhola estava em funcionamento desde 1478, pela bula Exigit Sincerae Devotionis Affectus autorizada pelo Papa Sisto IV. Por esse motivo, os cristãos-novos, judeus, hereges e mouros viram no reino português uma rota de fuga das perseguições castelhanas. A ausência de um tribunal eclesiástico no reino português facilitava a vida clandestina dessa massa de excluídos provenientes das regiões espanholas. No sentido de melhor colaborar com a inquisição espanhola, Dom Manuel I recorre ao Papa Clemente VII o pedido da criação de um Santo Ofício para Portugal. Contudo, somente mais tarde, por volta de 1536, o monarca Dom João III consegue a autorização para a criação da inquisição portuguesa, com sede na cidade de Évora. Um ano depois, juntamente com a corte portuguesa, o Supremo Tribunal do Santo Oficio é transferido para a cidade de Lisboa (BETHENCOURT, Francisco. 2000). Recém criada, a Inquisição portuguesa procurou regulamentar e padronizar suas normas de funcionamento. Com relação à normalização das relações hierárquicas do tribunal, o historiador português Francisco Bethencourt afirma estas já haviam sido estabelecidas pelas instruções de 1541 e pelo regimento de 1552, e juntamente com a nomeação dos inquisidores institui-se o monitório, ou seja, uma espécie de manual, lido nos autos-de-fé, que estimulava a denunciação pública daqueles que ousassem contra a Santa Madre Igreja (TAVARES, M. J. P. Ferro. 1987: 194-199). Em termos de alçada do tribunal, o monitório estendeu o campo de atuação da Inquisição portuguesa para “o 246 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 judaísmo dos cristãos-novos, acrescentando o luteranismo, o islamismo, as proposições heréticas e os sortilégios” (BETHENCOURT, Francisco. 2000: 25). Em termos de organização institucional e da relação entre os tribunais, a inquisição estabeleceu uma série de traços permanentes que solidificaram um sistema de comunicação entre os tribunais do reino, com o tribunal de Goa, assim como dos comissários, visitadores e dos familiares do Santo Ofício no Brasil, nas regiões africanas e no oriente (BETHENCOURT, Francisco. 2000: 34-41). Em outras palavras, a grande quantidade de correspondências produzidas pelos funcionários da Inquisição, assim como, a troca de informações e cartas com as Ordens religiosas, garantiu ao Santo Ofício o estabelecimento de um padrão funcional, quer seja ele no reino ou em suas colônias. A padronização de um modelo de funcionamento estimulou o caráter ortodoxo com que seus encarregados tratavam os delitos contra a fé. Por mais que a confissão e a abjuração pública pesassem na sentença do réu, os inquisidores, assim como seus comissários, tinham agarradas as suas mãos e em sua consciência, os Santos Evangelhos e os Regimentos do qual estavam sob juramento. A uniformização do processo, assim como das penas, do aparelho burocrático e de sua produção documental, permitia que qualquer inquisidor soubesse como proceder diante de uma situação, mesmo fora de sua jurisdição (BETHENCOURT, Francisco. 2000). A partir deste ponto, podemos entender o caso de Pedro Índio como fruto dessa padronização de sistemas. Assim como os funcionários régios, os inquisidores tinham a noção de que neste império construído por vias marítimas as pessoas circulavam de um local para o outro (RUSSELL-WOOD, A.J.R. 1997). E foi assim que o réu natural do Ceilão, batizado em Goa, foi preso no reino pela Inquisição lisboeta. O debate sobre o caso de Pedro Índio estimula a pensarmos como a sociedade portuguesa, assim como suas instituições, encarava os indivíduos oriundos de suas 247 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 províncias ultramarinas. Autores como Laura de Melo e Souza, Ronaldo Vainfas e Sônia Aparecida Siqueira afirmam que o imaginário europeu sobre o mundo colonial adquiriu a visão de um território fadado a dicotomia entre o paraíso e o inferno na Terra, assim como seus habitantes e suas práticas culturais (SOUZA, Laura de Mello e. 1986; VAINFAS, Ronaldo. 1989 & SIQUEIRA, Sônia. 1978). Na visão de autores como Jorge Flores, Francisco Bethencourt e A.J.R. Russel-Wood a visão do mundo colonial, passando por essa característica ambígua, tornar-se um campo social e cultural favorável ao processo de adaptação (FLORES, Jorge Manuel. 1998; BETHENCOURT, Francisco. 1998. v.1). Assim, essa imagem do paraíso e do inferno, com o qual o mundo colonial se apresentava, estimulou a cobiça tanto de leigos quanto de eclesiásticos no sentido de desvendar seus mistérios, usufruir de suas riquezas e de passar por suas provações pessoais. Serge Gruzinski enfatiza o processo de mestiçagem cultural criado a partir da interação constante entre colônia e metrópole (GRUZINSKI, Serge. 2001: 42). Com base nas vias da construção de uma sociedade misturada, podemos nos referir a Pedro Índio como aquele indivíduo que é levado para o reino e mediante ao batismo e a convivência com os valores e costumes cristãos da sociedade portuguesa, passa a ser entendido pelos historiadores e antropólogos recentes como um indivíduo híbrido. Assim, estes indivíduos, apesar de estarem alocados em posições sociais desprivilegiadas são capazes de transitar livremente entre as duas realidades, falando mais de uma língua, participando das mudanças no seu cotidiano e mesclando suas práticas religiosas (TODOROV, Tzvetan. 2003)365. Estimulados pelos estudos de Serge Gruzinski, historiadores como José Eduardo Franco e Célia Cristina Tavares têm se dedicado aos trabalhos acerca das tensões entre a inquisição e a atividade missionária. Suas reflexões se baseiam na dicotomia das ações 365 Cf. o caso da ameríndia convertida conhecida pelo nome de La Malinche, por Cortez e pelos outros conquistadores espanhóis. 248 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 eclesiásticas entre o princípio da flexibilidade, característico dos missionários e o da ortodoxia, característico da inquisição (FRANCO, José Eduardo e TAVARES, Célia Cristina. 2007). O conflito entre essas duas instâncias foi uma realidade vivenciada tanto no reino português quanto nos seus territórios coloniais, e tornou-se mais latente após o estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício de Goa, na Índia portuguesa, em 1560. Como parte da estratégia da catequese no Oriente, a adaptação a realidade do outro, assim como a compreensão do idioma e a tentativa de entendimento das práticas religiosas locais fizeram com que, em parte, os missionários, sobretudo, os jesuítas fossem acusados pela inquisição de contribuírem para os desvios de doutrina. Em contraposição a esta perspectiva, os jesuítas alegavam a Igreja romana que essa era a única forma de se aproximar do outro para levar os Santos Evangelhos (TAVARES, Célia Cristina. 2006). Devemos ter em mente que o fluxo migratório no império português se dava em duas instancias, tanto do reino para as colônias quanto vice-versa. Se de um lado os portugueses se deslocaram para os territórios do Além-mar, não podemos deixar de dizer que essa sociedade mercantil levou para o reino partes das ultramarinas sociedades, consideradas exóticas. Neste âmbito destacamos os trabalhos de José Ramos Tinhorão e de Daniela Buono Calainho. Apesar de ambos trabalharem com a presença do negro em Portugal, eles abrem espaço para um leque de reflexão acerca da presença desses indivíduos no reino português e os impactos sobre a sociedade lusitana (TINHORÃO, José Ramos. 1988 & CALAINHO, Daniela Buono. 2008). Uma série questões teóricas tiveram que ser esboçadas em parágrafos anteriores para que possamos explorar mais a fundo o caso de Pedro Índio. Este mesmo gentio nascido no Ceilão e batizado em Goa levado, entre seus 25 ou 30 anos, foi levado para Portugal como cativo de um juiz do Cível de Lisboa conhecido pelo nome de Diogo Lopez. No decorrer da leitura do processo, é visível que grande parte das denunciações feitas 249 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 mostram que o réu “não era gentio, mas era mouro” (IANTT, 1558) e de que quando bêbado dizia em retornar para sua terra. Contudo, no decorrer da inquirição feita pelos inquisidores, Pedro Índio é acusado de práticas de gentilidade. Porém, quase todo tempo os mesmos inquisidores confundem essas práticas como “fazer alguma cerimônia dos mouros” (IANTT, 1558) e procuram saber se o réu “conversava com mouriscos ou com mouros. Ele disse que não, mas que conversava com índios” (IANTT, 1558). Para o historiador Ronaldo Vainfas, o conceito de idolatria poderia estar ligado às práticas de resistência da população nativa – seja ela ameríndia, africana ou oriental – onde o que se buscava era persistir ou renovar os antigos ritos e crenças, mesclando-os com a luta social como forma de reconstruir a identidade do indivíduo nessa nova realidade, que o mundo colonial representava (VAINFAS, Ronaldo. 1995: 31-37). Porém, estas manifestações também chamadas de gentilidades, foram confundidas, em sua maioria, como a materialização do Diabo e das forças do mal, por isso, deveriam ser combatidas pela inquisição. No mundo colonial português, ser mouro poderia complicar ainda mais a situação de um indivíduo cujo almejasse a graça do perdão oferecida pela Santa inquisição. Por isso, no decorrer dos autos do processo é visível a preocupação do réu de não se dizer mouro, assim como da presença de uma série de contradições que dificultavam os inquisidores em alocar Pedro Índio na categoria de gentio ou de muçulmano (IANTT, 1558). Em uma denuncia, a taverneira Maria Fernandes relata perante os inquisidores que Pedro Índio não houvera de ter praticado “coisas de mouro” (IANTT, 1558) , mas disse ele “não creres que Deus que morreu nesta paixão por nós” (IANTT, 1558). Contudo, Maria Fernandes se refere ao comportamento de Pedro Índio como fruto de seu problema com bebidas alcoólicas. No mesmo rol das culpas contra o dito réu, Maria Fernandes, por volta de 13 de dezembro de 1558, afirma perante os inquisidores que Pedro Índio havia lhe 250 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 confessado que “na sua terra não batizavam, senão em outra. Os quais e que quando estavam como criança a batizar” (IANTT, 1558). Resta a partir daí a dúvida gerada entre os inquisidores que podem ter levado os mesmos a confundirem este gentio do Ceilão, com um mouro. Pedro Índio fora batizado em outra terra – na verdade em Goa – e saiu de lá ainda criança, o que nos leva a concluir que neste meio tempo, para os inquisidores, Pedro Índio pôde ter sido instruído primeiramente, ou não, na doutrina islâmica para depois ser batizado em outra cidade. O decorrer do processo torna-se complexo, pois à medida que os inquisidores o confundem como mouro, são feitos a ele uma série de perguntas e indagações acerca das testemunhas que soam mais característicos de um apóstata do que de um herege propriamente dito. Observemos : E o dito Pedro Índio se perguntado se viu por acreditar em algo da Paixão de Cristo. [...] e ele disse que não viu aquela pelo seu olho. [...] ouviu-se também uma moça chamada Beatriz Domingues [...] perguntada pela Santa Inquisição de o dito índio era cristão ou se ainda era mouro. Ela disse quando perguntada eu o dito índio é cristão e disse seu nome cristão. [...] e foi perguntada se o dito índio estavam sóbrio quando disse as ditas palavras ou estava tomado de vinho ou alguma outra paixão ou se disse as ditas palavras rindo ou invocado. Ela disse que por Deus o dito índio estava com seu olho posto que algumas vezes bêbado [...] (IANTT, 1558). A partir deste trecho é identificada a preocupação dos inquisidores em tirar das confissões e do próprio réu, algumas contradições da doutrina cristã que colocassem em xeque o acusado. Em outro campo de denuncias que pairam sobre Pedro Índio está a de que grande parte de suas testemunhas depõem em juízo não terem visto, na maioria das vezes o réu freqüentar as missas. Para época este falta poderia ser considerado um agravante numa situação de envolvimento com a inquisição, tanto para cristãos-velhos quanto para os conversos. 251 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Em tempos anteriores as culpas de dezembro de 1558, um documento de 20 de maio de 1558, contendo uma série de perguntas feitas pelos inquisidores ao dito réu, demonstra a preocupação em se saber se Pedro Índio era mouro, porém a realidade foi reveladora, uma vez que na verdade, ele havia se revelado uma espécie de converso relapso. Como segue abaixo: se confessava cada ano, mas não tomava o Santo Sacramento pelo seu senhor não querer dá-lo a um cativo. Ciente disso pôs falar da Ave Maria e disse que acreditava em muitas partes dela, mas que não sabe a oração. Perguntado sobre a doutrina cristã, se antes de cristão fora mouro. O dito disse que era gentio como os da ilha de Ceilão donde ele era natural. (IANTT, 1558). Em vista disso, os inquisidores passam a explorar mais a face em que se mostra o dito Pedro Índio como relapso ou até mesmo de apóstata, do que de mouro. Porém, uma série de contradições só tenderia a aumentar. Frente os testemunhos de acusação de Pedro Índio que o taxavam de mal cristão ou praticante de gentilidades, quando inquirido pelos inquisidores, o réu responde que “foi perguntado se depois de batizado deixou de crer em Jesus Cristo e de crer no Deus da sua terra e que outra vez fora gentio. Ele disse que sempre crera em Jesus Cristo depois de ser cristão”. (IANTT, 1558). Ou seja, que na verdade ele abandonara suas antigas crenças assim que foi batizado. Porém, neste mesmo documento de 16 de junho de 1558, o dito réu é posto em contradição mais uma vez com as diversas acusações por parte das testemunhas. Agora, ele fora inquirido sobre sua natureza e por suas práticas religiosas antes de sua conversão. Os inquisidores seguem a inquirição tentando buscar quaisquer informações que os ajudassem a identificar novamente no réu as práticas de mouro, como observamos no trecho abaixo: e perguntado se foi mouro antes que fosse cristão, o gentio disse que alguma vez que primeiro era mouro porque se fez na sua terra e 252 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 que não cria no Deus dos cristãos [...] perguntado a que Deus ele cria antes de ser cristão e ele disse que no pagode de sua terra. E perguntado se estava algumas vezes no lugar do dito pagode para adora seu Deus e se ele fazia orações ou cerimônias depois de ser cristão. Lembrando-se do dito pagode dissera que na sua terra para adorar ou tornar a crer no seu Deus e fazer algumas orações, disse que na verdade era ele amoitado por ser cristão e entrava na casa do dito pagode do qual tem uma imagem de um homem preto que está dentro de uma casa. E ele encostado-se à parede, voltado em direção ao chão, estava com as mãos para adorar seu Deus. [...] e depois de ser cristão ele cria algumas vezes no dito pagode, mas não disse que o seu Deus era Deus. (IANTT, 1558). O fato é que em primeira instancia, os inquisidores consideram a posição do réu como: o dito foi perguntado se visse que depois de cristão tornara a crer no seu pagode e se em seu nome deixara de crer no nosso senhor Jesus Cristo, porque isto lhe convém para sua salvação. Foi levado ao seu cárcere [...] e assinou aqui o juramento. (IANTT, 1558). Viu-se que as denúncias sobre Pedro Índio ora o colocam em posição de mouro ou de gentio, e que ser adepto do Islão poderia pesar na hora da decisão dos inquisidores. Observamos também que os testemunhos sempre se contradizem com a palavra do réu. Estas contradições colocaram os próprios inquisidores na dúvida de como se proceder diante do caso. No momento em que é batizado ainda no oriente, Pedro Índio passa a ingressar a comunidade cristã e este deve se comportar como tal (BOURDIEU, Pierre. 1996)366. Daí a preocupação dos inquisidores em saber se mesmo depois de batizado o dito réu havia ou não abandonado suas antigas crenças. Do outro lado, seguindo os pressupostos da hibridação cultural, assim como muitos outros, Pedro Índio era o exemplo vivo do monumento do colonialismo ibérico (GRUZINSKI, Serge. 2001). Onde mesmo batizado e 366 Do ponto de vista social, tanto o indivíduo que recebe quanto aquele que confere o ato de consagração partilham de responsabilidades sociais, características da etiqueta de cada instituição. 253 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 crendo em Jesus Cristo e Igreja Católica, não conseguira se desprender por completo de sua antiga religião, do qual praticava as escondidas. Contudo, como forma de subterfugiu da grande armadilha que era o processo inquisitorial, o gentio foi forçado a desviar a atenção dos inquisidores, assim como as testemunhas. Isto acaba ficando claro no trecho que diz: E sendo perguntado se o Réu é índio mourisco de nação natural de Ceilão e se depois de batizado na cidade de Goa lhe puseram o nome de então e se o instruíram nas coisas da Santa Fé, e por então se tratou e nomeou prometendo vir e fazer parte da nossa Santa Fé como bom cristão. E depois de assim ser cristão lhe reduziu ao engano pelo demônio e se apartou de nossa Santa Fé retornando-se aos seus erros e praticando heresias e apostasias contra a Fé espiritual e estava ciente de seu juramento. (IANTT, 1558). Parece que não se trata de um caso de mentira contra a verdade, mas sim de uma persuasão psicológica que os inquisidores faziam com o réu, assim como da contradição por parte dos testemunhos, capazes de provocar a reação contrária do réu diante de uma situação de intensa pressão psicológica. Este fato pode ter levado Pedro Índio a mentir perante os inquisidores e lhes afirmando, que havia ter caído em tentação a dizer tais palavras. Isso sem contar no seu problema com a bebida alcoólica, e que fora relatado por quase todas as testemunhas, onde pesou na decisão dos inquisidores. Para ser mais exato, algumas testemunhas do processo alegaram que Pedro Índio chegava a estar tão alcoolizado que o mesmo não conseguia se sustentar de pé para ir até a igreja. Em mais uma denuncia denúncia, a esposa de Antônio Fernandes, a taverneira Maria Fernandes, afirma que viu o dito réu: “uma vez se criar no poço de curamento com todos os outros negros que a i estavam por diziam que andava e todo e assim ouviu dizer” 254 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 (IANTT, 1558). De fato é inegável que Pedro Índio era adepto de certas idolatrias e gentilidades, mas que praticava isso, por estar, segundo a própria testemunha, alcoolizado. Contudo, outra parte do processo referente ao dia 31 de agosto de 1558 coloca o réu em uma situação mais confortável, pois alega que: Este Réu que está fora da Fé, parece que se foi apontado com muita gentilidade errônea, como se prova que é errante, ele disse que não cria no Deus dos cristãos e que cria no Deus de sua Terra e que este padecera por ele, por isso, nunca viu o Deus dos cristãos e nem motivos para crer. Sendo assim o dito réu respondeu por vezes que se não viu ou ouviu dizer e que se não o que via. Para isso lhe confirmam Pedro de Ataíde, Beatriz moça solteira, André Paiva, Maria Fernandez, sua mulher e Francisco índio, cativo do mesmo senhor. Que se diz convidado o réu por vezes para ir à missa ao encontro de Deus e o mesmo dizia que não queria porque não via Deus com seus olhos. Disse também que não se confessava nem estava nos cultos que denotavam práticas de mouros ou gentios e não estava fora da Fé [...] (IANTT, 1558). É entendido a partir disso que Pedro Índio passa a ser visto como um indivíduo diferente em meio ao cotidiano do reino. Ao afirmar que ele era considerado apenas mal cristão, os perjúrios de mouro, por exemplo, deixam de ser uma preocupação com relação ao futuro do réu. Suas práticas de gentilidade e de idolatria passam a ser identificadas como um desvio natural da tentação do demônio. Contudo, sabemos que, ao contrário do que os inquisidores pensavam, o réu na verdade se desviou naturalmente da fé por motivos de resistência, a fim de reconstruir sua própria identidade que havia sido perdida desde que havia sido batizado em Goa, quando criança. No que toca o destino do réu, os inquisidores parecem ter ponderado uma série de elementos, muitos dos quais foram citados ao longo deste trabalho. O Inquisidor que acompanhou o caso, frei Jerônimo de Azambuja declara a seguinte decisão: 255 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Declarou-se que o foi herege e apóstata da nossa Santa Fé Católica e que decorreu em excomunhão maior e nas outras penas em delito contra a Fé, que some há eles instituídos. Porém, visto como ele tem estado o conselho confessou suas culpas e pediu delas o perdão e muito se confessa de arrependimento e o mais que dos ditos autos se resulta. Recebem o réu, Pedro, à reconciliação a mão da Santa Madre Igreja como pede, e lhe mandam que abjure publicamente suas práticas heréticas e erros em forma de pena. E deles lhe assim no cárcere o hábito penitencial pelos que depõe no parecer dos inquisidores vistos a qualidade de suas penas e confissão [...] no qual no cárcere será muito bem doutrinado nas coisas da Fé e que o convidem para a salvação de sua alma [...] (IANTT, 1558). Segue a abjuração do réu, E se apartou de muitas de suas espécies de heresia e apostasia e tornou a se batizar na Santa Fé Católica porque sua apostasia espiritualmente está e que foi em sua confissão antes de vossas mercês que aqui agora [...] e jurou de sempre por guardar a Santa Fé Católica e o bem em da Santa Madre Igreja de Roma e que será sempre obediente dos nossos muitos santos padres Papa Paulo IV, presidente da Igreja de Deus [...] e prometo nunca me ajuda com eles [gentios, hereges, pecadores etc.] e se souber direi aos inquisidores seus pecados. E juro e prometo cumprir quanto em muito for à punição que me foi imposta. [...] que o dito Pedro Índio seja solto do colégio da doutrina da Santa Igreja e de volta cumprindo com sua penitência nesta cidade [...] que o assistisse as pregações nos domingos nas festas e à tarde dos ditos dias que será ouvida a doutrina cristã desta freguesia [...] em Lisboa aos 20 de outubro de 1558 anos. (IANTT, 1558). A dúvida que pairava sobre sua origem muçulmana parece ter sido esclarecida no desenrolar dos autos. Com isso, a idolatria e a gentilidade passaram ser o ponto de ataque dos inquisidores. Devido à série de contradições existentes nas palavras do réu, assim como nas de suas testemunhas, conseguiu-se transformar as culpas de heresia e apostasia em arrependimento. Assim sendo, o réu pôde cumprir sua pena se instruindo novamente na catequese, sendo obrigado revisar seus ritos de passagem da sociedade cristã (BOURDIEU, Pierre. 1996). Por outro lado, este caso denota uma parte do conflito existente entre os missionários e a Inquisição. Uma vez que no oriente, a estratégia missionária valeu-se do 256 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 processo de adaptação. Este cenário mostrava-se contrário aos anseios da Inquisição, dando espaço para que indivíduos como Pedro Índio, se misturassem culturalmente. Por isso, na visão do Santo Ofício cabia aos inquisidores, juntamente com os eclesiásticos do reino corrigir as falhas provenientes da estratégia missionária no mundo colonial (TAVARES, Célia Cristina. 2006), e que no caso de Pedro Índio, foram capazes de constituir um híbrido de características marcantes, no seio do reino português. FONTES Autos de Pedro Índio cativo do doutor Diogo Lopez Juiz do Cível desta cidade preso no cárcere da Santa Inquisição. Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Manuscritos da Inquisição de Lisboa), 1558. BIBLIOGRAFIA BETHENCOURT, Francisco. O Contato entre os Povos e Civilizações. & RUSSELWOOD, A.J.R. A Sociedade Portuguesa no Ultramar. in BETHENCOURT, Francisco e CHAUDHURI, Kirti (dir). História da Expansão Portuguesa: a formação do império 1415-1570. Navarra: Círculo de Leitores, 1998. v.1. ________. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália (XV-XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BOURDIEU, Pierre. O que Falar quer Dizer: Economia das Trocas Lingüísticas. SP: Edusp, 1996. CALAINHO, Daniela Buono. Metrópoles das Mandingas: religiosidade negra e Inquisição portuguesa no Antigo Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. CORTESÃO, Jaime. História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Imp. Nacional Casa da Moeda, 1993. 257 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 FLORES, Jorge Manuel. Um Império de Objetos. in HESPANHA, Antônio Manuel de (dir). Os Construtores do Oriente Português. Porto: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998. FRANCO, José Eduardo e TAVARES, Célia Cristina. Jesuítas e Inquisição: cumplicidade e confrontações. Rio de Janeiro: EdUerj, 2007 GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. RUSSELL-WOOD, A.J.R. Portugal e o Mar: um mundo entrelaçado. Lisboa: Pavilhão de Portugal – Expo’98, 1997. SIQUEIRA, Sônia Aparecida. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo: Editora Ática, 1978. SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. TAVARES, Célia Cristina. Rotas da Fé: Inquisição e missionação no Oriente português. in FRAGOSO, João, FLORENTINO, Manolo, SAMPAIO, A. Carlos Jucá de e CAMPOS, Adriana Pereira. Nas Rotas do Império: eixos mercantis, tráfego e relações sociais no mundo português. Vitória: Edufes, 2006. TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. Judaísmo e Inquisição: estudos. Lisboa: Editorial Presença, 1987. TINHORÃO, José Ramos. Os Negros em Portugal: uma presença silenciosa. Lisboa: Caminho, 1988. TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. Rio de Janeiro: Marins Fontes, 2003. VAINFAS, Ronaldo. Trópicos do Pecado: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1989. 258 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A Legítima Causa do Brasil: Uma análise do vocabulário político do periódico Reverbero Constitucional Fluminense durante o processo de independência do Brasil. Jorge Monteiro Vianna367 RESUMO: Insere-se o artigo na proposta de analisar algumas reflexões políticas registradas no periódico Reverbero Constitucional Fluminense, dando ênfase nas interpretações do vocabulário político e nos conceitos de pátria e nação que caracterizaram os debates políticos nos anos de 1821 e 1822 durante o processo de independência do Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Independência do Brasil; Nação e Pátria; Imprensa. ABSTRACT: This article proposes to analyse some policy reflections recorded in the journal Reverbero Constitucional Fluminense, focusing on interpretations of the political vocabulary and the concepts of homeland and nation that characterized the political debate in the years 1821 and 1822 during the independence Brazil. KEYWORDS: Independence of Brazil; the nation and homeland; Press Em seu significado moderno e, portanto político, o conceito de nação é historicamente recente, como afirma Hobsbawm368. Entretanto, a utilização do termo nação é antiga. Herdado da Antiguidade romana, o antigo conceito tradicional de Natio referia-se ao nascimento ou a raça como perspectiva de diferenciação entre os grupos humanos369. Contudo, no século XIII europeu, identificamos que os estudantes das diversas regiões 367 Mestrando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 30. 369 SCHULZE, Hagen. Estado e Nação na História da Europa. Lisboa: Editora Presença, 1997, p. 107. 368 259 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 européias eram divididos por nações na Universidade de Paris, não tendo como principal critério a região de nascimento, porém, a língua ou o grupo lingüístico. 370 Desta forma, como determinar a existência de uma nação? Há um marco? Uma data? Ou podemos encontrar sua existência estabelecida por fatores como a língua, o território, ou a religião? Seguindo algumas conclusões feitas por José C. Chiaramonte, partimos então, desde o início, enfatizando a perspectiva de que mais importante do que definir o que uma nação é questionar e investigar aqueles que utilizaram o conceito ao longo dos diversos contextos históricos, ou seja, indagar como e porque utilizavam o termo nação e em quais realidades o aplicavam. O historiador argentino afirma que o conceito foi usado por séculos em seu sentido étnico. Entretanto, no século XVII já se encontra o sentido estritamente político do termo nação (o que não significa o desaparecimento do sentido anterior), que acaba por se generalizar durante o século XVIII, antes da Revolução Francesa371. Esclarecemos então, o objeto e o objetivo desse curto artigo. Nosso objeto é o periódico Reverbero Constitucional Fluminense372, que circulou nas ruas do Rio de Janeiro, nos anos de 1821 e 1822. O objetivo não é fazer exatamente uma avaliação do periódico como obra, tentando mapear os acontecimentos políticos descritos em suas páginas, mas buscar através da interpretação de algumas passagens e textos publicados, o sentido que apresenta o constante termo nação (e algumas de suas variações) através da análise de alguns elementos do vocabulário político presente nessas folhas impressas. 370 Ibid., p. 112. CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y Estado en Iberoamérica. Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 2004, pp. 47-50. 372 O Reverbero Constitucional Fluminense teve seu primeiro número editado em 15 de setembro de 1821 e último em 8 de outubro de 1822. Numa duração de 13 meses, o jornal se divide em dois tomos. O primeiro tomo constitui-se num total de 28 edições, mais duas edições extraordinárias, e uma edição de suplemento ao número 2. Já o segundo tomo é formado por 20 edições. Possuía uma variação de 11 a 12 páginas e apresentou três locais de impressão, a oficina de Moreira e Garcez, a Tipografia Nacional e a oficina de Silva Porto. No ano de 1821 foi publicado quinzenalmente, (com exceção da edição suplemento ao número 2), porém, em 1822, começou a ser editado semanalmente. Em sua composição, continha, principalmente, diversas reflexões dos redatores, passagem de outros jornais, principalmente Correio Braziliense e, publicações de correspondências. 371 260 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A nação discutida, refletida e registrada nas páginas dos diversos periódicos que se proliferaram nas principais cidades do Brasil, durante o processo de independência, apresenta um caráter essencialmente político. As visões e os interesses políticos registrados pelos redatores, estavam influenciadas pelo próprio ideal de nação no qual defendiam. Concordamos, nesse sentido, com a visão da historiadora Lúcia Maria Bastos, que ao analisar o vocabulário político presente nos diversos jornais e panfletos do contexto lusobrasileiro da independência, identificou que a nação não se confundia com uma simples noção de um conjunto ou grupo de indivíduos. Ganhava um sentido de uma vontade geral, donde vinham os poderes políticos e, por isso, invocava-se a nação como “um centro do qual partiam as principais determinações políticos”, o que acabava por ligar o conceito de nação as questões institucionais e políticas.373 Desta forma, longe de ser um fenômeno natural da história, o que chamamos hoje facilmente de nação brasileira é produto de uma construção histórica. Construção que começa a ser erguida e ganha seu rascunho no século XIX, mais precisamente durante o processo de independência política da ex-colônia Portuguesa. Como nos enfatiza o consagrado historiador pernambucano, Evaldo Cabral de Mello, o “Brasil não se tornou independente porque fosse nacionalista, mas fez-se nacionalista por haver-se tornado independente”.374 Os anos de 1821 e 1822 destacam-se pela consolidação de uma rede de debates, tanto em Portugal quanto no Brasil. Para entendermos essa rede, é mister identificar o movimento vintista português como responsável pela divulgação de um ideário político, que tinha como principais características a defesa das idéias liberais e constitucionais, que acabaram por impulsionar a proliferação de jornais e panfletos nesse contexto luso373 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionalistas: a cultura política da independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan: FAPERJ, 2003, p. 210. 374 MELLO, Evaldo Cabral de. “A fabricação da nação”. Apud. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. cit., p. 374. 261 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 brasileiro. É nessa realidade, que se insere a publicação do Reverbero Constitucional Fluminense, redigido pelo líder maçônico Joaquim Gonçalves Ledo e cônego Januário da Cunha Barbosa. Em suas páginas circulavam constantemente as palavras nação e pátria, revestidas de sentidos tanto para aqueles que a escreviam, quanto para aqueles que as liam. Pátria e Nação estavam longe de representarem conceitos antagônicos, entretanto, mesmo com uma certa proximidade de sentido, guardavam suas diferenças, que iam além do uso dos termos como uma forma casual. Na Antiguidade clássica a Pátria apresentava freqüentemente um sentido de agregação de valores políticos, morais, éticos e religiosos. Contudo, no período feudal, onde os laços pessoais circunscritos a vassalagem determinavam os próprios laços e a vida política, essa antiga noção de pátria se desintegra, o que ao mesmo tempo, não elimina a utilização do termo, que continua a ser usado nas obras de alguns eruditos medievais ou na linguagem cotidiana. Como no alemão “Heimat” ou no francês “pays” a pátria apresenta um sentido de localidade, referindo-se ao povoado, aldeia ou província. As guerras que eram travadas por exércitos de vassalos e cavaleiros feudais (e não por cidadãos), não determinavam um sacrifício pela pátria, mas sim uma afirmação de lealdade ao senhor.375 Mónica Quijada nos mostra, analisando o contexto dos processos de independência da América Hispânica, há uma importante diferença entre os conceitos de nação e de pátria. O conceito de nação é mais ambíguo e mutável, quando comparado ao de pátria, ao longo da Idade Moderna. Recorrendo a dicionários de língua espanhola, nos anos de 1611, 1726 e 1787, encontram-se definições, que em resumo, afirmam a pátria como terra, lugar, país ou cidade de nascimento. A “Pátria aparece assim, na tradição hispânica, como uma 375 KANTOROWICZ, Ernest H. “A realeza centrada no governo: ‘Corpus Mysticum’”. In: Os Dois Corpos do Rei. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 147. 262 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 lealdade ‘filial’, localizada e territorializada”.376 Se recorrermos ao importante dicionário de língua portuguesa de Antonio Moraes, percebemos que este sentido de pátria até 1823 não é diferente. Encontramos nele, pátria como “a terra donde alguém é natural”.377 É nesse sentido que Gladys Sabina Ribeiro afirma que o “Brasil não era uma ‘pátria única’; era marcado por regionalismos. O termo ‘pátria’ não significava uma sociedade que se reconhecia com uma identidade e culturas próprias”.378 Contudo, é importante destacarmos junto com as análises de Lúcia Maria Bastos, que o ideário político advindo do vintismo e as primeiras idéias de separatismo, que foi se desenvolvendo ao longo de 1822, acabou por adicionar no conceito de pátria uma nova dimensão, que o “identificava a uma força criadora de grupos anônimos, que promovia o poder do espírito público em oposição ao individualismo monárquico”.379 Foi assim, definindo-se diante as enfatizadas animosidades políticas, entre as elites de Portugal e do Brasil no ano de 1822, que o sentido de pátria vinculava-se ao lugar que se vivia e que se compartilhava benefícios.380 Nessa perspectiva, mais uma vez Mónica Quijada, nos mostra que tanto nos discursos dos “independentistas hispanoamericanos”, quanto na luta dos espanhóis peninsulares contra os invasores franceses, foi se adicionando uma carga revolucionária na idéia de pátria. Desta forma, foi incorporada na idéia tradicional de pátria (concepção territorial) um outro sentido que estava vinculado à busca pela liberdade contra o despotismo, baseando-se em concepções cívicas. Gerava-se, portanto, uma crescente 376 QUIJADA, Mónica. “Qué nación? Dinâmicas y Dicotomías de la nación en el imaginario Hispanoamericano”. In: ANNINO, Antonio, GUERRA, François-Xavier (Coord.). Inventando la Nación. Iberoamérica. Siglo XIX. México: FCE, 2003, p. 291. 377 MORAES SILVA, Antonio de. Dicionário da Língua Portuguesa. (v.2). Lisboa: Tip. Lacerdina, 1823, p. 370. Apud. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. Cit. p. 205. 378 RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ, 2002, p. 47. 379 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. Cit. p. 205. 380 Ibid., p. 207. 263 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 identificação da pátria com a idéia de liberdade nos escritos deixados durante o processo de independência da América Hispânica.381 Retornando ao vocabulário político apresentado nos periódicos e panfletos escritos durante o processo de independência da antiga América Portuguesa, também se encontra uma “aliança verbal comum entre a liberdade e a Pátria”. 382 A luta contra o despotismo ia reafirmando a luta pela liberdade da Pátria, segundo os escritos das elites intelectuais e políticas luso-brasileiras. Reafirmando o despotismo como o símbolo do passado e do atraso e o liberalismo-constitucionalismo como a imagem do futuro pretendido, os indivíduos pertencentes a estas elites encontravam-se mergulhados numa cultura política que tinha sua matriz na Ilustração portuguesa. Além disso, iam configurando um período de politização da linguagem na vida pública, onde a literatura política transformava-se numa rica fonte de identificação de palavras e valores que reafirmavam um novo vocabulário político, influenciado pelas mesmas mitigadas luzes portuguesas. As afirmações registradas no Reverbero exemplificam o sentido de pátria ligado à busca pela liberdade, com o objetivo de combater o despotismo. Utilizando expressões como o grito da pátria, os redatores iam construindo suas críticas diretas ao que consideravam a antítese direta da liberdade, ou seja, sistema político onde independente das leis e da vontade do Povo, o soberano abusava do poder. Lembrai-vos somente do axioma eterno, reconhecido pelo maior dos déspotas = o Povo que quer ser livre, há de ser livre = Poderá talvez por algum tempo, ver abafados os seus esforços, mas os ferros cairão ao primeiro bem dado grito da Pátria, e de toda a parte rebentarão defensores (...)383 381 QUIJADA, Mónica. Op. Cit. pp. 291-292. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Op. Cit. p. 205. 383 Reverbero Constitucional Fluminense, n. 12, terça-feira 29 de janeiro de 1822. Rio de Janeiro: Tipografia de Moreira e Garcez, pp. 146-147. 382 264 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Porém, a liberdade para a elite luso-brasileira, atuante no processo de emancipação política do Brasil, não ia além do que a lei proibia. Não se podia confundir liberdade com abuso, tendo sempre como exemplo negativo, os acontecimentos da Revolução Francesa. Tal perspectiva elucida que a.liberdade deveria estar vinculada à busca pela ordem social e não da desordem, trazida pelo radicalismo popular. Tal questão acaba por refletir, o caráter reformador e moderado da Ilustração portuguesa e, por conseqüência, do pensamento e das novas propostas políticas das elites intelectual e política que atuaram nos turbulentos primeiros anos da década de 20 do Oitocentos, para contexto histórico luso-brasileiro.384 Do mesmo modo, que escreviam: “Nós detestamos as agitações populares”, os redatores do Reverbero comparavam o corpo político ao corpo físico e, por isso, no primeiro as enfermidades também poderiam aparecer. Para tanto, acrescentavam que era “necessário separar os membros gangrenados para salvar a vida da Sociedade. (...) todas as Instituições humanas são susceptíveis de melhoramento, e este deve ser graduado pelo Termômetro das Luzes do século”. E concluíam através de uma postura reformista que apresentava o caráter negativo das revoluções: Se os Povos, portanto, formam uma centralização de vontades, e de sentimentos não há Revolução, porque não há força opoente. Ora se os vínculos da Sociedade não se dissolvem, nem se quebram numa reforma, que reorganiza a ordem, e destrói os abusos, e que sobre a ruína da arbitrariedade restabelece o império das Leis e da Justiça, como se pode chamar Revolução a um ato indispensável para o bem do Todo, naqueles países em que não há uma Representação Nacional, que intervenha, vigie, zele, e sustente o cumprimento do Pacto Social? Nós detestamos as agitações populares; mas quem são os que as promovem? Não são, por certo, nem os Publicistas, nem os Filósofo, que dissipando as trevas do erro, patenteam as fontes da verdade; são sim os abusos do poder,que cavam os abismos da miséria Pública.385 384 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Liberalismo Político no Brasil: idéias, representações e práticas (1820-1823)”. In: GUMARÃES, Lucia Maria Paschoal; PRADO, Maria Emilia. (Orgs.) O liberalismo no Brasil Imperial: Origens, conceitos e práticas. Rio de Janeiro: Revan: UERJ, 2001, pp. 73-101. 385 Citações retiradas do Reverbero Constitucional Fluminense, n. 12, tomo I, terça-feira 29 de janeiro de 1822. Rio de Janeiro: Tipografia de Moreira e Garcez, p. 145. 265 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 É na necessidade de fugir dos abusos dos poderes tanto dos déspotas, quanto do radicalismo político revolucionário, que buscavam nas idéias liberais e constitucionais, um ponto de equilíbrio para o sistema político. Questionavam até se a Revolução do Porto poderia receber esse nome, pois não sabiam se desta forma deveriam chamar a luta da justiça contra o despotismo.386 Assim, Monarquia Constitucional evitaria as desordens e os excessos de liberdades. É neste contexto, que diferenciavam a pátria da nação. Na parte do jornal destinada às reflexões de Januário e Gonçalves Ledo, registrava-se tal diferença. Escreviam que A Liberdade que a Nação proclamou anima o amor da Pátria, o amor da pátria não pode separa-se do amor da Nação; o que dizemos em favor do Brasil, redunda em benefício de Portugal; somos livres, abraçamos a Causa que se identificou com o nosso mesmo sangue; mas porque a abraçamos e com tanto entusiasmo, deveremos ser menos do que éramos? Daremos calados tudo que possuímos até no sistema de nossa extinta escravidão, só porque se nos ensinou a ser livres? E aonde está a proclamada confraternidade?387 A liberdade patriótica não poderia distanciar-se do amor da nação. Pois, essa comunidade política imaginada388, como define a nação Benedict Anderson, é chave para entendimento do que era considerado legítimo pelos redatores. Para os redatores do Reverbero, o governo se estabelecia pela vontade dos governados e, por tanto, era na nação que residia a legitimidade política e social do governo. Perguntavam se “há de o governo ser a vontade dos governantes, ou dos governados? De quem são os interesses confiados a esses administradores?” Logo em 386 Cf. Reverbero Constitucional Fluminense, n. 11, tomo I, terça-feira 22de janeiro de 1822. Rio de Janeiro: Tipografia de Moreira e Garcez, p. 129. 387 Reverbero Constitucional Fluminense, n. 8, tomo I, 1º de Janeiro de 1822. Rio de Janeiro: Tipografia de Moreira e Garcez, p. 88. 388 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexão sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 32. 266 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 seguida respondiam: “Da Nação: logo à nação compete mudá-los, reformá-los, corrigi-los, quando se julga mal servida (...)”. Além disso, concluíam com firmeza que um governo só “é legítimo, quando legitimamente administra; isto é, quando o governo rege segundo o pacto e as leis existentes; quando a Nação satisfeita, vê desempenhando o fim de todos os Sistemas de Legislação, isto é, = Liberdade, e Propriedade =”.389 A Legitimidade desta nação estava diretamente ligada a Causa que defendiam, denominada diversas vezes de Causa do Brasil, Causa Nacional ou Causa Brasílica. É nessa ligação entre Legitimidade e Causa que iam determinando a base das estruturas do que denominavam de nação portuguesa, e logo depois (principalmente, a partir dos meados de 1822) nação brasileira. Construíam nas páginas do Reverbero as bases da legitimidade da nação e, ao mesmo tempo, a legítima nação. Segundo os redatores que se intitulavam de “Dois Amigos da Nação e da Pátria”, os Inimigos do Brasil estavam classificadas de duas formas: os “Inimigos da Assembléia Brasílica” e os “Inimigos de uma liberal Constituição”. Os Inimigos do Brasil eram os inimigos das causas eternas e constantes da força da nação. Logo, nada melhor que os próprios amigos da nação e da pátria, citando as análises de Mr. Bonim, para exclamarem: Sem Leis o Governo não é mais que Despotismo; os males do Corpo Social tem o seu remédio nas Leis Liberais; Não vos olvideis nunca que a Liberdade do Cidadão, o amor da Pátria, a bondade das Leis, a sólida instrução, a agricultura, a indústria, as Ciências, a Sabedoria, e a moderação no Governo, e atividade na administração, a imparcialidade da Justiça, a perícia dos Generais, o valor e a disciplina dos Exércitos, são causas eternas e constantes da força da Nação, fazem a sua glória, e a sua prosperidade. Mas para se obterem estes bens inapreciáveis estabelecei o regime representativo sobre sólidas bases: tereis a melhor polícia, e o único verdadeiro Governo.390 389 Citações retiradas do Reverbero Constitucional Fluminense, n. 11, tomo I, terça-feira 22de janeiro de 1822. Rio de Janeiro: Tipografia de Moreira e Garcez, p. 128. 390 Reverbero Constitucional Fluminense, n. 14 , tomo II, terça-feira 27de agosto de 1822. Rio de Janeiro: Tipografia de Moreira e Garcez, p. 172. 267 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Como enfatiza Marcello Basile, a independência não produziu uma profunda identidade nacional, portanto, “não produziu, a seu termo, propriamente uma nação”.391 Esta falta de uma identidade coletiva nacional, no que era genericamente chamado de Brasil, acaba por ser elucidada pelo próprio sentido do conceito de nação encontrado pelo Reverbero. A nação não era almejada, planejada e discutida tendo como base uma certa identidade, mas sim, através das próprias questões políticas, pois, os brasileiros eram definidos de acordo com o que os redatores do Reverbero chamavam de justa causa. Brasileiros, a nossa Causa é justa, o nosso fim é grande, a nossa votação é um ato da nossa da nossa Soberania. A Política e a Religião assim o persuadem; sustentemos os nossos direitos, elegendo Cidadãos que saibam e possam defender a nossa gloria. Ah! Vós sois Portugueses, Brasileiros, o amor da Pátria é vosso alvo, votai sem prejuízos, e Deus abençoará a nossa Causa. (...) Quando digo Brasileiros entendo geralmente os habitantes do Brasil, ou deste, ou do outro Hemisfério, (...) não faço diferença entre Europeu e Brasiliense, a todos amo, quando sei que se empenham pela nossa justa Causa.392 O vocabulário político que os periódicos traziam em cidades como o Rio de Janeiro, no período aqui analisado, acabam por refletir características contidas nas sociedades do período mais reveladoras do que pressupostos estruturais ou conjunturais, para que se possa entender a própria dinâmica dos processos de independência que ocorreram em toda a América. È na articulação entre o texto e o contexto que a linguagem política apresenta-se como agente e produto da história. Como afirma Quentim Skinner, quando retomamos os termos de um certo vocabulário normativo que um determinado agente apresenta para descrever seu comportamento político, acabamos por identificar as 391 BASILE, Marcello Otávio N. de C. “O Império Brasileiro: Panorama Político” In: LINHARES, Maria Yedda (org.).. História Geral do Brasil. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 207. 392 Reverbero Constitucional Fluminense, n. 10, tomo II, terça feira, 30 de julho de 1822, Rio de Janeiro: Tipografia de Moreira e Garcez, p. 117. 268 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 próprias “limitações aplicáveis a esse mesmo comportamento”, determinando suas próprias ações.393 Concordamos com hobsbawm quando este nega a afirmação que as nações são “tão antigas quanto a história”.394 A concepção moderna de nação, concebida como uma associação voluntária de indivíduos (como afirma o ideário político da Revolução Francesa) foi se associando as concepções políticas tradicionais nas Américas portuguesas e espanholas no século XIX. Assim, superpostas as imagens clássicas do universo mental do Antigo Regime foram aparecendo outras representações políticas que traziam aos habitantes, principalmente suas elites políticas e intelectuais, uma concepção de nação, marcada por características da modernidade política, que acabou por se afirmar durante o século XIX.395 Por final, a nação brasileira imaginada, pretendida e refletida no Reverbero Constitucional Fluminense elucida mais uma imagem de nação, que junto as diversas outras encontradas durante desde a independência, formam a galeria das imagens nacionais presentes ao longo do tempo. Sejam essas imagens caracterizadas pela visão negativa, pela ausência ou pela visão paternalista do povo396, constituíram o quadro do processo da invenção da nação, que precisa ser legitimada diante esse mesmo povo cotidianamente, pois as nações estão sempre em processos de construções. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 393 SKINER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 12. 394 HOBSBAWM, Eric. Op. Cit. p. 13. 395 Para uma melhor análise sobre algumas características das concepções clássicas e modernas de nação, Ver: GUERRA, François-Xavier. “El ocaso de la Monarquía Hispánica: Revolución y Desintegración”. In: ANNINO, Antonio, GUERRA, François-Xavier (Coord.). Op. Cit. , pp. 122-127. 396 CARVALHO, José Murilo de. “Brasil. Naciones Imaginadas”. In: ANNINO, Antonio, GUERRA, François-Xavier (Coord.). Op. cit. , p. 501. 269 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexão sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BASILE, Marcello Otávio N. de C. “O Império Brasileiro: Panorama Político” In: LINHARES, Maria Yedda (org.).. História Geral do Brasil. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000. CARVALHO, José Murilo de. “Brasil. Naciones Imaginadas”. In: ANNINO, Antonio, GUERRA, François-Xavier (Coord.). Inventando la Nación. Iberoamérica. Siglo XIX. México: FCE, 2003. CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y Estado en Iberoamérica. Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 2004 GUERRA, François-Xavier. “El ocaso de la Monarquía Hispánica: Revolución y Desintegración”. In: ANNINO, Antonio, GUERRA, François-Xavier (Coord.). Inventando la Nación. Iberoamérica. Siglo XIX. México: FCE, 2003. HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990 KANTOROWICZ, Ernest H. “A realeza centrada no governo: ‘Corpus Mysticum’”. In: Os Dois Corpos do Rei. São Paulo: Cia das Letras, 1998. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionalistas: a cultura política da independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan: FAPERJ, 2003. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “Liberalismo Político no Brasil: idéias, representações e práticas (1820-1823)”. In: GUMARÃES, Lucia Maria Paschoal; PRADO, Maria Emilia. (Orgs.) O liberalismo no Brasil Imperial: Origens, conceitos e práticas. Rio de Janeiro: Revan: UERJ, 2001, pp. 73-101. QUIJADA, Mónica. “Qué nación? Dinâmicas y Dicotomías de la nación en el imaginario Hispanoamericano”. In: ANNINO, Antonio, GUERRA, François-Xavier (Coord.). Inventando la Nación. Iberoamérica. Siglo XIX. México: FCE, 2003. RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ, 2002. 270 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 SCHULZE, Hagen. Estado e Nação na História da Europa. Lisboa: Editora Presença,1997. SKINER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 271 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Memória da Mulher na Luta Armada Pelos olhares aí afora... J u l i a B i a n c h i R e i s I n s u e l a 397 RESUMO: O artigo apresenta a pesquisa sobre a memória das mulheres recuperar na as organizações luta armada visões da entre acerca esquerda os das armada, anos 1968 militantes, nos órgãos e 1972. no de P rocuro interior das repressão e informação do regime e na grande imprensa. A memória coletiva da luta armada construiu -se em função da lembrança da visão dos órgão s de repressão e de informação e do esquecimento daquela presente na grande imprensa. A pesquisa mostra como a percepção depreciativa da mulher participante na luta armada, que estava nos órgãos de repressão, era muito próxima à da grande imprensa e à da p rópria sociedade. PALAVRAS-CHAVE: gênero, memória, ditadura civil -militar. A B S T R A C T : The communication presents the research on the memory of the women in the armed fight seted between the years of 1968 and 1972. I look for to recoup the 397 Mestranda em História Social pela U niversidade Federal Fluminense 272 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 visions concerning the militant, in the interior of the left armed organizations, in the organs of repression and information of the regimen and in the great press. The collective memory of the fight armed was constructed in function of the reminder of the vision of the organs of repression and information and of the forgotten of that present in the great press. The research shows as the contemptuous perception of the participant woman in the armed fight, that was in the repression organs, was very next to the one of the great press and to the one of the society itself. K E Y W O R D S : g e n d e r , m e m o r y, c i v i l i a n - m i l i t a r y d i c t a t o r s h i p A história é feita por homens e mulheres que a cada momento a inventam e reinventam, no cotidiano de suas vivências. No presente a r t i g o 398 o p t e i p o r t r a b a l h a r c o m a s m u l h e r e s . E s t a p e s q u i s a t e m como problemática a análise da trajetória política de uma geração de mulheres que se envolveu com o projeto de luta armada das esquerdas revolucionárias, no período de 1968 a 1972, no Brasil. O estudo paralelo das percepções das mulheres na luta armada em três níveis – nas organizações, nos órgãos de repressão e informação e na grande imprensa – sugere muitas aproximações (nem sempre perceptíveis de imediato), para além das evidentes diferenças, que dizem respeit o às representações das mulheres na sociedade da época e suas mudanças e continuidades nas décadas seguintes. O objetivo é identificar o universo comum entre esses níveis diferenciados. Mesmo entre as organizações e a grande imprensa, por 398Este artigo refere-se a uma primeira parte de minha pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, em fase inicial. 273 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 exemplo, ou entre as organizações e os órgãos de repressão e os de informação, notamos, em meio a evidentes e importantes diferenças, pontos de interseção, que dizem respeito a uma cultura na qual a sociedade brasileira está imersa na época ou da qual é herdeira. A busca pelas visões das militantes possibilitou a percepção de pontos de interseção entre as visões da repressão, da imprensa – principalmente pela linguagem utilizada e suas conformam um universo de valores – e, por referências, que conseguinte, da sociedade. Entretanto, a memória coletiva construída nas décadas posteriores, baseia-se, sobretudo, na imagem presente nos órgãos de repressão. A década de 1960 ficou conhecida por sua forte excitação no que permeia o ambiente cultural e político em todo o mundo. Foi um momento em que surgiram questionamentos correspondentes a tudo estabelecido, entre eles: a estrutura da sociedade, inclusive da família, o capitalismo e o comportamento social, incluindo -se ai os relacionamentos amorosos entre os indivíduos. É um períod o que nos permite observar em que medida essa efervecência política e cultural engendrou uma conscientização e uma mobilização de diversas camadas da sociedade, que procuraram intervir na realidade do país buscando a transformação do cenário social. As transformações sociais, culturais e políticas ocorridas na sociedade brasileira, especialmente a partir dos anos 60, criaram as condições mais gerais para a efetiva constituição da mulher como 274 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 sujeito político. A partir da via política, estas mulheres se via m como agentes capazes de efetuar mudanças. É nessa efervescência que o sexo feminino sai do âmbito privado para buscar o seu lugar mais expressivamente no espaço público. Ocorria uma movimentação nestes campos, impelindo cada vez mais o sexo feminino para a luta por modificações e sua permanência no campo público, oscilando entre o ambiente conservador e moralista da sociedade e a atmosfera contestadora e radical dos anos 60. Diante de uma leitura muito própria, considera-se que esse período foi de intensa agitação cultural e política em todo o mundo e no qual a trajetória de uma geração de mulheres, as quais subvertem os seus papéis tradicionais ao militarem em organizações de esquerda armada, começa. É importante frisar que ao mesmo tempo em que os anos 6 0 são marcados por rupturas – devido ao fato das mulheres entrarem de forma mais significativa na vida pública – existe uma continuidade, que pode ser evidenciada, por exemplo, ainda na existência de um machismo, inclusive compreensão dos nas próprias organizações. A part ir da caminhos percorridos por estas mulheres – que ultrapassam fronteiras – podemos dizer que elas se comportariam como vanguarda no avançar em direção ao púbico. Um paradoxo existente no mesmo espaço, e que influenciou na construção da “mulher militante”. 275 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A t r a v é s , e n t ã o , d o m a t e r i a l p e s q u i s a d o 399, p r o c u r o i d e n t i f i c a r os olhares existentes das militantes da esquerda armada. Este trabalho está dividido em três partes: a primeira, como a repressão via as mulheres militantes; a segunda, o olhar da imprensa; e a terceira, uma comparação entre os dois, notando se havia ou não pontos de interseção entre essas duas percepções. O primeiro enfoque diz respeito à percepção que os órgãos de repressão e informação possuíam.A característica inicial que a s colocou como alvo do regime repressor diz respeito a serem contrárias ao regime vigente e a revolução. Para tal proposta, utilizo os documentos encontrados no Fundo DOPS do APERJ. A primeira observação que posso fazer é que existem diversas fichas das me smas pessoas em pastas diferentes, e em setores diferentes. Ao mesmo tempo, nota -se o uso das mesmas palavras que serviam de certa forma para qualificá -las. No caso das mulheres, percebe-se o objetivo de depreciá -las e tratá-las como um sujeito unitário. Todas são iguais diante dos olhos da repressão. Para esta, só o fato de fazerem oposição ao regime já as c o l o c a v a n u m a c a t e g o r i a u n i f i c a d o r a e p e j o r a t i v a : a d e t e r r o r i s t a s . 400 399A pesquisa viabilizou-se pela existência de fontes primárias e secundárias relacionadas ao assunto abordado. Grande parte desse material encontra-se disponível por meio de coletâneas de documentos microfilmado, como jornais, armazenados na Biblioteca Nacional, e fichas arquivadas no Arquivo DOPS, estabelecido no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. O material recolhido condiz com o corte cronológico privilegiado: entre os anos de 1968 e de 1972, por representarem a entrada da mulher no mundo político engajado e por serem considerados os anos de maior radicalização da luta contra o regime ditatorial e da luta armada 400Ver : Colling, Ana Maria . A Resistência da mulher à ditadura militar no Brasil.Rio Grande do Sul : Rosas dos tempos , 1997 276 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A partir da análise do material catalogado repara -se que a repressão Contudo, constrói ao o primeiro sujeito olhar, político elas “mulher aparecem s u b v e r s i v a ” 401. não como mulheres desviantes e que romperam com os padrões tradicionais, mas sim como esposas, filhas e amantes de homens procurados. Tal fato corresponde à concepção de que as mulheres não são capazes de tomarem decisões políticas e que estariam na militância porque os h o m e n s a s c o n d u z i r a m , a s s u b v e r t e r a m . 402 Isso corresponde a uma visão prévia do conjunto dos diversos escritos. Ao aprofundar o estudo percebe -se que a mulher só ir á sair da postura de filha ou esposa, ao participar efetivamente de atividades consideradas subversivas. Entre elas está o trabalho de massa – visto como doutrinação – e/ou atividades correspondentes à luta armada, entendidas como ações terroristas. É quando construção da começam imagem a participar feminina surge: dessas a de ações mulher que outra terrorista. Ademais, deixam de serem filhas e esposas para se tornarem amantes. Quando a militante participava de ações terroristas sua condição de amante aparecia como fundamental. As fontes, então, acabam por estipular um vocabulário específico e elementos que em conjunto compõem a imagem dos órgãos de repressão e informação acerca das m i l i t a n t e s 403. A imagem cuja construção está baseada nos 401Ver: Ferreira, Elizabeth F. Xavier. 1996. Mulheres, Militância e Memória. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas Editora. 402Idem notas 5 e 6 403Para melhor compreensão da denominação “órgão de repressão” e “órgão de informação” , os quais são diferentes , ver : Fico Carlos. “Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da 277 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 preconceitos da sociedade e do regime repressor aparece claramente nas fichas – estabelecendo certo padrão – concebendo o olhar destes órgãos em relação às mulheres militantes. As informações passadas pelos órgãos de informação e repressão acabavam por configurar o olhar preconceituoso e moralista, o qual não lhes era exclusivo: estava muito presente na sociedade em geral. A linguagem utilizada para caracterização remetem –se a formas de depreciação, repletas de teor apelativo e conotação sexual. Vale salientar que a repressão r essalta a questão da promiscuidade entre elas, afirmando a existência de relacionamento com vários companheiros. Chamam atenção outras referências que são recorrentes nos documentos do DOPS, com o intuito dessa caracterização. Os vocábulos: “desquitada”, “comunista”, “terrorista”, “marginada” e “revolucionária” aparecem inúmeras vezes em diversas fichas. É importante frisar que o emprego pejorativo desses termos condiz com a visão preconceituosa que existia naqueles anos – anos 60 e 70 – e que implicava, então, em um sentido negativo, configurando ao final, uma visão depreciativa das militantes. É importante destacar que o uso dessas palavras não era exclusivo da repressão. Na verdade, incorporava os discursos e olhares vigentes da sociedade daquele período. repressão”, in Ferreira, Jorge e Delgado, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Vol. 4. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 278 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Os documentos encontrados no Fundo DOPS corroboram para a caracterização de uma imagem ignominiosa dessas mulheres. A militante é um “desvio” de mulher. Os argumentos supracitados expõem a construção feita pela repressão acerca das mulheres militantes. Sobressaía a medida de desmerecer a mulher, cujo desvio seria preponderante. Como mulheres desviantes, abandonam suas funções, lar, filhos e marido, para dedicar-se às lides terroristas – as quais não dizem respeito à sua suposta área de atuação (como mulh er) – aparecendo como amantes e amásias.Entretanto, essa é uma parte das visões existentes. A outra concerne ao olhar que a imprensa possuía sobre as mesmas. Para melhor sintetizar essa temática, procuro trabalhar com jornais da grande imprensa, que permi tiam o acesso à informação às mais diversas camadas da sociedade . Privilegiaram-se, especialmente, os periódicos O Globo e Folha de São Paulo. O estudo dessas publicações revelou tanto seus posicionamentos, como a interpretação que cada uma delas fazia d a realidade histórica abordada. Ao analisar as reportagens selecionadas percebemos uma determinada imagem das militantes de esquerda armada. Os jornais, assim como a repressão, eram uma expressão da sociedade, que não aceitava tais mulheres. Elas represent avam supostamente uma ameaça à família, instituição que não poderia ser dissolvida e à “moral e aos bons costumes”. Este discurso não é 279 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 isolado, a imprensa – tanto quanto a repressão – o reconhece e verbaliza. Neste sentido, podemos encontrar nas páginas d os jornais o mesmo estilo encontrados de no caracterização DOPS. A e vocabulário tentativa de dos desmerecer documentos a mulher é constante, e para isso utiliza -se de descrições cujo leitor assimilaria o teor negativo. Assim, o conjunto dos diversos esc ritos destes dois periódicos foi necessário para percebermos a difusão do discurso e dos ditames éticos e morais da sociedade e, logo, da repressão. O enquadramento das mulheres militantes como seres desviantes é presente a partir do momento em que identificam em suas reportagens essas mulheres como “terroristas”, “comunistas”, “amásias”, “amantes”, “subversivas” e “traidoras.” Nota -se o tom deslegitimador e um juízo de valor com intuito de alarmar e assustar a população. No descrever das notícias percebe -se o tom negativo imbuído nelas. Sobre a participação feminina vê -se que quase sempre nos jornais apareciam acompanhadas da presença de homens. Os periódicos, portanto, recolhem e adotam os saberes construídos pela sociedade e pela repressão, sendo um meio para difundir suas concepções. Na investigação do papel da mulher ao longo da ditadura civil militar – mais especificamente na luta armada –constata-se que os p e r i ó d i c o s 404 corroboram com a visão da repressão, a qual 404Vale ressaltar que os periódicos selecionados são identificados como de direita. O motivo de sua escolha se deve ao fato de serem considerados os de maior circulação e acesso à população, e por assim, como os 280 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 compartilha da mesma com a sociedade cons ervadora. Os jornais funcionam como via de transmissão e difusão desta visão, no intuito de legitimá-la, pois enquadram e utilizam as mesmas categorias dos órgãos repressivos e de informação. Como sabemos, as informações não são imparciais, contemplando um juízo de valor arraigado no âmbito social. A imagem fixada, portanto, nos jornais é a de mulheres erradas e perigosas. A interpretação, portanto, dos documentos encontrados no Fundo DOPS e nas reportagens dos jornais de grande imprensa, estimulada por uma comparação entre os dois é entendida como uma corroboração daqueles por estas, pois utilizariam das mesmas categorias para tratar das mulheres na luta armada. O olhar seria o mesmo. O preconceito que paira sobre a sociedade, aparecerá nas folhas dos arquivos da repressão – que também é constituída por parte dos indivíduos dessa sociedade – e se afirma nas páginas jornalísticas. O tratamento público (periódicos) e privado (fichas confidenciais) seria o de desmoralização. Na verdade, então, não existiriam vários olhares, mas um hegemônico. Entretanto, ao voltar se para as memórias (re)construídas nas décadas posteriores nota -se uma intensa discussão acerca dos órgãos de repressão e informação, apagando desta memória o senso comum existente entre aqueles e a grande imprensa, principalmente em relação ao vocabulário, a maiores jornais em suas regiões. Não se optou por eles por tenderem mais para a direita. Todavia, frisa-se o fato de os dois maiores periódicos das duas maiores cidades do país tenderem para a direita. A afirmação de que possuem o mesmo olhar da ditadura é baseada, então, nessa alegação e por encontrar termos empregados pelo regime vigente, identificando-os, assim, como colaboradores da difusão da visão da repressão, esta sendo de direita. 281 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 linguagem e, na difusão de sua opinião, não atentando que esse olhar também seria encontrado tanto na repressão como na sociedade. Esses dois universos eram conectados, a exemplo do vocabulário e referências utilizadas, pois as reportagens jornalísticas nunca utilizam uma linguagem estranha à sociedade, a qual não é vítima da absorção da divulgação realizada pelos jornais. Não existe um marco zero, e sim uma via de mão -dupla. Esquecendo-se desses pontos de interseção entre eles, logo, se silencia a afinidade entre esses órgãos e a sociedade, desresponsabilizando esta de seus encargos na construção do regime. A memória reconstruída baseia-se, sobretudo, nos órgãos de repressão e informação, exclusivamente levando dessa a visão crer que depreciativa a e repressão negativa dispunha acerca das mulheres militantes. Ao analisarmos, portanto, a inserção da mulher na luta armada, nota-se para além dos pontos de interseção entre esses níveis diferenciados, e assim uma afinidade presente entre eles, a existência de um consenso que está sendo formado em torno da ditadura civil militar, o que nos remete a uma questão maior a qual diz respeito à memória desse tempo: sua reconstrução. Ao descartarem as referências sobre as militantes da esquerda armada na grande imprensa – entendida como expressão da sociedade – essa memória acaba por não perceber as presenças da sociedade na construção do regime. O motivo pelo qual isso acontece se dá a partir da concepção de que o regime civil-militar entrou para a história 282 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 como um dos períodos de maior autoritarismo e violência praticados pelo Estado contra a sociedade, e como tal, não se quer estar relacionado com algo tão maculado. Assim, não se aceita a participação da sociedade no golpe de 1964 e na sua legitimação, inclusive pela grande imprensa – a qual prefere enfatizar o seu e n f r e n t a m e n t o c o m a c e n s u r a 405 e d e i x a r d e l a d o a sua colaboração com a repressão - sugerindo uma mudança de postura por parte dos grupos que aderiram à ditadura civil-militar e, da mesma forma, refletindo essa percepção na memória social do período e c o n t r i b u i n d o , e n t ã o , p a r a u m a “ s a c r a l i z a ç ã o d a m e m ó r i a ” 406. O u s e j a , como uma memória sacralizada, que idealiza mitos e heróis, não tem nenhuma função de co mpreensão. Por conseguinte, essa memória não favoreceria a História, a qual implica na busca pelo conhecimento. O conceito de memória permitirá o entendimento acerca das construções feitas sobre essa problemática, nos questionando do porquê recupera-se principalmente a memória coletiva em relação à resistência, e no caso específico do trabalho, do porquê as mulheres militantes de organizações de esquerda armada enfatizam tanto sua militância e resistência, enquanto as manifestações de apoio e consentimento, ficam renegadas ao silêncio. Essa questão recai na capacidade que a memória tem de se construir e reconstruir com o passar do tempo, principalmente devido às intenções para tal, estando 405Para melhor esclarecimento ver: Batista de Abreu, João. As Manobras da Informação: análise da cobertura jornalística da luta armada no Brasil: (1965-1979). Niterói: EdUFF; Rio de Janeiro : Mauad , 2000 ; Kushinir, Beatriz. Cães de Guarda: jornalista e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo, Boitempo Editorial, 2004 406No mesmo sentido que a trabalhada por Tzevtan Todorov : Todorov , Tzevtan. Los abusos de la memória.Paris : Arléa , 1995 . 283 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 geralmente ligadas com a política. Vale destacar o caráter anacrônico da memória, o qual influi diretamente nesta problemática de r e c o n s t r u ç õ e s . 407 A memória pode ser usada como um instrumento teórico - metodológico para a compreensão desse questionamento e é de importante uso para o trabalho historiográfico. Cabe destacar que a memória construída sobre o regime civil -militar foi elaborada durante o processo de abertura política, focando -se em torno da resistência. Como o presente naquele momento era o da volta ao processo democrático, a memória coletiva, ao olhar para o passad o prevaleceuse no sentido de uma interpretação de acordo com a qual a sociedade desde sempre tivesse resistido ao regime e não teria ocorrido manifestações de respaldo – está ai um claro exemplo de como as questões do presente, principalmente as políticas , influenciariam no olhar para o passado e a formação de sua memória. Debruçando-se , então, sobre esta memória construída a posteriori será possível refletir sobre a postura de esquecimentos, lembranças e silêncios em relação à conformação do regime civi lmilitar, principalmente pela sociedade. Fontes e referências bibliográficas 407A perspectiva adotada é a mesma de Beatriz Sarlo. Para melhor esclarecimento ver: Sarlo ,Beatriz. Tiempo Passado: cultura de la memoria y giro subjetivo. Buenos Aires: Editores Argentina , 2005 . 284 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Fontes: Periódicos e revistas: - Jornal Folha de São Paulo - Jornal O Globo Fundos documentais: - Departamento de Ordem Política e Social (DOPS): - Arquivo da Polícia Política; setor: informações; pasta 163, página 751. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro - Arquivo da Polícia Política; setor informações; Pasta 163; página 751. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro Bibliografia: AARÃO, REIS Filho, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000. _________ . A Revolução faltou ao encontro. São Paulo: Brasiliense, 1990. _________ & Sá, Jair Ferreira (org.). Imagem da Revolução. Documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda nos anos 1961-1971.Rio de Janeiro. Marco Zero, 285 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 1985. BATISTA DE ABREU, João. As Manobras da Informação: análise da cobertura jornalística da luta armada no Brasil: (1965-1979). Niterói: EdUFF; Rio de Janeiro : Mauad , 2000 BASTOS, Nathalia de Souza . Perdão , meu capitão, eu sou gente para mais além do meu sexo: A militância feminina em organizações a esquerda armada (Brasil, anos 1960-1970) In: Gênero: Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero – NUTEG, v.8, n. 2 (1 .sem. 2000) – Niterói: EdUFF, 2008. BERSTEIN, Serge. “A Cultura Política”. RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (orgs). Por uma História Cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. COLLING, Ana Maria. A Resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio Grande do Sul: Rosas dos tempos, 1997. FERREIRA, Elizabeth F. Xavier. 1996. Mulheres, Militância e Memória. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas Editora. FICO, Carlos. “Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão”, in Ferreira, Jorge e Delgado, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Vol. 4. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 KUSHINIR, Beatriz. Cães de Guarda: jornalista e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo, Boitempo Editorial, 2004. POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, vol. 2, nº 3. 1989. _______. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos, vol. 5, nº 10, 1992. PORTELLI , Alessandro. O massacre de Civitella Val Di Chiana ( toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum. In: Ferreira, Marieta de Moraes; Amado, Janaína (Org.) . Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV , 1996 RIDENTI, Marcelo Siqueira. O Fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Unesp, 1993. 286 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 ROLLEMBERG, Denise. “Esquerdas revolucionárias e luta armada”, in Ferreira, Jorge e Delgado, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. Vol. 4. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. SARLO, Beatriz. Tiempo Passado: cultura de la memoria y giro subjetivo. Buenos Aires: Editores Argentina , 2005 . SCOTT , Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. In: Gender and the Politics of History. New York ; Columbia University press, 1989. Tradução: Cristine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila. SOS Corpo. 3ª edição. Recife, abril de 1996 . _________ ; PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da História das Mulheres e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História, vol. 27, p. 281-300, 2007. TODOROV, Tzevtan. Los abusos de la memória.Paris : Arléa , 1995 . 287 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A Contribuição do Chorinho para a Inserção do Negro na Sociedade Brasileira. Leonardo Santana da Silva408 RESUMO: Esta pesquisa tem como originalidade o próprio tema sugerido, visto que existem dois vieses específicos que consequentemente abordará dois temas distintos. Neste caso, um está relacionado à questão da contribuição social do negro afro-brasileiro em nossa sociedade, o outro está relacionado ao ponto de vista cultural através da criação de um novo estilo musical num primeiro momento. Nossa proposta é justamente a junção dos dois temas. Deste modo, a investigação apresentada no sentido teórico e metodológico dentro das especificidades, propõe evidenciar a inserção e consequentemente a trajetória social deste negro através desta prática cultural. A nossa investigação, propõe evidenciar a proeminência socioeconômica desses músicos afro-descedentes no decurso deste novo gênero musical, sendo visto como uma forma para a inserção do negro na sociedade brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Inserção Social; Gênero Musical; Chorões. ABSTRACT: This research has the original theme suggested itself, since there are two specific biases therefore address two distinct themes. In this case, one is related to the issue of social contribution of the black african american in our society, the other is related to the cultural point of view by creating a new musical style at first. Thus, the research presented in the theoretical sense and in the specific methodology, evidence suggests the insertion 408 Mestrando em História/USS. Professor do Conservatório Brasileiro de Música. Membro do conselho Editorial da Revista Caminhos da História do Programa de Mestrado da Universidade Severino Sombra. [email protected] 288 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 and consequently the social trajectory of black through this cultural practice. Our research proposes to highlight the prominence of these musicians socioeconomic african descendent in the course of this new genre, being seen as a way for the inclusion of blacks in Brazilian society. KEYWORDS: Social Inclusion; Musical Genre; Chorões. INTRODUÇÃO A pesquisa proposta tem por finalidade estudar a relação entre o “choro” – novo estilo musical construído por músicos negros das classes médias baixas – e sua inserção social, no período que compreende o final do séc. XIX e início do séc. XX. Este novo gênero musical, portanto, será um divisor de águas na história cultural de nossa sociedade. É necessário ressaltar que o período no qual surge o choro, a sociedade era escravista (1870), embora se tenha uma política voltada para a questão da abolição. Nesta trajetória muitas medidas foram tomadas para a libertação do negro, sejam elas através de leis emacipacionistas gradualistas (Lei Eusébio de Queiroz, Lei do Ventre Livre e Lei dos Sexagenários), alforrias concedidas, pecúlio legal, formas de resistência de um modo geral, enfim as várias maneiras de se ver livre deste sistema opressor, o que deve ser colocado é que só através da abolição da escravidão é que esta liberdade será legitimada. Então fica claro que se manter como parte integrante desta sociedade, era uma tarefa árdua para estes negros, considerando que para as elites, o negro era visto como propriedade. Portanto mesmo com República instaurada houve uma resistência nas mentalidades das camadas superiores desta sociedade, no entanto o negro que a partir deste momento da história passa a ser livre, continuando a ser mal visto diante daqueles que ainda possuia aquela visão escravista enraigadas em suas mentes. 289 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Utilizaremos as categorias e conceitos dos seguintes pesquisadores e historiadores: André Diniz, José D`Assunção Barros, Ary Vasconcelos e José Ramos Tinhorão. No livro intitulado de Joaquim Callado o pai do choro, seu autor o pesquisador André Diniz, discorre sobre a trajetória inicial deste novo estilo musical, passando para origem do seu gênero propriamente dito, consolidado como uma nova identidade musical. O autor cita também, pelo menos quatro versões sobre a origem da palavra choro. São elas: a definição de Baptista Siqueira (maestro); a do folclorista Luís da Câmara Cascudo; a do pesquisador Ary Vasconcelos e a do pesquisador José Ramos Tinhorão. Em relação a estas definições, faremos sua exposição no itém destinado ao quadro teórico. A obra mostra a miscigenação dos gêneros musicais tanto europeus, quanto o africano, iniciando então a sua nacionalização. Isso significa a transformação destes estilos para um outro propriamente popular brasileiro. O autor André Diniz demonstra as diversas gerações destes chorões, além de narrar o cenário do ambiente social, econômico e político do Rio de Janeiro neste período, evidenciando que os chorões, vinham das camadas médias da sociedade, ou seja, trabalhadores dos correios, telégrafos, bandas militares, pequenos cargos públicos, entre outros. 409 Em se tratando dos conceitos formulados pelo historiador José D`Assunção, nos apropriaremos de duas obras de sua autoria, cujo o conteúdo se enquadra perfeitamente ao tema proposto desta pesquisa. O primeiro é o livro denominado de: O Brasil e a sua Música. Primeira parte: Raízes do Brasil Musical. O autor relata num primeiro momento a história da chegada dos negros africanos no Brasil, em virtude da colonização e as várias fases da escravidão até a o período Imperial. O que podemos compreender neste momento 409 DINIZ, André. Joaquim Callado o pai do choro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 31-32. 290 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 inicial da obra, é a presença de uma representação e descrição conjuntural da condição socio-econômica deste período – séc. XVI – XIX. 410 O historiador José D`Assunção, analisa a questão relacionada à construção da identidade afro-brasileira, devido ao processo de miscigenação das raças, resultando assim, numa formação de um novo padrão cultural. Esta mistura racial demonstra ser um caráter positivo principalmente no âmbito cultural. Ainda imerso a esta obra, José D`Assunção fala claramente da importância deste encontro inter-étnico, que possibilitou diferentes experiências musicais não só no Brasil como nas Américas de um modo geral. Um exemplo crucial disto é o blues, o jazz, o samba, o chorinho e a bossa-nova.411 Um outro ponto que merece muita atenção é a contribuição trazida pelas danças e ritmos de origem africanas e européias, que ao se misturarem, originaria numa nova forma musical na esfera popular, erudita e folclórica brasileira. Ex: maracatu, congada, jongo, lundu, polca maxixe, batuque, samba, afoxé, frevo, chorinho, etc. Vejamos agora algumas diretrizes estabelecidas por este mesmo autor, em sua segunda obra denominada de Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira nas seis primeiras décadas do século XX. Embora este seu livro esteja mais especificamente direcionado para a construção do caráter nacional e moderno dentro da música erudita brasileira, o autor desenvolve um capítulo interessante, onde relaciona a influência do “choro” na música erudita brasileira. O historiador José D`Assunção esclarece ainda a questão do que vem a ser o “choro”. Assim sendo, ele fala sobre os elementos que contrói este gênero musical, evidenciando a interação dos rudimentos folclóricos rurais e regionais do Brasil com a música estrangeira. Afirma que a palavra “choro” surgiu para designar um estilo de grupo 410 BARROS, José D`Assunção. O Brasil e a sua Música. Primeira parte: Raízes do Brasil Musical. Rio de Janeiro: 2002, p. 49. 411 Idem, p. 52-53. 291 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 formado por músicos populares da época. O autor ainda descreve sobre a primeira formação musical original, ou seja, a estrutura instrumental inicial (flauta, violão e cavaquinho) e a função de cada instrumento. Menciona também a inclusão de outros instrumentos na sua composição no decorrer dos anos. Uma outra idéia que nos chama a atenção é quando José D`Assunção especifica a passagem do termo “choro” (nome atribuído primeiramente por causa da formação musical instrumental), para a consolidação do termo, passando a converter-se em um novo gênero musical. Esta passagem ocorre quando estes músicos passam a adotar uma peculiaridade em sua execução musical, ou seja, uma execução mais ligeira adquirindo assim uma identidade própria.412 A visão que iremos trabalhar agora é de um outro intelectual fundamental nesta discurssão: Ary Vasconcelos. Dentre algumas obras de referência em relação ao tema a ser investigado, utilizaremos seu livro chamado Carinhoso etc. – História e Inventário do Choro, com o propósito de elucidar um pouco mais a nossa apresentação. No seu livro o autor aponta em que contexto nasce o “choro”: 1870 – final da Guerra do Paraguai. Ressalta que o choro não é propriamente um gênero musical no seu início, mas a designação de um conjunto instrumental que logo se transformou num jeito brasileiro de se executar a música de gênero dançante vindo da Europa. O livro segue com a divisão das gerações de chorões e a importância destes chorões em sua respectiva época, ressaltando cada momento das diversas fases do “chorinho”. Uma observação importante que deve ser destacada é o período da 3ª geraçãodos chorões (19191930), onde surge o maior nome do choro de todos os tempos: Pixinguinha. É neste momento que o choro, segundo Ary Vasconcelos, irá chegar ao seu ápice. Aponta que em 1919 será formado os Oito Batutas, o mais importante grupo de choro existente. Com a 412 BARROS, José D`Assunção. Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira nas seis primeiras décadas do século XX, vol. II. Rio de Janeiro: 2004, p. 257 a 259. 292 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 formação deste conjunto, temos algumas mudanças significativas na composição instrumental, como po exemplo, o ingresso da percussão no choro. Uma outra mudança é no campo social, pois na maioria das vezes o choro era executado apenas em festas nos subúrbios cariocas, passando a ser executado em festas da alta sociedade para figuras importantes destas classes elitizadas, demonstrando uma convivência mais direta entre estas classes. O autor nos dá exemplo da ocasião em que os reis da Bélgica estiveram no Brasil, e foram executados “chorinhos” para essa realeza. Um outro exemplo foi o financiamento de uma turnê pela Europa para os Oito Batutas, sendo essa de suma importância, devido à divulgação de nossa cultura fora de nosso território nacional.413 Trabalhemos então neste momento os ensinamentos formados por José Ramos Tinhorão. Na obra, História da Música Popular Brasileira, fala do surgimento da música popular brasileira através de barbeiros. Afirma que devido às habilidades múltiplas dos barbeiros e a sua condição privilegiada, por desenvolver uma atividade liberal, tinham tempo para o desenvolvimento e aprendizagem de outras funções; dentro delas, a mais procurada, seria a música. Destaca a presença de uma mistura de músicas, danças, batuques, percussão e de tambores negros, que surgiram na Bahia e no Rio de Janeiro, na metade do séc. XVIII, demonstrando ser o embrião para o nascimento do choro. O autor relata a condição sociocultural desses instrumentistas negros (barbeiros), destinados a um novo “serviço urbano”: “a música”. Deste modo, estes músicos passaram a ser as principais figuras direcionadas a diversão em festas tanto na esfera pública quanto na esfera privada. É neste contexto que o choro vai surgir, através da transformação da música de barbeiros. Tinhorão indica a condição socio-econômica destes músicos, destacando suas camadas e áreas de trabalho: funcionalismo público, funcionários dos 413 Vasconcelos, Ary. Carinhoso etc. – História e Inventário do Choro. Gráfica editora do livro Ltda. 1984, p. 25. 293 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 correios, repartições civis e militares, telégrafos, casa da moeda, estrada e ferro Central do Brasil e entre outras. 414 CHORO E CHORÕES – UMA BREVE HISTÓRIA Faremos agora um apanhado sucinto do que é o choro em se tratando do seu conceito, pois a origem da palavra choro em si possui muitos sentidos, por esta razão, vão existir diferentes concepções designadas para justificar e legitimar o nome dado a este novo estilo musical, que ao passar do tempo, tornou-se um novo gênero na música popular brasileira. O choro vai surgir com a evolução da chamada música de barbeiros (estilo de música vindo das camadas urbanas, onde se misturavam músicas, danças e batuques a base de instrumentos de percussão negra, com os estilos brancos e mestiços), cedendo o lugar para a criação de uma nova maneira de se executar a música que aqui havia: O espírito de confraternização desses músicos se revela através do “choro”, música que surgiu a partir da fusão do lundu, ritmo de sotaque africano à base de percussão, com gêneros europeus. Suas interpretações musicais, ao sabor da cultura afro-carioca, eram o tempero para as audições nos “arranca-rabos” e cortiços das chamadas populares, nos bailes da classe média – batizados, aniversários, casamentos – ou mesmo nos salões da elite da corte de D. Pedro II.415 Desta forma, temos como elementos básicos para a sua caracterização os seguintes pontos: em primeiro lugar, é a sua formação instrumental original, que consistia de três instrumentos básicos; flauta, violão e cavaquinho: 414 Tinhorão, José Ramos. História da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34: 1998 p. 155 a 157. DINIZ, André. Almanaque do choro. A história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 14. 415 294 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Nos seus primórdios mesmo, particularmente na cidade do Rio de Janeiro que é o seu berço, a palavra Choro surgiu para designar um tipo de grupo formado por músicos populares. A formação de raiz era o chamado “terno”, que consistia de uma flauta, de um violão (ou dois) e um cavaquinho.416 A segunda característica fundamental é a composição dos diversos gêneros estrangeiros, sobretudo europeus, acoplado a ritmos africanos. A terceira característica, e, por conseguinte a principal, seria a questão de transformar todos esses elementos em um jeito brasileiro de se executar a música: As interpretações diferenciadas dos gêneros estrangeiros da época – como a polca, valsa, o xótis, a quadrilha – fizeram nascer um jeito “brasileiro” de tocar. O choro do século XIX surgiu como uma maneira de frasear, ou seja, um estilo de executar os gêneros europeus. A influência européia, portanto era clara, mas não foi à única. O lundu era outro rio que iria desembocar no novo ritmo. Principal ritmo de origem africana a aportar no Brasil, o lundu, música à base de percussão, palmas e refrões, era cultivado pelos negros desde os tempos de trabalho escravo nas lavouras de açúcar da Colônia.417 O que queremos dizer é que boa parte da produção musical que se tinha no Brasil neste período, era vinda da Europa, porém, não podemos deixar de mencionar a existência de uma música proveniente das senzalas, assim como nas aldeias indígenas. Então, foi através deste repertório musical que os músicos brasileiros passam a executar tais obras, com seus próprios estilos, ou seja, dizendo numa linguagem mais popular, seria um jeito de tocar mais abrasileirado. Logo com o passar do tempo, essa forma de executar as músicas estrangeiras, começam a ceder lugar para o repertório criado através das composições 416 BARROS, José D`Assunção. Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira nas seis primeiras décadas do século XX, vol. II. Rio de Janeiro: 2004, p. 257. 417 DINIZ, André. Almanaque do choro. A história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 17. 295 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 próprias que os chorões haviam realizados. Portanto, iniciaria uma nova etapa da música, onde neste momento, passaria a existir, não só uma maneira de tocar, e sim um gênero musical brasileiro. Em se tratado dos chorões, podemos destacar alguns nomes importantes, que compreende o período da fase inicial do “choro”. Dentro desse contexto, temos Joaquim Callado (flautista e compositor) considerado pioneiro e pai dos “chorões”, Virgílio Pinto (flautista e compositor), Saturnino (flautista), Juca Vale-violão (violonista), Miguel Rangel (flautista), Luizinho (flautista), Viriato Figueira (flautista e saxofonista) entre outros. André Diniz, em “almanaque do choro”, assim se refere: Mestiço simpático, exímio flautista, mulherengo, e muito popular na cidade do Rio de Janeiro, Joaquim Callado era filho da primeira geração do choro. Ao seu lado estavam Viriato Figueira, também flautista e saxofonista, Virgílio Pinto, compositor e instrumentista, e o flautista Saturnino, entre tantos outros músicos que ajudaram na criação do choro. Geralmente o único que sabia ler a partitura, o flautista tinha papel importantíssimo nos grupos de choro, pois incentivava o gosto pelo choro aguçando as qualidades musicais dos acompanhadores de ouvido.418 Podemos citar também, Alexandre Gonçalves Pinto em sua obra “o Chôro”: “Os acompanhamentos eram violão, cavaquinho, oficlide, bombardão, instrumentos estes que naquela época faziam pulsar os corações dos chorões, quando eram manejados pelos batutas da velha guarda, como sejam: Silveira, Viriato, Luizinho, etc.” 419 BIBLIOGRAFIA. 418 DINIZ, André. Almanaque do choro. A história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 15. 419 PINTO, Alexandre Gonçalves. O Chôro. Reminiscências dos chorões antigos. Rio de Janeiro, p. 12. 296 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 AZEVEDO, Fernando. A cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura brasileira. Rio de Janeiro, 1943. BARROS, José D`Assunção. O Brasil e a sua música. Primeira parte: raízes do Brasil Musical. CBM – CEU: 2002 _______________________. Nacionalismo e Modernismo. A música Erudita Brasileira nas seis primeiras décadas do século XX. VL II. CBM – CEU: 2004 CABRAL, Sérgio. Pixinguinha. Vida e obra. Lumiar Editora, 1997 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores da Belle Époque no Rio de Janeiro. São Paulo: Brasiliense, 1986. DINIZ, André. Joaquim Callado o pai do choro. Jorge Zahar Editor, 2008. ___________ . Almanaque do choro. 2ª ed. Jorge Zahar Editor, 2003. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 2 vols. 2ª edição. São Paulo: Dominius/EDUSP, 1965. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e idenidade nacional. São Paulo, 1985. PINTO, Alexandre Gonçalves. O choro: reminiscências dos chorões antigos. Rio de Janeiro, Typ. Glória, fac-símile, 1936. SILVA, Marilia Trindade Barboza da e OLIVEIRA FILHO, Arthur Loureiro de. Filho de ogum bexiguento. Edição funarte. Rio de Janeiro, 1979. SIQUEIRA, José Jorge. Negro e cultura no Brasil. Pequena enciclopédia da cultura brasileira. Rio de Janeiro: Unibrade/UNESCO, 1987. SQUEFF, Ênio e WISNIK, José Miguel. Música. O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982. 297 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. Editora 34, 1998. VASCONCELOS, Ary. Carinhoso etc. A história e inventário do choro. Gráfica Editora do Livro, 1984. ___________________. Raízes da música popular brasileira. RJ: Rio Fundo Editora, 1991. VERZONI, Marcelo Oliveira. Os primórdios do choro no Rio de Janeiro. Tese de doutorado. Universidade do Rio de Janeiro, nov 2000, mimeo. 298 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Geraldo Sem-Pavor e Reconquista portuguesa: entre guerras pela memória e histórias conectadas. Luiz César de Sá Júnior RESUMO: este artigo aspira a traçar algumas considerações a respeito da memória constituída em Portugal de um dos heróis da chamada “Reconquista” contra os muçulmanos, sobretudo a partir de crônicas produzidas por estes. Trata-se de Geraldo Sem Pavor, figura que, procurar-se-á sustentar, em muito se assemelhou ao famoso El Cid Campeador, de modo que suas histórias teriam estado, de algum modo, conectadas. PALAVRAS-CHAVE: Reconquista portuguesa; Histórias Conectadas; crônicas muçulmanas medievais. ABSTRACT: this article intends to understand the memory created in medieval Portugal about one of the so-called Reconquest heroes against the Muslims, especially from documents produced by them. The author also tries to show how close this captain “Geraldo Sem Pavor” was to another important Iberic hero, El Cid Campeador, arguing that their histories were somehow connected. KEY-WORDS: Portuguese Reconquest; Connected Histories; Muslim medieval chronicles. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Graduando do oitavo período do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Bolsista de mobilidade acadêmica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) no primeiro semestre do ano 2008-2009. 299 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Pretendo desenvolver, no presente texto, considerações iniciais – e um tanto conjecturais - acerca de documentos de proveniência muçulmana concernentes a episódios do processo de Reconquista e à posterior heroicização de alguns de seus personagens por parte dos cristãos. Gostaria, sobretudo, de demarcar indícios que permitam-nos, hoje, perseguir os caminhos de um dos expoentes de tais movimentos no reino de Portugal: Geraldo Geraldes, aquele cujo nome que nos legou a tradição é Giraldo Sem Pavor. As fontes escolhidas provêm da coletânea do professor António Borges Coelho, em Portugal na Espanha Árabe (2 vols.)420. Igualmente, é objetivo do artigo procurar surpreender a longevidade e os conflitos em torno da memória constituída à volta dos guerreiros da Reconquista. Em geral considerados bastiões da cristandade ibérica, seus salvadores, acabam por não parecer tão virtuosos à luz da trama que se pode deles reconstituir a partir da leitura e cruzamento das fontes. Portanto, também se coloca a questão de como as experiências medievais sobreviveram, em constante mutação, durante séculos, tendo-lhes sido atribuídos variados suportes - como se sabe, a figura mais proeminente desse período, El Cid, ganhou as telas do cinema e dos quadrinhos, para ficar em exemplos gerais, inúmeras vezes. Tentar-se-á demonstrar que, partindo de textos eruditos recuperados pela corte de D. Dinis e pelos renascentistas, além de monumentos vários, o legado em debate alcançou uma posição de destaque no âmbito do conhecimento enciclopédico ocidental. As tramas intrincadas nas quais estiveram inseridos os ditos “heróis ibéricos” parecem ter se fincado solidamente nesse imaginário, persistindo em suas representações de forma vigorosa. Todavia, cumpre deixar claro que: 420 COELHO, António Borges. Portugal na Espanha Árabe: História. v. 2. Lisboa: Caminho, 1989. maxime p. 304-310. 300 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 “Não é absolutamente o caso de identificar, nas figuras e cenas de heroísmo histórico, mentiras históricas e desmascará-las. Trata-se, ao inverso, de tomar o mito histórico, as visualizações da História, de seus agentes, contingências e produtos, como parte do imaginário social – a outra face indissociável da prática social.”421 Ademais, cumpre ressaltar outra lente teórica pela qual passa o estudo. A partir de recente trabalho do historiador Serge Grusinski422 – devedor confesso de uma sugestão conceitual de Sanjay Subrahmanyam 423 -, pretendo utilizar a idéia de “Connected Histories”, ou seja, a percepção de histórias que se desenvolvem sob o manto protetor de um mesmo patrimônio cultural - muito embora tenham sido construídas independentemente -, para demonstrar a interação peninsular da referida figura ambígua que se evoca entre os personagens de destaque nas disputas contra os muçulmanos. Com efeito, é de se insistir, para além de Geraldo e com uma relevância que o fez símbolo maior dos movimentos supracitados, na figura de El-Cid Campeador. Antes de antes de chegar aos referidos documentos, convém nuançar rapidamente o contexto do aparecimento de Geraldo Sem Pavor e sua complexa relação com D. Afonso Henriques, governante dos primeiros tempos daquele que viria a se consolidar como o reino de Portugal. Pouco se pode afirmar de suas origens. O aventureiro entra em cena por volta de 1165, quando D. Afonso Henriques, após seu estabelecimento em Coimbra, já havia atingido a linha do Tejo, por meio de sucessivas investidas militares (impõem-se no contexto as tomadas de Santarém e de Lisboa). Fato muito relevante, pois os grupos de 421 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Museus históricos: da celebração à consciência histórica. In: Como explorar um museu histórico. Museu Paulista (USP): 1992, p.10. 422 GRUSINSKI, Serge. Les mondes mêlés de la Monarchie catholique et autres «connected histories». Annales, Paris, v. 56, n. 01, 2001. p. 85-117. 423 SUBRAHMANYAM, Sanjay. Explorations in Connected History: from the Tagus to the Ganges. Nova Iorque: Oxford USA trade, 2005. 301 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 apoio do intempestivo Geraldo teriam sido arregimentados em Santarém, o que sugere um primeiro momento de aproximação entre ambos. Os ataques de Geraldo a diversos castelos e cidades explicar-se-iam pela delicada conjuntura fronteiriça, que exigia grandes cuidados e promovia vultosas oportunidades de ascensão e conquistas econômico-militares. Com Afonso Henriques estabelecido em Coimbra, a perda de posições localizadas ao sul da cidade poderia ter sido fatal no que era pertinente às suas pretensões. Portanto, as ações de Geraldo, se não foram decididas em comum acordo com o governante, contaram, ao menos, com sua plena anuência. Igualmente, convém lembrar a chegada de tropas almóadas procedentes do norte da África, responsáveis por colocar os reinos de Taifas em xeque, e a campanha de enfraquecimento de praças como a de Badajoz. Visto que tratava-se de um ponto estratégico – um baluarte “desde a época califal” -, o emir convoca forças externas, valendo-se do argumento da guerra santa. Também apresenta-se para a batalha Fernando II, rei de Leão424. As praças tomadas com movimentos rápidos e, ao mesmo tempo, contrários à prática militar dita honrada425, conferiram-lhe grande vantagem, para não mencionar a desorganização em que se encontrava o inimigo; nas palavras de Christophe Picard, “c’est avec une poignée d’hommes que Giraldo Sem Pavor s’empara des deux capitales de l’Alentejo, Évora en 1165, Beja, en 1172, signe de l’absense d’un véritable investissement militaire almohade dans la région.”426 Temos, pois, uma conjuntura de reorganização do espaço ibérico, em que não um ou dois, mas diversos grupos embatem-se simultaneamente, de modo a formar um espaço tempestuoso o suficiente para que dele se retirassem 424 “A intervenção do rei de Leão era compreensível. Em 1153, assinara em Sahagún um acordo com seu irmão Sancho III, no qual reservava para si a zona do Alentejo e do Algarve, com os territórios de Niebla, Montanchez e Mérida, enquanto Sancho III se propunha a conquistar as províncias que ficavam a oriente dessas cidades. Sendo assim, a posse de Badajoz pelos Portugueses impedia a expansão dos Leoneses para sul.” MATTOSO, José. História de Portugal: a Monarquia Feudal. v. 2. Lisboa: Editorial Estampa, s/d. p. 78 425 Veja-se, a esse respeito, o trabalho de DUBY, Georges. Uma batalha na Idade Média: Bouvines, 27 de Junho de 1214. Lisboa: Terramar, 2005. maxime p. 85-90. 426 PICARD, Christophe. Le Portugal Musulman – L’Occident et l’Al-Andalus sous domination islamique. Paris: Maisonneuve et Larose, 2000. p. 106. 302 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 elementos para a posterior elevação de seus personagens a posições principais, entre os virtuosos e os desgraçados. Onde estará Giraldo? GIRALDO SEM PAVOR ENTRE A VILANIA E O HEROÍSMO. Iniciemos com uma das crônicas muçulmanas, atribuída a Abd Al-Malik ben Sahib Asala. Relata-nos o autor: “O pérfido galego Afonso Henriques, senhor de Coimbra – o maldito de Deus! - conhecia bem a valentia do cão do Giraldo. O pensamento constante deste era tomar à traição as cidades e os castelos, só com a sua gente: ele tinha os muçulmanos da fronteira sob o terror (das suas armas).”427 Como se lê, podemos assumir a já citada possibilidade de Afonso Henriques agir consciente das intenções de Giraldo como um dado pertinente428. De modo análogo, temos respaldo documental que assegura que os ataques não dependiam das tropas regulares. A, seguir, o autor discorre acerca dos métodos de batalha do mercenário, tal como se segue: “Este cão (procedia assim): avançava, sem ser apercebido, na noite chuvosa, escura, tenebrosa, e, insensível ao vento e à neve, ia contra as cidades (inimigas). Para isso levava escadas de madeira de grande comprimento, de modo que com elas subisse acima das muralhas da cidade que procurava surpreender; e, quando a vigia muçulmana dormia, encostava as escadas à muralha e era o primeiro a subir ao castelo...”429 O cronista prossegue, afirmando que os homens de Giraldo entravam na cidade com enorme furor, ora aprisionando, ora executando aqueles que foram surpreendidos. 427 COELHO, António Borges. Op. Cit. p. 304-305. Fazem eco à interpretação MATTOSO, José. Op. Cit. p. 77 e PICARD, Christophe. Op. Cit. p. 113. 429 COELHO, António Borges. Op. Cit, p. 305. 428 303 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Parece que a prática de levar reféns que pudessem ser trocados por bens valiosos era recorrente, sem mencionar a recolha do butim, ponto crucial das invasões. Chama a atenção, ainda, o fato de que esse modus operandi perseguirá todas as representações posteriores acerca do personagem em estudo. À partida, os procedimentos seriam toleráveis por se tratar de uma batalha contra os inimigos da fé cristã – e entenda-se aqui o peso da influência memorialista daqueles interessados em construir uma versão gloriosa do passado nacional, rearticulando as declarações contidas nas fontes muçulmanas disponíveis. Encontramos, nesse sentido, uma descrição em pormenor da ação realizada em Évora, publicada pelo humanista André de Resende. Seu trabalho, a “História da Antigüidade da cidade de Évora”, atendia a um duplo interesse; por um lado, (i) visava a solidificar na corte lusa de então o papel de destaque exercido por aquela localidade, uma das primeiras regiões ao sul do Tejo a (re)confirmar-se cristã (uma cidade que queria para si o prestígio que a permitia nomear-se “mui nobre e leal”430); por outro, (ii) objetivava, anacronicamente, identificar identidades religiosas vitais no que respeita ao estabelecimento de uma identidade nobre no passado mais distante possível431. Os capítulos dedicados à história da região, diz-nos Resende, foram traduzidos de uma obra árabe medieval, surgida pela pena do mouro Rasis. No entanto, “segundo o escreve confuso, é necessário per conjecturas adivinhar”432, o que deve despertar os maiores alertas ao historiador que confronta-se com o documento. Sob o signo da interpretação do que não está claro, o humanista engendra um artifício 430 O professor Serrão demonstra-nos que o desejo maior de Resende era “apregoar: Évora, a segunda cidade de Portugal, era bem a primeira em ‘lealdade amor e serviço da real coroa’. André de Resende fortalecia assim a vontade dos eborenses que aspiravam a que a Monarquia para aqui transferisse a capital do reino”. Cf. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Figuras e Caminhos do Renascimento em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994. p. 365. 431 Essas tentativas parecem ser recorrentes na tradição ibérica, basta pensar na mitologia criada para o célebre episódio de Covadonga, que pretendia-se baluarte final da fé cristã, símbolo, por definição, do início da Reconquista. 432 RESENDE, André. História da antiguidade da cidade de Évora. In: RESENDE, André. Obras Portuguesas. Lisboa: Sá da Costa, s/d. p. 43. 304 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 funcional, que o autoriza a “explicar”, trazer o texto à compreensão como bem entender. Vejamos alguns excertos: “Giraldo Sem-Pavor foi nobre cavaleiro em tempo de El-Rei D. Afonso Henriques; e, como em o dito tempo com as revoltas das guerras e novidade do reino os nobres eram desmandados, pode ser que faria alguma delito que me nom consta, ou haveria outra cousa per que viesse em desgraça de El-Rei, de maneira que lhe conveio ausentar-se e sair da terra dos Cristãos para escapar da ira de El-Rei e lançou-se em este Alentejo, que então era todo de mouros sob o senhorio de El-Rei Ismar...433 [grifos meus] Ainda que alguma dúvida seja lançada sobre a situação em que se achava envolvido Geraldo, temos a clara intenção de que ele fosse um nobre cavaleiro em más circunstâncias, sincero cristão apesar de ocasional mercenário. Resende, a seguir, investe em cores mais realistas, definindo que “nom duvido que fariam alguns desmandos em roupa de cristãos, ca [porque] com os Mouros tinham pazes; por a qual razão este Sumário lhes chama ladrões”, mas o traço redentor já está definido.434 Assim, abre-se a possibilidade de apenas repetir o que fora dito por Rasis, que narra a invasão de Geraldo em tom propositalmente cruel. “Esta atalaia determinou Geraldo primeiramente tomar; e, sabendo que em ela estava um mouro com uã moça, sua filha, e nom mais, partiu de noite com seus cavaleiros a grão secreto e foi lançar detrás do dito outeiro; e […] foi contra a torre; […] cercou-se todo de rama. Chegou à torre […], que o mouro que até então velara se fora a dormir e encomendara a vela à filha, a qual, como moça e pouco cuidadosa de tal cuidado, se socornou na janela e adormeceu. Alegre o cavaleiro de tão boa conjunção, desatando-se com a rama trepou e, lançando mão à moça, deu com ela abaixo, de modo que nunca mais falou nem fez rumor algum; e, entrando na torre, cortou 433 434 RESENDE, André. Ibidem. p. 48-49 Ibidem, p. 49. 305 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 a cabeça do mouro, que achou seguramente dormindo e entregue ao primeiro sono, e por ver que a hora da noite era inda tal, que tinha bem espaço para, sem fazer sinal, ele per si tornar aos cavaleiros, cortou também a cabeça da moça e com elas ambas nas mãos se tornou a eles, animando-os e dando-lhes bom agoiro com a cómoda oportunidade que achara.435 [grifos meus] Revela-se, claramente, que em se tratando de uma batalha contra o inimigo ancestral, pouco importam os métodos e, para mais, uma imposição sangrenta tem respaldo. O vilão mercenário ganha, pouco a pouco, contornos heróicos. Porém, nas crônicas mais distantes no tempo, a figura que se nos apresenta é ainda incerta. Retomemonas. Seguindo a crônica moura, alguns anos depois, em 1170, há novo cerco, em que Geraldo tenta adiantar-se e capturar a cidade antes que Fernando II o faça, o que além de tudo é um sinal da fragilidade da política de alianças empregada naquele período. Durante o cerco, consegue interceptar um carregamento de víveres enviado pelos almóadas de Sevilha, matando a maioria dos homens ligados a sua defesa. De todo modo, acaba por ser derrotado, indo refugiar-se em Lobón, “na estrada que ligava Badajoz a Sevilha”, o que o colocava, entretanto, em posição privilegiada para se assenhorar de outros víveres e materiais diversos que passassem por aquele caminho. Entre 1173 e 1174, teria conseguido invadir Beja, destruindo suas muralhas e incendiando a cidade. A partir daí, os caminhos trilhados por Geraldo tornam-se ainda mais confusos e de difícil apreensão. As suas duas faces, a de herói da cristandande e da Reconquista, e a de vil mercenário, disposto a atuar do lado que lhe pagasse mais, confundem-se. Podemos seguir as pistas disponíveis em duas versões para a fase final de sua vida. 435 COELHO, António Borges. Op. Cit. p. 309. 306 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A primeira versão provém da crônica do Anônimo de Madrid e de Copenhague. Nela temos que: “No ano de 569 [11 de agosto de 1173 a 1 de agosto de 1174], chegou (a Sevilha) o renegado, o infiel Giraldo que tomou por surpresa a cidade de Beja e outros castelos e cidades, assim como devastou as terras cultivadas e habitadas. Era alcaide de Ibne Arrine (Afonso Henriques) e capitão de seus soldados.”436 Importa destacar que o autor do relato entende que Geraldo tinha uma posição preciosa nas forças de D. Afonso Henriques, o que vai ao encontro do que proporá André de Resende, e ao que se estabelecerá como versão canônica. “Chegaram ele e seus companheiros à capital do califa (que era Iúçufe) para, submissos e obedientes, se porem ao serviço deste e provar-lhe que ele renegava os cristãos seus irmãos.” “Foi o caso muito falado e o califa acolheu-o bem, mandando que lhe dessem tudo o que precisasse e que o honrassem.” “Ibne Arrine, senhor de Coimbra, quando disto foi sabedor, teve dele muito pesar e escreveu-lhe secretamente para que voltasse, usando de astúcia.437 [grifos meus] O fato de Afonso Henriques procurar realocá-lo nas hordes cristãs denota sua necessidade dos regimentos do Sem Pavor, que devia ter plena consciência disso. Jogava, portanto, com ambos, procurando a posição que lhe seria mais rentável - e aqui afastamonos da faceta do herói sacralizado por cumprir com um dever puramente cristão. Nessa versão, Giraldo é preso algum tempo depois, sendo conduzido ao norte da África, onde permanece encarcerado. Pensa em fugir, mas seus planos são descobertos e é assassinado, emblematicamente, por decapitação, o que poderia sugerir que o cronista tinha 436 437 Idem. Idem, Ibidem. 307 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 consciência dos métodos do mercenário, impondo-lhe, assim, o mesmo tipo de sofrimento na hora da morte (em torno de 1174). A segunda versão provém do códice de Albaidac – chama-se “A morte espera em Drá”. Partamos do trecho principal: “Depois o príncipe dos crentes (Iúçufe, que estava em Sevilha) partiu para a cidade de Marraquexe e levou com ele o cristão chamado Guerando (Giraldo) que mandou residir para o Suz (cuja capital é Tarudante e onde está Agadir) com o seu senhorio. Foi daí que ele escreveu para Lisboa a Ibne Arrine para lhe dizer as condições favoráveis em que se achava ali, junto do mar, e acrescentava: “– Se te parecer, manda navios armados para te apossares deste país, porque podes contar comigo.” [grifos meus] Mas o portador desta missiva foi preso e o príncipe dos crentes mandou a Guerando que viesse falar-lhe à cidade de Marraquexe. Assim foi.438 A leitura indica que a suposta traição tem início com Geraldo, não com o rei, o que clarifica uma diferença significativa para o outro relato. Resgata-se-lhe sua dimensão heróica, com uma morte que só aconteceu porque partiu dele o interesse em admoestar seu líder a atacar o Marrocos. .Suas tropas (350 homens) teriam sido distribuídas entre os senhores muçulmanos, que o mandaram matar quando isso foi feito. Os eventos referidos teriam ocorrido entre 24 de setembro de 1169 e 12 de setembro de 1170. As datas possíveis da crônica entram em franca contradição com os relatos que rememoram a tomada de Beja (em 1173). No entanto, José Mattoso aponta que essa data pode estar incorreta, pois evento muito semelhante teria ocorrido 10 anos antes439. 438 439 COELHO, António Borges. Op. Cit, p. 310. MATTOSO, José. Op. Cit. p. 78. 308 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Dadas as dificuldades em definir uma versão mais límpida, resta-nos perscrutar possíveis interpretações para o que se fez dos vestígios de Geraldo e de sua memória. CONSIDERAÇÕES FINAIS Seja como for, graças aos avanços de Geraldo tornou-se possível sustentar as vitórias militares alcançadas nas últimas décadas, mormente a de Évora. Aquela cidade não voltou a cair em mãos dos mouros, embora outras tenham sido perdidas entre 1184 e 1191, com a retomada das invasões almóadas440. Daí a necessidade de contemplar, neste breve estudo, a crônica do mouro Rasis e sua interpretação por André de Resende. Évora conservou a memória heróica de Geraldo de forma singular, concedendo-lhe status privilegiado. A figura que representa a mui nobre e sempre leal cidade de Évora é, portanto, a de um não tão nobre e mui desleal cavaleiro. Embora o estudo rigoroso dos textos revele ser quase impossível determinar se o caudilho fora um vil ou um virtuoso cavaleiro, e esta é de fato uma questão desnecessária ao trabalho historiográfico, podemos determinar com segurança que a imagem que se decidiu ter dele foi preenchida pela segunda opção. Por fim, não seria lícito questionar se ao Cid Português não se soma o Cid espanhol? El campeador também teve sua trajetória marcada por acordos e conflitos entre muçulmanos e defensores da cristandade. Teve, de modo análogo a uma das versões de Geraldo, uma morte gloriosa e redentora; para mais, desfrutou de uma memória e de um futuro de prestígio. Foi, desde então, de fato, la encarnación del heroismo y espiritu caballeresco de la raza. Ambos cumpriram a função histórica de baluartes do restabelecimento da “boa fé” nas terras ibéricas; mesmo sem jamais terem dividido o 440 Ibidem. p. 79. 309 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 campo de batalha, suas trajetórias estiveram conectadas por obra das muitas gerações que lhes sucederam. Igualmente, terão servido aos propósitos muçulmanos de propaganda – basta retomar a suposta traição e perfídia de Geraldo, tão exaltada pelos cronistas mouros. Na síntese de Boxer: Como se sabe, os séculos durante os quais cristãos e muçulmanos lutaram pelo domínio da península ibérica não foram épocas permanentes de intolerância religiosa nem de guerra. Tanto o herói castelhano El Cid Campeador como seu equivalente português Geraldo Sem Pavor serviram aos governantes cristãos e muçulmanos, conforme a ocasião.441 Tais premissas permitem postular a presença de um modelo ibérico do herói reconquistador tramado muito tempo após a existência daqueles homens. Segundo o conceito, já referido, que vem sendo elaborado por Serge Grusinski e Sanjay Subrahmanyam, tratar-se-ia de uma história conectada, interligada por uma tradição unificadora por ter propósitos análogos, embora especificidades, por óbvio, tenham persistido. É possível que o movimento supracitado tenha tido seus primeiros instantes – em termos de produção e/ou resgate de textos – na corte de D. Dinis. “Enquanto o primeiro Livro de Linhagens se constituía à margem da corte como reacção da nobreza senhorial a uma política régia centralizadora (cfr KRUS 1993), a primeira tradução de uma importante obra historiográfica era ordenada por D. Dinis (que assim seguia os passos de seu avô Afonso X de Castela, fomentando o desenvolvimento da historiografia pensinsular). A Crônica do Mouro Rasis foi traduzida do árabe para o português no início do século XIV, por Gil Peres (morto antes de 1315), clérigo de Pero Anes de Portel, com a colaboração de mestre Maomé. O texto resultante da tradução veio a ser parcialmente integrado, com alterações, na Crônica Geral de Espanha de 1314, compilada por D. Pedro, conde de Barcelos. O manuscrito português da Crônica do Mouro Rasis perdeu-se no terramoto de 441 BOXER, Charles. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 16. 310 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 1755, conservando-se dele apenas alguns fragmentos copiados por André de Resende (1533), a quem o manuscrito pertenceu. Por outro lado, tendo sido feita no século XIV uma tradução castelhana do texto português, dela subsistem testemunhos que permitiram a Diego CATALAN e Maria Soledad de ANDRÉS (1975) ensaiar a reconstituição da crônica (em versão castelhana).442 [grifos meus] Voltamos a vislumbrar o texto de Resende, escrito importante por seu caráter confirmador das supostas virtudes da retomada de Évora a despeito dos vícios também por ela trazidos. Partiu, como se vê, de um manuscrito consagrado pela corte lusa, dado o destaque de ter sido o primeiro documento traduzido pela chancelaria do referido monarca, imersa em um ambiente cultural propício. O ideal de cavaleiro reconquistador acabou por ganhar espaço na tessitura das mentalidades do Ocidente; coube a El Cid o papel principal. Não é por mero acaso que o texto basilar de sua lenda conste como um dos tesouros da principal biblioteca espanhola; também não é por acaso que, há algumas décadas, tenha tomado forma no cinema o campeador e sua imagem messiânica, salvando seu exército da derrota já morto, empalhado sobre seu cavalo – para não mencionar sua presença noutros suportes. No que diz respeito a Geraldo, para além do brasão, há que lembrar que seu nome continua a ser rememorado diariamente, em muito menor grau quando comparado ao seu duplo, pois a cidade de Évora mantém a praça do Geraldo. Em seus arredores, temos uma estátua de aparência cruel, na qual vemos o guerreiro no instante em que arrancou as cabeças do mouro e da moura, como que exibindo o poder e o justo castigo merecido por aqueles que desafiaram a fé cristã. A honra cavalheiresca desvaneceu; o mito, persistiu, entre batalhas pela memória e a guerra pela Reconquista. 442 Martins, Ana Maria. Emergência e generalização do português escrito: de D. Afonso Henriques a D. Dinis. In: MATEUS, Maria Helena Mira. Caminhos do português. Lisboa: BNL, 2001. p. 42, nota 24. 311 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 FONTES COELHO, António Borges. Portugal na Espanha Árabe: História. v. 2. Lisboa: Caminho, 1989. RESENDE, André. Obras Portuguesas. Lisboa: Sá da Costa, s/d. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOXER, Charles. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. DUBY, Georges. Uma batalha na Idade Média: Bouvines, 27 de Junho de 1214. Lisboa: Terramar, 2005. GRUSINSKI, Serge. Les mondes mêlés de la Monarchie catholique et autres «connected histories». Annales, Paris, v. 56, n. 01, 2001. MARTINS, Ana Maria. Emergência e generalização do português escrito: de D. Afonso Henriques a D. Dinis. In: MATEUS, Maria Helena Mira. Caminhos do português. Lisboa: BNL, 2001. MATTOSO, José. História de Portugal: a Monarquia Feudal. v. 2. Lisboa: Editorial Estampa, s/d MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Museus históricos: da celebração à consciência histórica. In: Como explorar um museu histórico. Museu Paulista (USP): 1992. PICARD, Christophe. Le Portugal Musulman – L’Occident et l’Al-Andalus sous domination islamique. Paris: Maisonneuve et Larose, 2000. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Figuras e Caminhos do Renascimento em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994. 312 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 SUBRAHMANYAM, Sanjay. Explorations in Connected History: from the Tagus to the Ganges. Nova Iorque: Oxford USA trade, 2005. 313 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A atuação dos oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica, 1711-1715. Luiz Alberto Ornellas Rezende443 RESUMO: O objetivo deste artigo é expor a metodologia utilizada para estudar a atuação dos homens que integraram o Senado da Câmara de Vila Rica, nos primeiros cinco anos de seu funcionamento. A fonte utilizada são as atas do Senado da Câmara de Vila Rica. A pesquisa foi dividida em duas partes: 1) elaboração da relação de nomes e cargos dos indivíduos que aparecem nas atas; 2) elaboração de um plano de classificação dos assuntos tratados nas reuniões. Os resultados deste trabalho servirão de base para um futuro aprofundamento das relações da Câmara de Vila Rica e seus componentes. PALAVRAS-CHAVE: metodologia; base de dados; Vila Rica. ABSTRACT: The objective this article is to present the methodology used to study the actions of men who joined the Senate Chamber of Villa Rica in the first five years of its operation. The font used is the writing of the town council of Villa Rica. The research was divided into two parts: 1) drawing up the names and positions of individuals who appear in the writing; 2) develop a classification scheme discussed at the meetings. The results of this study will serve as a basis for further development of relations of the Board of Vila Rica and its components. KEYWORDS: methodology; database; Vila Rica. Há um fato que ocorreu no final do século XVII na região onde encontram-se 443 Graduando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e bolsista de Iniciação Científica da FAPEMIG, no projeto “Os oficiais da Câmara Municipal de Vila Rica, 1711-1751”, orientado pelo professor Dr. Angelo Alves Carrara (UFJF). 314 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 atualmente as cidades de Mariana e Ouro Preto, que mudaria a história do Brasil: a descoberta do ouro pelos bandeirantes paulistas. A descoberta transformou profundamente a vida na colônia e criou uma verdadeira corrida para as áreas auríferas. Os paulistas, descobridores, e os emboabas (reinóis e pessoas oriundas de outras regiões) travaram uma disputa pelo poder, objetivando a ocupação e dominação dos espaços próximos aos pontos de extração do metal precioso. Esta disputa se agravou e culminou, na primeira década do século XVIII, no episódio conhecido como Guerra dos Emboabas.444 Poucos anos após o término do conflito armado, mais precisamente em julho de 1711, Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho transforma alguns povoados da região em vilas. Isto inclui Ouro Preto, então Vila Rica de Albuquerque. A elevação destes locais e conseqüente criação de suas respectivas Câmaras, demonstra a necessidade e urgência de consolidar a ordem na região, de fazer presente o poder do rei nas áreas em que se extraia o ouro, e principalmente, de tentar equilibrar paulistas e emboabas. Muitos trabalhos de qualidade abordam vários aspectos e utilizam várias fontes relacionadas ao Senado da Câmara de Vila Rica. Entretanto, a pesquisa que desenvolvemos não pretende repetir, ou mesmo continuar os passos trabalhados por outros autores.445 Pretendemos aprofundarmos nas questões ligadas à atuação dos oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica. Queremos compreender melhor a dinâmica de funcionamento da instituição, buscando, sempre que possível, estabelecer um paralelo entre o ideal (representado pelo que mostra-se presente na legislação da época)446 e o real (entendido como o que de fato ocorria na instituição). Apresentaremos, neste artigo, a metodologia que utilizamos durante a pesquisa, evidenciando os avanços e recuos que mostraram-se necessários, como ocorre em toda 444 Ver VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1999. Por exemplo: RUSSEL-WOOD, A. J. R. O governo local na América portuguesa: um estudo de divergência cultural. Revista de História (USP), v. 55, n. 109, São Paulo, p. 25-79, 1977. 446 Me refiro às Ordenações Filipinas, publicadas pelo Senado Federal em 2004. 445 315 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 pesquisa científica, e abordando pontos de sucesso e outros que consideramos ainda problemáticos, não solucionados. Portanto, o objetivo deste artigo é compartilhar com outros pesquisadores e interessados pelo assunto, os métodos que estamos adotando nesta pesquisa. O artigo está dividido da seguinte forma: primeiro descrevo em detalhes a fonte central que utilizo para iniciar a pesquisa, e, a partir desta descrição demonstro, também em detalhes, os caminhos que adotamos; segundo, trato da primeira frente da pesquisa, que tem como foco a relação de homens que ocuparam ofícios no Senado da Câmara entre 1711 e 1715; terceiro, trato da segunda frente da pesquisa, que tem como foco os assuntos que aparecem nas atas da instituição, também entre 1711 e 1715; quarto, mostro alguns encaminhamentos, que pelo pouco que revelam frente ao que virá com o desenvolver da pesquisa, creio não podem levar o nome de resultados ou conclusões, mesmo que acrescidos do termo “parcial”. São amostras, encaminhamentos, alguns pontos que revelam o quanto interessantes podem ser os resultados futuros. A fonte central, na qual me baseio para levantar os dados presentes até o momento, são as Atas do Senado da Câmara de Vila Rica, 1711-1715. O original encontra-se na Biblioteca Nacional. Contudo, este material foi transcrito e publicado nos Anais da Biblioteca Nacional, número 49, de 1927, e encontra-se disponível no site da instituição. Utilizo como base nesta pesquisa este material que foi transcrito e publicado. Esta fonte é composta por uma série de termos de vereação. Estes termos são textos escritos pelo Escrivão da Câmara que registram as questões discutidas nas reuniões da Câmara e as decisões tomadas. São, até o final do ano de 1713, textos normalmente curtos. A partir de janeiro de 1714, com o início da cobrança dos quintos pela Câmara, nota-se que os textos tendem a ficar mais longos, com algumas exceções, evidentemente. 316 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 O primeiro passo foi a leitura dos termos de vereação. Durante a leitura, foi feita a extração dados importantes presentes na fonte. Alguns dos dados extraídos foram: data das vereações, nomes dos oficiais presentes e referidos cargos exercidos e os assuntos tratados nas reuniões. Feito esta primeira etapa, sistematizamos os dados extraídos da fonte, montando um banco de dados informatizado visando uma maior praticidade, organização, rapidez e clareza na obtenção de resultados. Neste momento observamos a necessidade de se dividir em duas frentes a pesquisa: a primeira deve se concentra na montagem de uma relação com todos os nomes ligados à Câmara que aparecessem nas vereações, e ainda, as informações ligadas à estes nomes, como por exemplo os títulos, cargos e funções exercidas; a segunda frente consiste em definir os assuntos discutidos nas vereações, e neste ponto vi a necessidade de dividir estes assuntos em dois subgrupos, rotinas administrativas e eventos, os quais tratarei em detalhes nas linhas que seguem. Uma observação faz-se necessária neste instante. Há uma diferença essencial que legitima esta divisão metodológica em duas frentes. A primeira frente, referente, como dito acima, à montagem de uma relação com os nomes e demais informações dos homens que exerceram ofícios ligados ao Senado da Câmara no período selecionado, é, como se pode imaginar, uma atividade que pode ser classificada como objetiva, pois os dados aparecem explicitamente nos termos de vereação. Em oposição à objetividade da primeira frente, temos a subjetividade da segunda frente. Nesta frente é necessário ler o termo de vereação e então montar um rótulo para cada discussão estabelecida. Este rótulo é dado pelo pesquisador a partir da interpretação das discussões presentes no documento, ou seja, é uma tarefa que está nas mãos do pesquisador, uma tarefa onde ele influi diretamente. Assim, deve haver uma coerência do pesquisador com as informações contidas no documento. Esta coerência, ao meu ver, só pode ser alcançada mediante o contato 317 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 prolongado do pesquisador com a fonte, pois é este contato que amadurece sua visão. Enfim, o que quero dizer é que, embora subjetiva, a montagem de um plano de classificação dos assuntos contidos nos termos de vereação não é necessariamente artificial. Seria artificial se não respeitasse o tom das discussões presentes na documentação, se não respeitasse a lógica de funcionamento da instituição, lógica esta que se torna perceptível não com uma leitura simples das atas, mas com um incansável exercício de leitura e releitura, avanços e recuos, tentativas e erros nas definições de assuntos. Ao ler, por exemplo, um termo de vereação de 1711, pode-se ter dúvidas de como classificar determinada discussão, então, coloca-se um rótulo temporário. Com o prosseguimento da leitura, pode-se (e normalmente é o que ocorre com freqüência) deparar, em outros anos, em outras conjunturas, com a mesma discussão sendo levantada, mas agora, envolvendo outras pessoas e outro Escrivão, que pode, dependendo das circunstancias, detalhar mais os fatos e fornecer mais elementos para uma definição mais ajustada à dinâmica da instituição. Na primeira etapa do trabalho, o objetivo básico era elaborar uma lista com o nome dos oficiais ligados à Câmara que aparecem nos termos de vereação entre 1711 e 1715. Além dos nomes, levanto outras informações relevantes que, as vezes, aparecem nas atas, como cargos, títulos e funções. Antes de prosseguir, devo alertar para o que estamos chamando de oficiais. Não estamos, neste primeiro momento, nos limitando aos cargos de maior destaque, entenda-se: Juiz Ordinário, Vereadores, Procurador do Conselho. Agora, além destes cargos, que são, junto com o Escrivão da Câmara, os mais presentes nas reuniões, procuro listar todos os nomes que exerceram algum oficio ligado à instituição. Ou seja, quando dizemos oficial, neste momento, estamos nos referindo aos homens que exerceram algum ofício. Feito este esclarecimento, prosseguimos. Relacionamos cerca de 140 nomes que se 318 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 encaixam nesta descrição. Evidente que não iremos, ao seguir da pesquisa, trabalhar profundamente com todos. O objetivo neste momento é listar todos, para, em seguida, selecionar um grupo para trabalhar com mais profundidade, possivelmente os oficiais que mais vezes aparecem nas reuniões, ou seja, os oficiais votantes. Todavia, ter uma lista dos Juízes de ofício, almotacés, lançadores dos quintos (a partir de 1714, quando este passa a ser arrecadado pela Câmara), entre outros cargos, seria mais que interessante, de grande utilidade à outros pesquisadores. Como dito anteriormente, alguns pontos foram problemáticos. Além de efetuar a coleta e sistematização das informações relacionadas aos oficiais, tentamos, durante alguns meses, sistematizar também a freqüência com que os oficiais freqüentavam as vereações. Contudo, uma incoerência recorrente presente na fonte, fez com que levantássemos dúvidas quanto à viabilidade do levantamento destes dados utilizando apenas esta fonte. Normalmente encontramos, no final do termo de vereação, a assinatura dos oficiais presentes, exceto a do Escrivão, que redige o termo. Mas, já em 1713 começa a constar na abertura do termo os nomes dos presentes (ver exemplo abaixo), além das assinaturas finais. O problema é que, em vários termos de vereação, alguns nomes que constam na abertura não são iguais aos que contam nas assinaturas finais. Como afirmei acima, tal fato é recorrente a partir de 1713, quando há esta mudança na abertura dos termos. Veja um exemplo deste tipo de incoerência em um dos termos de vereação: [...] Aos vinte e seis dias do mês de fevereiro de mil setecentos e quatorze anos nas casas da Câmara, estando juntos os oficiais dela o Juiz Ordinário Ventura Ferreira Vivas, os Vereadores Capitão Manuel Gomes da Silva, Domingos Francisco de Oliveira, e o Procurador do Conselho o Capitão Antônio Martins Lessa, resolveram o seguinte: [...] Acordaram deferir as partes e despachar petições, e por não haver mais o que despachar houveram a vereação por acabada de que mandaram fazer este termo que todos assinaram. E eu, Bento Cabral Dessa, escrivão da Câmara o escrevi. 319 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Vivas – Silva – Costa – Lessa 447 O nome que grifamos, Domingos Francisco de Oliveira, não consta na assinatura, e aparece outro vereador, de sobrenome Costa, que não consta na abertura. Se este fosse um caso isolado, poder-se-ia relevar, mas, pelo contrário, é um fato recorrente, e ocorre não só entre vereadores, mas entre vários cargos. Poder-se-ia alegar também que é um erro de transcrição, mas, é recorrente, o que nos faz desacreditar nesta possibilidade. Fato é que, com os elementos que temos, não conseguimos ainda compreender esta aparente incoerência. Talvez haja alguma explicação, e em breve, cruzando os dados das vereações com outras fontes, poderemos chegar a alguma conclusão. Seguimos para a segunda frente, relacionada aos assuntos discutidos nas vereações. Durante a leitura foi possível observar duas formas de discussão. Uma ligada ao que era rotineiro, ligado à administração da vila, e outra que não estava inclusa nesta atividade rotineira, ao contrario, era eventual. Assim, dividimos os assuntos extraídos dos termos de vereação e rotulados, em: 1) rotinas administrativas; 2) eventos. As rotinas administrativas são discussões relacionadas ao cotidiano da administração da vila, e são geralmente: eleições, arrematações de rendas, correições 448 , posturas, despacho de petições. Os eventos são fatos que não ocorrem de tempos em temos, como as rotinas. Alguns exemplos são: notícia de paz com a França em 12/11/1713449; ordem de colocação de luminárias para se comemorar nascimento do infante em 17/11/1714450; prisão de oficial 447 BIBLIOTECA NACIONAL. Atas da Câmara Municipal de Vila Rica. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 49, 1927. p. 314. Grifo nosso. 448 Para mais informações sobre a forma como eram feitas as correições, ver BOTELHO, Tarcísio Rodrigues; ABDO, Patrícia Ferraz. Administração camarária e comércio na Vila Rica do século XVIII: os almotacés e as correições, 1754-1777. Caminhos da História, Montes Claros, v. 13, n. 2, p. 23-40, 2008. 449 BIBLIOTECA NACIONAL. Op. Cit. p. 285. 450 Ibid., p. 345-346. 320 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 de ferreiro por desacato aos oficiais do Senado da Câmara em 30/1/1714451 e discussão visando a implantação de uma nova rotina no Senado da Câmara, a arrecadação dos quintos, em 6/1/1714452. Note que a metodologia adota para as rotinas não contempla os eventos. Para se analisar as rotinas, é mais adequado utilizar o método quantitativo. Ao contrário, quando se analisa os eventos, pouco numerosos, quase nulos se comparados às rotinas, o método mais adequado é o qualitativo. A quantificação destas rotinas administrativas e destes eventos está sendo feita, mas ainda não há resultados conclusivos. Então, não temos ainda números para fornecer, e por isso, como havia dito no início deste artigo, não tenho resultados concretos. Assim, retomo a proposta inicial de demonstrar o método que estamos utilizando, seus pontos fortes e fracos. Há eventos que parecem pouco relevantes para a esfera local, como os que citei acima, mas, há outros, que simplesmente mudam as prioridades da instituição em estudo. Um exemplo é a discussão para se começar a arrecadar o quinto. Ela é eventual, pois não é recorrente, é algo único. Não se pode confundir esta discussão com a que seguirá depois, que é propriamente o correr da arrecadação, uma rotina administrativa, a rotina de se arrecadar. Este evento é sim muito relevante, pois afeta profundamente a instituição e por isso, em termos qualitativos, tem um peso maior, mas em termos quantitativos é irrelevante. Conforme explicado nas linhas acima, apresento alguns dados interessantes que já possuímos. São dados simples, mas que revelam informações preciosas, que tentem a reforçar a importância que acabei de destacar quanto à implantação da rotina de arrecadação dos quintos. 451 452 Ibid., p. 305-306. Ibid., p. 293-294. 321 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 O recorte adotado, 1711 até 1715, embora pequeno, é relevante pois inclui a mudança que ocorre em 1714, que, como já dito, corresponde ao momento em que o Senado da Câmara passa a ficar responsável por arrecadar os quintos.453 Veja abaixo o gráfico que mostra o número de reuniões do Senado da Câmara no período em questão: Reuniões de 1711-1715 28,21% 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 78 18,37% 25,58% 22,86% 49 43 35 58,33% total do 1º mês total do ano 22 7 12 11 1711 9 8 1712 1713 1714 1715 Com base neste gráfico que elaboramos a partir da sistematização das reuniões da instituição, podemos constatar algumas indicações interessantes. Analisando primeiramente o numero anual de reuniões, vemos que no ano de 1711 tivemos apenas 12 reuniões, o que se explica por ser o ano de fundação, e pelas atividades terem começado em julho, também pela própria falta de estrutura, visto que não havia se quer um prédio próprio para abrigar a instituição. Em 1712, ano em que cria-se de fato uma estrutura própria para Câmara, ocorre um número maior de reuniões, 43. Em 1713 as reuniões somam 35. Em 1714 o número mais que dobra se comparado ao ano imediatamente anterior, são 78 reuniões durante o ano, o equivalente aos anos de 1712 e 1713 juntos. Observe que o ano seguinte, 1715, as reuniões voltam a um número próximo ao dos anos 453 Para mais informações quanto à forma de se arrecadar os quintos ao longo do tempo em Minas Gerais, ver CARRARA, Angelo Alves. A Real Fazenda de Minas gerais: guia de pesquisa da Coleção Casa dos Contos de Ouro Preto, volume 2. Mariana: UFOP, 2004. 322 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 posteriores à 1714, embora o número continue acima da média, são 49 reuniões. Nota-se a semelhança entre o excesso de reuniões de 1714, com o início da cobrança dos quintos pelo Senado da Câmara, também neste ano. Vamos agora analisar o total de reuniões realizadas no primeiro mês de cada ano. Isto é importante pois, normalmente, é no primeiro mês que se concentra parte considerável das atividades de todo o ano. Isto se da pois, no início do ano que normalmente ocorre as eleições e posses e outras rotinas administrativas. Vemos que 1711 não pode ser levado em conta, visto que mais de 50% das reuniões do ano ocorreram em julho, justo por ser o primeiro mês de funcionamento da instituição. Foi um mês atípico, muito precisava ser definido, como atribuições e ganhos de cada cargo. Em seguida, no ano de 1712, com as atividades mais estáveis, vemos que 25,58% das reuniões do ano ocorrem em janeiro, ou seja, o primeiro mês concentra cerca de 1/4 de todos as discussões do ano. Em 1713 mantém-se o padrão, 22,86%, pouco menos de 1/4 das reuniões ocorrem em janeiro. Em 1714, embora o número não seja esmagadoramente maior, notamos sim um predomínio das reuniões em janeiro, 28,21%. Todavia, temos que lembrar que o ano de 1714 contou com mais que o dobro das reuniões de 1713, foram, como já dito, 78 reuniões. Assim, janeiro de 1714 foi um mês muito mais ativo em termos de reunião se comparado aos outros primeiros meses do qüinqüênio. Foram 22 reuniões em janeiro de 1714 contra 7 em 1711, 11 em 1712, 8 em 1713 e 9 em 1715. Nota-se que em 1715 há uma queda da relação do primeiro mês frente ao resto do ano, são 18,37% das reuniões em janeiro, menos de 1/5. O que se pode observar em linhas gerais, é a grande exceção que foi o ano de 1714. Foram muitas reuniões no ano, muitas também as reuniões em janeiro, isto não só em números relativos mas, principalmente em números concretos. São 22 reuniões em 31 dias. É evidente que algumas destas reuniões ocorrem no mesmo dia, mas, de todo modo, são 323 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 números que despertam a curiosidade. Ora, o que estava ocorrendo em janeiro de 1714 era justamente a discussão sobre como se daria a implantação dos quintos. Na reunião do dia 6 de janeiro de 1714 454 , reuniu-se no Senado da Câmara de Vila Rica, vários representantes das vilas e demais homens bons para decidir, junto com demais autoridades, como seria feita a cobrança. Este é o evento, ou seja, a discussão sobre a implementação desta nova rotina, que muda a órbita da Câmara. Creio que o excesso de reuniões de 1714 pode ser um indicador desta transformação. É evidente que isto será confirmado com a quantificação dos assuntos discutidos, tarefa que está sendo feita e em breve será divulgada. Por fim, devemos reforçar a importância que noto, com base nas vereações, da implantação da arrecadação dos quintos, e como, de certo modo, isto mudou as prioridades da instituição. É possível que a discussão sobre os quintos não tenha ocupado a maioria parte do tempo, mesmo em 1714. Mas, é certo que, grande parte das novas discussões que surgem a partir de 1714, tem um vínculo ao menos indireto com a implementação da nova rotina. Isto pois esta novidade exige a criação de novas funções, ou seja, esta rotina gera um efeito em cadeira, e gera novas rotinas, como eleições e posses de novos oficiais. Cabe, neste encerramento, reafirmar que o objetivo deste trabalho foi expor a metodologia adotada, o que cumprimos. A divisão dos assuntos em rotinas e eventos parece ser a característica elementar da pesquisa. A elaboração da lista dos oficiais camarários, embora básica e pouco reveladora neste momento, é fundamental para o próximo passo, que é o cruzamento desta lista com outras fontes. Por fim, os encaminhamentos, as indicações que tecemos nestas últimas linhas, parecem demonstrar a relevância do tema estudado e dos resultados futuros. 454 BIBLIOTECA NACIONAL. Op. Cit. p. 293-294. 324 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Fonte: BIBLIOTECA NACIONAL. Atas da Câmara Municipal de Vila Rica. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 49, p. 200-391, 1927. Bibliografia: VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1999. CARRARA, Angelo Alves. A Real Fazenda de Minas gerais: guia de pesquisa da Coleção Casa dos Contos de Ouro Preto, volume 2. Mariana: UFOP, 2004. BOTELHO, Tarcísio Rodrigues; ABDO, Patrícia Ferraz. Administração camarária e comércio na Vila Rica do século XVIII: os almotacés e as correições, 1754-1777. Caminhos da História, Montes Claros, v. 13, n. 2, p. 23-40, 2008. RUSSEL-WOOD, A. J. R. O governo local na América portuguesa: um estudo de divergência cultural. Revista de História (USP), v. 55, n. 109, São Paulo, p. 25-79, 1977. 325 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Ensaio Sobre Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels: A abordagem elitista da democracia. Raphael Gustavo Ladeira Moreno RESUMO: O artigo trata da exposição da chamada teoria das elites, a partir das visões de seus precursores, os italianos Pareto e Mosca e o alemão Michels, que como teoria científica política surgiu com forte carga polêmica antidemocrática e anti-socialista, que refletia o grande temor das classes dirigentes dos países onde conflitos sociais eram ou estavam para se tornar mais intensos. PALAVRAS- CHAVE: democracia; teoria das elites; desigualdade política. ABSTRACT: The article proposes to address exposure of so-called theory of elites, from the precursors, the italians Pareto and Mosca, and the german Michels, as a scientific theory that has emerged with strong political load undemocratic and antisocialist, which reflected the great fear of the ruling classes countries where social conflicts were to become more intenses. KEYWORDS: democracy; theory of elites; political inequality. INTRODUÇÃO No contexto da política democrática do final de do século XIX e inicio do século XX, quando a desigualdade é questionada, que se reerguem as vozes dos que Graduando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). 326 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 afiançam que ela é "natural" e "eterna" – o que talvez seja a definição mais simples do elitismo. No seu sentido corrente, o elitismo pode ser descrito como a crença de que a igualdade social é impossível, de que sempre haverá um grupo naturalmente mais capacitado que deterá os cargos de poder. Essa idéia não é novidade, conforme Finley, tanto Platão quanto Lipset entregariam a política a especialistas. O primeiro, a filósofos de rigorosa formação, que tendo aprendido a Verdade, seriam dali por diante guiados exclusivamente por Ela. O segundo, a políticos profissionais (ou a políticos comprometidos com a burocracia), que seriam guiados por suas experiências na arte do possível.455 A palavra "natureza" é crucial: para o elitismo, a desigualdade é um fato natural, isto está na raiz da atração que o pensamento elitista tem sobre aqueles que ocupam posições de elite. Em vez de estarem nessas posições por mero acaso, de contingências ligadas à estrutura da sociedade, seriam recompensados por seus méritos intrínsecos. Dando-lhes um reconfortante sentimento de superioridade, acompanhado do desprezo pelos que não são tão bons.456 Este é o papel da teoria elitista sobre a política e democracia, desde que os conservadores Mosca e Pareto às introduziram na Itália, na virada do século, seguidos pelo alemão Robert Michels. O interesse elitista esta em demonstrar que a história é repetitiva: transformando-se numa monótona saga de conflitos, onde não contam os ideais, mas a força e astúcia, e que as chamadas revoluções não são mais do que substituição de uma classe dirigente por outra; e que as massas são apenas um exército de manobra da nova classe política em ascensão457. 455 FINLEY, M. I. Democracia antiga e moderna. Trad. Waldéa Barcellos, Sandra Bedram. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 20. 456 SARTORI. Giovanni. A política: lógica e método nas ciências sociais. Brasília: UNB, 1981, p.47. 457 DAHL, Robert. Analise política moderna. Brasília: UNB, 1982, p.112. 327 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Há o entendimento da política como uma pratica de lideranças que, por suas origem e formação, atribuem-se o direito de dirigir, comandar e reprimir as massas populares as quais, por sua condição social e histórica, não são aptas a governar, neste contexto é natural que os “inferiores” sejam dirigidos pelos “superiores” que possuem conhecimento na arte de comandar.458 A Teoria das Elites foi plasmada no pensamento de Gaetano Mosca com sua doutrina da classe política; Vilfredo Pareto com sua teoria da "circulação das elites" e Robert Michels com sua concepção da "lei de ferro da oligarquia". É a partir dessas visões que pretendemos abordá-la. BURNHAM E OS NOVOS MAQUIAVÉLICOS James Burnham (1905–1987), importante teórico político norte americano, em sua obra, The Machiavellians de 1970, em contraposição à concepção idealista da política e a realista personalizada por Maquiavel, teceu elogios aos novos maquiavélicos: Mosca, Pareto e Michels. De acordo com a reinterpretação de Burnham, teóricos da elite não eram mais apologistas de regimes totalitários. Ao contrário, ao longo de toda obra Burnham muito habilmente tenta confirmar o subtítulo da obra: defenders of freedom.459 Apesar de Gaetano Mosca ser tido como o fundador da teoria das elites no final do século XIX, decidimos iniciar esta explanação por Vilfredo Pareto, pois ele trata do conceito de elite de forma mais geral, o que facilita a sua exposição inicial. 458 Cf. LIPSET, Seymour. Política e ciências sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1972, p.74. BURNHAM, James. The Machiavellians: defenders of freedom. New York: Freeport, 1970. A análise de Burnham centra-se em 3 autores: Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels, os “maquiavélicos”, com alguns breves comentários sobre Sorel. Portanto, a exemplo da obra de Burnham este artigo manterá o foco neste trio. 459 328 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 VILFREDO PARETO: A ELITE DOS MAIS HABILIDOSOS Na perspectiva de Pareto (1848-1923) existem em todas as esferas, em todas as áreas de ação humana, indivíduos que se destacam dos demais por seus dons, por suas qualidades superiores, portanto a desigualdade é natural, fruto dos diferentes talentos, seria impossível eliminá-la, para não dizer injusto. Eles compõem uma minoria distinta do restante da população – uma elite. A existência das elites revela a desigualdade – natural – entre os homens, da qual a desigualdade social seria um mero efeito. Para o conceito paretiano, a elite define-se através das habilidadedes intrínsecas de seus integrantes – ao contrário do emprego corrente do termo, que incorpora a capacidade de influência. O termo elite não será atribuído apenas a uma aristocracia, e sim qualquer grupo que se destaque - o mais habilidoso - em sua atividade especifica: o sociólogo e economista, aplaina diferenças fundamentais, presentes na sociedade, ao tratar as muitas elites como se fossem idênticas. Já que para Pareto, o mendigo que faz ponto na frente da igreja matriz, e, portanto, é o mais bem-sucedido na sua atividade, é tão "de elite" quanto o bilionário que ganha rios de dinheiro com a especulação financeira, ou seja, é possível falar numa elite de guerreiros, numa elite religiosa, numa elite econômica e até mesmo de ladrões. Em síntese a desigualdades entre os indivíduos contribuem diretamente para o surgimento das elites. Entretanto, Pareto introduz uma distinção essencial no seio da elite: a que separa a elite governante, que exerce o poder político, de todo o resto a chamada 329 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 elite não-governante. A existência de um grupo minoritário que monopoliza o governo é, para ele, uma constante universal das sociedades humanas. Ao diferenciar os elementos dentro da elite introduz a constate: da rotação entre os integrantes da elite a teoria da "circulação das elites", Pareto elabora a teoria do equilíbrio social, que estuda a interação das diversas classes de elite, cujas principais são as elites políticas que têm dois pólos: os políticos que usam a força (os leões) e os que usam a astúcia (as raposas). A dinâmica da teoria da "circulação das elites" e sua importância para o bom andamento do governo, de acordo com Pareto: haveria necessidade tanto da astúcia quanto da disposição para o uso da força, isto é, a elite governante deve possuir tanto indivíduos caracterizados por: raposas (indivíduos da classe I) e leões (indivíduos da classe II). Para se perpetuar, esse governo deve cooptar os indivíduos talentosos que existam dentro da sociedade. Ora, os leões, justamente por serem leões, não são dados a compromissos, e não aceitarão a cooptação, que ocorre em geral para postos - a princípio - subalternos. Só as raposas ascenderão ao poder, causando um desequilíbrio. Em primeiro lugar, haverá um governo formado total ou majoritariamente por indivíduos da classe I, que preferem usar apenas a astúcia e vacilam em empregar a força. A segunda conseqüência é um acúmulo de leões privados de poder, mas desejosos de alcançá-lo, formando uma "contra-elite". Chega um momento em que a pressão é grande demais, os indivíduos da classe II promovem uma revolução e instauram um governo leonino. E o processo se reinicia o que o torna cíclico, como dito na introdução. Pareto generaliza, esse processo cíclico, ao tratar da Revolução Francesa: a idéia de que todas as mudanças políticas são, por trás das aparências, repetições do mesmo processo, a luta dos leões contra as raposas. Assim, discutir as 330 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 transformações nas estruturas sociais, a economia ou a ideologia é inútil. Seja a Revolução Francesa, partindo pressuposto que a massa é incapaz de intervir no processo histórico. Se parece que o faz, é porque está sendo manobrada por outro grupo mais habilidoso, atribuindo tal conquista a elite que emergiu dessa massa. Enquadrando o movimento a sua teoria de circulação das elites. Outro fato a se pensar dentro dessa dinâmica de “circulação das elites” é essa presença da palavra força no que se aplica aos indivíduos da classe II – os leões: Uma vez que segundo Pareto, nenhum governo persiste sem sua quota de leões, o uso da força deve ser aceito como inevitável na sociedade. Fato que se apóia para legitimar a repressão. O que se deseja, aqui, não é refutar as idéias de Pareto. Caso fosse este o objetivo, seria necessário observar que sua concepção da sociedade e do ser humano é simplificadora ou, ainda, que, ao tratar de temas como o uso da violência, ele aplaina diferenças significativas. Para os objetivos deste artigo, o que interessa é perceber que todo o esforço intelectual de Pareto está voltado à demonstração de que qualquer ordenamento democrático é ilusório. Pareto tinha convicção na superioridade das elites econômicas e políticas porque acreditava que as desigualdades sociais faziam parte da "ordem natural" das coisas. Devido à sua intransigente defesa da dominação das elites, e também por ser um crítico contumaz de qualquer forma de regime socialista, Pareto é apontado como o ideólogo precursor do fascismo. Não obstante, ele nunca aderiu formalmente ao regime fascista italiano. Agora para o entendimento dos enunciados de Mosca, achamos por bem fazer paralelos com o que foi exposto sobre Pareto. 331 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 GAETANO MOSCA: PODER UMA QUESTÃO DE ORGANIZAÇÃO Mosca (1858-1941) conforme dito anteriormente, estabeleceu os pressupostos do elitismo, entendeu que um dos aspectos mais óbvios de todos os organismos políticos: que havia duas classes de pessoas, uma mais e a outra menos numerosa, sendo a primeira dirigida e a segunda dirigente. O que distinguia a minoria da maioria, conferindo-lhe o poder de dirigir, era, inicialmente, a organização. Para ele, o domínio da minoria sobre a maioria é uma constante universal.460 Conforme sua obra La clase política, a chave, para entender esse fenômeno, é que a minoria é organizada, enquanto a maioria, justamente por ser tão numerosa, está fadada à desorganização. Se quiser se organizar, precisará constituir uma minoria dirigente dentro de si. O fato de ser organizada torna, a minoria mais numerosa do que a maioria. Ou seja, o membro da maioria que se insurgir estará sempre isolado contra a classe dirigente, que age em bloco.461 Portanto, ao contrário de Pareto, Mosca não está preocupado em determinar quais são os mais habilidosos ou qualificados. Ele despreza as explicações psicológicas, vinculando o domínio da minoria a uma questão organizativa. O passo seguinte, em sua teoria, é a discussão da legitimação: a minoria se faz passar, diante da maioria, como dotada de certa qualidade superior. Assim, o exercício do poder é justificado em nome de princípios morais universais. Tais princípios mudam historicamente, de acordo com a transformação material na sociedade. Era a valentia, nas sociedades inseguras do passado, quando o gozo da vida e dos bens dependia de força militar própria e os guerreiros governavam. Em 460 461 MOSCA, Gaetano. The Ruling Class. New York: McGraw-Hill, 1939, p.50. MOSCA, Gaetano. La clase política. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p.57-58. 332 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 seguida, com o aumento da produtividade da terra e a redução da insegurança, a base do poder passa a ser a propriedade rural, e assim por diante. Trata-se de uma perspectiva materialista, que, em vez da luta entre leões e raposas, apresenta o conflito contínuo entre antigas fontes de poder, que querem se manter, e novas fontes de poder, que desejam emergir. Introduziu a hereditariedade como um dos elementos destinados ao acesso à classe dirigente. Essa idéia levou-o a sustentar que a classe dirigente não poderia se manter no poder somente na base da força. Ela deveria pautar-se em algum outro princípio, quer fosse ele religioso legal ou moral. Seguindo linha próxima à Pareto, Mosca, portanto, entenderam que na sociedade existem indivíduos mais bens dotados que outros, e que aqueles, por causa de seus atributos, estavam destinados a dirigir a maioria. Mosca deu entrada para uma interpretação não ideológica da teoria das elites, distinguindo duas formas diferentes de formação das classes políticas segundo a qual o poder se transmite por herança, de onde provêm os regimes aristocráticos, ou buscando constantemente realimentar-se das classes inferiores, de onde nascem os regimes democráticos, tratado amplamente nas criticas de Gramsci (1891-1937), no sistema de que ele denomina transformismo: que seria a perda dos lideres (intelectuais) das classes subalternas, quando acabam por aderir a política dominante, para manter-se na sua posição de destaque.462 Como a de seu compatriota, sua teoria também investe contra as "ilusões" do movimento operário, que se propunha reunir a maioria da população e levá-la ao poder. Impossível: “já que a maioria nunca governa, no máximo pode entronizar 462 GRAMSCI, A. Escritos políticos: 1910-1920. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2004. vol. 1. p. 74. 333 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 outra minoria” 463. Como visto, é uma teoria conservadora, pragmática: não adianta tentar mudar o mundo, já que, em sua essência, ele permanece sempre o mesmo. Enquanto Pareto e Mosca não se detinham em casos concretos, fazendo grandes teorizações e depois pinçavam na história os exemplos que julgavam adequados, Michels como veremos: adotava o percurso inverso. ROBERT MICHELS: QUEM DIZ ORGANIZAÇÃO DIZ OLIGARQUIA Já Robert Michels (1876-1936) observa a relação entre a organização e grupo de poder, seja inverso da que foi apontada por Mosca, pois para este doutrinador, a organização é um instrumento para a formação da minoria governante, enquanto que, para Michels, é a mesma organização que tem por conseqüência a formação de um grupo oligárquico. Com base em evidências empíricas demonstrou que mesmo dentro das organizações partidárias que funcionam num sistema político democrático, há fortes tendências à elitização, ou seja, concentração de poder num grupo restrito de pessoas. Michels chamou essa tendência à elitização de "lei de ferro das oligarquias". O núcleo de sua tese é que qualquer tipo de organização caminha para a burocratização. Aqui, ele fica com Mosca: a massa, o grande número, é incapaz de se organizar. Quando resolve fazê-lo, deve fatalmente constituir um pequeno comitê para dirigi-la. Isto é a burocratização: não há mais um movimento espontâneo de massa, e sim algo com uma hierarquia, com regras, com disciplina. 463 MOSCA, Gaetano. La clase política. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p.34-35. 334 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A burocratização assume uma característica especial, que é a oligarquização. Para que a organização aja com eficiência, é necessária a criação de um quadro de funcionários que se dediquem em tempo integral a ela. Ora, essa nova posição funcional gera novos interesses, ligados a ela e diferentes daqueles que a base da organização possui. O operário que se torna um quadro profissional do partido não é mais um operário: é um burocrata ou um líder político. Para os militantes da base, a organização é um meio para alcançar um determinado fim, que, no caso, era a revolução socialista. Para o funcionário, a organização torna-se um fim em si mesma, já que seu ganha-pão está no partido 464. Segundo Michels, isto levaria inexoravelmente ao abandono dos ideais revolucionários. Primeiro, porque seus líderes já alcançaram uma posição privilegiada dentro da sociedade; depois, porque uma tentativa revolucionária poderia causar a dissolução do partido (e a perda do ganha-pão). O poder, diz Michels é sempre conservador. Tal construção teórica, é a "lei de ferro da oligarquia". Segundo ela, toda organização gera uma minoria dirigente, com interesses divergentes dos de sua base. Embora os caminhos traçados sejam diferentes, a conclusão é idêntica à de Mosca: só a minoria pode governar.465 Michels tocou em um ponto crucial para a implementação da democracia, que é a relação entre representantes e representados. Sua teoria é útil para analisar o desgaste atual dos partidos políticos, que pode ser creditado aos vícios que ele descreveu. Experiências organizativas que procuram contornar esses problemas, como a busca da rotatividade e da participação direta. 464 MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Tradução de Arthur Chaudon. Brasília, UnB, 1982, p.223. 465 MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Tradução de Arthur Chaudon. Braília, UnB, 1982, p. 219. 335 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Em sua obra: Sociologia dos Partidos Políticos, Michels confronta o Partido Verde alemão, enquanto ainda uma pequena organização na década de 70, que fez um esforço consciente para evitar a Lei de Ferro da Oligarquia. Qualquer um podia se tornar dirigente. Não havia cargos ou secretários permanentes. Mesmo as menores e mais rotineiras decisões eram levadas à votação. Porém, quando o partido começou a crescer e a necessidade de efetivamente competir em eleições, arrecadar fundos, fazer passeatas e trabalhar com outros partidos uma vez eleito, surgiu, isso fez com que os Verdes usassem estruturas mais convencionais. O que comprovou para Michels: que menor oligarquia gera, também, menor eficiência. Em suma, a aplicação da lei férrea de Michels, feita no interior de partidos ditos revolucionários, se da assim que as direções dos partidos revolucionários, olhando pela sua auto- preservação, tratam de garantir a sua aceitação na vida política (dos outros partidos governistas), afastando-se das vias perseguidas nos primeiros anos de sua historia. Assim passam a se preocupar mais com crescimento do aparelho partidário, reforçando o controle interno, partindo para a burocratização e imobilidade de seus lideres. Michels sublinha o fato de a organização se auto-proteger quando enfrenta um desafio, mas deixa pairar a idéia de que o movimento normal das organizações, na oposição ou no poder, é transformar seus objetivos de classe, o que os levam a muitas das vezes a abandona -los em função de articulações mais vastas e úteis para a própria organização, não mais representando o ímpeto inicial de mudanças, ao quais esse partidos ditos revolucionários são frutos. Tal demonstração empírica de sua lei férrea, no seio destes partidos (sobretudo da Alemanha e também dos italianos e franceses), faz com que o 336 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 sociólogo alemão afirme que nem as sociedade mais modernas e democráticas podem escapar a essa tendência a oligarquia. O que segundo ele, a longo prazo, promoverá a unificação dos pontos de vista e a perda de relevância da diferença de opiniões. E os chefes (lideres dos partidos), que não eram mais que órgãos executivos da vontade coletiva, em breve se tornam independentes das massas, traçando o seu caminho como melhor imaginam. Robert Michels não anula a luta política nas democracias: apenas procura demonstrar que as bandeiras são fictícias (uma escolha entre símbolos propagandeados como opostos), tendendo as oligarquias partidárias a comungar em princípios doutrinais cada vez mais alargados por causa da conquista de camadas cada vez maiores da massa. Portanto, a maior contribuição a teoria das elites formulada por Michels se refere ao fato, inusitado e paradoxal, de que a elitização ocorre até mesmo no interior das organizações comprometidas com os princípios de igualdade e democracia, ou seja, os partidos políticos de massa, sindicatos, corporações e grandes organizações sociais. A chamada “lei de ferro”. Partindo de uma perspectiva puramente política, que é absurdamente amoral por definição, é claro que não há muito que refutar – e de fato, a realidade brasileira atual parece profeticamente imitar a teoria de Michels: basta ver os partidos que vimos nascer, crescer e morrer completamente determinados pela Lei de Ferro. E a mudança social efetiva? Parece realmente não ter havido. CONCLUSÃO 337 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Foram apresentados argumentos a respeito da teoria das elites enquanto precursora da idéia da existência de uma categoria de pessoas, componentes de uma minoria, que, portadoras de atributos que as destacam das maiorias que formam as massas, estariam destinadas ao governo e à liderança de forma natural. Tal teoria, na visão desses autores, versou sobre o entendimento acerca da existência de uma "nata" de pessoas dirigentes, representativas de uma minoria, que estavam, irremediavelmente, destinadas à liderança, em conseqüência de suas aptidões naturais e superiores e, ainda, em conseqüência da incompetência e da apatia das massa. O desafio imposto pelas teorias de Mosca, Pareto e principalmente Michels é que elas são bem fundadas e ainda assim parecemos não estar inclinados a aceitá-las, talvez por algum idealismo remanescente, ou quem sabe por um sentimento verdadeiramente ético. E este problema está na base da noção de ciência aplicada a políticas sociais, já que uma ciência necessariamente trabalha com determinações, e apreciamos pensar o sujeito político como dotado de pelo menos certas liberdades. Se o sujeito político possui ou não liberdade, isso de fato não é um problema da ciência política. Porém fica evidente que nenhuma teoria descritiva será capaz de indicar caminhos possíveis (com qualquer teleologia, moral ou de outro tipo), e viceversa 466 . Talvez seja apenas o caso de que um "revolucionário", seja por tolice ou sabedoria, simplesmente não possa ser um político. Portanto, é no trabalho desses teóricos, onde se encontrou uma abordagem linha-dura que explicava porque a dominação de uma classe sobre outra era inevitável nas sociedades humanas. 466 WEBER, Max. Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva IN: Metodologia das ciências sociais, vol II. Campinas, UNICAMP, 1992. p.22. 338 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Conforme os “novos” maquiavélicos, as democracias modernas devem ser consideradas oligarquias eleitas. Nesses sistemas, as diferenças efetivas entre os rivais políticos são relativamente pequenas e limites estritos são impostos (pela elite oligárquica) sobre o que constitui posições políticas “aceitáveis” ou “respeitáveis”. Além disso, a carreira dos políticos como sabemos depende fortemente das elites econômicas e intelectuais (mídia, etc.) que não foram eleitas. Essencialmente a teoria das minorias governantes ou elitista, evolui gradativamente para uma concepção desigual de sociedade, condizente com uma visão cíclica da história e com uma atitude pessimista e uma incredulidade quase total em relação aos benefícios da democracia, com uma crítica radical do socialismo. Tais interpretações sobre a democracia tendem a ser rebatidas com acusações de que são: derrotistas, uma resposta a isso pode ser retirada das palavras de Schumpeter “A comunicação de que um navio vai a pique nada tem de derrotista. O espírito em que é recebida a comunicação, sim, pode ser classificado com derrotista.” 467 ao rebater criticas a primeira edição de sua obra. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BURNHAM, James. The Machiavellians: defenders of freedom. New York: Freeport, 1970. DAHL, Robert. Analise política moderna. Brasília: UNB, 1982. 467 SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961. p.12. 339 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 FINLEY, M. I. Democracia antiga e moderna. Trad. Waldéa Barcellos, Sandra Bedram. Rio de Janeiro: Graal, 1988. GRAMSCI, A. escritos políticos: 1910-1920. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2004. vol. 1. LIPSET, Seymour. Política e ciências sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Tradução de Arthur Chaudon. Braília, UnB, 1982. MOSCA, Gaetano. La clase política. México: Fondo de Cultura Económica, 1992. _______. The Ruling Class. New York: McGraw-Hill, 1939. PARETO, Vilfredo.1916. Tratado de sociologia geral, in J. A. Rodrigues (org.), Pareto Sociologia. São Paulo, Ática, 1984. _______. Manual de Economia Política. Tradução de João Guilherme Vargas Netto. 2ª ed., São Paulo, Nova Cultural, 1987. SARTORI. Giovanni. A política: lógica e método nas ciências sociais. Brasília: UNB, 1981. SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961. WEBER, Max. Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva IN: Metodologia das ciências sociais, vol II. Campinas, UNICAMP, 1992. 340 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 História em Rodapés: Os folhetins de França Junior. Raquel Barroso Silva* RESUMO: Em suas crônicas França Junior (1838-1890) revelou-se um exímio observador do comportamento político e social da elite urbana da Corte no Rio de Janeiro. Sua sátira muitas vezes se direcionou aos costumes dessas classes privilegiadas, como a importação de hábitos, as eleições, os tipos freqüentadores dos cafés da Rua do Ouvidor, o apadrinhamento político, os casamentos por interesse, os bailes e jantares, entre outros. Isso faz de seus folhetins um fecundo manancial para os historiadores que pretendem se debruçar sobre a sociedade carioca do século XIX. Dessa maneira, minha intenção nesta comunicação é, a partir da análise de seus folhetins, todos publicados nas três últimas décadas do Império Brasileiro, observar elementos da construção da nacionalidade assumida pelos homens de letras do século XIX. PALAVRAS CHAVE: Segundo Império; Folhetim; França Junior ABSTRACT: In his chronicles França Junior (1838-1890) proved to be an expert observer of the political and social behavior of the urban elite of the court in Rio de Janeiro. His satire is often directed to the customs of these privileged classes, such as importing habits, elections, types who frequented the cafes located at Rua do Ouvidor, the political patronage, marriages of interest, the dances and dinners, among others. This makes their chronicles a rich source for historians who want to study the society of Rio de Janeiro in the nineteenth century. Thus, my intention in this communication is based on the analysis * Mestranda em História - UFJF 341 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 of their chronicles, all published in the last three decades of the Brazilian Empire, observe the elements of the construction of nationality. KEY WORDS: Second Empire; chronicles; França Junior Em suas crônicas, França Junior (1838-1890) revelou-se um exímio observador do comportamento político e social da elite urbana, ou burguesa, e até mesmo de parte da aristocracia rural participante dos meios de sociabilidade da Corte no Rio de Janeiro. Sua sátira muitas vezes se direcionou aos costumes dessas classes privilegiadas, como a importação de hábitos e a supervalorização do estrangeiro, a moda afrancesada, as eleições, os tipos freqüentadores dos cafés da Rua do Ouvidor, o apadrinhamento político, os casamentos por interesse, os bailes e jantares, entre outros. Isso faz de seus folhetins um fecundo manancial para os historiadores que pretendem se debruçar sobre a sociedade do século XIX. Dessa maneira, minha intenção nesta comunicação é, a partir da análise de seus folhetins, todos publicados nas três últimas décadas do Império Brasileiro, observar elementos da construção da nacionalidade assumida pelos homens de letras do século XIX. Em artigo publicado em janeiro de 1868, França Junior registrou qual era sua concepção de folhetim: O Folhetim é um verdadeiro salão de baile; “entra-se nele sem se saber o que se vai dizer”. Ou antes, para me servir de uma imagem que está mais à mão, é uma pasta de governo progressista, que o ministro ainda imberbe aceita ignorando o que vai fazer468. A partir das duas metáforas que o autor utiliza para definir o folhetim a passagem revela idéias que vão guiá-lo em seus escritos. A primeira é de que o folhetim é algo despretensioso, leve, com uma função menos informativa e mais de entretenimento ou 468468 FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.154. 342 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 diversão do leitor ou leitora - a quem muitas vezes se remeteu diretamente. A segunda, um tanto contraditória em relação à primeira é a utilização desses escritos como veículo de crítica política. Ou seja, como uma maneira de intervir nos debates políticos de seu tempo. Nascido na imprensa francesa, o folhetim apareceu pela primeira vez no Rio de Janeiro em 1836, sendo denominado como tal dois anos depois quando ganha os rodapés do Jornal do Comércio. Seu surgimento esteve ligado a difusão do hábito da leitura numa pretensa sociedade moderna, através de um texto que visava, o entretenimento do(a) leitor(a). Como ressaltou Marlyse Meyer, mesmo numa sociedade de maioria analfabeta as leituras em voz alta despertavam aos poucos e em um público crescente o gosto pela literatura469. Estudando a participação do folhetim e da imprensa na conformação de uma esfera pública no Rio de Janeiro do século XIX, Jefferson Cano observou que não demorou muito para o folhetim cair no gosto do público, o que contribuiu para um aumento do faturamento dos jornais da Corte no período, devido ao grande aumento de suas tiragens. Desferindo um julgamento estético sobre este tipo de literatura, seus pais franceses consideraram-no parte de uma“literatura industrial”, cuja qualidade menor decorria de sua regularidade e, relativamente ampla, produção. Contudo, no que tange a crítica lierária, basta lembrar que no Brasil, os grandes romances do século XIX foram publicados inicialmente em formato de folhetins470. Ao menos no que concerne ao trabalho do historiador, o que nos chama a atenção é justamente este caráter “industrial” que nos sugere que as crônicas e romances publicados nos rodapés dos jornais brasileiros – da Corte em especial – tenham sido largamente responsáveis pelo forjamento de nossa “nação imaginada” e da retórica que a confirma e a 469 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma História. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. CANO, Jefferson. Folhetim: Literatura, Imprensa e a conformação de uma esfera pública no Rio de Janeiro do século XIX. Disponível em:< http://www.ifcs.ufrj.br/~nusc/cano.pdf >. Acesso em: 27/10/2009. 470 343 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 recria, conforme a tese de Benedict Anderson, segundo a qual o advento da imprensa capitalista é fundamental para explicar o surgimento da nação moderna471. Além do romances em folhetim e dos romance-folhetins também eram publicados no mesmo formato um tipo de artigo mais parecido com a crônica atual. Era um misto de “jornalismo e literatura de ficção, que serviu de espaço tanto para devaneios, entretenimento, crítica teatral, exercícios de estilo, como para, no caso de França Junior, José de Alencar, Machado de Assis e outros, falar de política, sociedade e costumes”472. Este tipo de folhetim foi caracterizado em seu tempo como um gênero leve e sem pretensão à perenidade. Ou como o definiu França Junior “um verdadeiro salão de baile” onde “entra-se (...) sem se saber o que se vai dizer”. Em 1875, José de Alencar já alertava que essa despretensão era apenas aparente: “É uma arte difícil essa, de dizer tudo, não dizendo nada”. Diferentemente dos romances, que falam a todas as épocas, seu assuntos são mais específicos da sua contemporaneidade. A leitura dos mesmos remete a uma “cumplicidade construída entre autor e público”, uma nescessidade de articulação dos mesmos símbolos a fim de viabilizar a comunicação entre ambos. Disso decorre uma certa dificuldade de sua compreensão a posteriori473. Na crítica política embutida na segunda metáfora que França Junior utiliza para definir o folhetim, “é uma pasta de governo progressista, que o ministro ainda imberbe aceita ignorando o que vai fazer”, percebemos esta tentativa de intervenção na realidade. 471 ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo Companhia das Letras, 2008. 472 FREITAS, Luiz Eduardo Viveiros de. Folhetins e Máscaras: a obra de França Júnior. PUC/SP. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais. 473 CHAULHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (orgs). História em cousas miúdas. Capítulos de história Social da crônica no Brasil. Campinas, Ed. da Unicamp, 2005. 344 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Essa característica dialógica, apesar de mais evidente nos folhetins, não esteve ausente das demais formas de literatura do período. As divergências teóricas, ideológicas e, até estéticas, que se apresentavam entre os letrados do Segundo Reinado tiveram como campo de batalha principal, além da tribuna e palcos, os jornais. Foi, principalmente, através de seus folhetins regulares para a imprensa que esses homens exerceram sua política. E foi a partir de seus desempenhos teórico e argumentativo nessas batalhas, nas quais utilizavam como arma a pena, que eles adquiriram adeptos para as suas idéias, formando, e ao mesmo tempo servindo de caixa de ressonância, da opinião pública. Como destacou Norbert Elias: “Nenhuma pessoa isolada, por maior que seja sua estatura, poderosa sua vontade, penetrante sua inteligência, consegue transgredir as leis autônomas da rede humana da qual provêm seus atos e para qual eles são dirigidos” 474 . Um indivíduo não pode transformar a sociedade sozinho e nem rapidamente, mas sua posição pode determinar uma margem de decisão maior ou menor sobre essas transformações. O letrado, detentor/manipulador da opinião pública possuía como poucos o poder de influenciar nas transformações em curso na sociedade brasileira da segunda metade do século XIX. França Junior tal como os demais, utilizou sua crônica como instrumento, ou arma, na participação nestes debates. Conforme destacou Alexandre Lazzari ao estudar Afonso Arinos de Melo Franco, literato contemporâneo a França Junior: Tendo vivido em uma época de intensa elaboração e de polêmica a respeito da identidade nacional entre a elite de literatos e bacharéis do final do século XIX no Brasil, seus pontos de vista representavam uma das vertentes de intensos debates e antagonismos em torno de temas como raça e nação, tradição e progresso, nacionalismo e cosmopolitismo475. 474 ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. p. 201. LAZZARI, Alexandre. O buriti solitário e outras invenções: história, lugares e memórias da nação de Afonso Arinos de Melo Franco (1868-1916). (mimeo) 475 345 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 As mesmas considerações poderiam ser feitas a respeito de França Junior.O que mostra que o autor estava imerso neste mesmo meio literário, compartilhando deste ambiente cultural na segunda metade do século XIX. Ao terminar a faculdade de direito em São Paulo e transferir-se novamente para o Rio de Janeiro, França Junior trabalhou na redação do Bazar Volante, e iniciou sua carreira como folhetinista no lugar de Ferreira de Meneses no jornal Correio Mercantil476 no qual permaneceu até 1868. Adotara a essa época o pseudônimo Osíris, “metáfora da dispersão, da fragmentação”477 como os artigos que pretendia escrever. Depois de quase dez anos envolvido em outras atividades começou a escrever para a Gazeta de Notícias, e foi correspondente deste jornal em Paris por ocasião da exposição de arte em 1878. Colaborou ainda com outros jornais cariocas como, O Globo Ilustrado (1881-1882), O Paiz (a partir de 1885478) e Vida Fluminense, do qual ainda pouco sabemos e respeito de sua participação. Seus folhetins escritos para o jornal Correio Mercantil entre 29 abril de 1867 a 26 de julho de 1868, coincidem com o período em que esteve em vigor o terceiro gabinete presidido por Zacarias de Góis e Vasconcelos principal alvo das críticas do folhetinista, já que o Mercantil era, à época, um jornal conservador, descrito por ele próprio como órgão genuíno deste partido. O folhetinista lançou mão de críticas e ofensas de todos os tipos para enfatizar os defeitos de seus adversários políticos. Praticamente todos os folhetins publicados fazem referência ao gabinete, aos progressistas ou aos liberais. Eram raros os momentos em que França Junior se comportava como o que ele mesmo havia considerado 476 Seus folhetins publicados no Correio Mercantil durante os anos de 1867 e 1868 foram reunidos em JUNIOR, França. Política e Costumes: Folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. 477 FREITAS, Luiz Eduardo Viveiros de. Folhetins e Máscaras: a obra de França Júnior. PUC/SP. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais. 478 FREITAS, Luiz Eduardo Viveiros de. op.cit. 346 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 “um folhetinista de regra”, aquele que deveria ocupar-se de acontecimentos sociais, bailes, teatro e corridas de cavalo. Como uma maneira de justificar a política como alvo constante de seus escritos o autor reclamava não haver outros assuntos interessantes naquela “quadra”, por isso só o resta a presença diária na câmara dos deputados. “Sendo embora uma distração ilícita e nociva, habituei-me a ela como ao charuto”. Os ministros foram seus personagens constantes. Nesta série, os governantes são tratados por várias expressões irônicas e satíricas como: os sete pecados capitais; os deuses do Olimpo brasileiro; sete figuras sinistras; família composta de sete membros e diversos agregados; sete pica-paus; sete gatos, entre outras. Ao chefe do gabinete referia-se, ironicamente, como “o Guizot brasileiro”. França Junior parece ter tomado para si a tarefa de relatar o período para a posteridade. Mais de uma vez revelou, sempre com ironia, estar prestando um serviço para a história de seu país através de seus comentários satíricos dos acontecimentos de sua contemporaneidade: Nos meus folhetins está a crônica da fase mais brilhante do progressismo. (...)Cada um carrega como pode a sua pedra para o edifício da pátria. Homero e Virgílio cantaram os seus heróis em versos. Eu canto em prosa os feitos do meu tempo. 479 A Guerra do Paraguai (1865- 1870), como não poderia deixar de ser, foi tema constante de seus comentários, que variaram entre elogios e críticas. Como patriota e conservador defendeu e louvou as vitórias da Guerra e seus heróis e, por outro lado, lançava criticas ferinas às decisões e omissões do gabinete frente ao conflito. Para ele o aumento dos impostos, que o ministério justificava como decorrente dos gastos com a Guerra era na verdade fruto da má administração “de um ministério à cuja frente está uma 479 FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Um relatório Tipo. In: Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.128. 347 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 capacidade financeira” (Rio, 6 de outubro de 1867) e por isso deveria contribuir para a resolução do problema. Também se opôs ao recrutamento de negros, que muitas vezes eram oferecidos como voluntários da pátria por seus senhores que em troca recebiam honrarias e condecorações. Em 6 de outubro de 1867, constata: “um escravo começou a valer um hábito da Rosa, quatro a comenda da dita e assim sucessivamente (...)”, em 3 novembro do mesmo ano volta a tocar no assunto de que os progressistas “mandam negros para a guerra” em 19 de janeiro do ano seguinte vai ainda mais longe: Outrora um hábito de qualquer ordem simbolizava em uma farda um feito de heroísmo, em uma casaca, um título nobre de serviços. Presentemente as condecorações já não honram ninguém. Quem for vaidoso e quiser se desfazer de um negro capenga... Para que repetir o que todos já sabem? 480 A crise político-econômica decorrente da Guerra e de “outros contratempos que afetavam o bom desempenho da economia, a exemplo do aumento das importações e da queda acentuada do preço do café no mercado externo” 481 culminou na dissolução da câmara e na exoneração do ministério Zacarias. Apesar de publicamente o ministério declarar apoio ao comandante-chefe das tropas Paraguaias, o Marquês de Caxias, era sabido que, na verdade, as divergências partidárias entre este e o general conservador nunca deixaram de existir. Elemento chave para o desencadeamento desta desinteligência entre o Marquês e o ministério foi a publicação de um artigo na Anglo Brasilian Times pelo inglês Wiliam Scully culpando Caxias pela onerosa e demorada batalha em que a Guerra havia se transformado. Como o periódico era subsidiado pelo governo, este foi imediatamente responsabilizado pelo conteúdo do artigo. O fato serviu como gota d’água 480 FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.161. 481 VAINFAS, Ronaldo (org.) Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. pp.724-5. 348 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 para o Marquês, que pediu sua substituição no comando das tropas brasileiras alegando problemas de saúde. França Junior vai lembrar do fato em 2 de fevereiro de 1868 ao dar provas aos leitores de que estavam vivendo no “reinado dos disparates”: Instado pelas folhas de oposição a declarar se aquele jornal [o Anglo Brasilian Times] era subvencionado pelos cofres públicos, o Sr. Zacarias mandou escrever no Diário Oficial que o Sr. Scully tinha, é verdade uma subvenção, mas tão somente para ‘proteger os interesses da imigração no estrangeiro’. E então? O governo quer chamar emigrantes ao seio do país, e é o próprio a desmoralizar a idéia, afirmando que paga um jornal para advogar seus interesses. Que importância podem receber os artigos do Sr. Scully, á vistas de uma tal declaração?482 Quando a notícia da vitória na, até então considerada invencível, passagem de Humaitá chegou ao Rio de Janeiro, França Junior escreveu um folhetim intitulado A passagem de Humaitá dando vivas aos heróis da pátria: “Viva a nação brasileira! Viva Sua Majestade o Imperador! Viva o Marquês de Caxias! Viva o Barão de Inhaúma! Vivam o exército e a armada!” (Rio, 3 de março de 1868). Na semana seguinte irá voltar ao tema descrevendo o “regozijo que tem se apoderado” da população carioca desde que recebeu a notícia “do brilhante triunfo de 19 de fevereiro” e da “terrível dor de dente” com que “alguns”, leia-se os progressistas, receberam-na. Além disso, faz uma irônica retratação quanto aos “vivas” que dera ao fim do folhetim anterior: “As glórias do acabamento “honroso” da guerra não pertencem àqueles supostos heróis, mas sim ao imortal e benemérito gabinete de 3 de agosto. Viva o invicto gabinete de 3 de agosto!!”. Com extrema ironia irá registrar a “fundamental” participação de cada ministro na vitória de Humaitá. Destacando a participação do então ministro da guerra João Lustosa da Cunha Paranaguá pergunta: “Pode por ventura alguém contestar que o acabamento da guerra não 482 FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.166. 349 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 seja devido ao – recrutamento dos negros-minas, o feito mais brilhante do tino administrativo daquele distinto estadista?” (Rio, 15 de março de 1868). Com o advento do ministério conservador no dia 16 de julho o segundo qüinqüênio liberal (ou liberal-progressista) havia chegado ao fim. No folhetim publicado quatro dias depois, a mudança de temática a que o autor se submete é notória. A primeira parte deste folhetim intitula-se “novos horizontes”. Afastemos por um momento as vistas do quadro da política. Novos horizontes se rasgam para o Brasil. No fundo daquele painel que ainda ontem nos amedrontava com as cores mais negras, brilha felizmente o arco íris, percussor da bonança. A política já não nos causa receio. Nas ameias da pátria está içada a bandeira da ordem; o sistema representativo vai entrar em seus eixos, sobre a liberdade individual já não pesam os caprichos do arbítrio. (...) O folhetinista, mais do que ninguém, deve ocupar o espírito com as diversões; hoje aqui amanhã ali, vive de episódios (...) Se até aqui nos preocupava a mente uma idéia fixa, não trepidamos em prometer ao leitor que doravante havemos de ser um folhetinista em regra. 483 Aqui o autor retorna as duas idéias as quais foram destacadas no inicio desta seção; o ataque aos inimigos políticos e a concepção do folhetim como um texto destinado ao entretenimento do leitor(a). Prometendo cessar com as críticas políticas, seus folhetins a partir de então deverão tratar de assuntos mais amenos, visando “ocupar o espírito com diversões”. Com os conservadores no poder ele acredita poder abandonar o que ele mesmo se referiu como uma “idéia fixa” e se destinar aos assuntos que “realmente” interessam ao leitor(a) como “o baile da véspera, o acontecimento mais importante da semana, os dramas que andam em voga nos teatros, a cantora que aportar às nossas plagas, o livro que vir á luz da publicidade”. 483 FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. p.277. 350 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Sua contribuição para a Gazzeta de Notícias, quase dez anos depois de haver contribuído para o Correio Mercantil, realmente caracterizou-se por um tom mais leve, mais de acordo com o que ele considerava ser o papel do folhetinista. Nesta série, o caráter direto e ofensivo que demonstrara antes não está tão presente, os textos, em sua maioria, são destinados a descrição satírica dos costumes da burguesia carioca. A leitura de alguns títulos publicados neste período revela um espírito moralizador, elitista e urbano. Alguns exemplos são: Bailes, Jantares, Visitas, O Namoro, Casamentos, Dilettanti, Os recitativos, O cassino de Petrópolis, As nossas filhas484. Em Visitas, assinala: “É na classe média, em que figura a nossa boa burguesia, que as visitas devem ser estudadas” 485 . E a partir da leitura dos demais folhetins podemos observar que o namoro, o casamento, os jantares e etc., também foram “estudados” a partir da mesma perspectiva. A burguesia parece ter sido a matéria prima e destino final de seus escritos, nesta série em especial. A repetição de idéias e até de folhetins inteiros que já haviam sido publicados rendeu-lhe muitas críticas por parte de alguns colegas de profissão que escreviam no Besouro e na Revista Illustrada. Outro fator que foi motivo de muito chiste foi que seus folhetins, enviados de Paris quando lá esteve, por ocasião da exposição de arte, tratavam de piqueniques, feijoadas e outros assuntos tipicamente brasileiros. O que foi, literalmente, um prato cheio para seus críticos que o alfinetavam com comentários do tipo: “Não é exacto, como espalha a Gazeta, que o França Junior esteja em Paris. Sabemos de fonte limpa que o autor das Feijoadas está bem perto de nós, em Guaratinguetá. E senão leiam os seus folhetins”486. Em outro número da Revista é simulado um encontro de França Junior com o editor do Figaro (periódico parisiense) “- Eu sou o França Junior, folhetinista da 484 FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Folhetins: Publicados na Gazeta de Notícias. 3.ed. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Ribeiro dos Santos, 1915. 485 Idem. Ibidem, p.49. 486 Revista Illustrada. Ano 3 - 21 de Julho de 1878 – n°121 {1}.Biblioteca Pública do Estado do Rio de Janeiro – Acervo digital – Periódicos. 351 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Gazeta, autor das Feijoadas e vim a Paris para não escrever cousa alguma sobre a exposição...”487. Prometendo várias vezes não falar de política para não entediar a leitora, perpassava pelo tema de maneira indireta. Como podemos observar em Mudanças, que inícia-se com o aviso: É de mudanças de casas e não de mudanças ministeriaes que vamos nos occupar. Fazemos desde já esta observação, afim de que os leitores e sobretudo as leitoras, para quem especialmente escrevemos, não atirem a Gazeta, para um lado, e exclamem: -Ora esta, temos política!488 Sempre prevendo uma reação negativa caso entrasse neste assunto ele inicia o folhetim A República dando voz a um leitor imaginário que repugna assuntos políticos. E, assim como em Mudanças, o folhetinista irá, antes de entrar no assunto a que se destina naquele dia, fazer uma introdução onde suas opiniões políticas são expostas. Porque chamam república o lar escolástico? Será porque a desordem, entrando pela porta da rua, alli se installa com todo o seu cortejo de extravagâncias e excentricidades, desde a sala, (...) até a cosinha (...)? Será porque alli não há meu nem teu? Será porque... Com os diabos, lá ia eu escorregando para a maldita política.489 Apesar de tranquilizar o leitor dizendo que irá falar de república como “a casa do estudante”, simula ser traído pelo hábito e deixa registrada sua opinião a respeito deste sistema político que cada vez mais se aproximava do único Império das Américas. Os Folhetins publicados no O Globo Ilustrado (1881-1882) receberam a designação de Notas de um Vadio. Nesta série França Junior não escrevia em seu nome e prometeu 487 Revista Illustrada. Ano 3 -17 de agosto de 1878 - n°125. Idem. FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Folhetins: Publicados na Gazeta de Notícias. 3.ed. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Ribeiro dos Santos, 1915. p.63 489 Idem. Ibidem, p.199. 488 352 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 publicava as notas que tinha em seu poder “tais quais” havia recebido. Em O Paiz , para o qual contribuiu a partir de 1885490 sua contribuição foi maior. Sessenta e cinco de seus Echos Fluminenses foram recolhidos e publicados por Alfredo Mariano de Oliveira para a quarta edição ampliada de Folhetins. Nestes o tom cômico e satírico de seus folhetins anteriores perderam-se em grande parte. Em algumas passagens sente-se a falta de assunto (“Perguntar ao desgraçado Sizypho moderno, chamado jornalista, si quer um assunto é o mesmo que perguntar ao pobre: - Queres uma esmola?”) ou até mesmo as restrições de quem deveria escrever para agradar a todos (“não podemos externar com franqueza certos pensamentos, sem ferir suscetibilidades e incorrer em desagrado” 491) isso, de maneira bem mais intensa que nos outros jornais. Também fez sentir um tom melancólico em relação a própria vida, principalmente pelo fato de não ter tido filhos e em relação a um passado mais glorioso. Características que se tornam compreensíveis quando pensamos esses anos como anos em que tudo que ele sempre havia defendido, como o sistema monarquista e a cultura conservadora, estava sendo destruído pelo progresso e pela força irreversível que o movimento abolicionista e republicano havia ganhado então492. A partir desta pequena análise não pretendo reivindicar a elevação do nome de França Junior para a lista dos grandes literatos do século XIX como Machado de Assis e José de Alencar. Para o historiador esta análise literária tem valor secundário, pois o que buscamos (a história) pode ser encontrado no mais brilhante romance ou no mais corriqueiro folhetim. Posicionando-se abertamente a respeito das principais questões que emergiram na segunda metade do século XIX, França Junior, assim como outros letrados de seu tempo, fez da realidade “a uma só vez, a sua matéria prima e horizonte de 490 FREITAS, Luiz Eduardo Viveiros de. op.cit. FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Folhetins. 4.ed. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Ribeiro dos Santos, 1926. 492 MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editor FGV: Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Edur), 2007. 491 353 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 intervenção”493. Essa atitude nos permite utilizar seus folhetins como importante fonte histórica para a compreensão da cultura letrada no segundo império. BIBLIOGRAFIA ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo Companhia das Letras, 2008. CANO, Jefferson. Folhetim: Literatura, Imprensa e a conformação de uma esfera pública do Rio de Janeiro do século XIX. Disponível em: <http://www.ifcs.ufrj.br/~nusc/cano.pdf>. Acesso em: 27/10/2009. CHAULHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (orgs). História em cousas miúdas. Capítulos de história Social da crônica no Brasil. Campinas, Ed. da Unicamp, 2005. ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Folhetins. 4.ed. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Ribeiro dos Santos, 1926. ______. Folhetins: Publicados na Gazeta de Notícias. 3.ed. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Ribeiro dos Santos, 1915. ______. Política e Costumes: folhetins esquecidos (1867-1868) Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira S/A, 1957. FREITAS, Luiz Eduardo Viveiros de. Folhetins e Máscaras: a obra de França Júnior. PUC/SP. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais, 2001. MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editor FGV: Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Edur), 2007. 493 CHAULHOUB, Sidney; op.cit. 354 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma História. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. VAINFAS, Ronaldo (org.) Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. 355 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Cataguás: historiografia e imaginário social494 Renata Silva Fernandes495 RESUMO: De modo geral, a história mineira é apresentada por meio de conceitos e idéias gerais pré-estabelecidos, reduzida na maioria dos casos aos movimentos políticos e econômicos. Neste discurso os indígenas que habitavam a região quase nunca são referenciados ou eleitos como sujeitos ativos que integram a história. Refutando estas abordagens, no presente trabalho, apresentaremos os resultados preliminares da pesquisa, cujo eixo principal, se volta para um determinado grupo indígena - os Cataguá. Este grupo teria habitado o Sul, Oeste e Centro Oeste mineiro sendo apontado como aquele que mais incutira terror aos bandeirantes paulistas. Nosso objetivo consistiu em confrontar fontes variadas com o intuito de verificar a existência de grupos Cataguá. PALAVRAS-CHAVE: Cataguás; Minas Gerais; Imaginário Social ABSTRACT: In general, the Minas Gerais history is presented through concepts and general pre-determined ideas reduced in most cases to political and economical movements. In this discourse, the indigenous people who inhabited the region are almost never referenced or elected as active subjects that integrate, interact and constitute the history. Rejecting these approaches, in this paper, we present the preliminary results of the study, whose major axis, turns to a particular indigenous group - the Cataguá. This group would have inhabited the South, West and Midwest Minas Gerais, being hailed as the one 494 Trabalho de pesquisa elaborado sob orientação da Profª. Drª. Ana Paula de Paula Loures de Oliveira no âmbito dos projetos do Museu de Arqueologia e Etnologia Americana da Universidade Federal de Juiz de Fora. 495 Graduanda do curso de história da Universidade Federal de Juiz de Fora e estagiária do MAEA-UFJF (email: [email protected]) 356 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 who instilled more terror to the Paulist. Our objective consisted to compare various sources in order to verify the existence of groups Cataguá. KEY-WORKS: Cataguás; Minas Gerais; Social Imaginary INTRODUÇÃO Durante a colonização do Brasil não foram poucas as incursões realizadas ao território mineiro. Bandeiras oriundas da Bahia, do Espírito Santo e de São Paulo adentravam os sertões em busca de terras e metais preciosos. Quando esses desbravadores passavam pela região, esta não estava despovoada e , ao contrario, era habitada por variados grupos indígenas que possuíam costumes, línguas e tradições diversas. Além da busca por metais e terras estava também a captura de indígenas, que quando não escravizados, tinham suas terras doadas a outrem. Assim, estas bandeiras foram determinantes para o “desbravamento” e povoação de Minas Gerais, e não menos responsáveis pela “dizimação” de diversos grupos indígenas (Resende, 2003). Ainda de acordo com Resende (2003), ao longo do século XVII e início do século XVIII, pode-se considerar que o contingente de desbravadores saídos de São Paulo conhecia de forma mais intensa a região Sul e Centro Oeste do atual estado de Minas Gerais. Também durante tal período, estes sertões eram conhecidos pela toponímia Minas Gerais dos Cataguás. Esta denominação desperta indagações acerca de sua origem: seria Cataguás um grupo étnico que habitava essa região ou apenas uma denominação genérica diante o desconhecido a frente dos bandeirantes que desbravaram essas paragens? HISTORIOGRAFIA TRADICIONAL 357 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Inicialmente vale explicitar que estamos reconhecendo enquanto historiografia tradicional aqueles trabalhos que são referenciados como pioneiros sobre a história dos indígenas de Minas Gerais. Estes trabalhos foram produzidos quando a escrita da história era bem diversa, mesmo diante a diferença temporal existente entre as obras. Os pioneiros da temática que tratamos- Nelson de Senna e Diogo Vasconcelos estiveram ligados ao Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB) em seus primórdios, o que torna como características de suas obras o teor regional / local. Como observa Martins (2009) neste período, fim do século XIX e início do século XX, no qual as pesquisas foram produzidas, no Brasil ainda não havia sido construído um ambiente “propriamente acadêmico”, e as corografias eram as publicações mais freqüentes. Estas corografias, “estudos geográficos de um país ou de uma de suas regiões associados a fatos históricos”, muitas vezes são caracterizadas, de acordo com Martins (2009), pelo emprego de informações orais advindas de “testemunhas” ou originários da tradição coletiva. Esta adoção de relatos orais como fontes atualmente vem ganhado espaço nas pesquisas históricas através da história oral. Entretanto a história oral quando utilizada como fonte envolve uma gama de pressupostos, não correspondendo assim à simples coleta de depoimentos, tal como ocorre nas corografias. Durante a revisão bibliográfica atentamos para a aceitação generalizada por parte dos autores representantes da historiografia tradicional dos quais as obras foram consultadas, Senna (1843), José (1965), Vasconcelos (1999), Barbosa (1979), acerca da existência dos Cataguás enquanto grupo étnico. Barbosa (1979), por exemplo, apenas aceita a existência do referido grupo indígena, sem maiores referências, através de afirmações como: “Ali o nome [Minas Gerais dos Cataguás] se justificava: o Sul de Minas, zona limítrofe de São Paulo, fora o domínio dos índios Cataguá” (Barbosa, 1979, p.35). Já 358 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 José (1965), Senna (1843) e Vasconcelos (1999), dedicam alguns parágrafos de suas pesquisas a tal grupo apesar das divergências quanto ao conteúdo do discurso. Para Senna (1843) os Cataguás eram “terríveis índios da região Centro, Oeste e Sul de Minas”. Descendentes dos Tremembés, o grupo teria saído do Jaguaribe em direção aos Vales do Alto São Francisco e Rio Paranaíba. Para os Cataguás (gente boa) os paulistas e os índios de além Mantiqueira eram a “gente ruim” (os Pixi-auás). Os sertanistas, com auxílio dos Tremembé, no século XVII, repeliram os Cataguás do Sul (Sapucaí e Rio Grande) para o Oeste (Rio das Mortes, Piumhy, Tamanduá e Abaeté). Ainda segundo Senna, a memória “desses belicosos índios” é guardada por dois topônimos: o da cidade de Cataguases, na Zona da Mata Mineira e o de um vilarejo no município de Prados, conhecido como Catauá, visto que tal grupo foi “completamente batido” por Lourenço Castanho Taques. Barbosa (1979) discorda da informação referente à Cataguases. Para ele, o nome original desta cidade mineira era Meia Pataca, e não há nenhuma relação entre o topônimo e os Cataguás, mesmo porque este grupo se situava em uma região bem diversa da qual está à cidade. Tal nome teria sido colocado quando o arraial foi elevado à vila, e por influência do Coronel José Vieira, a toponímia foi determinada por fazê-lo lembrar da infância, quando morava perto de uma localidade chamada Cataguás. Vasconcelos (1999) é de opinião semelhante. De acordo com este autor os Tremembés, saídos do Jaguaribe, se dividiram em dois seguimentos: uma parte do grupo subiu o São Francisco até as suas nascentes e a outra percorreu o Parnaíba, ambas encontrando-se no vale do Rio Grande. As duas levas lutaram entre si pelo domínio do território e a posse foi decidida nas proximidades do Rio Sapucaí. Os derrotados transpuseram a Serra da Mantiqueira, instalando-se nos arredores de Taubaté e os vencedores permaneceram no território conquistado, espalhando-se até o Rio das Mortes. 359 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Na guerra eles chamavam a seus inimigos de pixaiauá (gente ruim) e a si mesmos de Cataguá (gente boa). Aqueles, que haviam sido derrotados, se aliaram a bandeira de Felix Jaques, repelindo seus inimigos para Pium-í e Tamanduá. Mais tarde, os Cataguás foram definitivamente derrotados e massacrados pela bandeira de Lourenço Castanho Taques, em 1675, sendo que o lugar onde foi travada a luta ficou conhecido como Conquista. Derrotados ou já miscigenados, os Cataguás debandaram em outras hordas. José (1965) adota perspectiva semelhante. A única variação considerada significativa é que segundo este autor os Cataguás não eram descendentes dos Tremembés e sim foram expulsos da região de Jaguaribe pelos mesmos. Podemos observar através deste recorte algumas informações fornecidas possuem coerência. Revisando, alguns pontos parecem ser cruciais nestas abordagens: a) em todas são estabelecidas analogias entre os indígenas Cataguás e os Tremembés; b) em relação à geografia, o Rio São Francisco, o Rio Grande e o Rio Sapucaí são sempre citados; c) uma possível briga interna do grupo sempre é mencionada; d) comumente o bandeirante paulista Lourenço Castanho Taques é apontado como aquele que “derrotou definitivamente” os indígenas Cataguás. Com vistas à compreensão de alguns destes elementos individualmente – os Tremembés e a bandeira de Lourenço Castanho Taques vale explicitar o que frequentemente é narrado sobre eles. De acordo com Gomes et al. (2000), o nome Tremembé parece ter sido dado a este grupo indígena pelos portugueses devido aos locais que habitavam, conhecidos como “tremedais”, “tremembés” e “tramembés” – equivalentes a pântanos. Para Pompeu Sobrinho (1951) os Tremembés eram caçadores e pescadores nômades, que vagavam em pequenos grupos abrigando-se em choupanas simples e pouco elaboradas. Ainda segundo Gomes et al. (2000), estudos lingüísticos concluíram que a língua dos Tremembés era autônoma, ou seja, sem possibilidade de enquadramento em uma das famílias e/ou troncos 360 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 lingüísticos conhecidos. Resende (2003) discorda desta posição afirmando que os Tremembés pertenciam à família lingüística dos cariris, grandes inimigos dos tupis. Quanto à bandeira de Lourenço Castanho Taques, comumente é narrado que adentrou o território mineiro e consolidou os caminhos para as Gerais em 1668. Segundo Villanueva496 o sucesso desta bandeira se deveu a derrota imposta aos índios ‘cataquazes e araxás’. Vasconcelos (1999) é de mesma opinião e afirma que: “A glória de Castanho foi, sem a menor dúvida, o aniquilamento dos Cataguás...”. (Vasconcelos, 1999, p.96) De todo modo, esta análise, apesar das especificidades, nos indica dois caminhos possíveis: estes autores se basearam nas mesmas fontes, porém as interpretaram de forma diversa, o que parece pouco provável visto a ausência de indicação das mesmas, ou, todos seguiram os passos de um autor, neste caso Senna (1843), modificando aquilo que lhes convinha ou acrescentando dados de acordo com outras fontes. Adotando-se esta segunda perspectiva, as narrativas não deixam de ser relevantes, tendo em vista que estas pesquisas foram produzidas em determinado contexto e aceitas por seus contemporâneos. A recepção da informação, ou mesmo, o fato de que quem as escreveu acreditar em sua veracidade já é significativo para a história, neste caso mais especificamente, para a história das ideologias. ABORDAGENS RECENTES Ao contrário do que observamos em relação à historiografia tradicional, pesquisas recentes vêm polemizando e colocando em dúvida a existência da Nação Cataguá. Isto decorre principalmente do fato de que autores (Vasconcelos, Senna e Barbosa) 496 http://www.ifch.unicamp.br/ciec/revista/artigos/dossie5.pdf (25/08/09) 361 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 considerados como principais referências acerca de tal grupo, não citam as fontes primárias nas quais se apoiaram. Tomaremos como exemplo o trabalho Arqueologia Regional da Província Cárstica do São Fancisco de Henriques (2006). Antes de adentramos nos pressupostos estabelecidos por esse pesquisador, cabe destacar que muitas de suas idéias já eram defendidas por autores como Taunay (1948). Henriques (2006) afirma que algumas hipóteses associam erroneamente os indígenas Cataguás as culturas ceramistas UNA e ARATU/SAPUCAÍ, pois, no encalço de Senna (1843) e Vasconcelos (1999), os Cataguás, nestes casos, são referenciados como grupo étno-histórico. Para Henriques (2006), os bandeirantes paulistas, que não raramente eram fluentes na língua tupi, utilizavam o termo Cataguá para designar os grupos indígenas que não habitavam as florestas. Desta forma Cataguá significa aquele que vive no mato - caá (campo, mato ou árvore); tã (duro ou bruto) e guá (vale). Seria a denominação genérica para os grupos indígenas que habitavam o atual território mineiro. As hipóteses que fazem a associação entre os indígenas Cataguás e as culturas ceramistas UNA e ARATU/SAPUCAÍ são encontradas nos trabalhos de Prous e Dias Jr. Prous (1992). Prous (1991), apresentando o sítio da fazenda São Geraldo, no município de Ibiá, Minas Gerais, informa que a cerâmica encontrada inclui urnas globulares de superfície áspera, com a boca circundada por uma incisão, e urnas intermediárias, reservadas provavelmente a sepultamentos de crianças. O material lítico por sua vez, é formado por lascas e pequenos blocos, além de alguns machados. Neste sítio, há coexistência de cerâmica SAPUCAÍ com vasilhames assemelham-se com os da tradição UNA. Sobre este aspecto comenta que Dias Jr., fez observações semelhantes: falou na reunião em Goiás que o material da tradição Sapucaí apresentava características por vezes mais próximas da tradição 362 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 UNA do que da ARATU, da Bahia; no entanto não se estendeu em pormenores sobre esse assunto. Esses sítios da região sudoeste mineira costumam ser atribuídos aos Cataguás, que resistiram demoradamente aos invasores brancos, mas não chegaram a ser estudados. (Prous, 1991, p. 352) Portanto, tanto Prous quanto Dias Jr. aceitam a existência dos indígenas da Nação Cataguá enquanto grupo étno-histórico específico. A tradição ARATU é descrita por Prous (1991) como originária do Nordeste, visto que, a datação mais antiga desta tradição (400 AD) foi obtida no Litoral Norte e no Recôncavo Baiano. A cultura UNA, presente em extensa área do Brasil Central pode ser encontrada nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Espírito Santo. Tomaremos Resende (2003) como referencial dos trabalhos recentes de perspectiva diversa a de Henriques (2006). Esta autora afirma que recentemente vestígios arqueológicos dos indígenas da Nação Cataguá foram encontrados na Fazenda dos Dutra497, no município de Entre Rios de Minas onde ainda existe um lugarejo denominado de Cataguá. A perspectiva adotada por Resende (2003) assemelha-se àquela narrada por Senna (1843) e Vasconcelos (1999), no entanto, esta autora traz um novo elemento: a citação de uma fonte primária que faz referência direta a este grupo, contrapondo deste modo, um dos principais argumentos daqueles que tratam o etnômio Cataguás como uma denominação genérica. Segundo esta autora, no Arquivo da Biblioteca Nacional498, há documentação de meados de 1730, segundo a qual o Conde de Sarzedas, através de determinação régia, permitiu que Antonio Pires Campos escravizasse os indígenas Cataguás “por causa das mortes, roubos e insultos que tem feito os gentios Cataguases e mais bárbaros que infestam essas Minas”. 497 O sítio referido é denominado de João Maia e possui caráter multicomponencial pré-colonial. Foram encontrados urnas funerárias e artefatos cerâmicos ao longo do trabalho realizado na área pela equipe de arqueologia da UFMG. (www.iphan.gov.br/) (16/09/2009) 498 Arquivos da Biblioteca Nacional, sessão de manuscritos, Papéis Vários Manuscritos 1, 4, 1, doc. 18 (22/09/2009) 363 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Podemos observar através da análise das informações fornecidas pelos trabalhos recentes, que os difusores da concepção da existência dos Cataguás, possuem um discurso semelhante àquele proferido pelos autores da historiografia tradicional. Entretanto, as principais críticas tecidas pelos que defendem a idéia de que essa era uma denominação genérica, tal como Henriques, se fundamentam em uma atitude crítica em relação aos trabalhos produzidos pela historiografia tradicional. Portanto, também não citam as fontes primárias que conduziram suas interpretações. Trata-se de uma postura semelhante à adotada pelos autores considerados tradicionais, que foram atacados justamente por este motivo. Independentemente das fontes aqui analisadas, sabe-se que os portugueses e os bandeirantes identificavam os indígenas por termos que não correspondem à toponímia com a qual tais indígenas se reconheciam, dificultando assim a pesquisa. Estes povos eram denominados de “gentios”, “brasis”, “negros da terra” e mais, recebiam nomes advindos de estereótipos estabelecidos. Por exemplo, os coroados não se reconheciam enquanto tal pois esta designação lhes foi dada pelos portugueses, fazendo referência a forma circular dos cabelos que estes utilizavam. O mesmo acontece com “tremembés”, “puris” e “botocudos”, todas estas denominações externas499. IMAGINÁRIO SOCIAL Além do trabalho dos pesquisadores já mencionados é possível encontrar referências em relatos de indivíduos da região sul/oeste/centro oeste mineiro acerca dos indígenas Cataguás. 499 Ver: FREIRE, Carlos augusto da Rocha & OLIVEIRA, João Pacheco de. Presença Indígena na Formação do Brasil. Brasília: Edições MEC/UNESCO, 2006. 364 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A título de exemplo, em relatos informais500, encontramos informações501 de que o último chefe indígena da Nação dos Cataguás era conhecido como Itajibaçú e seu filho como Jaquariuna, sendo que este último teve como descendente a Sra. Delfina Constança de Magalhães ilustre moradora de Baependi, Minas Gerais. Há também lendas locais acerca deste grupo502, como a de São Tomé das Letras, segundo a qual, Lourenço Castanho Taques, perseguindo os Cataguás, os encurralou na serra onde hoje se localiza o município de São Tomé das Letras. Os índios depuseram as armas em uma gruta, na qual há inscrições rupestres indecifráveis. Taques intrigado com as escrituras perguntou quem as havia feito e os indígenas responderam: “Foi Sumé”. Os padres, quando chegaram á região, aproveitaram-se da semelhança entre as nomenclaturas Sumé e São Tomé, atribuindo as escrituras a este santo, que somados as letras da caverna deram o nome à cidade, São Tomé das Letras. Topônimos de cidades também são justificados mediante a presença dos índios Cataguás. O nome Caxambu, por exemplo, segundo Maurício Ferreira503 tem origem no dialeto dos nativos habitantes Cataguás, onde Caxambu derivaria de Catã-mbu (algo semelhante a borbulhas na água). Visto estes aspectos, constatamos a presença dos Cataguás no imaginário social. Este elemento nos leva a indagar: se Cataguás era uma denominação genérica para os grupos de além Mantiqueira, que não habitavam as florestas, por que os mesmos estão presentes no imaginário social de uma região específica? Por que autores como Senna (1843) e Vasconcelos (1999) afirmam a existência deste grupo? 500 Estamos denominando de “relatos informais” depoimentos de indivíduos dessa região retirados da internet, que por isso, não reconhecemos enquanto fonte. Neste caso, estão representando uma tradição oral, agora transcrita, porém que não foi coletada mediante o trabalho de história oral ou outra metodologia acadêmica. 501 http://www.pedigreedaraca.com.br/barao_de_alfenas.doc?pedigree=c0351877e6d63baaa6 (25/07/2009) 502 http://www.viafanzine.jor.br/fonseca_mat.htm (01/08/2009) 503 http://www.descubraminas.com.br/DESTINOSTURISTICOS/hpg_pagina.asp?id_pagina=1660&id_pgiSu per (25/07/2009) 365 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A primeira indagação talvez seja a resposta da segunda. Como mencionado anteriormente, estes – autores Senna (1843) e Vasconcelos (1999), não descontextualizados de seu meio (as corografias) podem ter-se baseado em relatos orais. Além do mais, a inexistência da escrita indígena somada ao fato de que as fontes escritas que possuímos acerca deste período foram produzidas pelo “outro”, portanto carregadas de estereótipos, torna evidente a importância da tradição oral nesta temática, independentemente do modo como os relatos orais foram recolhidos. Mas e quanto à resposta a primeira indagação? O conceito de imaginário social é definido de diversas maneiras, muitas das quais conflitantes. A perspectiva que adotamos neste trabalho está relacionada com a concepção de que o imaginário social “compreende o conjunto de imagens que formam a memória afetivo-social de uma coletividade, permeadas por aspectos ideológicos”. Durand (apud Carvalho 2009) afirma que o imaginário social é o estado de espírito de um grupo, de um país, de uma comunidade etc, sendo que ele estabelece vínculo, é “o cimento social”. Por esta perspectiva, o imaginário social é de significativa importância para o estudo desta temática, principalmente devido a pouca disponibilidade de fontes documentais primárias. Pretendemos com o trabalho de história oral, previsto para a segunda etapa, adentrar nesta perspectiva e com isso compreender melhor a presença dos Cataguás na memória coletiva e também, somar elementos que auxiliem a confirmação ou não de nossas hipóteses. Afinal, como observa Silva (2004) o imaginário é uma representação mental, que ocorre de forma consciente ou mesmo inconsciente, muitas vezes formada a partir de “vivências, lembranças e percepções passadas”, que, no entanto, podem se modificar em decorrência de novas experiências. CONCLUSÃO 366 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Diante análise das fontes secundárias e tendo em vista a presença deste grupo indígena no imaginário social, arriscamo-nos a fazer proposições. Possivelmente os Cataguás faziam parte de alguma coletividade que permitia aos colonizadores os enquadrarem especificamente a esta denominação. Isto significa, por exemplo, que possuíam língua, atitude ou aparência física e/ou cultural específica. Esta hipótese pode ser confirmada pelo seguinte trecho, retirado do Códice Costa Matoso: Entraram a conquistar desde São Paulo por esse lugares que hoje são vilas. Itu, Parnaíba, [Mogi?], Jacareí, Pindamonhangaba, Guaratinguetá, Piedade. Passando ao sertão, deram com uma aldeia neste distrito de Rio das Mortes, a que chamam Cataguases, onde prendendo muito gentio do beiço e orelhas furadas, estes falaram, perguntando por que os perseguiam; se era pelo que traziam no beiço e nas orelhas, que os largassem, que lhes iriam mostrar. Não levados os paulistas detas oferta, nunca deixaram ” de os prender, e logo para o rio das Mortes foi uma bandeira com seu capitão chamado Jaguara, que na língua dos carijós é cachorro. A estes mostrou um dos capitães do gentio o ouro no capim, em folhetas, e outro, como grãs de minição. (p.218) Ao que parece, o etnômio Cataguá (Cataguases) pode ter sido dado pelos bandeirantes paulistas aos grupos que ali viviam, visto que são os “conquistadores” que chamam a “aldeia” deste modo, o que contradiz a informação da autodenominação. Entretanto, não é descartada a hipótese que estes indígenas podem realmente ter constituído um grupo étnico, integrante dentre aqueles conhecidos genericamente como botocudos, os gentios “do beiço e orelhas furadas”. Os botocudos, segundo Cunha (2008), receberam esta denominação genérica, dada pelos colonos, devido à utilização de botoques labiais e auriculares de madeira. Pertencentes a família Macro-Jê, como observa Marinato (2007) os subgrupos denominados genericamente de botocudos, que inclui diversas etnias como Poxijá, Jiporoc, Naknenuk, krenak, dentre outras, caracterizavam-se por diversidades internas, inclusive lingüísticas, sendo muitos dentre eles rivais. Apesar das diversidades, 367 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 segundo Mattos (2002) os botocudos compartilhavam um sistema sociocosmológico semelhante. De acordo com Cunha (2008), os botocudos eram caçadores seminômades, caracterizados pelo “constante fracionamento do grupo, pela divisão natural do trabalho e por um sistema religioso centrado na figura dos espíritos encantados dos mortos”. Os botocudos também eram conhecidos, segundo Marinato (2007) como “ferozes” e “antropofágicos” devido à resistência e belicosidade por eles demonstrada aos colonizadores sendo tratados por isso como “gentios bravos”. Deste modo, encontramos informações pertinentes que induzem a aceitação da existência dos Cataguás enquanto grupo étnico. Tanto os Cataguás como os botocudos são caracterizados por divisões internas e ambos eram conhecidos como “gentios bravos” no caso dos botocudos e como “aquele que mais incutira terror aos bandeirantes paulistas” no caso dos Cataguás. Entretanto, o trabalho de história oral será necessário para confirmação ou refutação desta hipótese e mais ainda para compreensão deste grupo no imaginário social. BIBLIOGRAFIA BARBOSA, W.A. Historia de Minas. V.II. Belo Horizonte, Ed. Comunicação, 1979. CARVALHO, R. O imaginário de Gilbert Duran. São Paulo: [s.n], 2009. GOMES, J.V.; LUNA, S.; NASCIMENTO, A.L. Projeto Arqueológico TremembéCeará Brasil. In: Anais da X Reunião Cientifica da SAB, UFPE 2000. CLIO Série Arqueológica 14(2000) HENRIQUES, G. P. Arqueologia Regional da Província Cárstica do Alto São Francisco: um estudo das tradições ceramistas UNA e Sapucaí. Campinas, SP: [s.n], 2006. 368 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 JOSÉ, O. Indígenas de Minas gerais: aspectos sociais, políticos e etnológicos. Belo Horizonte: Ed. MP, 1965. MARINATO, F. A. Índios Imperiais: os Botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce (Espírito Santo, 1824-1845). Vitória: [s.n], 2007. MARTINS, M. L. Os estudos regionais na historiografia brasileira. In: MARTINS, M. L. História e Estudos Regionais. São Paulo: [s.n], 2009 MATTOS, I. M. “Civilização” e “Revolta”: povos botocudo e indigenismo missionário na Província de Minas. Campinas, SP: [s.n], 2002. Notícias do que ouvi sobre os princípios dessas Minas. In: Figueiredo, L.R. (Org). Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa sendo ouvidor-geral das Minas do Ouro preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749 & vários papéis. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/ Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999. 2.V.Coleção Mineiriana, série das obras de referência), p. 218. POMPEU SOBRINHO, T. Índios Tremembés. Rev. do Instituto do Ceará, Fortaleza : Instituto do Ceará, n.65, 1951. PROUS, A. Arqueologia Brasileira. Brasília: UNB, 1992. RESENDE, M. L. C. Gentios Brasílicos: Índios Coloniais em Minas Gerais Setecentistas. Campinas, SP: [s.n], 2003. SENNA, N. Etnografia Brasileira: os principais povos selvagens que habitaram Minas Gerais. Vol. 1. Tomo XXV, 1843. SILVA, J. C. Sobre o Imaginário. São Paulo: [s.n], 2004. VASCONCELOS, D. P. História Antiga de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974. 369 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Quando o “Libertino” Escreve Sobre Mulheres: Uma análise sobre as personagens femininas nos romances de Voltaire. Renato Sena Marques* RESUMO: Este trabalho tem como principal objetivo discutir as representações de Voltaire acerca das mulheres. Para tal intento, utilizo romances como fontes primárias. Trabalho também partindo de um pressuposto: as representações das mulheres para o Voltaire romancista diferem das tidas pelo Voltaire enquanto tratadista. Objetivo apresentar os romances enquanto fontes possíveis para um melhor entendimento da Ilustração, além de aumentar as possibilidades de conhecimentos sobre as diferentes visões de Voltaire, enquanto romancista, sobre as mulheres dos setecentos. Trago também uma discussão, tendo como sujeito de análise as mulheres, sobre a aplicabilidade (ou não) do termo “libertino” para Voltaire. PALAVRAS-CHAVES: Voltaire, mulheres, romances, libertinos. ABSTRACT: This work has as main objective to argue the representations of Voltaire concerning the women. For such intention, I use romances as primary sources. Work also leaving of one estimated: the representations of the women for the romancista Voltaire differ from the had ones for the Voltaire while author of a scientific treatise. Objective to present the romances while possible sources for one better agreement of the Illustration, beyond increasing the possibilities of knowledge on the different visões of Voltaire, while romancista, on the women of the seven hundred. I also bring an analysis quarrel, having as subject the women, on the applicability (or not) of “the libertine” term for Voltaire. * Universidade Federal de Juiz de Fora. 370 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 KEYWORDS: Voltaire, women, romances, libertines. François Marie Arouet, o ”Voltaire” (1694-1778), está entre os personagens mais importantes do movimento conhecido por Ilustração. De suas cartas, passando pelos tratados e chegando até seus romances, a obra de Voltaire é deveras abrangente. Neste trabalho, especificamente, utilizaremos o Voltaire romancista. Observaremos como este autor se posiciona com relação às mulheres. Sabemos, a propósito, que Voltaire já teria pensando a “mulher” em seu Dicionário Filosófico (1764; Dictionnaire Philosophique). Contudo, vemos ali um estudo sobre um conceito. É a mulher analisada sem a influência de um tempo específico. 504 E nisso não estamos interessados. Queremos, ao contrário, compreender como Voltaire via a mulher dentro de um contexto delimitado: o século XVIII. E nesse aspecto os romances, fontes principais deste artigo, nos concede um apoio de suma importância. Por quê? Para Ian Watt, os romances do século XVIII poderiam ser vistos como “modernos”. Tal adjetivo se justificava, segundo o autor, pelo fato destes, ao contrário de gêneros anteriores (as obras de “belas letras”, por exemplo) se comprometerem com uma descrição de um pretenso “real”. Seria preciso (sem querer aqui acorrer em anacronismos) que os leitores se identificassem com as ações descritas. Mesmo que para isto os romances abdicassem de uma narrativa mais formal. Para Watt, (...) já que o romancista tem por função primordial dar a impressão de fidelidade à experiência humana, a obediência a convenções formais preestabelecidas só pode colocar em risco seu sucesso. Comparado à tragédia ou a ode, o romance parece amorfo – 504 Não negligenciamos, no entanto, que mesmo na própria formulação deste conceito exista a influência de uma conjuntura setecentista. 371 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 impressão que provavelmente se deve ao fato de que suas convenções formais seria o preço de seu realismo. 505 Além deste rompimento com um certo formalismo narrativo os romances buscavam, em sua maioria, descrever todas as ações com minúcias. E isto se vê tanto nas especificações sobre o tempo e os espaços focalizados, quanto nos nomes das personagens. Por essas características, Watt chega a comparar os romances com um (...) outro grupo de especialistas em epistemologia, o júri de um tribunal. As expectativas deste como as do leitor de um romance, coincidem sob muitos aspectos: ambos querem conhecer “todos os particulares” de determinado caso - a época e o local da ocorrência; ambos exigem informações sobre a identidade das partes envolvidas (...) e também esperam que as testemunhas contem a história com suas próprias palavras. 506 Evidentemente, existiu um contexto por onde essa busca pela precisão se inscreveu. Aceitamos, para balizar tal assertiva, o cenário traçado por Paul Hazard. Para este, parte da Europa, no final do século XVII e início do século XVIII, teria experimentado uma “crise de consciência”. 507 A despeito da pertinente opinião de Rouanet, que vê no século XVIII não uma “crise de consciência”, mas uma “cristalização” de um ideal de civilização,508 não nos circunscrevemos, no entanto, no recorte proposto por Hazard. Em outros termos: entendemos que a “crise de consciência” não teria se findado em 1715. A “Fronda Espiritual”509, termo dado por Hazard à inquietação dos homens de finais do século XVII e inícios do século XVIII, teria, em nosso parecer, permanecido nos debates que envolveram 505WATT, Ian. A Ascensão do Romance. Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução de Hildegard Feist, 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 15. 506 Ibidem, p.31. 507C.f. HAZARD, Paul. Crise da Consciência Européia. Lisboa: Edições Cosmos, 1971. 508C.f. ROUANET, Sérgio Paulo. Dilemas da Moral Iluminista. In: NOVAES, Adauto (org). Ética. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. 509HAZARD,Paul, op, cit. 372 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 os homens de letras em todo os setecentos. Para Cassirer, seria nesses debates que o movimento iluminista encontrava força para sua permanência e sua ascensão. (...) o pensamento iluminista consegue sempre extravasar do quadro rígido do sistema e libertar-se, justamente nos espíritos mais fecundos e mais originais, da sua estrita disciplina. Não é nas doutrinas particulares, nos axiomas e teoremas em que ele acaba por fixar-se que esse pensamento manifesta com maior clareza a sua estrutura e a sua orientação característica, mas quando se deixa empolgar no próprio devir de sua elaboração, quando duvida e averigua, quando derruba e constrói. A totalidade desse movimento incansavelmente flutuante, em permanente fluxo, não poderia reduzir-se a uma simples soma de opiniões individuais. 510 E, de certa forma, serão nas conseqüências destes debates que podemos ver inseridos (e por que não surgirem?) os romances. A “crise de consciência” é também uma crise de paradigmas. Trata-se de uma percepção (e uma inquietação) dos indivíduos com um contexto de mudanças. Kosseleck nos fala sobre uma modernidade que teria trazido, dentre outras, uma redução no campo das experiências e um alargamento dos horizontes de expectativas. 511 É o que parece sentir Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Até mesmo para o filósofo genebrino a modernidade lhe causa uma sensação de estranhamento: Eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante de meus olhos, vou ficando aturdido. De todas as coisas que me atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que eu sou e qual meu lugar. 512 510CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. (Tradução: Álvaro Cabral). Campinas: Editora da Unicamp, 1994, p. 12. 511C.f. KOSSELECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. 512ROUSSEAU, Jean Jacques, apud BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p 17. 373 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Os romancistas escreviam, pois, nesta (e para esta) conjuntura. Destarte, não é de se estranhar que homens como Montesquieu (1689-1755) e Jonathan Swift (1667-1745) tenham ridicularizado o “reino do fantástico” contido em gêneros anteriores aos romances. Em Cartas Persas (1721; Lettres Persanes), Montesquieu assim caracterizará os romances de cavalaria: (...) “esses seriam nossos romances: aventuras tão insulsas e que a cada passo se repetem, nos enfadam e nos repugnam os prodígios disparatados de que estão cheios”. 513 Swift, por sua vez, afirma desejar (...) que fosse decretado por lei que, antes de qualquer viajante publicar a relação das suas viagens, jurasse em presença do grãchanceler que tudo o que mandasse imprimir, fosse exatamente verdadeiro, ou, pelo menos, que assim o julgasse. O mundo não seria enganado como é todos os dias. 514 Não somente uma literatura anterior aos romances setecentistas foi criticada. A História, com seu pouco apego à veracidade dos fatos e demasiada proximidade com as belas descrições, também se constituiu alvo das críticas ilustradas. Rousseau, em seu Emílio ou Da Educação (Émile ou De L’éducation), percebe a História como um trabalho que distancia o leitor daquilo que é observado. Tal característica o leva, inclusive, a fazer com que seu Emílio conheça os homens pela História. Somente assim, este último não se aproximaria demasiadamente dos demais indivíduos. Distintamente, os romances, para o genebrino, traziam situações “reais” que, por conseguinte, aproximava o leitor daquilo que se narrava. A História, pensada por Rousseau, não poderia trazer qualquer tipo de ensinamento moral. Era “distante”, “fria”, e, para muitos letrados (inclusive para Rousseau), um trabalho falseado pelos historiadores. Os romances, ao contrário, poderiam 513MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Cartas Persas. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1969, p.237. 514SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. São Paulo: Editora Brasileira, 1950, p. 334. 374 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 fornecer algum tipo de ensinamento moral. Era íntimo ao leitor 515 e à conjuntura vivida por este. Por esta razão, Rousseau, ao que tudo indica, enxerga nos romances – naquele contexto específico – algo superior a História. (...) pouca diferença vejo entre esses romances e vossas histórias, a não ser pelo fato de que o romancista entrega-se mais à sua própria imaginação, e o historiador submete-se mais à de outrem; ao que acrescentarei, se quiserem, que o primeiro propõe-se um objeto moral, bom ou mau, com que o outro pouco se preocupa.516 Rousseau nos traz um elemento novo: a idéia de uma “edificação moral” a ser fornecida pelos romances. É o que também parece propor Daniel Defoe (1660-1731) em seu Moll Flanders (1722; Moll Flanders). Através da imensa variedade deste livro, apegamo-nos estritamente a uma idéia básica: não incluir, em nenhuma parte, alguma ação perversa que não dê origem a conseqüências infelizes: não por em cena um autêntico vilão sem que acabe mal ou seja levado a se arrepender: não mencionar qualquer ato criminoso sem condená-lo na própria narrativa e nenhuma ação virtuosa e justa que deixe de receber seu louvor. 517 Pelo trecho acima, podemos entender que a “edificação moral” seria, grosso modo, o castigo para o “vício” e o louvor (uma difusão?) a ações vistas como “virtuosas”. E aqui, ao que tudo indica, reside a “instrução” dos romances. Instruir seria, portanto, apontar o caminho a ser seguido em um tempo de estranhamento. Os romancistas, sob esse prisma, teriam um duplo papel: formar uma opinião pública e instruir aqueles que, em seus pontos de vista, possuíam menos luzes518. Mesmo que renunciassem a uma glória como homens de letras (pois os romances eram, frequentemente, vistos como gêneros "menores"), os 515 É preciso, no entanto, ser cauteloso com o conceito “público”. Segundo Rouanet, a opinião pública, para qual se dirigia os romances é distinta de uma opinião popular. C.f. ROUANET, Sérgio Paulo, op.cit. 516 ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou Da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.314. 517 Ibidem, p. 12. 518 C.f. ROUANET, Sérgio Paulo. Mal estar na modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 375 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 romancistas acreditavam no valor de tal sacrifício. Afinal, e assim acreditavam, era para o bem público que escreviam. Segundo Swift, (...) talvez me aconteça o mesmo; viajantes irão aos países em que estive, inquirirão das minhas descrições, farão cair o meu livro e esquecer (...) Veria isso como uma verdadeira mortificação, se escrevesse para a glória; como, porém, escrevo para a utilidade do público (negrito meu), nenhum cuidado me dá e estou preparado para todas as eventualidades. 519 A importância dos romances para a pesquisa histórica reside, sobretudo, na possibilidade de observarmos como certos conceitos foram aplicados dentro de uma conjuntura específica. Existe, em nosso ponto de vista, uma diferença entre os pensamentos do filósofo enquanto tal e os pensamentos do filósofo enquanto romancista. Adotando uma postura um tanto generalizante, podemos dizer que o primeiro trata sobre um conceito no âmbito do universal. Por sua vez, o segundo, pelas próprias características do romance, expõe seu conceito à vivência (ou a percepção de vivência por parte do autor) em um determinado contexto. E, especificamente para os romances setecentistas, que procuravam “divertir, instruir e edificar”520 seus leitores, essa exposição de um determinado conceito, em um tempo de “crise de consciência”, poderia acarretar uma instabilidade para um determinado “ordenamento social”. E em tal cenário, estariam os próprios romancistas isentos de sofrerem as conseqüências de suas obras? Uma resposta a tal questionamento deve passar, assim supomos, por uma observação às biografias de alguns destes “filósofos romancistas”. Voltaire, por exemplo, está longe de abandonar uma vida de prazeres na corte. Sua distância com relação à canaille521 é tão evidente quanto sua dificuldade em se aproximar de uma ética burguesa 519SWIFT, Jonathan. op, cit, p. 333. 520 C.f. VILLALTA, Luiz Carlos. Censura e Romances: perspectivas distintas de instruir, divertir e edificar? 521 C.f. ROUANET, Sérgio Paulo, op.cit. 376 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 do trabalho, nos moldes propostos por Max Weber.522 Daniel Defoe, por seu turno, é, ao contrário de Voltaire, alguém mais distante dos salões. Seu prazer, a julgar por suas obras, é a recompensa ao lucro. Se observarmos Robinson Crusoé vemos que este, através do trabalho, vence uma ilha inóspita transformando-a em uma próspera colônia. Destarte tais diferenças em suas biografias, tanto Voltaire quanto Defoe se aproximam ao pensar o público para quem destinavam suas obras. De acordo com Defoe, em sua apresentação de Moll Flanders, o romance não se dirigia a um público irrestrito. Era preciso que o romance encontrasse um leitor que compreendesse o ensinamento moral e não que se abandonasse na “mundalidade” de Flanders. Mas, como esta obra se destina principalmente aos que saibam lê-la e utilizar-se bem do que é recomendado ao longo de toda ela (negrito meu), pode-se esperar que esses leitores fiquem mais interessados pela moral que pela fabulação; mais com a aplicação daquela que com a narrativa; mais com a intenção do escritor que com a existência da personagem a respeito da qual escreve. É nesta tensão – escrever sobre o “real” e limitar a apreensão deste a um público específico – que Voltaire representava a mulher em seus romances. Talvez por essa razão não nos seja possível circunscrever suas obras a uma “libertinagem de costumes”. Não existia apenas a diversão. Em Voltaire fica evidente, especificamente ao tratar sobre as mulheres, também o caráter “instrutivo e edificante” de suas narrativas. 523 Observemos três de suas protagonistas: Cunegundes, de Cândido ou O otimismo (1759; Candide ou l'optimisme), Astartéia, de Zadig ou O destino (1747; Zadig ou La Destinée) e Formosante de A Princesa de Babilônia (1768; La Princésse du Babylogne). 522C.f. WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1992. 523 Sobre a relação entre romances e libertinagem: C.f. PRADO, Raquel de Almeida. Ética e Libertinagem nas Relações Perigosas. In: NOVAES, Adauto (org). Libertinos Libertários, op.cit. 377 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 A principal característica, comum a essas personagens, é a beleza física. Cunegundes é assim descrita: “(...) contava dezessete anos, era corada, fresca, rechonchuda e apetitosa”. 524 Astartéia, por sua vez, “(...) era muito mais bonita do que aquela Semira que tanto odiava aos caolhos, e do que aquela outra mulher que quisera cortar o nariz ao esposo”. 525 Formosante é tida como (...) o que havia de mais admirável em Babilônia, o que eclipsava tudo o mais, era a filha única do rei chamada Formosante. Foi segundo os seus retratos e estátuas que, séculos após, Praxíteles esculpiu a sua Afrodite e aquela a que chamaram a Vênus das belas nádegas. Que diferença, ó céus, do original para as cópias! De modo que Belus era mais orgulhoso da sua filha que do seu reino. Tinha esta dezoito anos (...). 526 Essa idealização da beleza feminina, nos romances de Voltaire, parece ter um propósito: realizar um contraste entre o belo – personificado na “pureza das formas” de suas protagonistas – e um contexto onde determinados valores passaram a ser repensados. Em outros termos: como se insere (ou deveria se inserir) uma bela mulher em um tempo de “crise de consciência”? O “Voltaire romancista”, ao pensar a mulher não como um conceito atemporal (que parece ser a estrutura de seu Dicionário Filosófico), mas como um determinado ser vivendo em determinada conjuntura (que é, a nosso ver, a proposta dos romances setecentistas) cumpre um dos objetivos pensados por tais gêneros: o da instrução. Como já dissemos, a mulher volteriana (pelo menos suas protagonistas) possui juventude e beleza. Essas duas características, entretanto, poderiam ser maléficas àquelas que não possuíssem 524VOLTAIRE, François Marie Arouet. Cândido ou O Otimismo. Rio de Janeiro: Ediouro. São Paulo: Publifolha, 1998, p. 12. 525_____________________________. Zadig ou O Destino. In: MORES, Ridendo Castigat, eBookLibris. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/zadig.html. 526_____________________________. A Princesa de Babilônia. In: MORES, Ridendo Castigat, eBookLibris. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/babilonia.html. 378 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 conhecimentos. Jovens e belas, as mulheres, nos romances de Voltaire, são alvos da cobiça masculina. Estes, por sua vez, nem sempre possuíam intenções “virtuosas”. 527 Como fugir a isso? Pelo uso da razão. E aqui devemos nos ater a um ponto: a “Razão”, entendida como o valor da observação sobre preceitos já preestabelecidos, 528 é também uma possibilidade feminina. Mais do que isso: é algo imprescindível para o bem viver da mulher, pois ela é “em geral mais fraca do que o homem” 529 e propensa ao domínio masculino: “não é espantoso que em todos os países o homem se tenha tornado senhor da mulher, pois tudo está fundamentado na força e normalmente ele apresenta uma superioridade muito grande tanto na força corporal como também na espiritual”. 530 É assim que duas (Cunegundes e Formosante) das três protagonistas que selecionamos, possuem destinos distintos. Cunegundes, protagonista de Cândido ou O otimismo, é bela, porém, sem “luzes” (no sentido do conhecimento como importante instrumento para se conter as paixões). Cunegundes é para Voltaire o oposto do que foi, para Jean-Baptiste de Boyer (Marquês D'Argens)531 a personagem Teresa, do romance Teresa Filosofa (1748; Thérese Philosophe ou Mémories pour servir à l’historie du pére Dirrag et Mademoiselle Eradice). Tanto uma quanto outra presenciam uma determinada relação sexual. As ações posteriores a isso é que definirão o destino destas personagens. 527Em seu Dicionário Filosófico, Voltaire define o conceito “virtude” como sendo a “Beneficência para com o próximo”. C.f. VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dicionário Filosófico (tradução de Marilena de Souza Chauí, Bruno da Ponte e João Lopes Alves). In: Voltaire. (Coleção “Os Pensadores”). São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 294. 528C.f. VILLALTA, Luiz Carlos, op.cit. 529VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dicionário Filosófico (tradução de Marilena de Souza Chauí, Bruno da Ponte e João Lopes Alves). In: Voltaire. (Coleção “Os Pensadores”). São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 253. 530Ibidem, p. 254. 531Atribui-se a autoria deste romance à D'Argens, mas não existe uma certeza sobre isso. C.f. DARNTON, Robert. Os best-Sellers proibidos da França pré-revolucionária. São Paulo: Schwarcz, 1998. 379 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Cunegundes não resiste às conseqüências de sua experiência como voyeur e procura por Cândido. Ambos, ao que parece estar implícito na narrativa do romance, teriam iniciado uma atividade sexual. Um dia, em que passeava nas proximidades do castelo, pelo pequeno bosque a que chamavam parque, Cunegundes viu entre as moitas o doutor Pangloss que estava dando uma lição de física experimental à camareira de sua mãe, moreninha muito bonita e dócil. Como a senhorita Cunegundes tivesse grande inclinação para as ciências, observou, sem respirar, as repetidas experiências de que foi testemunha; viu com toda a clareza a razão suficiente do doutor, os efeitos e as causas, e regressou toda agitada e pensativa, cheia do desejo de se tornar sábia, e pensando que bem poderia ela ser a razão suficiente do jovem Cândido, o qual também podia ser a sua. (...) No dia seguinte, depois do jantar, Cunegundes e Cândido encontraram-se atrás de um biombo; Cunegundes deixou cair o lenço, Cândido apanhou-o, ela tomou-lhe inocentemente a mão, o jovem beijou inocentemente a mão da moça com uma vivacidade, uma sensibilidade, uma graça toda especial; suas bocas encontraram-se, seus olhos fulguraram, seus joelhos tremeram, suas mãos perderam-se... Ora, o senhor barão de Thunder-ten-tronckh passou junto ao paravento e, vendo aquela causa e aquele efeito, correu Cândido do castelo, a pontapés no traseiro; (...). 532 A situação vivida por Teresa é muito parecida. Ao presenciar uma relação sexual entre o Abade Dirrag e a noviça Eradice, a protagonista de D'Argens também sente as sensações de uma voyeur. Todavia, duas situações a diferenciam de Cunegundes. Teresa possuía a possibilidade de se instruir por seu próprio círculo de relações. O próprio aristocrata, com quem Teresa se inicia na vida sexual, é caracterizado como um ilustrado que possui “virtudes” (no sentido da virtude volteriana, já acima assinalada). Em outros termos: a filosofia que permeia o romance (e a própria Teresa) não é uma filosofia ridicularizada pelo autor. Cunegundes, ao contrário, acredita na filosofia do “melhor dos 532VOLTAIRE, François Marie Arouet. Cândido ou O otimismo. In: MORES, Ridendo Castigat, eBookLibris. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/candido.html. 380 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 mundos”, personificada na figura do filósofo Pangloss (uma ironia de Voltaire à filosofia leibniziana). Um outro aspecto que diferencia Teresa de Cunegundes é a postura de ambas com relação àquilo que presenciaram (e que, para as duas, foi uma visão nova). Cunegundes não procura a instrução sobre aquilo que viu e sobre aquilo que sentiu após observar Pangloss e a camareira de sua mãe. Teresa, ao contrário, procura se instruir. E é nesse sentido que a protagonista de D'Argens é vista como “filosofa”. Diferentemente de Cunegundes, a princesa Formosante, de A Princesa de Babilônia não se entrega à paixão que sente pelo protagonista da obra, Amazan. Sente, é verdade, todos os “efeitos” deste sentimento. Mas não existe, até o momento escolhido por Voltaire, qualquer contato físico entre os protagonistas. Formosante é descrita como uma mulher que possui conhecimentos. E, ao contrário de Cunegundes, procura a instrução (inclusive pelos romances) para sensações que ainda desconhece. “(...) A princesa, durante aquele século de oito dias, fazia a camareira ler-lhe romances (...) esperava encontrar naquelas histórias alguma aventura que se assemelhasse à sua e que: embalasse o seu pesar.” 533 Pode-se observar, nos destinos finais dados à Cunegundes e Formosante, que Voltaire se posiciona, de certa forma, como o “público” que julga. Respeita, em boa medida, a idéia de que mulher e homem possuem uma “origem natural” comum. Contudo, o “Voltaire romancista” não desconsidera determinadas convenções sociais. E será por essas que a mulher, em seus romances, serão julgadas. E isto, é preciso dizer, não se restringe às duas personagens acima. É algo extensivo a todas suas outras protagonistas (com exceção da personagem Cosi-Sancta, de conto homônimo). O respeito de Voltaire às convenções sociais pode ser visto, assim entendemos, como um reflexo do próprio aspecto edificante a que se propõe os romances (e, 533Idem. 381 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 evidentemente, também os romancistas). Tal como Daniel Defoe, com seu Moll Flanders, Montesquieu em Cartas Persas, Rousseau, em Júlia ou A Nova Heloísa (1761; Julie ou La Nouvelle Heloise), também Voltaire criará “belas formas” para observá-las no mundo. De observador a juiz, não se furtará, caso assim o entenda, em puni-las. É a punição que servirá de exemplo a algo maior: ao público leitor. Nesse sentido, Voltaire não é, como já dissemos, apenas um “libertino dos costumes”. Pode, é verdade, também assim ser visto. Mas para assim o vermos, devemos entender por tal conceito, além de um “livre pensamento”, uma separação entre moral e religião534. Voltaire é, sobretudo, um “libertino filosófico”. 535 Ou seja, é o “libertino” que observa e julga seu contexto. Como “libertino dos costumes”, Voltaire não teme expor suas protagonistas a, por exemplo, uma depravação de homens da Igreja. Como “libertino filosófico”, por sua vez, Voltaire utilizará deste fato (o sexo -às vezes estupros- realizado por padres) para se posicionar com relação tanto a Igreja e seus dogmas, quanto ao próprio clero. A mulher, nas obras de Voltaire, possui um peso fundamental. Através delas, “visitará” a intimidade de padres, enfatizará o valor da experiência em oposição a dogmas estabelecidos, se oporá a uma sobreposição da paixão em detrimento da razão e que, enfim, demonstrará que por detrás de um Voltaire “circunstancial”, existe um Voltaire com objetivos constantes: produzir para “instruir, divertir e edificar”. E este Voltaire não é apenas o filósofo. É também o Voltaire romancista. Tentamos, neste artigo, apresentar, através das mulheres, um pouco deste Voltaire. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 534Afinal, para Voltaire, “A moral não reside na superstição, não reside nos cerimoniais, nada tem de comum com os dogmas. Nunca será demais repetir que todos os dogmas são diferentes e que a moral é a mesma em todos os homens que usam a razão. Assim, a moral vem de Deus, como a luz. As nossas superstições são apenas trevas”. Op.cit, p. 253. 535C.f. PRADO, Raquel de Almeida, op.cit. 382 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Fontes Primárias: MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Cartas Persas. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1969. ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou Da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 1999. SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. São Paulo: Editora Brasileira, 1950. VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dicionário Filosófico (tradução de Marilena de Souza Chauí, Bruno da Ponte e João Lopes Alves). In: Voltaire. (Coleção “Os Pensadores”). São Paulo: Abril Cultural, 1978 ______________________________. Cândido ou O Otimismo. Rio de Janeiro: Ediouro. São Paulo: Publifolha, 1998 ____________________________________. Zadig ou O Destino. In: MORES, Ridendo Castigat, eBookLibris. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/zadig.html. ________________________________. A Princesa de Babilônia. In: MORES, Ridendo Castigat, eBookLibris. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/babilonia.html. WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1978. Bibliografia teórica: BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. (Tradução: Álvaro Cabral). Campinas: Editora da Unicamp, 1994. 383 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 DARNTON, Robert. Os best-Sellers proibidos da França pré-revolucionária. São Paulo: Schwarcz, 1998. HAZARD, Paul. Crise da Consciência Européia. Lisboa: Edições Cosmos, 1971. KOSSELECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006 PRADO, Raquel de Almeida. Ética e Libertinagem nas Relações Perigosas. In: NOVAES, Adauto (org). Libertinos Libertários. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998. ROUANET, Sérgio Paulo. Dilemas da Moral Iluminista. In: NOVAES, Adauto (org). Ética. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. _________________________. Mal estar na modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. VILLALTA, Luiz Carlos. Censura e Romances: perspectivas distintas de instruir, divertir e edificar? WATT, Ian. A Ascensão do Romance. Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução de Hildegard Feist, 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 384 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Entre o Largo de Cima e o Largo de Baixo: memórias da política coronelista na cidade de Montes Claros/MG no período da Primeira República. Vítor Fonseca Figueiredo536 Camila Gonçalves Silva537 RESUMO: Pautada na utilização de depoimentos orais, a presente comunicação visa analisar os reflexos da política coronelista na cidade de Montes Claros/MG, durante o período da Primeira República (1889-1930). Destaca-se, nas análises, a cisão social operada pela constante rivalidade política entre os dois grupos político-familiares da cidade, as parentelas “Chaves, Prates e Sá” e a “Alves, Versiani e Veloso”. PALAVRAS-CHAVE: Coronelismo, memória, política. ABSTRACT: Guided in the use of oral testimony, this communication aims to analyze the effects of the policy coronelista the city of Montes Claros/MG, during the First Republic (1889-1930). Stands out the analysis, the social division operated by constant political rivalry between the two groups political family of the of the city, the kindreds “Chaves, Prates and Sá” and “Alves, Versiani and Veloso”. KEYWORDS: Coronelismo, memory, politic. O regime republicano instaurado em 1889 não trouxe qualquer alteração legal no que se refere a mudanças profundas na política. Muito pelo contrário, a carta constitucional de 1891, ao prever a participação política de todo e qualquer cidadão alfabetizado maior de 536 FIGUEIREDO, Vítor Fonseca. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora/UFJF. Bolsista de Monitoria UFJF. Orientadora: Profª Drª Cláudia M. R. Viscardi. 537 SILVA, Camila Gonçalves. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora/UFJF. Orientador: Profº Drº Ignácio Godinho Delgado. 385 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 21 anos possibilitou a inserção às hostes de eleitores de todo um agregado de indivíduos que viviam à dependência dos coronéis e demais chefes. Ao se verem na condição de eleitor, lavradores, sitiantes, vaqueiros, foiceiros, jagunços, comerciantes e até mesmo profissionais liberais se encontravam na obrigação de atender o pedido ou a indicação de voto do coronel. Caso contrário, o indivíduo deixaria de ser assistido e passaria a ser perseguido. Portanto, ao invés de refrear o tradicional poder privado dos coronéis, a carta de 1891 acabou surtindo efeito contrário ao proporcionar novo fôlego “a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terra”538. Pois, lhes possibilitava o controle de determinada quantia de votos, todos passíveis de barganha com os chefes superiores. Em troca, os coronéis podiam auferir todo um universo de benefícios, tais como: nomeações a cargos públicos, isenções fiscais e uma miríade de favores advindos da administração pública. Esta era a essência de um compromisso em que “o Presidente do Estado atendia aos pedidos de nomeação ou de força do chefe local – este fazia as eleições com o Presidente”539. Em nossas análises, pretendemos, por meio dos depoimentos orais e registros memorialisticos, estudar a condução da política coronelista na cidade de Montes Claros/MG durante a Primeira República. Alia-se a essa proposta a possibilidade de perceber em alguns momentos a atuação de importantes grupos de parentela que dominaram o cenário político local por todo o período. Foi por meio da análise dessas relações tão tradicionais e intrincadas da Primeira República que Victor Nunes Leal se deparou com um padrão de comportamento político pautado, sobretudo, na continuidade do mandonismo local e no binômio dependência e 538 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1986. p.20. 539 FLEICHER, David V. O Recrutamento político em Minas Gerais 1890/1918. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte: UFMG, v.30, 1971. p.56. 386 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 compromisso. Para ele, a origem dessa situação residia na superposição de formas desenvolvidas do regime representativo, advindos com a constituição de 1891, a uma estrutura econômica e social inadequada que concorreu, inevitavelmente, para a formação de “(...) uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa”540. A esse tipo de comportamento, Leal atribuiu o nome de coronelismo, em alusão a mais alta patente da Guarda Nacional detida geralmente pelos grandes chefes políticos ou a eles conferida nominalmente pela população em virtude do poder e status. Em depoimento, o seleiro aposentado José Santos descreve com extraordinária lucidez como se dava à obtenção da referida patente e relaciona alguns coronéis montesclarenses: Os coronéis? Eram coronéis mas coronéis só de nome, ninguém tinha patente, tinha alguns que tinha patente comprado, patente de... (...) Coronel da Guarda Nacional! Eles comprava patente como tinha de Capitão, de Major, de Coronel, cada uma tinha o seu preço! De Tenente... Eu mesmo conheci aqui o... Coronel Filomeno Ribeiro, Tenente Elis, Capitão... deixa eu ver... tinha outros, tinha Capitão, tinha Major cada um tinha a patente mas porque comprava. Pagava pra ter a patente, vinha aquelas farda bonita, farda azul marinho toda cheia de dourado. Aquelas coisas toda de... dourado da... coisa, sabe? E assim por diante, na ocasião de festa eles vestiam aquilo, sabe? Eu conheci aqui conheci na Bahia todo canto, no Brasil inteiro eles vendiam aquilo! Vendia. Essas fardas, essas patente, era patente da Guarda Nacional, né? Era conhecido assim. Era... conhecido patente da Guarda Nacional, Tenente, Major, Capitão, Coronel tudo isso tinha as farda, a mais alta era a do Coronel, sabe?541 Pelo relato pode-se constatar que somente os mais abastados poderiam lançar mão de recursos para desfrutar do mais caro e alto posto da Guarda Nacional, ou seja, os que ocupavam o topo da hierarquia política e econômica. Todavia, deter uma patente militar, 540 541 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto... Op.Cit. p.20 José Santos. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 22/01/2009. 387 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 mesmo que de grau inferior, era algo bem quisto e almejado pela maioria dos homens. A patente seja qual for conferia status e distinção. Ademais, nada impedia a posterior ascensão. Em uma de suas incursões pelo sertão norte-mineiro o memorialista Nelson Vianna se deparou com a curiosa situação de um velho fazendeiro que por muito ostentou o título de Tenente, mas que havia conseguido a elevação à Coronel. No entanto, o hábito da população e dos amigos de lhe chamarem pela antiga patente lhe causava aborrecimento, por isso mesmo, mandou emoldurar e afixar em uma das paredes da sala a carta de Coronel. Quando algum incauto se esquecia da advertência exposta, o fazendeiro bradava: “Ou o senhor me de tudo a que tenho direito ou não me de nada! Há que tempo já, que sou Coronel!”542 A distinção militar imiscuía-se de tal forma à imagem do indivíduo que precedia ou até mesmo substituía o seu nome. Além disso, a preocupação com a correta designação do posto refletia a necessidade de afirmar constantemente sua posição na hierarquia social local, posição também asseverada nos momentos públicos por meio da típica e chamativa farda azul marinho com dourado tão bem descrita e gravada na memória de José Santos. Portanto, eram nas bases, na vida cotidiana das pequenas cidades e lugarejos que o coronelismo se desenvolvia de modo mais claro, mais intenso e violento ao abarcar nas disputas políticas não apenas as facções, mas toda a população. Afinal, era o resultado das urnas eleitorais de cada cidade que definiam as alianças a serem forjadas e, principalmente, qual facção receberia o apoio governamental com suas benesses e a carta branca para agir contra os adversários. Acerca do modus operandi da política interiorana à Primeira República, notadamente em Montes Claros, o depoimento de Santos é elucidativo: A política em Montes Claros antigamente o eleitor era, (...) eleitor de cabresto, era o eleitor era o que o chefe queria, então o sujeito 542 VIANNA, Nelson. Foiceiros e Vaqueiros. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1956. p.24. 388 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 tinha que votar, tinha eleitor que eles até desconfiava do eleitor eles tomava o título do eleitor e só fornecia no dia da eleição e os eleitor todos era no cabresto sabe? De maneira que tinha o chefe político e tinha os eleitores sabe? E tinha os cabo eleitoral como tinha esses chefes político como Dr. João Alves, tinha os braço forte assim como Carlos Leite era um fazendeiro e pecuarista que tinha muitos eleitor, era amigo de João Alves. Tinha mais outros sabe? Como tinha em São João da Ponte, tinha lá... o chefe lá em São João da Ponte que era muito amigo de João Alves, trazia os eleitor (...), trazia carros e carros cheios, naquele tempo eles transportava, transportava o eleitor pra vim, pra vim votar sabe? E era uma coisa que a gente não podia facilitar muito porque você via na rua entendeu? Encontrava-se as vezes um senhor vestido com uma capa colonial debaixo da capa tava-se uma espingarda e uma capanga de bala né? Tanto aquilo era jagunço do chefe político de maneira que se precisasse tava ali esses homem inteiramente as ordem e (...) dava na ocasião de política tinha a casa cheia desses homens ai tudo armado se precisar eles... taí pronto pra dar tiros como eu assisti...543 O depoimento acima ilustra muito bem como se davam às relações entre chefes políticos, correligionários, jagunços e eleitores em Montes Claros. Isto é, desconfiança, clientelismo e violência compunham os ingredientes de uma amálgama que pressionava o eleitor às urnas, seja a favor de uma facção, seja de outra. Neste sentido, todos os fatores convergiram, inevitavelmente, para um acirramento das disputas políticas ao nível local elevando os níveis de pressão sobre a comunidade como um todo e, conseqüentemente, da instabilidade e divergência já existentes em Montes Claros. Soma-se a tudo, dois fatos cruciais para o futuro político local: as eleições à edilidade de 1897 e a construção do Mercado Municipal entre 1897 e 1899. Em 1897, a parentela “Chaves, Prates e Sá” se encontrava sem os seus principais chefes: o Doutor Chaves estava no Rio de Janeiro cumprindo com as obrigações do Senado Federal; Camillo Prates, em Belo Horizonte exercia o múnus de senador estadual e Francisco Sá, nesse mesmo ano, assumiu o cargo de Deputado Estadual no Ceará. O resultado dessas ausências foi, logicamente, um enfraquecimento momentâneo do grupo a 543 José Santos. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 22/01/2009. 389 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 nível local. Mediante a proximidade das eleições da Câmara Municipal e da percepção de certa divergência entre os chefes adversários, Honorato José Alves e Celestino Soares da Cruz, a parentela tentou uma manobra que não a alijasse totalmente do poder. “Chaves, Prates e Sá” indicaram a candidatura de um adversário, Major Simeão Ribeiro dos Santos. A indicação foi apoiada por Honorato, mas repudiada por Celestino. A divergência culminou com a cisão entre os dois. Já a base de apoio montada para a candidatura Simeão Ribeiro foi recebida pela população com surpresa, surgiu até uma sátira: “Prates, Chaves, Versiani & Cia... Quem diria?”544 Entretanto, ao invés do esperado, a aliança arquitetada trouxe maléficas conseqüências para o grupo dos Prates, uma vez que o Major Simeão Ribeiro deu continuidade aos planos de construção do Mercado Municipal no Largo de Cima, área habitada pelos “Alves, Versiani e Veloso”, e não no de Baixo, local em que residiam. O fato foi encarado como uma verdadeira catástrofe, já que a questão comercial era um dos pontos fulcrais de toda a comunidade e envolvia parcela significativa da classe política local, composta, em sua maioria, por fazendeiros e comerciantes. A esse período Montes Claros representava o importante papel de empório regional congregando tanto operações de venda quanto de compra de produtos para o abastecimento do mercado Norte-mineiro. Havia a crença de que a ereção de um centro comercial em um dos largos automaticamente suplantaria o comércio do outro, por isso mesmo, as discussões em torno da construção do mercado eram sempre tão problemáticas e inviabilizadas pelos representantes políticos de um dos lados. Ademais, todos os sitiantes e lavradores possuíam o hábito de concorrer às feiras e intendências sediadas no largo de seu coronel. Mas, no caso da criação de um mercado único em território rival como ficariam as relações de compromisso para com os seus chefes? Ou seja, a questão era complexa e não 544 PAULA, Hermes Augusto. Montes Claros: sua história, sua gente e seus costumes. Belo Horizonte: Minas Gráfica Editora Ltda, 1957. p. 169. 390 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 ficava restrito ao campo político e econômico, mas perpassava também os meandros das relações sociais estabelecidas. As lutas travadas por “Chaves, Prates e Sá” e “Alves, Versiani, Veloso” pela construção do mercado em seus largos foram primaciais para que toda uma profunda onda de divergências suplantasse os limites da Câmara e se alojasse no seio da comunidade. Isto é, todos os tipos possíveis de relacionamento entre moradores do Largo de Cima e do Largo de Baixo passaram a ser surpreendentemente informados pelo signo da divergência política. A cidade literalmente se cindiu em duas! O escritor Cyro dos Anjos em sua famosa obra memorialística “A Menina do Sobrado” narra com profundo carinho e saudosismo as suas recordações da infância e adolescência na Montes Claros das décadas de 1910 e 1920. Não obstante, Cyro foi um observador privilegiado das questões políticas e econômicas locais, já que era filho do comerciante Coronel Antônio dos Anjos e neto do médico Carlos José Versiani. Tal combinação de fatores permitiu-lhe observar o impacto da construção do mercado sobre a sociedade montesclarense, segundo ele foram “(...) nas últimas décadas do Império – quando, ao inaugura-se o Mercado, o Largo de Cima arrebatou à antiga Intendência a sua clientela de feirantes – a emulação foi crescendo com o tempo, até identificar os dois logradouros públicos com as duas facções políticas: os Pelados passaram a ser os de Cima, e os Estrepes, os de Baixo”545. Outro bom relato sobre a cisão de Montes Claros, porém identificando a continuidade histórica das divergências locais e os grupos familiares que compunham as redes das duas parentelas foi feito pelo memorialista Hermes A. de Paula: Eram os Ximangos e os Cascudos, os Liberais e Conservadores, que estiveram em guerra durante todo o Segundo Reinado. Depois, na República, vieram os Estrepes e os Pelados. 545 ANJOS, Cyro Versiani dos. A Menina do sobrado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p.76. 391 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Os estrepes mandavam nas ruas de Baixo. Os Prates, os Chaves, os Teixeira, os Dias, os Fróes, os Figueiredos, os Souto, os Mendonça, os Freitas, os Abreu, os Costa, os Durães, os Soares, os Guimarães, além de muitos outros, compunham o partido. Nas ruas de Cima , habitavam os Pelados. Os Alves, os Miranda, os Ribeiro, os Versiani, os Sarmento, os Salgado, os Maurício, os dos Anjos, os Peres, os Velosos, os Câmara, os Vale, dentre vários outros, formavam os seus quadros. Tudo era separado. As divergências políticas cortavam a cidades em duas. Duas bandas de música - a Euterpe e a União Operária, donde saíram os apelidos de Estrepes e Pelados - animavam os dois grupos adversários. Ambos morriam de amores pelos governos do Estado e da República. Tinham a mesma origem, o mesmo programa, a mesma formação. Eram, no entanto inimigos irreconciliáveis na política municipal. Nas suas lutas, algumas vezes correu sangue. Foi no calor da chama dessa velha rivalidade, que Montes Claros cresceu e progrediu.546 Pelo relato de Paula pode-se inferir que o elemento político agia em Montes Claros como forte instrumento de desagregação social ao colocar em lados opostos conterrâneos que só se distinguiam, muitas vezes, pelo local de residência e não por vínculos familiares ou alianças políticas, pois, conforme os números apresentados (2.524) nem todos os cidadãos, mesmo os da sede do município, eram eleitores. Todavia, passaram a compartilhar cotidianamente, assim como a classe política, das divergências, lutas, campanhas e provocações aos rivais. Era sem dúvida, uma forma de integrar um dos lados e de não estar desamparado no fogo cruzado. Conforme José Santos: “(...) a política o sujeito tinha... a tinha dois nome, Política de Cima e Política de Baixo. Porque a Política Baixo é de quem morava lá embaixo e quem morava cá em cima acompanhava a Política de Cima.”547 Isto é, todos que moravam nas mediações das casas dos atuais chefes das parentelas eram automaticamente identificados como adeptos dela. Aqueles que como o Deputado Camillo Philinto Prates residiam na parte inferior da cidade, nas imediações da 546 547 PAULA, Hermes Augusto. Montes Claros... Op.Cit. p.16. José Santos. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 22/01/2009. 392 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 praça da Matriz ou do Largo de Baixo, como era conhecida, recebiam a pecha de Camilistas ou adeptos do “Partido de Baixo”. Já os que residiam na parte superior, junto ao Largo de Cima, a exemplo das famílias “Versiani, Veloso” e da família do novo chefe, o médico e Deputado Honorato José Alves, eram designados como Honoratistas ou correligionários do “Partido de Cima”. O fato, na verdade, não constitui algo de todo incomum, vários são os estudos de caso sobre o poder local que identificam a formação de grupos faccionais rivais estruturados em parentelas. O próprio sistema coronelista propiciava a rivalidade, a violência e a cisão nas bases ao apoiar apenas o grupo vitorioso. Desse modo, os conflitos ficavam restritos ao âmbito das cidades e vilas não perpassando aos níveis superiores. Mesmo rivais incontestes como Camillo Prates e Honorato Alves não trocavam “farpas” enquanto deputados federais no Rio de Janeiro, as suas disputas se davam apenas em Montes Claros. Era essa a tônica de um arranjo capaz de conter as lutas no interior, mas de ostentar na capital estadual e federal um grupo único, forte e cordato como o Partido Republicano Mineiro/PRM. Ademais, a constituição política bi-faccional não pode ser compreendida apenas como o reflexo de condicionantes internos e externos à comunidade, como a temos apresentando, mas também, como fruto de uma cultura política nacional historicamente construída com base na percepção do rival, na violência e na luta pelo e para o poder. Todavia, o caso de Montes Claros é extremamente representativo sobre a capacidade do coronelismo de influir na sociabilidade do homem simples. Tanto o jeca que vivia na roça quanto o citadino humilde não sabiam e não entendiam a origem das disputas e conflitos, no entanto, defendiam com cólera seus coronéis, se identificavam enquanto integrantes do séqüito de um dos largos e alteravam profundamente seu círculo de relações sociais com base na orientação política. 393 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Nessa perspectiva, respaldada por critérios políticos, cada ala da cidade foi se imbuindo de suas singularidades e passou a constituir espaços de sociabilidade distintos. Esse processo de diferenciação é perceptível ao longo das memórias do escritor Cyro dos Anjos. Para ele, o Largo de Cima representava o “centro nervoso da cidade”548, a zona do comércio forte, do progresso! Em contraposto, o Largo de Baixo é apresentado como uma área decadente que apenas transpirava história e tradição”549. Essa distinção dos dois largos é perfeitamente compreensível. Para se afirmar enquanto identidade, um grupo necessita, em primeiro lugar, marcar suas diferenças com relação ao outro. Em geral, esse processo de diferenciação se dá com base na crença da superioridade. Por isso, apesar do escritor reconhecer a imponência do Largo de Baixo o condena ao passado, principalmente após a construção do mercado na área adversária. Todavia, ao fazer as distinções, Cyro não apenas marca diferenças, mas ratifica sua identidade enquanto representante e defensor do Largo de Cima. Outra possibilidade de diferenciação, porém conciliada com provocação, se dava pela atribuição de apelidos. Essa prática, muito comum no interior brasileiro visa caracterizar e ao mesmo tempo hostilizar os membros do grupo rival. Entretanto, o próprio ato de ultrajar e provocar o adversário por meio de rótulos acabava, contraditoriamente, fortalecendo o sentimento de identidade e união do grupo ofendido. Isso se dava porque a desforra não seria nutrida apenas por uma pessoa, mas por todo o grupo que compartilhava tal alcunha. Desse modo, a ofensa do “outro” e a luta contra o “outro” detinha o potencial de fortalecer os vínculos de identificação e solidariedade interna do grupo humilhado. Contudo, a prática de atribuição de apelidos era algo comum, muitos surgiam baseados nas características da facção ou do seu chefe. Em Minas Gerais, por exemplo, temos na cidade de Andrelândia os “Veados” e os “Caranguejos”, em Passos os “Patos” e “Perus”, em 548 549 ANJOS, Cyro Versiani dos. A Menina do sobrado... Op.Cit. p.71. ANJOS, Cyro Versiani dos. A Menina do sobrado... Op.Cit. p.75. 394 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Januária os “Luzeiros” e os “Escureiros” e assim em várias outras cidades. Em Montes Claros, diversos apelidos foram utilizados, inicialmente, o grupo dos “Alves, Versiani e Veloso” foram denominados de “Baratas” e os “Chaves, Prates e Sá” de “Molotros”, em seguida, vieram as designações de “Carecas” e “Metidos”. Entretanto, as expressões que ficaram consagradas na memória coletiva foram “Estrepes” e “Pelados”, originadas da corruptela do nome das bandas de música de cada um dos lados, Euterpe Montesclarense e União Operária. Apesar de pouco estudadas, as bandas de música desempenhavam à Primeira República um importante papel na vida social e política das pequenas cidades. As festas animadas que se davam ao som das bandas serviam para quebrantar um pouco da pasmaceira cotidiana da vida no interior. No entanto, eram as apresentações públicas realizadas no coreto das praças, nas passeatas pelas ruas, nas eleições ou nas recepções de autoridades que os shows tomavam grande proporção e entusiasmo popular. No caso de Montes Claros, as bandas tiveram um contato estreito com a política, por isso mesmo, serviram de base aos apelidos de cada facção. Após o racha de 1897 entre os chefes da antiga ala conservadora, Honorato José Alves e Celestino Soares da Cruz, a banda Euterpe Montesclarense optou por apoiar a política de ‘Baixo’, já a União Operária se devotou à causa dos de ‘Cima’550. A partir de então, cada um dos lados podia contar com uma verdadeira banda marcial que animavam as suas festas e campanhas políticas. Hermes de Paula relembra a participação da Euterpe durante as eleições: “A banda Euterpe tocava um dobrado marcial. Os foguetes pipocando no ar. Os cavalos inquietos, fogosos. Os aboiados... Era véspera de eleição e, justamente nesta praça passavam todos eleitores numa demonstração de força e como que uma visita de apoio ao chefe”551. Já a supervisora educacional aposentada Ruth Tupinambá Graça prefere rememorar a rivalidade política 550 551 PAULA, Hermes Augusto. Montes Claros... Op.Cit. p.232. PAULA, Hermes de Augusto de. Jornal “Gazeta do Norte”, 24 de janeiro de 1960. p.01. 395 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 nutrida pelas bandas de cada um dos largos. Pelos seus relatos, a apresentação semanal realizada em praça pública ia bem além de lazer e entretenimento. Todo cidadão independente do nível socioeconômico, mas adepto a uma das parcialidades políticas concorria apenas às retretas de sua banda. Neste sentido, o fosso da divergência só tendia a aumentar, pois se evitava os contatos de toda a população; por outro lado, os vínculos de identidade de cada um dos largos tendiam a serem reforçados pelo convívio. De modo gradual, as diferenças entre os de ‘Cima’ e os de ‘Baixo’ foram aflorando e, praticamente tudo passou a ser separado ou passível de separação. Até a década de 1930, todas as entidades existentes ou que vieram a existir na cidade tiveram que conviver sob o sigma da dissidência, pois, qualquer altercação entre os membros tendia a declinar para o viés político e culminar em cisão. Foi assim com a banda de música, com o jornal, com o grupo de teatro, com o time de futebol, com a escola, com as rodas de bate-papo, com as brincadeiras de criança e com uma infinidade de relacionamentos. A professora aposentada Yvonne de Oliveira Silveira relata suas lembranças acerca da divisão: A política no tempo que eu era criança foi... era muito violenta. Meu pai era político, fazia parte do partido de Honorato Alves e doutor João Alves era o partido de Cima chamado. E Camillo Prates dirigia o partido de Baixo, então eles... era uma rivalidade muito grande cada qual tinha a sua banda de música, cada qual tinha o seu jornal. Mas acontece que o jornal de Camillo Prates desapareceu logo e ficou o (...) do partido de doutor João Alves que meu pai era proprietário, diretor, redator, fazia tudo ao lado de um amigo dele. E... então eles brigaram, brigavam, ninguém freqüentava o mesmo local.552 Ao fim do relato, Silveira ressalta: “(...) ninguém freqüentava o mesmo local.”553. Essa também é afirmação de José Santos quando perguntado sobre o assunto: “Não, relacionava não, porque quem era do Partido de Cima era do Partido de Cima, quem era do 552 553 Yvonne de Oliveira Silveira. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 16/01/2009. Idem. 396 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Partido de Baixo era de Baixo, sabe? De maneira que cada um vivia...”554. A mesma resposta dos dois aposentados é emblemática, pois, apesar de se ligarem de algum modo ao “Partido de Cima” ambos pertenciam a classes sociais distintas. Silveira era filha do farmacêutico, jornalista e correligionário Antônio Ferreira de Oliveira, portanto, vinculada diretamente ao ambiente de sociabilidade da elite política local; já Santos, pertencia aos setores mais humildes da população e por residir na parte superior da cidade acompanhava o “Partido de Cima”. Logo, ao contrário do que se possa pensar, não era apenas a classe política que nutria sentimentos de rivalidade e antagonismo entre as partes, mas também os extratos inferiores da sociedade que de algum modo seriam ao final atingidas pelos resultados eleitorais. Pode-se concluir que as lembranças da população montesclarense acerca dos coronéis se devem especialmente pelo alto grau de rivalidade que afetava todos os seguimentos da sociedade. Ou seja, desde os correligionários e políticos até o homem simples do campo. Revolver a memória das pessoas que vivenciaram esse período, permitinos auferir um mundo rico em histórias e registros os modos que a política interiorana utilizava para se suster. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANJOS, C. A menina do sobrado. Rio de janeiro: J.Olympio; Brasília: INL,1979. FLEISCHER, D.V. O Recrutamento Político em Minas Gerais; 1889-1918. Revista Brasileira de Estudos Políticos-UFMG, Belo Horizonte, 1971. LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 4 ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1978. 554 José Santos. Depoimento concedido na cidade de Montes Claros/MG em 22/01/2009. 397 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 PAULA, H. A. Montes Claros: sua história, sua gente e seus costumes. B.H: Minas Gráfica, 1957. PAULA, H. Gazeta do Norte. Montes Claros, 24 jan. 1960, p.1 PORTO, C. H.Q. Paternalismo, Poder Privado e Violência: o campo político NorteMineiro durante a primeira República. 2002, Dissertação (Mestrado) – UFMG. 398 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Cinema, Tropicalismo e Antropofagia no Brasil a Partir de um Olhar Sobre o Filme “Macunaíma” (1969) Wallace Andrioli Guedes* RESUMO: O presente trabalho busca analisar o filme Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, em seus diálogos estabelecidos com alguns dos principais movimentos artístico-culturais dos anos 60, como o Cinema Novo e principalmente o tropicalismo, assim como destrinchar a apropriação que o filme faz do conceito oswaldiano de antropofagia. PALAVRAS-CHAVE: Macunaíma, antropofagia, tropicalismo. ABSTRACT: This paper intends to analyse the film Macunaíma (1969), directed by Joaquim Pedro de Andrade, studying its dialogues with some of the most important artistic and cultural moviments of the sixties, such as Cinema Novo and, specially, tropicalismo. The paper also intends to work with the apropriaton that the film does of the concept of anthropophagy, created by Oswald de Andrade. KEY-WORDS: Macunaíma, anthopophagy, tropicalism. INTRODUÇÃO O presente artigo busca apresentar algumas questões, e mesmo resultados preliminares, da pesquisa por mim desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, na qual investigo as relações estabelecidas *Mestrando em História Social – Linha de pesquisa História Contemporânea II pela Universidade Federal Fluminense 399 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 pelo cinema brasileiro de fins da década de 1960 com um dos mais controversos e estudados movimentos artístico-culturais do período: o tropicalismo. Centro meu olhar, entretanto, em um caso específico: o do filme Macunaíma (1969), do cineasta carioca Joaquim Pedro de Andrade, tido costumeiramente como exemplo máximo de “cinema tropicalista” produzido no Brasil. Ao olhar para Macunaíma, busco compreender tanto as possibilidades de análise estética do filme, ou seja, concernentes ao discurso interno à sua narrativa, quanto suas relações externas, a partir, especialmente, de um acompanhamento detalhado de sua trajetória nos cinemas nacionais e internacionais, sua repercussão em festivais e na crítica especializada – consequentemente, estendo essa análise para a trajetória de seu diretor, acompanhando suas entrevistas em jornais e revistas da época555. Feita essa análise, caminho então para a investigação das proximidades e afastamentos do filme de Joaquim Pedro em relação ao tropicalismo, utilizando-me, para a compreensão deste movimento, do grande número de obras publicadas a seu respeito, assim como do já citado acervo digital da revista Veja, onde encontra-se inúmeras referências ao movimento, tanto em seu mais conhecido campo, o musical, quanto em suas ramificações para outras formas artísticas – o cinema entre elas. Há, no entanto, um ponto fundamental em minha pesquisa, que na realidade constitui-se em seu ponto de partida: o estudo do conceito de antropofagia. Explico: tanto o tropicalismo, em sua vertente musical, quanto o filme Macunaíma recuperaram, naqueles últimos anos da década de 1960, as discussões em torno da prática antropofágica na cultura brasileira apresentadas, entre as décadas de 1920 e 1950, pelo (poeta, filósofo, ensaísta, romancista, dramaturgo, jornalista) modernista Oswald de Andrade. Entretanto, e isso é 555Utilizo-me, até o presente momento de minha pesquisa, principalmente de fontes recolhidas no arquivo da Agência O Globo, que resumem-se a uma série de recortes de jornais e revistas reunidos sob uma pasta intitulada “Joaquim Pedro de Andrade”, e no acervo digital da Revista Veja, disponibilizado no endereço eletrônico http://veja.abril.com.br/acervodigital 400 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 algo que busco explicitar em meus escritos, essa recuperação se dá de formas diversas, e, logo, podemos falar em diferentes antropofagias nesse momento do cenário artísticocultural do país. Julgo necessário aqui um esclarecimento: iniciei minha pesquisa de mestrado tendo como ponto central desta justamente este estudo do conceito de antropofagia no filme Macunaíma, buscando diferenciá-lo do “original” oswaldiano, historicizando-o, colocando-o no tempo, lançando sobre ele um olhar diacrônico. Esta é uma ambição que mantenho no estágio atual de minha pesquisa. Entretanto, o contato com determinadas fontes fez com que a antropofagia, ou melhor, essa busca por uma “história do conceito de antropofagia”, deixasse de ser o ponto central da pesquisa, tornando-se então uma espécie de chave, responsável por abrir-me portas para a compreensão da complexa relação entre o Cinema Novo brasileiro, e mais especificamente o filme Macunaíma, e o movimento tropicalista. Essa é uma relação geralmente naturalizada. O que intento aqui é contribuir no sentido de problematizá-la. CINEMA NOVO NO BRASIL: MULTIPLICIDADE E CONTRADIÇÕES DE UM MOVIMENTO É provável que, mesmo evitando-se qualquer esforço de julgamento e comparação imprópria, o movimento conhecido como Cinema Novo represente o momento mais relevante da história do cinema brasileiro. Foi o ápice artístico dessa arte no país. Teve inúmeras limitações (algumas das quais buscarei apontar adiante), mas trouxe reflexões e novidades ausentes até então do métier cinematográfico brasileiro, e deixou marcas profundas neste – e não é preciso procurar muito, hoje em dia, para observar-se a permanência destas marcas. 401 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Numa apresentação breve e simplista, o Cinema Novo foi uma tentativa conduzida por um grupo de jovens cineastas – liderados pela figura incontornável do baiano Glauber Rocha – de produzir um cinema no Brasil marcado pela condição de subdesenvolvimento do país, tematizando pela primeira vez o povo, os despossuídos, os marginalizados, os oprimidos (no campo e na cidade). Um cinema muitas vezes rústico, no sentido de preocupar-se muito mais com um papel revolucionário (socialmente) da arte que produzia do que com um grande apuramento estético. “Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, proclamava Glauber Rocha. Mais vale uma idéia revolucionária, concretizada em uma arte revolucionária, do que um excessivo debruçar sobre o cuidado técnico com os filmes produzidos. Faço uma mea-culpa: como disse no início desse parágrafo, essa é uma apresentação simplista da prática cinemanovista; o movimento foi muito mais complexo do que isso, promovendo, em muitos casos, pesquisas de linguagem em suas obras, que revelaram-se fundamentais para o avanço da prática cinematográfica no país. Na verdade, há uma diferenciação importante a ser feita: ainda que tocando-se e compartilhando temas e preocupações, existem grupos e momentos distintos dentro do Cinema Novo. É difícil definir, afora os filmes de Glauber, o que é e o que não é Cinema Novo. O próprio cineasta baiano aponta o início do movimento no ano de 1960. Entretanto, Nelson Pereira dos Santos, posterior participante do núcleo central cinemanovista, é, antes, um grande influenciador de Glauber, produzindo filmes – dois especialmente, Rio Quarenta Graus (1955) e Rio, Zona Norte (1957) – fortemente marcados pelos princípios do neo-realismo italiano, e anteriores ao início da carreira de Glauber Rocha e da sistematização de suas idéias, sendo tido, por este, como um modelo a ser seguido pelos filmes do Cinema Novo. Existem também filmes sendo produzidos segundo pressupostos próximos aos dos cinemanovistas, mas ligados a forças políticas e partidárias muito claras: refiro-me aqui à 402 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 produção cultural dos Centros Populares de Cultura (os CPC's) da União Nacional dos Estudantes – no caso do cinema, do filme Cinco Vezes Favela (1962). Este consistiu em um longa composto por cinco episódios (cada um a cargo de um diretor), todos trazendo temáticas populares, um olhar positivo sobre os oprimidos, tidos como agentes de uma revolução que estava por vir. Joaquim Pedro de Andrade dirigiu um desses segmentos, provavelmente o mais elogiado deles, Couro de Gato. E também aquele que foge um pouco do esquema nacional-popular das produções dos CPC's (até porque o filme foi feito antes do início do projeto Cinco Vezes Favela, sendo posteriormente incorporado ao longa). Para esse cinema, seja o Cinema Novo de Glauber, seja aquele produzido pela UNE, a tematização do povo não bastava por si só: era preciso que o povo assistisse a esses filmes. E aí esteve o grande dilema desses cineastas. Seus filmes, em sua grande maioria, foram grandes fracassos de bilheteria no país – mesmo premiados em alguns dos principais festivais de cinema do mundo. O público do Cinema Novo era uma classe média intelectualizada, universitária principalmente. O “povo” não assistia aos filmes de Glauber, Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues entre outros. O debate em torno dessa questão foi pungente no seio do movimento, provocando grandes discussões sobre a facilitação ou não da linguagem dos filmes para que o público almejado fosse alcançado556. Joaquim Pedro de Andrade inseriu-se nesse movimento, ainda que de uma forma bem particular. Participou do grupo central (o chamado “núcleo histórico”) do Cinema Novo, era bastante próximo de Glauber Rocha, entretanto, seu cinema sempre foi dotado de características muito peculiares, que, por mais que dialogasse com os pressupostos 556Nesse sentido, é de enorme riqueza o livro de Alex Viany O Processo do Cinema Novo, organizado por José Carlos Avellar. Tal livro consiste, na realidade, em uma série de entrevistas realizadas por Viany com alguns desses cinemanovistas, onde debates em torno da questão da falta de público para o cinema produzido pelo movimento aparece com particular força. 403 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 cinemanovistas, jamais demonstrou total sujeição a eles. Por mais que essa denominação possa ser estendida a boa parte dos participantes do movimento, Joaquim Pedro parece-me ser um típico caso de auteur557. Não deixa de ser instigante, então, que seja um filme seu, Macunaíma, o primeiro grande sucesso de público de uma obra produzida por um cinemanovista. ANTROPOFAGIA E TROPICALISMO NO BRASIL: UMA TORTUOSA VIAGEM DOS ANOS 20 AOS ANOS 60 Muito já foi dito, debatido e escrito sobre o movimento tropicalista brasileiro – ou simplesmente Tropicália. As propostas musicais-artísticas-estéticas-políticas do grupo liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil (e que acabou por envolver, de alguma forma, um sem número de artistas, como Maria Bethânia, Gal Costa, Tom Zé e Os Mutantes) foram polêmicas desde seu surgimento, nos idos de 1967-68. Definir a Tropicália, portanto, pode ser, ao mesmo tempo, um exercício de repetição do que já foi dito (logo, mais do mesmo), e também uma tarefa de grande dificuldade. Vamos aqui a duas definições que parecem-me opostas, e vejamos o que se pode tirar delas. A primeira é José Ramos Tinhorão, no livro História Social da Música Popular Brasileira: 557Vale aqui a citação de sua clássica resposta, em uma entrevista, à pergunta “por que você faz cinema?”, que acabou até mesmo musicada pela cantora Adriana Calcanhoto: “Para chatear os imbecis/ Para não ser aplaudido depois de sequências dó de peito/ para viver à beira do abismo/ para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público/ para que conhecidos e desconhecidos se deliciem/ para que os justos e os bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo/ porque de outro jeito a vida não vale a pena/ para ver e mostrar o nunca visto, o bem, o mau, o feio e o bonito/ porque vi Simão do Deserto/ para insultar os arrogantes e poderosos quando ficam como cachorros dentro d'água no escuro do cinema/ para ser lesado em meus direitos autorais.” Essa resposta me parece uma demonstração de seu olhar sobre a arte que pratica, um olhar ao mesmo tempo romântico, no sentido de reconhecer um potencial subversivo do cinema, e prático, ao reconhecer o lado profissional de sua atividade, a necessidade de ganhar dinheiro com ela. Joaquim Pedro não parece, ao menos aqui, preocupado com um “projeto de Brasil”, mas com um “projeto de cinema”, ainda que não seja um projeto que funcione como uma prescrição para outros cineastas. 404 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 “[o tropicalismo] constituiu a tentativa de – como definiria o próprio líder do grupo, Caetano Veloso – obter 'a retomada da linha evolutiva da tradição da música brasileira na medida em que João Gilberto fez'. (...) o tropicalismo propunha-se a representar, em face da linguagem 'universal' do rock, o mesmo que a bossa nova representara em face da linguagem 'universal' do jazz. (...) Assim, enquanto os criadores de música de linha nacionalista, politicamente preocupados com a invasão do internacionalismo programado pela multinacionais, reagiam usando recursos da bossa nova (não mais americanizada) na procura de um tipo de canção baseada em sons da realidade rural (Edu Lobo, Vandré) ou da vida popular urbana (Chico Buarque), os baianos ligados ao tropicalismo fariam exatamente o oposto. Alinhados com o pensamento expresso por seu líder Caetano Veloso, 'Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas', os tropicalistas renunciaram a qualquer tomada de posição político-ideológica de resitência e, partindo da realidade da dominação do rock americano (então enriquecido pela contribuição inglesa dos Beatles) e seu moderno instrumental, acabaram chegando à tese que repetia no plano cultural a do governo militar de 1964 no plano político-econômico. Ou seja, a tese da conquista da modernidade pelo simples alinhamento às características do modelo importador de pacotes tecnológicos prontos para serem montados no país.”558 A segunda definição é do próprio Caetano Veloso, em seu livro de memórias Verdade Tropical: “(...) um impulso criativo surgido no seio da música popular brasileira, na segunda metade dos anos 60, em que os protagonistas (...) queriam poder mover-se além da vinculação automática com as esquerdas, dando conta ao mesmo tempo da revolta visceral contra a abissal desigualdade que fende um povo ainda assim reconhecivelmente uno e encantador, e da fatal e alegre participação na realidade cultural urbana universalizante e internacional, tudo isso valendo por um desvelamento do mistério da ilha Brasil (...) movimento que tentava equacionar as tensões entre o Brasil-universo paralelo e o país periférico ao Império Americano (...) Um movimento que queria apresentar-se como a imagem de superação do conflito entre a consciência de que a versão do projeto do Ocidente oferecida pela cultura popular e de massas dos Estados Unidos era potencialmente liberadora – reconhecendo sintomas de saúde social mesmo nas demonstrações mais ingênuas de atração por esta versão – e o horror da 558José Ramos Tinhorão. História Social da Música Popular Brasileira, pp. 323-325. 405 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 humilhação que representa a capitulação a interesses estreitos de grupos dominantes, em casa ou nas relações internacionais.”559 As duas visões são passíveis de críticas, mas críticas em sentidos diferentes. O que se poderia repudiar no olhar de Caetano Veloso sobre o movimento seria justamente fazer o que Tinhorão faz, ou seja, julgar negativamente o tropicalismo, vinculá-lo aos interesses do capitalismo internacional do período, e ao desejo do governo militar brasileiro por alienação da população jovem do país. Já o sentido da crítica à interpretação de Tinhorão me parece puramente metodológico-estético. Metodológico por ele chamar o que faz de “História Social”, entendendo isso como simplesmente realizar um panorama econômico e político do contexto estudado, inserindo posteriormente, de forma subordinada, as manifestações culturais daquela sociedade. E estético pela simples ausência de estética em sua análise. Não há nenhuma preocupação com elementos artísticos do tropicalismo – há somente uma busca por análise político-ideológica do movimento. Nesse sentido, parece-me mais válida, ao menos para a proposta de meu trabalho, a definição dada por Veloso, o que não significa ignorar o fato de tratar-se talvez da principal figura de tal movimento, nem o fato de Verdade Tropical ter sido escrito 30 anos após o surgimento da Tropicália. Pois bem, escolhida a definição de tropicalismo a ser trabalhada aqui, falta acrescentar a esta um elemento fundamental, também apresentado por Veloso em seu livro: os diálogos estabelecidos entre os tropicalistas e o pensamento do modernista Oswald de Andrade, particularmente com seu conceito de antropofagia. Conceito profundamente contestador e subversivo da realidade sócio-cultural brasileira, que buscou, nas palavras de Randal Johnson e Robert Stam, a criação de uma cultura nacional genuína, através da consumação e da reelaboração crítica tanto da cultura nacional quanto das influências 559Caetano Veloso. Verdade Tropical. pp.16 e 17. 406 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 estrangeiras560. “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”561, dizia Oswald em determinada passagem do Manifesto Antropófago de 1928. “Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo que é vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas (...)”562, continua o escritor. O antropófago devora o que não é seu, o estrangeiro, para digerí-lo e devolvê-lo sob uma nova forma, marcada pelo primitivismo. Na efervescência dos anos 60, nos embates estabelecidos com os defensores de uma arte nacional-popular, a antropofagia oswaldiana seria de grande valor às intenções dos tropicalistas. Recorro novamente à Caetano: “A idéia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos 'comendo' os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos. (...) Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenças entre a experiência modernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonomecânicos dos anos 60.”563 Caetano, como o próprio conta em seu livro, descobrira Oswald de Andrade em 1967, por conta da encenação da peça O Rei da Vela (escrita pelo modernista 30 anos antes), pelo Teatro Oficina, comandado por José Celso Martinez Corrêa. Segundo o tropicalista, ali percebera que “havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia o âmbito da música popular.”564 Seria esse um movimento amplo de redescoberta da antropofagia, que ecoaria também, para além da música e do teatro, no cinema. Aqui entra Macunaíma-filme. 560Randal Johnson & Robert Stam. op. cit. 561Oswald de Andrade. op. cit. 562Ibidem, pp. 48-49. 563Ibidem, pp. 247 e 248. 564Ibidem, p. 244. 407 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 MACUNAÍMA E O “CINEMA TROPICALISTA BRASILEIRO” Como apontado anteriormente, Macunaíma foi a primeira obra de um cinemanovista a alcançar verdadeiro êxito de bilheteria – tendo, inclusive, tornado-se referência nesse sentido entre os cineastas do período565. O sucesso de público venho acompanhado de premiações em festivais, nacionais e internacionais566, o que contribuiu para o fortalecimento do filme como um exemplo a ser seguido. Ao adaptar para o cinema a rapsódia escrita 40 anos antes por Mário de Andrade, Joaquim Pedro trilhou caminhos arriscados. Primeiramente, abriu de qualquer pretensão de fidelidade exagerada. Percebeu ser impossível transpor o texto de Mário para o cinema da forma como este estruturava-se no papel – o que deveria ser feito era reinventar Macunaíma, em diálogo com o Brasil dos anos 60. Para isso, Joaquim Pedro realizou um movimento que já vinha ocorrendo em outros setores do campo artístico brasileiro – como apontou Caetano Veloso: o de redescoberta de Oswald de Andrade e da antropofagia. A antropofagia é fundamental para a compreensão de Macunaíma-filme. Como aponta Ismail Xavier, “(...) Macunaíma-filme elege (...) a antropofagia como princípio de interação entre as personagens, regra da sociedade. Ela aparece, portanto, como núcleo temático de seu discurso sobre a barbárie moderna (entenda-se, o capitalismo num país periférico)”567 565Como aponta Fernão Ramos Pessoa: ““O filme [Macunaíma], na época foi constantemente citado em entrevistas de integrantes do Cinema Novo como exemplo da possibilidade de atingir o grande público sem as fórmulas gastas da narrativa clássica”. Fernão Ramos Pessoa. História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987. 566Macunaíma ganhou, entre outros, os prêmios de melhor ator, melhor roteiro, melhor argumento, melhor cenografia e melhor ator coadjuvante no Festival de Cinema de Brasília de 1969, melhor filme do Festival de Cinema de Marília, em São Paulo, melhor ator e melhor fotografia no I Festival de Cinema de Manaus, em 1969, e melhor filme do Festival de Mar del Plata, Argentina, também em 1969. In: Ivana Bentes. Joaquim Pedro de Andrade. A Revolução Intimista. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996. 567Ismail Xavier. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1993. p. 150. 408 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 Nessa passagem de Xavier está um primeiro indício do caminho analítico a se seguir no que concerne às relações do filme com o movimento tropicalista. Macunaíma é, tradicionalmente, considerado um “filme tropicalista”. Mais: ao lado de Terra em Transe568, de Glauber Rocha, é comumente tido como exemplo máximo dessa “vertente” no cinema brasileiro, um fase que teria surgido no interior do Cinema Novo, a partir de 1967-68, rompendo com a busca pelo nacional e o popular, sofrendo forte influência dos feitos de Caetano e Gil na música – nesse caminho, uma série de outros filmes teriam sido feitos seguindo pressupostos tropicalistas, como Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr. Vejamos alguns comentários que comprovam essa caracterização de Macunaíma-filme como tropicalista. Na edição do dia 29 de outubro de 1969, a revista Veja noticiava o encerramento do I Festival Norte do Cinema Brasileiro, em Manaus, do qual Macunaíma sagrou-se o grande vencedor. Diz a reportagem: “O primeiro festival de cinema brasileiro deste ano, encerrado domingo último em Manaus sob um calor de 36 graus, confirmou, com a vitória de Macunaíma, (...) um tendência para premiar filmes coloridos, de produção cara e cuidada, com temas bem nacionais. E é certo que o tropicalismo, morte e enterrado na música popular, continua cada vez mais vivo no cinema brasileiro.”569 Ainda a Veja, agora na edição do dia 24 de dezembro do mesmo ano, anuncia a estreia do filme de Joaquim Pedro em São Paulo: 568A relação de Terra em Transe com o tropicalismo é, no mínimo, curiosa. Também naturalizado como um “filme tropicalista”, aquele que talvez seja a obra máxima de Glauber foi, na verdade, um catalisador do movimento, um dos elementos deflagradores deste, como afirma o próprio Caetano Veloso: “Se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas idéias, temos então que considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-7”. Caetano Veloso. Op. Cit. p. 99). 569Revista Veja. Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1969. p. 71. In: http://veja.abril.com.br/acervodigital 409 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 “(...) versão colorida e tropicalista do livro de Mário de Andrade...”570 Nove anos depois, em 1978, o diretor de teatro Antunes Filho, que encenava uma adaptação da rapsódia modernista, ao ser entrevistado pela revista Veja, e questionado sobre a semelhança ou não de sua versão de Macunaíma com a de Joaquim Pedro, declara: “Joaquim Pedro, a quem eu admiro muito, estava na época engajado no movimento do tropicalismo e fez um filme decididamente tropicalista, que servia ao movimento. Eu particularmente não gosto do filme: acho que, ao servir às contingências de um determinado momento, Joaquim Pedro reduziu muito o livro de Mário de Andrade...”571 Por fim, as palavras de Robert Stam e Randal Johnson, dois grandes estudiosos do cinema brasileiro do período: “Macunaíma is generally classified as part of the (...) so called 'cannibal-tropicalist' phase. (...) Because of rigorous censorship, the films of this period tends to work by political indirection, often adopting alegorical forms...”572 Pois bem, vale questionar aqui o seguinte: ser antropofágico, ou tematizar a antropofagia, nesse contexto, significa necessariamente ser tropicalista? Parece-me que não. Existem formas diversas de apropriar-se do pensamento oswaldiano, e significados múltiplos para a antropofagia em fins da década de 1960. Por isso a relevância do que diz Xavier na citação acima. Assim, se Caetano Veloso vê na antropofagia oswaldiana paralelo com o que os tropicalistas estavam fazendo, em sua devoração indiscriminada e sem 570Idem, 24 dezembro de 1969, p. 15. 571 Idem, 4 de outubro de 1978, p. 4. 572Randal Johnson & Robert Stam. Brazilian Cinema. Austin, Texas: University of Texas Press, 1988. 410 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 preconceitos das mais diversas referências, nacionais e estrangeiras – “só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” – Joaquim está falando de outra antropofagia. “O núcleo temático de seu discurso sobre a barbárie moderna (entenda-se, o capitalismo num país periférico)”, aponta Xavier. Ou seja, Joaquim Pedro de Andrade está, em Macunaíma, falando do canibalismo que move as relações capitalistas de uma sociedade em processo de industrialização e modernização, daqueles que são engolidos, devorados nesse processo. Mais: naquele ano de 1969, Joaquim Pedro falava também de Macunaíma como “um brasileiro devorado pelo Brasil”, que sucumbe, ao som do hino patriótico Desfile aos heróis do Brasil, de Villa-Lobos, e deixa para trás sua jaqueta verdeoliva, de onde emerge seu sangue. Enfim, parece-me inegável que existem diferenças visíveis entre a antropofagia dos tropicalistas e a de Macunaíma-filme. No entanto, se poderíamos questionar o enquadramento de qualquer filme do período dentro do tropicalismo – mesmo que fosse para, no final, concordar com tal classificação, mas ao menos embasando-a empiricamente – no caso da obra máxima de Joaquim Pedro há ainda um outro problema, que extrapola os sentidos intrínsecos à sua narrativa. Refiro-me aqui ao esforço do próprio cineasta por afastar-se ideologicamente da Tropicália, algo explicitado em declaração sua à revista Fatos e Fotos, em 1970: “Macunaíma mostra que o balão inchado e colorido do tropicalismo estava furado mesmo e tinha que se esvaziar, do mesmo jeito que Macunaíma, personagem, festeja muito, mas acaba comido pelo Brasil.”573 Nesse sentido, parece-me óbvio que essa relação entre Macunaíma e o tropicalismo é uma relação a ser problematizada, complexificada, discutida. Algo que, até o momento, 573Joaquim Pedro de Andrade. In: JOÃO, Antônio. “Dizem que meu filme é grosso. Também acho.”, in Fatos e Fotos, Rio de Janeiro, 2 abril de 1970. Apud: Heloísa Buarque de Hollanda. Macunaíma: da literatura ao cinema. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora e Embrafilme, 1978. 411 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 somente foi esboçado por Heloísa Buarque de Hollanda, em seu clássico livro sobre o filme de Joaquim Pedro – e não deixa de ser curioso que esta tenha sido a primeira obra escrita sobre Macunaíma-filme, ainda em 1978. Como mostra esta citação da autora: “No caso do filme Macunaíma (feito em 1969, época em que o tropicalismo já tendia a se dissolver em 'curtição'), se a imagem, por um lado, pode sugerir a aproximação com os traços de representação acumulativa e anacrônica da alegoria tropicalista, a opção pela articulação unívoca e didaticamente política da linha narrativa do filme se opõe à adesão.”574 CONCLUSÃO Heloísa Buarque de Hollanda aponta então que há aproximações, especialmente na estruturação da linguagem do filme, entre Macunaíma e o tropicalismo. Não se trata, portanto, de uma mera negação de tal relação, desqualificando todas as análises realizadas em que tal aproximação é feita. Como disse anteriormente, o objetivo aqui é complexificar, problematizar – e não negar. Afinal, tal aproximação não é, e nem poderia ser, gratuita. Estudar minuciosamente o filme de Joaquim Pedro. Estudar minuciosamente o tropicalismo. Esse é o caminho que pretendo seguir nesta pesquisa, para alcançar o objetivo proposto. O que faz com que retorne, aqui, ao olhar sobre o conceito de antropofagia. Como dito na introdução deste texto, foi o estudo desse conceito que levoume a essa temática de pesquisa. E parece-me que um olhar crítico, rigorosamente empírico, sobre os usos da antropofagia no cenário artístico-cultural brasileiro da década de 1960 é a chave para o êxito de minha proposta. Afinal, parece ser ela a principal responsável pela confusão, ou melhor, pela naturalização das relações entre Cinema Novo (e Macunaíma, 574 Heloísa Buarque de Hollanda. Op. Cit., pp. 101-102. 412 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 no caso que me interessa mais) e tropicalismo – e pode ser também a responsável pela mudança nesse olhar. Assim espero. FONTES: Acervo digital revista Veja: http://veja.abril.com.br/acervodigital BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Mário de. Macunaíma. 23 ed. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1986. ANDRADE, Oswald de. A Utopia Antropofágica. Obras completas. Rio de Janeiro, Editora Globo, 1995. BENTES, Ivana. Joaquim Pedro de Andrade: a revolução intimista. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1996. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Macumaíma: da literatura ao cinema. Rio de Janeira, Livraria José Olympio Editora e Embrafilme, 1978. JOHNSON, Randal & STAM, Robert. Brazilian Cinema. Austin, Texas, University of Texas Press, 1988. PESSOA, Fernão Ramos. História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987. TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1990. VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1997. 413 Anais do I Seminário de Graduandos e Pós-Graduandos em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. ISSN: 2317-045X. 27 e 28 de outubro de 2009 XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1993. p. 150. 414