CARLOS ALBERTO ALVES PRÁTICAS CULTURAIS DA REPÚBLICA VELHA DECANTADAS NA LITERATURA DE LIMA BARRETO E DE MONTEIRO LOBATO CURITIBA 2014 CARLOS ALBERTO ALVES PRÁTICAS CULTURAIS DA REPÚBLICA VELHA DECANTADAS NA LITERATURA DE LIMA BARRETO E DE MONTEIRO LOBATO Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do Grau de Mestre ao Curso de Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Mail Marques de Azevedo CURITIBA 2014 AGRADECIMENTOS À Professora Doutora Mail Marques de Azevedo pelo acolhimento, pela paciência, pela orientação segura e competente, e pela busca constante da melhoria deste trabalho. “Ontem explicava o mal da nossa raça: preguiça de pensar” Monteiro Lobato “Nunca houve tempo, em que se inventassem com tanta perfeição tantas ladroeiras legais” Lima Barreto SUMÁRIO RESUMO ............................................................................................................................. VII ABSTRACT ..........................................................................................................................VIII INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 1 1 REFERENCIAL TEÓRICO METODOLÓGICO.................................................................. 14 1.1 Contexto sócio-histórico-cultural...................................................................................... 15 1.2 Literatura e sociedade..................................................................................................... 18 1.3 Ironia, um risco. .............................................................................................................. 23 2 PRÁTICAS CULTURAIS DA REPÚBLICA VELHA......................................................... 37 2.1 O FUNCIONALISMO ..................................................................................................... 37 2.1.1 Candidatos ao serviço público ................................................................................... 42 2.1.2 O ingresso ................................................................................................................. 43 2.1.3 O funcionário ideal...................................................................................................... 46 2.2 O DOUTORISMO ......................................................................................................... 56 2.2.1 O fetichismo do título.................................................................................................. 60 2.2.2 Formação e ascensão social....................................................................................... 63 2.2.3 Imunidade doutoral .................................................................................................... 67 2.2.4 Personalismo e analogias biológicas ........................................................................ 69 2.3 O CONFORMISMO .................................................................................................... 80 2.3.1 A primazia do social sobre o indivíduo .................................................................... 81 2.3.2 Felicidade medíocre ................................................................................................. 84 2.3.3 Um caso de inconformismo ...................................................................................... 89 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 100 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 104 VI RESUMO Tendo como corpus as narrativas de Lima Barreto e a obra adulta de Monteiro Lobato, este trabalho focaliza, especificamente nos dois autores, a denúncia de práticas culturais perniciosas no período da República Velha. Pretende-se com a análise de tais práticas, evidenciar como os autores identificaram as convenções subjacentes e suas implicações sociais. O embasamento teórico inclui as considerações de Antonio Candido sobre a relação entre literatura e sociedade, as questões levantadas por Linda Hutcheon sobre ironia, as reflexões de Jonathan Culler sobre a relação indivíduo e sociedade, e ainda, textos de sociólogos como Émile Durkheim e mais especificamente sobre a sociedade brasileira do período em análise, a obra de Sérgio Buarque de Holanda. A metodologia básica é a comparação entre “passagens paralelas” em várias obras do mesmo autor, ou em obras de autores diferentes, sugerida por Antoine Compagnon como método de pesquisa para verificar a coincidência de ideias. O procedimento permite, no confronto entre os textos de Lima Barreto e de Monteiro Lobato, observar o emprego da ironia e da sátira, o que põe em relevo a comunhão de ideias dos autores que, indignados com a estagnação mental de seus contemporâneos, usam a literatura como arma no combate às mazelas físicas, sociais e mentais, que apontam como causa do atraso de um país que se pretendia republicano. PALAVRAS-CHAVE: Literatura e sociedade. Ironia e sátira. Lima Barreto e Monteiro Lobato VII ABSTRACT Having as corpus narratives by Lima Barreto, and Monteiro Lobato´s adult work this study focuses specifically on the two authors’ denunciation of pernicious cultural practices in the period of República Velha (Old Republic) in the Brazilian historical context. The aim of the analysis is to highlight how the authors identified the underlying conventions of such practices and their social implication. The theoretical background includes: Antonio Candido’s considerations about the relationship between literature and society; issues raised by Linda Hutcheon on irony; Jonathan Culler's reflections on the individual-society relationship, as well as the support of texts by prominent sociologists such as Émile Durkheim and, more specifically for the study of Brazilian society in the period, Sérgio Buarque de Holanda’s work. The basic methodology is the comparison between “parallel passages” in various works by the same author, or in works by different authors, suggested by Antoine Compagnon as a research method to verify the coincidence of ideas. The procedure allows the confrontation between Lima Barreto´s and Monteiro Lobato´s texts which puts into relief the communion of ideas between the two authors. Outraged at the mental stagnation of their contemporaries, they make use of irony and satire as weapons against the physical, mental and social diseases which they believe to be the causes of the backwardness of a country that intended to be Republican. KEY WORDS: Literature and society. Irony and satire. Lima Barreto and Monteiro Lobato VIII 1 INTRODUÇÃO Ao observar a sociedade brasileira atual, é impossível não se indignar com certas práticas, vistas como naturais pelo senso comum, mas que analisadas a fundo revelam-se verdadeiras manchas nacionais, perniciosas para o desenvolvimento social: o apadrinhamento, a exploração da coisa pública – res publica – e a aceitação passiva de desmandos que a prejudicam. A aversão que sentimos por práticas tais ganha relevância quando verificamos que autoridades de representação nacional condenam com veemência comportamentos vexatórios, que parecem caracterizar a cultura brasileira. A atitude firme do presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, na condução do processo rumoroso que galvanizou a opinião pública, empresta autoridade ao julgamento que faz da sociedade brasileira. Em entrevista ao jornalista Roberto D’Avila, exibida pela Globo News em fevereiro do corrente, declara: ”O Brasil é o país dos conchavos, do tapinha nas costas, o país onde tudo se resolve na base da amizade, e eu não suporto nada disso...”. São comportamentos sociais, conhecidos popularmente como o jeitinho brasileiro, criticados pelo ministro, mas infelizmente motivo de orgulho para alguns. Tais comportamentos ou práticas culturais, enraizadas em nossos costumes como naturais e aceitáveis, mas que desmoralizam a sociedade brasileira, são criticadas com veemência por escritores nascidos no quadrante histórico da República Velha, a exemplo de Lima Barreto e Monteiro Lobato, quando já se desvanecem as perspectivas de mudanças radicais na vida pública e privada dos brasileiros, que acompanhassem o alvorecer republicano. 2 A respeito da comunhão dos dois autores na missão de combater mazelas sociais e literárias, diz Alfredo Bosi: “Dão-se aqui as mãos, para afrontar a estagnação mental que os revoltava, Lima Barreto e o seu admirador Monteiro Lobato” (1989, p. 363). Lobato, especificamente, soubera “apontar as mazelas físicas, sociais e mentais do Brasil oligárquico da I República [...] pela forma irônica e o gosto da palavra pitoresca” (BOSI, 1989, p. 242). Tal comunhão de objetivos é ressaltada também por Wilson Martins, na obra História da inteligência no Brasil, ao comparar o personagem Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, e o Jeca Tatu, de Lobato: “Ficava, assim, criado, com o Jeca Tatu, o antimito do nacionalismo baboso, símbolo desmistificador, simétrico ao Policarpo Quaresma [...] os dois autores voltam, assim, simultaneamente, à literatura, para propor a mesma visão sardônica da realidade brasileira – e do problema nacional brasileiro” (MARTINS, 1996, p. 14). Tanto Lima Barreto como Monteiro Lobato, inquietos com o tipo de literatura da época, não acessível ao público em geral devido à linguagem rebuscada e pouco significativa, esforçaram-se para corrigir esse distanciamento. Por outro lado, empenharam-se para que suas obras não se limitassem a fins meramente estéticos, mas atingissem uma dimensão social de denúncia e de reflexão. A organização e estudo intensivo da obra de Lima Barreto, a que se dedicou Francisco de Assis Barbosa, levam-no a conclusões semelhantes. Para Barrreto, afirma Barbosa, “a literatura era a expressão de um momento da sociedade e não poderia dela permanecer desligada”. Cita, em confirmação, palavras do próprio autor: Parece-me que nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina externa dos gêneros, e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos 3 homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm de comum e dependente entre si. (BARRETO, 2006, p. 79) Carmem Lucia Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sachetta (2000) na obra Monteiro Lobato, furacão na Botocúndia, destacam que o trabalho de Lobato: [...] inaugura estilo próprio, que se confunde com o jornalismo por contemplar, de forma compreensível para o grande público, temas candentes que, traduzidos verbalmente, estabeleciam imagens referenciais. [...] para tentar despertar a consciência social e criar novos padrões de comportamento coletivo. (AZEVEDO; CAMARGO; SACHETTA, 2000, p. 50) Comungando os mesmos ideais e nascidos com apenas um ano de diferença ─ Afonso Henriques de Lima Barreto, em 1881, e José Bento Monteiro Lobato, em 1882 ─ as diferenças sociais que os separam não poderiam ser mais profundas. Lima Barreto era pobre, descendente de escravos e, embora tivesse boa educação ─ frequentou o curso da Escola Politécnica, que não concluiu ─ não passou de modesto amanuense na Secretaria da Guerra. Sua saúde e equilíbrio emocional foram destruídos por problemas de alcoolismo. Monteiro Lobato era neto do Visconde de Tremembé, formou-se em direito, foi proprietário de fazenda, empreendedor nas suas editoras e chegou a ser adido comercial do Brasil nos EUA. A diferença de classe social, porém, garante a relevância do julgamento dos fatos sociais observados. Fossem Lobato e Barreto oriundos do mesmo estrato social, aquele leitor cético poderia levantar a voz e argumentar que a visão dos escritores sobre a sociedade, como fruto de condições sociais idênticas, não seria representativa. No entanto, a coincidência de testemunhos sobre fatos ocorridos no mesmo espaço e tempo, prestados por testemunhas de antecedentes tão diversos, torna mais contundentes as denúncias feitas. 4 Pelas lentes de Lima Barreto e de Monteiro Lobato, temos acesso a microcosmos da sociedade, onde os simples relatos históricos ou ensaios sociológicos não penetrariam. Assim, seus escritos funcionam como um poderoso microscópio ou como um “termômetro nervoso de uma frágil República”, expressão empregada por Lilia Moritz Schwarcs na introdução da obra Contos completos de Lima Barreto. A escolha do corpus obedeceu prioritariamente, portanto, à visão comum de Monteiro Lobato e Lima Barreto sobre o papel da literatura, repetindo as palavras deste último citadas acima, de “ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm de comum e dependente entre si”. Importa ainda na escolha, o fato da carência da produção literária no período retratado, primeiras décadas do século XX no Brasil, conforme comentário de Edgar Cavalheiro que cita Monteiro Lobato e Lima Barreto como destaques no período: Por ocasião do aparecimento de Urupês, o movimento literário entre nós, caracterizava-se por uma completa e absoluta estagnação. Pelo menos com referência a prosadores. Não se escrevia nem se publicava nada. O jeito era reler o velho Machado de Assis ou Aluízio de Azevedo, Coelho Neto, João do Rio ou dona Júlia Lopes de Almeida. Depois desse grupo, que imperou até o começo do século, somente surgira Afrânio Peixoto, com seus hoje detestáveis romances. Mas na época era o que de melhor se podia apresentar. No conto, então, a pobreza passava de franciscana [...] No Rio existia o “caso” de Lima Barreto. Isaías Caminha é de 1909, e até 1922, embora irregularmente, Lima produziria alguns contos e romances que desfazem o claro inexistente. (CAVALHEIRO, citado em CECCANTINI, 2014, p. 45) Contribuíram para a escolha do corpus, a admiração pessoal pelos autores, a afinidade com suas ideias e com o inconformismo em relação a aspectos políticosociais deletérios que, surpreendentemente, se observam ainda nos tempos de hoje. 5 As passagens de Lima e Lobato, citadas abaixo, na voz de seus personagens e narradores, ilustram minha afinidade com o modo de pensar dos autores: Por que não sou como aquele barrigudo senhor, inconscientemente animalesco, que não pensa nos fins, nas restrições e nas limitações [...] e ficaria sem a tentação da analogia, sem o veneno da análise. (BARRETO, 2006, p. 602) Isto faz-nos lembrar o caso de um sujeito que se apresentou candidato à vereança e foi derrotado por poucos votos. No dia seguinte à eleição, os jornais davam notícia da pronúncia do homem como gatuno. – Que pena esta pronúncia não ter vindo nas vésperas da eleição - disse um cabo eleitoral. – Por quê? – interpela um terceiro. – Porque, se o eleitorado tem certeza de que o homem de fato era gatuno, elegia-o pela certa. (LOBATO, 2007b, p. 72) Destaca-se, no trecho de Lima Barreto, o tom de desabafo do crítico social que desejaria ser simples membro da massa ignara e conformista, a quem pouco se dá o que acontece à sua volta. A crítica sarcástica de Lobato ao eleitor da época, por outro lado, repercute ainda hoje, nas esquinas do século XXI, quando o eleitor brasileiro substitui a reflexão pela atração de nomes famosos. Decorre das considerações apresentadas o objetivo deste trabalho, qual seja, analisar como Lima Barreto e Monteiro Lobato retratam as práticas culturais de sua época, a fim de identificar as convenções subjacentes e suas implicações sociais. Respaldam nossa abordagem as considerações de Antonio Candido sobre a relação entre texto literário e contexto sócio-histórico, na obra Literatura e sociedade. Discute-se ali, em princípio, o movimento pendular diacrônico dos estudos literários a partir de ênfase sobre o contexto e a biografia do autor, a fim de compreender-lhe a obra – visão crítica predominante na França, na primeira metade do século XX – para chegar à consideração exclusiva do texto, característica do estruturalismo. “Hoje sabemos”, diz Candido, “que a integridade da obra não permite adotar 6 nenhuma dessas visões dissociadas; e que só podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra...” (2010, p. 13). É sobre o alicerce da visão associada de texto e contexto, explanada por Antonio Candido, que baseamos nossa análise da função social da literatura, em complementação ao seu valor estético, em obras escolhidas de Lima Barreto e Monteiro Lobato. Assemelha-se à de Candido a posição de Antoine Compagnon, em O demônio da teoria (2012), sobre a função da literatura: ainda no início do século XX, mas principalmente no final do século XIX, a literatura era concebida tanto com a função de fornecer uma moral social, uma defesa contra a barbárie, um serviço à ideologia dominante, como a de se opor a essa ideologia, trazendo uma visão política e social . A literatura pode, portanto, reforçar os costumes e a moral vigente ou questioná-los (COMPAGNON, 2012, p. 37). À teorização geral de Candido e Compagnon, acrescentamos estudos específicos de críticos brasileiros sobre os autores em pauta, relevantes para a interpretação de sua obra. O já citado Francisco de Assis Barbosa expõe que para Lima Barreto “[...] a Literatura era a expressão de um momento da sociedade e não poderia dela permanecer desligada” (BARBOSA, 2006, p.79). João Luiz Ceccantini, ao comentar a obra Urupês, ressalta que Lobato “... busca uma representação verista da vida rural brasileira e empenha-se em denunciar as mazelas do país” (CECCANTINI, 2014, p. 49), comentário que se pode estender às obras do autor que tratam da vida urbana. A par de comentários sobre o engajamento social dos autores, a crítica nacional se pronuncia a respeito de sua criação literária, nem sempre favoravelmente. O pessoalismo do texto limiano é um dos pontos chave das críticas 7 negativas ao escritor. Seu contemporâneo José Veríssimo censura-lhe o envolvimento pessoal no retrato de certos aspectos da sociedade do Rio de Janeiro: Quis o Sr. Lima Barreto [...] representar num quadro de romance certos aspectos sociais da nossa vida de grande capital [...] O quadro saiu-lhe acanhado e defeituosamente composto, e a representação sem serenidade, pessoalíssima” (VERÍSSIMO, 2006, p. 30) Menos contundente é o julgamento de Tristão de Ataíde: “A história de Isaías Caminha, como a de Policarpo Quaresma, como a de Gonzaga de Sá, três encarnações de sua própria personalidade, é esse mesmo contraste entre doçura de senti e mal de viver” (ATAÍDE, 2006, p.60). Lília Moritz Schwarcs resume as críticas à representação pessoalíssima de Lima Barreto, que prioriza aspectos da vida pessoal em sua criação literária: a condição social inferior e frustrações por não ser incluído em meios intelectuais e instituições canônicas. Seu inconformismo e ceticismo foram combustíveis para que colocasse na “boca de seus personagens críticas ao funcionalismo, à mania nacional de fazer passar por doutor ou aos protecionismos de várias ordens” (SCHWARCS, 2010, p. 16). Quanto a Monteiro Lobato, o escritor foi alvo de críticas controversas diante das polêmicas presentes em sua obra. Marisa Lajolo comenta que: Até hoje, ele e sua obra pagam um preço alto de um discurso móvel, dinâmico, e muitas vezes incômodo. [...] No artigo de estreia, a figura do caipira acocorado desagradou certas vertentes nacionalistas; a férrea oposição lobatiana a regimes ditatoriais desagradou os políticos no poder; suas campanhas pela exploração do petróleo e de novos métodos de siderurgia contrariaram inúmeros interesses; seu desacordo com certas posturas estéticas atraíram críticas acerbas e, mais recentemente, a representação do negro em sua obra tem gerado muita polêmica. (LAJOLO, 2014, p. 15) 8 A ironia cortante do texto barretiano e a sátira mordaz da literatura adulta de Monteiro Lobato põem a nu o panorama social pouco lisonjeiro da chamada República Velha, em que pululam oportunistas e bajuladores, em busca de sinecuras que lhes garantam o máximo de rendimento com o mínimo de esforço. O clientelismo e o apadrinhamento são práticas estabelecidas e aceitas como parte inerente do modo de ser brasileiro. São práticas culturais, expressão que tomamos de empréstimo a Jonathan Culler para definir comportamentos que não são exclusivos do indivíduo e que foram incorporados ao cotidiano das pessoas que passam a conviver com tais práticas e, às vezes, até a adotá-las, sem a necessária reflexão. A ausência de crítica leva a crer que tais práticas são naturais. Culler destaca que “... o principal ímpeto da teoria recente, que é a crítica do que quer que seja tomado como natural, a demonstração de que o que foi pensado ou declarado como natural é na realidade um produto histórico, cultural” (CULLER, 1999, p. 22). Daí, a relevância da corrente dos estudos culturais na atualidade. Em sua concepção mais ampla, o projeto dos estudos culturais é compreender o funcionamento da cultura, particularmente no mundo moderno, como as produções culturais operam e como as identidades culturais são construídas e organizadas,... (CULLER, 1999, p. 49) A fim de lançar luz sobre o emprego da expressão práticas culturais, servimo-nos do conceito de fato social, elaborado por Émile Durkheim: É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais. (DURKHEIM, 2007, p. 13) 9 O doutorismo, o costume brasileiro de distribuir livremente o título de doutor, objeto de análise em um dos capítulos deste trabalho, é exemplo de prática cultural, ou fato social durkheimiano. Primeiramente porque é exterior ao indivíduo, não foi ele que o criou, já está na sociedade independentemente de sua vontade. Em segundo lugar, porque é geral e não particular, ou seja, permeia todo o grupo social. Um terceiro motivo, o mais contundente, porque exerce coerção sobre o indivíduo: o sujeito que não se ajusta à prática do endeusamento do doutor poderá sofrer por parte dos membros do grupo algum tipo de coerção – uma reprimenda, um olhar torto, exclusão, ou seja, será penalizado por não seguir o costume coletivo. Já Roger Chartier, em À beira da falésia (2002), faz uso da expressão representação coletiva para designar “o conjunto de formas teatralizadas e ‘estilizadas’ (na expressão de Max Weber) graças às quais os indivíduos, os grupos, os poderes constroem e propõem uma imagem de si mesmos” (CHARTIER, 2002, p. 177). Neste trabalho optamos pela expressão práticas culturais por ser a que mais se aproxima de estudos literários, na tendência atual de buscar compreender a construção das identidades culturais. Incluem-se nas práticas culturais a serem observadas nas obras do corpus: política, religião, educação, questão racial, situação da mulher, estratificação social, condições da agricultura e da urbanização. Arrolamos como de especial interesse para a análise crítica certas práticas que funcionarão como balizas do retrato da sociedade brasileira traçado por Lima Barreto e Monteiro Lobato, o funcionalismo e o doutorismo. São práticas culturais arraigadas na sociedade brasileira, desde a época colonial, indicativas da ambição do homem comum de partilhar das benesses da coisa pública (res publica). É possível associar tais atitudes ao que Pierre Bourdieu chama de poder simbólico, 10 “esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 1989, p. 8). Consciente ou inconscientemente, essa cumplicidade gera o conformismo, a terceira baliza da estrutura deste trabalho. Como demonstramos acima, é cabível estabelecer paralelos entre textos de Lima Barreto e Monteiro Lobato com vistas à sua visão do papel social da literatura. Tal paralelismo é estabelecido na análise crítica de textos de Lima e Lobato distribuídos em diferentes capítulos, conforme os temas aglutinadores escolhidos: funcionalismo, doutorismo e conformismo. Como metodologia faremos a comparação de textos dos autores do corpus para identificar críticas e reflexões comuns. É o que Compagnon denomina de método de passagens paralelas, que ele considera “o método mais geral e menos controvertido, em suma, o procedimento essencial da pesquisa e dos estudos literários” (COMPAGNON, 2012, p. 67). Quanto à não relevância da relação autor-texto, Compagnon argumenta que há situações em que é necessário considerar a intenção do autor. A ironia e a sátira, por exemplo, são categorias que apenas fazem sentido quando se considera a intenção do autor de escrever uma coisa para ser compreendida por outra. “Implicitamente”, destaca ele “o método das passagens paralelas apela, pois, para a intenção do autor, se não como projeto, premeditação ou intenção prévia, pelo menos como estrutura, sistema e intenção em ato” (p. 71). ”Trata-se sempre, a partir de passagens paralelas, de detectar uma rede latente, profunda, subconsciente ou inconsciente” (p. 76). 11 Veremos, no decorrer deste trabalho, que ironia e sátira são táticas comuns nos textos de Lima Barreto e Monteiro Lobato. Compagnon alerta sobre os pressupostos desse método: O método das passagens paralelas pressupõe não apenas a pertinência da intenção do autor para a interpretação dos textos (preferimos uma passagem paralela do autor a uma passagem paralela de um outro autor), mas também a coerência da intenção do autor. (COMPAGNON, 2012, p. 74) O autor recorre à observação, citada em seu trabalho, do crítico americano P. D. Juhl, para afirmar a importância do método das passagens paralelas: “mesmo os críticos mais reservados quanto à intenção do autor, como critério da interpretação, não hesitam em convocar passagens paralelas para explicar o texto sobre o qual trabalham” (JUHL, citado em COMPAGNON, 2012, p. 71). No texto intitulado “Ressurreição do autor implícito”, Wayne Booth reforça a posição expressa em sua obra seminal The Rhetory of Fiction (1961) sobre a importância da intenção do autor: “Não entendo como é possível acreditar que as intenções do autor a respeito de um trabalho sejam irrelevantes para o modo como lemos o texto” (BOOTH, 2005, p. 75)1. Trata-se evidentemente do que Booth chama de autor implícito, e não do autor de carne e osso em sua existência extratextual. A ideia corrente na crítica atual denuncia a pertinência da intenção do autor, tendo à frente a tese da morte do autor aventada por Roland Barthes e ensaios de Michel Foucault, em especial “O que é um autor?” Este último resulta da conferência pronunciada por Foucault, diante da Sociedade francesa da filosofia, em 1969, em que afirma o apagamento do autor, tornou-se para a crítica um termo corriqueiro. Mas, o que importa não é verificar ainda uma vez seu desaparecimento, mas 1 Texto traduzido pela Profª Mail Marques de Azevedo. 12 considerar como lugar vazio, a um tempo indiferente e constrangedor, as localizações em que se exerce sua função. Estruturamos este trabalho em apenas dois capítulos: no primeiro construímos o pano de fundo da pesquisa que inclui o contexto sócio-históricocultural da chamada República Velha, e o embasamento teórico necessário para o desenvolvimento da argumentação. Para analisar a relação entre literatura e sociedade, explora-se a obra homônima de Antonio Candido. Teoria literária de Jonathan Culler fornece os conceitos básicos de práticas culturais e subsídios para a compreensão da agência do indivíduo na sociedade. O trabalho de Linda Hutcheon, Teoria e política da ironia, é o texto base para tratar da ironia, tropo contundente para interpretação das narrativas de Lima Barreto e Monteiro Lobato. O aspecto satírico é discutido como corolário da ironia dos textos como arma de conscientização do leitor. O segundo capítulo aponta e analisa as práticas culturais selecionadas: o funcionalismo, o doutorismo e o conformismo. Para os dois primeiros aspectos será analisado como o grupo se caracteriza, o espírito de que está imbuído, de que classe provém, qual sua motivação e como é visto pelos demais indivíduos. Para o último, a prática cultural que estagnou a sociedade brasileira do início do século XX e que manteve o status quo imoral que imperava naquela sociedade, analisar-se-á como os autores denunciaram a ausência de reflexão, a preguiça intelectual e a felicidade medíocre que favoreceram costumes nefastos para a sociedade. Importante função estratégica em suas narrativas assume o diálogo, de modo a elucidar o leitor e desenvolver seus personagens, símbolos que abarcam todos os indivíduos “oprimidos pela ordem vigente, a tomar consciência de sua situação...” (DE LUCA, 2014, p. 364). 13 Inicia-se cada subitem – o funcionalismo, o doutorismo e o conformismo – justificando a escolha das práticas culturais que constituem o motivo central, por meio de referências a obras discursivas e de ficção de Lima Barreto e Monteiro Lobato. Nas subdivisões ilustram-se aspectos do motivo central com a análise de excertos da prosa curta e longa dos autores. 14 1 REFERENCIAL TEÓRICO METODOLÓGICO Nicolau Sevcenko, em Literatura como missão (1999), dedica-se a rever a história cultural do Brasil do início do século XX, particularmente da capital federal, o Rio de Janeiro, a partir de obras literárias do período. Aponta nessa obra que a literatura é a forma de produção discursiva que [...] constitui possivelmente a porção mais dúctil, o limite mais extremo do discurso, o espaço onde ela se expõe por inteiro, visando reproduzir-se, mas expondo-se igualmente à infiltração corrosiva da dúvida e da perplexidade. É por onde desafiam também os inconformados e os socialmente mal-ajustados. Essa é a razão por que ela aparece como um ângulo de estratégia notável, para a avaliação das forças e dos níveis de tensão existentes no seio de uma determinada estrutura social. Tornou-se hoje em dia quase que um truísmo a afirmação da interdependência estreita existente entre os estudos literários e as ciências sociais. (SEVCENKO, 1999, p. 20) É pertinente associarmos os autores do corpus à passagem de Sevcenko ao citar a literatura como caminho possível por onde trilham os inconformados e malajustados. O crítico literário Terry Eagleton, na obra A ideia de cultura, também enfatiza a relevância de obras literárias para a compreensão da cultura: “É assim que, no transcorrer do século XIX, o romance realista se torna uma fonte de conhecimento social incomparavelmente mais vívida e complexa do que qualquer sociologia positivista” (EAGLETON, 2000, p. 76). O romance Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, seria um exemplo de fonte de conhecimento sobre questões sociais, de um período específico da história de um país, expresso na literatura. 15 Neste trabalho, empregar-se-á o termo cultura como uma teia de significados que o próprio homem criou e sobre a qual ele age e pensa. Essa ideia foi baseada no conceito elaborado por Clifford Geertz (1989) Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à procura de significado. (GEERTZ, 1989, p. 4) A relevância das estruturas de poder nas interrelações individuais na vida em sociedade, discutidas por Roger Chartier em História cultural entre práticas e representações (1988), complementam o conceito de cultura adotado nesta pesquisa. As modalidades de agir e de pensar, [...], devem ser sempre remetidas para os laços de interdependência que regulam as relações entre os indivíduos e que são moldados, de diferentes maneiras em diferentes situações, pelas estruturas de poder. (CHARTIER, 1988, p. 25) Atinge-se o ponto específico do desenvolvimento deste trabalho, relacionar literatura e sociedade, literatura e cultura. Como primeiro item discute-se o contexto sócio-histórico-cultural da Primeira República. 1.1 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO-CULTURAL A proclamação da República, em 1889, trouxe expectativas otimistas nos campos político, econômico e social. Na política esperava-se uma separação entre o público e o privado, e que a escolha dos governantes levasse o país rumo à moralidade na administração pública. O país era predominantemente agrícola em termos econômicos. Grande contingente de ex-escravos e imigrantes buscavam oportunidades nos centros urbanos que cresciam desordenadamente com 16 construções irregulares, sem infraestrutura e políticas públicas para a inclusão de toda essa gente. No campo político, os historiadores Jean Carlos Moreno e Sandro Vieira Gomes, em O Contemporâneo: mundo das rupturas (2010), apontam que com o advento do federalismo, o poder dos estados cresceu e também o poder local exercido pelos chamados coronéis: Os detentores do poder local, durante toda a Primeira República, foram chamados de coronéis. [...] Oriundos de troncos familiares tradicionais e com a inexistência de uma carreira para o serviço público, como líderes políticos de suas localidades, os “coronéis” distribuíam cargos públicos entre seus familiares e agregados, favorecendo o clientelismo e o nepotismo. [...] A República das Oligarquias colocava a “coisa pública” sob o domínio privado. Era uma sociedade extremamente desigual e excessivamente dependente do Estado. (MORENO; GOMES. 2010, p. 163) No campo intelectual, imperavam as ideias do positivismo na elite acadêmica voltada para cultura europeia e distante da nossa realidade. Na esteira do positivismo, chegavam ao Brasil: o darwinismo social – conjunto de teorias que defende a diferenciação intelectual e moral dos humanos de acordo com suas heranças fisiológicas; o método de Taine que busca compreender o homem à luz de fatores determinantes como meio ambiente, raça e momento histórico; e o pensamento de Spencer quanto à sobrevivência do mais apto que aplica as leis da evolução de Darwin a todas as atividades humanas. Trata-se em suma do conjunto de ideias que privilegia a raça branca ocidental, tida como civilizada e justificava sua dominação colonial. A miscigenação é considerada deletéria, o que incita a sociedade a todo tipo de exclusão social. Portanto o positivismo e o ponto de vista eurocêntrico imperavam no contexto social em que vivem e escrevem Lima Barreto e Monteiro Lobato. 17 Francisco de Assis Barbosa aponta que Lima teve acesso a essas ideias ainda muito jovem, quando sua curiosidade intelectual “concentrou-se, então, em Darwin, Spencer, Taine e Renan, autores da moda, que tanta influência haviam exercido na geração anterior à sua” (BARBOSA, 2006, p. 77). Leituras que levou para suas narrativas, quer realizando reflexões por meio dos personagens quer expondo situações do cotidiano que demonstram a repercussão dessas teorias. Exemplo é o prefácio de Recordações do escrivão Isaías Caminha, no qual o próprio Isaías declara que a motivação para escrever suas recordações foi a leitura de um fascículo de uma revista nacional no qual “um dos seus colaboradores fazia multiplicadas considerações desfavoráveis à natureza da inteligência das pessoas do meu nascimento” (BARRETO, 2006, p. 116) Embora essa leitura tenha provocado ódio e desejos de escrever “[...] algumas verrinas contra o autor...” (p. 116), após reflexão Isaías resolve escrever suas recordações, mas sem deixar de responder ao colaborador do fascículo. Diz o personagem: E foram tanto os casos dos quais essa minha conclusão ressaltava, que resolvi narrar trechos de minha vida, sem reservas nem perígrafe, para de algum modo mostrar ao tal autor do artigo, que, sendo verdadeiras as suas observações, a sentença geral que tirava, não estava em nós, na nossa carne e nosso sangue, mas fora de nós, na sociedade que nos cercava, as causas de tão feios fins de tão belos começos. (BARRETO, 2006, p. 117) Quanto às influências de Lobato, Carmem Lucia Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sachetta (2000), na obra Monteiro Lobato, furacão na Botocúndia, apontam que “... logo aos dezoito anos, levando-o a saltar de pensadores como Le Bon a Augusto Comte, e daí a Herbert Spencer, Lobato aporta em Nietzche,” (AZEVEDO; CAMARGOS; SACHETTA, 2000, p. 22). Na faculdade de Direito do Largo São Francisco recebeu influências dos professores Almeida Nogueira e Pedro 18 Lessa, o primeiro, “tendo muito provavelmente incutido em Lobato o interesse pela economia e negócios” e o segundo as ideias de: defensor da liberdade de pensamento e expressão como indispensável à dignidade humana. Os ideais de justiça, que pregava intransigentemente, calaram fundo no jovem que já sonhava com a utopia, e podem ser divisados ao longo de toda a obra lobatiana”. (AZEVEDO; CAMARGOS; SACHETTA, 2000, p. 17) Marcante também foi a influência de Belisário Pena, cujo texto Saneamento do Brasil alterou profundamente o julgamento de Lobato sobre o mundo rural: [...] um texto que iria influenciá-lo profundamente, levando-o a repensar seus juízos sobre o mundo rural: Saneamento do Brasil, de Belisário Pena, obra-chave que encerrava, como escreveria mais tarde, “a fase brasileira da mentira sistemática em relação à nossa higidez” e abria “o período fecundo do combate aos males endêmicos. (AZEVEDO;CAMARGOS;SACHETTA, 2000, p. 55) 1.2 LITERATURA E SOCIEDADE “Ela (a literatura) é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos” Nicolau Sevcenko Lima Barreto e Monteiro Lobato usam dos meios de comunicação disponíveis na época – livro, jornal e a revista – para despertar a consciência social e provocar novos padrões de comportamento nos indivíduos, chamando-os à reflexão. Se sua literatura não poderia reformular o mundo, poderia ao menos modificar a opinião dos concidadãos. Compagnon, na obra O demônio da teoria, expõe os vários papéis atribuídos à literatura ao longo do tempo. Passa pelos papéis de purgação, de instrução e deleite, e de fornecer uma moral social – vista como contribuinte à ideologia dominante ou subversiva quando produz dissensão e ruptura. Esta última função 19 contribui para que a literatura assuma “uma perspicácia política e social” (COMPAGNON, 2012, p. 37) que esclarece o povo. Como veremos adiante, esta é, segundo Barreto e Lobato, a função principal de sua obra literária. Costa Lima, em seu trabalho História, ficção, literatura, ao discutir o papel da ficção como reformuladora do mundo, aponta que “Não foram os romances e ensaios de Rousseau que provocaram 1789, mas simplesmente seu estímulo a um estado de revolta que fermentava havia anos e por diversas razões” (LIMA, 2006, p. 284). O autor adverte sobre a relevância do papel do leitor “Não esqueçamos que a ficção tem uma pragmática própria. Ela exige de seu receptor a capacidade de romper com os automatismos que presidem as interações cotidianas e, simultaneamente, o fluxo difuso da fantasia” (LIMA, 2006, p. 284). Antonio Candido, na obra Literatura e sociedade, comenta que a relação entre texto literário e contexto sócio-histórico oscila entre momentos em que era considerada importante e outros em que a critica literária ignora as relações extratextuais. Mas, “Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra [...]” (CANDIDO, 2010, p. 13). Candido ressalta que não se deve confundir o papel da análise literária com uma sociologia, cujo foco está na pesquisa da voga de um livro, na preferência estatística por um gênero, o gosto das classes, a origem social dos autores, a economia e a política. O problema da análise literária é outro e o que “interessa é averiguar que fatores atuam na organização interna (da obra)” (p. 14). Os fatores sociais levados em consideração na análise não se devem limitar a fornecer “apenas matéria (ambiente, costumes, ideias, grupos)” (p. 15), mas ir além, verificar o quanto atuam na constituição essencial da obra de arte. Um fato, como a nomeação de um 20 funcionário público baseado nos critérios de simpatia e familiaridade, representa um sentido “social simbólico, pois é ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes vigentes na época” (p. 15). Ao criar personagens e expor seus comportamentos sociais, o escritor explicita as raízes e as consequências de suas práticas culturais. Uma análise mais profunda do texto literário pode sugerir uma explicação para o condicionamento ou para a agência dos indivíduos na sociedade. Dessa forma, o crítico leva em conta o social, de maneira explicativa, não meramente ilustrativa e exterior ao texto. Segundo Candido, se considerarmos os fatores sociais “no seu papel de formadores da estrutura, [...] veremos que tanto eles quanto os psíquicos são decisivos para a análise literária” (CANDIDO, 2010, p. 22). Ao indagar sobre a influência do meio na obra de arte, ou, ao contrário, a influência desta sobre o meio, Candido aponta para uma interpretação dialética. Ao analisar os elementos fundamentais na comunicação artística – autor-obra-público – aponta que esse movimento dialético “envolve a arte e a sociedade num vasto sistema solidário de influências recíprocas” (p. 34). Nesse campo de influência, Candido agrupa as obras em “de agregação” e “de segregação”. De agregação é aquele grupo que incorpora o que já está estabelecido na sociedade, ou seja, que mantém o status quo. O contrário deste é o grupo de segregação, o que provoca a renovação e a criação de recursos, uma espécie de reflexão visando à mudança de comportamento. Monteiro Lobato e Lima Barreto fariam parte do grupo de segregação. Candido enfatiza, ainda, a grande influência que o jornalismo exerceu sobre a literatura, criando novos gêneros como a crônica, gênero que Lima Barreto e Monteiro Lobato exploraram, com grande sucesso. No período da República Velha, 21 a maior parte da população brasileira era composta de iletrados e mesmo entre os letrados o interesse direto em obras literárias era restrito. Nesse contexto, o jornal torna-se uma forma mais popular, capaz de atingir maior número de leitores, pois circula na rua, trabalha com o cotidiano em linguagem mais acessível a um público menos refinado. São fatores relevantes para escritores como Lima Barreto e Monteiro Lobato que tão bem combinam espírito arguto e crítica à capacidade de expressar em linguagem acessível a sua indignação moral. Ao tratar da função da literatura, Candido distingue três tipos: função total, social e ideológica. A função total caracteriza-se por uma representação da humanidade, com relativa intemporalidade e universalidade, sem se prender a lugar nem a momentos. A função social abrange o que a obra desempenha na construção das relações sociais, na realização de necessidades espirituais e materiais e “na manutenção ou mudança de uma certa ordem na sociedade” (CANDIDO, 2010, p. 55). A função ideológica refere-se a obras que divulgam ideias do autor e objetivos a atingir, o que depende diretamente da recepção do leitor; assim, é o público leitor que apontará o grau de aceitação das ideias divulgadas. Neste trabalho ganhará evidência a função social, como a que melhor caracteriza os textos de Lima e Lobato. Jonathan Culler ao abordar a relação entre literatura e ideologia, aponta que os romances são importantes mecanismos de internalização das normas sociais, agindo como confirmação da ideologia dominante; mas podem também desacreditála, quando fornecem uma modalidade de crítica social (CULLER, 1999, p.94). O leitor assume um ponto de vista por meio da identificação com os personagens. Diz-se que a literatura corrompe através dos mecanismos de identificação. Os paladinos da educação literária esperam, ao contrário, que a literatura nos 22 transforme em pessoas melhores através da experiência vicária e dos mecanismos de identificação. (CULLER, 1999, p. 111) Para discutir a relação entre convenções sociais e os atos individuais, segundo Culler, duas perguntas subjazem ao pensamento moderno: “[...] primeiro, o eu é algo dado ou é algo construído e, segundo, ele deveria ser concebido em termos individuais ou sociais?” (p. 107) Ou seja, a questão levantada é qual a implicação dos fatores sociais na composição da situação e da compreensão da realidade pelo indivíduo. “O problema de Emma Bovary, você pode argumentar, não é sua insensatez ou sua fascinação por aventuras amorosas, mas a situação geral da mulher em sua sociedade” (p. 110). A situação de Emma é produto da condição da mulher na sociedade francesa do século XIX – oprimida e sem voz – e não de sua natureza. A literatura, como prática discursiva, desempenha um papel contundente nessa questão, não no sentido de oferecer solução, mas como uma “perspectiva de mais reflexão” (CULLER, 1999, p. 117). Para essa reflexão, Culler aponta a relevância da relação entre estudos literários e estudos culturais: Em sua concepção mais ampla, o projeto dos estudos culturais é compreender o funcionamento da cultura, particularmente no mundo moderno: como as produções culturais operam e como as identidades culturais são construídas e organizadas,[...]. (CULLER, 1999, p. 49) Desta forma, a literatura desempenha papel relevante na desnaturalização do conformismo cultural, mostrando que há por trás das práticas culturais determinadas convenções que acarretam implicações sociais. Como discutido anteriormente, utilizamos a expressão “práticas culturais” para definir o foco de nossa análise dos textos. 23 Questão importante para este trabalho é a interpretação sintomática do texto como um “sintoma de algo não-textual [...] que é a fonte real de interesse, seja ela a vida psíquica do autor ou as tensões sociais de uma época”. Entretanto, ressalva Culler, que “quando enfoca a prática cultural da qual a obra é um exemplo, pode ser útil para uma explicação daquela prática” (CULLER, 1999, p. 71). É este exatamente o foco deste trabalho: analisar textos de Lobato e Barreto, que expõem ao ridículo práticas culturais da República Velha, por meio da ironia e da sátira, de modo a provocar o estranhamento. 1.3 IRONIA, UM RISCO “Peço desculpas a quem não entendeu a intenção da coluna. [...] Talvez tenha faltado o aviso ‘Atenção: ironia’. De qualquer jeito, culpa minha.” Luis Fernando Veríssimo A epígrafe foi uma explicação que o escritor Luis Fernando Veríssimo resolveu publicar devido à repercussão de sua crônica “A audácia”, publicada no jornal O Globo, de 15 de outubro de 2002. Na crônica, Veríssimo comenta o ato do presidente Luís Inácio Lula da Silva, de origem humilde, provar um vinho francês sofisticado. Sobre o fato, Luiz Costa Pereira Junior, editor da revista Língua portuguesa, comenta que “Mesmo autores de gênio, como Luis Fernando Veríssimo, passam cada vez mais pelo constrangimento de explicar a leitores incautos a ironia de seus textos” (PEREIRA, 2013). Em tom de revolta, muitos leitores escreveram à redação do jornal tachando Veríssimo de preconceituoso e elitista. Qual o porquê das pessoas não entenderem, ou entenderem mal, a intenção irônica na linguagem oral ou escrita? Pode-se colocar na conta da ignorância, da 24 inexperiência com textos, da falta de atenção, ou mesmo a preguiça de pensar um pouco mais? Linda Hutcheon, na obra Teoria e política da ironia, aponta que: [...] talvez o que se chama de ignorância (e mesmo falta de prática ou contexto) seja simplesmente uma questão de o ironista e o interpretador pertencerem a diferentes comunidades discursivas que não se intersectam ou não se sobrepõem suficientemente para que se compreenda uma elocução como sendo irônica. (HUTCHEON, 2000, p. 145) Comunidades discursivas envolvem aspectos sociais, históricos e culturais. Se o ironista – o autor da ironia – e o interpretador – o leitor – compartilham de contextos experienciais e discursos diferentes, o texto irônico corre grande risco de não ser compreendido como tal e sua interpretação ganhar caminhos tortuosos. “A ironia, então, significará coisas diferentes para diferentes jogadores” (HUTCHEON, 2000, p. 28). Assim não há nenhuma garantia para o ironista que seu texto atinja o leitor da maneira desejada. A polêmica em torno da obra de Monteiro Lobato foi parar no Supremo Tribunal Federal, em virtude de implicações de racismo. À representação junto à Controladoria-Geral da União (CGU) contra o uso do livro Caçadas de Pedrinho nas escolas brasileiras, seguiu-se a ação de autoria do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA) contra o conto “Negrinha”. Ambas alegam que a legislação antirracista não foi respeitada quando da aquisição das obras pelo Programa Nacional da Biblioteca na Escola (PNBE). Uma vez que os conteúdos são racistas, os livros não poderiam ser comprados com dinheiro público e distribuídos às escolas, sem ao menos notas explicativas sobre o texto e até que os professores fossem devidamente capacitados para abordar o tema. A atitude dos autores das ações judiciais, ao alegarem que os textos 25 lobatianos necessitam de notas explicativas e que os professores não estão preparados para a leitura de Lobato, ilustra o risco do emprego da ironia, ressaltado por Hutcheon, quando o autor e o leitor não fazem parte da mesma comunidade discursiva. A autora adverte que em uma sociedade democrática “onde diferentes posições ou verdades teoricamente coexistem e são valoradas, a ironia é ainda mais arriscada”, pois alguns “poderiam também não atribuir ironia e pensar que você estivesse defendendo o que você na verdade está criticando” (HUTCHEON, 2000, p. 35). O conto “Negrinha” de Monteiro Lobato ilustra a questão. O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivos. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. [...] A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos – e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo – essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! (LOBATO, 2008a, p. 21) Destacam-se no trecho acima, a ironia no emprego do adjetivo “excelente” referindo-se a Dona Inácia e o discurso indireto livre “essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia!” no qual o narrador se afasta e deixa a própria personagem – Dona Inácia – emitir seu pensamento. Uma leitura desatenta, ou maldosa, deixa passar despercebida a ironia do texto, tanto no adjetivo excelente como no discurso indireto livre. À questão do pertencimento a comunidades discursivas diferentes, acrescenta-se a de que certos assuntos podem ser inapropriados numa certa época (HUTCHEON, 2000). Talvez essa fosse uma possível explicação para a polêmica sobre a obra de Monteiro Lobato, principalmente no momento atual, no Brasil, onde a exacerbação do politicamente correto tem gerado muitas discussões. 26 Para evitar interpretações errôneas, Luis Carlos Pereira Junior comenta que: Para garantir que a preguiça interpretativa, a velocidade da leitura ou o pouco espaço para a escrita não desperdicem uma intenção sarcástica, uma voz de comando ou o ardor de um escritor despreparado, tipógrafos de várias épocas tentaram tornar mais flagrantes, já na pontuação, a existência de intenções discursivas. (PEREIRA, 2013, p. 18) Pereira aponta que é de 1668 o primeiro emprego de sinal diacrítico para sinalizar declarações irônicas, que era dada por um ponto de exclamação invertido no final da frase (ꜟ). Monica Alvarez Gomes das Neves, na sua tese de doutorado “Aspectos cognitivos na constituição da ironia”, defendida na UFRJ, destaca o alto percentual do uso de aspas como recurso para marcar a ironia. Atualmente, nos discursos orais, não tem sido raro encontrarmos pessoas utilizando o gesto manual de aspas para indicar ao seu interlocutor que aquela expressão não significa o que está sendo dito. Mas, marcar a ironia com sinais seria um modo de explicá-la, o que a enfraqueceria, ou até mesmo desqualificaria (HUTCHEON, 2000). A autora aponta que alguns marcadores têm a capacidade de funcionar como estruturantes, sem necessidade de apresentar qualquer outra marca gráfica. Exemplos extraídos do corpus ilustram alguns mecanismos da ironia, apontados por Hutcheon: Emprego de litotes. Um exemplo é o modo como Monteiro Lobato, no conto “Negrinha”, se refere à personagem “A excelente D.Inácia era mestra na arte de judiar crianças” (LOBATO, 2008a, p. 21, ênfase acrescentada). Marca também empregada por Lima Barreto, em Recordações do escrivão Isaías Caminha: “[...] e não sem uma certa elegância, chegou o fósforo aceso ao seu e depois de esperar que eu também acendesse, falou-me:” (BARRETO, 2006, p. 132, ênfase acrescentada). 27 Emprego da contradição. No romance Numa e a ninfa, Lima Barreto usa da contradição para ironizar o positivismo. No trecho abaixo, o narrador onisciente faz comentários sobre Inácio Costa, um político companheiro de Numa na Câmara: Julgava-se com a certeza: e, firmado na ciência, pois tirava toda a sua argumentação do positivismo, todo ele baseado na ciência, da matemática, condenava os adversários à fogueira. Escusado é dizer que pouco sabia de matemática e falava por fé. Era um crente que tinha certeza da revelação política... (BARRETO, 2006, p. 419) O personagem fala de positivismo sem ter noção de sua essência racional e científica. Notem-se expressões como “fé”, “condenava os adversários à fogueira” e “revelação” todas contraditórias em relação ao positivismo. Em Lobato, no conto “Gens ennuyeux”, os personagens vão a uma conferência na Sociedade Científica, e lá adentram “com religiosa compostura, pisando com passos humílimos o augusto Pagode da Ciência”, e um deles comenta: “– Está-me apetecendo conhecê-los aos nossos sábios.” Depois da abertura pelo presidente da Sociedade, passa-se a palavra ao conferencista: “– Minhas senhoras e meus senhores! Me parece que a outro e não a mim [...] – Entreolhamo-nos àquele me com piscadelas gramaticas, e entregamos nossos quatro ouvidos às palavras do Sábio” (LOBATO, 2007b, p. 101). A incompatibilidade está na posição do conferencista, tido como sábio que, logo às primeiras palavras, tropeça na colocação pronominal. Emprego de incompatibilidade. Exemplo de Lima Barreto, em Os bruzundangas, sobre profissionais e seus ofícios: 28 Quando lá estive, conheci um bacharel em direito que era consultor jurídico da principal estrada de ferro pertencente ao governo, inspetor dos serviços metalúrgicos do Estado e examinador das candidatas a irmãs de caridade. Como veem, eles exercem conjuntamente cargos bem técnicos e atinentes aos seus diplomas. (BARRETO, 2006, p. 770) Nota-se a incompatibilidade entre a formação jurídica e as funções exercidas pelo bacharel, supervisionar serviços metalúrgicos e selecionar freiras. A descrição das atividades inicia-se de modo sério (consultor jurídico, atividade compatível com sua formação), vai se afastando aos poucos (serviços metalúrgicos) e atinge o epítome do absurdo (seleção das irmãs de caridade), o que torna a situação cômica e ridícula. O ridículo é uma arma poderosa para satirizar práticas culturais bizarras. A incompatibilidade entre formação profissional e as atividades exercidas também é explorada por Monteiro Lobato, no conto “O luzeiro agrícola”: “O novo ministro era bacharel em ciências jurídicas e sociais, ex-chefe de polícia e tão entendido em agricultura como em arqueologia inca” (LOBATO, 2007b, p. 139). No caso, o ministério citado é o da agricultura. Emprego do exagero. Na obra Coisas do reino do Jambom, Lima Barreto emprega o mecanismo irônico em uma sequência de adjetivos que qualificam o Estado de São Paulo: “Isto, concluímos nós, deve se dar com os míseros mortais, mas não com o magnífico, rico, opulento, abastado, golcondesco Estado de São Paulo” (BARRETO, 2006, p. 903). No já citado “Gens ennuyeux” de Lobato, o exagero atinge o ápice, nos comentários do personagem sobre o discurso do conferencista a respeito da História da Terra: Depois agarra os trilobitas, os amonitas e mói, remói, tremói, pulveriza os pobres 29 bichinhos, digressiona, gesticula, sua: o amonita... porque o trilobita...não obstante o amonita...bita...nita...e nita e bita, lá borbota ele ciência pura, híspida, hirsuta, inexorável, num fluxo que berra por tampões de percloreto de ferro. (LOBATO, 2007b, p. 102) Confirma-se o argumento de Hutcheon: “[...] nada é sinal irônico em si e por si só” (HUTCHEON, 2000, p. 227). A ironia depende sempre de uma comunidade discursiva que a reconheça. O público leitor brasileiro, tanto de Lobato quanto de Lima Barreto, percebe o exagero do discurso do personagem que tripudia com termos coloquiais cunhados ao acaso sobre a erudição ennuyante do conferencista. Além das marcas mencionadas por Hutcheon, existem outras próprias de Monteiro Lobato e Lima Barreto, a exemplo do emprego do adjetivo no grau superlativo absoluto sintético, de que citamos exemplos a seguir. Lobato, no conto “A cruz de ouro”: Chegaram ambos àquele alto posto militar pela razão estratégica de colherem mais de dez mil arrobas de café. Se em vez de dez colhessem apenas cinco mil, seriam majores ou capitães. Este inteligentíssimo critério do nosso militarismo é garantia de paz muito mais segura do que a Liga das Nações.” (LOBATO, 2007b, p. 145) No conto “Eficiência militar” de Lima Barreto, a repetição do grau superlativo sintético absoluto no discurso de um general de exército que pretende reverenciar o vice-rei, estampa a ironia: “– É verdade o que Vossa Excelência Reverendíssima, Poderosíssima, Graciosíssima, Altíssima e Celestial diz;” (BARRETO, 2006, p. 1098). O desejo de agradar o vice-rei com tantos epítetos laudatórios, numa gradação que chega ao “celestial”, faz do bajulador objeto do ridículo e da sátira. Mas, se a ironia pode provocar falsas interpretações, por que usá-la? Possivelmente porque funciona como uma espécie de oposição ao sistema vigente opressor, o que se pode associar a Lima Barreto. Sua condição sócio-histórico- 30 cultural - pobre, mulato, vivendo no contexto histórico imediatamente pós-libertação dos escravos, onde vigoravam ideias racistas – faziam-no sentir-se oprimido e cético. “Operando como uma forma de guerrilha, a ironia é vista como se trabalhasse para mudar a maneira de interpretar das pessoas” (HUTCHEON, 2000, p. 56). Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto é explícito sobre o emprego da ironia como instrumento da sátira para mudar o que está incorreto: “Mas, não é ambição literária que me move a procurar esse dom misterioso para animar e fazer viver estas pálidas Recordações. Com elas, queria modificar a opinião dos meus concidadãos, obrigá-los a pensar de outro modo” (BARRETO, 2006, p. 163). Monteiro Lobato, embora de classe social diversa da de Lima Barreto, mas não menos indignado com o sistema, anuncia pretensões semelhantes no conto “O plágio”: “Fazer literatura” é a forma natural da calaçaria indígena. Em outros países o desocupado caça, pesca, joga o murro. Aqui beletra. Rima sonetos, escorcha contos ou tece desses artiguetes inda não classificados nos manuais de literatura, onde se adjetiva sonoramente uma aparência de ideia, sempre feminina, sem pés e raramente sem cabeça, que goza a propriedade, aliás preciosa, de deixar o leitor na mesma. (LOBATO, 2007b, p.117) A crítica de Lobato aos literatos do Brasil evidencia-se no emprego irônico dos termos “beletra”, “artiguetes” e “preciosa”, e no comentário sobre a inutilidade desses textos que para nada contribuem, pois deixam “o leitor na mesma”. Infere-se, assim, que Lobato partilha da ideia de Lima Barreto de que o texto literário deveria mexer com o leitor, provocar, ao menos, uma reflexão. Hutcheon argumenta que devido à natureza transideológica da ironia, se ela pode ser usada “para reforçar a autoridade, também pode-se usá-la para fins de 31 oposição e subversão” (HUTCHEON, 2000, p. 52) como é o caso do uso da ironia por Lima e Lobato. A ironia vai além de simples crítica: é carregada de julgamentos por parte do ironista, como o deboche e o escárnio (HUTCHEON, 2000, p. 65). Deboche e escárnio são pratos favoritos de Monteiro Lobato e Lima Barreto. Se alguém desejar encontrar na literatura brasileira um exemplo clássico de ironia, em forma de escárnio e deboche, vá diretamente a Os bruzundangas de Lima Barreto. A narrativa trata dos usos, dos costumes, das instituições civis e políticas da República Federativa dos Estados Unidos da Bruzundanga. No capítulo II, que trata da nobreza daquela República, o narrador é interrogado por um leitor que solicitou mais informações sobre tal Estado, já que não encontrara nada sobre ele. A resposta do narrador é um primor de ironia: O meu simpático leitor não me disse que obras consultou, mas certamente ele não procurou informações nos livros que o governo da Bruzundanga manda imprimir, dando fabulosos lucros aos impressores e editores, livros escritos em várias línguas e destinados a fazer a propaganda do país no estrangeiro. [...] Pode ter acontecido, entretanto, que o meu leitor amigo os tivesse procurado nas livrarias principais; mas não é aí que eles podem ser encontrados. [...] Onde o meu leitor poderá encontrálas, se quer ter informações mais ou menos transbordantes de entusiasmo pago, é nas lojas de merceeiros, nos açougues, nas quitandas, assim mesmo em fragmentos, pois todos as pedem nas repartições públicas para vendê-las a peso aos retalhistas de carne verde, aos vendeiros e aos vendedores de couves.” (BARRETO, 2006, p. 768) De Monteiro Lobato, vejamos uma passagem típica de deboche dirigida a um figurão da República Velha, o senador Pinheiro Machado, no conto “A facada imortal”, cujo narrador descreve o personagem Indalício Ararigbóia, que confessa sua inspiração oratória: 32 Lembro-me bem: era um rapaz lindo, de olhos azuis e voz suavíssima; as palavras vinham-lhe como pêssegos embrulhados em paina, e sabiamente camaralentadas, porque, dizia ele, o homem que fala depressa é um perdulário que deita fora o melhor ouro da sua herança. Ninguém dá tento ao que esse homem diz, porque quod abundat nocet. Se não valorizamos nós mesmos as nossas palavras, como pretendemos que os outros as prezem? Meu mestre nesse ponto foi o general Pinheiro Machado, num discurso que lhe ouvi certa vez. Que astuciosa e bem calculada lentidão! Entre uma palavra e outra o Pinheiro punha um intervalo de segundos, como se sua boca estivesse perdigotando pérolas. E a assistência o ouvia com religiosa unção, absorvendo pérolas o que como pérolas era emitido. Substantivos, adjetivos, verbos, advérbios e conjunções caíam sobre os ouvintes como seixos lançados à lagoa; e antes que cada um chegasse bem lá no fundo, o general não soltava outro. Cacetíssimo, mas de alta eficiência. (LOBATO, 2008a, p. 148) Não há como desvencilhar ironia da intencionalidade do autor (HUTCEHON, 2000). Mas como ter acesso à intenção irônica do autor? “A única maneira de se ter certeza de que uma declaração foi intencionalmente irônica” diz a autora, “é ter um conhecimento detalhado das referências pessoais, linguísticas, culturais e sociais do falante e do seu público” (p. 169). Por isso colocaram-se neste trabalho informações sobre o contexto histórico-cultural da época, e sobre a biografia dos autores, como embasamento da análise de sua produção literária. Por meio da comparação de vários textos, extraídos das obras, buscaremos a reiteração de ideias, mas sempre com a preocupação levantada por Compagnon de “que o paralelismo de duas passagens será pertinente se, e somente se, elas remeterem a uma intenção coerente” (COMPAGNON, 2012, p. 74). Assim, pretende-se fazer uma análise de temas que congreguem ideias de Lima e Lobato, tanto em obras discursivas – ensaios, prefácios, cartas, colunas em jornais – como na prosa de ficção. 33 Ressalte-se que a intenção, mesmo declarada pelo próprio autor, não garante a concretização do intento. Robert John Oakley (2011), na obra Lima Barreto e o destino da literatura, aponta que: A intenção da obra que inaugurou Lima Barreto como romancista era, segundo ele mesmo declarou, demonstrar por meio dos fracassos do herói o preconceito e a hostilidade que o negro enfrentava na sociedade brasileira no início do século XX. Frisamos aqui os intentos do autor, precisamente por ser tão gritante a diferença entre esses propósitos declarados (e os do narrador) e as intenções evidenciadas no romance publicado no fim de 1909. (OAKLEY, 2011, p. 49) A obra a que Oakley faz referência é Recordações do escrivão Isaías Caminha, publicada em 1909, romance que não evidencia, conforme a declaração do próprio autor, a questão racial. Mas se, conforme Hutcheon, para entendermos a ironia é imprescindível conhecer a intencionalidade do autor, chega-se ao debate sobre a figura do autor. Eurídice Figueiredo (2014), no artigo “Roland Barthes da morte do autor ao seu retorno”, analisa artigos de Maurice Blanchot, Michel Foucault e Roland Barthes, no que concerne à questão sobre a figura do autor e constata que “uma análise desses três textos pode detectar diferenças significativas na abordagem do assunto, ou seja, de que ‘autor’ cada um deles estava falando”. Nesse trabalho, Eurídice aponta que “Durante os anos de 1960 havia a percepção de que não interessava à crítica estruturalista a vida do autor empírico” e levanta a questão “[...] de que ‘autor’ cada um deles estava falando” e constata que “o autor que escreve não se confunde com o ser empírico que tem o nome do autor” (p. 182). Hutcheon realiza uma ordenação das várias funções que críticos, ao longo dos anos, atribuíram à ironia. Destaco como pertinente aos autores do corpus, as funções de autoproteção, a corretiva e a assaltante. 34 A função autoprotetora pode ser interpretada como um mecanismo de defesa por parte do ironista que ao lançar mão: ... de um uso autodepreciador da ironia como um modo de sinalizar sua modéstia relutante, seu autoposicionamento (como marginalizados e talvez automarginalizados), suas dúvidas a respeito de si mesmos e talvez mesmo sua rejeição da necessidade de presumir ou assumir uma superioridade... (HUTCHEON, 2000, p. 80) Não é raro encontrarmos Lima Barreto fazendo uso dessa função, fruto de sua condição social e de seu posicionamento depreciativo e excludente de si próprio. Como exemplo da função acima, recorro ao prefácio do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, assinado pelo próprio personagem Isaías Caminha Perdoem-me os leitores a pobreza da minha narração. Não sou propriamente um literato, não me inscrevi nos registros da Livraria Garnier, do Rio, nunca vesti casaca e os grandes jornais da Capital ainda não me aclamaram como tal – o que de sobra, me parece, são motivos bastante sérios, para desculparem a minha falta de estilo e capacidade literária. (BARRETO, 2006, p. 117) A função corretiva visa a provocar uma mudança de pensamento nos leitores, um modo de tornar o indivíduo mais crítico em relação a situações que no cotidiano passam por ele como naturais (HUTCHEON, 2000). Lobato, no conto “O luzeiro agrícola”, faz da fala do Ministro da Agricultura uma denúncia da ineficiência da máquina administrativa governamental, que cria secretarias e repartições, com a única função de lotar funcionários, sem nenhum retorno prático para a sociedade. Elas existem simplesmente para fazer funcionar outras, tão inúteis quanto as primeiras. O leitor fará necessariamente comparações com a máquina governamental, de que tem conhecimento. 35 Vejamos o discurso do ministro que inicia com uma exclamação irônica: – Está claro, homem! Para que diabo despendeu o governo tanto dinheiro na montagem do forno? Está claro que para incinerar as notas velhas e os relatórios novos. Deste modo se conservam em perpétua atividade o pessoal da Imprensa, o do Forno e o dos Ministérios. Veja como é sábia a nossa organização administrativa! A montagem do forno foi a melhor ideia do governo passado. Antes dele a Imprensa Nacional vivia entulhada de impressos; a produção de relatórios, função capital deste Ministério, periclava. E era tudo uma desordem, um desequilíbrio capaz de induzir o governo à supressão da Imprensa e do meu Ministério. O forno sanou a situação. (LOBATO, 2007b, p. 138) O excerto acima expõe a veia satírica de Lobato. Segundo Hutcheon, a sátira é “melhorativa em intenção, é a sátira em particular que frequentemente se volta para a ironia como um meio de ridicularizar – e implicitamente corrigir – os vícios e as loucuras da humanidade (HUTCHEON, 2000, p. 84). Paulo Astor Soethe, no artigo “Sobre a sátira: contribuições da teoria literária alemã na década de 40” (1988), aponta que a sátira apresenta uma finalidade moralizadora e que faz uso da irreverência e da troça para criticar o que se considera errado. No excerto, a não-percepção do absurdo da própria fala – realizar tarefas desnecessárias para fazer funcionar a máquina governamental – expõe o Ministro ao ridículo e provoca a reflexão do leitor. A função assaltante da ironia, segundo Hutcheon, é um “ataque cortante, derrisório, destrutivo ou às vezes de uma amargura que pode sugerir não um desejo de corrigir, mas simplesmente uma necessidade de registrar desprezo e zombaria” (HUTCHEON, 2000, p. 85). Como exemplo, cito o comentário do narrador sobre o doutor Armando Borges, personagem do romance Triste fim de Policarpo Quaresma: “Não contente com isso, escrevia artigos, estiradas compilações, em que não havia nada de 36 próprio, mas ricos de citações em francês, inglês e alemão” (BARRETO, 2006, p. 356). Evidencia-se o desprezo e o tom de zombaria que Lima Barreto imprime a determinados textos que mais se preocupavam com aparências do que com conteúdos. Recorro a Balzac para finalizar esta seção sobre ironia: Por isso, quando me quiserem opor a mim mesmo, isto decorrerá por fazerem má interpretação de alguma ironia, ou, então, reverter contra mim as palavras de uma das minhas personagens, manobra costumeira dos caluniadores. (BALZAC, 2012, p. 109) 37 2 PRÁTICAS CULTURAIS DA REPÚBLICA VELHA Durante a leitura das narrativas do corpus, várias aspectos socioculturais surgiram como alvo das farpas dos autores: a política, o liberalismo, a questão racial, o casamento, a literatura, o positivismo, o papel da mulher, entre outros. Mas os que mais se destacaram em quantidade de passagens e veemência nas críticas, por isso selecionados para este trabalho, foram o funcionalismo, o doutorismo e o conformismo. O primeiro, gerado pela ignorância, pela falta de qualificação dos nacionais para assumir cargos de responsabilidade, e pela promiscuidade entre o público e o privado. O segundo, fruto da mania nacional de tratar com respeito abjeto a qualquer indivíduo que possua o menor resquício de superioridade de classe. O último emerge da preguiça e desmazelo em alterar o status quo. 2.1 O FUNCIONALISMO “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar, ...” Sérgio Buarque de Holanda Inicialmente, convém esclarecer como o termo funcionalismo será empregado aqui. No dicionário encontramos o termo definido como “o conjunto de funcionários públicos: [...] o trabalho como funcionário público” (BORBA, 2011, p. 654); ou seja, aqueles que prestam seus serviços, braçais ou intelectuais, ao Estado e deste advêm seus vencimentos. Mas, seu emprego aqui vai além do significado do dicionário, inclui toda uma relação social da classe com a sociedade brasileira. Como declarado na introdução, examinam-se a caracterização do grupo, os interesses que o movem, e, principalmente, a maneira como é visto e tratado pelos outros membros da sociedade. 38 Um primeiro motivo da atração exercida pelo funcionalismo público é a carência de oportunidades de empregos à época. O país dava seus primeiros passos rumo à urbanização, passos que se restringiam a pouquíssimas cidades, geralmente as capitais. Nas primeiras décadas após a abolição, o Brasil era ainda um país predominantemente rural, com técnicas agrícolas rudimentares, onde encontrar emprego compensador equivalia a tirar a sorte grande. Lobato explora, de maneira jocosa, o assunto no conto “Sorte grande”: A vida em tais lugarejos lembra a dos liquens na pedra. Tudo se encolhe no “limite” – no mínimo que a civilização comporta. Não há “oportunidades”. Os meninos mal empenam emigram. As meninas, como não podem emigrar, viram moças; as moças passam as “tias”; e as tias evoluem para velhinhas enrugadas como o maracujá murcho – sem que nunca venha ensejo para a realização dos dois grandes sonhos: casamento ou ocupação decentemente remunerada. Os empreguinhos públicos, de paga microscópica, são tremendamente disputados. Quem se aferra a um, dali só é arrancado pela morte – e passa a vida invejado. Uma só saída para as mulheres, afora o casamento: a meia dúzia de cadeiras das escolinhas locais. (LOBATO, 2008a, p. 175) Destaca-se nessa passagem, a crítica às instituições e ao comportamento das pessoas, dissimulada pelo riso. Uma análise mais aprofundada, porém, evidencia insatisfação com a mesmice, a estagnação e a falta de iniciativa para buscar algo melhor na analogia estabelecida com a vida provinciana da mulher, à qual a expressão “sem que nunca venha ensejo...” empresta ênfase especial. O emprego do diminutivo no sintagma “empreguinhos públicos”, permite inferir o tom irônico e depreciativo do texto. Mas será que mesmo esses “empreguinhos públicos, de paga microscópica” eram interessantes? Lobato nos dá resposta no conto “A nuvem de gafanhotos”: 39 Ser empregado público de inferior categoria e por mal de pecados demissível: será isso programa que seduza alguém? –É E para Pedro Venâncio mais que seduzia – sorria. Foi, pois, com enlevo de alma que recebeu a notícia de sua nomeação para fiscal da Câmara Municipalzinha de Itaoca. – “Vou sossegar” – disse consigo, esfregando as mãos de contentamento. – “Cavei o osso e agora é roê-lo pela vida em fora na santa paz do Senhor.” E ferrou o dente no ossinho. (LOBATO, 2008b, p. 33) As vantagens do sossego, motivo primeiro porque muitos procuravam o serviço público, Lobato explora no conto “Um suplício moderno”. A passagem abaixo mostra como o personagem, nomeado funcionário do correio por indicação política, vê o cargo público: [...] o governo, por malévola indicação dum chefe político, hodierno sucedâneo do “familiar” do Santo Ofício, nomeia um cidadão estafeta do correio entre duas cidades convizinhas não ligadas por via férrea. O ingênuo vê no caso honraria e negócio. É honra penetrar na falange gorda dos carrapatos orçamentativos que pacientemente devoram o país; é negócio lambiscar ao termo de cada mês um ordenado fixo, tendo arrumadinha, no futuro, a cama fofa da aposentadoria. (LOBATO, 2007a, p. 71) Ressalta-se nas passagens acima o tom depreciativo com que o funcionalismo é retratado. Mostram-nos isso as expressões: “inferior categoria”, “a cama fofa”; e “cidades convizinhas não ligadas por via férrea.” Nesta última expressão a importância das duas cidades é diminuída, pois nem via férrea passa por elas! Os diminutivos “ossinho”, “arrumadinha” e “Câmara Municipalzinha” reforçam a depreciação. Não desprezemos a tarja de “ingênuo” aplicada ao personagem. A honra não está no trabalho, mas em fazer parte da “falange gorda dos carrapatos orçamentativos”. A semântica dos substantivos “falange” e 40 “carrapatos” indica qualidades depreciativas que, reforçadas pelos adjetivos “gorda” e “orçamentativos”, denunciam a atmosfera amoral da sociedade. Para esses personagens, a vida estava ganha. Nada os tiraria desse sossego, nada mais se exigiria deles para o sustento próprio e dos seus. Procuremos em Lima Barreto passagem que reforce essas ideias: Quando acabou, procurou conhecidos que já tinha; e, em breve, entrou para o serviço de empregado de escritório de um grande advogado, seu patrício, isto é, mineiro. – Não te darei coisa que valha a pena – disse-lhe logo o doutor – mas aqui irás travando conhecimentos e podes arranjar coisa melhor mais tarde. Viu bem que o “doutor” lhe falava a verdade, e toda a sua ambição se cifrou em obter um pequeno emprego público que lhe desse direito a aposentadoria e a montepio, para a família que ia fundar. (BARRETO, 2006, p. 638, ênfase acrescentada) Sérgio Buarque de Holanda, na obra Raízes do Brasil (1995), destaca que a busca pela segurança e estabilidade do serviço público, sem que este lhe exija muito esforço e subordinação da sua personalidade, era costume comum do homem daquela época Não é outro, aliás, o motivo da ânsia pelos meios de vida definitivos, que dão segurança e estabilidade, exigindo, ao mesmo tempo, um mínimo de esforço pessoal, de aplicação e sujeição da personalidade, como sucede tão frequentemente com certos empregos públicos. (HOLANDA, 1995, p. 157) As hostes de oportunistas, de preguiçosos e de acomodados aparecem em vários textos de Lima Barreto. Passagem selecionada do romance Triste fim de Policarpo Quaresma ilustra tais ideias Essas secretas esperanças eram mais gerais do que se pode supor. Nós vivemos do governo e a revolta representava uma confusão nos empregos, nas honrarias e 41 nas posições que o Estado espalha. Os suspeitos abririam vagas e as dedicações supririam os títulos e habilidades para ocupá-las; além disso, o governo, precisando de simpatias e homens, tinha que nomear, espalhar, prodigalizar, inventar, criar e distribuir empregos, ordenados, promoções e gratificações. O próprio doutor Armando Borges, marido de Olga e sábio sereno e dedicado quando estudante, colocava na revolta a realização de risonhos anelos. (BARRETO, 2006, p. 355) No romance Numa e a ninfa, no qual se evidencia crítica severa e sarcástica ao sistema político brasileiro, encontramos evidente paralelismo com as ideias da passagem acima: O grande debate que provocara na Câmara o projeto de formação de um novo Estado na Federação Nacional apaixonou não só a opinião pública [...] Em torno do projeto, interesses de toda a ordem gravitavam. Um grande número de cargos políticos e administrativos iam ser criados; e, se bem que a passagem do projeto de lei não fosse para já, os chefes, chefetes, subchefes, ajudantes, capatazes políticos se agitavam e pediam, e desejavam, e sonhavam com este e aquele lugar para este ou aquele dos seus apaniguados. (BARRETO, 2006, p. 415) A revolta a que se refere o primeiro texto foi a Revolta da Armada, conflito ocorrido durante o governo de Floriano Peixoto. Note-se que não há preocupação com o conflito em si, ou comprometimento com qualquer ideologia, mas sim interesse nas possibilidades de renovação e criação de novos cargos. O mesmo ocorre no segundo texto. Ou seja, prevalece o interesse pessoal em tirar proveito da situação do Estado, sem qualquer consideração de prestar serviço ao país, de idealismo ou de convicção política. A questão que nos ocorre neste ponto é identificar quem são os candidatos ao funcionalismo. 42 2.1.1 Candidatos ao serviço público De modo irônico, Lobato aponta aqueles que não tiveram sucesso em outra atividade e então recorrem ao emprego público, a exemplo do piadista Pontes, no conto “O engraçado arrependido”: A sua reputação de pândego, de impagável, de monumental, de homem do chifre furado ou da pele, estava construída com muito boa cal e cimento para que assim esboroasse de chofre. Urgia, entretanto, mudar de tecla, e Pontes volveu as vistas para o Estado, patrão cômodo e único possível nas circunstâncias, porque abstrato, porque não sabe rir nem conhece de perto as células que o compõem. Esse patrão, só ele, o tomaria a sério – o caminho da salvação, pois, embicava por ali. (LOBATO, 2007a, p.37) É comum nos contos lobatianos o uso da sátira como ridicularização de comportamentos dos indivíduos. Paulo Astor Soethe, no artigo “Sobre a sátira alemã; contribuições da teoria alemã na década de 60”, aponta que a sátira, em literatura “pode referir-se a qualquer obra que procure a punição ou ridicularização de um objeto através da troça e da crítica direta; ” (SOETHE, 2003, p. 3). Observemos o exemplo do personagem Ernesto no conto “O plágio”: Foi quando o pai, farto das atitudes teatrais do filho, meteu-o numa roda de guatumbu e pô-lo fora de casa com um valente pontapé: – “Vá ganhar a vida, seu anarquista de borra!”. Ernesto, jururu, achegou-se a um tio influente na política e afinal cavou o empreguinho. (LOBATO, 2007b, p. 118) Em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, Lima Barreto aponta que os intelectuais “que a vulgaridade do público não sabe apreciar” (BARRETO, 2006, p. 569) também vão bater às portas do funcionalismo Certos de que as suas aptidões não lhes darão um meio de vida, os que nascem tão desgraçadamente dotados, se pobres procuram o funcionalismo, fugindo ao nosso imbecil e botafogano doutorado. Não são muitos; são raros em cada 43 repartição, mas consideráveis em todo o funcionalismo federal. (BARRETO, 2006, p. 569) Por ironia, Lima Barreto estaria criticando sua própria situação de intelectual aboletado no serviço público. São tão diversas as motivações dos candidatos à sinecura pública que o autor as sintetiza no conto “Três gênios de secretaria”: Mas, como dizia, todos nós nascemos para funcionário público. Aquela placidez do ofício, sem atritos, nem desconjuntamente violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia; aquela mediana de posição e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida medíocre – tudo isso vai muito bem com as nossas vistas e os nossos temperamentos. Os dias no emprego do estado nada têm de imprevisto, não pedem qualquer espécie de esforço a mais, para viver o dia seguinte. Tudo corre calma e suavemente, sem colisões, nem sobressaltos, escrevendo-se os mesmos papéis e avisos, os mesmos decretos e portarias, da mesma maneira, durante todo o ano, exceto os dias feriados, santificados e os de ponto facultativo, invenção das melhores da nossa República. De resto, tudo nele é sossego e quietude. O corpo fica sem cômodo jeito; o espírito aquieta-se, não tem efervescências nem angústias; as praxes estão fixas e as fórmulas já sabidas. (BARRETO, 2006, p.1044) Como amanuense de Secretaria, Lima Barrreto conheceu muito bem a “tranquilidade” do funcionalismo, que lhe permitiu dedicar-se às atividades de escritor mesmo durante as horas de expediente. Com essa experiência, pôde colocar na voz de seus personagens críticas irônicas ao serviço público. Em Lima Barreto, conforme comentário de Antonio Candido, a biografia desliza para a criação literária e a análise social ganha um tom confessional. 2.1.2 O ingresso Alfredo Bosi (1989) comenta que Os bruzundangas, obra satírica por excelência, “traz forte empenho ideológico e mostra o quanto Lima Barreto podia e 44 sabia transcender as próprias frustrações e se encaminhar para uma crítica objetiva das estruturas que definiam a sociedade brasileira do tempo” (BOSI, p. 366). Nela, o funcionalismo não foi ignorado. Vejamos como a passagem abaixo ilustra o ingresso no funcionalismo público: Andava o poderoso secretário de Estado atrapalhado para preencher um simples cargo de amanuense que havia vagado na sua secretaria. Em lei, o caminho estava estabelecido: abria-se concurso e nomeava-se um dos habilitados; mas Pancôme nada tinha que ver com as leis, embora fosse ministro e, como tal, encarregado de aplicá-las bem fielmente e respeitá-las cegamente. A sua vaidade e certas quizílias faziam-no desobedecê-las a todo o instante. Ninguém lhe tomava contas por isso e ele fazia do seu ministério coisa própria e sua. (BARRETO, 2006, p.125) A lei mandava realizar um concurso público e na sequência convocar e nomear o melhor classificado. Conforme o texto, nada disso se cumpria; a regra era outra: o interesse pessoal. Destaca-se a crítica do autor ao ministro: “embora fosse ministro”. No conto “Três gênios de secretaria”, Lima Barreto reforça a crítica ao costume. Houve um exame na Secretaria dos Cultos, e o “sogro”, sem escrúpulo algum, fezse nomear examinador do concurso para o provimento do lugar e meter nele “o noivo”. Que havia de fazer? O rapaz precisava. O rapaz foi posto em primeiro lugar, nomeado e o velho sogro (já o era de fato) arranjou-lhe o lugar de ”auxiliar de gabinete” do ministro. (BARRETO, 2006, p. 1045) Essa passagem retoma, mas às avessas – expediente típico da ironia – a epígrafe deste item sobre o funcionalismo: a mistura do público com o privado, das relações familiares com os interesses do Estado. Essa forma de corrupção, de desonestidade, nos concursos públicos para o preenchimento das vagas no funcionalismo, nem sempre era necessária. Em certos casos nem esse pseudo concurso público era necessário. Em Os bruzundangas 45 aparece a denúncia de outra variante de favorecimento, que permitia ignorar não só o concurso, mas a própria responsabilidade com o trabalho: a concessão de pensões a familiares Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos no Estado; não há político influente que não se julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. (BARRETO, 2006, p. 777) No trecho acima, Barreto critica o nepotismo na estrutura governamental, que permite transformar pensões em herança familiar. Encontramos paralelismo no excerto seguinte de Numa e a ninfa: Lembrou-se de que era republicano, e seu tio, o coronel Fortuna, amigo íntimo de Deodoro, tomou conta de seu Estado natal e ele foi feito deputado enquanto os seus primos, concunhados, sobrinhos, aderentes e afins ocupavam outros cargos no Estado, implantaram nele o domínio dos Cogominho de que ele se fez chefe por morte do venerando Fortuna. (BARRETO, 2006, p. 431) Nesses exemplos explicitou-se a incapacidade, enraizada nos costumes nacionais, de separar a vida privada da vida pública, caracterizando promiscuidade entre o familiar e as coisas do Estado. No conto “Sorte grande”, Lobato nos traz outro exemplo de que se houver um “pistolão” adequado no governo, pode-se permitir ingresso de qualquer candidato mesmo os mais improváveis: “O doutor Cadaval coçou a cabeça. Colocar uma poetisa não é nada fácil – mas veria. Há empregos do governo, nos quais cabem até os poetas” (LOBATO, 2008a, p. 181). Note-se que a expressão “até os poetas” sugere depreciação do artista. Mesmo para estes, porém, sempre haverá uma vaga no governo, desde que tenham um “pistolão” influente. 46 2.1.3 O funcionário ideal Há vários tipos de funcionários públicos, mas um deles merece atenção especial: o auxiliar de gabinete. Vejamos como Lima Barreto, no conto “Três gênios de secretaria”, retrata essa figura: É este a figura mais curiosa do funcionalismo moderno. É sempre doutor em qualquer coisa; pode ser mesmo engenheiro hidráulico ou eletricista. Veio de qualquer parte do Brasil, da Bahia ou de Santa Catarina, estudou no Rio qualquer coisa; mas não veio estudar, veio arranjar um emprego seguro que o levasse maciamente para o fundo da terra, donde deveria ter saído em planta, em animal e, se fosse possível, em mineral qualquer. É inútil, vadio, mau e pedante, ou antes, pernóstico. Instalado no Rio, com fumaças de estudante, sonhou logo arranjar um casamento, não para conseguir uma mulher, mas, para arranjar um sogro influente, que o empregasse em qualquer coisa, solidamente. Quem como ele faz de usa vida, tão-somente caminho para o cemitério, não quer muito: um lugar em uma secretaria qualquer serve. Há os que vêem mais alto e se servem do mesmo meio; mas são a quintessência da espécie. (BARRETO, 2006, p. 1045) O objetivo desse tipo de funcionário não é, em hipótese alguma, o trabalho. O deslocamento de sua cidade para a capital está claro: “não veio estudar, veio arranjar um emprego seguro”. Note-se o termo utilizado para o casamento, “arranjar”, expressão que sintetiza a finalidade do casamento para o personagem: fornecer-lhe um trampolim. O que lhe interessa não é a esposa, mas o sogro, que lhe possa ajeitar as “coisas”. Não demorou a arrumar “O sogro ideal, o antigo professor, [...] Tinha ele uma filha a casar e o “auxiliar de gabinete”, logo viu no seu casamento com ela, o mais fácil caminho para arranjar uma barrigazinha estufadinha e uma bengala com castão de ouro” (BARRETO, 2006, p. 1045). Esse sogro é o mesmo, já referido acima, que facilitou as coisas no concurso para o genro. Mais uma vez reforça-se a ideia de comodismo, vadiagem e pouco empenho e suor. Destaca-se a expressão “arranjar uma barrigazinha estufadinha”, o 47 que indica posição social tranquila simbolizada aqui pela “bengala com castão de ouro”. O nome próprio do personagem “auxiliar de gabinete” não é citado. Nem é preciso. Sua função é marcar um “tipo”, isto é, exemplo característico, protótipo, modelo. Exceções não vêm ao caso. Lobato usa o mesmo termo quando se refere ao personagem Jeca Tatu: “Representa este freguês o tipo clássico [...] Exceção, díscolo que é, não vem ao caso. Aqui tratamos da regra...” (LOBATO, 2007a, 174). Entre todos os candidatos ao funcionalismo público criados por Lima Barreto e Lobato nenhum incorpora o “tipo” com mais propriedade do que Sizenando Capistrano, herói do conto “O luzeiro agrícola” de Monteiro Lobato, narrativa escolhida para fechar esta seção. O conto inicia-se com a identidade do personagem, nome próprio, o que faz e onde: “Sizenando Capistrano é o inspetor agrícola do vigésimo distrito” (LOBATO, 2007b, p.133). O que leva o autor a escolher a profissão de “inspetor agrícola” para seu personagem e o numeral “vigésimo” para identificar o distrito? Num país predominantemente rural, a agricultura tem papel relevante. Para melhorá-la faz-se mister alguém que a fiscalize, e tenha competência para propor melhorias. Em suma, um inspetor agrícola. E quanto ao numeral do distrito? Clara referência ao século que se inicia, o vigésimo. Na sequência narrativa apresentam-se as funções do inspetor: Incumbe-lhe fomentar a pecuária, elaborar relatórios, ensinar o uso de máquinas agrícolas, preconizar a policultura, combater a rotina e ao fim de cada mês perceber na coletoria a realidade de setecentos mil-réis. (LOBATO, 2007b, p.133) 48 Suas obrigações são justamente combater as mazelas que assolavam o país: pecuária primitiva, falta de informações para planejar, emprego de maquinarias rudimentares, a monocultura e a rotina, repetir sem reflexão o que se faz sempre. Para verificar se essa situação corresponde à realidade da época, retiramos do ensaio sociológico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, passagens que confirmam o caráter rotineiro e ineficiente da agricultura no Brasil: Sem embargo disso, sabemos por depoimentos da época que, para puxar cada arado, era costume, entre fazendeiros, empregarem junta de dez, doze ou mais bois, o que vinha não só da pouca resistência desses animais no Brasil, como também de custarem as terras mais a abrir pela sua fortaleza. (HOLANDA, 1995, p. 50) Além da má qualidade de nossa pecuária, Holanda enfatiza a questão da rotina e da falta de iniciativa do homem do campo: A regra era irem buscar os lavradores novas terras em lugares de mato dentro, e assim raramente decorriam duas gerações sem que uma mesma fazenda mudasse de sítio, ou de dono. Essa transitoriedade [...], servia apenas para corroborar o caráter rotineiro do trabalho rural. Como a ninguém ocorria o recurso de revigorar os solos gastos por meio de fertilizantes, faltava estímulo a melhoramentos de qualquer natureza. (HOLANDA, 1995, p. 51) Na sequência a narrativa lobatiana nos informa quem era Sizenando antes de se tornar inspetor: “Antes de inspetor Capistrano fora poeta. Cultivar as musas. Não sabia que coisa era pé de café,” (LOBATO, 2007b, p.133). Era um artista, mas o que se destaca na informação é sua ignorância em relação à agricultura. Tentando ganhar a vida como artista, Sizenando vai atrás de editores a fim de publicar seus versos. Para sua infelicidade, não era muito bem vindo: “O editor artilhava a cara de carrancas más quando Capistrano lhe surgiu escritório adentro com a maçaroca de versos candidatos à edição” (LOBATO, 2007b, p. 133). 49 O poeta tinha que encarar o diretor e tentar vender seu trabalho, mas a conversa não lhe saía bem – São versos puros, senhor, versos sentidos, cheios de alma. Virão enriquecer o patrimônio lírico da humanidade. – E arruinar o meu patrimônio econômico – retorquiu a fera. – Rapazes – berrava o livreiro à caixeirada -, ponham-me este vate no olho da rua! (LOBATO, 2007b, p. 134) Destaca-se no diálogo o valor econômico invadindo e prevalecendo na cultura. Nessa situação “Todo mundo o recomendou ao Gaúcho Onipotente, porque todos andavam fartos daquela perpétua fome lírica a deambular pelas ruas, caçando rimas e filando cigarros” (LOBATO, 2007b, p. 134). As atitudes de Sizenando “deambular,... caçando... filando cigarros”, provocaram pena naqueles que o viam, então aconselharam uma saída: “Que fosse acarrapatar-se ao Estado. [...] O Estado é um boi gordo” (LOBATO, 2007b, p.134). Os homens, por mais que busquem o livre arbítrio, inevitavelmente, acabam por se sujeitar às condições dadas e herdadas. Nosso personagem não é exceção Cansado, entretanto, de ouvir estrelas em jejum, de amar a lua no céu sem possuir um queijo na terra, acatou a voz do estômago e quebrou a lira – para viver. Meteu a tesoura nas melenas, deu brilho aos sapatos, desfatalizou o semblante, substituiu o ar absorto do aedo pelo ar avacalhado do pretendente, e à força de pistolões guindou-se às cumeadas do Morro da Graça. (LOBATO, 2007b, p.134) No Morro da Graça ficava a residência do então importantíssimo Senador da República, o General José Pinheiro Machado. Note-se na passagem acima a expressão “à força de pistolões”, termo muito usado no Brasil para se referir a alguém que pode ajudar, dar uma “mãozinha”, um “jeitinho”... Assim, Sizenando Foi apresentado ao Pinheiro. – Então, menino, o que quer? 50 – Um empreguinho qualquer que Vossa Onipotência haja por bem conceder-me. (LOBATO, 2007b, p.135) O diminutivo “empreguinho”, demonstra a humildade do solicitante que ficaria satisfeito com qualquer tipo de atividade. E ainda, usando de um trato formal “Vossa Onipotência”, ele não apresenta nada para justificar a solicitação, apenas espera a concessão. Holanda destaca que no Brasil as relações sociais são fundadas em “laços de afeto e de sangue” (HOLANDA, 1995, p.143). Vejamos como essa ideia vai ao encontro da passagem a seguir na conversa do Senador com Sizenando “Tu me caíste em graça e, pois, acolho-te sob o meu pálio. Que queres ser?” (LOBATO, 2007b, p.135). Normalmente, quando se escolhe alguém para qualquer cargo, faz-se primeiro uma inquirição ao candidato que, depois da sabatina, poderá ser nomeado ou não. Vejamos como se deu o processo de seleção de Sizenando: – Inspetor.(... ) - Sê-lo-ás do vigésimo distrito. Conheces as culturas rurais? – Já cultivei batatas gramaticais. – E de pecuária, entendes? Distingues um Zebu dum galo Brama? Um pampa dum murzelo? – Já cavalguei Pégaso em pelo. – Conheces a suinocultura? Sabes como se cria o canastrão? – Sei trincá-lo com tutu de feijão. – És um gênio, não há que ver. Talvez faça de ti, um dia, presidente da República. Teu nome? – Sizenando. Capistrano é sobrenome. (LOBATO, 2007b, p. 136) Observamos que o processo de seleção se deu ao contrário. Primeiro foi nomeado pelas palavras do senador “ – Sê-lo-ás” a quem somente depois ocorreu a sabatina. Claro que essa às avessas. No final da passagem, já se nota Sizenando 51 querendo se tornar íntimo do senador ao dispensar o uso do nome de família. Tornando-se íntimo, como se fora agora um amigo, as chances da concessão aumentariam muito. Holanda tece comentário sobre esse detalhe comum ao brasileiro “[...] tendência para a omissão do nome de família no tratamento social. Em regra é o nome individual, de batismo, que prevalece” (HOLANDA, 1995, p.148). Nomeado, Sizenando começa a regalar-se com sua nova condição social: “Sizenando Capistrano [...] casou, luademelou três meses e por fim compareceu perante o ministro para saber em que rumos nortear a sua atividade” (LOBATO, 2007b, p.136). Salta aos olhos nessa passagem o tempo decorrido na narrativa: três meses de lua de mel! E só depois é que foi comparecer à secretaria para tomar ciência de seus afazeres! O trabalho, definitivamente, não aparece em primeiro lugar em seus interesses. E quando se apresentou ao chefe, o ministro, só lhe causou aborrecimento: O ministro franziu a testa: é tão difícil dar ocupação aos fósforos ministeriais... – Escreva um relatório – sugeriu. – Sobre o que V. Excia.? – Sobre qualquer coisa. Relate, vá relatando. A função capital do nosso ministério é produzir relatórios. (LOBATO, 2007b, p. 136) Dar ocupação aos funcionários, eis a dificuldade do chefe. Ao utilizar “dar ocupações” entende-se que o funcionário existe antes da atividade. Note-se o desprezo “fósforos ministeriais”, ou seja, um cargo sem importância na visão do ministro. Relatar, função por excelência do ministério, “qualquer coisa” deixa claro a insignificância do assunto do documento. Uma clara ironia de Lobato que critica a falta de objetividade e praticidade dos órgãos governamentais. 52 Ciente de sua missão no ministério, Sizenando segue sua nova rotina, muito preocupado em achar um assunto para seu trabalho. Foi no âmbito familiar que lhe ocorreu o insight para a tarefa. Segundo Holanda (1995) a grande dificuldade do brasileiro em separar o público do privado sempre foi uma tragédia para a organização política do país. Vamos ao contexto em que surgiu a ideia de Sizenando: Como por essa época a lua de mel entrasse em plena minguante, houve certo dia rusga brava ao jantar, e a consorte, mulherzinha de pelo crespo no nariz, pespegou-lhe pela cara com um prato de salada de beldroega. [...] – Eureca! Berrou ele radiante. (LOBATO, 2007b, p. 137) Foi justamente nessa disputa doméstica que veio à tona a ideia da beldroega como motivo principal para o trabalho no ministério. E assim empenhouse na produção do relatório, e “transcorridos dez meses, dava a prelo o Relatório sobre o Papalvum brasiliensis, vulgo Beldroega, e sua aplicação na culinária” (LOBATO, 2007b, p. 137). Destaca-se o tempo gasto na confecção de um relatório: “dez meses”. Quanto ao trabalho intelectual consumido e a eloquência vocabular utilizada pelo personagem, comparemos com a passagem abaixo de Holanda: O trabalho mental... Não significa forçosamente, neste caso, amor ao pensamento especulativo – a verdade é que, embora presumindo o contrário, dedicamos, de modo geral, pouca estima às especulações intelectuais – mas amor à frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara. É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de conhecimento e de ação. (HOLANDA, 1995, p. 83) Concluído o relatório, chegou o momento de entregá-lo ao ministro: 53 – [...] venho comunicar a V. Excia. que se acha pronta a edição do relatório sobre o Papalvum. – Que papalvo? Que relatório? – inquiriu o ministro, deslembrado. – O que V. Excia. me incumbiu de escrever. – Quando? – Haverá dois anos. – Não me recordo, mas é mesmo. Mande a papelada para o forno de incineração da Casa da Moeda. [...] Se é assim, se sempre foi assim, se sempre será assim com todas as publicações deste Ministério, o mais prático é passar a edição diretamente da tipografia ao forno. (LOBATO, 2007b, p. 137) Observa-se a rotina, a estagnação nos comentários do ministro no último parágrafo. À passagem acima pode-se associar o comentário de Holanda: O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa época, uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional, e uma estagnação, ou antes, uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente o contrário do que parece convir a uma população em vias de organizar-se politicamente. (HOLANDA, 1995, p. 61) Nosso personagem até tenta se indignar: – E depois, que devo fazer? – indagou Sizenando, ainda tonto com o expeditismo ministerial. – Escrever outro relatório – respondeu sem vacilar o ministro. – Para ser queimado novamente? – atreveu a murmurar o poeta-inspetor. – Está claro, homem! Para que diabo despendeu o governo tanto dinheiro na montagem do forno? Está claro que para incinerar as notas velhas e os relatórios novos. Deste modo se conservam em perpétua atividade o pessoal da Imprensa, o do Forno e o dos Ministérios. Veja como é sábia a nossa organização administrativa! (LOBATO, 2007b, p. 138) A passagem acima nos remete ao conceito de instituição total de Goffman (2007), que analisava certas instituições cuja atividade fim acaba se perdendo, passando então a ser a sua subsistência a finalidade capital de sua existência. 54 Na sequência do conto foi designado um novo ministro para a pasta: “O novo ministro era bacharel em ciências jurídicas e sociais, ex-chefe de polícia e tão entendido em agricultura como em arqueologia inca” (LOBATO, 2007b, p. 138). Assim como ocorrera com a contratação de Sizenando, o novo ministro também era leigo em assuntos agrícolas. Atentemos para os comentários de Holanda sobre as nomeações: “A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal muito menos com suas capacidades próprias. A gestão política como assunto de seu interesse particular” (HOLANDA, 1995, p. 146). O novo ministro atribuiu nova tarefa a Sizenando: Sizenando recebeu ordem de ir desatolar a vigésima região da atascal da rotina. Aquela gente vivia em pleno período da pedra lascada do café; era mister tangê-la à estação áurea da policultura, da avicultura, [...] da criação de canários hamburgueses etc. (LOBATO, 2007b, p. 139) Note-se que o discurso vai bem: policultura, avicultura... Aí se volta a cair na falta de objetividade e de racionalidade. Como se pode colocar no mesmo interesse público a “criação de canários hamburgueses”? No início do século XX, aqui no Brasil, as ideias positivistas predominavam em qualquer campo. Sobre elas, Holanda teceu alguns comentários que nos interessam para analisar a sequência do conto. O mundo acabaria irrevogavelmente por aceitá-las, só porque eram racionais, só porque a sua perfeição não podia ser posta em dúvida e se impunha obrigatoriamente a todos os homens de boa vontade e de bom senso [...] O mobiliário científico e intelectual que o Mestre legou à Humanidade bastaria para que se atendesse em todos os tempos e em todas as terras a semelhantes necessidades. E nossa história, nossa tradição eram recriadas de acordo com esses princípios inflexíveis. (HOLANDA, 1995, p. 158) 55 O “Mestre” a que se refere o excerto acima é Augusto Comte, filósofo e mentor intelectual do positivismo. A partir dessa crítica, voltemos a Sizenando, quando faz seu primeiro discurso na nova função: Sizenando trepou a um cupim e pronunciou breve alocução alusiva à personalidade sobre-excelente do ministro, e ao papel dos novos métodos racionais na agricultura moderna. – O novo método, meus senhores, é baseado na ciência pura. [...] Eis, meus senhores, um arado de disco. Esta parte se chama cabo, esta é a roda, serve para rodar... (LOBATO, 2007b, p.140) A expressão “ciência pura” refere-se ao positivismo, destaca-se em sua explanação ao público a sua tautologia vã: roda para rodar. Passado o discurso, vamos à prática, aos resultados: Meses mais tarde procedeu-se à colheita. As cebolas haviam apodrecido na terra, devido às chuvas; os alhos vieram sem dentes devido ao sol; as batatas não foram por diante, devido às vaquinhas; as outras “policulturas” negaram fogo devido à saúva, à quenquem, à geada, a isto e mais aquilo. Não obstante, seguiu para o Rio um soporoso relatório de trezentas páginas onde Capistrano, entre outras maravilhas, notava: ‘Os resultados práticos do nosso método demonstrativo in loco têm sido verdadeiramente assombrosos! Os lavradores acodem em massa às lições, aplaudem-nos com delírio e, de volta às suas terras, lançam-se com furor à cultura poli, em tão boa hora lembrada pelo claro espírito de V. Excia. O Senhor Ministro pode felicitar-se de ter aberto de par em par as portas da idade de ouro da agricultura nacional. (LOBATO, 2007b, p. 142) Apesar dos resultados desastrosos, o relatório encaminhado à sede do governo, Rio de Janeiro, tem nítido interesse em apenas bajular a seus superiores, nada tem de realidade. Não havia qualquer interesse construtivo, reflexivo. Mais uma vez predominam os interesses pessoais sobre os públicos. 56 Lia Cupertino Duarte (2006) aponta que a sátira, de modo geral, mostra “o desvio, a distorção a ser evitada, tornando-se um método corretivo, exemplar” (p. 268), e “possibilita de modo lúdico, cômico, o exercício da reflexão e da contestação, a capacidade de penetrar nas tensões dialéticas” (p. 280). Embora a análise da autora foi construída sobre a obra de Lobato, faço extensão de seus comentários à obra de Lima Barreto, que juntamente com Lobato percebem a realidade do descalabro da situação do funcionalismo público no Brasil, e de maneira direta ou irônica, usando da irreverência ou da ridicularização, fazem a denúncia dos costumes brasileiros em uma República, ainda incipiente, mas já viciosa. 2.2 O DOUTORISMO “O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.” Pierre Bourdieu Em A história cultural entre práticas e representações (1988), Roger Chartier, apresenta dois significados para a representação. O primeiro é a “Representação como dando a ver uma coisa ausente, [...] por outro, a representação como exibição de uma presença, como representação pública de algo ou de alguém” (p. 20). Interessa-nos, mais de perto, o último. Chartier indica que uma das modalidades de a representação articular-se com o social está nas práticas [...] que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns “representantes” (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade. (CHARTIER, 1988, p. 23) 57 Tais práticas requerem reconhecimento e aceitação dos outros membros da sociedade, conforme observação de Chartier em À beira da falésia: No entanto, eles não são uma expressão imediata, automática, objetiva, do estatuto de um ou do poder do outro. Sua eficácia depende da percepção e do julgamento de seus destinatários, da adesão ou da distância ante mecanismos de apresentação e de persuasão postos em ação. (CHARTIER, 2002, p. 177) Pierre Bourdieu (2013), em A distinção, ressalta que esse reconhecimento não passa, necessariamente, por uma conscientização intelectual: O julgamento de atribuição prático pelo qual atribuímos a alguém uma classe pela maneira como nos dirigimos a essa pessoa (e, ao mesmo tempo, nos atribuímos uma classe) nada tem a ver com uma operação intelectual que implique a referência consciente a indícios explícitos e a implementação de classes produzidas pelos e para o conceito. (BOURDIEU, 2013, p. 439) Sobre o tema desta seção, convém analisarmos seu título, à luz de um dicionário, e dele extrairmos o que nos interessa aqui. Dividimo-lo em três unidades: douto, doutor e ismo. Douto: (lat. doctu), aquele que aprendeu muito, instruído erudito, sábio. Doutor: aquele se diplomou na universidade; o profissional da medicina, o médico; o que defendeu uma tese científica, filosófica, artística, em um curso de pós-graduação em uma universidade. O sufixo -ismo: ação, conduta ou qualidade característica de... (FERREIRA, 1986, p. 610). Teríamos, então, um segmento de profissionais sábios em seu ofício, com formação acadêmica e que aplicam o conhecimento obtido em sua área de atuação. Vejamos como isso se desenvolve na República que Lima Barreto chamou de Bruzundangas. O narrador anuncia sua constituição: A aristocracia doutoral é constituída pelos cidadãos formados nas escolas, chamadas superiores, que são as de medicina, as de direito e as de engenharia. Há 58 de parecer que não exista aí nenhuma nobreza; que os cidadãos que obtêm títulos em tais escolas vão exercer uma profissão como outra qualquer. É um engano. Em outro qualquer país, isto pode se dar; na Bruzundanga, não. Lá o cidadão que se arma de um título em uma das escolas citadas obtém privilégios especiais, alguns constantes das leis e outros consignados nos costumes. O povo mesmo aceita esse estado de coisas e tem um respeito religioso pela sua nobreza de doutores. Uma pessoa da plebe nunca dirá que essa espécie de brâmane tem carta, diploma; dirá: tem pergaminho. Entretanto, o tal pergaminho é de um medíocre papel de Holanda. (BARRETO, 2006, p. 769) Lima Barreto antecipa aqui a questão das classes sociais e nos mostra que o doutorismo forma uma classe especial, distinta da popular ou trabalhadora, e da burguesia. Ela é em essência uma classe aristocrática: “a aristocracia doutoral”; portanto nobre e formada nas escolas “chamadas superiores”. Note-se a ironia do autor ao se referir a essas escolas. Poderia ter usado diretamente o adjetivo ao substantivo. Mas interpôs entre eles o termo “chamadas”. Essa construção permite inferir que essas escolas eram chamadas de “superiores”, mas o que havia de superior nelas? Quem as chamava assim? O costume, o povo, sem qualquer reflexão sobre o adjetivo. E quanto à nobreza nas três áreas: medicina, direito e engenharia? O próprio narrador, como que desejando chamar a atenção do leitor – ou desse público – questiona no que esses profissionais diferem dos de outras áreas de atuação. A seguir na narrativa, surgem as comparações entre o lá, Bruzundangas, e outro país qualquer. O narrador utiliza a comparação a fim de criticar o comportamento dessa sociedade, para que não pensem os leitores que esse comportamento é normal, que as coisas são assim mesmo, isso acontece em qualquer cultura e não é exclusividade da sociedade bruzundanguense. A crítica continua ao chamar a atenção para o fato de que essa aristocracia doutoral tem “privilégios especiais”, muitos deles previstos em leis, além de outros, incorporados na cultura local. Ao utilizar a expressão “o povo mesmo aceita”, o narrador coloca o 59 próprio povo como formador e cúmplice dessa prática, inclusive em sua relação religiosa com esses doutores. Ainda explorando a ironia como recurso de denúncia, o narrador compara os doutores de Bruzundanga aos brâmanes, definidos como homens “da mais alta das castas hindus, a dos homens livres” (FERREIRA, 1986, p. 281). Encerrando essa passagem, nem o modo como é chamado o diploma pelo povo é poupado, pois o que valorizam tanto não passa de papel “medíocre” holandês. Nessa passagem do romance o autor derrama sua verve crítica muito mais sobre o povo do que propriamente contra a aristocracia doutoral. O que mais o deixa indignado e inconformado é a aceitação e a proclamação da nobreza dos doutores por parte daqueles que acabam sem o saber, sendo as vítimas, desse fato social. Na obra Monteiro Lobato, furacão na botocúndia, Azevedo, Camargos e Sachetta informam que a ideia de doutor foi colocada para Lobato desde garoto. Mas a carreira do irrequieto Juca estava determinada desde pequeno. No país dos bacharéis – como alguns definiam o Brasil daquele período – um diploma de médico, engenheiro ou advogado significava garantia de acesso às esferas institucionais da República. Obter o título de “doutor” tornava-se condição sine qua non para os rapazes bem-nascidos – mesmo para os que não pretendessem exercer a profissão. (AZEVEDO;CAMARGOS;SACHETTA, 2000, p. 15) Mais tarde, Lobato ironiza, em Mundo da lua, a proliferação de doutores em diversas áreas, ao comentar que tínhamos: [...] doutores em leis, doutores em comércio, doutores em farmácia, doutores em dentaduras, doutores em engenharias, doutores em medicina. E academias sobre academias se fundam lá e cá, de Comércio, de Letras, de Poucas Letras, de Nenhuma Letras, de Costura. (LOBATO, 1948, p. 143) 60 2.2.1 O fetichismo do título Em A distinção, Pierre Bourdieu (2013) traz-nos reflexões importantes sobre a percepção do mundo social A percepção primeira do mundo social, longe de ser um simples reflexo mecânico, é sempre um ato de conhecimento que faz intervir princípios de construção exteriores ao objeto construído apreendido em seu imediatismo, mas que, por ser destituído do controle de tais princípios e de sua relação com a ordem real que eles produzem, é um ato de desconhecimento, implicando a forma mais absoluta de reconhecimento da ordem social. (BOURDIEU, 2013, 438) Essa aceitação encontra apoio na superstição popular, como nos mostra o narrador de Bruzundanga na passagem abaixo: A nobreza dos doutores se baseia em alguma coisa. No conceito popular, ela é firmada na vaga superstição de que seus representantes sabem; no conceito das moças casadeiras é que os doutores têm direito, pelas leis divinas e humanas, a ocupar os lugares mais rendosos do Estado; no pensar dos pais de família, ele se escuda no direito que têm os filhos graduados nas faculdades em trabalhar pouco e ganhar muito. (BARRETO, 2006, p. 772) Destaca-se que a própria nobreza dos doutores repousa “em alguma coisa”. Essa expressão não transmite a ideia de racionalidade, o que tão bem caberia a uma classe que deveria ser científica. Mas, ao contrário, encontra amparo em algo sobrenatural, supersticioso, na contramão da racionalidade na qual deveria se pautar. Essa ideia vai ser também encontrada em Triste Fim de Policarpo Quaresma na passagem em que o narrador tece comentários sobre o personagem Cavalcante, um dentista: Nos intervalos da conversa, todos olhavam o novel dentista como se fosse um ente sobrenatural. Para aquela gente toda, Cavalcante não era mais um simples homem, 61 era um homem e mais alguma coisa sagrada e de essência superior; (BARRETO, 2006, p. 284) Portanto, a sociedade cria uma aura em torno do doutor, uma espécie de fetichismo que o distingue de qualquer outro ser. Lima Barreto, farto desse comportamento, faz um desabafo em O cemitério dos vivos: Esta nossa sociedade é absolutamente idiota. Nunca se viu tanta falta de gosto. Nunca se viu tanta atonia, tanta falta de iniciativa e autonomia intelectual! É um rebanho de Panúrgio, que só quer ver o doutor em tudo, [...] Nos grandes países de grandes invenções, de grandes descobertas, de teorias ousadas, não se vê nosso fetichismo pelo título universitário que aqui se transformou em título nobiliárquico. É o Don espanhol. (BARRETO, 2006, p. 1402) Ressalta-se aqui uma crítica à organização política do país. País que, embora republicano, mantém as características da monarquia. Não é o que se observa nesse país. Os títulos nobiliárquicos continuam em alto prestígio, só que agora incorporados pelos doutores. Voltemos ao Triste fim de Policarpo Quaresma e recortemos uma passagem na qual o narrador fala das intenções de Coleoni, compadre de Quaresma, em casar a filha: Ele se havia habituado a ver no doutor nacional, o marquês ou o barão de sua terra natal. Cada terra tem a sua nobreza; lá é visconde; aqui é doutor, bacharel e dentista; e julgou muito aceitável comprar a satisfação de enobrecer a filha com umas meias dúzias de contos de réis. (BARRETO, 2006, p. 294) Nessa passagem reaparece e mesma ideia sobre a relação entre títulos nobiliárquicos e a classe de doutores, logo a importância de casar a filha com um doutor, o que a tornaria pertencente à nobreza. Normalmente, o grupo social adota um símbolo como talismã, uma espécie de amuleto para representar algo que não está presente. Nossos doutores, 62 evidentemente, deveriam adotar um símbolo que os distinguisse dos demais. O diploma, ou melhor, o pergaminho, não bastava. Era necessário um símbolo visível a todos. Adotou-se, então o uso do anel, mais um costume monárquico, que a República não dispensou. Quaresma mesmo recebeu-o com as maiores marcas de admiração e o doutor, gozando aquele seu sobre-humano prestígio, ia conversando pausadamente, sentenciosamente, dogmaticamente; e à proporção que conversava, talvez para que o efeito não se dissipasse, virava com a mão direita o grande anelão “simbólico”, e o talismã que cobria a falange do dedo indicador esquerdo, ao jeito de marquise. (BARRETO, 2006, p. 335) O autor compara o anel de doutor com um talismã, curiosa mistura de ciência e do sobrenatural. Se o talismã é capaz de atribuir ao seu possuidor um poder mágico de conseguir seus intentos, o doutor também possui esses poderes sobrenaturais, simbolizados pelo anel. Mas há aqueles que levam tão a ferro a simbologia, que sua ausência os leva ao desespero. Exemplo disso recortamos de Vida e morte de M. J. Gonzada de Sá quando uma esposa conta da situação em que o marido esqueceu o símbolo e saiu à rua: “Contava pequenas histórias de sua vida, a viagem próxima do papai, à Europa, o desespero do marido no dia em que saiu sem anel” (BARRETO, 2006, p. 348). Roger Chartier, em A história cultural entre práticas e representações, faz comentários elucidativos sobre símbolos como representação. [...] se os médicos não tivessem sotainas e mulas e os doutores não tivessem barretes quadrados e becas demasiado longas e de quatro panos, nunca teriam enganado o mundo, que não consegue resistir a essa monta autêntica. Se aqueles últimos detivessem a verdadeira justiça e os médicos possuíssem a verdadeira arte de curar, não teriam necessidade de barretes quadrados [...] Mas lidando com ciências imaginárias, é-lhes necessário lançar mão desses vãos instrumentos que 63 impressionam a imaginação daqueles com quem têm de tratar; e é deste modo, que se dão ao respeito. (CHARTIER, 1988, p. 22) 2.2.2 Formação e ascensão social Preza a lógica que, para ser chamado de doutor, o indivíduo deveria ter formação acadêmica. Mas não se pode esperar isso da Bruzundanga de Lima Barreto, onde o deputado Felixhimino bem Karpatoso era tratado respeitosamente de doutor, embora não se soubesse bem “se era advogado, médico, engenheiro ou mesmo dentista” (BARRETO, 2006, p. 764). Ou seja, a formação e o conhecimento são irrelevantes. As autoridades, os políticos, obtêm automaticamente o status de doutor. Ressalte-se o deboche de Lima Barreto ao dar ao deputado de sua república um nome que parece escandinavo, que nada tem da terra que representa. A relação entre formação acadêmica e conhecimento deveria ser óbvia no mundo doutoral. Por princípio o que se estudava na academia deveria ser aplicado na vida prática profissional dos doutores. No entanto, ainda durante o curso, os doutores já adotavam a política de negar às disciplinas acadêmicas qualquer valor prático para a atividade profissional. O personagem-título de Numa e a ninfa, o deputado Numa, por exemplo, confessa sua relação com o conhecimento. O jovem Numa não separava o conceito das disciplinas do da formatura; Economia Política, Finanças e Medicina Legal não respondiam a certas necessidades de comunhão humana; e se tais matérias foram criadas, descobertas ou inventadas, o foram somente para fabricar bacharéis em Direito. Com as outras carreiras, acontecia o mesmo. Tal idéia pautava e regia o seu curso. Instantes depois de acabado o exame Pompílio esquecia a disciplina. (BARRETO, 2006, p. 420) Ou seja, as disciplinas acadêmicas tinham finalidade em si mesmas. Terminadas as provas, jogava-se fora o que fora estudado. Dessa forma, como 64 associar conhecimento e profissional? A formação era totalmente desconexa da atividade profissional. Talvez contribuísse para isso a aceitação do costume vigente entre os doutores de não exercer necessariamente sua atividade de formação, e valer-se do titulo apenas para obter cargos e influência. Vejamos o exemplo do doutor Bulhões, personagem de Triste fim de Policarpo Quaresma O doutor Bulhões [...] Esse doutor tinha uma grande reputação nos subúrbios, não como médico, pois que nem óleo de rícino receitava, mas como entendido em legislação telegráfica, por ser chefe da Secretaria dos Telégrafos. (BARRETO, 2006, p. 266) Novamente o uso do deboche por parte do autor “nem óleo de rícino receitava” para descaracterizar a atividade do “médico”, que, no entanto, ocupava alto cargo em uma Secretaria distinta de sua formação. Em Os Bruzundangas, Lima Barreto observa a mesma prática difundida entre vários profissionais da medicina: “Há médicos que são ao mesmo tempo clínicos do Hospital dos Indigentes, lentes da Faculdade de Medicina e inspetores dos telégrafos” (BARRETO, 2006, p. 770). Note-se o interesse de alguns doutores em ocupar cargos muito mais por motivos políticos do que profissionais. Não bastasse tudo isso, o povo em geral costuma bajular seus doutores e tratá-los como sábios. Notemos essa passagem para reforçar essa ideia Não há médico afreguesado que não seja considerado um sábio pela gente da Bruzundanga e, para firmar tal reputação, não fabrique uma compilação escrita em sânscrito. O médico sábio não pode escrever em outra língua que não o sânscrito. Isto lhe dá foros de literato e aumenta-lhe a clínica. (BARRETO, 2006, p. 838) Nessa passagem o autor acrescenta outra característica aos doutores: o “foro de literato” – destaca-se o termo pejorativo para se referir à pretensão dos chamados doutores em serem, também, homens de Letras. E por que escreviam em 65 sânscrito? Porque o objetivo não era o entendimento do que se escrevia. Se ninguém entendesse, melhor. O texto ganhava ares de “intelectualidade”. Lima Barreto estende sua crítica ao modelo de literatura valorizado na época. No final da Idade Média, com a transformação da sociedade estamental, surge a oportunidade de ascensão social, ideia que se tornaria presente na sociedade brasileira séculos mais tarde, no período republicano. Então a classe baixa passa a traçar planos para atingir uma camada mais alta na escala social. Em História e sonhos, Lima Barreto discorre sobre o tema ao comentar a distinção que alguns faziam à época entre advogados e rábulas Advogava unicamente no cível e no comercial. Isto de “crime”, dizia ele com asco, “só para os rábulas”. Pronunciava – “rábulas” – quase cuspindo, porque devem ter reparado que os mais vaidosos com os títulos escolares são os burros e os de baixa extração que os possuem. Para estes, ter um pergaminho, como eles pretensiosamente chamam o diploma, é ficar acima e diferente dos que o não têm, ganhar uma natureza especial e superior aos demais, transformar-se até de alma. (BARRETO, 2006, p. 1071) O sujeito de “Advogava” no início da citação é o advogado, portanto na classe dos doutores. Note-se o tom pejorativo “rábula” com que trata o outro – que não é doutor. Mas Lima Barreto ao comentar o caso dirige-se ao leitor “devem ter reparado”, chamando a atenção que não são todos os advogados, ou portadores de diplomas que assim se comportam, mas justamente os mais “burros e os de baixa extração”. No último período da passagem, volta a criticar aqueles que ao atingirem o doutorado passam a menosprezar os de sua classe anterior. Essa situação de desconsideração do novo doutor com seus ex-pares, Lima Barreto torna a mostrar em Histórias e sonhos 66 Quando fui empregado da Secretaria da Guerra, havia numa repartição militar, que me ficava perto, um sargento amanuense com um defeito numa vista, que não cessava de aborrecer-me com as suas sabenças e literatices. Formou-se numa faculdade de Direito por aí e, sem que nem porque, deixou de me cumprimentar. São sempre assim... (BARRETO, 2006, p. 1072) A ascensão social via o doutoramento torna-se uma obsessão entre as classes menos favorecidas. O deputado Ninfa, do romance Numa e a ninfa, traça seus objetivos logo cedo. O filho do escriturário, desprezado pelos doutores, percebeu logo que era preciso ser doutor fosse como fosse. [...] De quando em quando, arranjava um emprego efêmero, lições e munia-se de roupas. Formou-se aos vinte e quatro anos, tendo vivido desde os dezessete sobre si. Parecia que uma energia dessas se devesse empregar em altos intuitos; há aí uma questão de ponto de vista. No seu entender, o máximo de escopo de vida era formar-se e formou-se com grande tenacidade. (BARRETO, 2006, p. 419) O personagem Numa em uma reflexão tempos depois: Lembrava-se bem da casa, baixa, caiada, meio de telha-vã, meio forrada, com um largo quintal, tendo, aqui e ali, uma árvore, um cajueiro e os urubus teimosos misturados com as aves domésticas. E agora? Habitava um palácio, no meio da abundância, ao lado de uma linda mulher bem educada, onde iria?... Muito pode a formatura! Se ele não se fizesse doutor, que seria?...[...] Tinha a saber? Não sabia. Tinha talento? Não sabia. Que é que sabia ao certo? É eu era formado. (BARRETO, 2006, p. 426) O título de doutor muito que mais que uma possibilidade de ascensão social representava uma distinção social. Àqueles oriundos de famílias de classe privilegiada era quase um destino certo e, aos oriundos de classe econômica mais baixa – o que era quase uma conquista sobrenatural – ia muito além de uma melhoria de situação financeira. 67 2.2.3 Imunidade doutoral Uma característica do doutorismo era sua distinção, o que implicava um tratamento diferenciado. Enquanto a população em geral estava sujeita a certas normas, leis e costumes, o mesmo não acontecia com os doutores. Observemos essa passagem sobre a penalização, quando se refere a doutores, na república das Bruzundangas O nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dos mais repugnantes crimes. Ele não pode ser preso como qualquer do povo. Os regulamentos rezam isto, apesar da Constituição etc. etc. [...] A Constituição não faz exceção, mas os doutores hermeneutas acharam uma. (BARRETO, 2006, p. 770) Ao tratar da sátira, Massaud Moisés (1974) expõe que “(a sátira) pressupõe uma atitude ofensiva, ainda quando dissimulada: o ataque é uma marca indelével, a insatisfação perante o estabelecido, a sua mola básica.” (MOISÉS, 1974, p. 470). Na passagem de Os Bruzundangas acima, Lima Barreto demonstra sua indignação com o fato atacando a classe doutoral e por meio da inversão de significados – marca da ironia – chama os doutores de “hermeneutas”. Tal adjetivo significa um especialista em hermenêutica, na arte de interpretar textos. No texto barretiano, o termo ganha significado oposto – os tais doutores não são especialistas em nada. Ao analisar a Constituição, os tais doutores fuçam-na até adaptá-la, ou mesmo torcê-la, a fim de atender seus interesses pessoais. As desigualdades sociais reforçam-se. Se o título de doutor é uma distinção em si, há outras situações que, se acrescidas ao título, dão uma ênfase ainda maior à classe social do possuidor. O personagem Bogóloff, um russo que chegou a nossa república e que trouxe consigo alguns ideais da revolução bolchevista, espanta-se com os conselhos que lhe deram 68 – És tolo, Bogóloff; devias ter-te feito tratar por doutor. – De que serve isso? – Aqui, muito! No Brasil, é um título que dá todos os direitos, toda a consideração... Se te fizesses chamar doutor, terias um lote melhor, melhores ferramentas e sementes. Louro, doutor e estrangeiro, ias longe! Os filósofos do país se encarregavam disso. (BARRETO, 2006, p. 455) Note-se a acumulação de fatores que corroboram as desigualdades sociais: a cor da pele, louro; o título, doutor; e ainda ser estrangeiro. Persiste, além disso, a ideia de que o povo aceita como de direito os privilégios do doutor. Na concepção do bolchevique tudo isso é um absurdo. Destaca-se a inversão de significado quanto à atitude dos filósofos que deveriam ser reflexivos e críticos, mas que, segundo o texto, contribuem para a irreflexão e homologam a situação dos doutores. A inversão é uma característica básica da sátira, como da ironia, recursos que Lima Barreto tão bem explora na construção da narrativa. Expedientes que Monteiro Lobato não dispensou em seus textos. DUARTE (2006) comenta o emprego da inversão e do cômico nas obras de Lobato [...] o autor que produz seu texto com uma postura consciente e reflexiva, [...] além de granjear a atenção do jovem leitor seduzido pelo prazer da comicidade, na maioria das vezes, reveste-se também de um papel crítico-reflexivo, manifestado pela inversão e subversão da ordem vigente. (DUARTE, 2006, p. 30) Lobato não deixou passar despercebido a cultura do doutorismo que imperava na sociedade brasileira durante a República Velha. No conto “Barba azul”, o autor reproduz um diálogo no qual faz questão de ressaltar, em tom irônico, a associação da questão financeira como modo de pertencer a essa classe: – Doutor, dizes tu? 69 – Está claro. O diploma veio logo atrás dos seguros, como consequência lógica. Quem nesta terra, com algumas centenas de contos no banco, permanece senhor? (LOBATO, 2008a, p. 110) A passagem refere-se ao personagem Panfilo, que sobrevivia à custa de golpes por meio de casamentos, previamente planejados, visando a sua viuvez e, consequentemente, o acúmulo de bens em seu nome. Ao ouvir que se referiam a ele como doutor, há uma espécie de indignação, pois era de conhecimento de todos a péssima fama de vigarista desse sujeito, e que de “doutor” ele não tinha nada. No entanto, o dono do discurso se defende, rebatendo a dúvida, esclarecendo a lógica do tratamento – observe-se a expressão “Está claro” – fazendo lembrar que nessa terra o título estava diretamente relacionado às condições financeiras e não, necessariamente, à formação ou à prática profissional do indivíduo. 2.2.4 Personalismo e analogias biológicas Uma característica do “nosso doutorismo” abordada por Lobato, que reforça o já tratado por Lima Barreto, é a questão do personalismo, ou seja, o interesse próprio se sobrepondo ao coletivo. No conto “Sorte grande”, a personagem apresenta um problema físico no nariz, o que a torna vítima de comentários jocosos em sua cidade: “– Se aquilo pega, ninguém mais planta rabanetes em Santa Rita. É só levar a mão no rosto e colher um...” (LOBATO, 2008a, p. 177). Curioso com a origem do problema, um médico, o doutor Cadaval vê na situação incômoda e no sofrimento da paciente, um ótimo trampolim em sua carreira A maldade dos lugarejos tem a insistência de certas moscas. [...] Nos galinheiros também é assim. Quando aparece uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a bicadas – e bicam-na até destruí-la. Em matéria de maldade o homem é galináceo. [...] A expressão do médico lembrava a do garimpeiro que encontra um diamante de valor fabuloso – um Cullinan! Nervosamente ele insistia: 70 – Conte, conte... Queria saber tudo; como aquilo começara, como se desenvolvera, que perturbação ela sentia e outras coisinhas técnicas. E as respostas da moça tinham o condão de aumentar-lhe o entusiasmo. Por fim: – Maravilhoso! – exclamou. – Um caso único de boa sorte... Tais exclamações desnortearam a doente. “Maravilhoso?” Que maravilhamento poderia causar a sua desgraça? Chegou a ressentir-se. (LOBATO, 2008a, p. 179) O autor apresenta, nesse conto, como o interesse pessoal supera a preocupação com o bem estar da paciente ou em amenizar-lhe o sofrimento. Assim, o doutor que deveria, por dever do ofício, cuidar do paciente, vai se interessar pela promoção pessoal que o caso possa lhe dar, trata-o até como uma “boa sorte”. Embora uma pessoa simples, a portadora da enfermidade não deixa de se espantar com a reação do médico sobre seu caso. Quanto à comparação entre o reino animal e a sociedade humana, o escritor francês Honoré de Balzac, no prefácio da obra A comédia humana, comenta Não há senão um animal. O Criador se serviu de um só e único padrão para todos os seres organizados. O animal é um princípio que adquire sua forma exterior, ou, para falar com mais rigor, as diferenças de sua forma, nos meios em que ele se desenvolve. As espécies zoológicas resultam dessas diferenças. [...] Compenetrado desse sistema, muito antes dos debates aos quais deu ensejo, compreendi que, desse ponto de vista, a sociedade se assemelhava à natureza. Não transforma a sociedade o homem, segundo os meios em que se desenvolve sua ação, em outros tantos indivíduos diferentes, à semelhança das variedades em zoologia? [...] Existiram pois, e existirão sempre, espécies sociais, como há espécies zoológicas. Se Buffon fez um trabalho magnífico tentando apresentar num livro o conjunto da zoologia, não seria desejável fazer-se uma obra desse gênero com relação à sociedade? (BALZAC, 2012, p. 103) Auerbach, na obra Mimesis, conclui que Balzac “tenta fundamentar as suas opiniões acerca da sociedade humana (tipo humano diferenciado pelo meio) mediante analogias biológicas” (AUERBACH, 2013, p.425), influência que recebeu 71 de Geoffroy Saint-Hilaire e transferiu a Hippolyte Taine. A palavra “meio” tem, aqui, sentido sociológico. Taine, assim como em geral os franceses, fazia parte das leituras dos intelectuais brasileiros do final do século XIX e início do XX. Não é raro encontrar essa influência nas obras de Monteiro Lobato e Lima Barreto. A passagem do conto lobatiano acima analisado é um exemplo explícito dessa influência, a que o autor brasileiro acrescenta humor – “sociedade galinácea” – com fins de expressar suas opiniões acerca da sociedade. De maneira não tão direta como Lobato, o que exige maior atenção do leitor, Lima Barreto explora a tática em Triste fim de Policarpo Quaresma Levava sempre o pedaço de pão, que esfarelava em migalhas no galinheiro, para ver a atroz disputa entre as aves. Acabando, ficava um instante a considerar aquelas vidas, criadas, mantidas e protegidas para sustento da sua. (BARRETO, 2006, p. 334) Se a comparação aqui não é explícita, como no conto lobatiano, o que exige minuciosa atenção do leitor, a reflexão de Quaresma ganha consistência quando associada a uma análise das relações entre as classes sociais. Para fechar essa seção sobre o doutorismo, faremos uma análise do conto “Pollice verso” de Monteiro Lobato, que agrega as práticas culturais denunciadas pelos autores até este ponto. O título do conto é uma expressão latina que significa polegar virado. Era usada pelo público das arenas romanas para decidir o destino dos gladiadores derrotados. O texto inicia-se com a observação do coronel Inácio da Gama sobre seu filho caçula e suas: [...] singulares aptidões para médico. Pelo menos assim julgara o pai, como quer que o encontrasse na horta interessadíssimo em destripar um passarinho agonizante. – Descobri a vocação de Nico – disse o arguto sujeito à mulher. – Dá 72 um ótimo esculápio. Inda agorinha o vi lá fora dissecando um sanhaço vivo. (LOBATO, 2007a, p. 89) Note-se o superlativo “interessadíssimo” que demonstra o empenho do menino pela atividade. O curioso da observação do pai é que a atividade desenvolvida pelo menino não é exatamente a de um médico, que, a princípio, seria a de zelar pela saúde e vida do paciente. O interesse está em “destripar”, ou seja, arrancar órgãos internos, e ainda de um paciente – “o passarinho” – já em agonia. Essa colocação inicial será útil no desenvolvimento da narrativa. Outra importante informação é o adjetivo “arguto” atribuído ao coronel Inácio, pois significa alguém perspicaz, com capacidade de percepção aguçada dos fatos. Quanto ao ato do filho, interpretação bem diferente teve dona Joaquininha que “fechou a cara, e quando o pequeno facínora entrou no quintal pediu-lhes conta da perversidade, asperamente” (LOBATO, 2007a, p. 89). Nota-se a oposição de ideias que se cria entre a mãe – dona Joaquininha – e o pai – o coronel Inácio da Gama – em relação aos comportamentos do filho caçula. Enquanto o pai se gabava das habilidades do caçula, a mãe já o tratava como “facínora” e perverso. A oposição é reforçada no vocabulário do casal, o que leva o narrador a pedir desculpas pelo coronel Inácio: “Perdoem-lho à guisa de compensação à parcimônia da esposa, cujo vocabulário era dos mais restritos” (LOBATO, 2007a, p. 90). Enquanto o pai não via mal no comportamento do filho, a mãe o ameaçava “- Eu que saiba que o senhor anda com judiarias aos pobres animaizinhos, que te disseco o lombo com aquela anatomia, ouviu, seu carniceiro” (LOBATO, 2007a, p. 90). Anatomia, para dona Joaquininha, era uma vara de marmelo que ela mantinha pendurada atrás da porta. 73 Entretanto, não se altera o comportamento do menino, que apenas se torna mais cauteloso Acautelava-se. Era às escondidas que depenava moscas, brinquedo curioso, consistente em arrancar-lhes todas as pernas e asas para gozar o sofrimento dos corpinhos inertes. Aos grilos cortava as saltadeiras, e ria-se de ver os mutilados caminharem como qualquer bichinho de somenos. (LOBATO, 2007a, p. 90) As expressões “gozar o sofrimento” “ria-se de ver os mutilados” evidenciam o sadismo do candidato a médico. Assim, foi o menino se desenvolvendo, “Em casa, um anjinho. [...] anjo internamente e demônio extramuros” (LOBATO, 2007a, p. 90) até ser matriculado em medicina. Os planos dos pais era que o filho retornasse à cidade de Itaoca a fim de desbancar os “quatro esculápios locais, uns onagros.” (LOBATO, 2007a, p. 91). O recém formado doutor volta a Itaoca, impressionando a população com seu aspecto doutoral [...] trazia barba de médico francês, coisa que muito avulta a ciência do proprietário. Doentes há que entre um doutor barbudo e um glabro, ambos desconhecidos, pegam sem tir-te no peludo, convictos de que pegam no melhor. (LOBATO, 2007a, p. 91) Nota-se aqui o símbolo da barba copiado do modelo francês, país considerado pela sociedade brasileira como referência de civilização à época. A barba funciona como uma representação que o personagem utiliza para camuflar sua pouca ciência. Chartier, em A história cultural entre práticas e representações (1988), comenta que “Assim deturpada, a representação transforma-se em máquina de respeito e de submissão” (CHARTIER, 1988, p. 22). O personagem, agora doutor Inacinho, aborrecia-se com os outros médicos da região acusando-os de “perfeitas vacas de Hipócrates, estragadores de pepineira com suas consultinhas de 5 mil-réis. [...] Estes rábulas é que estragam o negócio” 74 (LOBATO, 2007a, p. 91). Aborrecia-se porque os colegas não compartilhavam, a princípio, de sua visão da medicina como negócio. O narrador denuncia a motivação do doutor Inacinho “Negócio, pepineira, grandes lances – está aqui a psicologia do novo médico. Queria pano verde para as boladas gordas” (LOBATO, 2007a, p. 91). Se Inacinho aborrecia-se com os médicos locais, os mesmos também se indignavam com o novo doutor, recém-egresso da faculdade de medicina “– Uma bestinha – dizia um – Eu fico pasmado é de saírem da Faculdade cavalgaduras daquele porte! É médico no diploma, na barbicha e no anel do dedo. Fora daí, que cavalo!” (LOBATO, 2007a, p. 92). Reforça-se aqui a importância dos símbolos – diploma, barbicha, anel – os quais afirmam a distinção do ser doutor, embora este fique a dever no exercício da profissão. A reação do pai, coronel Inácio da Gama, era ainda gabar-se do filho, “Era de moer de inveja aos mais” ainda mais que o filho abusava de um vocabulário que ninguém entendia: “– A terminologia inteira da ciência alopata, coisas em grego e latim, circunvolve naquela cabecinha – disse ele uma vez ao vigário, que olhou de revés, por cima dos óculos, ao som daquele mirífico circunvolve” (LOBATO, 2007a, p. 92). Expressa-se nessa passagem o deleite paterno com a distinção social do filho. Mas o tempo passava e como “o sonho do moço era de enriquecer às rápidas” e o tempo corria “sem que nenhuma piabinha de vulto lhe caísse na rede” (LOBATO, 2007a, p. 92), a ansiedade tomava conta do jovem doutor. Nota-se que sua ansiedade não repousava na aplicação da profissão, mas sim, única e exclusivamente, nos dividendos do negócio. Até que, finalmente para o doutor Inácio, surge uma oportunidade de monta: “Entrementes adoeceu o major Mendanha, capitalista aposentado com trezentas 75 apólices federais, o Rockfeller de Itaoca” (LOBATO, 2007a, p. 93). E para sua sorte o major não se dava bem com os médicos mais antigos do local, alguns por desavenças políticas, o que o fez optar por chamar o doutor Inacinho, embora sob protestos da mulher “– Este, Mendanha, é moço bonito, que o que quer é dinheiro e pândega, você não vê? [...] Olhe, olhe! Depois não se arrependa!...” (p. 94). A esposa chegou a sugerir o doutor Fortunato, a que de imediato o marido retrucou “Fortunato! Já esqueceu você do que me ele fez por ocasião do júri, o tranca? Cobrar 50 mil-réis por um atestado falso? Não me pilha mais um vintém, o pirata...” (p. 93). Observa-se aqui que até mesmo um dos médicos antigos, um dos desafetos do doutor Inacinho, também se inclinava para o comércio ilícito que a profissão lhe propiciava. Chamado para o caso do major Mendanha, o doutor Inacinho deu o diagnóstico “– É uma pericardite aguda agravada por uma flegmasia hepático-renal” (LOBATO, 2007a, p. 95). Na verdade o médico ignorava a doença do major e “O lindo diagnóstico de Inacinho não passava de mera sonoridade pelintra” (p. 95). Destaca-se a crítica do narrador ao vocabulário científico, neste caso, que não ia além de sonoridade para esconder a trama que o doutor Inacinho já desenhava Além do mais, quem sabe lá se não estaria ali o sonhado lance? Prolongar a doença... Engordar a maquia... Inácio não enxergava em Mendanha o doente, mas uma bolada maior ou menor, conforme a habilidade do seu jogo. [...] Como desadorasse a medicina, não vendo nela mais que um meio rápido de enriquecimento, nem sequer lhe interessava o caso clínico em si, como a muitos. Queria dinheiro, ...” (LOBATO, 2007a, p. 95) A passagem acima mistura o discurso indireto livre, voz do personagem, com a voz do narrador onisciente que explica ao leitor o verdadeiro intento do doutor Inacinho. 76 O tratamento sugerido ao paciente não deu certo “O velho piorou com a medicação” (LOBATO, 2007a, p. 96). situação que o doutor Inacinho soube aproveitar “ – É mais grave o caso do que eu supunha – disse o doutor à mulher – e os escrúpulos do meu sacerdócio aconselham-me a pedir conferência médica” (p. 96), o termo escrúpulos usado pelo personagem não combina com suas intenções, e a sugestão de ouvir os demais médicos não passava de uma estratégia pois sabia da repulsa do major em ouvi-los. Assim, “Inacinho voltou para casa esfregando as mãos” (LOBATO, 2007a, p. 96). O que o doutorzinho não esperava era uma repentina melhora de seu paciente, ao que reagiu “Sarava, o patife!” (p. 96). Essa recuperação do doente fez com que Inacinho refizesse seus cálculos: “... trinta visitas, trinta injeções e tal e tal: 3 contos. Uma miséria! Se morresse, já o caso mudava de figura, poderia exigir 20 ou 30” (p. 96). Reforça-se aqui a intenção do doutor Inacinho que passava longe do que seria esperado de um médico, ou seja, o compromisso com a saúde e a vida do paciente, mas que nesse caso desviava para o egoísmo e dirigia-se tão somente para a possibilidade de ganho. Nessa linha, começou o personagem a imaginar o que aconteceria se os parentes do morto não concordassem com o pagamento [...] a questão subia aos tribunais, com base no arbitramento. Os árbitros, mestres do mesmo ofício, sustentavam por coleguismo, dizendo em latim: “Hodie mihi, cras tibi”, cuja tradução médica é: “Prepara-se você para me fazer o mesmo, que também pretendo dar a minha cartada” (LOBATO, 2007a, p. 96) Note-se que nos tribunais a decisão era arbitrária, e não baseada na impessoalidade e em momento algum se cita alguma lei. O fato dos árbitros também serem médicos, aumenta a crença na impunidade e não deixa dúvidas do desfecho favorável a si. O doutor Inacinho consultou acórdãos, que não lhe deixaram dúvidas 77 sobre o sucesso de seus planos. A consulta a acórdãos mostra que era comum à época que médicos se apossassem de boa parte dos bens de pacientes mortos. Diante dessa trama, o narrador expõe sua reflexão: O que a sua cabeça pensou ninguém saberá jamais. Tem as ideias para escondêlas a caixa craniana, o couro cabeludo, a grenha; isso por cima; pela frente tem a mentira do olhar e a hipocrisia da boca. Assim entrincheiradas, elas, já de si imateriais, ficam inexpugnáveis à argúcia alheia. E vai nisso a pouca de felicidade existente nesse mundo sublunar. Fosse possível ler nos cérebros claro como se lê no papel e a humanidade crispar-se ia de horror ante si própria. (LOBATO, 2007a, p. 97) Enquanto o personagem trama e o narrador filosofa, o outro personagem, o major Mendanha “piorou subitamente e lá agoniza. Morreu” (LOBATO, 2007a, p. 97). Como era de se esperar, o doutor Inacinho “apresentou no inventário uma conta de chegar: 35 contos de réis” (p. 98). Também como previsto e desejado pelo doutor, a disputa foi parar no tribunal: “Move-se a traquitana da Justiça” (p. 98). Segundo o dicionário traquitana é uma carruagem de quatro rodas para duas pessoas (FERREIRA, 1986, p. 1705), mas também temos o vocábulo traquinada que exprime a ideia de trama ou tramoia. Para o momento, nesta análise, caberia reunir os dois e interpretá-los como uma trama que se move para o destino desejado para os dois, no caso, do médico e dos árbitros. Apesar dos comentários condenativos de Fortunato e Moura, árbitros no processo e antigos desafetos de Inacinho, o resultado do processo foi favorável ao doutor. A Justiça engoliu aquele papel, gestou com outros ingredientes de praxe e, ao cabo de prazos, partejou um monstrozinho chamado sentença, o qual obrigava o espólio a aliviar-se de 35 contos de réis em proveito do médico, mais as custas da esvurmadela forense.” (LOBATO, 2007a, p. 98) 78 Destaca-se dessa passagem o sintagma esvurmadela forense. O dicionário aponta esvurmar como um ato de limpar a ferida do vurmo (o pus das úlceras), como também o sentido figurado: por a descoberto e criticar (defeito ou paixão de alguém) (FERREIRA, 1986, p. 732). Assim, uma possível interpretação para o sintagma seria de que o trabalho forense deveria limpar as injustiças e mostrar os defeitos; mas, no texto em análise, apresenta-se justamente de modo a esconder os defeitos. O narrador por meio de uma simples expressão, um tanto jocosa, expressa dura crítica ao sistema judicial da época. Diante do veredito, Inacinho “radiante, embolsou os cobres e reconciliou-se com os dois colegas que, afinal de contas, não eram os cretinos que supusera” (LOBATO, 2007a, p. 98), e recebeu o comentário de Fortunato “O coleguismo: eis a nossa grande força” (p. 98). Os inimigos iniciais tornam-se parceiros no conluio necessário para garantir-lhes as distinções e prerrogativas da classe. Com a verba embolsada, Inacinho partiu para Paris, e de lá escreveu ao pai dizendo que estava a operar em três hospitais, frequentava as aulas em Sorbonne, e que ficaria por lá, enquanto durassem seus 35 contos. Na verdade, “A Sorbonne é o apartamento em Montmartre onde compartilha com o apache de Yvone o dia da rapariga. Os três hospitais são os três cabarés mais à mão” (LOBATO, 2007a, p. 99). Todo baboso do filho, o coronel Inácio da Gama, mostrava a carta do filho aos médicos reconciliados – Isso de hospitais – gemeu o invejoso Fortunato – é uma mina. Dá nome. Para botar nos anúncios é de primeiríssima. [...] – É isso mesmo – concluiu Moura, relanciando um olhar a Fortunato num comentário mudo àquele mirífico apropinquamento. E os dois enxugavam, a uma, os copos de cerveja comemorativa mandada abrir pelo bem-aventurado coronel. (LOBATO, 2007a, p. 99) 79 O conto mostra, por meio dos personagens e reflexões do narrador, algumas características que foram levantadas a respeito da prática cultural que denominamos doutorismo. Primeiro a mística que havia em ter na família um filho doutor, nota-se que o fato não estava necessariamente na questão financeira, pois a família já possuía, mas na distinção social que o título trazia ao seu proprietário, transformando-o no que Lima Barreto chamou de aristocracia doutoral. Mesmo que fosse de origem burguesa ─ a única classe economicamente viável da época ─ o titulo de doutor catapultava o indivíduo para a aristocracia doutoral, uma camada social superior e restrita. A segunda questão levantada é a existência entre os doutores, a exemplo do personagem Inacinho, aqueles que não visavam o trabalho, o ofício da ciência, o compromisso em cuidar da saúde e da vida de seus pacientes, mas sim o lucro rápido e, por vezes, inescrupuloso. Finalmente, o conto denuncia o corporativismo dos integrantes da profissão que se unem, não para defender direitos e melhores condições de trabalho, mas para esconder falcatruas e defender-se de possíveis acusações, beneficiando-se das falhas do incipiente sistema judiciário republicano. Para concluir, voltamos ao título do conto, apenas mencionado no início desta análise. É possível associar o gesto romano de pronunciar o veredito de vida ou morte ao gladiador, que jaz moribundo na arena, ao poder do médico sobre o paciente. Embora o faça apenas mentalmente, o personagem Inacinho Imagina com deleite o sucesso que adviria da disputa judicial pelos bens do Major, caso este morresse. Em segundo plano, está o conchavo dos médicos, membros do tribunal, que encobrem a atuação desastrosa de Inacinho, visando, possivelmente, cobrar o favor, em futuro próximo. 80 2.3 O CONFORMISMO “...Oh! A sociedade repousa sobre a resignação dos humildes!” (Lima Barreto) Em A distinção (2013), Pierre Bourdieu comenta a percepção do mundo social pelos menos favorecidos socialmente: Ao implementar, a fim de apreciar o valor de sua posição e de suas propriedades, um sistema de esquemas de percepção e apreciação que nada é além da incorporação das leis objetivas segundo as quais se constitui objetivamente seu valor, os dominados tendem a se atribuir, em primeiro lugar, o que a distinção lhes atribui; recusando o que lhes é recusado ( “isso não é para nós”), contentando-se com o que lhes é concedido, avaliando sua expectativas mediante suas oportunidades, definindo-se como a ordem estabelecida os define; no veredicto que proferem a seu próprio respeito, [...] aceitando ser o que que têm de ser, ou seja, “modestos”, “humildes”, e “obscuros”. (BOURDIEU, 2013, p. 438) Assim, segundo Bourdieu, as aspirações e os desejos individuais são ajustados e conformados à realidade. Jonathan Culler em sua abordagem sobre a narrativa afirma que “os romances na tradição ocidental mostram como as aspirações são domesticadas e os desejos, ajustados à realidade social” (CULLER, 1999, p. 93); e questiona “em que medida podemos ser sujeitos responsáveis por nossas ações e em que medida nossas escolhas aparentes são limitadas por forças que não controlamos ” (p. 51). Duas abordagens, ambas nascidas no final do século XIX e consolidadas ao longo do XX, permitem-nos refletir sobre essa questão. Uma é a psicanalítica, cujo mentor intelectual é Freud, que atribui ao Inconsciente a responsabilidade por muitas das atitudes dos indivíduos. A segunda é a sociológica, que tem Durkheim como um dos principais mentores: “Se a vida coletiva não deriva da individual, uma e outra estão intimamente relacionadas; se a segunda não pode explicar a primeira, ela 81 pode, facilitar sua explicação.” (DURKHEIM, 2007, p.112). Durkheim não ignora a importância da vida individual, mas afirma que, em seus estudos, vai priorizar o social nas explicações da realidade em que vive o homem. É exatamente sobre essa segunda abordagem que o presente item se debruça. 2.3.1 A primazia do social sobre o indivíduo Após a publicação de Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto redige uma carta, datada de 1910, na qual rebate as críticas negativas que recebera. O meu fim foi fazer ver que um rapaz nas condições do Isaías, com todas as disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas, batido, esmagado, prensado pelo preconceito com seu cortejo, que é, creio, cousa fora dele. (BARRETO, 2006, p. 22) Nessa nota, o autor explica que se o personagem é falho em muitos aspectos, não o é por “suas qualidades intrínsecas”, mas sim por uma força superior e externa a ele: a sociedade. Ao tratar das “condições” do personagem, o autor refere-se à situação de mulato, pobre, sem padrinho influente, e que não conseguiu ser doutor; em “disposições” refere-se aos costumes da época. A ausência do ato voluntário por parte do personagem aparece no emprego dos verbos na voz passiva – “batido, esmagado, prensado” – em sequência gradativa de intensidade que se avoluma sobre Isaías. Ao utilizar “creio”, Lima Barreto procura ser polido e ao mesmo tempo atacar o destinatário, pois para ele, parece óbvio que as causas das falhas de Isaías estão no social, fato que o ilustre crítico não percebeu. Procuremos na obra, que originou a crítica e a carta acima analisada, passagens que ilustram como as aspirações individuais são frustradas pelo social. 82 O próprio personagem Isaías Caminha faz uma nota introdutória a suas recordações, na qual fica explicita o pensamento que Culler destacou como domesticação dos desejos individuais que devem ser ajustados à realidade social. Não sei bem o que cri; mas achei tão cerrado o cipoal, tão intrincada a trama contra a qual me foi debater, que a representação da minha personalidade na minha consciência, se fez outra, ou antes esfacelou-se a que tinha construído. Fiquei como um grande paquete moderno cujos tubos da caldeira se houvessem rompido e deixado fugir o vapor que movia suas máquinas. (BARRETO, 2006, p. 117) Nota-se que o personagem, já no início do texto, queixa-se da pesada pressão social a que foi sujeito, expressa em metáforas feitas – “cipoal” – e símiles – como “paquete”. O termo cipoal indica local de travessia difícil pelo emaranhado de cipós, enfatizado pelo emprego do advérbio “tão” e do adjetivo “cerrado”. A repetição do “tão” junto da palavra “trama” aponta para a semântica de algo planejado e armado propositadamente para provocar a queda do indivíduo. Apesar de toda luta do personagem, ele foi vencido: “esfacelou-se”; transformou-se em “paquete” moderno sem energia própria, à mercê de situações que fogem ao controle de seu comandante. Ao final da introdução, assinada por Isaías, o personagem conclui que as causas de todas essas adversidades: “não estava em nós, na nossa carne e nosso sangue, mas fora de nós, na sociedade que nos cercava, as causas de tão feios fins e tão belos começos” (BARRETO, 2006, p. 117). Começar bem e ter um fim tão adverso são fatos para os quais destacamos algumas passagens. A primeira extraída do romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, no diálogo entre o narrador e dona Escolástica sobre as possibilidades de futuro do menino Aleixo Manuel – É inteligente o rapaz – disse eu à velha senhora. 83 – Bastante. Que desejo de saber tem este pequeno! O senhor nem imagina! Brinca, é verdade; mas, à noitinha, agarra os livros, os deveres e os vai estudando, sem que ninguém o obrigue. Quem me dera que fosse assim até o fim. – Por que não irá? – Ora! Há tantos que como ele começam tão bem e... – É verdade! Mas, virá deles mesmos a perda da vontade, o enfraquecimento do amor, da dedicação aos estudos; ou tem tal fato raízes em motivos externos, estranhos a eles que, só numa idade mais avançada, acabam percebendo, quando a consciência lhes revela o justo e o injusto, fazendo que se lhes enfraqueça deploravelmente o ímpeto inicial? (BARRETO, 2006, p. 631) A expressão de dona Escolástica – “Quem me dera” – é uma súplica, pois a senhora tem a certeza que o comportamento do menino vai se alterar ao longo do tempo. À pergunta do narrador, ela aplica um “Ora!”, ou seja, como se ele fosse ingênuo e não soubesse como as coisas são. A seguir, vem a reflexão conformista do narrador sobre a razão da mudança de rumo, se é do indivíduo “deles mesmos” ou “estranho a eles”? Excerto similar vamos encontrar em Numa e a ninfa, nas reflexões do personagem Lucrécio sobre seu filho Ele acabou de vestir-se e sentou-se logo à mesa do almoço. O filho voltou com um jornal; e, um instante, Lucrécio olhou a criança com um olhar mais preocupado. – A benção, papai? – Deus te abençoe, meu filho. O pai viu ainda os olhos luminosos da criança, carbunculando nas escleróticas muito brancas, e pensou de si para si: que vai ser dele? Lembrou-se de dar-lhe dinheiro para os sapatos com que fosse à escola, mas estava atrasado na casa. A desordem de sua vida; antigamente... Que vai ser dele? Bem, arranjaria um emprego, fá-lo-ia estudar e havia de tomar caminho. Que vai ser dele? E logo lhe veio o ceticismo desesperado dos imprevidentes, dos apaixonados e dos que erraram; há de ser como os outros, como eu e muita gente. É sina! (BARRETO, 2006, p. 454) 84 Destaca-se a expressão “carbunculando nas escleróticas” que sugere a ação de um tumor que vai afetando o branco dos olhos da criança, assim como ele acredita que vai acontecer com a vida do infante; a escolha dessas expressões dá um tom de cientificidade à analogia que ele faz da ação do tumor com a da sociedade. O pai recorda o próprio afetado pelo mesmo tumor, e não vê saída para o filho, vem-lhe o “ceticismo desesperado dos improvidentes” e acaba por abandonar a reflexão e se resigna: “É sina!”. 2.3.2 Felicidade medíocre Na introdução que precede Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto adverte o leitor sobre seu personagem: “Deus escreve direito por linhas tortas. Dizem. Será mesmo isso ou será de lamentar que a felicidade vulgar tenha afogado, asfixiado um espírito tão singular? Quem sabe lá?” (BARRETO, 2006, p. 119). O termo vulgar, empregado aqui, não possui o sentido pejorativo de reles, grosseiro, mas o sentido de comum, de uso popular. Dessa forma, o autor refere-se à felicidade das pessoas comuns como uma felicidade medíocre, que se contentam com as satisfações elementares de sobrevivência, e condena esse comportamento complacente pelo aniquilamento de seres “singulares” como Isaías Caminha. Outra passagem corrobora a ideia lançada na introdução Vinham uma a uma, invadindo-me a personalidade insidiosamente para saturar-me mais tarde até ao aborrecimento e ao desgosto de viver. Vivia, então, satisfeito, gozando a temperatura, com almoço e jantar, ignobilmente esquecido do que sonhara e desejara. [...] E notei essa ruína dos meus primeiros estudos cheio de indiferença, sem desgosto, lembrando-me daquilo tudo como impressões de uma festa a que fora e a que não devia voltar mais. Nada me afastava da delícia de almoçar e jantar por sessenta mil-réis mensais. (BARRETO, 2006, p. 233) 85 O uso do advérbio “ignobilmente” – desprezível, torpe – é uma crítica ao comportamento resignado com a “felicidade vulgar” do personagem; ratificados pelos termos escolhidos “gozando” e “da delícia de” ao se referirem à adaptação fácil e simplista do indivíduo à realidade circundante. Em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá encontra-se outra explanação do narrador sobre o conformismo que consome os dotados de inteligência que procuraram o serviço público, simplesmente com o intuito de prover as necessidades financeiras. Em começo, procuram-no com o fim de manter a integridade do seu pensamento, de fazê-lo produzir, a coberto das primeiras necessidades da vida; mas, o enfado, a depressão mental do ambiente, o afastamento dos seus iguais e o estúpido desdém com que são tratados, tudo isso, aos poucos, lhes vai crestando o viço, a coragem e mesmo o ânimo de estudar. Com os anos, esfriam, não lêem mais, embotam-se e desandam a conversar. (BARRETO, 2006, p. 569) As intenções iniciais alteram-se; o meio os carrega em outras direções; com o passar do tempo, perdem a motivação e adotam os costumes vulgares. A busca pela “felicidade vulgar” é especialmente prioridade da mulher. Ao olharmos para o papel social da mulher até o início do século XX, verificaremos o pouco espaço que tinha na divisão social do trabalho, geralmente restringia-se ao magistério, algumas atividades na saúde, mas na sua maioria limitava-se aos cuidados do lar. Duas passagens de Triste fim de Policarpo Quaresma ilustram a influência decisiva do social no comportamento feminino em detrimento de seus próprios anseios. Olga, a afilhada do major Quaresma, vai visitá-lo para lhe comunicar seu casamento: – Gostas muito dele? Indagou o padrinho. 86 Ela não sabia responder aquela pergunta. Queria sentir que gostava, mas estava que não. E por que casava? Não sabia... Um impulso do seu meio, uma coisa que não vinha dela – não sabia...” (BARRETO, 2006, p.303) Como não tinha resposta ao padrinho, Olga fica em silêncio. O autor utiliza do discurso indireto livre para penetrar no silêncio da personagem e sondar seus pensamentos. Desse modo, o leitor tem acesso aos questionamentos internos da personagem e verifica que Olga não se casa por vontade própria, mas para atender a um costume social. No caso de Olga, a reflexão, sua característica, desperta-lhe a consciência de que seu ato não era voluntário, embora não atina a razão da força que a impulsiona. Na sequência da narrativa, Olga casa-se. Os festejos do casamento deixam a noiva indiferente, enquanto o noivo: Julgava que a noiva o aceitara pelo seu maravilhoso título, o pergaminho; é verdade que foi, não tanto pelo título, mas pela sua simulação de inteligência, de amor à ciência, de desmedidos sonhos de sábio. Tal imagem que dele fizera, durara instantes em Olga; depois foi a própria inércia da sociedade, a sua tirania e a timidez natural da moça em romper que a levaram ao casamento. Tanto mais que ela, de si para si, pensava que se não fosse este, seria outro a ele igual, e o melhor era não adiar. (BARRETO, 2006, p. 329) Destacam-se os termos ligados ao substantivo sociedade: inércia e tirania. Ou seja, uma sociedade estagnada sem perspectiva de mudança e que age sobre os indivíduos como um tirano: um domínio arbitrário e opressor sobre seus membros. A personagem feminina de Numa e a ninfa, dona Edgarda, esposa do deputado Numa, parece, a princípio, constituir exceção à regra da submissão da mulher. O primeiro nome do título do romance é o do deputado; o segundo, expliquemos com a passagem a seguir, no momento em que outro deputado proferiu esse comentário “– O Numa ainda não ouviu a Ninfa; quando o fizer – ai de nós!” 87 (BARRETO, 2006, p. 416). O comentário maldoso anuncia algo ainda obscuro naquela altura do romance. O deputado Numa era medíocre em sua atividade política, salvo quando proferia algum discurso, lido na tribuna. Nas tramas da narrativa descobrimos que, na verdade, quem escrevia os discursos de Numa era sua esposa, dona Edgarda – “a Ninfa”. Ao menos era a convicção do marido e passada ao leitor ao longo do texto. Dona Edgarda seria então, grande conhecedora de política, exceção ao papel apagado da mulher na vida política do país. Representaria o poder da mulher de minar, gradativamente, as forças que a mantinha alienada quanto à política e à vida pública em geral. Ledo engano, ao menos no campo político, que será removido no último parágrafo da narrativa. Pensou em ir ver a mulher; em ir agradecê-la com um abraço o trabalho que estava tendo por ele. Calçou as chinelas e dirigiu-se vagarosamente, pé ante pé, até o aposento onde ela estava. Seria uma surpresa. As lâmpadas dos corredores não tinham sido apagadas. Foi. Ao aproximar-se, ouviu um cicio, vozes abafadas... Que seria? A porta estava fechada. Abaixou-se e olhou pelo buraco da fechadura. Ergueu-se imediatamente... Seria verdade? Olhou de novo. Quem era? Era o primo... Eles se beijavam, deixando de beijar, escreviam. As folhas de papel eram escritas por ele e passadas logo a limpo pela mulher. Então era ele? Não era ela? Que devia fazer? Que descoberta? Que devia fazer? A carreira... o prestígio... senador... presidente... Ora bolas! E Numa voltou, vagarosamente, pé ante pé, para o leito, onde sempre dormiu tranquilamente. (BARRETO, 2006, p. 554) Ressalta-se a ironia na descrição de toda situação: inicia-se com ele indo “agradecer” a mulher pelo “trabalho” que ele lhe dava. Os termos destacados mostram a ingenuidade de Numa: era o marido traído e ainda iria agradecer, e o trabalho que não era da esposa, e sim do outro. A “surpresa” deveria ser para ela, mas quem foi surpreendido foi ele. Depois da revelação, o personagem sai do local da cena da mesma maneira como entrou “pé ante pé”. Se no início era para não despertá-la, agora era para não incomodá-los. As duas descobertas – o adultério e a 88 verdadeira autoria dos discursos – esperava-se que abalassem o deputado. Nenhuma uma coisa nem outra. Sua situação social como carreira, prestígio, senador, e quem sabe um futuro “presidente”, o fizera resignar-se. Aceitou tudo de bom tom. Embora a personagem dona Edgarda já apresente uma ruptura ante os costumes da época – o adultério feminino – o desmascaramento do papel intelectual de dona Edgarda frustrou a participação feminina nas ideias políticas. Por sua vez, Monteiro Lobato deixou-nos caricaturas puras de conformismo social. Exploraremos um excerto do conto “Cabelos compridos” na figura da personagem Das Dores, já caracterizada nas frases iniciais do conto: – Coitada da Das Dores, tão boazinha... Das Dores só faz o que as outras fazem e porque as outras o fazem. Vai à igreja aos domingos de livrinho na mão, ouve a missa, ouve a prédica, reza. Nunca falhou um dia. Se lhe perguntarem o porquê daqueles atos, responderá, muito admirada da pergunta: – Mas se todas vão! O grande argumento de Das Dores é esse: as outras. Ouve o sermão do padre e chora nos lances trágicos, não porque compreenda algo daquela retórica, nem porque sinta vontade de chorar – mas porque as outras choram, (LOBATO, 2007b, p. 72) Diferentemente da personagem Olga, de Lima Barreto, a personagem Das Dores lobatiana não possui o dom da reflexão filosófica. Suas atitudes são meras cópias dos comportamentos das outras mulheres de seu meio. Age como um carneiro em seu bando. As perguntas sobre a razão de seus atos causam-lhe espanto. O emprego do discurso direto na primeira frase do conto, sem a menor menção do sujeito, é prática comum de Lobato. Essa tática lobatiana sugere o sujeito como sendo uma voz do senso comum, de opinião geral, de unanimidade. 89 Nesse discurso anunciam-se as características da personagem: coitada e “boazinha...”. O primeiro adjetivo nos passa uma ideia de passividade e vitimização. O segundo traz o sentido de um ser incapaz de fazer o mal, que o diminutivo e as reticências reforçam. Na sequência da narrativa o emprego do “só” deixa claro que Das Dores não tem iniciativa própria, e quando toma atitude, o faz por cópia. Nem mesmo o sermão católico foge às críticas – de maneira velada – aos costumes das carolas. O que elas fazem, conforme a descrição dos rituais: “Vai à igreja aos domingos de livrinho na mão, ouve a missa, ouve a prédica, reza.” e “choram”, fazem sem entendimento, apenas por um único motivo: os costumes ditados pela sociedade. Essa caricatura não é exclusividade dessa personagem, é apenas representação de um comportamento comum à época: o conformismo. 2.3.3 Um caso de inconformismo O indivíduo pode reagir de maneiras diferentes à pressão da sociedade. Uma delas seria superá-la e impor-se sobre sua força, saída das mais raras em nossa sociedade, em especial na República Velha, quando o indivíduo dispunha de poucas armas. Outra seria, e mais comum, dobrar-se a ela, render-se e deixar que ela o guie. E uma terceira porta, mais estreita, mas à qual alguns recorrem e quando o fazem causa grande comoção social onde acontece: abandoná-la de vez. Émile Durkheim (2000), no final do século XIX, dedicou uma monografia a essa última. Seus estudos analisaram as possíveis causas das taxas de suicídio na sociedade. Não cabe reproduzir esses estudos, mas vamos direto à conclusão da obra, e vejamos o que nos serve como instrumento para nosso trabalho: 90 De todos esses fatos resulta que a taxa social de suicídios só se explica sociologicamente. É a constituição moral da sociedade que estabelece, a cada instante, o contingente de mortes voluntárias. Existe portanto, para cada povo, uma força coletiva, de energia determinada, que leva os homens a se matar. Os movimentos que o paciente realiza e que, à primeira vista, parecem exprimir apenas seu temperamento pessoal são na verdade a consequência e o prolongamento de um estado social que eles manifestam exteriormente. [...] São essas tendências da coletividade que, penetrando nos indivíduos, os determinam a se matar. (DURKHEIM, 2000, p. 384) Durkheim, nesse trabalho intitulado O suicídio, após abordar várias possibilidades, e afastar muitas que o senso comum acusa, aponta que se desejarmos procurar as causas mais perniciosas pelas taxas de suicídio, devemos procurá-las no coletivo, no social, e não no indivíduo. No conto “Um homem honesto”, Monteiro Lobato expõe um exemplo clássico de suicídio, cuja análise leva-nos a concordar com a teoria durkheimiana. Como de hábito, Lobato inicia o conto com o mesmo recurso utilizado no conto “Cabelos compridos”: uso do discurso direto não tendo um sujeito específico – “todos” – como uma voz do senso comum “– Excelente criatura! Dali não vem mal ao mundo. E honesto, ah!, honesto como não existe outro – era o que todos diziam do João Pereira” (LOBATO, 2008b, p. 69). Na sequência, apresenta os ofícios desempenhados pelo personagem e os motivos que o fizeram trocar de emprego: João Pereira trabalhava em repartição pública. Estivera a princípio num tabelionato e depois no comércio como caixeiro do empório Ao Imperador dos Gêneros. Deixou o empório por discordância com a técnica comercial do imperante, que toda se resumia no velhíssimo lema: gato por lebre. E deixou o cartório por não conseguir aumentar com extras o lucro legal do honradíssimo tabelião. Atinha-se ao regimento de custas, o ingênuo, como se aquilo fora a tábua da lei de Moisés, coisa sagrada. (LOBATO, 2008b, p. 69) 91 Por opção trocou de emprego duas vezes, o que demonstra o conflito que travava com os costumes, não aceitando a situação vigente. Notemos o emprego dos adjetivos no grau superlativo “velhíssimo” e “honradíssimo”. O primeiro sugere que o costume comercial não é recente, é algo antigo que já está enraizado na nossa cultura. O segundo traz o eruditismo, como uma atitude nobre, o que comparado com a prática à qual se refere, resulta em uma ironia jocosa. Ainda nesse trecho temos o segundo adjetivo atribuído ao João Pereira: “ingênuo”, alcunha que lhe impuseram por ter a lei como sagrada e a guiar sua conduta. Esse adjetivo somado ao anterior – “honesto” – vai construindo a personalidade do personagem. Na repartição vegetava já de dez anos sem conseguir nunca mover passo à frente. Ninguém se empenhava por ele, e ele, por honestidade, não orgulho, era incapaz de recorrer aos expedientes com tanta eficácia empregados pelos colegas na luta pela promoção. (LOBATO, 2008b, p. 69) Nesse trecho, é nítido que o comportamento de João Pereira difere dos demais da repartição, o que lhe rendia uma pena. Destaca-se o termo “Ninguém” dessa passagem em contraste com “todos” do início do conto. Embora todos o tinham por honesto, ninguém era capaz de fazer algo – “se empenhava” – por ele. Guardemos esse contraste para retomá-lo em outro momento mais oportuno da análise. Surge, pela primeira vez, a voz de João Pereira “– Quero subir por merecimento, legalmente, ho-nes-ta-men-te! – costumava dizer, provocando risinhos piedosos nos lábios dos que “sabem o que é a vida” (LOBATO, 2008b, p. 69). Seu discurso soa como autodefesa, a fim de justificar sua estagnada carreira na repartição. Esse discurso permite concluirmos o seguinte: o personagem tinha ciência de sua situação e das formas pelas quais pretendia alcançar êxito – reparemos a referência à legalidade e as sílabas separadas do advérbio sugerindo 92 como se estivessem sendo gritadas por ele. Ou seja, o personagem assume seu comportamento diferente e anuncia que não pretende mudar. Os termos escolhidos para se referirem aos demais na repartição – “os que sabem o que é a vida” – obviamente excluem João Pereira desse conhecimento. A recepção do discurso foi com “risinhos piedosos”: o substantivo no diminutivo e o adjetivo selecionado transmitem a ideia de que riam procurando disfarçar a fim de não colocá-lo em situação constrangedora, por mera compaixão ao ingênuo. Na sequência, temos uma descrição da vida tranquila, digna e pautada na moral, da família de João Pereira: João Pereira casara cedo, por amor – não compreendia outra forma de casamento – e já tinha duas filhas mocetonas. Como fossem sobremaneira curtos os seus vencimentos, a pequena família remediava-se com a renda complementar dos trabalhos caseiros. Dona Maricota fazia doces; as meninas faziam crochê – e lá empurravam a pulso o carrinho da vida. Viviam felizes. Felizes, sim! Nenhuma ambição os atormentava e o ser feliz reside menos na riqueza do que nessa discreta conformidade dos humildes. – Haja saúde que vai tudo muito bem – era o moto de Pereira e dos seus. (LOBATO, 2008b, p. 69) Observa-se a intensidade na afirmação da felicidade familiar. À primeira frase “Viviam felizes”, o autor, imediatamente, enfatiza “Felizes, sim!”. Essa construção é um diálogo que o narrador pretende travar com o leitor. Como se a primeira afirmativa houvesse provocado um espanto no leitor: como poderiam ser felizes com essa vida simplória? E após a reafirmação enfática, o autor traz uma reflexão filosófica sobre a felicidade. Comparemos essa frase lobatiana “discreta conformidade dos humildes” com a frase de Lima Barreto “felicidade vulgar” e notaremos, em ambas, uma crítica, de forma irônica, à aceitação pelas camadas mais simples da população, dos descalabros sociais. O conformismo, reapresentado 93 no discurso direto no final do trecho, aparece como uma voz do senso comum, como dito popular adotado na íntegra pela família Pereira. A seguir, a narrativa apresenta o primeiro ponto de inflexão do conto: Mas veio um telegrama... Nos lares humildes é acontecimento de monta, anunciador certo de desgraça. Quando o estafeta bate na porta e entrega o papelucho verde, os corações tumultuam violentos. – Que será meu Deus? Não anunciava desgraça aquele. (LOBATO, 2008b, p. 70) No período inicial do trecho, a conjunção adversativa e as reticências no final criam a expectativa para o desenrolar da narrativa. Após a referência sobre os costumes dos humildes, o autor antecipa e tranquiliza o leitor anunciando que contrariando a crença popular, ao menos aquele telegrama, não trazia desgraça. Ressalta-se que essa tática usada pelo narrador ao criar uma expectativa de desgraça e em seguida a desfaz, não foi sem intenção. Mais adiante, com o desenvolvimento da análise, isso se tornará claro. O telegrama nada mais era que um convite para João Pereira ser padrinho de casamento de uma sobrinha que morava no interior. João aceita, mas prudente que era “E muito naturalmente foi de segunda classe, porque nunca viajara de primeira, nem podia” (LOBATO, 2008b, p. 70). E tudo transcorreu normalmente no casório. No embarque de retorno, os parentes, anfitriões de João Pereira protestaram: [...] protestaram indignados ao vê-lo meter a maleta num carro de segunda. – Não admitimos!... Tem que ir de primeira. – Mas se já comprei o bilhete de volta... – É o de menos – contraveio o tio. – Mais vale um gosto do que quatro vinténs. Pago a diferença. Tinha graça!... 94 E comprou-lhe bilhete de primeira, sacudindo a cabeça: – Este João... (LOBATO, 2008b, p. 70) Note-se o tom imperativo dos parentes nas expressões “Não admitimos!...” “Tinha graça!...” “contraveio o tio” e por último uma de piedade “- Este João...” (LOBATO, 2008b, p. 70). Assim, João Pereira embarcou de volta para casa em uma casta diferente da qual estava acostumado. A passagem que segue o trata não como João Pereira, mas com seu predicativo incorporado ao nome próprio. João Honesto, assim forçado, pela primeira vez na vida embarcou em vagão de luxo, e o conforto do Pullman, mal o trem partiu, levou-o a meditar sobre as desigualdades humanas. A conclusão foi dolorosa. Verificou que é a pobreza o maior de todos os crimes, ou, pelo menos, o mais severa e implacavelmente punido. (LOBATO, 2008b, p. 70) Ressalta-se expressão “foi forçado” mostrando o ato não-voluntário. A viagem em outra classe o fez filosofar sobre as classes sociais e verificar sobre qual a pena tem maior intensão e extensão. No desembarque toma contato com o pacote que iria mudar sua vida – o segundo ponto de inflexão do conto. Era dinheiro, muito dinheiro, um pacotão de dinheiro! Pereira sentiu um tremelique de alma e corou. Se o vissem naquele momento, sozinho no carro, com o pacote a queimar-lhe as mãos... “Pega o larápio!” Esqueceu do jornal lido e partiu incontinenti à procura do chefe da estação.” (LOBATO, 2008b, p. 72) A gradação da primeira frase enfatiza que não era uma questão de uns trocados, era um montante contundente. Isso repercutiu nele como um choque. Não era o “pacote” que lhe queimava as mãos, pois não estava quente. O que ardia era a reflexão imediata que condenava a apropriação do pacote. Uma voz, embora interna, repercutia o que ele havia introjetado em sua formação moral: “Pega o 95 larápio!”, ou seja, ficar em posse daquele objeto seria um ato imoral. Todo processo educativo pelo qual passamos não é fruto do indivíduo, mas da cultura do meio em que ele vive, portanto oriunda do social. Imediatamente, o personagem age de acordo com a moral incorporada. O chefe da estação trata-o com “displicência” até ouvir a palavra mágica “pacote de dinheiro”. Ao ver o pacote o chefe “Pasmou,” e encarou João Pereira como “o homem sobrenatural”, para ele “Dinheiro perdido é dinheiro sumido.” Essa expressão enfatiza o costume difundido na população, que vai de encontro com a moral de João Pereira, o que causou espanto em todos naquela repartição. Passado o choque provocado, João Pereira saiu da estação orgulhoso de sua atitude. Logo que chegou em casa contou à mulher, sem citar o “quantum achado.” Imediatamente a esposa o apoiou, até que questionou: “Mas quanto havia no pacote?” Quando, porém, soube que a soma atingia a vertigem de 360 contos, sofreu o maior abalo de sua existência. Esteve uns momentos estarrecida, com as ideias fora do lugar. Depois, voltando a si de salto, avançou para o marido num acesso de cólera histérica, agarrou-o pelo colarinho, sacudiu-o nervosamente. [...] – Idiota! Idiota!...Idioooota... (LOBATO, 2008b, p. 73) João Pereira não compreendeu por que o comportamento da mulher mudou tanto simplesmente porque “variava a quantia” e tentou convencê-la de sua boa atitude recorrendo à moral. Atitude que foi de pronto rechaçado pela mulher e também pelas filhas “furiosíssimas contra a tal honestidade que lhes roubava uma fortuna” (LOBATO, 2008b, p. 74). O pai vive uma situação de conflito entre a moral, que lhe fora inculcada, e a oportunidade de consumo que daria às meninas a “vida de regalos que teriam se o pai possuísse melhor cabeça. [...] – Coitado! Até da dó!” (p. 74). Na visão das filhas ele passa de idiota a um ser digno de piedade, e diante 96 dessas desavenças familiares, ele chega a se questionar “Teria, acaso, errado?” (p. 74). O pior ainda estava por vir. Os jornais noticiaram seu ato: “gesto raro, nobilíssimos, denunciador das finas qualidades morais que alicerçam o caráter do nosso povo” (LOBATO, 20008b, p. 75). Primeiro que se o “gesto” é “raro” não é popular; segundo o emprego do adjetivo em grau superlativo absoluto sintético “nobilíssimo”; e ainda o chama de “denunciador das finas qualidades morais do nosso povo”, ou seja, há uma ironia alocada no discurso de jornal. A mulher, para debochar do marido diante do jornal, convoca a filha “ – Leva, Candoca, leva este elogio ao armazém e vê se nos compra com ele meio quilo de marmelada” (LOBATO, 2008b, p. 75). A repetição do verbo levar, com a interposição do vocativo, enfatiza o deboche, finalizando que toda aquela moral de João Pereira é insuficiente para comprar sequer um pedaço de “marmelada”. Não foi só em casa que João Pereira passou a ser debochado. No trabalho virou motivo de zombaria deixando-o de “cara amarrada e coração pungido.” Nem no leito do casal o infortúnio o abandonava. Lembremos que no início do conto há firmes frases sobre a vida feliz que vivia a família, como se anunciasse ao leitor a mudança que estaria por vir. Observemos o diálogo entre ele e a esposa no leito: [...] – Mas, olhe, João, você nunca pensou bem. Você não tem cabeça. É por isso que vivemos toda a vida esta vidinha miserável, comendo o pão que o diabo amassou... – “Vidinha miserável!”... Sempre fomos felizes, nunca percebemos que éramos pobres... – Sim, mas percebo-a a gora, porque só agora nos surgiu a ocasião de enriquecer. Foi uma sorte grande que Deus nos mandou. (LOBATO, 2008b, p. 76) E ela continua, inclusive a citar o vizinho, um gatuno. 97 – Mas é um passador de nota falsa, mulher! – Passador de nota falsa, nada! Tem boa cabeça, é o que é. Não vai na onda. Não é um trouxa como você. (LOBATO, 2008b, p. 77) No trabalho, o deboche e as ironias com sua pessoa prosseguiam sem fim: “É um homem honeeeesto.” (LOBATO, 2008b, p. 77). Diante disso, João “entrou a cair socialmente” (p. 77). Em casa, dona Maricota que sempre fora feliz e cuidadora, agora vivia “num desânimo, lambona, descuidada dos afazeres domésticos, sempre aos suspiros” (p. 78). Situação que contaminou João que “enojou-se da vida e perdeu o ânimo de vivê-la até o fim” (p. 78). Para piorar as coisas, o aluguel subiu muito além de suas condições. João reclamava da exploração à mulher, que, ao invés de apoiá-lo acirrava ainda mais a revolta. – Pois é. E quando uns diabos destes perdem pacotes – porque você bem sabe que só eles possuem pacotes para perder –, inda aparece quem lhos restitua... Você está vendo agora como eles formam os tais pacotes. Arrancando o pão da boca duns miseráveis como nós – dos honestos... (LOBATO, 2008b, p. 78) O destaque em itálico, feito pelo narrador, enfatiza a ironia sobre os honestos, talvez a expressão que dona Maricota queria usar seria: idiotas. João não se contendo mais, pede a mulher: – Pelo amor de Deus, Maricota, não me fale mais assim que sou capaz duma loucura!... – Está arrependido? Está convencido de que foi tolo? Pois quando encontrar outro pacote faça o que todos fariam: meta-o no bolso. Quem rouba a ladrão tem cem anos de perdão. (LOBATO, 2008b, p. 78) Aqui dona Maricota traz à tona o costume habitual – realçando a ironia vista acima sobre o “gesto nobilíssimo, denunciador das finas qualidades morais que 98 alicerçam o caráter do nosso povo”. Eis o caráter do nosso povo, explicitado agora pela raiva de dona Maricota. Descontrolada a fúria de dona Maricota, mesmo titubeando se deveria ou não, ainda acrescentou: – E você não sabe de uma coisa ... – Que é? – Disse-me a Ligiazinha que você anda por aí de apelido às costas... – Quê? – João trouxa! Ninguém diz mais Pereira...” (LOBATO, 2008b, p. 79) Essa última frase de dona Maricota faz-nos voltar às palavras iniciais do conto “E honesto, ah!, honesto como não existe outro – era o que todos diziam do João Pereira.” Observa-se o contraponto entre “todos diziam” do início, com “Ninguém mais diz...” agora do final. A estrutura da narrativa foi criada a fim de ressaltar o antes e o depois do “pacote”, lembremos o “eram felizes, sim felizes” e a situação atual da família. Ainda sobre a estrutura, vale a pena repetir a passagem em que o narrador comenta sobre a chegada do telegrama convidando João para o casamento “Nos lares humildes telegrama é acontecimento de monta, anunciador certo de desgraça.” Mas qual desgraça? Na sequência, àquela altura, o narrador ameniza “Não anunciava desgraça aquele.” Não àquele instante! Mas o autor já preparava a situação para o desfecho do conto. Tratando João Pereira por mártir, o narrador finaliza: – Basta! – exclamou num tom de desvario que assustou a mulher, e largando de chofre a xícara retirou-se para o quarto precipitadamente. [...] Reboara no quarto um tiro – o tiro que matou o último homem honesto... (LOBATO, 2008b, p. 79) O conto, desde o início, mostra o confronto da moral de João Pereira com a realidade circundante. Teve de sair do trabalho no comércio, e depois também no 99 cartório, por resistir às maneiras lucrativas dos negociantes. Na repartição, não se permitia usar dos mesmos expedientes de seus companheiros na concorrência, o que lhe sobrava à preterição nas promoções. Seu casamento fora por amor, não por interesse – muito comum segundo os costumes à época. Todas essas situações foram narradas para firmar a constituição do caráter de João Pereira, sempre pautado na moral e na honestidade; duas características que serão contestadas, de forma irônica e debochada, por todos a seu redor. Se procurarmos a causa do suicídio de João Pereira encontraremos a pressão social. João agiu conforme sua moral e tentou sustentar-se baseado nela. Mas, sua honestidade esbarrou em outra moral: a dos costumes. Se em várias situações, o ajustamento necessário é o dobrar-se à realidade, esse personagem não cedeu. Manteve firme sua posição e preferiu retirar-se a conformar-se aos costumes. Retornemos ao discurso sociológico de Durkheim para fecharmos o capítulo: Quanto aos acontecimentos privados que geralmente são considerados como as causas imediatas do suicídio, sua única ação é a que lhes atribuem as disposições morais da vítima, eco do estado moral da sociedade. (DURKHEIM, 2000, p. 384) 100 CONSIDERAÇÕES FINAIS “O Brasil é uma Jecatatuásia de oito milhões de quilômetros quadrados.” (Monteiro Lobato) O tema deste trabalho foi a representação literária das práticas culturais que caracterizaram a cultura brasileira na República Velha. O objetivo foi demonstrar como o tema permeou as narrativas do corpus e o modo como foi retratado. Nas primeiras décadas do século XX, foi restrita a publicação de obras literárias que atendessem ao tema, exceções às obras de Euclides da Cunha, de Lima Barreto e de Monteiro Lobato. Optou-se pelos dois últimos por motivos de identificação pessoal e pela quantidade de assuntos comuns em suas obras. Por meio de estilos irônicos e satíricos, acrescentado de humores pessimistas, Lima e Lobato esmiuçaram os vícios perniciosos da insipiente sociedade republicana brasileira. Contudo, foi necessário que, ao escreverem o texto, disfarçassem as críticas, daí empregarem com maestria a ironia – tropos que analisamos segundo o trabalho de Linda Hutcheon. A expressão “práticas culturais” que aparece no tema, retirei-a da Teoria literária de Jonathan Culler, e quando a associei ao conceito de fato social de Émile Durkheim, não foi como sinônimos, mas apenas para um explicação teórica possível. Se desejarmos compreender certas práticas culturais vigentes no momento atual da nossa sociedade, não será possível se olharmos apenas como aparecem hoje. Mas, devemos analisá-las em momentos passados, em seus primórdios, onde ainda não ganharam a complexidade que a modernidade lhes deu, de modo a encobrir suas raízes com camadas de terra. 101 Halbwachs, em A memória coletiva (2012), aponta a relevância para a sociedade contemporânea de seus retratos em épocas anteriores: No final, tirando-se gravuras e livros, o passado deixou na sociedade de hoje muitos vestígios, às vezes visíveis, e que também percebemos na expressão de imagens, no aspecto dos lugares e até nos modos de pensar e de sentir, inconscientemente conservados e reproduzidos por tais pessoas e em tais ambientes. Em geral nem prestamos atenção nisso... mas basta que a atenção se volte desse lado para notarmos que os costumes modernos repousam sobre camadas antigas que afloram em mais de um lugar. (HALBWACHS, 2012, p. 87) Assim, para retratar algumas práticas culturais, recorri aos primórdios da sociedade republicana brasileira, a República Velha. E foi com este intento que selecionei Lima Barreto e Monteiro Lobato como corpus, autores reconhecidos por teóricos e historiadores literários como intérpretes por excelência desse período de nossa sociedade. De Lima Barreto explorou-se os romances Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma, Numa e a ninfa, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, Clara dos anjos, Os bruzundangas; a coletânea de contos Histórias e sonhos, e as narrativas memorialísticas Diário íntimo e O cemitério dos vivos. De Lobato, a coletânea de contos Urupês, Cidades mortas, Negrinha, O macaco que se fez homem; e o romance O presidente negro. Os autores seletos formam um conjunto coerente não só pela similaridade de seus pensamentos, como também pelo caráter denunciador dos costumes da cultura brasileira da época. Das análises feitas das obras de Lima Barreto e Monteiro Lobato, conclui-se que seus escritos confirmam as ideias acima de Halbwachs. Nos personagens-tipo apresentados por Lima e Lobato, encontramos as atitudes que estão na base dos 102 temas selecionados para análise – funcionalismo, doutorismo e conformismo – que ainda sobrevivem e regem muitos dos costumes atuais da cultura brasileira. Utilizando o método das passagens paralelas, analisaram-se para cada tema textos de Lima e Lobato, para pôr à prova não apenas a coerência de assuntos, mas principalmente, o pensamento dos autores. Constatou-se a importância do entendimento sobre ironia e sátira para a interpretação das narrativas. A desatenção a esses instrumentos pode levar o leitor a interpretações equivocadas, que colocam o autor em situação difícil perante a opinião pública, principalmente nos casos de impossibilidade de qualquer esclarecimento de sua parte. Precisar a intenção do autor em literatura é algo delicado, devido à falta de consenso entre os teóricos da literatura sobre esse assunto. Mas pela análise realizada nos capítulos precedentes, observou-se a presença marcante da denúncia crítica das práticas culturais que se enraizaram na nossa cultura, muitas delas presentes até os nossos dias. Intenção encontrada em suas narrativas ficcionais e também declarada pelos próprios em seus escritos não ficcionais. É difícil conter o riso ao ler as narrativas lobatianas ou as limabarretianas. Em suas obras desfilam a indignação e o ceticismo diante da realidade social que os circunda, sem, no entanto, desistir de fazer de seus escritos verdadeiros panfletos, que investem contra as práticas sociais nocivas à sociedade que pretende ser republicana. Marco Antonio de Moraes, no artigo “Cartas escolhidas: (auto)retrato póstumo” cita que Lobato “Em 1948, pôde afirmar que, a despeito de tanta imbecilidade, tanta maldade, tanta falta de bom-senso e sobretudo de justiça” no país, prestara o “serviço social, que é como o serviço militar dos moços”, 103 apregoando o seu “não-safadismo, não-conformismo” (MORAES, 2014, p. 433). Embora a citação refere-se a Lobato, pode muito bem ser estendida a Lima Barreto. Os personagens literários que vimos desfilar ao longo deste trabalho, são representantes de tipos reais, cujos comportamentos e ideias não podem ser tomados como gerados em si, mas por fatores externos a eles, por circunstâncias locais que os tornam quem são. Finalizo a reflexão acima, com a contribuição de Erving Goffman: Ao analisar o “eu”, então, somos arrastados para longe de seu possuidor, da pessoa que lucrará ou perderá mais em tê-lo, pois ele e seu corpo simplesmente fornecem o cabide no qual algo de uma construção colaborativa será pendurado por algum tempo. E os meios para produzir e manter os “eus” não residem no cabide. Na verdade, frequentemente estes meios estão aferrolhados nos estabelecimentos sociais. (GOFFMAN, 2007, p. 231) 104 REFERÊNCIAS ATAÍDE, T. Lima Barreto. In: Lima Barreto prosa seleta. VASCONCELLOS, E. (Org.) Rio de Janeiro. Nova Aguilar, 2006, p. 58-64. AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2013. AZEVEDO, C. L.; CAMARGO, M.; SACCHETA, V. Monteiro Lobato, furacão na Botocúndia. São Paulo. SENAC, 2000. BALZAC, H. A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada. Vol.I. São Paulo. Globo, 2012. BARBOSA, F. A. 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