ANÁLISE DO CASO CLÍNICO DO PEQUENO HANS A PARTIR DA TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA Renan Martimiano Vieira Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto ANÁLISE DO CASO CLÍNICO DO PEQUENO HANS A PARTIR DA TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA Renan Martimiano Vieira 1 Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto2 Resumo O presente trabalho tem a intenção de discutir alguns dos conceitos propostos por Laplanche que embasam a sua teoria da sedução generalizada. Para tanto, buscaremos analisar tais conceitos no caso clínico do pequeno Hans (1909/1996), com o intuito de averiguar as possibilidades teóricas a serem desenvolvidas a partir deste. Propomos discutir a proposta de Laplanche acerca do recalcamento em suas variadas formas: recalcamento originário, recalcamento propriamente dito e o retorno do recalcado, e iremos correlacionar estes conceitos com a proposta de Freud acerca do tema. O conceito de recalcamento é tão importante nos constructos teóricos da psicanálise que a princípio ele era correspondente ao conceito de inconsciente. Sendo que este último só é apresentado sistematicamente em 1915 com a publicação de “O inconsciente”. Laplanche (1981/1992) propõe que, para melhor compreendermos o conceito de recalcamento é necessário entendermos o mecanismo do trauma em “dois tempos” como um evento inicial e contemporâneo desses primeiros recalcamentos. Ao analisarmos o caso do pequeno Hans (1909/1996) podemos ilustrar e esclarecer alguns conceitos se pensarmos na teoria do trauma em dois tempos, uma vez que ao mesmo tempo em que o garoto tenta seduzir sua mãe, ele também é “seduzido”. Há passagens no caso clínico que evidenciam essa dupla sedução, que pode ser confirmada no cuidado da mãe com a criança, momento em que muitas vezes há um contato entre o cuidador e as partes genitais da criança. Outra suposição que surge é que Hans ainda não sofreu o grande recalcamento (pós-edípico), levando-nos a pensar que haveria uma maior facilidade de crianças entrarem em “contato” com conteúdos inconscientes. Sabemos que as crianças em particular, conseguem conviver com ideias extremamente opostas e ambíguas de uma maneira “pacífica”. Vemos que a contradição de pensamentos é mais evidente, o que pode ser comparado ao modo de funcionamento inconsciente denominado de processo primário. Há de se pensar que a clivagem operada pelo recalcamento originário no caso das crianças ainda não está totalmente completa, possibilitando assim a circulação de certos conteúdos entre as instâncias psíquicas, o que corrobora a hipótese de Laplanche (1981/1992) que propõe que o recalque originário não é nada mais que um momento primeiro e fundante de um processo que ocorre ao longo de nossas vidas. 1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade Estadual de Maringá. Professor doutor da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade Estadual de Maringá. 2 2 Palavras-chave: Psicanálise, Teoria da sedução generalizada, recalcamento, pequeno Hans, inconsciente. Abstract This paper intends to discuss some of the concepts proposed by Laplanche that supports his theory of generalized seduction. To this end, we seek to analyze these concepts in the clinical case of Little Hans (1909/1996) with the aim of investigating the theoretical possibilities to be developed from there. We propose to discuss Laplanche’s proposal about repression in its various forms: primal repression, secondary repression and the return of the repressed; and we correlate these concepts with Freud’s proposal on the subject. The concept of repression is so important in the theoretical constructs of psychoanalysis that at first it was a correspondent for the concept of unconscious. Whereas the latter would only be systematically presented by Freud in 1915 with the publication of "The Unconscious. Laplanche (1981/1992) proposes that, to better understand the concept of repression, it is necessary to understand the mechanism of trauma in "two times", as an initial and contemporary event of these early repressions. When we analyze the case of Little Hans (1909/1996) , some concepts can be illustrated and clarified if we think of trauma theory in two times, since, as the child tries to seduce his mother, he is also "seduced". There are passages in the clinical case that shows this double seduction, which can be confirmed in the mother’s care for the child, in which there is often a contact between the caregiver and the child's genitals. Another question that appears is that Hans had not yet suffered the great repression (post-oedipal); leading us to think that it would be easier for children to get in "contact" with unconscious’ contents. We know that children in particular, live with extremely opposing and ambiguous ideas in a "peaceful" way. We notice that the contradiction of thoughts is more evident among them, as they can be compared to the unconscious’ operating mode called primary process. It may be thought that the cleavage operated by primal repression in the case of children is not yet fully complete, allowing the movement of certain content among the psychic, which corroborates the Laplanche’s hypothesis (1981/1992) which proposes that the primal repression is nothing more than a first and founding moment of a process that runs throughout our entire lives. Keywords: Psychoanalysis; Theory of Hans; unconscious. generalized seduction; repression; little 3 Introdução O presente trabalho pretende fazer uma discussão acerca do conceito de recalcamento proposto por Freud. Abordaremos, então, as noções de recalcamento originário, recalcamento propriamente dito e o retorno do recalcado com o intuito de melhor compreendermos tais conceitos. Para tanto, recorreremos ao caso clínico do pequeno Hans (1909/1996), bem como as formulações teóricas de Jean Laplanche, um dos mais importantes psicanalistas de nossa época, criador da Teoria da Sedução Generalizada - TSG (1987/1992). Um texto base para uma melhor compreensão destes conceitos é o texto de Freud denominado “Repressão” 3. O autor propõe que o recalcamento é uma defesa que não existe em nós desde os primeiros anos de vida, mas este ocorre quando há uma cisão marcante entre as atividades mentais inconscientes e conscientes. Sendo que em sua essência o recalcamento atua enquanto um agente que afasta determinados conteúdos do consciente, ou seja, busca manter inconsciente aquilo que em um dado momento poderá gerar determinado conflito entre o eu e o desejo (1915/1996). Desta maneira o autor propõe uma diferenciação de duas fases na vida anímica: o recalcamento originário e o recalcamento propriamente dito. Sendo que o primeiro consiste em não permitir que o representante pulsional se torne consciente. Já o segundo relaciona-se às cadeias de pensamento / associativas (idéias) que entraram em contato com o representante recalcado, e que por gerarem desprazer sofrem o mesmo destino daquilo que foi primeiramente recalcado. Por esse motivo o recalcamento propriamente dito é considerado como uma pressão posterior (Freud, 1915/1996). O recalcamento originário é considerado, então, como o fundador das primeiras formações inconscientes, deste modo, o seu mecanismo não pode ser explicado através de um investimento do inconsciente – pois este ainda não está constituído – e nem através de um desinvestimento do sistema pré-consciente/consciente, podendo, então, ser explicado somente pelo mecanismo do contra-investimento. Porém, para que haja um recalcamento propriamente dito, há de existir a priori um recalcamento originário. Concebemos o recalcamento originário enquanto um fundante do psiquismo em seu aspecto tópico. Freud, no entanto, não deixa claro de onde provém este contrainvestimento. Como explicar o mecanismo de contra-investimento para a formação do 3 Nota: na presente tradução das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud o conceito de repressão se equivale ao conceito de recalcamento, portanto em nosso trabalho utilizaremos o termo recalcamento proposto por Laplanche e Pontalis (2001). O termo repressão será mantido apenas nas citações. 4 recalcamento originário, se este mecanismo, segundo Laplanche (1981/1992), é um processo do sistema pré-consciente/consciente que no momento ainda não foi fundado? Desta maneira, há que se pensar no suposto contra-investimento enquanto algo que tenha sua origem em experiências primitivas muito fortes. Segundo Freud (1915/1996) as causas imediatas que produzem os recalques originários podem advir de fatores quantitativos, que possuem uma força excessiva da excitação e a efração do para-excitações. Com Laplanche (1981/1992) sabemos que o recalcamento originário é simultaneamente, uma primeira inscrição e uma primeira fixação, desta maneira compreende-se que no desenvolvimento psíquico o indivíduo permaneceria bloqueado em dado momento e uma determinada lembrança ficaria fixada a uma representação, tornando-se assim uma verdadeira moção e não apenas força. De acordo com Laplanche (1981/1992), o recalcamento originário por vezes é considerado algo mitológico ou transcendental, devido ao seu caráter “lógico” que só encontra sua manifestação ao pensarmos no recalcamento propriamente dito. Pois na análise de um recalcamento secundário é evidente que há uma espécie de atração para baixo de conteúdos inconscientes já existentes (recalcamento originário). Freud (1915/1996) complementa que, para o conceito de recalcamento ficar mais completo, teríamos que supor que antes da organização anímica alcançar a fase de cisão, a tarefa de rechaçar os impulsos pulsionais seria de responsabilidade de outros mecanismos, às quais as pulsões podem estar sujeitas – a saber: a reversão ao oposto ou o retorno em direção ao próprio eu (self) do sujeito. Desta forma, para o autor, antes do recalcamento originário entrar em ação e fundar a cisão anímica, existem dois processos anteriores a ele. Sabe-se que Freud, também, aborda a questão do recalcamento em seu texto “A dissolução do Complexo de Édipo” (1924/1996). Explicando que com o declínio da fase edípica há um grande recalcamento que “enterrará” a trama edípica estabelecida entre os pais e a criança de uma forma duradoura. Entretanto, se este recalcamento for bem sucedido o desenvolvimento ulterior da criança será considerado normal e caso haja algum comprometimento do recalcamento haverá a possibilidade de um desenvolvimento patogênico futuramente. Nota-se que, ao abordarmos o recalcamento após o declínio do complexo de Édipo, estamos falando do recalcamento propriamente dito. Buscaremos exemplificar os conceitos apresentados, através de algumas passagens retiradas do caso clínico do pequeno Hans (1909/1996). Supõe-se que Hans 5 no momento de sua análise ainda não completou o que chamamos de grande recalcamento. Tal suposição pode ser explicada pelo fato de que ele ainda manifestava sentimentos totalmente opostos convivendo pacificamente um ao lado do outro, como exemplo podemos apresentar o sentimento de amor e ódio sustentado em relação a seu pai. Estes sentimentos se tornam extremamente conflitantes e confusos para a criança. De acordo com Freud (1909/1996): No adulto esses pares de emoções contrárias não se tornam, via de regra, simultaneamente conscientes, exceto nos clímaxes de amor apaixonado; em outros até que um deles consiga manter o outro completamente fora de vista. Mas nas crianças eles podem existir pacificamente lado a lado, por um tempo bem considerável (Freud, 1909/1996, p.104). Evidentemente Hans se encontra na fase de desenvolvimento psíquico que em psicanálise denominamos de fase fálica. Podemos supor também, que ele está vivendo claramente as vicissitudes advindas do complexo de Édipo e do complexo de castração (processos que são considerados por Laplanche como assistentes de tradução). Sendo que estes momentos do desenvolvimento psíquico são tão contundentes que desencadearão o surgimento dos sintomas do nosso pequeno Hans, a sua fobia de cavalos. Sabe-se que Hans tinha quatro anos e nove meses quando começou a manifestar os primeiros sintomas de sua angústia, bem como o começo de sua fobia. Neste momento a criança está vivendo o ápice de afeição por sua mãe, sendo que as duas tentativas de seduzi-la comprovam esta teoria. Esse aumento da atração do garoto para com sua mãe se transforma em angústia, que rompe com o conteúdo recalcado. Ainda não sabemos de onde pode haver-se originado o ímpeto para o recalcamento. Talvez fosse apenas conseqüência da intensidade das emoções da criança, que ficara acima da sua capacidade de controle; ou talvez também estivessem em ação outras forças que ainda não tenhamos identificado (Freud, 1909/1996, p.31). Aparentemente o pequeno Hans é tomado por conteúdos catexizados que invadem a sua consciência e lhe provocam desprazer, sendo desta forma, então, 6 recalcados. O que é apontado como o ímpeto para o recalcamento, supostamente advém do que consideramos o recalcamento originário, fazendo com que as ideias/representantes que entrem em “contato” com conteúdos traumatizantes sejam também recalcados (recalcamento propriamente dito). Laplanche (1981/1992) assinala que para melhor compreendermos o conceito de recalcamento, é necessário entendermos o mecanismo do trauma em “dois tempos”. Pois, este é considerado como um evento primário e contemporâneo desses primeiros recalcamentos. Segundo o autor: O que é importante, para o nosso propósito, é a noção de um “antes da clivagem”, a qual não seria puramente mítica, ou de uma pré-clivagem, ou de um estado sem inconsciente. Estado sem inconsciente, do qual os primeiros anos da infância poderiam fornecer referência (Laplanche, 1981/1992, p. 62). Neste estado de “uma certa” presença somos invadidos por representações, vindas a partir do mundo dos adultos, que não nos são possíveis de traduzir neste momento (mensagens enigmáticas), mas que permanecem implantadas e inseridas em nosso psiquismo. Sendo a primeira e a mais importante dessas representações, evidentemente, o seio. Tais representações possivelmente se tornarão os resquícios inconscientes, advindos do recalcamento originário, que Laplanche denominou como objetos fonte da pulsão (Laplanche, 1981/1992). Essa relação entre a criança e o adulto é denominada pelo autor como a Situação Antropológica Fundamental - SAF. Compreendida como o “des-encontro” entre o infante e o adulto. Adulto este, que é dotado de um inconsciente (essencialmente sexual) com resíduos de mensagens enigmáticas de sua própria infância, que entra em contato com a criança que, por sua vez, não tem ativadores hormonais da sexualidade e que, portanto, não tem, a princípio, fantasmas sexuais. De acordo com Laplanche: A criança diante dele faz apelo ao infantil nele. A relação originária se estabelece, devido a isto, num duplo registro: uma relação vital, aberta, recíproca, que podemos perfeitamente dizer interativa, e uma relação onde está implicado o sexual, onde a interação não ocorre mais, pois a balança é desigual. 7 No ser humano [...] há um sedutor e um seduzido, um desviador e um desviado (1987/1992, p. 111). É a partir deste estágio da vida humana que o autor propõe sua teoria da sedução generalizada, pois este momento demonstra algo que todos nós vivenciamos, portanto algo geral. Esta situação pode ser evidenciada através da teoria do apoio (“étayage”). Esta, segundo Laplanche (1970/1985), ocorre em nosso desenvolvimento psicossexual a partir do momento em que a sexualidade incipiente se apoia em um mecanismo de conservação da vida, ou seja, a criança ao entrar em contato com o seio materno, primeiramente, busca saciar a sua necessidade de alimento, mas em um segundo momento inicia-se também um processo sexual. Pois, paralelamente à alimentação há uma excitação dos lábios e da língua através do mamilo e do leite morno. A teoria do apoio assume um papel de uma “sedução originária” (essencialmente traumática) que, segundo o autor, é o processo que provoca o recalcamento originário. Ainda segundo Laplanche: Pode-se supor que esse investimento sexual, que pode ser considerado perverso no sentido dos Três ensaios de teoria sexual, não é percebido, suspeitado pelo bebê, como fonte deste obscuro questionamento: o que ele quer de mim, além de me aleitar e, no fim das contas, por que ele quer me aleitar? (1987/1992, p. 135). Voltando a Freud, nos é evidente que em seus primeiros trabalhos ele denominou tais representações como sexuais-pré-sexuais, pois a criança neste momento ainda não compreende tal situação enquanto algo sexual. Porém, estas representações, segundo Laplanche (1981/1992), poderiam ser chamadas de “limbos” – pelo fato da cisão entre inconsciente e pré-consciente/consciente ainda não ter sido efetivada – entretanto estas representações em um segundo tempo (Teoria do trauma em “dois tempos”) se apresentam como insuportáveis, pois se tornaram fontes internas e independentes de excitação, que nesse momento se encontram recalcadas. Essas representações (objetos fonte) carregadas de excitação serão responsáveis por desencadear os primeiros momentos do surgimento da pulsão sexual. O autor supõe que o recalcamento originário ocorre em dois tempos: um exógeno que podemos considerar como um evento traumático “em si”, momento que ainda não houve a clivagem, mas que irá inscrever como ferro em brasa os primeiros significantes e representações; e 8 podemos pensar em um segundo tempo onde o trauma se transforma em autotrauma provocando assim o recalcamento (Laplanche, 1981/1992). Retornemos ao caso do pequeno Hans, com a finalidade de apresentar a teoria do trauma em dois tempos. Percebe-se que no decorrer do caso, ao mesmo tempo em que o garoto tenta seduzir sua mãe ele também é “seduzido”. Há passagens que evidenciam essa dupla sedução, que pode ser confirmada no cuidado da mãe com a criança, momento em que muitas vezes há um contato entre o cuidador e as partes genitais da criança. No caso do pequeno Hans, a zona genital foi desde o começo aquela que gerou um prazer mais intenso. Ao pensarmos no desencadeamento do sintoma da criança, podemos supor que está ocorrendo o segundo momento do trauma, desta maneira, concebe-se que as primeiras representações já haviam sido inscritas e que o recalcamento originário já ocorreu. Porém, segundo Laplanche (1981/1992), o recalque originário não é mais que um momento primeiro e fundante de um processo que percorre nossa vida toda. É possível propor também no caso Hans, que com a eclosão de sua doença e durante a análise feita por seu pai, existe certa desconexão entre o que a criança falava e o que ela pensava, havendo então uma pressão dos conteúdos inconscientes sobre a criança. Sendo que o conteúdo de seus pensamentos lhe provocava certo desconforto na sua relação com seus pais. Se pensarmos no sentido tópico dos processos anímicos, vemos que o recalque entre o sistema pré-consciente e inconsciente estava sendo obliterado, o que é comprovado com o desencadeamento do sintoma (Freud, 1909/1996). Em sua análise existia muita coisa que ele mesmo não podia dizer, sendo que seu pai, através da sugestão, lhe apresentou ideias que até então a criança não seria capaz de possuir. Desta maneira, podemos supor que o pai de Hans estava lhe ajudando na tradução das mensagens enigmáticas advindas do processo de recalcamento originário. Uma das questões apresentadas por Freud em seu texto “O Inconsciente” (1915/1996) e retomada por Laplanche no texto “O Inconsciente e o Id”, se relaciona as duas hipóteses do funcionamento psíquico: hipótese tópica (dois registros) e a hipótese funcional. Apresentemos as hipóteses de maneira resumida, segundo Freud: A hipótese tópica compreende que há uma separação topográfica dos sistemas psíquicos em Ics, Pcs e Cs, desta forma, acredita-se que uma idéia possa existir em dois lugares do mecanismo mental, ou seja, pode haver dois registros da mesma idéia, um Pcs/Cs e outro Ics. Já a hipótese funcional compreende que o que ocorre neste processo seria uma 9 mudança de estado meramente funcional, ou seja, a ideia seria “transformada” em outro estado psíquico. Laplanche (1981/1992) apresenta ainda, que a hipótese funcional se mantém ao ser relacionada ao processo de recalcamento. E a hipótese tópica se conserva enquanto compreende o que acontece no processo de retorno do recalcado. Ao trabalharmos com a questão do recalcamento originário e o seu processo que se realiza em dois tempos, podemos considerar que a hipótese tópica nos proporciona uma melhor compreensão acerca desse fenômeno. Pois, em um primeiro momento, as primeiras significações/representantes são implantadas e inscritas no psiquismo enquanto um trauma “em si”. Já em um segundo momento, uma situação vivenciada (assemelhando-se a um insight) pode provocar a recordação traumática, se tornando um autotrauma, sendo recalcada. Desta maneira, há uma inscrição em um momento préclivagem e uma inscrição que provem do recalcamento originário. Porém, Laplanche assinala que: A concepção do recalcamento originário não impõe precisamente a hipótese de uma segunda inscrição, num segundo lugar, das representações recalcadas. Com efeito, antes do recalcamento originário (não é um “antes” no sentido estritamente mítico, sem que por isso seja puramente cronológico), pode-se dizer que existe um único lugar, e é simultaneamente que as primeiras representações são recalcadas e se cria, por conseguinte, o lugar onde elas vão inscrever-se, sobretudo aquelas que irão constituir o núcleo primordial de um id (1981/1992, p.67). O autor afirma que a clivagem do psiquismo ocorre de modo simultâneo à implantação dos primeiros significantes, ou seja, as primeiras representações são recalcadas e simultaneamente ocorre a cisão entre os sistemas inconsciente e préconsciente/consciente. Desta maneira, então, o recalcamento originário ocorreria em dois tempos simultâneos. Laplanche, em seu texto “O Inconsciente e o Id” (1981/1992), discorre acerca de uma suposta reconstrução do inconsciente dizendo que: Porque o inconsciente já não se define, essencialmente, em relação à consciência, mas em relação a um sistema pré-consciente-consciente (insisto na 10 palavra sistema) que tomou o lugar do que se tornou inconsciente e que constantemente o contra-investe; porque a reconstrução do passado não é, por si só, reencontro do inconsciente; porque [...] esse trabalho de construção pode favorecer ressurgimentos, mas estes são freqüentemente erráticos, fragmentários, alusivos, metonímicos, até alucinatórios. Daí o problema de confirmar, se assim se pode dizer, no tratamento, esse reencontro entre a reconstrução e o ressurgente; problema de um verdadeiro reconhecimento do inconsciente (p. 80). Pois bem, o autor apresenta argumentos que impossibilitam a reconstrução do inconsciente, porém, deixa claro que, para tanto, temos que nos focar no sentido tópico do termo. No caso do pequeno Hans, na sua análise ele é invadido por fantasias e sonhos extremamente angustiantes que, de certo modo, se assemelham a esses fenômenos “inconscientes” que invadem a consciência como um bloco errático. Outra questão que surge, é o fato da suposição de que Hans ainda não sofreu o grande recalcamento (pós-edípico), deste modo haveria uma maior facilidade das crianças entrarem em “contato” com conteúdos inconscientes? Como foi evidenciado anteriormente, sabemos que as crianças, em particular, conseguem conviver com idéias extremamente opostas e ambíguas e que “convivem” de uma maneira “pacífica”. Sendo que, a contradição de pensamentos é mais evidente, fato que pode ser comparado ao modo de funcionamento inconsciente, denominado de processo primário. A partir desta consideração, podemos relacionar o modo de pensamento infantil ao modo de pensamento psicótico? Guardada as suas devidas proporções, se pensarmos no que Freud propôs acerca da psicose, entendendo-a enquanto um “inconsciente a céu aberto”, regido também pelo processo primário, há evidências de uma possível relação. Mesmo por que, nos casos de psicose, o modo de funcionamento psíquico é considerado muito primitivo e regredido. No texto de Laplanche denominado “Três acepções da palavra “inconsciente” no quadro da Teoria da Sedução Generalizada” (2003), o autor apresenta a sua proposta de aparelho psíquico, buscando enquadrar tanto os neuróticos quanto os não-neuróticos, e afirma que: No recalcamento, e especificamente no recalcamento originário, as mensagens do outro, provenientes da única realidade para o humano, a realidade do outro, vêm a) se inscrever, num primeiro momento, no inconsciente encravado ou subconsciente. b) São em seguida retomados, retraduzidos, e desde então 11 repartidos entre uma tradução pré-consciente e restos inconscientes (Laplanche, 2003, p. 411). Neste mesmo artigo, Laplanche (2003) aborda a questão do aspecto psicótico e borderline do aparelho psíquico. O autor propõe que nestes casos há um fracasso radical da tradução, sendo que nada é traduzido. A mensagem original é implantada ou intrometida e permanece sem modificações, constituindo o que o autor denomina de inconsciente encravado. Cabe nos perguntar se, em casos de psicose e transtornos borderline, há um recalcamento originário ou se há uma falha neste recalcamento, fazendo com que a pessoa regrida aos estágios infantis? Vemos que nossos esforços em compreender mais profundamente a teoria psicanalítica trouxe mais dúvidas e indagações. E são essas dúvidas e indagações que fazem a teoria caminhar e se enriquecer. Isso nada mais é do que a proposta de Bion citada por Laplanche (1987/1992), de repensar a teoria, refletir, perlaborar (a noção de um pensamento em espiral). Referências bibliográficas Freud, S. (1909/1996). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, V. X) Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1915/1996a). O instinto e suas vicissitudes. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, V. XIV) Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1915/1996b). Repressão. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, V. XIV) Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1915/1996c). O Inconsciente. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, V. XIV) Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1924/1996a). A dissolução do complexo de Édipo. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, V. XIX) Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1924/1996b). O Ego e o Id. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, V. XIX) Rio de Janeiro: Imago. Laplanche, J. (1970/1985). Vida e morte em psicanálise. Porto Alegre: ARTMED. Laplanche, J. (1981/1992). O Inconsciente e o id. In: Problemáticas IV. WMF Editora. 12 Laplanche, J. (1987/1992). Novos fundamentos para psicanálise. São Paulo. Martins fontes. Laplanche, J. (2003). Três acepções da palavra “inconsciente” no quadro da Teoria da Sedução Generalizada. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre,(10), 403-418. Laplanche, J; Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes. Publicado originalmente em 1967. Sigal, A. M. (2002) O Originário: um conceito que ganha visibilidade. Em Colóquio de homenagem a Piera Aulagnier, SP: Programa de Pós-Graduação da PUC-SP. Recuperado em 15 junho, de 2011, de http://www2.uol.com.br/percurso/main/pcs30/30Sigal.htm