Faculdade Boa Viagem Mestrado em Administração Uma estética para um ritmo: construção da identidade de moda em movimentos culturais Eduardo Maciel RECIFE/PE 15 de junho de 2010 Faculdade Boa Viagem Mestrado em Administração Uma estética para um ritmo: construção da identidade de moda em movimentos culturais Eduardo Maciel Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Administração do Centro de Pesquisa e PósGraduação em Administração – CPPA da Faculdade Boa Viagem Orientadora: Prof. Dra. Ana Paula de Miranda Recife, 2010 DEDICATÓRIA À cidade mais encantadora do mundo, onde não me canso de cantar: Sou do Recife Com orgulho e com saudade Sou do Recife Com vontade de chorar O rio passa Levando barcaça Pro alto do mar E em mim não passa Essa vontade de voltar... Que sorte ter nascido aqui! GRADECIMENTOS Sou muito grato a: Mau e Vivi, Tati e Águeda, Janete e Luísa, Catarina e Sérgio, minha mãe e Breno, Gabi e Aninha, Dal, Adriana, Marquinhos, Chico e Marcinha, Larissa, Giovana e Pablo, Iranize e, ao Sebrae, na pessoa de Gilson Monteiro, pelo grande apoio e incentivo que me fizeram chegar até aqui. Aos amigos, aqui não citados, que esperaram pacientemente a minha hibernação intelectual. Caros, já estou de volta! Não posso deixar de agradecer à minha orientadora AP Miranda que, mais uma vez, me mostrou que é possível. Basta querer! Em especial, agradeço à prima Fabíola, que me fez perceber o quanto bater o tambor pode vir a mudar o rumo das nossas vidas. A todos, o meu muito obrigado. Eu vim com a Nação Zumbi Ao seu ouvido falar Quero ver a poeira subir E muita fumaça no ar Cheguei com meu universo e aterriso no seu pensamento Trago a luzes dos postes nos olhos Rios e pontes no coração Pernambuco embaixo dos pés E minha mente na imensidão. Mateus Enter do álbum Afrociberdélia - 1996 Nação Zumbi Resumo Focados no consumo e no porquê de suas preferências, nosso trabalho buscou no aprofundamento do estudo de um subgrupo cultural, encontrar possibilidades de resposta a esta pergunta. Tendo como universo de pesquisa a cultura pernambucana, focamos no subgrupo cultural dos tocadores de maracatu, sejam integrantes de escolas de percussão ou membros dessas agremiações. Um mergulho em seu tempo e espaço na busca de revelar como se constroi a sua identidade de consumo de moda e, como essa é elemento-chave de sua distinção, perante os demais grupos. Fundamentados no paradigma interpretativista, acreditamos que uma análise qualitativa foi o melhor caminho para compreender esses desejos e como estes são reflexo de suas crenças e valores compartilhados. Decerto, que vários autores já se debruçaram sobre este tema, mas o que aqui propomos é perceber como um microcosmo de um sub-grupo classificado como alternativo, pode ser norteador de tendências de consumo, e como estas podem ser inseridas em uma análise macro, buscando colaborar tanto academicamente quanto no mundo dos negócios, para empresas ou empreendedores da área. Trabalhando a cultura como pano de fundo, encontramos peculiaridades neste grupo, tais como integração, liberdade, referência cultural e beleza, associadas a um consumo que em muitos momentos se mostrou hedônico. Partindo de categorias analíticas construídas da análise das narrativas de os entrevistados, descobrimos que estas estão interligadas e são alicerce de si mesmas, numa dinâmica viva e em constante retroalimentação. Diante desta análise, abrimos espaço para novas pesquisas, nas quais possamos validar se, em outros grupos ditos alternativos, essas categorias se mantêm ou quais seriam estes novos desejos e suas relações com o nosso trabalho. Palavras-chave: consumo, moda, cultura e maracatu. Abstract Focused on consumption and because of their preferences, this study sought to deepen the study of a cultural subgroup find possible answers to this question. Having to search the universe of Pernambuco culture, focus on the cultural, subgroup of the Maracatu players, wether members of schools of percussion or members of these associations, a dip in their own time and space in search of revealing as it builds its identity consumer fashion and as such is a key element of its distinction in relation to other groups. Based on the interpretive paradigm, we believe that a qualitative analysis was the best way to understand these needs and how these are a reflection of their beliefs and shared values. In a number of authors who have already studied this subject, but what I suggest here is to see how a micro-cosmos of a subgroup classified as alternative, can be a guide to consumer trends, and how these can be inserted into a macro analysis seeking to collaborate both academically and in business enterprises or entrepreneurs to the area. Working culture as a backdrop, we find peculiarities in this group such as integration, freedom, cultural reference and beauty associated with a consumer who have often proved hedonic and in search of personal pleasure only. Starting from analytical categories constructed from the narratives of our respondents, we found that these categories are interlinked and foundation of them live in a dynamic and constant feedback. Given this analysis, we make room for new research projects where we can validate it in other groups said alternative, these categories remain or what are these new needs and their relationship to our work. Keywords: consumption, fashion, culture and maracatu. LISTA DE FIGURAS E ÍCONES Figura 01 – Movimento do Significado 22 Figura 02 - Modelo do efeito da comparação social e a construção e desenvolvimento da aparência 33 Figura 03 - Fusão dos horizontes 38 Figura 04 – Movimento do significado – Cultura Pop 43 Figura 05 – Estilo estético mangueboy e manguegirl 45 Ícone 1 – Nobreza - A Rainha do Maracatu 85 Ícone 2 – Pertencimento – Umbrela 86 Ícone 3 – Liberdade – Batuqueiro 88 Ícone 4 – O Novo - Mangue boy 90 Ícone 5 – Hedonismo – Baiana 91 Ícone 6 – Referência Cultural - Caboclo de lança 93 Ícone 7 – Beleza - Mangue Girl 94 Ícone 8 – Raridade - O Rei 96 LISTA DE QUADROS E GRÁFICOS Quadro 01 - Síntese de comparação de perspectivas 25 Quadro 02 - Estrutura geral das teorias da moda 29 Quadro 03 – Resumo de características de subgrupos 39 Quadro 04 – Protocolo de análise 49 Quadro 05 - Decupagem e identificação de categorias conceituais 55 Gráfico 1: categorias analíticas e suas relações 97 SUMÁRIO 1.INTRODUÇÃO 12 2.PROBLEMA DE PESQUISA 14 2.1 Justificativa 15 2.1.1 Justificativa Teórica 15 2.1.2 Justificativa Prática 16 3. REVISÃO LITERÁRIA 17 3.1 Cultura de Consumo 17 3.2 Consumo de Moda 26 3.3 Consumo e Identidade de Grupo 33 3.4 Subgrupo de Consumo 38 3.5 Consumo e mídia pop 41 3.6 Consumo e os movimentos culturais pernambucanos 44 4. MÉTODO DE PESQUISA 47 4.1 Orientação paradigmática 47 4.2 Método de análise 47 4.3 Coleta de dados 51 5.CONSTRUÇÃO DO CORPUS DE PESQUISA 53 6. ANÁLISE E CONCLUSÃO DOS DADOS 55 6.1 Categoria analítica 01 56 6.2 Categoria analítica 02 59 6.3 Categoria analítica 03 65 6.4 Categoria analítica 04 68 6..5 Categoria analítica 05 72 6.6 Categoria analítica 06 74 6.7 Categoria analítica 07 76 6.8 Categoria analítica 08 80 6.10 Iconografia do personagem do maracatu x iconografia de moda 83 6.10.1 Nobreza – A Rainha do Maracatu 85 6.10.2 Pertencimento – Umbrela 86 6.10.3 Liberdade – Batuqueiro 88 6.10.4 O Novo – Mangue Boy 90 6.10.5 Hedonismo – Baiana 91 6.10.6 Referência Cultural – Caboclo de Lança 93 6.10.7 Beleza – Mangue Gilr 94 6.10.8 Raridade – O Rei 96 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS 99 REFERÊNCIAS 105 12 1. Introdução “Um curupira já tem o seu tênis importado” Enquanto o Mundo Explode - Chico Science Com a chegada da idade moderna, período de grande transformação vivido pela sociedade ocidental entre o séc. XVI e XVII toda a história social sofreu uma grande mudança. Essa mudança terá como mola propulsora a nova forma de ver e viver o consumo. McCracken (2003) conclui que, com a revolução industrial, as sociedades ocidentais orientam mais que a possibilidade do acesso a produtos dantes destinados a poucos, mas uma nova forma de ser a partir do que possuem. Essa alteração de valores e significados do consumo será construída pelos grupos ou culturas que os validam e os mantêm presentes e vivos em seu tempo e espaço. Várias são as disciplinas que estudam o consumo, mas todas sempre buscaram, dentro das suas especificidades, compreender e justificar o porquê deste hábito. Sob a ótica da economia neoclássica, variamos entre custo e utilidade; já com olhares da sociologia, teremos relações de distinção social até a visão antropológica da formação de padrões culturais (Barbosa, 2006). Se o desejo de consumir é retroalimentado de desejos culturalmente construídos, teremos no consumo de moda uma das mais fortes representações culturais, visto sua dinâmica, acesso e massificação de valores e significados (McCRACKEN, 2003). Essa integração serviu a princípio para a identificação de classes e castas. Posteriormente, fizeram uso dos seus códigos de status outros grupos e subgrupos sociais e culturais construindo suas mensagens por meio das cores, texturas e modelagem visualizadas nos seus trajes (BLUMER, 1969). Para perceber essas mensagens, faz-se necessário um mergulho nas culturas que as construíram; compreender seus valores, e só assim ter uma decodificação real de suas linhas e entrelinhas (LURIE, 1997). Essa compreensão fica mais complexa se aprofundamos nosso olhar nas questões dos grupos, nos quais novos valores e significados de uma cultura são modelados aos desejos, construindo assim subgrupos culturais (SOLOMON & RABOLT, 2004). Este trabalho busca analisar como são construídos os processos simbólicos de 13 consumo na perspectiva cultural, e quais os elementos que podem explicar a formação da identidade de moda em subculturas1. Nosso estudo se deteve ao subgrupo dos participantes de escolas de percussão ou maracatus da cidade de Recife e Olinda onde valores construídos e perpetuados pelos que fazem parte deste subgrupo, apresentaram uma dinâmica própria de construção desta identidade com a moda como principal ferramenta. 1 Entendemos subcultura como elemento que constrói uma cultura macro. As quais são responsáveis pela construção da socialização dos que nela vivem. Estas incluem: religiões, grupos raciais, regiões geográficas, associações etc. (KOTLER, 1998) 14 2 Problema de Pesquisa “Uma cerveja antes do almoço, é muito bom pra ficar pensando melhor” A Praieira – Chico Science Decerto que a era moderna2 foi um marco divisor do comportamento das civilizações. Mudanças na forma de pensar, que virão a refletir nos mais diversos mecanismos de interação social, chegaram a fazer com que a identidade destes grupos sociais venha a perder sua estabilidade e se reconstrua mediante desejos que essa sociedade lhe impôs (HALL, 2006). Para Salter (2002), esta nova sociedade trouxe em seu bojo uma nova noção de cultura para o mundo moderno, diretamente ligado ao consumo. Esta noção desprezou valores e dimensões sociais até então validados, tais como: trabalho, cidadania, religião e desempenho militar; para dar lugar ao que determinado indivíduo venha a possuir. Para o autor, “a cultura de consumo não é a única maneira de reproduzir a vida cotidiana; mas é, com certeza, o modo dominante, e tem um alcance prático e uma profundidade ideológica que lhe permite estruturar e subordinar amplamente todas as outras.” (SALTER. p. 17). Neste sentido, o consumo já não está associado ao funcional, e o simbólico agregará o desejo de ter. Inserido neste universo, o homem socialmente constituído foi motivado pelo meio a consumir, e este consumo associado ao simbolismo deu aos objetos de desejo valores e significados reconhecidos (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2006). Focando do macro para o micro, temos nos subgrupos ou subculturas, valores compartilhados transformados em um consumo simbólico construidor da identidade dos seus membros (BAUDRILLARD, 2000). Se consumir nos faz pertencer, o consumo e essa construção de identidade cultural encontrarão na moda um dos seus mais fortes elementos de composição. Como afirma Davis (1992), o significado da moda está nas suas imagens, pensamentos e sentimentos comunicados. O que foi usado ano passado em nossos dias já não tem o mesmo significado, mas não deixará de valer como instrumento de comunicação. Assim, grupos e subgrupos culturais construirão verdadeiros códigos de pertencimento nos seus trajes ou bens de consumo. Em muitos casos, estes bens e seus simbolismos ultrapassarão suas fronteiras, criando novos consumidores de outros subgrupos e ou níveis sociais distintos, construindo o que chamou McCracken (2003) de “movimento do significado”, que reconstruirá desejos e 2 Era moderna ou modernidade – período vivido a partir do séc. XVII, associada à revolução industrial, é entendida como uma visão de mundo, uma postura calcada na idéia do consumo (SILVA, 2003) 15 novos elementos para novas e velhas identidades de grupo. Sendo a moda comunicação (GARCIA e MIRANDA, 2007), esta não está restrita ao traje; migrando para objetos, serviços e até para nossa maneira de falar, reforçando nossa identidade em produtos e serviços consumidos. Quando essa relação consumo + moda + identidade + cultura se integram, questões particulares vêm à tona, tornando essa análise ainda mais rica e prazerosa, no que diz respeito à construção da identidade de subgrupos culturais. Pensando assim, propusemos aqui através deste estudo a seguinte questão: Como se constroi a identidade de moda em membros de um movimento cultural? 2.1 Justificativa “Expressão exata pra confessar, o que nunca disse a ninguém” A Expressão Exata – Fred Zero Quatro e Mundo Livre S/A 2.1.1 Teórica Estudar o consumo com um tema de interesse acadêmico já é lugar comum entre pensadores renomados como Baudrillard (2000), Solomon (2002) e McCraken (2003). Estes como tantos outros, buscam elaborar teorias sobre como sociedades e indivíduos constroem seus hábitos de consumo. No Brasil, autores como Barbosa e Campbell (2006), Brandini (2007), Pereira e Ayrosa (2005) e Rocha (1995), também focam seus estudos no mesmo interesse de encontrar justificativas do porquê escolhemos A e não B, mas com um foco onde a cultura passa a ser elemento chave dessa análise. Para Douglas e Isherwood (2006), a sociedade ou grupo é capaz de gerar desejos de consumo no indivíduo. Este desejo é executado enquanto existir interesse desse indivíduo em participar desse grupo. Pensando assim, focamos nosso trabalho nos ditos grupos alternativos e suas relações de consumo, construção de identidade e interação social. Compreendemos alternativos por subgrupos culturais que buscam uma identidade própria e exclusiva por meio de suas preferências e crenças, traduzidas, neste estudo, em uma forma própria de vestir 16 (MIRANDA e UCHOA, 2008). Para que essas evidências culturais fiquem ainda mais claras, nosso objeto de estudo será a chamada estética bumba3, devido ao seu alto grau de envolvimento histórico e cultural e à valorização da cultura. 2.1.2 Prática Levando nosso olhar para o mercado de moda, temos um dos maiores setores industriais do mundo. Isso sem falar na empregabilidade que este seguimento tem, e o impacto econômico nos seus pólos de produção. Em Pernambuco, ambiente de nosso estudo, existe uma das maiores produções nacionais na área, chegando a ocupar o 3º lugar no país (BEZERRA, 2004). Diante deste cenário, percebemos que este estudo pode colaborar para a construção de estratégias para empreendedores e empresários do setor, focados no desenvolvimento de marcas de moda que atendam a este ou outros públicos-alvo. É preciso que fique claro que neste estudo compreenderemos marca em seu contexto na era pósmoderna, na qual promessas da marca substituirão o discurso dos bens de consumo, colocando seu consumidor no estado de sujeito desejante (SEPRINI, 2006). Em outras palavras, a marca carregará consigo vários significados na construção da identidade de quem a consome. 3 Gíria urbana na cidade do Recife e Olinda, dada a participantes ou simpatizantes de grupos de percussão ou de maracatus. 17 3 Revisão Literária “É só uma cabeça pendurada em cima do corpo Procurando antenar boas vibrações” Antene-se – Chico Science 3.1 Cultura de Consumo Com a grande transformação do ocidente, em meados do séc. XVIII, que não está fundada apenas na revolução industrial, como destaca McCracken (2003), uma nova forma de perceber valores e, consequentemente, de consumir, será praticada. Este fato em muito trará transformações que serão fonte de análise de vários pensadores, mas todos com a mesma conclusão: “[...] tal revolução do consumo representa não somente uma mudança nos gostos, preferências e hábitos de compra, como uma alteração fundamental da cultura no mundo da primeira modernidade e da modernidade” (MCCRACKEN, 2003, p. 21). Toda essa transformação do consumo terá início no séc. XVII, quando novas oportunidades de compra passam a fazer parte da vida das pessoas comuns. Sob a ótica de Rocha: o consumo [...] é um dos grandes inventores da ordem da cultura em nosso tempo, expressando princípios, categorias, ideais, estilos de vida, identidades sociais e processos coletivos. Talvez, nenhum outro fenômeno espelhe com tamanha adequação, o espírito do tempo (ROCHA, 1995, p. 226). Em outras palavras, Baudrillard (1973) dirá o mesmo julgando que consumir é um modo ativo de relação, ele também proporá que esse consumo se dá de forma coletiva num modo de atividade sistemática e de resposta global, no qual se funda todo o sistema cultural. Pensando assim, possuir nos faz pertencer. Para entender melhor essa posse, temos em Miller (2002) alguns fundamentos dessa integração social a partir do consumo. Ele afirma que o ato de comprar é visto como um meio de descobrir, mediante a observação minuciosa das práticas de comprar dos indivíduos associada aos seus relacionamentos e papeis sociais. Segundo o pensamento de Barbosa (2006), é impossível não consumirmos simbolicamente. Seja nas mais simples ações do dia–a-dia, como comer ou escolher um meio de transporte; até ações mais complexas como vestir. Vistos como representações práticas do significado, os produtos construirão significados dentro de um determinado grupo. Estes, dependendo o poder que esta cultura terá, poderão se expandir além de suas fronteiras, 18 podendo ser compreendidos de uma forma mais plena ou sofrer alterações e modulações do seu novo espaço e tempo. Mas, nem sempre comprar foi fator determinante para pertencer ou ser aceito em um grupo, antes do que chamamos de modernidade, outra forma de se relacionar com os objetos e com a sua posse estava associada ao tempo que esses objetos faziam parte da história dos que o possuíam. Essa forma de consumo, com uma velocidade que tinha por obrigação ser lenta para validar sua posse, foi chamada de consumo de pátina (McCRACKEN, 2003). O seu uso consiste em elementos da idade que se acumulavam na superfície dos objetos; sua função não é de reivindicar status, mas de autenticá-lo. A pátina nada mais é que uma prova visual de pertencimento, uma forma de demonstrar a longevidade e a duração da família que os possui, pois quanto mais longa a posse do objeto, maior foi o tempo que seus proprietários gozaram de status; sua função maior estava em “...policiar e conformar a mobilidade social.” (McCRACEN. 2003, p. 53). Só com a chegada do séc. XVII e mais fortemente no séc. XVIII veremos o claro declínio da pátina. Ainda hoje, segundo McCracken (2003), encontraremos consumidores que fazem uso da pátina, mas seus objetivos já não serão os mesmos. Mas, a função de divisão de classes com base nas posses e no consumo continuará fortemente na era moderna, como afirma Solomon (2004) em seu pensamento da estratificação social. Nele, a criação de divisões artificiais numa sociedade é fruto de processos do sistema social, que pelo qual os recursos são distribuídos desigualmente de forma escassa e valiosa, gerando status de posses aos seus detentores. Toda essa euforia do consumo vivida com a era pós-moderna, que aparentemente pode ser percebida como algo negativo, tem no pensamento de Belk (1982) alguns pontos que justificam o porquê desta forma de consumir. Para o autor, o consumo é algo inerente ao processo de socialização. Este não tem sua origem na era moderna, mas sua construção se dá ainda nos primórdios da nossa história. O autor lembra o conceito maior sobre materialismo que é a capacidade de sentir prazer em possuir, a capacidade de invejar e negar o desejo do próximo. Para Arnould e Thompson (2005), o termo cultura de consumo contextualiza um sistema integrado produzido comercialmente de imagens, textos, e objetos que utilizam grupos - por meio da construção de práticas, identidades e significados –, criando um sentido coletivo nos seus ambientes orientando os seus membros em experiências de vida. Esses 19 significados são incorporados e negociados pelos consumidores, em situações particulares de relacionamento em papéis sociais. Slater (2002) diz que todos nós temos nossos objetos de desejo. Existirá sempre algo que podemos viver o resto de nossas vidas sem eles, mas, contrario a esta verdade, os desejamos como se sem eles nossas vidas não tivessem sentido. Esse desejo passa neste momento a ter uma associação direta com o pertencer. Ou seja: consumimos tal objeto e faço parte desse grupo. Quando esse desejo toma formas incontroláveis, viveremos um grande problema; pois o ter passa a fazer às vezes de felicidade, associando poder a valores de estima, atenção e até amor (SLATER, 2002). Isso faz com que o consumo passe a ter um caráter fundamentalmente simbólico e menos funcional. Símbolos e seus significados, na cultura de consumo, serão percebidos nos objetos e no ato de consumi-los de forma mais intensa com a chegada da era moderna. Neste contexto, o símbolo conhecido a princípio como marca ou sinal que evoca outro elemento/objeto, material ou conceitual, que se encontra em algum lugar (DONDIS, 1997); e passa a ter no consumo, como descrevem Baudrillard (1968) e Belk (1982), questões diretamente ligadas a valores do objeto que vão além do seu caráter utilitário e de seu valor comercial. Essa relação está diretamente associada à sua capacidade de comunicar-se com a cultura em que está inserido, construindo assim significados próprios. Bourdieu (2008) e Rocha (1995) descrevem que as pessoas existem em ambientes simbólicos, onde a necessidade de consumo imposta pela sociedade é tão forte que influencia o comportamento do indivíduo no desejo de ter ou não ter. O que pode ser traduzido em pertencer ou não pertencer. percebemos que consumir em nossos dias está associado a satisfazer desejos, temos em produtos e serviços valores que vão além do funcional. Essa relação construirá o que Davis (1992) chama de identidade social. Ou seja, uma grande teia de símbolos e significados compartilhados e valorizados por seus membros. Fournier (1991) lembra que os objetos são habitualmente associados a comportamentos pessoais, e seus significados serão potencializados a partir de um contexto social. Além disso, o significado também é altamente subjetivo e derivado da totalidade de adereços presentes na situação e no seu ritual de usabilidade. Como exemplo, trazem a xícara de café associada à leitura do jornal na primeira refeição do dia. Em separado, esses objetos podem ter pouco significado; mas para seu usuário, o ritual do café da manhã e os objetos 20 xícara + jornal são altamente simbólicos e cheios de significados. Se levarmos para o universo do consumo de moda e construção da identidade, que é o objetivo deste trabalho, podemos ter como exemplo no terno negro do executivo que circula num ambiente de negócios de um grande centro, e este mesmo traje sendo utilizado por um noivo à espera de sua futura esposa no altar. Valores distintos onde o ambiente e seus elementos são construtores destes significados. Fazendo uso do exemplo acima, para Baudrillard (2000) é importante ressaltar que o simbólico estará presente no consumo e na construção de papéis sociais. O autor afirma que o simbólico será agregador de valor ao objeto. Construído do material e do imaterial, o objeto transformado em um símbolo trará consigo uma representação tão complexa que dependendo da forma como esse é apresentado, sua função/mensagem comunicacional será alterada. Seguindo a regra básica de comunicação – emissor/código/receptor – analisar simbolicamente um objeto e sua mensagem requer de seu analista um reconhecimento da cultura/tempo/ambiente em que essa mensagem está inserida (BAUDRILLARD, 1973). Ainda sob a ótica de Baudrillard (1973), identificamos alguns níveis dos símbolos. Dentre eles, destacamos os “símbolos objetivos”, que têm na sua identificação uma associação imediata tais como as letras de um alfabeto; ou os “símbolos educativos”, em que a sua interpretação faz o seu receptor buscar na memória afetiva, a construção do seu significado. Palavras, números, sons, objetos, podem ser mais do que palavras, números, sons, e objetos dependendo da forma como um indivíduo decodifica os sinais por ele emitido. Um conjunto de notas musicais, por exemplo, pode representar num país (Hino Nacional) ou mesmo um uniforme representar mais do que uma peça de roupa. (MELLO; MIRANDA; PEPECE, 2001, p. 3). Outra característica importante do consumo simbólico foi trabalhada por Thompson, Pollio e Locander (1994). Esta característica diz respeito a questões afetivas transferidas simbolicamente para os objetos. Em seus estudos, a capacidade de representar o passado que o objeto pode vir a ter lhe dará um lugar simbolicamente mítico. Isso não significa dizer que o transformamos em objetos clássicos com religiosa significância; estes servem de guia ou ícones da nossa construção cultural. 21 Se consumir passa a ser uma forma de integração, temos na teoria do bem-estar de Baudrillard (1973) uma apresentação de como esse processo se dá. Para o autor, a felicidade está associada ao consumo e ao desejo de conforto, o que podemos entender também por segurança social. Essa teoria do bem-estar, tendo o desejo como justificativa, propõe que todos os homens são iguais perante suas necessidades básicas. Ou seja: eu necessito da mesma forma que o outro, mas nossos valores de troca podem ser diferentes. Perante as necessidades e o princípio da satisfação, todos os homens são iguais, porque todos eles são iguais diante do valor de uso dos objetos e dos bens. [...] Porque a necessidade se cataloga pelo valor de uso, obtém-se uma relação de utilidade objetiva ou de finalidade natural, em cuja presença deixa de haver desigualdade social ou história. (BAUDRILLARD, 1973, p. 48). Mas, esse símbolo do consumo não se resumirá à posse do objeto. Segundo Miller (2002), o ato de comprar também exerce forte simbolismo compartilhado pelo indivíduo e pelo seu grupo. Para o autor, o ato de comprar é como um rito sacrifical dividido, no qual num primeiro estágio temos a visão do excesso. Nesse momento o consumo é compreendido como o ato de gastar/pagar tudo que foi poupado para aquela compra. Mesmo sendo necessária ou desejada, surge a sensação de perda do tempo e valor construído. Ou seja, todo o investimento para a construção de determinado valor financeiro, além da decisão da troca pela mercadoria, ficará a sensação de perda do tempo de ocupação utilizado para construção deste mesmo valor financeiro. Quando essa compra/consumo está diretamente ligada à obrigação, a sensação de perda ainda será maior. Surge aqui a questão que esse valor poderia ser gasto em um ato pessoal, independente do seu propósito. “(...) um arroubo absoluto de estimulante liberdade transgressora” (MILLER, 2001, p. 109). Em seguida, temos o momento de mitificar este ato. Ou seja, por meio do consumo conseguimos tocar o divino. O crucial para sua definição é notar que esses atos adquirem sua lógica prática apenas ao passar por ritos sagrados que asseguram que, antes de atingir as metas práticas, eles são utilizados primeiramente para santificar e sustentar os objetos de devoção (MILLER, 2001, p. 112). A própria sociedade será mantenedora e motivadora desta forma simbólica de consumir. Espaços do mercado (feiras, lojas diversas e ambientes de serviços) são construídos para proporcionar a sensação e o desejo de consumo. Estes, carregado de memória afetiva, valores morais ou status, motivam o consumo simbólico. Esta forma de construção e estratégia motivadora será mais percebida nos grandes centros urbanos, mas o consumo 22 simbólico existirá também em regiões menores ou até primitivas. Para nossa maior compreensão de como se dá esse processo, podemos ver no esquema construído por McCracken (2003) como a cultura será o principal ambiente de construção de valores dos objetos. Neste espaço de localização do significado, valores serão dados e compartilhados entre membros do grupo e subgrupos. Figura 01 – Movimento do Significado Fonte: McCracken Cultura e consumo: novas abordagens ao caráter simbólico dos bens e das atividades de consumo, 2003, p. 100. Sendo validado no ambiente culturalmente construído, McCracken (2003) mostra como a publicidade e o sistema da moda darão significado aos bens de consumo. Neste contexto, rituais que vão do desejo de posse ao despojamento levarão os objetos de desejo e valor construídos no primeiro nível às mãos do consumidor final. A compreensão desta construção do significado será de grande valia para nosso estudo, visto possibilitar identificar como são transformados esses valores em bens, e como estes bens chegam ao consumidor individual. Será interessante também perceber como e quais serão estes instrumentos de transferência nesse processo de posse. O consumo surge como sistema que assegura a ordenação dos signos e a integração do grupo; constitui simultaneamente uma moral (sistema de valores ideológicos) e um sistema de comunicação ou estrutura de permuta (BAUDRILLARD, 2000, p. 78). 23 McAlexader e Schouten (1995) comprovam esta verdade em seu estudo sobre usuários de motocicleta Harley Davidson e a construção de valores compartilhados pelo grupo. Além da própria motocicleta, outros objetos são constituídos como símbolos de integração. Entre eles, destacam-se roupas de couro, botas e bonés. Tatuagens também farão parte da construção da imagem dos seus membros. Como elemento intangível, teremos na ‘liberdade’ o desejo maior compartilhado por todos. Isto fica claro no depoimento que se segue. Não sei se acredito em reencarnação, mas se for verdade, eu gostaria de voltar como uma águia. Quando lhe pergunto por que, ele responde: Para ter liberdade. Seria ótimo para ser capaz de decolar em qualquer tempo e lugar sobre a terra (MCALEXADER e SCHOUTEN, 1995, p. 51). Esses grupos são regidos, segundo os autores, por ideologias de consumo, pelas quais os rituais/eventos (encontros, viagens em grupo, festivais de música etc.) servem para fortalecer o consumo destes objetos e reforçar seus significados no grupo. No universo brasileiro teremos no trabalho de Mizrahi (2007). Um bom exemplo de integração do grupo a partir do consumo Em seu estudo, a autora buscou, no universo do funkeiros cariocas, justificativa para o consumo simbólico e integração social. “...o gosto funk é apreendido no trânsito entre as esferas da festa e cotidiana, que envolve o ir e vir entre a favela e outras áreas da cidade, como o próprio baile, a escola e o trabalho (MIZRAHI, 2007, p 01). Neste contexto, o consumo de elementos do vestuário será a grande materialização de símbolos de aceitação e reconhecimento. Tanto o cabelo crespo dos meninos “funkeiros” como a malha de moletom stretch são tingidos e descoloridos de modo a formar uma base sobre a qual serão posteriormente feitos os desenhos e assim produzir a marca da localidade que resultará do encontro entre o local e o global: o “cabelo” – descolorido e posteriormente adornado com motivos que remetem tanto ao cotidiano violento quanto às cosmopolitas marcas esportivas e tatuagens tribais – e a “calça” – confeccionada em um tecido cuja materialidade atende às exigências da corporalidade feminina brasileira e atinge o elemento de moda global através da simulação do jeans (MIZRAHI, 2007, p. 255). Diante da análise do estudo de Kaiser (1996), associado às nossas necessidades neste estudo, temos na perspectiva cultural apresentada pela autora uma linha de condução que fundamentará nossa análise. A cultura e suas relações sociais, sua construção e adaptações naturais, seus novos códigos e novos significados, norteiam e materializam novos valores transformados em objeto consumidos por seus membros. 24 Para a autora, existem três perspectivas de análise; são elas: interacionismo simbólico, cognitiva e cultural. É importante estar atento ao conceito comum que cada objeto, aqui compreendido como peça do vestuário, tem em seu espaço. Muitas vezes, este não tem uma relação funcional (uso literal para a função que foi projetado. Como exemplo a garrafa que serve para acondicionar o vinho), mas é de grande valia simbólica, e que por sua vez estará associado às relações sociais, passando a fundir sua função simbólica á uma funcional dentro da sociedade em que está inserido. O estudo dessas relações deve ser trabalhado em diversos níveis sociais e seus contextos com o consumo, seja em nível macro (coletivo) ou micro (individual). Detalhamos agora cada uma dessas perspectivas: Interacionismo simbólico - trabalhada na perspectiva do relacionamento social e estudando os papéis e suas interações. Sua crença está na aparência única e real, fazendo uma ligação da imagem com uma função social, papel e profissão. Como trabalha a integração ou exclusão social, os símbolos são elementos construtores de mensagens da nossa análise. Esta análise precisa levar em conta a forma como estes símbolos podem ser mutantes – tempo e espaço. Sua função não é material, assim, o imaterial simbólico será seu maior valor. Significados atribuídos ao vestuário e à aparência são manipulados e modificados por meio de processos de interpretação, já que apesar de uma percepção e análise imediata, temos várias possibilidades de uso de vários símbolos associados a contextos múltiplos. Perspectiva cognitiva – tendo como regra a atenção ao nosso objeto de análise, esta perspectiva prega que informações e valores são utilizados e apreendidos por grupos e subgrupos nas suas qualidades e características. Assim, roupas são usadas simbolicamente para causar interação social, e um esforço de “se parecer com” estará presente. Este desejo de pertencimento estará associado a uma questão de tempo e espaço. É o que chamamos de vestir a roupa certa, no local certo. Para uma análise nesta perspectiva, a autora recomenda o cuidado com valores pessoais do analista, já que consiste no uso de métodos qualitativos e na análise de códigos. Como exemplo, lembramos dos óculos associados ao saber. Perspectiva Cultural - incluindo área como a antropologia, história, cultura, consumo, semiótica e sociologia, esta perspectiva analisa os códigos simbólicos de cada sociedade, e suas alterações quando valores são construídos, materializados em símbolos e transformados 25 em roupas. Seus pressupostos estão fundamentados em valores coletivos, na produção e reprodução por meio de formas culturais – aspectos intangíveis da cultura. Assim, representam as idéias abstratas, ingredientes da formação cultural. E essas se manifestam nas formas de relacionamento desta sociedade. Seu povo revelará valores como gênero, classe social, idade etc. Seus objetos do cotidiano refletem esses valores. Para Kaiser (1998), essa perspectiva trata do quanto é forte a capacidade de dar valor aos objetos e, consequentemente, às roupas que os membros de um grupo usam. Esse é extremamente mutante, diante das reconstruções sociais. Seu estudo não se baseia unicamente no fenômeno, mas como por meio do fenômeno devemos inserir nossa análise. Interacionismo Cognitiva Cultural Indivíduos Pessoas que Indivíduos interagindo. percebem. compartilhando uma Simbólico Significado Para quem? cultura comum. Como a Construída As pessoas que Representação cultural perspectiva é socialmente por percebem usam suas das relações sociais e produzida? meio de ações estruturas cognitivas da ideologia. conjuntas dos para interpretar. indivíduos. Como a Por meio dos Quando as estruturas A Cultura e a moda perspectiva processos de cognitivas das mudam, influenciadas muda? interpretação e pessoas que em parte por reinterpretação percebem não ambivalência não por diferentes explicam resolvida sobre a ordem indivíduos adequadamente as social (por exemplo: realidades sociais jovem/velho; masculino/feminino) Metodologias Qualitativa, Quantitativa; Etnográfica; crítica a foco na vida experimental formas culturais cotidiana Quadro 01 – Síntese de comparação de perspectivas Fonte: traduzido e adaptado de Kaiser (1998, p. 56) Tomando a linha da perspectiva cultural como a mais adequada ao nosso estudo, como já dito anteriormente, partimos do micro para o macro em nossa análise. Buscaremos em um 26 grupo alternativo específico – integrantes de escolas de percussão ou maracatu das cidades de Recife e Olinda, compreender como a dinâmica da construção da sua identidade estará associada ao seu consumo e em especial a consumo de moda. Se o consumo é intrínseco ao homem, como visto anteriormente, numa forma de integração social, veremos no tópico a seguir como a moda será a grande ferramenta para construir e distinguir o indivíduo nas suas relações de grupo e sociedade. 3.2 Consumo de Moda “ Essa moda é nova que vem de Sergipe, Sapato americano e cabelo à pirulito”. Dança da Moda – DJ Dolores e Comadre Fulôzinha Servindo em princípio para identificar castas e classes, a moda emprestará signos e símbolos para construir suas mensagens de status (SIMMEL, 1957). Cores, formas e texturas são a grafia dessa comunicação tão complexa e ao mesmo tempo de fácil decodificação para os que fazem parte do seu contexto de construção (DONDIS, 1997). Na análise de Fluguel (1966) a roupa nada mais é que um código de socialização, no qual suas funções básicas de enfeite - função de destacar partes do corpo ou sua silhueta; pudor - ocultando ou disfarçando partes ou o todo do corpo, tem a função inversa do enfeite; e proteção - numa linguagem mais imediata abrigar o corpo quanto ao frio e elementos da natureza em geral; farão do nosso corpo mera mídia das mensagens a serem transmitidas. Essa forma de ver a roupa faz com que ela seja parte do nosso gestual. Quando unirmos o pensamento de Fluguel (1966) - que descreve a roupa como uma linguagem social - ao de Tompakow e Weil (1986), com a moda percebida como construção da interação social; teremos diálogos completos sem a emissão de uma só palavra. O vestir, segundo Fluguel (1966), não se restringe unicamente ao uso das roupas, principalmente se nosso foco de análise é a interação de subgrupos e subculturas, como exemplo temos as tatuagens comuns no grupo dos motociclistas da Harley Davidson visto anteriormente. Neste universo, outros sinais do vestir, carregados pelo corpo, serão fortes elementos de integração e distinção. É importante compreender como a moda será responsável pela integração do indivíduo ou sua segregação social ou cultural. Como vimos na construção da sociedade de consumo, o 27 ato de consumir e da posse do objeto (MILLER, 2002) dará ao seu proprietário poderes de pertencimento. Estes, transformados em códigos sociais, lhe darão a possibilidade de integração e pertencimento. Já na moda, essa percepção sobre integração social tem a sua origem com os estudos de Simmel (1957). Fundamentando sua teoria na dualidade entre o individualismo e o social, o homem encontra na possibilidade de conviver com a receptividade ou reciprocidade, com repouso ou movimento, de ser masculino ou do feminino, etc. numa busca por equilíbrio que o levará a um incessante desejo de integração social. Diante desta busca, teremos, na moda, uma ferramenta fundamental para esse equilíbrio. Mesmo que venha a ser, paradoxalmente, mais uma das dualidades vividas por esse homem: inclusão ou segregação social. Para Simmel (1957), a individualidade, tratada em seu estudo como “alma”, vê na moda uma forma de segurança; pois quando compartilho de códigos reconhecidos pelo meu grupo tenho a certeza de pertencer. Mas, essa flexibilidade de pertencer ou não só será vivida na era moderna. A moda, no caso, o traje, terá um papel tão forte na indicação de classes antes desse período, que teremos nas leis suntuárias um exemplo extremo dessa segregação. os romanos criaram as leis suntuárias para regulação da posse e utilização de determinados objetos como roupas e jóias. Essas leis ditavam quem e que classe social podia fazer uso de elementos suntuosos, perdurando até mesmo após a queda do Império Romano (BORN, 2007, p 06). Pouco a pouco estes padrões rígidos do vestir foram alterados, onde antes para uma casta inferior não era permitido fazer uso de trajes de castas superiores. Para Fluguel (1966) e também para Blumer (1969), essa necessidade de ser diferente fará com que o novo venha a ser perseguido constantemente. O desejo de pertencimento gerará a imitação, que em princípio se movimentará dentro do seu grupo de origem e, com a era moderna, chegará às escalas mais baixas da sociedade da época. Esse copiar fará com que a alta casta se veja na constante vigília por novos códigos de diferenciação, pois não será interessante ter a falsa idéia de pertencimento vivida pelas classes baixas. Blumer (1969) descreve que este desejo de copiar a aristocracia vai se transformando pela busca do novo. Essa conclusão é identificada em sua análise dos ateliês parisienses, quando um pequeno grupo detém a capacidade de ditar a moda todo o resto do mundo os seguirá. Estes farão uso de referências à interpretação de trajes antigos, à construção de novos códigos ou à interpretação do que o mercado deseja. 28 A seleção social, que não mais se baseará na cor ou classe social, passa a ser trabalhada pela roupa e, consequentemente, pela forma de consumir esse produto. Para Solomon e Rabolt (2004), códigos serão construídos e disseminados pelo grupo de elite, que os transformará em peças do vestuário. Esses, assim que percebidos e copiados por grupos inferiores aos seus, serão descartados e a construção de novos símbolos se fará. Neste contexto, Simmel (1957) será o primeiro estudioso a tratar deste fenômeno na sua teoria Trickle-Down. Posteriormente, estudiosos como Garcia e Miranda (2007) fundamentaram seus pensamentos neste fenômeno e como este pode ter movimento inversos ou paralelos ao estudado por Simmel (1957). Apresentamos abaixo estes três fenômenos e sua forma de atuação. Trickle-Down – fenômeno da moda em que códigos construídos, disseminados e utilizados pelas classes dominantes (seja essa a nobreza, intelectuais, celebridades ou artistas), servem como modelo a ser seguido por classes inferiores; Trickle-Across – fenômeno da moda que se baseia em códigos construídos na mesma classe social, são copiados por membros desta classe num movimento horizontal de imitação; Trickle-up – fenômeno da moda no qual códigos construídos e utilizados pelas classes inferiores são apropriados pela classe dominante, validados em seu grupo e copiados pelas classes que os criaram. Decerto que esse código apreendido e trabalhado pela classe dominante ainda não tinha uma disseminação geral na classe inferior. O impacto dessa validação trará um número muito superior de consumidores do produto/conceito/serviço antes da sua movimentação. Assim, a adoção de moda será um movimento contínuo, onde desejos de pertencimento e da construção de uma identidade de grupo, serão a força motriz desse movimento constate. Uma moda massificada vista por Simmel (1957) chega ao ponto de sua saturação. Ai surgirá a constante necessidade de renovação, seja por seus ditadores - indivíduo, preferencialmente jovem com a capacidade de criação de novos códigos - seja por seus seguidores. Toda essa velocidade, já percebida e analisada por Simmel em não fará a moda perder valor. Muito pelo contrário, sua renovação constate será compreendida como referencial de status e de novos adotadores. 29 Por conta da sua complexidade, não podemos explicar a adoção de moda apenas com um modelo. Garcia e Miranda (2007), com base no trabalho de Sproles, trazem também nos seus estudos uma síntese de aproximações teóricas distintas, lembrando os vários modelos existentes. Estágios de adoção e do consumo de moda Invenção e introdução Modelos explicativos Business – infraestrutura de comunicação; Cultural – liderança sub-cultural; Estético – movimentos de artes, idéias de beleza; e Histórico – ressurreição histórica, continuidade histórica. Liderança de moda Psicológico – individualidade; Sociológico – difusão imperativa; Comunicação – comunicação simbólica, adoção e difusão; Estético – movimentos de arte, ideais de beleza, percepção estética; Econômico – escassez, consumo conspícuo; e Cultural – conflito social. Incremento da visibilidade social Comunicação – adoção e difusão; Psicologia – motivação única; Sociológico – comportamento coletivo; Econômico – demanda; e Geográfico – difusão espacial. Saturação social Sociológico – comportamento coletivo; Psicológico – individualidade; Business – marketing de massa, infraestrutura de marketing; e Econômico – demanda. Declínio e obsolescência Business – marketing de massa, infraestrutura de marketing; Psicológico – individualidade; Histórico – continuidade histórica; Econômico – demanda; e Comunicação – adoção e difusão, 30 comunicação simbólica. Quadro 02 - Estrutura geral das teorias da moda Fonte: Garcia e Miranda (2007, p. 111) Diante das estruturas apresentadas sobre adoção de moda, e focando no nosso objeto de estudo que é a construção da identidade de moda de subgrupos culturais – participantes de grupos de percussão ou maracatus na cidade de Recife e Olinda, percebemos no estágio de inversão e introdução de moda e no modelo explicativo cultural de liderança sub-cultural, uma diretriz a ser seguida. Neste estágio, o movimento de utilização de moda é uma conseqüência da construção da cultura em que está inserido; onde o novo e a individualidade humana serão percebidos nesta forma de consumo de moda. Por outro lado, a distinção social não será percebida como uma regra fundamental neste consumo. Já para o modelo explicativo de cultura e liderança cultural, modelos e códigos próprios serão utilizados na construção da identidade deste grupo. Estes terão seu fundamento em valores de suas lideranças, onde a mídia ou outros fatores externos não virá a alterar essa forma de adoção (GARCIA e MIRANDA, 2007). Na construção dessa identidade, compreendendo como traços que se repete sem nunca serem iguais (GARCIA e MIRANDA, 2007), vimos anteriormente como a moda é a mídia das mensagens construídas com o uso de roupas e acessórios. Mesmo quando estamos sem roupa, como visto em Davis (1992), o ato de estar nu já carrega em si um simbólico da ausência destas. Construir uma mensagem fazendo uso das roupas, mesmo que inconsciente, pode ser comparado a um ato político, visto que assumimos uma postura perante nosso grupo. Essa mensagem falará sobre nosso gênero, idade, preferências e outras questões que serão decodificadas graças à capacidade do nosso receptor (LURIE, 1997). Afinal, estamos falando de um ’idioma’ e ‘gramática’ de significados compartilhados. Fundamentado no pensamento de Lurie (1997), certas construções ou até mesmo certas roupas carregam consigo um significado tão forte para determinado grupo, que podem ser consideradas como um clichê, com o qual seu receptor fará uma relação imediata, seja esta positiva ou negativa. Outro autor que compartilha esse pensamento é Barnard (2003). Para ele, a roupa é fruto de uma “gramática” própria. A forma como construímos nossas mensagens e como somos interpretados estará sempre associada a uma regra e reconhecimento de uma determinada cultura, dentro da qual viveremos uma busca incessante entre integração e individualismo. O homem, por natureza, busca fazer parte; mas ao pertencer ao grupo de interesse, buscará, 31 dentro de sua construção de signos, elementos que o tornem distinto. Alguns pensadores, como Solomon e Rabolt (2004), percebem a moda como um reflexo da sua cultura e, consequentemente, do seu povo. Diante dessa afirmação, a moda servirá como termômetro de percepção de uma cultura de grupo; não de forma precisa, mas de forma interpretativa. Já para Barnard (2003), moda e indumentária são “(...) as formas mais significativas pelas quais são construídas, experimentadas e compreendidas as relações sociais entre as pessoas” (BARNARD, 2003, p. 24). Ele também afirma que as roupas e acessórios que usamos nos dão distinção por meio de cores, formas, texturas e volume nos nossos grupos sociais. Ainda no texto de Barnard vemos uma definição sobre moda, extraída do dicionário da Oxford, que a define como: “ação ou processo de fazer; uma forma de corte específico; maneira de conduta; ou até, uso convencional de vestimentas”. Se buscarmos em Freyre (2002) uma relação com as definições de moda do dicionário da Oxford, essa verdade será percebida ainda nos séculos XVI e XVII, na sociedade recifense, no estado de Pernambuco. Nesta sociedade, modos masculinos e femininos são ditados por padrões sociais, nesse caso, importados e aculturados da Europa, construindo assim regras de conduta à moda elegante daquela época. Temos na análise de Garcia e Miranda (2007) que “Como mídia secundária, a moda é um instrumento poderoso de inserção humana no contexto cultural. Tornando-se também ela um sujeito ativo, que detém o poder para agir de diferentes formas e processos comunicacionais” (Garcia e Miranda, 2007 p. 103). Assim, as autoras propõem um modelo de consumo que vem a justificar o pensamento acima. Vejamos a seguir. • Moda como instrumento de comunicação – ser percebido por um grupo, positiva ou negativamente, é o seu objetivo; • Moda como instrumento de integração – além de percebido, o indivíduo precisa ser aceito, vestindo-se para o outro, iniciando o processo de imitação; • Moda como instrumento de individualidade – o fazer parte por meio de símbolos comuns já não interessa, a aceitação existe, mas o indivíduo é visto como um inovador no seu grupo; • Moda como instrumento de autoestima – neste caso, o indivíduo verá na moda ferramentas para satisfação de sua autoestima; e 32 • Moda como instrumento de transformação – suprindo vazios pessoais ou de grupos, a moda passa a ter um caráter social, saciando desejos e transferindo para seus usuários valores ‘mágicos’ compartilhados. Como nos grupos amantes da Harley Davidson e Funkeiros cariocas, observaremos que o consumo de símbolos compartilhados constroem a identidade do seu grupo. Seja por meio da posse de objetos de valor e significado compartilhado, seja pelo uso de roupas que constroem mensagens decodificadas dentro e fora do seu grupo, a identidade será construída baseada na posse (BAUDRILLARD, 2000). No próximo tópico, teremos uma melhor compreensão de como essa construção se dá. 33 3.3 Consumo e Identidade de Grupo Se compararmos nossas preferências e gostos aos dos nossos avós, o que não nos dá uma distância de tempo histórico tão relevante, veremos que a profissão, parentesco, grau de instrução, já não são importantes na construção e percepção sobre outra pessoa. Essa relação fica extremamente clara quando nos deparamos com classificados pessoais em redes de relacionamento4. Em quase sua totalidade, não teremos mais informações sobre cor da pele, sexo, ou aparência física. O que veremos constantemente são gostos e elementos do seu consumo descrevendo seus participantes. Ou o que é ainda mais interessante: construindo uma imagem de interesse fazendo uso do que o outro consome para os seus futuros relacionamentos (BARBOSA e CAMPBELL, 2006). Na sociedade moderna, consumir faz parte da construção da nossa identidade, e o que possuímos nos identificará no nosso ambiente; o consumo terá a função de integração e/ou segregação social. Para melhor compreender esse fenômeno, apresentamos o quadro a seguir. Nele, fica claro como a relação sociedade x indivíduo é estruturante na formação da imagem e da identidade. Figura 02 - Modelo do efeito da comparação social e a construção e desenvolvimento da aparência Fonte: Solomon e Rabolt (2004, p.145) 4 Anúncios veiculados em classificados de relacionamento, seja através de meios impressos ou virtualmente em redes de relacionamento. 34 Hogg e Michell (1996) associam a identidade diretamente ao meio social e como o indivíduo se vê e é visto pelo meio social. Para Barbosa e Campbell (2006) a construção da identidade não está mais associada a clã ou paternidade, o indivíduo moderno vive a possibilidade de ser quem é a partir do consumo. Ou seja, minha identidade está contida no meu armário. Assim, a cultura do consumo é um meio privilegiado para negociar a identidade e o status numa sociedade pós-industrial. Visto que a identidade social não é mais dada ou atribuída, ela tem que ser construída pelos indivíduos (SLATER, 2002). Se pararmos para analisar as preferências de consumo que constroem essas identidades, certamente será intrigante perceber o porquê de suas razões. Como já visto por Maciel e Miranda (2008), em seus estudos sobre cultura de consumo, muito desses desejos tem sua construção na formação social dos grupos analisados. Aprofundando essa avaliação sobre o pensamento de Bourdieu (2008), veremos que outras questões estarão intrinsecamente associadas à construção e manutenção dos gostos e preferências. Principalmente, se essas preferências e gostos, estiverem associadas a papeis e posições que o individuo ocupa em sua sociedade e/ou grupo social. Segundo análise de Bourdieu (2008), a construção dos gostos individuais tem sua formação no que ele denomina de capital familiar e capital escolar. Essa junção de conhecimento e de formação será capaz de construir o capital cultural, e este, por sua vez, capacita o seu detentor com informações que o destacam, dentro de análises específicas e de reconhecimento de significado num determinado grupo. Quando falamos em tempo e espaço, nos detemos às questões de classes sociais; pois ainda sobre sua análise, a forma de consumir, suas preferências, e seus significados nada mais são que distintivos sociais reconhecidos e validados pelo grupo. Das diferentes condições de existência, os grupos sociais produziram o que o autor chamará de habitus; que nada mais são que transferências das práticas e propriedades definindo as diferenças dos estilos de vida. Ou seja, o dia-a-dia, será um eterno construtor dos modos e gostos, em sua grande parte diretamente associado ao capital cultural e econômico. É importante destacar que, ainda sobre a análise do autor, nem sempre o capital econômico será responsável por um gosto de qualidade. Essa afirmação se justifica, usando como exemplo a burguesia, na tentativa dos que detêm o poder financeiro em comprar o conhecimento, seja capital escolar ou cultural, sem a vivencia evolutiva necessária para esse domínio. Esse poder 35 econômico, diante do não reconhecimento do seu valor construirá uma estética paralela onde um novo gosto será divulgado e validado por esse grupo. Já os detentores do capital cultural, terão como valor a redescoberta históricas de bens e serviços. Esse reconhecimento do capital cultural estará presente na forma que esse individuo se relaciona com o meio, nos seus trejeitos, na sua forma de vestir, na sua forma de comer. Enfim, nas suas escolhas cotidianas. Assim, chegamos à conclusão, sob a ótica de Bourdieu (2008), que a distinção será uma equação de capitais – familiares, sociais, econômicos, escolares, etc. – em um determinado tempo e espaço. Este tempo e espaços, validaram seus significados e valores, construído assim uma hierarquia clara e construtora da identidade destes grupos. Várias são as possibilidades de existências de grupos, segundo Solomon e Rabolt (2004); mas todas terão ao menos duas possibilidades de serem formais ou informais. Nos formais, teremos os clubes, associações, partidos etc. Estes possuem regras claras, tais como horários e dias de encontro e são na maioria das vezes, físicos. Já os informais não possuem regras claras, mas isso não faz com que elas não existam e sejam reconhecidas quando acionadas. Podem ser informais como: amigos, grupo de pelada do final de semana, torcidas momentâneas, etc. Ao pertencermos a estes grupos, podemos estar em dois lados. O primeiro, como membro no qual nossa participação é passiva de adoração/imitação. No segundo, desejamos ser o alvo dessa admiração. Este desejo pode não ser materializada em uma pessoa, mas no reconhecimento de maior proximidade com o espírito do grupo. As influências do grupo tanto podem ser positivas quanto negativas para o consumo, influenciando tanto o seu excesso quanto a sua escassez. Quando estamos do lado ativo de participação de um grupo, Solomon e Rabolt (2004) descrevem uma escala de referência que pode ser construída neste espaço. Ela diz respeito à participação de membros e como esses ditam e são influenciados pelas respostas que este grupo lhe dá. Descrevemos abaixo, como os autores percebem estas referências e a sua escala (SOLOMON e RABOLT, 2004, p. 393). • Poder social – capacidade de influenciar ou alterar ações do grupo, capacidade também de conquistar novos componentes para estes; • Poder da referência – capacidade que determinadas pessoas têm em influenciar outras. Ou seja, capacidade de ser admirada e, consequentemente, copiada. Essa estratégia é uma forte ferramenta do marketing, pois a associação de determinada 36 pessoa a determinado produto transfere para o produto o mesmo sentimento de admiração e o desejo do seu consumo; • Poder da informação – capacidade de ser reconhecido como fonte de informação. É como se outras pessoas, saciando a necessidade de informação sobre determinado tema, visem a esse formador de opinião como uma fonte para sanar sua necessidade; • Poder da legitimação – capacidade, ou melhor, desejo de comunicar poder/autoridade/pertencimento de valor, por meio das suas posses; • Poder da expertise – esse se dá aos especialistas. Seja qual for sua profissão ou assunto de domínio; • Poder da recompensa – refere-se à necessidade de aceitação no grupo que, quando é reconhecido como, sente-se recompensado. Ou, deseja ser recompensado por esse reconhecimento; e • Poder da repressão – capacidade de interferir nas decisões do grupo pela força ou pressão psicológica. Diante destas classificações, chegamos à conclusão que comunicar pertencimento será um dos fatores mais importantes para os que fazem parte desses grupos. O valor de integração pode ser de formação social, cultural, político, religioso ou, simplesmente, o de fã em especial, no caso de cantores e atores famosos. No nosso subgrupo de estudo, fica claro como a forma de vestir será uma digital dos seus participantes. Compreendendo o homem como um ser social, este tanto produz a sociedade em que habita quanto é por ela produzido (EMBACHER, 1999); esta o fará sempre estar sujeito aos inúmeros papeis sociais exigidos por essa sociedade. Assim, concluímos nos textos de Embacher (1999) que a identidade de grupo será constituída dos valores e crenças construída por seus membros. Se, com a idade moderna, consumimos para construir o nosso ser social, a identidade de grupo será construída por objetos com significado de integração por esse grupo chancelado. Assim, os nossos bens são vistos como informadores de papeis e guias para uma identidade social (McCRACKEN, 2003). 37 No padrão convencional da sociedade contemporânea, cada família escolhe seus bens de consumo e isto é analisado como um ato de construção de identidade da família; os subgrupos assim também o farão. Como exemplo, temos os grupos radicais, que quando usam os bens para expressar sua insatisfação e sua identidade, convidando o código-objeto a criar uma versão expandida de si mesmo. Quando assim o faz, estes grupos radicais são assimilados no sistema. Ou seja, o valor simbólico dado por esse uso/consumo passa a ser compartilhado além do seu grupo (BARBOSA e CAMPBELL, 2006) seja de forma negativa ou positiva. No passado, punks e hippies possuíam distintivos marcadores sociais. No entanto, nas últimas décadas, estilos como estes foram popularizados pelo sistema da moda com sucesso e passaram a integrar outros grupos. Para que esse consumo possa vir a existir, faz-se necessário uma abertura e adaptabilidade dos novos consumidores propostos (KATES, 2002). Se nacionalizarmos esta transformação de subgrupos em bens de consumo, temos no funk carioca um claro exemplo, como mostra a lógica apresentada por Mirzarahi. Onde “o gosto funk é apreendido no trânsito entre as esferas da festa e cotidiana, que envolve o ir e vir entre a favela e outras áreas da cidade, como o próprio baile, a escola e o trabalho” (MIRZARAHI, 2007, p.01):“. Mello, Miranda e Pepece (2001) destacam que não existirá uma uniformidade de compreensão/interpretação única de um estímulo/código por todas as pessoas. Sempre teremos interpretações que irão buscar, na sua construção histórica, peculiaridades para sua decodificação. Quando os autores referem-se a grupos sociais, chegam à análise de que haverá uma maior compreensão de produtos/símbolos quando suas culturas são compartilhadas, seja na exportação de significados e valores para outras culturas ou por serem subculturas desta. Assim, para cada grupo, valores são atribuídos; mesmo que o objeto seja reconhecido, teremos sempre outros significados. Para compreensão de como se processa essa percepção/decodificação, apresentamos, na figura abaixo, um esquema dessa fusão de interpretações cultuais. 38 Figura 03 – Fusão dos horizontes Fonte: Thompson; Pollio; Locander (1994, p. 434) Os autores concluem (MELLO, MIRANDA e PEPECE, 2001) que o consumo simbólico tem a função maior de interagir com seu meio, fazendo com que seus usuários sintam-se integrados no grupo de desejo. Este sentimento será construído a partir da percepção da sua socialização junto ao seu grupo. Dentre esses grupos de influência, temos: família, organizações religiosas, locais de trabalho, grupos de convivência (clubes) e até mídia de massa. 3.4 Subgrupos de consumo “E dessa insustentável leveza de ser Eu gosto mesmo é de vida real” Bossa Nostra – Jorge Du Peixe Toda essa relação de consumo, seja coletivo, familiar ou hedônico, passará por uma questão que vale ser destacada. Trata-se da relação dos subgrupos de uma cultura e sua construção de significados e valores. Como concluímos que consumir é uma forma simbólica de mostrarmos quem somos por meio do que possuímos, e como o que possuímos é percebido por nosso grupo de convívio. Buscar a compreensão desses significados e valores em subculturas servirá para perceber o objetivo maior deste estudo. Vendo a cultura como a ambiente do conhecimento compartilhado e a reprodução de hábitos vividos nas sociedades divididas em classe (DEBORD, 1997), compreender grupos e suas formas de conviver/interagir na construção de subculturas perpassa por questões que vão da faixa etária a etnias. Para facilitar nossa compreensão, construímos, com base no texto de 39 vários autores, um quadro-resumo que nos permite identificar características entre alguns subgrupos. Decerto que alguns destes não fazem parte do contexto brasileiro, mas são importantes para termos uma ideia de como valores são trabalhados. Subgrupo Características Pensador Minha geração Grupo constituído por membros de uma mesma Solomon e Rabolt faixa etária. Seus gostos, valores e preferências são compartilhados no consumo de seus bens. Nostalgia e Diferente do subgrupo acima, esta mostra mercado preferências por significados que não estão necessariamente ligados à sua faixa etária. Buscam em elementos do passado, a construção de sua identidade. Adolescentes Para estes subgrupos, a decisão de consumo estará ligada às ditaduras do pertencimento na integração e aceitação. Como característica de formação de valores deste grupo, temos os seguintes pontos: Liberdade x pertencimento familiar Rebeldia x conformismo Idealismo x pragmatísmo Narcisismo x intimidade Mercado universitário Bem distante de uma realidade brasileira, mas 5 com grande força em culturas como a norteamericana; identificamos este grupo como um rito de passagem à entrada na universidade, associada a uma séria de valores e significados. Muito próximo dos adolescentes, este subgrupo buscará valores de integração e de distinção na escala mais elevada de significados. A força jovem Construído no período de grande impacto na mudança da cultura mundial, este grupo traz em sua forma de consumir, informações importantes no seu processo de decisão. Isso se dará por conta da sua construção cultural e uma 5 Este subgrupo possui uma identificação maior com a cultura norte americana, que, no caso, foi foco de trabalho do autor. Trazemos sua análise para este estudo, por julgar interessante uma relação com outros grupos similares existentes em outras culturas. 40 visão holística do seu subgrupo e de sua cultura. Boa idade A cada dia, este subgrupo se torna mais numeroso em todo o mundo. Isso se dá por conta da longa expectativa de vida. Com filhos criados e vida estabilizada, esse grupo costuma gastar em um ritmo maior que outros grupos etários. Seu interesse não se finda a integração, busca no consumo resgatar o tempo perdido e aproveitar o que ainda lhe resta. Raças e etnias Subgrupo formado por imigrantes ou pela aculturação em membros de outras origens, este apresenta-se de forma bastante peculiar principalmente nas grande metrópoles. Com características próprias, valores sua de carregará origem sempre diretamente representados na sua forma de consumir. Na análise dos autores, são destacados os subgrupos étnicos dos africanos, espanhóis e asiáticos. Os novos A denominação gênero, diretamente associada a gêneros masculino ou feminino, tem suas regras construídas em padrões sociais Kacen (2000) de comportamento e símbolos onde este indivíduo vive. Não devemos fazer uma associação ligada diretamente à genitália (menino ou menina), esta análise deve partir de onde este menino e menina está e não de onde nós estamos. Estes subgrupo, traz formas revolucionárias para padrões de consumo já existentes, para homens e mulheres, em seu grupo social/cultura. Consumo gay Fazendo uso de produtos e marcas na Ayrosa construção de sua identidade homossexual, esse (2005) grupo utiliza-se de estratégias de negação, camuflagem ou de reforço de sua identidade na hora de consumir. e Ojima 41 Cyber Grupos Sendo um dos mais novos subgrupos de Primo (1997) consumidores, os cyber grupos têm como elo os ambientes virtuais. Nestes espaços, da cyber comunidade, teremos a reunião virtual de pessoas numa conferência eletrônica onde experiências são compartilhadas criando valores de pertencimento. Assim, blogs, jogos virtuais e chats, serão responsáveis pela constituição deste e de novos subgrupos e dos bens por este grupo desejados. Quadro 03 – Resumo de características de subgrupos Fontes: Solomon e Rabolt (2004); Kacen (2000); Pereira; Nunes; Ayrosa; Ojima (2005); Primo (1997). Diante desse cenário, podemos observar o quanto o macro transformou as relações dos grupos e subgrupos sociais. A geografia já não delimita ou nos induz a uma ideia de preferências e valores, mas a compreensão de sua identidade será um norteador dos seus atuais e futuros hábitos de consumo. Dentre estes hábitos e necessidades, teremos como forte influência a mídia e as celebridades do universo pop. Seja pelo poder da mídia ou pela força que as artes, em especial a música, exercem nos indivíduos, é incontestável a capacidade de aglutinação de grupos que o poder do pop star possui. No nosso estudo, veremos que essa imitação se dará com elementos de destaque do próprio grupo, ressaltando o quanto essa dinâmica e particular. Diante dessa constatação, teremos a seguir como essa análise será importante para nosso estudo. 3.5 Consumo e mídia pop “A nave quando desceu, desceu no morro Ficou da meia-noite ao meio-dia Saiu, deixou uma gente Tão igual e diferente Falava e todo mundo entendia” O Dia Em Que Faremos Contato - Lenine / Bráulio Tavares Complexos sistemas de significados culturais serão utilizados e decodificados por consumidores e suas culturas, refletindo um legado histórico de valores compartilhados pelos 42 seus membros. Segundo Thompson e Haytko (1997), para a moda acontecer não basta apenas o desejo do mercado, mas um ciclo onde valores temporais são propostos, aprovados, validados, e consumidos; construindo espaços territoriais de sua expressão. Decerto que esses territórios, vividos na contemporaneidade, são muito mais abrangentes, mas seus limites serão sempre percebidos e reconhecidos, talvez de forma até inconsciente, como uma referência de tempo e espaço. Nesta construção teremos uma ferramenta de estratégias do marketing que influenciará, no mínimo, a forma como percebemos nossas referências de valor: a mídia. Seja para a materialização do funk carioca ou dos hippies norte-americanos, símbolos e significados serão compartilhados e consumidos por outros grupos. Certamente que não carregaram mais a mesma força revolucionária ou valores de rebeldia, mas, sim, lembranças comerciais das suas referências. Como pensa Baudrilard (2002), a comunicação de massa constroi mecanismos de negação e manipulação da informação; esta se dá para atender desejos constituídos pela sociedade de consumo. No trabalho de Banister e Hogg (2000), temos uma análise comparativa do movimento do significado construído por McCracken (2003), já visto anteriormente, e uma relação com o universo do show business. Lembrando, para McCracken (2003) o movimento do significado será percebido no mundo culturalmente construído. Por meio do sistema de moda e da publicidade, passará para os bens de consumo, nos quais rituais de posse, troca, arrumação e despojamento farão com que estes cheguem ao consumidor comum, saciando seus desejos. No proposto por Banister e Hogg K (2000), além dos instrumentos de transferência de significado apresentados por McCracken (2003), teremos catalisadores específicos para este produto. Mas, o mais importante destes motivadores de consumo serão os valores percebidos na construção da imagem do pop star que o representa. Em seu estudo, Banister e Hogg (2000), construído com foco em adolescentes de 11 a 15 anos, os autores apresentam na sua construção analítica uma metodologia que pode ser aplicada em outras faixas etárias; aplicável também a vários níveis de celebridades. Ou seja, em subgrupos culturais podemos fazer uso deste modelo, para compreender como suas celebridades influenciam gostos e o consumo dos seus integrantes. Em sua análise, Banister e Hogg (2000) percebem que a música pop, em especial para os adolescentes que estão em fase de construção de sua personalidade, será um referencial de valores reconhecidos e compartilhados por um grupo. É como se a música fosse um tradutor de desejos e ansiedades, ao mesmo tempo que um aglutinador de indivíduos com os mesmos objetivos. Neste 43 universo, o protagonista deste produto de consumo passa a ser uma referência de valor para seus seguidores. A indústria fonográfica não se resume a venda de discos, pois uma gama de outros produtos serão consumidos na intenção de pertencimento e posse do significado transferido para estes. Dentre eles, a forma de vestir, penteados e uso de acessórios serão os grandes referenciais de pertencimento. Na figura a seguir, apresentamos a adaptação dos autores ao quadro de McCracken sobre o movimento do significado. Figura 04 – Movimento do significado – Cultura Pop Fonte: BANISTER; HOGG (2000). Temos neste modelo um referencial a ser seguido, já que nosso lócus de análise são maracatus e escolas de percussão das cidades do Recife e Olinda, em Pernambuco, que também vem a sofre grande influência do Mangue Beat, movimento musical que fez despertar um novo olhar sobre a cultura deste Estado. Cabe aqui traçar um pouco da história desse movimento, e de como o estado de Pernambuco passou a fazer uso, em meados dos anos 80, de novos símbolos de integração social, seja em nível macro, ou em nível de subgrupos culturais, como é o nosso caso em análise. 44 3.6 Consumo e os movimentos culturais pernambucanos Em meados de 1986, surge na cidade de Olinda uma banda de maracatu chamada Nação Pernambuco6. Fundada por universitários de diversas áreas, profissionais liberais e produtores musicais, o Maracatu Nação Pernambuco rapidamente torna-se popular nas esferas dos ‘jovens intelectuais’. Vivendo o efeito trickle-up e trickle-down (GARCIA e MIRANDA, 2007) cultural, em pouco tempo outros grupos que tocam e cantam maracatu surgiram e, com eles, todo um modismo de virar batuqueiro nos jovens das cidades do Recife e Olinda. Coincidentemente, neste mesmo período, outro movimento cultural dá seus primeiros passos: o Manguebeat. Este, tendo como seu porta-voz Chico Science, tem, antagonicamente, suas inspirações musicais nos ritmos populares pernambucanos e no que há de mais contemporâneo na música internacional. Buscando nesta mistura, formas de utilizar a alfaia7 e outros instrumentos dos folguedos populares em sua banda chamada Nação Zumbi (TELES, 2000). Com um sucesso que se origina em primeiro lugar na periferia recifense, local de sua construção e inspiração; o movimento Mangue, assim por diante denominado, inicia um processo de identificação estética dos integrantes do seu grupo. Para termos uma ideia de como é forte a estética trabalhada pelo maracatu pernambucano, já que esse será o ponto primordial de partida para o movimento e da estética bumba aqui estudada, trazemos um depoimento de Suassuna (apud RIBERIO e MONTES, 1999) em uma de suas experiências com o esse folguedo. Apesar da pobreza em que há tanto tempo abate o Nordeste, do ponto de vista da Cultura o nosso Povo tem uma força que me comove e alenta. Uma vez, em Tracunhaém, um dos municípios mais pobres da Zona da Mata pernambucana, eu estava numa praça, quando de repente saiu de um beco um grupo de Maracatu-Rural, o Leão de Ouro, que, tanto como na música quanto como na dança, era um esplendor e um exemplo para todos nós. Integrado em sua maioria por cortadores-de-cana, e por suas mulheres e filhos, estavam todos os dançarinos cobertos de golas e mantos decorados com lantejoulas, espelhos e pedraria. E eu fiquei ali, deslumbrado diante do milagre, sem saber nem poder explicar como é que esse Povo brasileiro cria tanta beleza no meio de tantas dificuldades (SUASSUNA, apud, RIBEIRO e MONTES, 1999, p. 5). 6 O Nação Pernambuco não tem sua formação como Nação de Maracatu. Ou seja, não estará ligado diretamente às questões religiosas. Sua preocupação será manter vivo este ritmo. 7 Instrumento de percussão, base da batida do maracatu de baque solto ou virado. 45 Mesmo com toda essa riqueza, não podemos deixar de lembrar que este folguedo vem das classes mais populares e, com isso, toda uma marginalização estará associada. Além disso, por ter sua fundamentação no sincretismo das religiões africana e católica, o estigma negativo do candomblé também fará parte dessa marginalização. Assim, esse folguedo ficará guardado em seus nichos, sendo apreciado apenas nos festejos de Momo. Figura 05 – estilo estético mangueboy e manguegirl Logo um estilo de vestir nascido da batida do mangue será traduzido em uma produção de moda também nascida de estilistas, todos frutos do próprio movimento. Será o caso de Eduardo Ferreira, que, em 1992, faz seu primeiro desfile solo, para o Salão da Moda de Pernambuco, projetando seu nome e essa estética para todo o Brasil. Hoje, a estética mangue sofreu uma evolução e renovação, que a colocam como uma referência de comportamento e de valores na cidade de origem. Saindo das ruas, passa por lojas alternativas, chegando até passarelas de eventos nacionais e internacionais. A estética mangue instala-se no shopping Paço Alfândega (OVERMUNDO, 2010), local de referência de estilo e sofisticação, numa loja que trabalha com prioridade a venda e promoção de criadores locais. Essa evolução e integração, principalmente com o público jovem, criarão o termo ‘estética bumba’ para os usuários deste padrão de vestir e se comportar. A construção dessas novas estéticas propostas partirá do que os autores como Craig e Haytko (1997) chamam de consumidores interpretativos. Estes constroem discursos e significados que refletem seus diálogos recheados de personalidade, história de vida e interesses específicos para cada contexto. Estas novas propostas serão pouco a pouco reconhecidas, interpretadas, aprovadas e consumidas pelos grandes grupos. 46 É bem verdade que a moda estará mais associada ao universo feminino, que por questões históricas e sociais terá uma mobilidade e alteração superior aos trajes masculinos; mas não podemos negar o quanto os homens carregaram consigo uma série de significados tão fortes que irão além do gênero; o que será especialmente percebido no universo Mangue. A atmosfera da moda, construída pelas grifes, será responsável pela sua valorização e ‘glamourização’, que, em grande parte, não será percebida por classes mais baixas. Caberá ao sistema de moda a construção de uma leitura adequada e adaptada de produtos traduzidos e com o sotaque ideal para cada público-alvo. Roupas e aparência podem ser exploradas diariamente. Assim, papeis são construídos por padrões sociais da roupa. Em alguns casos, esses padrões são reconstruídos, criando novos estilos, como é o caso do estilo Mangue e da estética bumba aqui percebido. Quando construímos nossa forma de vestir do nosso dia-a-dia, estamos sempre sujeitos à análise do outro. Essa análise, para ser composta, fará uso de significados e valores sociais para julgar e decodificar o objeto analisado. Aparentemente simples essa análise tem variantes diversas que agrupadas de uma determinada forma, lhe dará leituras distintas. Mas, basta um breve reajuste nesta linha de composição, para termos outras mensagens construídas (KAISER, 1998). O nosso decodificador também merece toda a atenção, pois a sua percepção do seu objeto de análise pode, em avaliações leigas ou sem cunho acadêmico, criar falsas interpretações dos signos e valores apreciados. Segundo Kaiser (1998), é no nosso everyday life onde se constroi a relação roupa e grupo. Mergulhado neste universo mangue, que serve de esteio para nosso objeto de estudo, focamos na perspectiva de consumo trabalhada por Kaiser (1998), a linha do consumo simbólico e sua perspectiva cultural. Resgatando o que foi analisado anteriormente, seus pressupostos estão fundamentados em valores coletivos, na produção e reprodução por meio de formas culturais – aspectos intangíveis da cultura. Tratando do quanto é forte a capacidade de dar valor aos objetos e, consequentemente, às roupas que os membros de um grupo usam. Moda foi nosso objeto de estudo para entender a forma como este grupo constroi sua identidade. A partir dessa construção, buscamos identificar elementos contidos nesse consumo, que nos mostrem caminhos de reconstrução de produtos focados neste público-alvo. 47 4. Método de pesquisa “Antes dos mouros o som O som de tudo que passou por lá O som de tudo que passou aqui O som que vem quem viver verá” Antes Dos Mouros - Lirinha / Clayton Barros Neste capítulo trataremos dos procedimentos escolhidos e sua justificativa para o objeto de estudo deste trabalho. Nele, descrevemos a orientação paradigmática, tipo de pesquisa, método de coleta de dados e construção do corpus trabalhado. O objetivo desta pontuação de processos é deixar claro para o leitor que as escolhas aqui apresentadas buscou ao máximo trilhar caminhos que nos conduzam o mais próximo possível da nossa pergunta de pesquisa. 4.1 Orientação paradigmática Com a definição de Grof (apud GODOI, 1978) de que paradigma é uma constelação de crenças, valores e técnicas compartilhadas pelos membros de uma determinada comunidade científica, e lembrando do nosso problema de pesquisa - em que temos como análise o fenômeno ‘Como se constroi a identidade de moda em grupo alternativo?’ –, buscamos nos texto de Richardson (1999) uma justificativa clara para a escolha do paradigma interpretativista. Para o autor, a abordagem qualitativa de um problema é a mais indicada para o estudo de um fenômeno social. Esta linha de paradigma possibilita a compreensão e investigação que se volte para uma análise de objetos complexos ou estritamente particulares. “Estudos que empregam uma metodologia qualitativa podem descrever a complexidade de determinado problema, analisar a interação de certas variáveis, compreender e classificar processos dinâmicos vividos por um grupo social” (RICHARDSON, 1999, p. 80). Fundamentado nestes pensadores, acreditamos que o paradigma não-positivista ou interpretativista foi o mais adequado para alcançar o resultado propostos pelo problema de pesquisa. 4.2 Método de análise Entendendo a sociedade do ponto de vista do participante em ação, em vez de observador, para Silva e Neto (apud GODOY; BANDEIRA DE MELO; SILVA, 2007), o interpretativismo tem como unidade básica de análise, neste campo de estudo, o encontro entre os sujeitos, não percebendo as organizações como uma unidade concreta. Ou seja, o meio será fruto das ações e interações dos indivíduos que o constrem. Diante desta máxima e sob o paradigma trabalhado, escolhemos o estudo de caso como o mais adequado para analisarmos o corpus e consequentemente o nosso problema de pesquisa. Stake (1995) defende que o estudo de caso, tendo em sua natureza de envolvimento e dos resultados encontrados a partir de uma análise do todo - indivíduo, ambiente e sociedade; é a melhor forma de compreender um fenômeno culturalmente construído. Fenômeno no qual disciplina, organização conceitual e uma estrutura cognitiva devem ser a base da análise dos dados colhidos. O campo será um norteador dos caminhos e oportunidades do estudo, fazendo com que seu pesquisador aprofunde-se; mas sempre atendo aos limites do bom-senso. Seguindo a regra proposta por Stake (1995) sobre disciplina necessária neste método, sentimos a necessidade do uso de um protocolo de análise. O autor afirma que o campo apresentará categorias de baixa, média ou alta relevância no estudo, e o uso de um protocolo agrupara e seleciona estas, de forma a facilitar o trabalho do pesquisador. Assim, buscamos no protocolo trabalhado por Leão (2007) nortear nossos dados, principalmente pela ampla e complexa possibilidade de análise destes. Encontramos aqui a segurança proposta por Stake (1995), cuja classificação de aspectos não verbais e interacionais contribuíram para a construção de uma complexa rede que nos levou às análises aqui apresentadas. Sua lógica de construção consiste na possibilidade de ter uma variedade de perspectivas sobre a variação do corpus (LEÃO, 2007); o que possibilita uma visão holística de significação, mediante os diferentes níveis de análise apresentados. Estes níveis têm elementos como o tom de voz, gestos ou expressões faciais; a possibilidade de o autor se debruçar sobre aspectos paralinguísticos, julgados fundamentais para compreensão do objetivo final. Apresento, abaixo, uma tabela resumo do protocolo de análise e o descritivo das suas p a r a l i n g ü í s t i c o s A v se pr eb ca ti os s” funções associado e os níveis trabalhados por Leão (2007). “ n ã o s p e c t o s 48 Aspectos Extralingüísticos 49 Acentuação Trata-se da intensidade dada a certos trechos silábicos e não necessariamente às sílabas tônicas próprias de cada palavra. Isto quer dizer que não nos atemos se a acentuação está correta ou não, do ponto de vista da norma culta. Tom Tom é uma inflexão da voz que se refere à maneira de se expressar. Toda elocução é acompanha de tons de voz, evidentemente. Mais uma vez em nossas investigações consideramos apenas os que contribuem na significação. Variações ortoépicas As variações ortoépicas se referem àquelas dialetais e fonéticas. O primeiro tipo refere-se ao impacto que diferentes sotaques têm sobre a pronúncia. A variação fonética, por sua vez, trata-se dos chamados “barbarismos fonéticos”, ou seja, palavras soletradas erradamente. Em ambos os casos, não nos atemos a um sotaque padrão nem à forma correta, do ponto de vista da norma culta, de se soletrar as palavras. Contato visual O contato visual a que nos referimos se trata da comunicação que as pessoas estabelecem entre si por meio do olhar, com o intuito de expressar alguma coisa ao outro. Expressão facial A noção de expressões faciais que assumimos se refere a variações no movimento muscular da face que, voluntariamente ou não, expressem um sentimento, comumente emotivo. Podem ser sorrisos – em suas diversas variedades (desde um “ar de riso” até uma “gargalhada”) – ou expressões com o rosto (tais como caretas, rubor da face etc.). Gestos O que chamamos de gestos aqui se refere àqueles cujo uso já é consagrado numa dada cultura, como, por exemplo, o polegar erguido com os demais dedos fechados para indicar um sinal positivo. Movimento da cabeça Os movimentos da cabeça a que nos referimos aqui são posições ou movimentos horizontais ou verticais que as pessoas fazem com a cabeça e que assuma um significado para seu interagente. Movimento dêitico Os movimentos dêiticos são tipos de gestos específicos. Diferentemente do que chamamos de gestos, estes são demonstrativos de algo, como, por exemplo, apontar para algo com o dedo ou inclinar a cabeça em direção de alguma coisa para evidenciá-la. Postura A postura corporal se refere à forma de se movimentar ou manter o corpo numa dada posição, como forma de criar mais ou menos interesse ou intimidade, dentre outros, em relação ao interagente. Movimentos corporais Movimentos corporais são contatos físicos intrusivos – como empurrar, agarrar, segurar etc. – como forma de impedir ou incentivar uma ação do interagente. Interações As interações corporais se referem ao contato pessoal Aspectos de visão êmica Aspectos de definição do “eu” Aspectos Interacionais 50 corporais afetuoso – por exemplo, um aperto de mão, um toque, um abraço, dentre outros – que indica a proximidade afetiva entre os interagentes. Distância corporal A distância corporal se refere ao espaço em que duas ou mais pessoas estabelecem entre si, indicando o grau de intimidade/formalidade entre os interagentes. Alternância de Código São passagens do uso de uma variedade lingüística para outra, em que os participantes de uma interação, de alguma forma, percebam como distintas. Nisto podemos incluir mudanças de sotaque, de escolhas lexicais, de postura etc. Apesar de tais aspectos já terem sido considerados em outras oportunidades, aqui aparecem como pontos de articulação êmica, em que a alternância de um código para outro deve ser entendido como uma demarcação de grupo cultural. Cenário Por cenário temos o espaço delimitado do ambiente físico definido pelos participantes como socialmente distintos de outros aspectos, no qual se desenrolam os eventos e as atividades de fala, bem como o equipamento fixo de sinais ali presentes. Conhecimento de mundo Conhecimento de mundo se refere a um conhecimento tácito, baseado em crenças, hábitos e costumes compartilhados, teorias do senso comum, experiências vividas, fatos e dados sociais, econômicos, políticos e de outras naturezas, que os interagentes têm acerca dos mais variados aspectos e, por esperarem, conscientemente ou não, que os seus interlocutores também tenham, o dão por certo. Contexto Por contexto aqui assumimos qualquer conhecimento – de um fato ou situação, uma informação, experiência etc. – alçado, direta ou indiretamente, voluntariamente ou não, ao ambiente interacional. Face Por face devemos entender o valor social positivo que um interagente almeja ter reconhecido pelo outro por meio do que este presuma ser sua linha (conduta) durante uma interação. Pode se mostrar como ameaça ou, por outro lado, salvação da face do interagente ou de si próprio numa interação. Footing Se refere a uma mudança no alinhamento que alguém assume para si e para os outros. Em outras palavras, como, durante uma interação, as pessoas mudam sua conduta de acordo com o desenrolar da mesma. Quadro 04 – Protocolo de análise Fonte: Leão, 2007. Com a constante preocupação com a disciplina durante a toda a execução deste trabalho, buscamos em Stake (1995) uma classificação do pesquisador quanto aos papéis adotados no campus de pesquisa, relacionada ao objeto do nosso estudo. Sua classificação 51 está dividida em pesquisador como professor, pesquisador como advogado, pesquisador como avaliador, pesquisador como biógrafo, e pesquisador como intérprete. Nesta classificação, que vai da função de levantar dados ao trabalho entre as relações históricas, percebemos que o que buscamos está diretamente classificado em nível do pesquisador interprete. Esta classificação entende que o pesquisador tendo o domínio vai além do científico e apresenta uma interpretação associada a resultados e relações dos dados analisados. Sua função é literalmente de intérprete, de forma a facilitar a compreensão holística do caso (tempo, espaço e inter-relações), apresentado a complexidade do estudo e o cenário rico de detalhes antes não percebido pelo leitor. Ainda sob a teoria de Stake (1995), buscamos a triangulação - verbal, não verbal e interacional, dos dados trabalhada no protocolo de Leão (2007), num esforço para checar se o que foi observado e relatado como um intérprete desse nosso corpus carrega o mesmo significado quando encontrados em circunstâncias de análise diferentes. Descrevemos, a seguir, a forma como trabalhamos a busca dos dados e a construção do corpus 4.3 Coleta de dados Seguindo o pensamento de Godoy (in GODOY; BANDEIRA-DE-MELO; SILVA, 2007), a pesquisa qualitativa possibilita a escolha variada de fontes de informação. Focando no nosso método que é o estudo de caso, esta pode ser feita principalmente por fontes de evidências, tais como: documentos, registros em arquivos, entrevistas, observação direta, observação participantes e artefatos físicos. No nosso estudo, diante do problema de pesquisa e do corpus que descrevemos a seguir, optamos pela entrevista semi-estruturada, por compreendê-la como a mais completa para alcance dos nossos resultados. Neste tipo de coleta, “(...) a entrevista é utilizada para recolher dados descritivos na linguagem do próprio sujeito, possibilitando ao investigador desenvolver uma ideia sobre a maneira como os sujeitos interpretam aspectos do mundo” (GODOY; BANDEIRA-DEMELO; SILVA, 2007, p. 134). Acreditando, como já dito, que o meio será sempre um condutor de caminhos a pesquisar, não utilizemos um roteiro fechado de entrevista como propõem Godoy (GODOY; BANDEIRA-DE-MELO; SILVA, 2007), e sim tópicos que serviam de base das informações necessárias. Em alguns casos, o discurso dos nossos entrevistados reconstruiu estes tópicos, de forma a nos revelar novas informações que vieram 52 a ser de grande valia neste estudo. Como guia , fizemos uso de tópicos seguidos nos encontros que apresentamos abaixo. • Identificação – nome, idade, profissão, constituição familiar e contato (e-mail e telefone); • Motivação para fazer parte das escolas de percussão/maracatus; • Grau de envolvimento neste universo; • Relação com o grupo; • Importância de fazer parte desta escola/maracatu; e • Qual a grande diferença entre o universo da escola de percussão/maracatu e seu ambiente social (trabalho, escolha e família). É importante informar que nessa relação entrevistador e entrevistados, fatores levantados por Sierra e Valles (in GODOY, BANDEIRA-DE-MELHO e SILVA, 2007) tais como: falta de interesse em participar voluntariamente da entrevistas ou questões comportamentais e emocionais de narrar tais fatos, foram uma preocupação constante de nossa parte. Buscamos nestes encontros sempre a melhor opção para o entrevistado, seja quanto ao local ou horário; ou até na nossa postura amigável em permitir que a informação fluísse de forma agradável. Por se tratar de um tema próximo a todos que entrevistamos, notamos que os discursos transcorreram de forma prazerosa, sem causar incômodo. Muito pelo contrário, ao final das conversas foi sempre relatada pelos entrevistados a satisfação em colaborar com o trabalho. Para nossa surpresa e confirmação do que foi descrito por Godoy (in GODOY; BANDEIRA-DE-MELO; SILVA, 2007), houve um desdobramento e aprofundamento a partir dos tópicos descritos, nos levando a buscar dados além dos pensados. 53 5. Construção do corpus de pesquisa Somos todos juntos uma miscigenação E não podemos fugir da nossa etnia Índios, brancos, negros e mestiços Nada de errado em seus princípios O seu e o meu são iguais Corre nas veias sem parar Costumes, é folclore é tradição Etnia – Nação Zumbi Do latim, como descrevem Bauer e Gaskell (2007), corpus significa a escolha sistemática de algum racional alternativo que será explicado. Pensando assim na construção do nosso corpus, delineamos nossos entrevistados dentro do universo das escolas de percussão e maracatus nas cidades do Recife e Olinda. Com a grande questão - Como se constrói a identidade de moda em membros de um movimento cultural? - encontramos neste grupo uma representação do que podemos chamar de integrantes ativos de um movimento cultural. Esta delimitação atende ao conceito dos pensadores acima, segundo o qual a relevância, homogeneidade e sincronicidade são fundamentais para a construção deste corpus. Traçando um paralelo, já que os autores se referem em seu texto a dados documentais, buscamos nestes três aspectos focar no objeto do nosso estudo, cuja relevância deste grupo delineado fosse justificada por serem elementos atuantes no universo a ser estudado. Da mesma forma a homogeneidade, apesar de trabalharmos escolas e maracatus distintos e em distintas cidades, se manteve visto os objetivos comuns destes grupos. Quanto à sincronicidade, realizamos nossas entrevistas em um período muito próximo, e estivemos atentos a questões externas, tais como movimentos sociais ou datas comemorativas, para que estas não viessem a influir nos dados. Assim, nosso corpus de pesquisa foi composto por: • Homens e mulheres; • Residentes nas cidades do Recife e Olinda; • Praticantes de escolas de percussão e/ou maracatus de baque solto; • Com entrevistas realizadas no período de março a abril de 2010; Sendo Pernambuco um estado onde a musicalidade é um dos elementos mais fortes da cultura, encontramos nas cidades de Olinda e Recife espaços que aglutinavam elementos que vieram a compor o corpus de nossa pesquisa com certa facilidade. Decerto que este público 54 também pode ser encontrado em ambientes sociais destas duas cidades, mas o espaço de vivência destes, no caso as escolas de percussão e/ou sedes de maracatus, nos deram a segurança de uma escolha mais verdadeira, visto a vivência e histórico destes narrada por seus pares. Para garantir uma maior verdade dessa participação ativa, realizamos um corte mínimo de três anos de permanência dos entrevistados; evitando assim entrevistados movidos pela curiosidade ou modismos. Buscamos também, a partir de relato de professores de percussão, mestres dos maracatus e alunos, identificar futuros entrevistados que demonstravam uma maior vivência no ambiente. Destes, outros nomes foram indicados, construindo assim uma rede de relevância para o nosso corpus. Com a preocupação de não enveredarmos no ambiente do modismo, buscamos nas diversas escolhas existentes na cidade8 trabalhar com as mais antigas e conceituadas, de certa forma até referências neste universo. Da mesma forma que escolas de percussão e sedes de maracatu são, em sua maioria, ambientes de muito fluxo e de barulho intenso. Temendo interferências do meio, usamos estes espaços apenas para identificar nossos entrevistados, realizando nossas entrevistas em locais mais tranqüilos, como restaurantes e cafés das mesmas cidades. Diante do exposto, deste corpus extraímos 16 entrevistas, com um ponto de saturação apresentado a partir de 10. É curioso destacar que o ponto de saturação se deu quando durante a narrativa percebemos uma repetição de informação; tais como: o que os motivou a fazer parte deste grupo ou o quê mais lhes encantava em fazer parte deste universo. Vejamos a seguir, como estes dados nos revelaram as conclusões que chegamos ao final deste estudo. 8 Por se tratar de um seguimento extremamente informal, estimamos com base nos dados fornecidos por nossos entrevistados, cerca de 30 a 40 escolas de percussão espalhadas nos mais diversos bairros destas cidades. Por sua caracteriza informal, o número de participantes flutua entre 30 a 60 alunos por turma, com uma média de 02 turmas por escolha (iniciantes e avançados). 55 6. Análise e conclusões dos dados Daruê Malungo, Nação Zumbi É o zum, zum, zum da capital Só tem carangueijo esperto Saindo deste manguezal O cidadão do Mundo – Nação Zumbi Fazendo uso dos conceitos, observações e precauções citadas pelos pensadores até aqui trabalhados, a análise dos resultados propostas seguiu uma lógica fundamentada, como já dito anteriormente, no protocolo de Leão (2007) como um meio para chegar ao nosso objetivo. Assim, compartilhando a crença de que o significado do que é dito não está apenas na decodificação gramatical do que foi narrado, mas sim no que foi expresso em gestos, movimento e tom; propomos a construção de categorias analíticas criadas a partir da importância percebida pela inferência durante nossa análise, e que passou a classificar e fundamentar os resultados apresentados a seguir. Tendo assumido o papel do pesquisador intérprete proposto por Stake (1995), fundamentamos nossas escolhas de significado da categoria aqui proposta no sentimento e análise do que nos foi dito e percebido, chegando a critérios de escolha fundamentados em evidências da narrativa. Da mesma forma que, como prevê o paradigma escolhido, tivemos a inclusão de uma nova bibliografia. Esta veio a dar suporte e fundamentar descobertas que o campo nos apresentou. Veremos logo a seguir, um resumo dos aspectos trabalhados nesta análise e a inserção da categoria analítica justificando sua função. Aspectos verbais Transcrição das entrevistas em texto corrido com perguntas e respostas. Aspectos não verbais Identificação de nuances que viessem a identificar significados no discurso. Aspectos interacionais Identificação de referências vividas pelo entrevistado, não narradas nos aspectos verbais mais de relevância para a identificação de significados do discurso Categorias analíticas Tradução das informações apresentadas no discurso, seja no aspecto verbal, não verbal, e interacionais; tratadas da em adjetivos classificatórios. Quadro 05: Decupagem e identificação de categorias conceituais. Construído com base no protocolo de Leão (2007). De posse deste cenário rico de informações e traduções que aqui apresentamos, a construção de uma triangulação foi o caminho por nós trilhado na garantia, como já dito 56 acima, de uma maior veracidade dos resultados. O resultado desta triangulação, associado às categorias analíticas apresentadas, serão detalhados a seguir em cada um dos seus níveis. A intenção deste detalhamento é apresentar a integração entre os níveis verbal, não verbal, interacional e os níveis da categoria propostas. Para que essa interação ficasse ainda mais clara para nossos leitores, buscamos adjetivos que associado ao descritivo da análise, pudessem sintetizar todo o seu conceito. É importante ressaltar que as conclusões e classificações aqui propostas, não se findam nos trechos abaixo trabalhados. Estes são unicamente exemplos do que foi visto e vivido durante o campo. 6.1 Categoria Analítica – 01 Em momentos específicos desta análise, ficou claro para nós o quanto ser reconhecido, não só como membro, mas como um personagem de destaque neste universo esteve presente. Em alguns casos, as várias formas de discursos aqui analisados explicitaram que esta verdade não se limitava ao universo das escolas de percussão ou grupos de maracatu. Ela transbordava para meios como o ambiente de trabalho, escolas e/ou universidades, e até junto à família. Como exemplos desta afirmação, destaco: Entrevista 06 – linhas 26 a 27 Não Verbal – tom explicativo na “Já gostava de música popular tentativa de convencer o brasileira e tudo mais, então, foi entrevistador sobre o domínio do unir o útil ao agradável. Coisa de tema, além da postura do corpo família, né?!” relaxada sobre a cadeira e mesa. Neste exemplo, ao explicar seu conhecimento o entrevistado apresenta no seu tom de voz a intenção de passar domínio sobre o assunto, mostrando que sua integração com a música é anterior a sua atuação nas escolas de percussão ou maracatu, o que lhe coloca num nível, segundo sua percepção, superior aos demais. É como se este, por ter uma formação e conhecimento musical requintado, descrita ao afirmar em seu discurso como um estudioso amador da música popular brasileira, onde o jargão ‘música popular brasileira’ está associado à qualidade desta produção e seu consumo por uma elite intelectual onde ele teve sua origem. Temos aqui, uma visão clara o pensamento de Bourdieu (2008) e sua teoria de distinção 57 fundamentada no capital familiar e escolar. Para o autor, os gostos e preferências do indivíduo estão fundamentados na sua formação familiar ou no que este venha a apreender no ambiente acadêmico. Neste exemplo, a formação do entrevistado e a vivência que o ambiente familiar lhe proporcionou junto a MPB, lhe conferem o sentimento de distinção perante o grupo. Essa mensagem fica ainda mais clara quando sua postura apresenta um relaxamento sobre o corpo com um ar de descaso e superioridade sobre o assunto discutido, o que vem a significar, segundo Tompakow e Weil, (1986), uma postura de intimidade com um tema que lhe leva a descontrair o corpo seguro do que está falando. Já na entrevista 04 temos o verbal e o não verbal, unidos para enfatizar o quanto o entrevistado é especial na sua avaliação, junto aos demais membros do grupo. No contexto, o entrevistado descreve o desejo de que seu marido tem em sempre trabalhar para o crescimento no que faz. Destaco a seguinte passagem: Entrevista 04 – linhas 50 a 25 Verbal – a narrativa afirma uma Chico, assim, a necessidade de, de qualidade positiva do seu marido. ser bom, de, de levar aquilo ali O empenho e a preocupação em não só como uma coisa pra levar a sua participação no grupo desopilar, mas de levar uma coisa como algo sério e que venha a lhe a sério mesmo. dar qualidade perante os outros integrantes. Não Verbal – ênfase em falar o texto tem uma conotação de positivo. Para o entrevistado 04 o “ser bom” dito para o seu marido mostra claramente seu desejo de distinção. Esta distinção, como classifica Bourdieu (2008), tem aqui uma construção do conhecimento a partir da formação escolar, neste caso não teremos uma formação acadêmica tradicional, mas sim uma construção musical das escolas de percussão e maracatus de onde já fez parte e construiu sua habilidade como músico. É interessante perceber neste exemplo o que o difere do entrevistado anterior. O capital escolar, mesmo não convencional, lhe dá uma distinção no grupo. Torna-lhe nobre perante os seus. 58 Assim como o entrevistado 04, entrevistado de número 08 que veremos a seguir, a característica aqui analisada é percebida diante da sua atuação no seu trabalho que é levada para o ambiente. Ele narra que trabalhar com produção cultural e educação, é o que o difere dos demais. Entrevista 08 – linhas 24 a 28 Verbal – a narrativa leva a crer Hoje eu trabalho com educação. que sua atuação levada ao Trabalho na Fundação Roberto ambiente do maracatu, é uma Marinho. Fundação Roberto forma de reconhecimento. Sua Marinho, trabalho com com formação e área de atuação, lhe (corrige-se) é, educação e cultura. colocam numa função de É, eu sou jornalista de formação, colaborador. mas aí ..., é... Trabalho numa, Não Verbal –tom de superioridade num, num, num, num, numa área ao relatar local de trabalho, dando da Fundação Roberto Marinho ênfase na sua formação acadêmica. No trecho da entrevista 07, o reconhecimento narrado e ressaltado num aspecto não verbal. A fala do entrevistado descreve sua distinção no grupo, reconhecido em especial pelo mestre do maracatu9. Contextualizando a passagem, o entrevistado narra o depoimento do mestre sobre seu desempenho e o apresenta como um exemplo a ser seguindo. 9 Entrevista 07 – linhas54 a 55 Verbal – a narrativa ressalta E a minha relação com ele sempre qualidades e reconhecimento pelo é muito boa. E ele sempre, ele já membro superior do grupo, lhe comentou, me disseram uma vez transformando em uma referência que eu não fui no ensaio, eu não de qualidade. fui, eu não tava, e alguém... tava Não Verbal – sorriso nos lábios de lá fazendo alguma coisa muito reconhecimento do que foi dito, errada assim, ele fez assim “Pô, transmite a alegria pelo porque não faz feito Pablo?” reconhecimento. Personagem de maior valor junto a batucada do maracatu ou escola de percussão. Este funciona como um maestro deste grupo, repassando ensinamentos e mantém a identidade do grupo a que pertence. 59 Papéis sociais serão um forte indicador de distinção e diferenciação (BOURDIEU, 2008) e neste exemplo temos mais que um papel ou função no grupo, mas sim uma validação hierárquica sobre sua qualidade. É importante ressaltar o quanto o Mestre do maracatu é respeitado e o que ele fala é reconhecido pelos membros do seu grupo como lei. Diante disso, ser lembrado e destacado como exemplo a ser seguido é uma forma de destinação no grupo. Concluímos com a análise do material desta categoria que o adjetivo que a sintetizaria seria NOBREZA. Esta não traz na sua tradução uma um sentido de distinção ou diferenciação econômica ou social, justificamos esta nomenclatura na percepção que tivemos nos depoimentos dos entrevistados em ser e pertencer a uma elite cultural que não lhe dá esta distinção a partir da educação literária, mas sim, e também, do seu engajamento e participação num movimento cultural e folclórico do seu Estado. É como se para fazer parte desta elite cultural não bastasse apenas ter o conhecimento teórico sobre o assunto, mas sim uma atuação perene que lhe faz um guardião e um elemento a ser preservado da sua cultura. Possivelmente, este sentimento expressado e percebido durante o campus tenha seu fundamento também no que descreve Maciel e Miranda (2008) em sua análise sobre a formação da cultura pernambucana, na qual um histórico de riqueza e uma nobreza que faz parte do alicerce desta cultura é introjetado num comportamento de consumo característico dos seus nativos. O mais interessante de ser percebido é que essa preservação e nobreza aparecem também no nível da cultura popular, e transforma o que em outros tempos era marginal em algo raro e de valor. Esse valor percebido passa a ser copiado e adotado por seus pares, não só nesta categoria mas e todas que veremos a seguir. Isso reconstrói um padrão a ser seguido, seja na forma de se comportar e consumir. Quanto nosso foco é a moda, veremos claramente elementos dos seus espelhos10 replicados de forma sutil em peças ou formas do vestir. 6.2 Categoria Analítica – 02 Sendo um homem um ser social por excelência, como podemos concluir no pensamento de Baudrillard (1973), sua integração está associada ao consumo, e este consumo por sua vez será mídia da felicidade e da certeza de pertencer ao grupo de desejo. Crendo assim, ficou fácil perceber por que este desejo esteve presente em todas as entrevistas 10 Entendemos espelho aqui tratado como um exemplo a ser seguindo. Elemento do grupo que é percebido como uma referência. 60 trabalhadas. O desejo de fazer parte, de estar integrado, e de ser percebido como membros das escolas de percussão, reforça o pensamento acima. No depoimento do entrevistado número 06, apesar de se tratar de ser natural da cidade de São Paulo, fica claro a sua escolha por Recife como sua nova cidade natal. Veremos nos níveis verbal e não verbal o quanto esse desejo de integração com este novo ambiente será fundamental para ele. Entrevista 06 – linhas 17 a 18 Verbal – a narrativa afirma que o Conhecia menos ainda a cultura entrevistado tinha o interesse pernambucana e fui morar em explícito de fazer parte, de se sentir Boa Viagem. Não conhecia a integrado socialmente. cidade, mas queria me inteirar...” Não Verbal – ênfase na citação valoriza o desejo percebido. Sua entonação é positiva e funciona como uma resposta afirmativa ao seu esforço. Seguindo o pensamento de Baudrillard (1973), hoje, consumir é um desejo social. A oferta não está mais só no valor e sim na experiência e no prazer de consumir, na forma como o meio e os objetos se comunicam e como nos relacionamos com eles. Conhecer a cultura pernambucana é a forma que o nosso entrevistado propõe para pertencer a este novo universo. Na narrativa da entrevista número 01, vemos o quanto o a vivência em um novo grupo veio a alterar gostos de consumo deste entrevistado. A partir de sua entrada na Universidade o acesso a uma nova forma de consumir passa a fazer parte do seu dia-a-dia. Neste acesso e consumo, o maracatu aparecerá como uma chancela de pertencimento. Entrevista 01 – linhas 16 a 19 Verbal – a narrativa já traz uma Sério agora. Acho que meu afirmação da sua descoberta em universo era outro. Eu não tinha fazer parte destes novos grupos acesso a uma vida, vivência, mais como algo positivo. apurada. Eu era apenas um espectador, que tava lá vendo. 61 Com os novos amigos, possibilidade de chegar perto. Um conhece o outro, que é amigo do outro, e por aí se vai. Nestes dois exemplos, o “fazer parte de algo”, mesmo que ainda não seja reconhecido pelos entrevistados de forma explícita, demonstra o quanto essa integração é importante. A chegada a uma nova cidade, ou a chegada a um novo grupo de amigos que lhes abre a possibilidade de integração em novos grupos ou subgrupos sociais a partir do consumo de produtos reconhecidos e validados por este grupo (BAUDRILLARD, 1973). Estas possibilidades também não têm uma postura passiva, pois ambos irão à procura de caminhos e contatos que trabalhem essa integração no decorrer das entrevistas. Ao perceber nesta análise a narrativa “já faço parte” e “reforço minha identidade pertencendo”, relembramos o pensamento de Mizrahi (2007) e os funkeiros cariocas. Para esta autora, o consumo simbólico de objetos ou do ambiente onde o grupo de desejo se encontra nada mais é que uma forma de também pertencer. Transferindo seu objeto de pesquisa do funk para o maracatu, a apreensão do gosto de consumir este ritmo se dará no trânsito entre a vida cotidiana a as aulas de percussão, ou o próprio desfile do cortejo durante o carnaval. Neste contexto a roupa será o grande elemento de conexão, identificação e pertencimento no grupo. Esse vestir não se resume ao carnaval. Veremos nas análises seguintes como a adoção de moda será elemento fundamental da formação da identidade deste grupo em espaços diversos. O “ter” esteve sempre associado ao “pertencer”, como visto na perspectiva cultural trabalhada por Kaiser (1998), onde valores coletivos construídos na cultura em análise representam as ideias abstratas e ingredientes da formação desta cultura, manifestando-se na forma como seus integrantes se relacionam socialmente ou com esses valores. Na entrevista 03, fica claro que “ter”, ou melhor, “vestir-se como os demais”, traz a sensação de fazer parte do grupo. No contexto de onde foi retirado e exemplo a seguir, o entrevistado descreve dois momentos do vestir onde a roupa está sendo usada individualmente e em grupo. 62 Entrevista 03 – linhas 85 a 87 Verbal – a narrativa afirma o Perde até um pouco da questão do sentido de grupo a partir da posse espetáculo, ás vezes até quando a de elementos em comum. gente vê uma roupa Não verbal – a ênfase com euforia individualmente falando, a roupa denota um tom positivo no que é do maracatu não é tão bonita, mas dito. quando junta o grupo, todos usando a mesma roupa, fica, visualmente falando, bastante atraente, e vem a calhar. Neste exemplo percebemos que a posse da roupa, assim como os cabelos dos funkeiros ou as jaquetas de couro dos motoqueiros Harley Davidson, nada mais são que uma forma simbólica de consumir elementos de integração. Garcia e Miranda (2007) defendem que as pessoas compram produtos para ver refletidas neles a si mesmas, seus valores e seus gostos pessoais. Valores representam as crenças dos consumidores sobre a vida e o que julgam como um comportamento aceitável. Se crenças, ainda sob a ótica das autoras, nada mais são que um pensamento descritivo que uma pessoa tem de algo. Partilhando a máxima que moda é comunicação, peças do vestuário comunicarão sempre o que sou e no que acredito. Desta forma o consumo será sempre simbólico, e quando temos a roupa como nosso objeto de análise, teremos este simbolismo presente e em movimento no seu usuários. Isso lhe dará a sensação de conforto e de carregar sua mensagem de identidade permanentemente nos seus trajes. Não tendo a roupa como exemplo, mas tão rico quanto, destaco mais uma passagem da entrevista 06, na qual a integração é a grande tônica. Neste exemplo, a escolha de um novo automóvel para o entrevistado passa por todo um processo de análise, diante da grande preocupação de não vir a ferir a relação já construída com seu grupo. Entrevista 06 – linhas 196 a 222 Verbal – o texto descreve a Eu comprei o meu carro pensando preocupação do entrevistado em em poder entrar na favela e não não agredir seu grupo com um agredi-los. E não chamar a objeto que ostentasse status 63 atenção, e não, e não... E não ser financeiro superior. Por outro lado, um... Um elemento de descreve também o seu grande estranhamento e ao mesmo tempo conflito por ter que fazer esta de que tu pudesse, quer dizer, eles escolha. iam aceitar, evidente, mas é... Pra não chamar atenção, eu me, me Não verbal – o tom durante a mimetizar melhor. narrativa deste texto variará entre o Quer dizer eu comprei um bom espanto e de ironia em ter que carro, gastei 43 mil naquela viver a situação narrada. Mas, em época, só que era um carro momento algum, o tom passou a absolutamente comum, não ser de desaprovação pelo que foi chamativo, nem... Entendeu? escolhido. Porque eu tinha medo de entrar na comunidade e chamar a Interacionais – apesar de não atenção e ser agressivo e não ser estarmos no tempo e espaço onde a bem, assim, e o pouco que eu narrativa ocorreu, o entrevistado tinha conquistado lá dentro, de deixa claro o seu reconhecimentos repente ser... do meio e as consequências de uma Ser perdido. Não ser perdido, mas ação bem planejada possa vir a assim, o pessoal começar a me causar. olhar como... O, o, o cara de fora, que além de tudo tem dinheiro, e com isso de repente despertar... Intenções não, não só ligadas ao movimento cultural propriamente dito, é... Era essa a minha... Então esse é um exemplo. E foi uma besteira que eu fiz na minha vida, porque pensando no ponto de vista, é... Econômico. Porque dois anos depois o meu, o meu carro tava valendo menos do que 50, é, praticamente menos que 50% do, 64 do preço que eu tinha, é... investido nele. Então... É... Isso pesou. Pesou fortemente. Escolher um carro que fosse mais discreto, embora ele seja um bom carro, e tenha todos os, as condições legais, mas eu não queria finalizar... Olha só, isso é ao contrário né, quer dizer, normalmente você compraria um carro, e, e, um, e aqui, tem muito isso também, que você, com o carro finalizar um, um progresso... (palavra inaudível) um status... Uma coisa do tipo, e eu... Eu fiz o oposto, eu comprei um carro que... Finalizou o oposto. Né, então acho que isso foi uma... Uma, Uma... Um exemplo forte de como esse, esse meu envolvimento com esse movimento cultural influenciou a minha vida. É interessante perceber como um bem que tem um reconhecimento positivo de status, como é o automóvel para o meio em análise, leva o entrevistado a questionar e decidir sua compra por algo que lhe traz desvantagem, mas não vem a desconstruir sua imagem de integração com o grupo. Ter um veículo percebido como luxuoso para o meio, causaria uma distância ou até uma imagem de arrogância ou de prepotência, onde sua identidade não dialogaria no mesmo nível do grupo. Assim, para esta categoria analítica passaremos a chamá-la de PERTENCIMENTO. Lembrando que pertencer, como já visto acima, é inerente ao homem. Nesta categoria, o universo alternativo das escolas de percussão e maracatus, deixa claro que esse desejo faz parte de uma construção da sua identidade alternativa. Lembrando o pensamento de Solomon 65 e Rabout (2004), veremos que não importa se o grupo ou subgrupo de desejo é formal ou informal, teremos sempre a possibilidade de uma participação passiva ou ativa neste espaço. Os grupos alternativos das escolas de percussão e maracatus caracterizam-se por um desejo de participação ativa. Mesmo quando sou apenas um membro da batucada (papel massificado sem um destaque hierárquico na escola ou folguedo), estou colaborando ativamente. Não existe admiração ou cópia isolada de participação. Ainda sob a lógica dos pensadores acima, temos, na sua escala de referência de participação em grupos formais, ou não, características distintas neste corpus. No nível intragrupo existe a predominância na escala ‘recompensa’, na qual a integração é prazerosa pelo reconhecimento do grupo de sua participação. Já no nível extragrupo, teremos três escalas presentes: ‘Poder de Referência’, onde a relação com outros grupos está associada a ser admirado e copiado; ‘Informação’, onde o membro é percebido como uma fonte positiva de consulta sobre este universo; e, por fim, ‘Expertise’, onde a vivência lhe dá a chancela de participante. Neste sentido, assim como na categoria NOBREZA, o participante deste universo terá a capacidade de influenciar o consumo dentro e fora do seu grupo. Essa forma de consumir servirá como retroalimentação deste universo, já que viveremos aqui uma relação de produção e consumo associados. A produção partirá dos nativos que reproduziram intuitivamente hábitos e uma estética comum a eles. Consequentemente estes mesmos produtores serão consumidores, assim como os não nativos que pelos motivos aqui apresentados em nossa análise estão inseridos neste consumo. Fazendo uso da máxima Moda é comunicação (Garcia e Miranda, 2007), vestir-se será uma das formas de reforçar este pertencimento, através da adoção de uma nova estética na sua forma de vestir. 6.3 Categoria Analítica – 03 Na categoria 03 fica claro que o espaço alternativo das escolas de percussão e maracatus é prazeroso e vem a servir como uma válvula de escape para padrões formais desta sociedade. Outro ponto de destaque é a relação narrada pelos entrevistados com relação à hierarquia e comando. Nestes grupos a voz de comando será seguida não por um papel social ou por uma escala hierárquica de uma organização. Existirá sempre um reconhecimento de 66 valor associado à vivência e experiência no grupo. Um mestre de maracatu é mestre por fazer parte deste universo e carregar com ele a história do maracatu em sua vida. No ambiente onde aconteceu o encontro com o entrevistado 07, havia alguns objetos e instrumentos do maracatu presentes. Quando indagado sobre o que representavam aquelas alfaias11 em canto de destaque na decoração do ambiente de sua sala de estar, este respondeu que: Entrevista 07 – linhas 35 a 40 Verbal – a narrativa descreve o quanto É... Sempre está a, uma, uma tá é prazeroso para o entrevistado tocar. furada que é a do Porto Rico que é Da mesma forma que a possibilidade vermelha e verde, e a outra tá no de fugir para o ambiente do maracatu é pono. Assim, qualquer hora que eu um fato de liberdade acessível. quiser, que bate uma saudade eu pego ela, boto no carro, e vou me embora Não verbal – tom explicativo tenta tocar. Eu gosto muito assim, tanto do, passar a alegria vivida em tocar e da questão somente musical, como eu participar deste universo. acho muito bonita a questão da religiosidade, né, das, das coisas que envolvem o maracatu de nação. A liberdade acessível é o grande mote neste exemplo. Para o entrevistado as alfaias sempre à vista lhe dão a sensação de pertencimento. Estes objetos carregados de simbolismo do universo do maracatu e escolas e percussão, como visto no pensamento de Baudrillard (2000), nada mais são que representações simbólicas e que lhe dão a constante sensação da possibilidade de transitar entre estes universos. O consumo tem no pensamento de Debord (2006) um caráter negativo, onde a massificação faz do consumidor um alienado que busca uma realidade construída e imposta pela mídia; mas na relação vivida neste grupo vemos justamente o oposto. Existe uma constância com o reconhecimento do consumo relacionado a este universo. Faz-se necessário a este consumidor uma compreensão e fundamentação no que é proposto e consumido. 11 Tambor de fabricação artesanal, geralmente produzido nas comunidades onde os maracatus estão instalados, e que servem como base da marcação da batucada. 67 A mesma relação pode ser vista na entrevista de número 02. A entrevistada tem a formação em advocacia e trabalha em um emprego federal em um fórum da cidade do Recife. Descrevemos aqui um breve comentário sobre a formação e ocupação da entrevistada, para ambientar e ressaltar as características percebidas nesta categoria. Durante a entrevista, este trecho deixa claro como o “bater o tambor” é um momento de liberdade. Realmente uma fuga dos problemas do cotidiano. Entrevista 02 – linhas 18 a 22 Verbal – o texto descreve claramente E por fuga do estresse de trabalho, de o desejo de fuga e a liberdade e ter um momento de... Descanso de me descontração do ambiente das escolas concentrar na música, de não pensar de percussão e maracatus transmite em problemas, de aprender uma coisa para o entrevistado. nova, de conhecer pessoas diferentes, Não verbal – ênfase no tom de voz e que não tivesse nada a ver com meu enfatizando o quanto é prazeroso este dia-a-dia. ambiente. Sobre o aspecto da hierarquia que citamos no início da análise desta categoria, veremos no trecho a seguir como nosso entrevistado encara a liberdade e a obrigação existentes neste universo. Contextualizando, nosso entrevistado é questionado sobre a preparação para sair no carnaval. Entrevista 08 – linha 112 a 120 Verbal – fica claro na narrativa um É uma obrigação. Né, você tem essa contraponto entre compromisso e obrigação de sair dois dias no liberdade vivido pelo entrevistado em carnaval com o grupo. sua participação no grupo. Mas... É prazeroso também. Não verbal – o tom enfático ao falar Quando você tá lá com o pessoal, “É uma obrigação” e “É prazeroso tocando... E desfilando no meio da também.”, mostrando a rua, você vê o povo acompanhando responsabilidade e o compromisso você... E... É um prazer. assumido com o grupo. Mas, tem uma obrigação. Você tem que ensaiar. Você não pode faltar os ensaios, você 68 tem que se preparar pra isso, não podia beber no dia da apresentação... É... Normal em carnaval, né? Diante desta indicação de liberdade e obrigação apresentada pelo corpus, sentimos a necessidade de uma nova literatura de apoio e buscamos em Miller (2002) compreender melhor como essa relação de consumo procede. Para este pensador, a compra, no nosso caso pagar para fazer parte destes grupos de percussão ou maracatu, faz parte da construção da interpretação de como desejo que o outro me perceba. Compramos para manter essa relação viva e assim nos percebermos como parte. Mas, a grande diferença de pensadores até aqui trabalhados e Miller (2002) está na relação que este trata entre o sacro e o profano, onde comprar estará sempre associado ao divino e este as relações e papeis sociais. No ato da compra, existe a sensação de sacrifício em trocar suas economias pela mercadoria desejada. Este sacrifício será sentido ainda mais se esta despesa for voltada para necessidades básicas, e atenuada se esta compra tiver uma relação com o consumo hedônico. Assim, a dicotomia nesta categoria apresentada entre a liberdade e a obrigação em fazer parte descrita na narrativa tem na relação com o sacro o reconhecimento de valor e verdade vividos neste consumo. Ou seja: fazer parte de uma escola de percussão ou de um maracatu me dará a liberdade de transitar entre o meu meio social e o mundo alternativo, onde serei eu mesmo livre de obrigações convencionais. Mas, por outro lado, este mundo alternativo também e possuidor de regras e condutas rígidas, mas existirá uma verdade sacra neste consumo que, apesar das obrigações, será prazeroso fazer parte. Não existe outro adjetivo para nossa associação nesta categoria que não seja LIBERDADE. Esta liberdade de ir e vir, focando na construção da identidade de moda deste integrante, fará com que elementos dos mundos vividos (intra e extra grupo) se misturem e reconstruam sua forma de consumir moda, reforçados pela crença compartilhada pelo grupo e integrada na sua nova forma de relação social. 6.4 Categoria Analítica - 04 Extraindo um breve momento da narrativa do último exemplo, onde a entrevistada 02 descreve: “Descanso de me concentrar na música, de não pensar em problemas, de aprender 69 uma coisa nova, de conhecer pessoas diferentes, e que não tivesse nada a ver com meu dia-adia.”; teremos um indício de quanto a busca pelo novo também foi uma constante neste corpus. Este “NOVO”, já o definindo como o nosso adjetivo para esta categoria, não terá a mesma função descrita por McCracken (2003) ou Lipovetsky (2005), vivida com a idade moderna e a revolução industrial apresentando o consumo de novos produtos como um ideal de conduta social. Este “novo” a que nos referimos, que encantará os novos batuqueiros e baianas dos maracatus pernambucanos, tem antagonicamente sua referência no passado. O “novo” desejado tem suas origens na tradição e história desse folguedo. Ao mesmo tempo em que bebe na contemporaneidade da produção alternativa da música, cinema e literatura nacional e internacional. Outra característica deste “novo” consumido para nosso corpus é a sua não massificação. Esse “novo” será construído por referências do passado e o que há de mais novo no futuro. Entrevista 04 – linhas 129 a 131 Verbal – a narrativa associa o novo ao Quando a gente chegou lá no Porto diferente, como se o entrevistado Rico, aí tem a grande diferença: tivesse esse contato pela primeira vez. social e cultural. Não verbal – tom de valorização ao falar sobre a diferença encontrada. De certo que o entrevistado já tenha vivido situações e relações com o meio social e cultural a que se refere. Mas, vistos pelos olhos do praticante das escolas de percussão e maracatu, o social e cultural aqui salientados agora fazem parte da minha história. Kaiser (1996) descreve que as relações sociais com esse novo construirão ajustes e modelagens necessárias para que este “novo” venha a si tornar um novo código e significado comuns ao seu subgrupo. Esta relação de tradição e consumo também foi trabalhada por Maciel e Miranda (2007) no estado de Pernambuco. Para os autores, a formação cultural deste Estado tem raízes tão bem fincadas, que até elementos que outrora foram símbolos negativos, como o imperialismo dos senhores de engenho, passam a ser consumidos por meio de sua materialização em roupas para ocasiões socioteatrais. O mesmo nos leva a crer acontece neste estudo. Elementos da cultura do maracatu, até então visto como popularesco, pejorativo e 70 marginal, passam por uma nova construção de seus significados e consequentemente nossos códigos compartilhadas por esse grupo. Vejamos, no exemplo a seguir, como a nosso entrevistado descreve sua chegada ao maracatu e todo o encantamento vivido em trabalhar este ritmo. Contextualizando esta passagem, o nosso entrevistado narrava seu histórico na música como sambista, e sua participação em uma escola de percussão por insistência de sua esposa. Entrevista 08 – linhas 79 a 116 Verbal – a narrativa mostra o Lá no bairro do Recife. E ela que me encantamento do entrevistado na nova convenceu, eu –resmungo- no início experiência vivida. Sua empolgação é eu meio até que relutei “ah to com tanta, que narra os sons do batuque na preguiça, num sei que lá, não vale a tentativa de se fazer compreender pena” não conhecia o ritmo... muito diante do seu entusiasmo. bem, né, ? daria também outros Não verbal – na primeira fase da ritmos, ai eu fiquei... né? Lá... narrativa o tom trabalhado tem a Tipo, se propõe a, a, a ensinar outros função de explicar e afirmar o processo instrumentos, como pandeiro, que eu vivido. Quando este se refere ao tinha mais ou menos uma noção, maracatu, temos um tom de porque meu irmão também tocava entusiasmo e euforia na narrativa. pandeiro Outro aspecto não verbal percebido Mas eu não tinha... Molejo etc. Aí eu são os movimentos com mãos e braços fui. E quando eu cheguei lá, eu tive simulando o tocar no maracatu. O muita sorte porque, era uma oficina... entrevistado fica tão entusiasmado com Uma oficina fantástica porque... Ele a narração, que levanta e dança trabalhava, ele ia além dos batendo com os pés, enquanto que seu instrumentos, ele ia, o, o mestre, o tom de voz volta a ser explicativo professor, ele trabalhava toda enquanto fala sobre os contratempos musicalidade corporal então... A musicais do ritmo. gente fez durante um ano de oficina, não sei mais ou menos, não sei quanto tempo, um ano de, de, de, de trabalho, ai aquilo, né, aí o maracatu entrou aí. 71 Foi entrando devagar, entrando devagar... E aí eu fui descobrindo o, o, o ritmo. E foi uma coisa... fantástica, quer dizer, a partir do momento que eu tive contato com maracatu, e que eu pude compará-lo com, com, com o resto, eu via que eu não sabia nada, quer dizer, que eu não, o que eu sabia de samba, o que eu conhecia, o que eu gostava de samba era muita, muito pouco do que, daquilo que eu tava descobrindo ali. Né, porque... Tecnicamente samba e maracatu são completamente diferentes, né, são... São ritmos de origens, é, da mesma origem africana, mas de idéias, você assim, de concepções técnicas diferentes, né, assim, o... Enquanto que o samba é, é um ritmo binário. É , não querendo entrar na técnica Do, da, da musicalidade, mas, falando só pra sintetizar assim, enquanto que o samba é um ritmo binário, que é uma batida simples né, pá pá pá pá,o, o, o, o... O maracatu, é... Ele trabalha o tempo quartenário, então pra você fechar o, o, o, o ritmo do maracatu você tem que fazer quatro tempos, pá, pá pá,pá pá, pá pá pá pá pá, e isso é muito complicado, isso é difícil, porque ele trabalha no contratempo. 72 Este novo não carregará consigo o estigma ou fascínio do exótico. Os integrantes das escolas de percussão não se sentiram como exploradores de novas culturas, nem tão pouco arqueólogos em busca de costumes distantes. Sua vivência e participação na construção dessa cultura lhe dão a chancela do que denominaremos de um consumidor do erudito cultural. Sua tradução em consumo de moda estará atenta a tradições renovadas. Seus trajes serão construídos de referências das suas novas experiências. 6.5 Categoria Analítica – 05 A princípio e durante a análise do nosso corpus, viemos a associar esta categoria ao prazer. Com o aprofundamento e as descobertas feitas, ficou claro que esse prazer tinha uma relação direta com o Eu, e o consumo aqui descoberto está diretamente ligado à satisfação pessoal. O fazer aula de percussão ou participar de um maracatu não será dividido com mais ninguém. Diante da descoberta do um consumo pessoal que o corpus nos apresentou, buscamos mais uma fundamentação teórica que viesse a nos apoiar nesta análise. No pensamento dos pioneiros da área, temos em Hirschman e Holbrook (1982) as primeiras ideias de como e por que se processa essa forma de consumo. Para os autores, o consumo não pode ser analisado apenas por questões econômicas ou ligadas diretamente às necessidades básicas. Assim, propõem uma análise com base na perspectiva que estes denominam de experiencial. Esta nova perspectiva passa a explorar os significados simbólicos deste consumo em formas subjetivas tais como: alegria, sociabilidade e elegância. Os autores buscam traçar uma relação entre as respostas cognitivas e a reação de envolvimento na orientação de consumo. A atenção, interesse e entusiasmos assumem diretamente uma ação sobre a experiência de compra. Segundo Hirschman e Holbrook (1982), o consumo para si pode ser definido como as facetas do comportamento do consumidor relativas aos aspectos multisensoriais, fantasiosos e emotivos da experiência de alguém com produtos. A capacidade de despertar a emoção não deve ser tratada simplesmente como uma variável de forma ou preferência, e sim como uma característica funcional deste consumo. Para o entrevistado número 06, ao responder sobre o que mais o fascina no maracatu, sua narrativa apresenta uma relação direta com um prazer pessoal. Vejamos: 73 Entrevista 06 – linhas 84 a 99 Verbal – a narrativa tenta explicar a Rapaz, essa é uma pergunta... Bem alegria e o prazer de fazer parte do colocada. Porque... A expressão da maracatu. alegria, não sei se é a alegria, se é a Não verbal – tom de voz embargado musicalidade, se é um, se é só a de emoção em narrar o texto. música, se é só a dança... Mas é uma, uma... Uma síntese de coisas, entendeu, que não dá muito pra você parar. É ... A cultura dos caras, né. E isso, é... É único. É uma coisa que não tem, eu não conheço em nenhum lugar do mundo, nunca tinha visto uma coisa daquelas, entendeu? A experiência vivida e narrada por nosso entrevistado 06 é muito pessoal. O não saber explicar o que ele sente no momento de fazer parte deste universo traduz algo que está intrínseco a sua vivência. Consumir a vivência aqui apresentada por nosso entrevistado mostra claramente o pensamento de Hirschman e Holbrook (1982) com relação as diferenças individuais, já que experiência hedônica surge de produtos que tendem fortemente a evocar níveis acrescidos de fantasias, sentimentos e diversão. Relacionado com as artes, cinema ou música; este consumo tem uma conexão direta com as escolas de percussão e os grupos de maracatu. A emoção e o prazer de fazer parte, são as grandes forças motivadoras. Neste contexto, o individual será um novo indicador de desejos, onde para o nosso corpus, percebemos que a diferença será um fator de integração. Sou diferente dos outros grupos, e dentro do meu próprio grupo a minha individualidade será destacada como original. Diante desta conclusão, não teremos nesta categoria um adjetivo, mas sim todo o significado que o HEDONISMO pode representar. O consumo de moda aqui apresentado buscará a exclusividade, o único; mas que não o segrega e sim o aglutina. 74 6.6 Categoria Analítica - 06 Nesta categoria, o desejo apresentado nas narrativas traduz valores culturais compartilhados neste grupo transformados em consumo simbólico construtor de uma identidade de seus membros, como já vimos no pensamento de Baudrillard (2000). Estas referências, associadas ao real ou ao imaginário do maracatu, carregam em seu bojo muito da tradição cultural de Pernambuco onde símbolos educativos, farão uso da memória afetiva na construção do seu significado (BAUDRILLARD, 1973). Nos exemplos que a traduzem, veremos o quanto o orgulho em fazer parte esteve presente. Durante a fala do nosso entrevistado 07 foi perguntado sobre como ele havia ingressado neste universo. Sua resposta foi imediatamente associada a esta categoria. Vejamos: Entrevista 07 – linhas 18 a 22 Verbal – a narrativa deixa claro sua E aí quando... Eu sempre gostei atração pela cultura popular, e que esta muito, muito da, da... Sou atração é anterior a sua participação pernambucano, sempre gostei muito nas escolas de percussão e maracatus. da nossa cultura, da dança popular, comecei minha carreira fazendo Não verbal – tom de voz teatro... Eu sempre tive muito simbolizando prazer em revelar sua envolvimento com as pessoas que história. Além disso, temos no fazem... É... A, a cultura aqui no movimento de mãos e braços, em estado. E assim, a música popular que movimentos ascendentes, a tentativa eu tive muito próximo, sempre gostei de enfatizar o quanto o que foi narrado muito, quando ia, de, de maracatu, de é valorizado. caboclinho, de maracatu rural, de maracatu de baque-virado. O ser pernambucano, dentro da classificação de categoria analítica 02, é reforçado com seu histórico, o tornando uma fonte de informação sobre a cultura local para o seu grupo. Da mesma forma quando afirma: “a música popular que eu tive muito próximo, sempre gostei muito, quando ia, de, de maracatu, de caboclinho, de maracatu rural, de maracatu de baquevirado”, revela sua paixão e admiração pelo grupo que agora é integrante. Sua admiração e 75 valorização deixam de ser contemplativas e passam a ser participativas. Ele agora é parte da cultura. Nesta participação ativa da cultura, é interessante lembrar o pensamento de Maciel e Miranda (2008) sobre a transição do simbólico no tempo e espaço da cultura pernambucana. Para os autores, personagens que no passado carregaram um estigma negativo, como é o caso dos Senhores de Engenho, vêm a ter seus modos de vestir replicados em nossos dias. No universo dos maracatus, questões de religiosidades africanas como o candomblé, que ainda em dias atuais são vistas como marginais à sociedade, vem a ser valorizadas por seus novos integrantes, como é o caso do nosso corpus de pesquisa. Cremos que esta alteração de valor se dá por dois motivos. O primeiro por conta da vivência, desmistificação e reconhecimento da estrutura e funcionamento desta religião. A segunda possibilidade seria por esta religião ser a base do maracatu. Todo maracatu de raiz tem sua origem na formação das cortes africanas diretamente ligadas ao candomblé. Assim, justificado na categoria analítica em questão, o que antes poderia tem um caráter negativo, passa a ser valorizado como referência cultural também. Focando no consumo de moda, temos na entrevista 04 uma relação de alguns elementos do vestuário ou de suas matérias-primas, reconhecidos pela sua referência cultural, vindo a ser consumidos por conta da vivência no maracatu ou escolas de percussão. Quando indagada sobre como é esse momento do desfile carnavalesco, a entrevistada descreve o seu figurino, e como este está carregado de referências que para ela são culturais. Entrevista 04 – linhas 183 a 187 Verbal – a narrativa descreve um novo E como, e como, e como, assim, dono, produto que até então era visto como vamo supor, da Cabra Alada. Que ele algo negativo ou de baixa qualidade. utiliza muitos, é... É... Recursos, muitas informações regionais na Não verbal – tom de voz expressa, confecção do figurino. num sorriso meio sem graça e um Então assim, presilhas... É... A chita volume mais baixo ao falar, a mesmo, a chita entrou na minha vida, vergonha em não ter reconhecido antes até a chita que sempre foi um tecido o valor destas referências culturais. pouco valorizado entrou na minha 76 vida, hoje eu uso faixa de cabelo de chita, uso uma, uma, um... Sei lá, um broxe de chita, uma fivela... Assim como no exemplo anterior, vemos a migração de valores. Desta vez a chita, matéria-prima acima citada, passa a ter um simbolismo cultural por conta do seu uso histórico no universo popular e em especial do maracatu. Nos maracatus de tradição, também chamados de Nações, a chita aparecerá no dia-a-dia dos seus membros. Nos desfiles, tecidos nobres com referência à corte (cetins, brocados e lamês) serão os mais utilizados (MONTES e RIBEIRO, 1998). Como vivido na categoria 05 onde a sintetização não foi feita com a associação a um adjetivo, se repetirá na categoria 06 a mesma lógica. Aqui, encontramos na frase REFERÊNCIA CULTURAL, o uma síntese do que essa categoria representa. A construção da identidade de moda estará carregada de materialidade regional. Seja na matéria-prima seja nas formas. O vestir a minha identidade transporta, seja em referência simbólica ou na matéria prima, a minha história 6.7 Categoria Analítica – 07 Muito próximo da categoria NOBREZA (aqui você já pode dizer qual), esta classificação nos mostra um dos desejos do ser humano que é a busca pela beleza. Este desejo está fundamentado na cresça de que este belo lhe servirá de ferramenta para sua aceitação e pertencimento. Para dialogarmos entre a categoria analítica aqui trabalhada e o corpus do nosso trabalho, uma nova bibliografia fez-se necessária. Indo bem distante na formação de um conceito de beleza, veremos em Platão (SUASSUNA, 1996) uma associação direta do belo ao bem, onde na verdade nossa atração ao belo nada mais será que a saudade que temos da nossa passagem pelo mundo dos arquétipos, onde a perfeição estava ali representada como a pureza verdadeira das formas. No pensamento de Eco (2004), o belo ainda carrega consigo essa associação ao bom; e esse bom não é somente algo que me agrada, e sim algo que queremos ter. Pensando assim, veremos como a beleza ou o se sentir belo, esteve presente como mais um dos elementos da construção da identidade deste grupo. 77 Quando indagado sobre como era a sua participação no maracatu que fazia parte, o entrevistado 01 descreve o quanto estar bem apresentado é importante. Vejamos: Entrevista 01 – linhas 34 a 37 Verbal – a narrativa mostra o quanto Num sou da batucada, como todo ser percebido como belo ultrapassa mundo pensa que um cabra que faz padrões de comportamento do seu veterinária tem que ser super macho. meio além do maracatu. Gosto de tá no desfile. Ser vassalo ou caboclo-de-lança. Gosto mesmo é de Não verbal – tom de euforia em narrar me amostrar. o texto. Além disso, mãos e braços descrevem gestos da dança e dos movimentos durante o desfile. Para o entrevistado a beleza tem uma associação muito grande com sensualidade. Na euforia do tom da narrativa, ficou claro uma valorização pessoal quanto a ser um homem atraente e belo, e o quanto este fato é algo que lhe faz bem. Essa associação com a sensualidade também é vista na narrativa da entrevista 04. A entrevistada se refere a um dos componentes do grupo e ao seu marido. No seu depoimento tratou de uma beleza associada à masculinidade e virilidade masculina. Entrevista 04 – linhas 252 a 276 Verbal – a narrativa apresenta uma Assim, a forma de Jorge, por sensualidade natural percebida nos exemplo, tocar, eu... É uma forma seus integrantes, através de alguns assim... Encantadora. Eu digo olhe, gestos do maracatu durante o desfile. Chico, assim... Até hoje eu digo, Jorge Esta sensualidade está associada a uma tocando é impressionante! Como ele masculinidade e virilidade. toca bem. Assim, eu digo, tem duas pessoas que eu acho que tocam muito Não verbal – tom de empolgação em bem, além de Chico né, claro.! Eu relatar a sensualidade dos envolvidos digo é Jorge, e um menino lá da na narrativa. Mãos gesticulam tentando Nação Porto Rico. Que eles, eles se demonstrar o volume dos ombros e destacam assim, pelo charme, pela, braços dos envolvidos nos movimentos 78 acho que assim até a virilidade. do maracatu. A força... É realmente são, são destacados, assim. Outras pessoas tocam muito bonito, tocam, tem gente que toca até se amostrando demais, que eu acho que fica feio... De certa forma. Mas eles tocam muito bonito. Aí assim, isso, isso chamava a atenção. No vestuário não muito, porque... Era normal, pessoal normal. Onde você encontra pessoas muito, como a gente encontrava, normalmente que vai pra grupo você vê pessoas mais... é mais ligadas às artes de uma forma geral. E todo mundo que é ligado às artes independente de ser música, mas a cinema, a dança, às... artes plásticas, teatro, artes plásticas mesmo, já tem um diferencial de comportamento e de vestimenta. No exemplo a seguir, veremos o belo ligado ao vestir e ao tocar no maracatu. A entrevistada explica como nos instrumentos que já tocou, a roupa tem uma funcionalidade que vai além da liberdade dos movimentos para essa função. Da mesma forma que descreve sua finidade com o Abê12 e a sensualidade necessária no figurino para esse instrumento. Entrevista 02 – linhas 87 a 21 Verbal – a narrativa mostra a Eu acho que as, as poucas vezes que sensualidade da execução de um dos eu toquei alfaia, tem que ser uma instrumentos do maracatu e a roupa confortável que não atrapalhe. preferência da entrevistada por esse 12 Espécie de chocalho feito com uma cabaça e uma trama de linha e contas amarradas em seu corpo 79 Pra... Por causa do tambor, do instrumento. instrumento. Mas Abê é divertido que seja uma saia ... Porque Abê é um Não verbal – mãos e braços instrumento mais feminino. Então que movimentam-se descrevendo no ar o seja uma saia, que você, que a pessoa movimento das saias no uso do abê. quando tenha que dançar, faça todo Tom de voz remetendo a sensualidade aquele movimento de rodar, fica mais dos movimentos, dando graça e bonito. Do quê... Normal... Você pode, feminilidade a narrativa. você pode tocar Abê com uma calça, com um shortinho, alguma coisa assim, só que mesmo assim, mas não é tão bonito, e nem é tão divertido quando você tá com um saião, rodando... O Abê é... Normalmente são as meninas que tocam Abê, são poucos os homens que tocam. Então fica aquela ala mais feminina, fica mais bonito visualmente a dança, (palavra inaudível), a cor, sendo que a roupa da gente normalmente é diferenciada do pessoal da... Da, do, das alfaias na hora do desfile ou coisa assim. A década de 90 na cidade do Recife foi um ambiente propício para despertar na estética do maracatu uma beleza reconhecida por grupos que foram além de suas fronteiras (VICENTE, 2005). A que valorização dessa estética surge com o Movimento Mangue Beat, e esse fará uso de símbolos do universo do maracatu como elementos de referência. Assim, o belo descrito por nossos entrevistados não tem o mesmo padrão reconhecido pela grande massa. Numa ação trickle-up (SIMMEL, 1957), essa nova estética ganhará as ruas desta cidade, mas não foi massificada, continuando a ser consumida por um grupo restrito, vivendo o que o Simmel chamará de trickle-across. Essa não massificação da nova estética, fará com que essa mesma forma de vestir e reconhecer o belo esteja restrita ao grupo construindo uma digital na forma de vestir. 80 Assim, o nosso adjetivo de associação com a categoria passa a ser BELEZA. Mas esta beleza aqui traduzida e sintetizadora da nossa análise, se dá ao fato de que o belo aqui apresentado, apesar da associação a “sensualidade” e ao “ser atraente”, carrega consigo também muito da referência e do saber cultural. 6.8 Categoria Analítica - 08 Nesta categoria, traço um paralelo com o consumo de pátina que apresentamos no pensamento de McCracken (2003). Para o autor a pátina está diretamente ligada ao tempo. Só existe um e ter esse raro me faz pertencer. Esta categoria que aqui nos referimos, bebe um pouco nesta fonte da exclusividade, do único e do incomum; mas essa posse, antagonicamente, é compartilhada. Participar de escolas de percussão ou fazer parte de um maracatu trabalha um consumo compartilhado do raro. Vejamos o quanto o exclusivo estará presente no consumo para os nossos entrevistados. Quando questionado sobre qual a grande diferença dos outros grupos e o grupo do maracatu, o nosso entrevistado 01 revela: Entrevista 01 – linhas 48 a 52 Verbal – o discurso descreve um Cara, é um outro mundo. Apesar de paralelo entre dois universos do trabalhar com animal, que é muito entrevistado. O nascimento de um bom. Arretado mermo! Não tem a animal o emociona, mas não tem a mesma energia. E olha meu veio, ver raridade do desfile do maracatu. bicho nascer é emocionante. Mas o carnaval, as ladeiras o povo e o Não verbal – tom de empolgação batuque do maracatu é outra história. positiva e única do que está narrando. Vemos neste exemplo uma grande associação com a categoria 03. O entrevistado tem dois espaços de convivência que o encanta, mas o maracatu lhe traz a sensação de consumir o incomum. Nossa entrevistada de número 03 traz na fala - “É legitimamente brasileiro!” - o quanto para ela essa exclusividade é importante. Já a entrevistada número 04, no decorrer de sua narrativa, descreve a raridade existente no maracatu em que faz parte. Vejamos a seguir: 81 Entrevista 04 – linhas 380 a 385 Verbal – a narrativa traz uma Ela é a última rainha negra, informação que transforma o seu consagrada, pela Igreja Católica, na maracatu exclusivo e único. época, no ano que se permitia ainda a...O, o sincretismo. Entre o Não verbal – tom explicativo ao candomblé, e a religião Católica, ela descrever o texto. Dedo indicador foi a última rainha batizada na Igreja erguido reforçando o quanto esta do Rosário dos Pretos, dali do Pátio informação é importante. do Terço Ela foi a última, depois dela nenhuma mais, nenhuma mais foi né. Que já tem várias né, Dona Santa. E outras tantas, mas ela foi a última, tá sendo. É uma lenda viva! A chancela de ter a última Rainha de Maracatu viva no Estado dá à nossa entrevistada a posse do raro. Em outro exemplo de sua fala, veremos como esse raro e exclusivo migra para a moda. No exemplo a seguir, ela fala sobre de detalhes do traje das mulheres que fazem parte do grupo. Entrevista 04 – linhas 289 a 293 Verbal – a raridade aqui narrada está Por exemplo, uma vez que eu vi uma na exclusividade da peça usada por um menina que ela fez um bordado num membro do grupo. vestido todo de botão. Que eu nunca tinha visto. Mas era todo colorido, Não verbal – tom de admiração pelo quando cheguei perto, poxa, botão! resultado e criatividade com o uso do Que interessante né’ você via de longe inusitado. assim, uma coisa que sabia que tinha, e era bom coisa de formas, cores, jeitos diferentes. Quando eu, ai eu ‘poxa que legal’ ai ela ‘ah, fui eu quem fiz, eu gosto de mexer com moda’, num sei o quê. 82 A entrevistada número 04 também descreve que: “Assim, é engraçado. Porque no trabalho eu vou mais formal, sempre igual. Vou... Quando eu vou tocar maracatu, eu vou meio que vestida, tem aquela, aquele, ah ‘Vou me vestir pra ir pro maracatu’ diferente de como eu me visto pra ir pra uma festa.”. Existe neste depoimento algo que reforça o exemplo acima: o exclusivo no espaço raro. No seu ambiente de trabalho ela vem a usar o que todos usam, decerto que comunicando e se integrando com o grupo, mas não existe a intenção de possuir o exclusivo no seu ambiente de trabalho, mas sim no maracatu onde toca. Como já visto por Craig e Haytko (1997), temos neste corpus analisado claramente a presença de um consumidor interpretativo. O seu consumo está atrelado ao simbólico e uma interpretação deste simbólico nas suas crenças e valores pessoais. Consumir passará obrigatoriamente pelas histórias e referências da cultura que valorizo, traduzidas em objetos ou serviços, o que chamaremos de RARIDADE. Essa raridade tem a função de integração, onde elementos do vestuário são distitintivos de pertencimento. Seja na cor, ou em símbolos exclusivos de cada Nação ou escola de percussão, o raro me faz parte e é compartilhado pelos meus pares. Diante desta análise, percebemos o quanto a adoção de moda está presente neste subgrupo. No transcorrer das categorias analisadas, que vivemos uma dinâmica de produção e consumo, que se retroalimenta mantendo um movimento Trickle-Across perpetuando sua unidade hermética. 83 6.10 – Iconografia do personagem do maracatu x iconografia de moda. Neste mergulho na cultura do maracatu e suas escolas de percussão, percebemos uma relação entre personagens desse folguedo e características das categorias analíticas aqui trabalhadas. Estas semelhanças estão fundamentadas em papéis desempenhados por estes personagens e como, através dos tempos, estes papéis foram se fortalecendo ou criando outros significados para a cultura em que estão inseridos. Focados em identificar o processo de construção da identidade de moda de grupos alternativos, e fazendo uso da relação categorias analíticas + personagens de maracatu, traçamos uma relação indicativa de elementos norteadores de características que um produto de moda destinado a esse público deve ter na formação da identidade deste grupo. Assim, o que deste ponto em diante chamaremos de características de consumo do corpus analisado nada mais será que a integração da informação construída neste trabalho e características folclóricas e históricas do universo alternativo dos tocadores de tambor da cidade do Recife e Olinda. O objetivo desta integração categoria analítica + personagens do maracatu + características do produto, é ressaltar o quanto este universo tem uma relação integrada e como esta integração pode ser trabalhada em produtos de moda. Por outro lado, se buscarmos no pensamento de Barthes (2003) a mitificação que estes personagens ganharam com o tempo, veremos que essa relação ficar ainda mais consistente. Para o autor, o mito nada mais é que uma fala. Ou seja, um conceito construído por uma sociedade dentro de um tempo e espaço, com funções reinventadas por essa mesma sociedade. Da mesma forma que um mito não se define pelo objeto de sua mensagem, mas sim como este é anunciado. O mito é uma fala escolhida pela história, uma mensagem que não pode ser um objeto, conceito ou idéia, mais sim uma forma, um modo de significação. Assim, se analisarmos os ícones aqui apresentados em nível de mito, veremos que sua representação nada mais é que uma significação da fala reconhecida e valorizada pelos integrantes do nosso corpus. Mais interessante se torna nossa análise, se observarmos também as relações religiosas contidas neste ambiente. O sincretismo religioso e seus disfarces para manter viva uma subcultura em períodos de repressão as manifestações africanas e nossas terras, tem na mitologia de sua religião elementos que são transportados e comunicados nestas falas de forma mítica. Como exemplo temos a percepção da rainha do maracatu ou do caboclo 84 de lança dentro e fora deste universo, onde existe todo um respeito e admiração pela carga histórica que estes personagens carregam além do período carnavalesco. O que buscamos com esse novo foco é apresentar como marcas também podem ser mitificadas por estes grupos alternativos. Um caso bastante conhecido desta possibilidade são as motocicletas Harley Davidson (McALEXADER e SCHOUTEN, 1995) e toda a fala de liberdade e rebeldia que vai além do objeto motocicleta, migrando para tatuagens, roupas e um comportamento que constroem uma identidade própria para seus componentes. Para facilitar nossa análise fizemos uso, quando necessário, do modelo trabalhado por Maciel e Miranda (2008) sobre identidade cultural e consumo de moda focado no estado de Pernambuco. Neste, 05 critérios foram apresentados a partir de características percebidas nas referências iconográficas do período que os autores classificam de tempo áureo da cana-deaçúcar (período compreendido entre o séc. XVI e XVII) e seus reflexos na também denominada pelos autores de Civilização do Açúcar, sociedade contemporânea constituída por pernambucanos formados na cultura do seu Estado. São trabalhados nestes critérios aspectos relativos a modelagem – comprimento e volume das peças; cor – pontos em comum das cores e suas composições nos trajes; materiais – matérias utilizadas na construção das peças; composição – forma como as peças do traje e pontos em comum no uso de acessórios; e gestual – postura e comportamento durante o uso do traje. 85 6.10.1 Nobreza – A Rainha do Maracatu Ícone 01 - Rainha do Maracatu Eduardo Maciel tendo como base a fonte Mangue Bats, 2010 Descritivo do ícone - Personagem central do maracatu tem uma representação direta com as mães de santo dos terreiros de onde fazem parte. Sempre vestida com luxo, ostenta a nobreza da sua corte, sendo soberana e protetora dos seus súditos. No maracatu, apesar da presença do rei, a rainha tem uma relação de conhecimento e domínio de sua côrte. Talvez por sua atuação social na comunidade de origem, esse domínio da sua “côrte” tenha pouco a pouco migrado para o personagem que representa. Tradicionalmente é o personagem de maior respeito e admiração entre os seus seguidores. Similaridades com categoria analítica – soberania e sabedoria reconhecida pelo grupo vem a ser o elo deste personagem. Mesmo fazendo parte de um universo machista, a matriarca do maracatu é sempre consultada para os mais diversos assuntos, sendo percebida como uma referência cultural. Este reconhecimento e valor esteve presente como um desejo dos nossos entrevistados. Característica do produto de moda – nesta categoria a distinção será o elemento- chave, trazendo ao grupo o reconhecimento de nobreza. Outra característica presente também será a da referência extragrupo; os nossos entrevistados declaram de forma positiva o fato de serem 86 reconhecidos como uma referência de consumo de moda. Essa moda não é algo comum ou massificado, mas sim carregado de referências culturais. Materiais – teremos aqui uma releitura de materiais considerados populares, como o algodão. Para esse consumidor, a nobreza está na sua história, pois o algodão, a palha, e a até a própria chita serão interpretados em peças com o valor da tradição e referência. Essa transformação da matéria-prima simples em algo nobre fica clara na narrativa da entrevista 04: “A chita mesmo, a chita entrou na minha vida, até a chita que sempre foi um tecido pouco valorizado entrou na minha vida, hoje eu uso faixa de cabelo de chita, uso uma, uma, um... Sei lá, um broxe de chita, uma fivela.” (Entrevista 04, linhas 190 a 193) 6.10.2 Pertencimento - Umbrela Ícone 02 - Umbrela Eduardo Maciel tendo como base a fonte Mangue Bats, 2010 Descritivo do ícone – grande guarda-sol ou sombrinha, confeccionado em tecido preferencialmente nobre, é ricamente adornado com plumas e pedrarias. Sua função é proteger a corte, Rei e Rainha, durante o desfile do folguedo. Similaridades com categoria analítica – como elemento de proteção, vemos na umbrela um integrador dos que fazem parte do maracatu. Visto de qualquer parte durante o desfile, por ser depois do estandarte o adereço mais alto do cortejo, transmite a sensação de núcleo ou 87 coração do folguedo. Da mesma forma que fora deste universo, a umbrela, guarda-sol ou sobrinha, são percebidos na linguagem corporativa como algo que engloba elementos afins, com o objetivo de integração. Característica do produto de moda – diante da conclusão que tivemos durante a análise do nosso corpus, na qual a diferença será um dos fatores de integração para este grupo na relação dentro e fora do grupo, esse pertencimento não estará associado a uma padronização rígida tal como uma farda militar ou um uniforme escolar. Semelhanças na modelagem, na matériaprima e na cor serão os grandes elos de conexão. Assim, apresentamos abaixo, dentro dos critérios de análise de Maciel e Miranda (2008), como estes elementos se apresentam. Modelagem – veremos uma preferência por uma modelagem ampla nas saias. Esta modelagem virá do movimento vivido durante os ensaios e apresentações do maracatu, com a saia sendo uma extensão do corpo, dando maior movimento a evolução da dança. Quando trazida para o seu dia-a-dia, esta peça sofrerá uma redução do seu volume, chegamos ao que conhecemos como saia A13. Vejamos na narrativa da entrevista 02 como essa preferência é citada. “Mas Abê é divertido que seja uma saia ... Porque Abê é um instrumento mais feminino.” (Entrevista 02, linhas 72 a 74). Cor – a cartela de cores irá de tons mais terrosos, tais como o bege, ocre e marrom associadas às questões étnicas da cor da pele dos negros. Da mesma forma que o colorido do carnaval e a relação do sincretismo apresentará uma cartela de cores primárias e secundárias vibrantes. Abaixo temos um exemplo de como a cor será um fator positivo. “Por exemplo, uma vez que eu vi uma menina que ela fez um bordado num vestido todo de botão. Que eu nunca tinha visto. Mas era todo colorido, quando cheguei perto, poxa, botão!”(Entrevista 04, linhas 289 a 292). Matéria-prima – apesar de não haver citação sobre a materialidade das roupas, fica claro no discurso dos entrevistados a busca pelo natural no vestir. A chita, por 13 Modelagem onde da cintura até a barra da saia teremos a forma de um trapézio. 88 exemplo, citada em exemplos anteriores é 100% algodão. Para o nosso entrevistado 08, a busca por elementos naturais fica evidente quando este diz: “Acho que tudo que vem da natureza. O som do tambor como diz Naná Vasconcelos é o som da terra. Se, se num é natural, não tem essa ligação.” (Entrevista 08, linhas 123 a 125). 6.10.3 Liberdade – Batuqueiro Ícone 03 - Batuqueiro Eduardo Maciel tendo como base a fonte Mangue Bats, 2010 Descritivo do ícone – Os batuqueiros do maracatu são responsáveis pela musicalidade do folguedo. Sua percussão marcada carrega em sua batida a liberdade de expressão negra reprimida e a liberdade festejada durante o carnaval em seus desfiles. Em sua maioria formada por homens, os batuqueiros, comumente, têm seu figurino resumido à parte inferior, deixando seu tronco e braços livres para os gestos necessários na execução do batuque. Isso vem a ressaltar mais ainda a liberdade vivida e pregada por esse personagem. Similaridades com categoria analítica – além da liberdade de expressão que este grupo tem durante a sua exibição, os batuqueiros também buscam no comando respeitado a partir de uma liderança reconhecida; neste caso o mestre do maracatu. Nossos entrevistados também escolhem o seu líder, podendo migrar de grupo sempre que lhe convier. Mesmo quando existe 89 a migração e o reconhecimento com os mestres e professores já vividos será mantido e referenciado. Característica do produto de moda – veremos aqui que a liberdade e o conforto serão elementos primordiais. A liberdade aqui apresentada refere-se a uma fuga do cotidiano e a percepção do “mundo alternativo” como um local despojamento de padrões sociais. O conforto também terá essa relação com a liberdade dos movimentos e expressão. Dentro dos critérios que estamos trabalhando temos: Modelagem – a preferência por uma modelagem ampla tanto no masculino como no feminino serão frequentes. Na entrevista 04, a entrevistada refere-se às roupas usadas no desfiles e as dificuldades vividas. “Porque a roupa nem sempre é confortável, pra quem toca o instrumento que eu toco. Pra quem toca alfaia, as roupas da gente são terríveis. Desse ano, elas são muito... Cheias de coisa, cheias de acessórios, roupa pesada.” (Entrevista 03, linhas 88 a 91) Materiais – mais uma vez veremos a presença do algodão, mas neste caso focado no conforto que esta matéria-prima proporciona em contato com a pele e a facilidade que este material tem em ser refrescante no clima tropical. A entrevistada 02 narra sua preferência ao vestir quando indagada sobre o que veste além do ambiente do maracatu. Nas peças citadas, a presença do algodão é a base dessa produção. “Sinceramente, é muito roupinha de domingo de tarde. Bermuda, camiseta. Bermuda, camiseta. É... sandália também.”(entrevista 02, linhas 178 a 180). Composição – não veremos superposição de peças presentes neste grupo. A simplicidade em peças únicas como saia e blusa para o feminino, ou calças e camisas para os meninos, será uma constante. Vejamos na fala do entrevistado 04: “Às vezes eu ia sempre com a mesma bermuda, de chinela havaiana, e só mudava a blusa.” (Entrevista 08, linhas 152 a 154) 90 6.10.4 O Novo – Mangue Boy Ícone 04 - Mangue Boy. Fonte Mangue Bats – Tipos do Acaso – Sebrae/PE - 2003 Descritivo do ícone – nome dado aos integrantes masculinos do movimento Mangue Beat, é o grande consumidor dos frutos deste movimento. Criador e mídia de uma nova estética, tem seu pensamento voltado para o futuro, mas com conceitos e referências históricas e culturais. Antenado assim como as parabólicas14, busca sempre a inovação, seja musical ou tecnológica. Nega o sexo virtual e revira constantemente o seu baú de memórias refazendo a cena cultural ao seu redor. Similaridades com categoria analítica – o desejo de experimentação é o grande elo entre este ícone e a categoria proposta. A busca pelo novo seja em qual for o seguimento lhe dá um caráter cosmopolita, que lhe faz reconhecer o novo e o traduzi-lo para seu tempo, espaço e cultura. Essa é uma das características dos nossos entrevistados. Em muitos casos, a curiosidade e a busca por este novo foram responsáveis pela chegada a te as escolas de percussão e maracatus. Como já vimos acima, este “novo” não tem a mesma lógica construída por McCraken (2003) em uma nova forma de perceber valores e, consequentemente, de consumir que era 14 A antena parabólica é um dos símbolos do movimento Mangue Beat. Seu fundamento está na citação de Chico Science sobre uma antena parabólica fincada na lama. 91 efetivamente novo. Mas sim, uma busca por algo que ainda não é comum, mesmo que este já tenha um longo tempo de vida, como é o caso do maracatu. Característica do produto de moda – como descrito também, o novo aqui materializado no mangue boy terá uma referência do passado; onde novas tecnologias são mídias dessa relação. Assim, referências vintage15 serão frequentes. Este grupo se alimentará de uma memória afetiva. 6.10.5 Hedonismo – Baiana Ícone 05 - Baiana Eduardo Maciel tendo como base a fonte Mangue Bats, 2010 Descritivo do ícone – personagem de celebração da alegria no cortejo, está sempre adornada com brilhos e balangandãs. Com uma postura altiva, tem o prazer de dançar em nome do rei e rainha coroados do seu maracatu. Similaridades com categoria analítica – buscando o prazer pessoal em fazer parte, seus desejos de consumo são hedônicos, pois a vivência no grupo e a construção de sua história não podem ser transferidas para um terceiro. Não existe sentimento de culpa ou de egoísmo presente, apenas a certeza de um consumo por prazer. 15 Forma de consumo onde peças de roupa do passado, ou referências destas peças são utilizadas no presente ou servem de base para criadores. 92 Característica do produto de moda – mais uma vez focados na diferença que integra, este categoria carregará consigo a originalidade e customização no consumo de moda. O nosso entrevistado tem a percepção que ele consome de forma diferenciada dos outros elementos do seu grupo. Falando especificamente sobre as baianas, temos na entrevista 03 uma referência que sintetiza essa forma de consumo. Na narrativa quanto perguntada sobre o figurino dos batuqueiros no maracatu, temos a seguinte resposta: “E usa umas roupas mais sisudas, as baianas que só fazem a parte que é uma coisa muito bonita, visualmente falando são muito melhores.” (Entrevista 03, linhas 78 a 80) Quanto aos critérios de Maciel e Miranda (2008) aqui trabalhados, podemos relacionar: Composição – fica claro na narrativa da entrevista 02 o desejo de um consumo único e exclusivo. Pois fará uso da customização para que sua camiseta lhe integre ao grupo e ao mesmo tempo não seja massificada. Contextualizando o trecho, a entrevistada é perguntada sobre como é o figurino das apresentações de sua escola de percussão. “Então acho que de uns dois anos pra cá foi só camiseta. Que no caso eu, eu customizei, mandei de uma camiseta grande, ampla, uma T-shirt, eu fiz uma regatinha, até pra ficar mais bonitinha, com uma saia lisa, mas aí o adereço principal que fez, foi pra cabeça.” (Entrevista 02, linhas 212 a 216) 93 6.10,6 Referência Cultural – Caboclo de Lança Ícone 06 – Caboclo de Lança - Fonte Mangue Bats – Tipos do Acaso – Sebrae/PE - 2003 Descritivo do ícone – assim como um soldado, este personagem tem a função de abrir os caminhos para o cortejo e guardar a sua corte. Característico do maracatu rural, não tão comum na região metropolitana das cidades do Recife e Olinda, o caboclo de lança se tornou nos últimos 10 anos uma referência da cultura pernambucana. Uma espécie de guardião desta cultura. Similaridades com categoria analítica – como o descritivo ícone apresenta, por ser percebido como um guardião da cultura, sua similaridade será imediata. Mesmo este não fazendo parte do maracatu de baque solto, espaço onde não realizamos nossa pesquisa de campo, seu reconhecimento como guardião e percebido nos que compuseram o nosso corpus de pesquisa. Característica do produto de moda – elementos da cultura pernambucana estarão presentes em estampas ou em acessórios para este grupo, em ambientes além do maracatu ou das escolas de percussão. Com relação a materiais, vimos em categorias anteriores como a chita, matéria-prima tão associada ao universo folclórico, passou a fazer parte da matéria prima destas roupas. Da mesma forma que nomes de estilistas pernambucanos e grifes especializadas em trabalhar a referência cultural foram citadas. Vejamos o que falou a entrevistada 04: 94 “Eu fiquei mais aberta às influências, a Cabra Alada que tem João Neto como estilista.”(Entrevista 04, linha 183) Ou ainda na narrativa da entrevistada 02, quando perguntada sobre onde comprava suas roupas. Esta se referiu em especial a suas saias e a relação que estas têm com os movimentos para tocar abê. “Mas lá mesmo tem umas diferentes, tem umas bonitas. Outras que eu vi, eu não comprei, mas eu vi que tinha uma, uma, uma padronagem interessante, que era bem grande, eu vi umas da... Madame Surtô.”(Entrevista 02, linhas 107 a 109) 6.10.7 Beleza – Mangue Girl Ícone 07 – Mangue Girl - Fonte Mangue Bats – Tipos do Acaso – Sebrae/PE - 2003 Descritivo do ícone – assim como o Mangue Boy, este personagem também é fruto do universo mangue. Antenado às questões culturais, faz uso desses elementos simples no seu vestir, construindo uma sensualidade brejeira admirada e desejada que migrará para além deste movimento. Similaridades com categoria analítica – a busca pelo belo é a tônica desta similaridade. Além disso, este belo não segue padrões impostos pela mídia, e busca na cultura valores que possam ser expressados no seu vestir e na construção desse belo. 95 Característica do produto de moda – o produto de moda com base nesta característica deve prezar pela simplicidade. Isso não significara dizer o mesmo que uniformidade ou pasteurização. Este simples, refletido em linhas e na ausência do exagero, será revelador de uma sensualidade e de um desejo de ser percebido como atraente. Nunca a vulgaridade de peças ajustadas ao corpo ou de comprimentos micro serão percebidas como algo positivo. Modelagem – apesar de amplas, como já visto na nossa análise sobre liberdade, a sensualidade estará presente em ombros a mostra das mulheres, com o constante uso da saia reforçando a questão do gênero. Mesmo se referindo às aulas de percussão, a entrevistada 02 nos dá um exemplo que ilustra esta análise. Eu acho que as, as poucas vezes que eu toquei alfaia, tem que ser uma roupa confortável que não atrapalhe. Pra... Por causa do tambor, do instrumento. Mas Abê é divertido que seja uma saia ... Porque Abê é um instrumento mais feminino. Então que seja uma saia, que você, que a pessoa quando tenha que dançar, faça todo aquele movimento de rodar, fica mais bonito. (Entrevista 02, linhas 87 a 91) Gestual – a expressão de prazer e alegria constante no subgrupo estudado, será um elo com a beleza desejada nesta categoria. Como o corpo não será uma mídia direta desta sensualidade, o conhecimento e história construídos no maracatu farão esse papel de sedução. Outra característica estará presente na associação da virilidade masculina dos batuqueiros, na qual a força será um elemento na construção desse belo. Vale lembrar a narrativa da nossa entrevistada 04, quando se refere ao seu professor de percussão e ao seu marido. “Assim, a forma de Jorge, por exemplo, tocar, eu... É uma forma assim... Encantadora. Eu digo olhe, Chico, assim... Até hoje eu digo Jorge tocando, é impressionante! Como ele toca bem. Assim, eu digo, tem duas pessoas que eu acho que tocam muito bem, além de Chico né, claro.! Eu digo é Jorge, e um menino lá da Nação Porto Rico. Que eles, eles se destacam assim, pelo charme, pela, acho que assim até a virilidade.” (Entrevista 04, linhas 252 a 257) 96 6.10.8 Raridade – O Rei Ícone 08 – O Rei Eduardo Maciel tendo como base a fonte Mangue Bats, 2010 Descritivo do ícone – representante da nobreza exilado em terras brasileiras, estes personagem representa os reis trazidos durante o período da escravidão. Sua masculinidade e força são vistos como um exemplo de perseverança e valentia. Similaridades com categoria analítica – por ser um membro da nobreza, este ícone já é por si só um elemento raro. Vem de uma linhagem nobre, e mesmo distante da sua corte, carrega consigo esta realeza em lugares muito distantes de sua terra natal. Em nossa categoria analítica essa relação se dará na não massificação deste consumo e em características de único que estes ambientes venham a transmitir. Característica do produto de moda – a raridade aqui tratada tem características que vão além do exclusivo, pois esse raro é compartilhado com o grupo. Pensando assim, não encontramos nos critérios criados por Maciel e Miranda (2008) uma relação com os itens criados. Esta característica de consumo de moda estará presente no ambiente raro e inovador da apresentação deste produto, na relação direta com a referência compartilhada pelos membros deste grupo, na memória afetiva que este produto possa transportar. Concluindo nossa análise, buscamos na construção de um gráfico sintetizarmos as características aqui encontradas. Esta síntese tem a função de nos dar uma visão holística 97 deste universo e de como as categorias de nobreza, pertencimento, liberdade, o novo, hedonismo, referência cultural, beleza e raridade estão interligadas e servem de suporte e apoio entre si. Gráfico 01 – Gráfico de inter-relação das categorias analíticas Eduardo Maciel tendo como base a fonte Mangue Bats, 2010 Cada categoria aqui apresentada nada mais é que uma faceta da construção da identidade do subrgrupo estudado. Cada uma delas nos revela nortes a seguir na construção de produtos de moda focados para o nosso corpus. Estas expressam crenças vividas no espaço das escolas de percussão e maracatus, transformadas em uma forma de consumir e consequentemente de construção de identidade deste grupo. Quando focamos no consumo de moda, percebemos que o espaço do “alternativo” é um ambiente de liberdade. Um ambiente onde a fuga dos padrões formais da sociedade será a base para este subgrupo; estar inserido neste trará a sensação de pleno de prazer de pertencer. Afinal, sua permanência neste espaço é extremamente voluntária; num local onde regras não 98 serão vistas como imposições e sim como necessárias para a manutenção deste universo. Uma relação entre o sacro e o profano, numa construção onde o consumo + comportamento de consumo + movimento cultural será a fórmula dessa moda alternativa. A forma de vestir, nada mais será que um linguagem complexa para informar quem somos ou acreditamos ser. Essa complexidade se tornará simples, se no memento em que construímos cuidadosamente nossas mensagens tivermos o domínio dos códigos que desejamos comunicar. Assim, a moda como instrumento de integração nos grupos alternativos será mais que um cartão de visitas, mas sim uma mídia das verdades compartilhadas por este grupo. Nesta constante relação de integração entre as categorias analíticas aqui apresentadas, relembramos o pensamento de Embacher (1999) e McCracken (2003), segundo o qual a construção da identidade de moda de subgrupos não terá uma formação isolada. Sua realidade estará fundamentada nas relações dos membros deste grupo com suas crenças e valores construídos e compartilhados, codificados em objetos carregados de significados e chancelado por esse grupo. 99 7. Considerações Finais Viajei, me liguei fui ali e voltei sob o signo do som invocando os deuses ancestrais dos pensamentos espirais, maiorais das almas analógicas às auras digitais Voyager - O ouvido em outra dimensão Nação Zumbi Mergulhando neste subgrupo cultural descobrimos que bater tambor pode ser mais do que uma forma de expressão, e sim uma forma de reconstrução cultural. Para os seus integrantes, fazer parte do maracatu ou de uma escola de percussão implica em uma troca, não consciente a princípio, entre o lazer descompromissado e o prazer de uma disciplina rígida. Dias, horários, prazos, sem falar no esforço físico de tocas alguns destes instrumentos, que literalmente farão a mão de seus batuqueiros sangrar. Como em uma das nossas conversas com membros do grupo, espantou-nos o depoimento sobre os calos frutos do treino e da dificuldade que este membro tinha após as aulas em usar o computador em seu ambiente de trabalho por conta destes ferimentos. Mesmo assim, exibia suas cicatrizes como um troféu por um trabalho bem feito e por se sentir parte dele. Mas... que fascínio é esse? Que lazer é esse que vira uma obrigação? E como todo esse universo responderá a nossa pergunta de pesquisa? A resposta base dessa questão foi a nosso ver é a busca por uma verdade. Uma verdade de crença e legitimidade mesmo dos que não são “filhos do Pernambuco”, como assim falava o paulistano com seu sotaque de megalópole. Dessa verdade brotaram peças da construção de valores e signos de uma identidade com um sotaque e ritmo próprios. Muito mais sotaque do que ritmo, afinal com o que mais nos deparamos neste mergulho foram diferentes sotaques. Cariocas, paulistas, alemães, cearenses, mineiros, entre outros cantos deste mundo globalizado, foram fisgados pelo som de abês, chequerês, alfaias, caixas e agogôs; que nos finais de semana povoam as tardes do bairro histórico do Recife e da cidade alta de Olinda. Muitos são guiados por histórias bem contadas por amigos e conhecidos que já fazem parte deste universo, ou simplesmente se encantaram pela plástica e sonoridade da batucada. 100 Diferentes também foram as formações, profissões e desejos dos que fazem o som do tambor. Nestas diferenças dois extremos estiveram presentes com uma certa constância: os que trabalham com a arte e a diversão (atores, cantores, produtores culturais, arte educadores, publicitários e designers); e num outro extremo os que trabalham com burocracia e números (advogados, engenheiros, matemáticos, médicos e pesquisadores). Estes extremos, na hora de bater tambor, não só falavam, como também tocavam a mesma língua. Uma língua que até então para nossos ouvidos não treinados batia numa só pulsação. Depois de conviver e viver momentos com estes batedores de tambor ficou claro como cada tambor tem a sua voz e o seu texto. Numa batucada, seja num ensaio ou na rua, um verdadeiro diálogo é realizado entres vozes saídas da força e graça desses músicos. Mas este diálogo tem uma voz própria quando nos referimos às Nações de maracatu. Ouvidos apurado são capazes de identificar apenas pela apresentação de um batuqueiro qual sua Nação de origem e/ou formação. Tantas diferenças e tantas similaridades. Uma destas diferenças estava presente na formação social destes grupos e da influência exercida nas comunidades simples onde os maracatus de raiz estão. Nos relatos trabalhados, a preocupação em não agredir o espaço sempre foi uma constante por conta dos nossos entrevistados que não são integrantes destas comunidades; seja na compra de um automóvel ou na mesma bermuda surrada que se repetia nos ensaios para não chamar a atenção. Na verdade, o que víamos era muito mais um respeito e cuidado em não macular uma cultura rara, bela, nobre, de onde estes estrangeiros gostariam de se tornar de alguma forma nativos. Outro ponto curioso neste trabalho foi a disponibilidade que sempre tivemos na construção do nosso corpus. Falar sobre o maracatu foi, em todos os casos, um prazer para nossos entrevistados. Apesar das agendas apertadas, domingos à tarde foram trocados por nossos encontros; intervalos entre o horário do almoço e o retorno para o trabalho estiveram sempre possíveis, sem falar nas paradas no final do expediente ou até mesmo após as compras de supermercado. Sempre houve um interesse e uma vontade de expressar sua história e o seu pertencimento no batuque. Expressar-se para este grupo não se resumia a oralidade e gestos simples de expressão. Braços e mãos se moveram desinibidamente no espaço replicando movimentos da dança, volumes de figurino e silhueta de corpos. Em uma das nossas entrevistas, após um dia de trabalho, um dos nossos entrevistados, durante sua explicação sobre os tempos melódicos 101 deste ritmo, levantou-se em seu escritório e começou a dançar numa coreografia que imitava a dança das mulheres africanas, com seus filhos atados em suas costas. Toda essa encenação tinha apenas um propósito: se fazer compreender em sua plenitude. Mais uma vez focando em nosso problema de pesquisa, observamos que as diferenças seriam o grande elo e conexão destes grupos. A integração e formada pelas diferenças existentes. Diante desta possibilidade, como seria capaz identificar a construção de suas identidades? Num universo pasteurizado da pós-globalização, encontrar algo raro nos transporta para uma outra dimensão. Nesta dimensão distinta e exclusiva, somos diferentes da grande massa e buscamos pares que compartilhem as mensagens que esse raro me transmite e encanta. Este raro, por ser raro, já será possuidor de uma beleza única. Estar em contato com esta beleza me transforma em belo, e todo belo sempre será desejado, afinal a saudade dos arquétipos ainda está presente em nossos dias. Mas se sou um admirador do raro, esta minha beleza não será massificada como uma flor de estufa presente nas grandes e pequenas floriculturas. A beleza desta flor carece de um gosto apurado, de um conhecimento de origem, de uma referência cultural para ser apreciada. Se não faço parte deste universo, para compreender essa referência cultural preciso de um mergulho profundo em buscar na origem de suas histórias e costumes para que estes nos construam como novos nativos. Este conhecimento e experiência vivida pertencerão a mim não de uma forma egoísta, mas sim como um prazer hedônico que não pode ser comprado para alguém. Faz-se necessário um desejo deste conhecimento, um encantamento por este novo que se apresenta. Só assim sua compreensão será plena e sua beleza reconhecida. O novo traz com a sua chegada o desafio de enfrentá-lo. O desafio de não compreendê-lo e por ele ser engolido. Mas, por outro lado, vivê-lo e experimentá-lo será fascinante pelos mesmos desafios e medos descritos aqui. Seremos livres para aceitá-lo ou não, buscar compreendê-lo ou fechar nossos ouvidos e olhos esperando que ele se vá e todo volte a ser como antes. Mas essa liberdade de escolha pode ser um portal para outros universos bem mais prazerosos dos que habitamos hoje. Simplesmente fugir do lugar comum. 102 Se tenho esta liberdade de escolhas e caminhos diferentes para seguir, o novo será sempre algo que nos atrai e completa nossa identidade, nos integrando aos que pensam e procuram por este novo. Nos fazendo pertencer a um novo grupo mesmo sendo diferente. Pertencemos por compartilhar gostos e crenças comuns. Sermos membro de uma mesma subcultura, e mais uma vez nossas diferenças nos integram. Para o resto do mundo, reconheceremos nossa nobreza perante estes que não têm uma integração consciente, que são consumidores sem conteúdo, que não sabem ao certo o porquê de ser ou estar. A nobreza que nos referimos nada mais será do que nossa vivência cultural nos tornando um erudito popular, onde o conhecimento não se resume a academia, mas sim a vivência no ambiente onde essa cultura foi construída e é permanentemente recriada. Diante da possibilidade poética aqui apresentada, percebemos que nosso corpus descreve em toda a sua trajetória uma cadeia dinâmica e em constate movimento. Características de consumo aqui apresentadas, estão interligadas e funcionam como um moto contínuo onde cada uma se apóia e ao mesmo tempo será alicerce de uma outra. Assim como no desfile do maracatu cada categoria analítica vista por nós, está em sintonia e em justificativa de uma próxima e assim por diante. Esta dinâmica anuncia que a construção da identidade deste grupo está repleta de vida. A construção da identidade de membros do movimento cultural, no nosso caso integrantes de escolas de percussão ou maracatus da cidade de Recife e Olinda, pode nos apontar que o consumo será sempre voltado para uma crença no universo construído e vivido por seus integrantes. Cores, formas e texturas da sua moda estarão repletas de verdades deste grupo. Seu consumo será fundamentado na consciência. As escolhas de produtos de moda não buscará o novo pelo novo, mas o novo com carga e emoção, numa história compartilhada e admirada pelos seus pares. Esta identidade tem na posse de produtos de moda frases de suas mensagens de pertencimento e integração. Estas serão terão o grande desafio de serem diversas e únicas. É o que aqui chamamos de unidade na diversidade. O meu será diferente do seu, mas o nosso será próximo e bastante distante dos outros grupos. Distinguirei-me na minha unidade associada à diversidade do meu grupo. Enquanto para muitos vestir será apenas copiar padrões 103 massificados do mercado. Para o nosso corpus será contar uma história de passado em constante construção, de onde seus integrantes também fazem parte. Materializando o que encontramos, podemos traduzir esta construção da identidade do batedores de tambor, será composta por matéria-prima que preze pelo natural. As fibras naturais como o algodão e a seda serão a materialidade preferida por esse grupo. Isso se dá pelo desejo de ter uma peça confortável e ao mesmo tempo carregada de informações culturais vividas na sua trajetória. Os volumes são fartos e cheios de sensualidade. Saias rodadas e ombros a mostra, despertaram uma sensualidade que fugirá do vulgar em busca de uma beleza que não é massificada, mas sim com uma experiência do ambiente transportada para o belo que é a verdade. Esta materialização caminhará ainda pelas cores que são em alguns momentos terrosas como os terreiros desse maracatu, ou coloridas como os estandartes e as toalhas e cortinas de chitas de mesmo ambiente. Nesta busca pela referência cultural, veremos a valorização de matérias simples transformados em artigo de luxo, como é o caso da chita que migrará das toalhas de mesa e cortinas, para peças do vestuário ou detalhes de acessórios. Este “raro” fruto da vivência em uma corte cultural compartilhado entre seus súditos buscará na exclusividade de peças uma distinção. A customização e forte interpretação da personalidade de quem é mídia desses trajes fará com que a unidade seja percebida nas diferenças. Assim como as Antenas parabólicas símbolo do movimento Mangue Beat e a sua conexão com o mundo, nosso consumidor buscará, antagonicamente, uma convivência entre a tecnologia em acabamentos e modelagens convivendo com natural preservado. Trabalhando a dinâmica presente no paradigma escolhido para este trabalho, pelo qual não são os fatores mas sim como estes interagem; trazemos para apreciação a possibilidade de que futuras pesquisas venham a buscar, em outros grupo culturais alternativas, como se constroem suas categorias analíticas e se estas apresentam similaridades com as aqui trabalhadas. Na cultura pernambucana ao nos depararmos com algo que não entendemos costumamos perguntar em tom de estranhamento: Mas... Que danado é isso?! E a resposta 104 para nossa curiosidade cientifica que foi: entender esse universo do consumo de identidade de moda que comunica pertencimento a um grupo alternativo baseado em movimento cultural. Sabemos que tempos e espaços são fatores de condução de comportamento de consumo, e por essa certeza acreditamos que essas novas possibilidade de análise aqui propostas venham a contribuir para compreendermos a construção da identidade de outros grupos culturais construídas por meio do consumo. 105 Referências ARNOULD, Eric J.; THOMPSON, Craig J. Consumer culture theory (CCT): Twentiy years of research. Journal of Consumer Research. p. 868-882, 2005. BANISTER, Emma; HOGG K, Margaret. The Structure and Transfer of Cultural Meaning: A Study of Young Consumers and Pop Music. Advances in Consumer Research, v.27, 2000. BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin. Cultura, Consumo e Identidade. Rio de Janeiro: FGV, 2006. BARNARD, Malcolm. Moda e Comunicação. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade do Consumo. São Paulo: Edições 70, 2000. ______. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perceptiva, 1973. BAUER, Martin W.; GASKELL, George. 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