COLETÂNEA 02
SUSTENTABILIDADE SOCIAL,
ECONÔMICA E AMBIENTAL EM
FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Coordenadores
Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Eloete Camilli de Oliveira
Organizadores
Sandro Mansur Gibran
José Mario Tafuri
COLETÂNEA 02
SUSTENTABILIDADE SOCIAL,
ECONÔMICA E AMBIENTAL EM
FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
2013
Curitiba
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
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São Paulo
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S964
Séllos Knoerr, Viviane Coelho – Coordenadora.
Oliveira, Eloete Camilli – Coordenadora.
Sustentabilidade social, econômica e ambiental em
favor dos direitos humanos : coletânea 2.
Título independente.
Curitiba : 1ª. ed. Clássica Editora, 2013.
ISBN 978-85-99651-73-5
1. Direito.
I. Título.
CDD 342
EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira
Alexandre Walmott Borges
Daniel Ferreira
Elizabeth Accioly
Everton Gonçalves
Fernando Knoerr
Francisco Cardozo de Oliveira
Francisval Mendes
Ilton Garcia da Costa
Ivan Motta
Ivo Dantas
Jonathan Barros Vita
José Edmilson Lima
Juliana Cristina Busnardo de Araujo
Lafayete Pozzoli
Leonardo Rabelo
Lívia Gaigher Bósio Campello
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Produção Editorial: Editora Clássica
Capa: Editora Clássica
Luiz Eduardo Gunther
Luisa Moura
Mara Darcanchy
Massako Shirai
Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Nilson Araújo de Souza
Norma Padilha
Paulo Ricardo Opuszka
Roberto Genofre
Salim Reis
Valesca Raizer Borges Moschen
Vanessa Caporlingua
Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Vladmir Silveira
Wagner Ginotti
Wagner Menezes
Willians Franklin Lira dos Santos
Apresentação
“Feliz aquele que transfere o que sabe, e aprende o que ensina”.
Cora Coralina
O Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba, tem uma história e
tradição de ensino superior em nossa cidade e estado, que já conta com 63 anos,
mantendo o compromisso de oferecer excelência e qualidade, com a mesma
dedicação e profissionalismo que sempre lhe caracterizaram, e que fez com que
esta Instituição se tornasse uma referência na área da educação.
A sua visão de ensino vai além das salas de aulas, por isto que se
orgulha da missão sobejamente conhecida através desse tempo, que é:
“Educar, para formar pessoas capacitadas e comprometidas com o
desenvolvimento social”.
Desenvolver, crescer, progredir, evoluir, são expressões e formas de
como podemos responder as expectativas da sociedade. É por isto que criamos
o UNICURITIBA PESQUISANDO DIREITO, que são coletâneas resultantes
de um dos projetos de integração entre a Coordenação do Curso de Graduação
em Direito, a Supervisão do Trabalho de Conclusão de Curso do Centro
Universitário Curitiba-UNICURITIBA e o nosso Programa de Mestrado em
Direito Empresarial e Cidadania, com o objetivo de incentivar e divulgar as
pesquisas desenvolvidas pelos alunos, sob a orientação dos professores, para o
fomento da pesquisa e o comprometimento com a ciência do Direito.
Danilo Vianna
Reitor
Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA
prefácio
Prefaciar os cinco livros da coleção “UNICURITIBA Pensando
Direito” é algo que muito me orgulha. Obras que versam sobre justiça e
cidadania, sustentabilidade social, econômica e ambiental em favor dos direitos
humanos, concretização constitucional, a dignidade humana e organização
social, e os novos direitos nas atividades empresariais no Estado solidário.
Primeiro porque o Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA
faz parte de nossa história acadêmica, sendo que hoje atuo como professora
visitante em seu Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania.
Segundo, porque se trata de uma das mais renomadas escolas
jurídicas do Brasil, o que se comprova pela qualidade docente, discente e pelos
profissionais que forma.
A tradição que se moderniza com o incentivo à pesquisa e à publicação
acadêmica na forma eletrônica demonstra o interesse da Instituição para com o
desenvolvimento social, educacional e sustentável.
O acesso do material que ora se publica é amplo, pois beneficia os
estudantes não apenas brasileiros, mas de todos os países de língua portuguesa,
como o caso dos hoje meus conterrâneos do continente europeu, mais
especificamente em Terras Lusitanas.
A interação entre graduandos, mestrandos e professores faz com que
estes trabalhos representem extratos reais da realidade jurídica brasileira. As
inquietudes dos jovens ligadas à experiência e ao conhecimento dos professores
resultam nesta coleção, que vem a enriquecer ainda mais o cenário acadêmico
brasileiro.
Os assuntos apresentados nos trabalhos possuem profundidade
temática e evidenciam a responsabilidade social que fundamenta a educação
jurídica do Centro Universitário Curitiba.
Com muita honra, desejo a todos excelente leitura.
Elizabeth Accioly
Doutora em Direito pela USP. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba,
Diplomada em Estudos Europeus pelo Instituto Europeu da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa. Atualmente é Professora da Faculdade de Direito da Universidade
Lusíada de Lisboa, Professora colaboradora do curso de Estudos Europeus da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, Professora visitante da Universidade Católica Portuguesa.
Sumário
APRESENTAÇÃO..................................................................................................... 05
INTRODUÇÃO........................................................................................................ 09
A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL NO BRASIL À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Aida Aparecida Nunes Krasinski e Erika Paula de Campos................. 12
COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL NA REPRESSÃO AO CRIME VIRTUAL
Alisson Bertoncello e Alexandre Knopfholz........................................ 33
A EXIGIBILIDADE DA CONCESSÃO DO BENEFÍCIO LEGAL DA MEIA ENTRADA CUMULATIVAMENTE COM OUTROS DESCONTOS
André Luis Mikilita Mira e Luciana Carneiro de Lara....................... 59
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO EM FACE DOS DANOS
AMBIENTAIS
Fernanda Ferreira Netto Zanatto e José Mario Tafuri...................... 83
OS DESASTRES NATURAIS E A RESPONSABILIZAÇÃO ESTATAL NO BRASIL
Gabriele Rolla Fonseca e Lucimar de Paula........................................... 108
A BÚSSOLA DO BRASIL: ORÇAMENTO PÚBLICO
Giulia Alessandra de Carli de Oliveira e Luiz Gustavo de Andrade.... 136
BASTIDORES DO INCENTIVO CULTURAL NO BRASIL: CRÍTICAS À LEI ROUANET
Marcella Souza Carvalho e Heloísa Fernandes Câmara.................. 154
TEORIA DA IMPREVISÃO E A ONEROSIDADE EXCESSIVA
Marcelo Yudi Umeda e Cleverson José Gusso......................................... 176
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO ELEMENTO PROTETIVO DA BIODIVERSIDADE, SOB O PRISMA DA RIO +20
Maria Victoria Papy e Regina Maria Bueno Bacellar......................... 199
A RECEPÇÃO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Nicole Voltarelli Amador e José Leandro Farias Benitz.................... 219
OS GRUPOS ECONÔMICOS E A RESPONSABILIDADE CIVIL ECONOMIC
GROUPS AND CIVIL LIABILITY
Eduardo Antonio Perine e Sandro Mansur Gibran.............................. 237
FUNDAMENTOS DA INAPLICABILIDADE DA APOSENTADORIA COMPULSÓRIA AOS TITULARES DE ESCRIVANIAS JUDICIAIS PRIVADAS
NO ESTADO DO PARANÁ: A RESERVA MORAL E A DIGNIFICAÇÃO DA
PESSOA HUMANA COMO RESPONSABILIDADES DO ENTE FEDERATIVO
Viviane Coêlho de Séllos Knoerr e Fernando Gustavo Knoerr....... 255
BEM JURÍDICO PENAL E O DIREITO SOCIAL AO TRABALHO: UMA VISÃO
DO DIREITO PENAL COMO INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DA
JUSTIÇA SOCIAL
Michelle Gironda Cabrera E Fábio André Guaragni........................... 267
A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E A PROMOÇÃO DOS OBJETIVOS
CONSTITUCIONAIS
Ariosto Teixeira Neto E Fábio André Guaragni..................................... 284
CONCLUSÃO........................................................................................................... 303
TÓPICOS CONCLUSIVOS....................................................................................... 308
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
INTRODUÇÃO
A presente coletânea trata sobre questões referentes à sustentabilidade
social, econômica e ambiental em favor dos direitos humanos. Este substrato
temático, de evidente relevância social, é objeto de estudo dos autores que se
propõem a debater e refletir acerca da atual conjuntura social e jurídica brasileira.
Reúnem-se nesta obra professores e alunos, os quais em orientação
começam a apresentar os resultados de suas investigações. O trabalho
conjunto busca, por meio dos parâmetros de justiça e cidadania, estudar as
temáticas propostas.
O primeiro artigo, escrito pelas autoras Aida Aparecida Nunes
Krasinski e Erika Paula de Campos, versa sobre a exploração do trabalho
infantil no Brasil à luz dos princípios constitucionais, com enfoque no princípio
da dignidade da pessoa humana.
A cooperação jurídica internacional na repressão ao crime virtual
é objeto de estudo dos autores Alisson Bertoncello e Alexandre Knopfholz,
evidenciando a necessidade de um diálogo entre as Nações, com a finalidade de
se combater os crimes virtuais, ultrapassando a jurisdição do Estado.
Os autores André Luis Mikilita Mira e Luciana Carneiro de Lara
estudam a exigibilidade da concessão do benefício legal da meia-entrada
cumulativamente com outros descontos, através de uma crítica a prática dos
organizadores de eventos, ao burlar a cumulação de benefícios, determinando a
estipulação de um valor igual para todos os consumidores.
Por meio de uma análise de julgados do STJ, Fernanda Ferreira Netto
Zanatto e José Mário Tafuri buscam responder ao questionamento sobre a
responsabilidade estatal, à violação da garantia constitucional ao meio ambiente
saudável, como condição da própria existência. Considerando o meio ambiente
como direito difuso, busca em seu artigo, demonstrar a controvérsia quanto a
qual responsabilidade a ser aplicada no caso: objetiva ou subjetiva.
As autoras Gabriela Rolla Fonseca e Lucimar de Paula analisam os
desastres naturais envolvendo a população brasileira e o dever do Estado de
prezar pelo bem estar de seus administrados. Diante da atualidade do tema,
observa divergência entre os doutrinadores e a jurisprudência sobre a natureza
jurídica da responsabilidade estatal (objetiva ou subjetiva), diante dos danos
que, em princípio parecem decorrer apenas de fenômenos naturais.
No artigo “A Bússola o Brasil: Orçamento Público”, Giulia
Alessandra de Carli de Oliveira e Luiz Gustavo de Andrade demonstram a
importância de um orçamento público bem planejado, com a participação
popular, para traçar as políticas públicas, garantindo a prestação de serviços
de forma digna e com qualidade.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Marcella Souza Carvalho e Heloísa Fernandes Câmara analisam
a relação da valorização dos direitos culturais com o Estado e as políticas
governamentais para a sua proteção, por meio de uma critica a Lei Rouanet
por permanecer o poder de decisão do investimento em cultura e arte do Estado
junto ao setor privado, especificamente aos setores de marketing das empresas,
restando pouca autonomia aos artistas e produtores culturais.
A Teoria da Imprevisão e a Onerosidade Excessiva são objetos de
estudo de Marcelo Yudi Umeda e Cleverson José Gusso, que realizam uma
análise das teorias da revisão, rescisão e resolução contratual, que motivaram
a revisão contratual, tal como a clausula rebus sic standibus, a onerosidade
excessiva e a Teoria da Imprevisão.
Maria Victoria Papy e Regina Maria Bueno Bacellar demonstram
a necessidade do engajamento social, governamental e privado para atingir
as metas do consumo consciente, práticas sustentáveis, para a manutenção
do meio ambiente saudável como legado para as gerações futuras no artigo
“Desenvolvimento Sustentável como Elemento Protetivo da Biodiversidade,
Sob o Prisma Da Rio+20”.
Tomando por base o método dedutivo, Nicole Voltarelli Amador e
José Leandro Farias Benitez fazem uma análise crítica sobre as desapropriações
por interesse social e a sua desconformidade com o princípio da função social,
analisando aspectos doutrinários sobre a matéria.
Os grupos econômicos e a responsabilidade civil são estudadas
por Eduardo Antonio Perine e Sandro Mansur Gibran, a partir da analise
da responsabilidade das holdings nas áreas do direito tributário, direito do
consumidor e direito do trabalho e a sua aplicação prática, identificando as
hipóteses de proteção do Estado, do consumidor ou, ainda, do trabalhador,
mediante o entendimento dos operadores do direito empresarial.
Viviane Coêlho de Séllos Knoerr e Fernando Gustavo Knoerr analisam
os fundamentos da inaplicabilidade da aposentadoria compulsória aos titulares
de escrivanias judiciais privadas no Estado do Paraná.
Michelle Gironda Cabrera e Fábio André Guaragni, em seu artigo
trabalham o bem jurídico penal e o direito social ao trabalho, sob uma visão do
direito penal como instrumento de concretização da justiça social.
A última obra da coletânea aborda a discricionariedade administrativa
e a promoção dos objetivos constitucionais. Os autores Ariosto Teixeira Neto
e Fábio André Guaragni trataram de valorizar a discricionariedade como
instrumento da intervenção estatal na atividade econômica e social.
A presente obra é resultado das pesquisas desenvolvidas pelos grupos de
pesquisa, alunos e professores do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA,
na busca da formação de novos pensadores do direito e de sua função social.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Desejamos a todos uma boa leitura e reflexão acerca dos temas
abordados neste trabalho, vista a profundidade dos textos que aqui apresentamos.
Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr
Doutora e Mestre em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela
PUCCAMP. Atualmente é coordenadora do Programa de Mestrado em Direito Empresarial
e Cidadania do UNICURITIBA. Líder do grupo de pesquisa
“Cidadania Empresarial”, registrado no CNPq.
Eloete Camilli Oliveira
Doutora pela UFPR. Mestre pela PUC/PR. Professora adjunta nível III da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, representante dos docentes no CEPE - UNICURITIBA,
Supervisora do setor de registro dos Trabalhos de Conclusão de Curso
UNICURITIBA e professor titular - UNICURITIBA.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL NO BRASIL
À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
THE CHILDREN LABOR EXPLOITATION IN BRAZIL
UNDER THE WATCH OF CONSTITUTIONAL PRINCIPLES
Aida Nunes Krasinski
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Curitiba
Erika Paula De Campos
Formada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba em 1990.
Possui mestrado(2000) e doutorado (2005), em Direito, na área
de relações sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Atualmente é professora e orientadora na graduação e pósgraduação de Direito do Trabalho no Centro Universitário Curitiba e
na pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica de Curitiba/PR.
Professora convidada de várias instituições de ensino. Advogada sócia
do escritório Campos e Advogados Associados. Tem experiência na
área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho e Civil.
RESUMO
Desde muito cedo o trabalho tem sido priorizado na vida dos pequenos
e seus direitos estabelecidos na Carta Magna têm sido violados. Cada vez mais os
princípios que deveriam nortear o crescimento e desenvolvimento das crianças e
adolescentes estão simplesmente sendo deixados de lado, possibilitando marcas
que dificilmente serão apagadas na vida dos mesmos. À criança e ao adolescente
cabe, brincar, se alimentar, estudar e ser amado, porém estas não tem feito parte da
realidade de muitos desde o tempo da escravidão. A exploração do trabalho infantil se
mostra muito viva hoje e ainda distribuída em várias facetas, muitas delas em que o
expectador não tem ideia do que pode estar acontecendo. Como forma de erradicação
do trabalho infantil cabe a cada um uma parcela, afinal é necessário que uma nova
perspectiva de vida seja relocada na mente da população. É imprescindível que a
prioridade na vida de todos os menores seja a educação. Este é o caminho que deve ser
seguindo rumo à uma nova história. História esta, que ficará muito longe da perfeição,
mas que ao menos estará mais próxima do que seja viver com dignidade.
Palavras-chave: exploração do trabalho infantil, princípios constitucionais,
erradicação da exploração, dignidade da pessoa humana
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
ABSTRACT
Since long ago, the work has been prioritized in the life of the little
ones, and their rights established in the Carta Magna have been violated. The
principles that should guide the growth and development of the children and
teenagers are simply being left behind, enabling scars that are hardly erased
from one’s life. The child and teenager should only play, eat, study and be loved.
However, those aspects have not been part of the reality of many since slavery
time. The exploration of the infant labor shows being very alive and even today
distributed in many facets, in many of those occasions, the expectator has no
idea of what might be happening. In order to eradicate the infant labor, each
one have one parcel, because it is necessary a new life perspective in the public
mind. The life focus in education is indispensable for all minor. This is the way
that must be followed towards a new history. History that, will be very far from
perfection, but at least it will be much nearer of life with dignity.
Keywords: Child labor exploitation, constitutional principles, eradication of
exploitation, dignity of the individual.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
1 INTRODUÇÃO
A questão da exploração do trabalho infantil, para muitos parece não
mais existir, porém na realidade tem se mostrado bem viva em nosso meio.
Não há como iniciarmos um estudo jurídico sem antes analisarmos
aquilo que fundamenta todos os institutos: a Constituição Federal da República.
Nela estão elencados vários direitos que são inerentes as crianças e adolescentes.
Estes princípios nos mostram que a todas as crianças deve ser garantido
condições mínimas para uma vida digna. Parece-nos claro que esta vida digna
passa longe do que seja os menores serem explorados pelo seu trabalho.
Portanto, será abordado os princípios constitucionais frente à
exploração do trabalho infantil, este tema, de total relevância, precisa ser
discutido para que mudanças possam ocorrer. Apenas desta forma crianças e
adolescentes poderão realmente ser a esperança do país.
A partir desta leitura, muito daquilo que acreditamos não existir,
criará vida e nos mostrará que a realidade é outra bem diferente, fazendo todos
repensarem até mesmo sua própria vida.
Tratar da exploração do trabalho infantil fazendo um paralelo com os
princípios constitucionais tem total relevância nos dias de hoje, uma vez que é
necessário chamar a atenção da sociedade para estas crianças que são exploradas
e que não tem nenhuma perspectiva de vida. É preciso trazer a sociedade uma
visão mais humanitária da vida.
Atrelando o direito do trabalho ao instituto dos direitos das crianças e
adolescentes, é possível observar que os direitos resguardados na Constituição
Federal e na CLT, referentes aos menores ainda são violados. Milhares de crianças
são alvo do trabalho infantil, e estão sendo negligenciadas em suas necessidades
mais básicas. Este é um fato que necessita de mudança, para tal é necessário
estudar os direitos das crianças e adolescentes à luz dos princípios constitucionais.
Para isso, imprescindível se faz voltar a essência do que são
propriamente dito os princípios constitucionais, bem como o instituto do
trabalho infantil, viabilizando assim uma analise em conjunto dos dois institutos.
2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO NORMAS PROTETIVAS
Dentro do universo das normas jurídicas temos duas ramificações,
que são as regras e os princípios, os quais são diferenciados nos ensinamentos
de Ronald Dworkin:
A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é a natureza
lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas,
mas distinguem-se quanto à natureza da obrigação que oferecem.
(DWORKIN, 2002, p. 39)
Ambos gozam de eficácia jurídica. Fixado esta ideia de que os
princípios constitucionais são normas assim como as regras, deve-se buscar o
cumprimento dos mesmos.
Dois são os argumentos trazidos por Norberto Bobbio que embasam a
afirmação dos princípios gozarem de força normativa:
Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumentos
são dois, ambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas
dos quais os princípios são extraídos, através de um procedimento de
generalização sucessiva, não se vê porque não se devam ser normas
também eles; se abstraio da espécie animal obtenho sempre animais,
e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para qual são
extraídas e empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto
é, a função de regular um caso. (BOBBIO, 1999, p. 158-159)
Ainda neste sentido, Cármen Lúcia Antunes Rocha assevera que:
O principio se impõe como norma jurídica quando o valor formulado
socialmente é absorvido pelo Direito como base do sistema posto
à observância no Estado por governantes e governados. É na
Constituição – sistema de normas fundamentais positivadas no Estado
– que se traçam os princípios informadores da ordem jurídica a ser
observada em determinada ordem estatal, em sua busca de realização
do que é materialmente justo para todos. (ROCHA, 1994, p. 94)
Como principais normas de proteção as crianças e adolescentes,
ressalta-se a importância do princípio da dignidade da pessoa humana e a doutrina
da proteção integral. Ambos buscam garantir um cuidado peculiar a criança e ao
adolescente, tendo em vista a sua maior vulnerabilidade e a pouca maturidade
de vida. Essas crianças necessitam de assistência e um cuidado especial, pois
suas perspectivas de vida estão sendo definidas nesta tão importante fase.
Preceitua o artigo 227 da Constituição Federal de 1988:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar
à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade,
o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº
65, de 2010).
Posteriormente este artigo serviu como base para a criação do Estatuto
da Criança e do Adolescente, em julho de 1990, com a lei nº 8.069. Prescreve o
referido Estatuto no seu artigo 3º:
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que
trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e
de dignidade.
Desta forma criou-se a doutrina da proteção integral em que o
legislador se posicionou com compromisso e seriedade perante a fase infantojuvenil, tratando-os com respeito simplesmente pelo fato de serem indivíduos
em fase peculiar de pleno desenvolvimento.
Para Mario Luiz Ramidoff:
A Doutrina da Proteção Integral, desta maneira, é muito mais do
que uma mera adaptação legislativa, é sobremodo, um critério
assecuratório entre o discurso protetivo presente dos valores
humanos e as atitudes atuais dos construtores sociais. (RAMIDOFF,
2006, p. 25)
Wilson Donizeti Liberati complementa dizendo que:
Pela ordem constitucional, os direitos de todas as crianças e
adolescentes devem ser universalmente reconhecidos, por serem
especiais e específicos, considerando-se peculiar condição da pessoa
em desenvolvimento. Pela primeira vez na história das constituições
brasileiras, a criança é tratada como uma questão pública, metodologia
que atinge, radicalmente o sistema jurídico. (LIBERATI, 2007, p. 13)
Moacyr Pereira Mendes completa:
A afirmação da criança e do adolescente como “pessoas em condição
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
peculiar de desenvolvimento” faz do art. 6º o suporte do novo Estatuto
ontológico da infância e da juventude na legislação brasileira. O
reconhecimento da peculiaridade dessa condição vem somar-se
à condição jurídica de sujeito de direitos e à condição política de
absoluta prioridade, para constituir-se em parte do tripé que configura
a concepção de criança e adolescente do Estatuto, pedra angular do
novo direito da infância e da juventude no Brasil. (MENDES, 2007)
Como normas protetivas ao menor, não se pode deixar de citar a
proteção dada pela CLT, em que dispõe no art. 402, que a chamada capacidade
plena para o trabalho se dá aos 18 anos completos.
Com a aprovação da Emenda n. 20, aqueles com 16 anos também
tem amparo legal para trabalharem, mas com muitas restrições. Fora disso o
trabalho é proibido, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 anos.
Todas estas regras impostas pela lei trabalhista tem um único motivo,
qual seja de dar a máxima proteção ao trabalhador. Alice Monteiro de Barros
aponta que “as medidas de proteção estão direcionadas no sentido de proibir
o trabalho da criança, restringir o trabalho do jovem e equiparar o trabalho do
maior de 18 anos ao do adulto” (BARROS, 2008, p. 541).
Esta tutela especial, como assim é chamada por Alice Monteiro de Barros
(2008, p. 541), faz todo o sentido tendo em vista o princípio da dignidade da pessoa
humana e a doutrina da proteção integral, como foram brevemente citados acima.
Dentro do que foi exposto, tem-se que as normas de proteção a
criança e ao adolescente elencadas no Estatuto da Criança e do Adolescente e
na CLT não se tratam apenas de um conjunto de regramentos, mas sim, de um
sistema de regras e princípios que tendo a Constituição Federal como pano de
fundo, possibilitam o seu cumprimento e assegurando à infância e à juventude
a atenção que merecem receber.
3 A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL
Passando então ao trabalho infantil propriamente dito, temos que a
exploração do trabalho infantil sempre existiu na sociedade. Teve inicio no
tempo da escravidão, e foi apenas se adequando com o desenvolver da história.
Ana Dourado e Cida Fernandez relatam a respeito do período
da escravidão:
Para os escravos adolescentes, a vida não era fácil. Viviam sob
o controle dos senhores, tanto nas senzalas quanto nas cidades, se
fossem escravos urbanos. No campo os meninos começavam desde
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
cedo a trabalhar nas lavouras e na mineração, dependendo do lugar
onde moravam. Um negro saudável de 14 anos era considerado uma
mercadoria importante e cara, pois tinha toda força da juventude
para gastar no trabalho. Por isso a maioria dos escravos jovens era
encaminhada para trabalhos pesados. Os que ficavam nas atividades
domésticas, como pajens, por exemplo, podiam se considerar
privilegiados, pois tinham a confiança ou a predileção dos patrões.
(DOURADO; FERNANDEZ, 1999, p. 53)
E Irma Rizzini descreve a continuidade do trabalho infantil mesmo
com a abolição da escravatura:
A extinção da escravatura foi um divisor de águas no que diz
respeito ao debate sobre o trabalho infantil; multiplicaram-se
a partir de então, iniciativas privadas e públicas, dirigidas ao
preparo da criança e do adolescente para o trabalho, na indústria e
na agricultura. (RIZZINI, 2000, p. 376)
Erotilde Ribeiro Minharro (2003, p. 15) afirma que devido a ideologia
que predominava na época (e perdura até os dias atuais), os próprios pais
incentivavam seus filhos para que fossem trabalhar nas indústrias, pois eram
nas chamadas ‘corporações de ofício’ que seus filhos iriam ter uma profissão.
Segundo Ana Dourado a sociedade acreditava que:
O trabalho ajudaria a criança a tornar-se um cidadão útil a sociedade.
Para muitos políticos e juristas, melhor era manter uma rígida rotina de
trabalho a fim de que as crianças não tivessem tempo livre para ficar nas
ruas perambulando. O caráter dos mais jovens deveria ser formado dentro
do local de trabalho, pois dessa forma seriam criados novos trabalhadores,
para construir o futuro da nação. (DOURADO, 1999, p. 88)
Conforme dados levantados pelo PNAD (Pesquisa Nacional por
Amostras de Domicílio), em 1995, havia mais de cinco milhões de crianças
trabalhando (RIZZINI, 2000, p. 380). Houve uma queda significativa em 2003,
passando para dois milhões e setecentas mil crianças e jovens entre 5 e 15 anos
que ainda estavam trabalhando, mas mesmo assim os índices são extremamente
altos (KASSOUF, 2005).
Destaca Ana Lucia Kassouf que os dados não levam em conta o trabalho
realizado por meninas em ambientes residenciais. Muitas vezes estas tarefas são
tão árduas que as impedem de estudar e ter uma vida sadia (KASSOUF, 2005).
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Outro caso muito recorrente no Brasil são as “filhas de criação”, em
que os futuros patrões retiram meninas muito novas de instituições e do seio
de famílias muito pobres para trabalharem em casas de melhor situação. Relata
Irma Rizzini (2000, p. 383) que em troca do trabalho destas meninas, os patrões
oferecem abrigo, alimentação e às vezes, um pagamento ínfimo. Descreve ainda
a autora, que as meninas ficam dependentes da boa vontade dos patrões para
irem à escola, além de estarem totalmente sujeitas aos abusos sexuais sofridos
pelos filhos dos patrões e por vezes até mesmo do próprio patrão. “Apesar
destas meninas terem sido retiradas do seu lar como filhas de criação, à elas
apenas é destinado a sobra de tudo” (RIZZINI, 2000, p. 384).
No Brasil como um todo predomina a exploração infantil nas
atividades agrícolas, com maior incidência na região nordeste e sudeste, no
entanto existem muitas outras formas em que as crianças são submetidas ao
trabalho, como por exemplo, em industrias, em lixões, e até mesmo nas ruas.
Neste sentido Wellington Menezes aduz:
Em termos absolutos, o Nordeste possui o maior número de crianças
trabalhando, cerca de 1,5 milhão, seguido pela região Sudeste, com
710 mil trabalhadores-mirins. Em termos regionais, ele prepondera
tanto nos estados mais pobres do país, como a Bahia e o Ceará, como
nos estados do Sul, como Santa Catarina e Rio Grande, que têm
uma tradição de agricultura familiar mais consolidada. Apesar de a
região Sul estar entre as regiões mais desenvolvidas do país, existe
uma importante base de agricultura familiar nessa região, o que pode
justificar as similaridades dos números da incidência do trabalho
infantil das regiões Sul e Nordeste, ou seja, a região com maior
gravidade de problemas econômicos do país. (MENEZES, 2007)
E Michele de Mello complementa:
Dados do IBGE revelam que o trabalho infantil se manifesta de muitas
maneiras, como crianças trabalhando em lixões; como catadores de
papel; em serviços de carvoarias e olarias; crianças sendo exploradas
sexualmente,etc. (MELLO, 2007)
Estes trabalhos realizados fere totalmente as garantias de proteção
que elas tem, pois são trabalhos em locais insalubres, com jornadas de trabalhos
exorbitantes, com falta de alimentação e remuneração baixíssima.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
4 EXPLORAÇÃO X PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Finalmente analisando a exploração do trabalho infantil frente aos
princípios estabelecidos na constituição, é possível perceber que de fato há uma
violação dos mesmos.
Preceitua a Constituição Federal de 1988 no seu artigo 227, o Estatuto
da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) no artigo 3º, bem como o Código
Civil nos artigos 1.583 e 1.584 que a criança possui sim uma situação especial.
Vejamos no artigo 227, caput, da Constituição Federal:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão. (grifo nosso)
Artigo 3º, Estatuto da Criança e do Adolescente:
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que
trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e
de dignidade. (grifo nosso)
Há um abismo entre os princípios constitucionais que protegem
os menores e o trabalho infantil, pois o estado peculiar em que as crianças
se encontram não é levado em conta. Não é raro encontrarmos aqueles que
burlam as leis trabalhistas e os direitos da criança e do adolescente em benefício
próprio.
Desta prática desenfreada, temos um resultado desastroso na vida
dos menores. As consequências neles causadas são físicas, psicológicas e
sociais; e todas são inevitáveis na vida das crianças, pois como já foi dito, elas
estão em fase de formação e estado de vulnerabilidade. Por estes motivos, as
consequências geradas são muito pesadas e irreversíveis.
Dentre estas consequências, chamo a atenção para vários
relatos de mutilações que acontecem principalmente em fabricas que
contratam ilegalmente crianças. Estes acidentes já são presumidos, pois os
equipamentos não são desenvolvidos para pessoas de pequeno porte. Neste
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
sentido Ana Lúcia Kassouf afirma: “os locais de trabalho, equipamentos,
móveis, utensílios e métodos não são projetados para utilização por
crianças” (KASSOUF, 2005). Irma Rizzini (2000, p. 377) aponta para o
excesso de jornada das crianças, que chegam a trabalhar 12 horas seguidas
em ambientes insalubres, sob rígida disciplina.
Todos estes riscos são estranhos aos menores, Ana Lúcia Kassouf
(2005) argumenta que a maioria dos infantes não estão cientes dos riscos
que sofrem no desempenhar de suas funções, e justamente por não terem
conhecimento destes riscos, não sabem como proceder frente a qualquer
acidente de trabalho. Os patrões na maioria das vezes, não zelam pela
integridade física dos seus funcionários. Eles continuam na irregularidade,
pois não proporcionam nenhuma segurança para os trabalhadores durante a
execução das atividades e muito menos se preocupam com a possibilidade
(muito alta) de que ocorra um acidente.
Quanto àqueles que contratam mão de obra infantil, foi possível
perceber que existe inclusive uma preferencia pela contratação de menores.
Afirmam os donos de fabricas, que as mãos pequenas e delicadas das crianças
torna o trabalho mais ágil e por consequência produtivo.
Além das inúmeras mutilações, não é estranho que as crianças depois
de adultos adquiram doenças graves, como por exemplo, o câncer, pois a
maioria delas trabalha em ambiente totalmente insalubre.
No âmbito das consequências psicológicas sofridas pelas crianças e
adolescentes, merece destaque três formas de sequelas: aquelas advindas do não
vivenciar integralmente da infância; aquelas advindas do próprio sentimento de
fracasso ao desempenharem funções que não obtém êxito; e aquelas originadas
da responsabilidade a eles atribuída no sustento familiar.
Neste sentido Antônio Carlos Acioly Filho apresenta que:
A criança e o adolescente ao relacionar-se com o mundo do trabalho
passa a ser obrigada a ter responsabilidades que não são próprias para
a sua idade e que lhes desoportuniza a vivencia e a garantia de seus
direitos elementares, como lazer, esporte, escolarização, enfim, de sua
preparação para a vida adulta. (ACIOLY FILHO, 2006)
Como foi observado pelo autor supracitado, é um desrespeito com os
menores subtrair-lhes os direitos elementares da fase em que se encontram. Toda
criança tem o direito de brincar e se relacionar, de se alimentar adequadamente,
de ter um tempo de descanso, de frequentar uma escola e ter condições mínimas
para um bom aprendizado. Não obstante não terem conhecimentos jurídicos
de seus direitos por excelência, a própria natureza das crianças os chama à
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
estas necessidades e direitos. Retirar estes momentos de lazer, de educação, de
convívio saudável entre família e amigos é retirar-lhes a própria alegria de viver.
No desempenhar das funções a eles atribuídas, muitos sentem o peso
do fracasso quando não conseguem desempenhá-las de forma satisfatória.
Os empregadores cobram perfeição, cobram como se os empregados adultos
fossem. O trauma desencadeado em razão desta cobrança pode ser fatal para não
terem uma vida de sucesso. Estas crianças e adolescentes crescerão acreditando
que são de fato fracassados, e que não possuem capacidade para trabalharem de
forma qualificada. Sendo que na realidade, o não desempenhar das atividades
na forma desejada, nada tem ligação à capacidade laborativa dos mesmos, e sim
à sua condição física característica de crianças e adolescentes.
Outra consequência que na maioria dos casos de trabalho infantil é
inevitável é a falta de estudo. A realidade é que a maioria das crianças que
trabalham não vão a escola e aqueles que vão, não tem um bom aprendizado.
Muitos pais além de serem coniventes, incentivam os filhos a
trabalharem ao invés de estudar. Este pensamento vem de uma ideologia
imediatista que a sociedade tem, ou seja, de que o beneficio do trabalho
aparecerá de imediato, enquanto o estudo gerará frutos apenas no futuro.
O resultado financeiro obtido imediatamente, de fato é fonte de
subsídio de muitas famílias, no entanto as consequências geradas futuramente
na vida dos menores produzirão um impacto muito maior na vida dos mesmos
e na sociedade como um todo.
Antônio Carlos Acioly Filho afirma que:
O grande problema é que a sociedade brasileira é marcada pela desigualdade
social, possuindo um modelo econômico que oferece espaços e até incentiva
a incorporação da mão-de-obra juvenil, privilegiando o lucro acima dos
valores humanos. Isso gera graves consequências como a pobreza e índices
alarmantes de desemprego, levando pais a lançarem mão de seus filhos,
permitindo a exploração com o objetivo único e existencial maior que é a
sobrevivência. (grifo nosso) (ACIOLY FILHO, 2006)
Neste cenário, gostaria de chamar a atenção para o fator motivacional
que mais se destacou: a situação de miserabilidade das famílias brasileiras. Este
se mostrou o principal motivo que leva as crianças a trabalharem, pois a fome
bate a porta das casas e não há outra saída a não ser enviar os filhos para rua e
obrigá-los a trazerem algum dinheiro. Os pais veem nos filhos a oportunidade
de ajuda na manutenção da casa.
Esta realidade dos dias atuais é muito triste e afronta totalmente dos
direitos e garantias estabelecidos em leis às crianças e adolescentes.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
O estado de miserabilidade de fato é muito alto, mas colocar os filhos
para trabalhar não é a melhor escolha. Falo aqui de um ciclo vicioso, em que
não sendo investido em estudo na vida destas crianças, estas serão as mesmas
que em um futuro não muito distante, também estarão precisando colocar os
seus filhos para trabalhar, pois o desemprego por falta de capacitação perdurará.
Como bem exposto nas palavras de Antônio Carlos Filho (2006), os
pais educarão seus filhos conforme a educação que eles receberam. Se um pai
não tem o mínimo de instrução escolar, não saberá a importância do estudo na
vida daquele que o leva a sério.
Neste sentido Lauro Ramos e Maurício Cortez Reis escrevem:
Consideramos nas estimações que o nível educacional dos pais pode
influenciar o desempenho dos filhos no mercado de trabalho tanto
através de um efeito direto, captado por mudanças no intercepto,
quanto através de diferenças nos retornos à educação. Ou seja, um ano
adicional de estudo pode ter impacto diferente sobre os rendimentos
do indivíduo, dependendo do nível de escolaridade de seus pais.
(RAMOS; REIS, 2008)
Henrique Guimarães demonstra algo que na verdade todos sabem
ser a principal solução para a desigualdade no país e subsequentemente para a
inserção das crianças nas escolas:
O país carece de investimentos maciços em educação formal, e como
os investimentos em educação formal não surtem efeitos nas gerações
que já se encontram no mercado, é necessário se investir maciçamente
em programas de qualificação e requalificação profissional e ainda na
geração de novos postos de trabalho, para que através deste esforço
articulado haja uma perspectiva de diminuição da desigualdade nas
oportunidades de inserção no mercado de trabalho entre os diversos
segmentos da população. (grifo nosso) (GUIMARÃES, 2012)
E Irma Rizzini complementa:
Muitos adolescentes ao completarem 14 anos, se defrontam com o
desemprego, voltando a conviver com a exploração no trabalho, ou
iniciando-se na prostituição e no uso de drogas. Muitos pais são
analfabetos e só sabem fazer carvão, criando um abismo cultural
em relação aos filhos, fato que acaba trazendo conflitos familiares.
(RIZZINI, 2000, p. 394)
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Após ter sido comprovado que de fato há violação dos princípios
constitucionais na vida daquelas crianças que trabalham, é necessário ser
investido na educação de base para que estes possam ter perspectivas de uma
vida digna assim como a constituição determina.
Nas palavras de Pablo Zevallos, podemos perceber nitidamente estas
consequências na vida dos menores, bem como este ciclo vicioso que citamos
nos parágrafos acima:
Ao abandonarem a escola, ou terem que dividir o tempo entre a escola
e o trabalho, o rendimento escolar dessas crianças é muito ruim, e
serão sérias candidatas ao abandono escolar e consequentemente
ao despreparo para o mercado de trabalho, tendo que aceitar subempregos e assim continuarem alimentando o ciclo de pobreza no
Brasil. (ZEVALLOS, 2011)
Parece utópico dizer isso e até mesmo um assunto já esgotado, mas
é preciso sim investimento em educação de base. Esta será a forma mais
eficiente de investir na erradicação do trabalho infantil. É certo que não é em
um programa de governo que alguém iniciar, que será desfrutado do resultado,
pois o resultado será observado com o passar dos anos. Não é algo imediato,
mas em contrapartida, se bem realizado, terá consequência intergeracionais.
Tomemos como exemplo uma organização não governamental criou
um projeto que ficou conhecido como “bode escola” (RIZZINI, 2000, p. 394),
este projeto já afastou cerca de 200 crianças do trabalho infantil. No programa
famílias miseráveis do sertão baiano, receberem um bode e quatro cabras para
criar, com o compromisso de manterem os filhos na escola. Logo após a criação
dos animais e sua multiplicação, a família fica responsável por devolver dois
animais, para que estes sejam repassados para outra família.
Com este exemplo, é possível afirmar que existe sim formas mais
eficazes de se combater a exploração do trabalho infantil e que a busca por estas
medidas fazem parte da obrigação de todos, assim como o artigo 227, CF diz:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do estado assegurar à
criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Devemos abrir nossos olhos para esta triste realidade que está ao nosso
lado. Não devemos apenas nos preocuparmos em amenizar as consequências
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
que já foram geradas pela exploração do trabalho infantil, mas devemos sim, ter
atitudes que venham a mudar o “status quo”.
Conforme os ensinamentos de Nilson de Oliveira Nascimento (2003,
p. 70), a atuação do Estado deve ser pautada em cinco pilares para que de fato
sejam efetivas suas ações. Notemos:
a) Motivos fisiológicos – destinados a proteger o desenvolvimento
físico normal do menor, pela imposição de limites naturais aos
trabalhos de duração excessiva, noturnos, insalubres, perigosos,
penosos, que exigem o dispêndio de força e energia, protegendo o seu
desenvolvimento físico.
b) Motivos de segurança pessoal – destinados a proteger o menor
da exposição a riscos de acidentes de trabalho, decorrentes de sua
própria debilidade etária, evitando que se possa exigir do menor uma
atenção maior do que o mesmo é capacitado a dar.
c) Motivos de salubridade - destinados a proteger o menor do
trabalho, em condições agressivas à sua saúde ou em contato com
substâncias prejudiciais à sua saúde e incolumidade física.
d) Motivos de moralidade – destinados a proteger o menor do
trabalho em atividades que, embora lícitas, sejam de moralidade
duvidosa, afastando o mesmo de ambientes que coloquem em risco
ou prejudiquem a sua formação moral.
e) Motivos culturais – destinados a proteger o menor para que tenha
uma formação educacional adequada, não se permitindo que o mesmo
dedique a exclusividade de seu tempo ao trabalho em detrimento
de seu estudo e educação. O que se pretende é que o trabalho não
prejudique a escola e o desenvolvimento cultural do menor na mais
tenra idade. (grifo nosso) (NASCIMENTO, 2003, p. 70)
Irma Rizzini em sua obra traz a tona algumas iniciativas tomadas
nesta direção, vejamos:
Em 1997 o governo brasileiro criou um programa para tirar crianças
do trabalho em Estados onde há maior exploração, como Mato Grosso
do Sul, Pernambuco e Bahia. Outros locais como o norte do Estado do
Rio de Janeiro e o garimpo em Roraima também foram comtemplados
pelo projeto. O programa se chama ‘Brasil Criança Cidadã’, e através
dele era concedido uma bolsa para cada criança retirada do trabalho
e mantida na escola ate os 14 anos, prevendo uma frequência mínima
de 75% às aulas. (RIZZINI, 2000, p. 392-393)
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Relata a autora supracitada, que até o ano de 1998, haviam sido
beneficiados 38 mil jovens. Ainda acerca deste projeto, Jair Teixeira do Reis
fala que o objetivo principal da bolsa é dar as famílias condições materiais de
deixarem seus filhos apenas na escola:
O objetivo principal da Bolsa Criança Cidadã é recriar condições
materiais para a família prover suas necessidades básicas, assegurandolhe condições mínimas para permitir o ingresso ou o regresso de suas
crianças e adolescentes trabalhadoras à escola. E para isto, essas
famílias têm acesso a uma renda complementar (R$25,00 na área
rural e até R$40,00 na área urbana) sob o compromisso de assegurar
a permanência de seus filhos nas atividades do ensino regular e
da jornada complementar. Sendo que, para fins da concessão e
manutenção mensal da Bolsa, exige-se, a frequência regular da criança
e do adolescente ao ensino formal e às atividades socioeducativas
oferecidas no período complementar e ao abandono da atividade
laboral proibida por lei. (REIS, 2012)
O trabalho da erradicação do trabalho infantil não é uma tarefa de
fácil realização, porém ela é necessária e dependente de todos, sejam eles
governantes, empresários ou simples cidadãos.
O que não se pode fazer é cruzar os braços para uma realidade que
caminha para a destruição. Afinal, não há o que se esperar há não ser a destruição
de um país que não investe satisfativamente na erradicação do trabalho infantil.
5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Foi realizado levantamento bibliográfico, pesquisando obras
referentes ao tema escritas por autoridades na área, assim como pesquisa em
artigos, e dispositivos legais pertinentes ao conteúdo, tais como dispositivos
da Constituição Federal de 1988, Estatuto da Criança e do Adolescente e a
Consolidação das Leis Trabalhistas.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As normas de direito fazem parte de um conjunto maior, que como
espécies temos as regras e os princípios. Diferenciá-los nem sempre é uma
tarefa fácil, no entanto demonstrou-se que as regras de direito nada mais são
do que normas que estabelecem condutas; enquanto os princípios afirmam os
valores desta sociedade.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Ambos possuem força normativa, portanto devem ser observados
como tais e efetivados na vida de todos, sempre com alta carga valorativa aos
princípios constitucionais, pois estes são a base de todo ordenamento jurídico e
devem ser prioridade ter a efetivação dos mesmos.
Foi ressaltado um valor que merece sem dúvida um olhar especial,
qual seja o valor da proteção da criança e do adolescente. Para isso, foram
analisados os princípios que dão suporte as regras de proteção, tais como os
princípios da dignidade da pessoa humana e da proteção integral da criança e
do adolescente. Posteriormente, tratou-se desta proteção na Consolidação das
Leis Trabalhistas.
No que tange aos princípios protetores, não há como deixar de lado
aquele que origina muitos outros, e cujo valor funda-se na integridade do ser
humano. Falamos aqui do princípio da dignidade da pessoa humana. Este
principio dita que à todo ser humano deve ser destinado um tratamento digno,
seguindo os parâmetros fixados em lei. Seja a pessoa condenada socialmente ou
não, à ela deve ser garantido um tratamento com dignidade, pois este princípio
estabelecido constitucionalmente a garante isso.
Seguindo este princípio passou-se ao estudo da doutrina da proteção
integral, que foi introduzida na Constituição Federal de 1988 no seu artigo 227.
À criança e ao adolescente foi dada uma proteção com total abrangência, visto
a sua peculiar fase de desenvolvimento.
Demonstrou-se também que a Consolidação das Leis Trabalhistas não
deixou de contemplar em seu texto o cuidado com as crianças e adolescentes.
Neste sentido, foram firmados com o passar do tempo, várias normas de caráter
limitante no que diz respeito à idade mínima para se começar a trabalhar,
bem como as condições que o ambiente de trabalho deve proporcionar aos
trabalhadores mirins. Neste cenário o estudo foi aprofundado no instituto do
trabalho infantil propriamente dito.
Considera-se apto completamente para o trabalho aqueles, que
conforme a lei determina (artigo 402, CLT), tenham mais de 18 anos completos.
Não obstante aqueles com idade entre 16 e 18 anos também são autorizados
a trabalhar; e os maiores de 14 anos e menores de 16 apenas na condição de
aprendiz, conforme a Emenda nº 20 de 1998, Constituição Federal, artigo 7º,
XXXIII e artigo 403 da Consolidação das Leis Trabalhistas.
Todos aqueles que não se enquadram nestes limites e desenvolvem
qualquer forma de trabalho, fazem parte do que seja trabalho infantil.
Na antiguidade, a exploração do trabalho infantil já era presente. Foi
observado que o trabalho infantil iniciou-se na época de povoamento do Brasil,
em que os filhos e filhas de escravos eram tratados da mesma forma que seus
pais, ou seja, como mercadorias. Além destas crianças, aquelas que se tornavam
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
órfãs também eram encaminhadas para o trabalho infantil. As atividades
desempenhadas não se diferenciavam das desempenhadas pelos adultos. Eram
atividades pesadas com longas jornadas, que exigiam dos trabalhadores extrema
resistência.
Com a abolição da escravatura e a transição para o período da
revolução industrial, as crianças e adolescentes foram levados para trabalharem
nas indústrias. Há relatos que os proprietários das indústrias até preferiam
crianças, tendo em vista as mãos delicadas e pequenas. O fato é que com as
máquinas fazendo o trabalho, qualquer pessoa na operação delas, obteria o
mesmo resultado. As jornadas continuavam sendo longas e o ambiente não era
próprio para a permanência de menores.
Esta fase foi impulsionada pela ideologia pregada na época e que
perdura até os dias atuais: de que o trabalho é a mais perfeita solução para as
crianças abandonadas e delinquentes. Por este motivo, os pais ou responsáveis,
incentivavam que seus filhos fossem trabalhar.
Com o passar dos anos, foram sendo criadas algumas leis com o intuito
de proteger as crianças e os adolescentes que eram expostos ao trabalho. No
teor destas leis, havia limitações quanto aos locais que era permitido o trabalho
infantil e as condições que eles não podiam estar submetidos.
Mais tarde, em 1998 com a Emenda Constitucional nº 20 a idade
mínima para trabalhar passou dos 14 anos para os 16 anos de idade. Mas para os
menores de 18 anos é vedado o trabalho noturno, trabalhos em locais insalubres
ou perigosos, bem como em locais ou serviços que sejam prejudiciais para a
sua moralidade.
Porém, mesmo com toda esta proteção, o trabalho infantil ainda
perdura no Brasil. Os índices são altíssimos, como no ano de 2003, em que os
dados mostravam mais de dois milhões e setecentas mil crianças trabalhando;
isso sem contar as inúmeras meninas que trabalhavam e trabalham como
domésticas nas casas.
O trabalho infantil na atualidade tem uma face um pouco diferente,
com formas distintas de exploração, mas a realidade é que ainda existe.
A sociedade como um todo ainda acredita na ideologia pregada no
inicio da revolução industrial, que é muito melhor que as crianças estejam
trabalhando e gerando renda, do que soltos pelas ruas.
Diversos são os motivos pelos quais as crianças continuam a trabalhar,
bem como as inevitáveis consequências que virão com o tempo.
Como motivos geradores, foi ressaltado como maior deles, a
dificuldade financeira que muitas famílias passam. Desta forma, o papel das
crianças e adolescentes é trocado e equiparado ao papel dos pais, pois a eles
também é incumbida a tarefa de suprir financeiramente o lar.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Observado de outro aspecto temos os motivos daqueles que exploram
a mão de obra infantil: destacou-se o fato de que o trabalho infantil trata-se de
mão de obra extremamente barata. Quem explora sabe que a prática é ilegal e
paga pouco por ela. Afinal, eles têm consciência da necessidade que as crianças
e jovens passam em suas casas, desta forma, qualquer ajuda financeira, seja ela
baixa ou não, será bem vinda.
Visto então os princípios de proteção da criança e do adolescente e
analisado o instituto do trabalho infantil, passou-se o estudo agregando estes
dois temas. Foi feito uma analise do trabalho infantil frente aos princípios
de proteção e observou-se uma enorme violação dos direitos e garantias
estabelecidas às crianças e adolescentes.
É notável que uma criança não pode receber o mesmo tratamento de
uma pessoa adulta, pois aquela, encontra-se em situação de desenvolvimento
e vulnerabilidade. Por este motivo as consequências na vida dos menores
serão na maioria das vezes, sequelas para a vida toda. Discorreu-se acerca das
inúmeras consequências que podem ser geradas através do trabalho infantil,
como consequências físicas, psicológicas e sociais.
Como consequências físicas destacou-se o número demasiado de
acidentes de trabalho. São acidentes que vão desde lesões leves até mutilação de
membros. Ficou evidente que os números são tão altos em decorrência da pouca
idade dos trabalhadores, afinal, os equipamentos de trabalhos não são desenvolvidos
para crianças, mas para trabalhadores com porte físico de uma pessoa adulta. Outro
fato que causa pânico é a presença de crianças e jovens trabalhando em ambientes
insalubres, estes são bem menos tolerantes ao calor, barulho, produtos químicos
e radiações, desta forma desenvolvem doenças com mais facilidade. Dentre as
consequências psicológicas sofridas pelas crianças, foi trabalhado aquelas oriundas
do fracasso por não conseguirem desempenhar as atividades a elas atribuídas,
aquelas advindas da responsabilidade a elas imposta de ter que trazer dinheiro para
casa e até mesmo aqueles traumas ocasionados pela falta da infância. No que tange
as consequências sociais foi abordado como principal problema a falta que a escola
fará na vida das crianças. Estas consequências aparecerão apenas com o passar dos
anos, e por este motivo não são levadas a sério pelos pais, responsáveis e até mesmo
pelos jovens. Isso tudo é devido a escolha errônea feita nos lares: os pais preferem
que os filhos trabalhem ao invés de estudar, afinal, o beneficio do trabalho aparecerá
imediatamente, enquanto o estudo gerará frutos apenas no futuro.
Mais uma vez aparece o cenário de miserabilidade em que centenas de
brasileiros vivem. A fome bate a porta das casas e não há outra saída a não ser
enviar os filhos para rua e obrigá-los a trazerem algum dinheiro. Esta realidade
dos dias atuais é muito triste e afronta totalmente dos direitos e garantias
estabelecidos em lei às crianças e adolescentes.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Neste sentido, foi demonstrado que todos têm a obrigação de ajudar
no combate ao trabalho infantil, sejam elas pessoas físicas ou jurídicas, Estado,
organizações não governamentais, enfim, a todos cabe o dever de zelar pela
integridade das crianças e jovens. O que não pode ser feito é todos fecharem os
olhos para uma realidade que está tão próxima de todos e que levará a destruição
do país.
Afinal, o ciclo do desemprego por falta de capacitação tem se
mostrado consolidado no mercado de trabalho. É necessário que a sociedade
comece a buscar a essência das coisas, para que volte a origem e busque a vida
digna do próximo. Isso é amor. Isso é amar ao próximo. Isso é respeitar e fazer
valer os princípios estabelecidos com tanta sabedoria na Constituição Federal
da República. Isso é fazer valer a proteção e o cuidado que os legisladores
trabalhistas tanto se preocuparam em estabelecer para que a sociedade
simplesmente ande conforme o princípio da dignidade da pessoa humana.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
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32
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL
NA REPRESSÃO AO CRIME VIRTUAL
Alisson Bertoncello
Graduando em Direito pelo Centro Universitário Curitiba –
UNICURITIBA
Alexandre Knopfholz
Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito
de Curitiba (2002), Pós-Graduação em Processo Penal
pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado
em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA
(Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é professor
horista da disciplina de Processo Penal, nos cursos de
graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de
Direito, atuando principalmente nos seguintes temas:
direito processual penal e direito penal
SUMÁRIO: 1.Introdução – 2.A Convenção Sobre o Cibercrime: 2.1 Ciberespaço;
2.2 Convenção de Budapeste - 3 Cooperação Jurídica Internacional; 3.1 Soberania;
3.2 Cooperação Jurídica; 3.3 A Cooperação Jurídica No Brasil; 3.4 Dificuldades; 3.5
Cooperação Jurídica Internacional na Convenção de Budapeste; 3.6 Auxílio Mútuo Na
Convenção De Budapeste; 3.7 Modalidades de Auxílio Mútuo; 3.8 Proteçao a Ordem
Pública do Estado Requerido; 3.9 Celeridade nos Pedidos; 3.10 Caráter Subsidiário da
Convenção – 4.Dupla Incriminação – 5.Considerações Finais - Referências.
RESUMO
O presente trabalho pretende demonstrar a importância cada vez maior
no estabelecimento do dialogo entre as Nações, visando à união de esforços no
combate ao crime virtual. Para isso, serão abordados os aspectos principais do
uso da internet e suas consequências no mundo real. Na sequência, o tema será
a Convenção de Budapeste e seus objetivos, principalmente no que tange a
cooperação jurídica entre os Estados quando o assunto é crime virtual. Também
será estudado de que maneira a Convenção incentiva à utilização do auxílio
mútuo como principal mecanismo de colaboração entre países. Isto porque, as
ações praticadas em ambiente virtual possuem alcance ilimitado e, na grande
parte das vezes, ultrapassando a jurisdição do Estado de onde tenha partido
a ação. Diante disso, constata-se o papel fundamental da cooperação jurídica
33
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
internacional. Será abordado também, o atual cenário jurídico brasileiro no que
se refere à cibercriminalidade, bem como quais devem ser os passos a seguir
no sentido preparar uma base sólida visando um futuro ingresso na Convenção.
Palavras-chave: Cooperação jurídica internacional, Convenção de Budapeste
sobre o Cibercrime, cibercrime, crime virtual, auxílio mútuo.
ABSTRACT
This paper aims to demonstrate the growing importance in the
establishment of dialogue between nations, in order to join efforts in combating
cybercrime. For this, we discuss the main aspects of Internet use and its
consequences in the real world. Following, the theme will be the Budapest
Convention and its objectives, mainly regarding legal cooperation among
states when it comes to cybercrime. It will also be studied how the Convention
encourages the use of mutual aid as the main mechanism for collaboration
between countries. This is because the actions taken in the virtual environment
have unlimited range, at most times, exceeding the jurisdiction of the State
party which has the action. Given this, we state the high importance of the role
of international legal cooperation. Also be addressed, the current Brazilian legal
scenario with regard to cybercrime, and what should be the steps to follow in
order to prepare a solid foundation aiming a future entry into the Convention. Keywords: International Legal Cooperation, Budapest Convention on
Cybercrime, cyber crime, cyber crime, mutual assistance.
1 INTRODUÇÃO
A evolução tecnológica proporcionou à sociedade benefícios
consideráveis em diversos campos do cotidiano social. Possibilitou descobertas
na medicina, proporcionou agilidade nas comunicações, realizou a integração
econômica dos Estados. Essas são apenas algumas áreas do conhecimento que
foram diretamente afetadas pelo progresso da informática.
Apesar de todas as benesses advindas da tecnologia, suas características
de distanciamento físico entre as pessoas e sensação de anonimato do indivíduo
estimularam a prática de condutas inadequadas. Inicialmente essas condutas
também foram motivadas pela total inexistência de leis regulando as relações
estabelecidas via rede de computadores.
Devido à possibilidade de se praticar uma conduta virtual como se
real fosse, torna-se inevitável a equiparação da internet a um país caracterizado
34
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
pela inexistência de regramento capaz de estabelecer limites à atividade social
de seus membros.
Porém, no decorrer dos anos, gradativamente, foram surgindo
dispositivos nos âmbitos nacional e internacional contemplando determinadas
situações específicas, de maneira que, no cenário atual, o ordenamento jurídico
brasileiro prevê a maioria das condutas ilícitas realizadas na internet.
Hoje a principal dificuldade em se enfrentar este problema reside
no reduzido engajamento dos Estados em cooperar com outras Nações na
persecução de infratores deste tipo específico de crime.
Dessa forma, o presente artigo tratará da Convenção de Budapeste de
2001, bem como seus objetivos essenciais. Para isso, imprescindível verificar
quais os problemas que a tecnologia trouxe ao criar um ambiente desprovido de
normas, caracterizado pela sensação de anonimato e, também, pelos efeitos das
relações estabelecidas nesse ambiente, que não se restringem ao plano virtual.
Diante dessa dimensão, denominada ciberespaço, que desconhece limites
territoriais, surge a Convenção de Budapeste como ferramenta essencial de
unificação de esforços internacionais na repressão ao crime virtual.
Dessa maneira, o trabalho terá o objetivo de explanar os procedimentos
acerca da cooperação judiciária no plano mundial, os mecanismos de ajuda
internacional disponíveis, bem como as barreiras encontradas no desenvolvimento
dos pedidos, principalmente relacionadas ao tema da soberania.
2 A CONVENÇÃO SOBRE O CIBERCRIME
2.1 CIBERESPAÇO
Definir o que seja o ciberespaço, neste capítulo, reside no fato de que
suas principais características estejam ligadas a ausência de limites temporais e
espaciais. Como dito anteriormente, a Internet possibilitou o surgimento de um
novo plano, diferente do plano real, composto por características diferentes das
que são conhecidas normalmente.
Sobre as influências da internet na definição de espaço e tempo no
ciberespaço, Emeline Piva Pinheiro (2006, p. 9.) esclarece que, neste ambiente,
[...] espaço e tempo perdem sensivelmente seu significado,
especialmente o espaço, que é suprimido. Na questão espaço/
tempo podemos dizer que um acontecimento ocorre depois de outro
acontecimento, podemos medir os pontos entre acontecimentos
através de eventos, seriam intervalos de espaço-tempo, porém, na
Internet, esse intervalo praticamente não existe, tudo é instantâneo. O
35
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
ciberespaço é um espaço sem dimensões.
A definição de geografia que se conhece hoje perde sua essência se
for defrontada com o conceito de ciberespaço. Assim, uma nova geografia surge
com características imateriais. Apesar dessa característica de ser imaterial,
virtual ou um lugar imaginário, não se pode olvidar que a mesma não deixa de
estar ligada a realidade e é por isso que tanto se discute sobre a efetividade do
direito em seu contexto.
Assim, Christiany Pegorari Conte (2012, p.1) define o ciberespaço
como sendo,
[..] não é propriamente um território, mas se caracteriza por um fluxo
constante de informações, através de redes de comunicação, de forma
que a localização da informação passa a ter relevância, uma vez que
é ela quem dá a idéia de território, desvinculado do espaço físico,
surgindo daí, diversas questões a serem solucionadas pelo direito
penal e processual penal.
Como dito, por ser um ambiente desprovido de fronteiras, as ações
cometidas na internet, possuem alcance transnacional, ou seja, atingindo pessoas
que estão em qualquer país do mundo em questão de segundos. Muitas vezes
refletindo um número incalculável de vítimas ao mesmo tempo. O processo
evolutivo que se observa neste século, atribui à sociedade duas características
diretamente relacionadas à internet, quais sejam globalização e a integração
supranacional.
Diante desse aspecto de interconectividade, em que os indivíduos
estão compartilhando informações em tempo real e em qualquer parte
do mundo é, por óbvio, que os crimes de tecnologia possam produzir
consequências internacionais. De maneira que, para Antonio Celso Galdino
Fraga (2001, p. 378),
[...] os ataques que vem sendo perpetrados por hackers revelam
a possibilidade de se cometer a infração em um determinado país,
enquanto os efeitos decorrentes dessa infração possam repercutir
diretamente em outros países.
Christiany Pegorari Conte (2006, p. 4) reforça a ideia de que,
[...] os delitos perpetrados em ambiente virtual possuem caráter
transnacional, uma vez que atingem diversos países, simultaneamente,
36
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
que somado ao caráter global do ciberespaço, faz surgir a necessidade de
uma nova análise acerca do exercício da aplicação da lei penal no espaço.
Vale ressaltar que tais condutas infratoras estão sendo criminalizadas
em alguns países, porém outros ainda não o fizeram. Esse fato dificulta
significativamente a prevenção e o combate aos delitos dessa natureza. De
acordo com Antonio Celso Galdino Fraga (2001, p. 379), “há um consenso
por parte da comunidade internacional de que não bastam os esforços
individuais de um ou de alguns países para dissuadir a prática dos crimes
de informática”. É necessário um esforço conjunto de toda a comunidade
internacional, visando estabelecimento de regras de conduta na Internet, bem
como, o estabelecimento de procedimentos de cooperação internacional para
investigação de criminosos virtuais.
2.2 CONVENÇÃO DE BUDAPESTE
Vários encontros foram realizados pelos organismos internacionais
visando encontrar soluções para o problema. Em uma cerimônia realizada na
cidade de Budapeste, capital da Hungria, em 2001, o texto da Convenção foi
submetido à deliberação pelo Comitê de Ministros do Conselho da Europa. Nessa
ocasião, trinta países assinaram o tratado, incluindo alguns países não-membros do
Conselho, mas que haviam participado das discussões (Canadá, Estados Unidos,
Japão e África do Sul). O cenário atual é de 47 assinaturas e 33 ratificações.
Luciana Boiteux (2004, p. 169) explica que a Convenção de Budapeste é o,
[...] primeiro tratado internacional sobre crimes cometidos por meio de
sistemas de computadores, lidando particularmente com a segurança
de redes de computadores, violações de direitos autorais, fraude por
meio de computadores e da pornografia infantil. [...] O objetivo de tal
Convenção, como expressamente declarado em seu preâmbulo, é o de
buscar uniformizar a legislação europeia, por meio de uma política
criminal comum, para proteger a sociedade dos crimes cibernéticos,
recomendando a legislação apropriada e buscando agilizar e facilitar
a cooperação internacional por meio da adoção de tipos legais e
procedimentos penais uniformes.
Atualmente a Convenção de Budapeste é o principal instrumento de
harmonização jurídica internacional que versa sobre a criminalidade virtual
em âmbito mundial. Ela é dividida em quatro capítulos, os quais dispõem
respectivamente sobre a) a terminologia técnica utilizada no decorrer do texto
37
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
da convenção; b) as condutas que cada Estado membro deverá tipificar em
âmbito interno; c) a cooperação internacional e, por fim, c) as disposições finais.
Logo no preâmbulo da Convenção, pode-se perceber os objetivos
principais deste tratado ao declarar a,
[...] necessidade de prosseguir, com caráter prioritário, uma política
comum, com o objetivo de proteger a sociedade contra a criminalidade
no ciberespaço, designadamente, através da adoção de legislação
adequada e da melhoria da cooperação internacional.
Luciana Boiteux (2004, p. 169) expõe com outras palavras as intenções
do Conselho da Europa ao elaborar o texto da convenção. Segundo ela,
[...] com o intuito de uniformizar a legislação europeia, utilizando-se
de uma política criminal comum para defender a sociedade dos crimes
informáticos, indicando a legislação apropriada, trazendo facilidades
e agilizando a cooperação internacional por meio da adoção de tipos
legais e procedimentos penais uniformes.
Dessa maneira, conclui-se que o objetivo primordial da Convenção
é a construção de princípios que deverão reger todos os Estados signatários
mediante o estabelecimento de políticas comuns de cooperação internacional.
Somente através do estabelecimento de uma uniformização legal orquestrada
pelo Direito Internacional e da ratificação deste tratado pelo maior número de
países é que se pode pensar em combater os crimes dessa natureza.
A presente Convenção ressalta a necessidade de que sejam observados
todos os aspectos referentes à proteção dos direitos fundamentais do ser humano
estabelecido por outros tratados já vigentes nesta matéria.
Na esfera penal, o presente tratado reconhece a necessidade de
observância de outros tratados visando à agilidade na investigação, persecução,
produção de provas, identificação do infrator e aplicação da sanção cabível.
O primeiro capítulo da Convenção tratou de estabelecer os conceitos de:
sistema informático, dados informáticos, fornecedor de serviço e dados de tráfegos.
As questões de direito material e direito processual são tratados
no segundo capítulo da Convenção sobre o Cibercrime. Neste capítulo, são
estabelecidas as condutas consideradas ilícitas e que cada Estado deverá
tipificar em seu ordenamento jurídico interno. O objetivo é fazer com que cada
conduta ilícita num determinado país, receba o mesmo tratamento noutro. Estas
condutas são descritas nos artigos 2 ao 12 da Convenção de Budapeste.
Com relação ao direito processual, segundo o texto do tratado, cada
Estado adotará procedimentos com vistas a facilitar a investigação criminal de
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
um acusado da prática de um crime virtual. Dentre eles, a busca e apreensão de
dados informáticos, a conservação de dados de registros de conexão de usuários
por prazo máximo de 90 dias, etc. Todas as ações visando o acesso aos dados
de usuário investigado.
Segundo Lucie Angers (2004, p. 45),
Having in place adequate powers to allow investigators to follow the
electronic tracks of a criminal is essential, and in no area if investigation
is inter-operability between the national system of different countries
more important. 1
Demonstra-se, com isso, a extrema importância do envolvimento dos
Estados na repressão ao crime cometido através da internet.
Sobre a competência para processar e julgar crime desta natureza,
Ana Carolina Mazoni (2012, p. 2) explica que,
Tendo os crimes cibernéticos alta complexidade, devido ao fato de estarem
relacionados com o local em que se consumam, e, por consequência de
constituir de várias jurisdições distintas afetando países diferentes, é
imprescindível que sejam investigados e identificados.
Para que isso seja possível, em crimes com essa característica, fundamental
determinar a regra de competência de cada Estado para investigar o caso. Essa regra
vem descrita no artigo 22 da Convenção, esclarecendo que a mesma será de um
determinado Estado-parte, sempre que a infração seja cometida,
a) No seu território, ou;
b) A bordo de um navio arvorando o pavilhão dessa Parte, ou;
c) A bordo de uma aeronave matriculada nessa Parte e segundo as
suas leis, ou;
d) Por um dos seus cidadãos nacionais, se a infração for punível
criminalmente onde foi cometida ou se a infração não for da competência
territorial de nenhum Estado.
Segundo Cezar Roberto Bitencourt (2009, p. 188), o Código Penal
Brasileiro adotou a Teoria pura da ubiquidade, mista ou unitária, evitando-se,
assim, o conflito negativo de competência.
Essa teoria soluciona questões referentes a crimes cometidos à
distância, como no caso dos crimes cibernéticos. Por ser uma norma de
Tradução livre: “Possuir poderes adequados para permitir que os investigadores siguam as
trilhas eletrônicas de um criminoso é essencial, e em nenhuma outra área de investigação a
interoperabilidade entre os sistemas nacionais de diferentes países se mostra tão importante.”
1 39
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
aplicação interna, sua eficácia poderá ser questionada nas situações envolvendo
países diferentes e, por certo, que ambos solicitariam a competência para tal. Ao
Direito Internacional Público, através do diálogo entre as Nações, cabe regular
situações como essa, que por meio dos tratados internacionais, padronizarão
regras a serem seguidas por todos os países que forem signatários.
Ainda sobre a definição da competência, a Convenção de Budapeste
estabelece que esta poderá ser requerida quando,
[...] mais que uma Parte reivindique a competência em relação uma
presumível infração prevista na presente Convenção, as Partes em
causa, se for oportuno, consultar-se-ão a fim de determinarem qual é a
jurisdição mais apropriada para o procedimento penal.
A cooperação jurídica internacional vem contemplada no capítulo
terceiro do tratado sobre o cibercrime, no qual são estabelecidos os princípios
gerais relativos à cooperação, princípios gerais sobre a extradição e relativos
ao auxílio mútuo na ausência de acordos internacionais aplicáveis, bem como,
cooperação em matéria de medidas provisórias. O estudo pormenorizado desta
questão ficará situado no último capítulo do trabalho.
Em resumo, segundo Arnaldo Sobrinho de Moraes Neto (2009, p.
125), a Convenção de Budapeste possui como escopo principal,
(1) harmonizar o direito penal interno (de cada país) e harmonizá-lo com
as previsões relativas ao cibercrime; (2) prover o direito processual penal
interno de poderes necessários para a investigação e repressão de delitos
como bem como outros crimes cometidos por meio de um sistema de
computador ou obtenção de provas em relação ao que está em formato
eletrônico e (3) a criação de um rápido e eficaz regime de cooperação
internacional.
Com relação a novos ingressos à Convenção, depreende-se da leitura
do artigo 37 que o país seja convidado pelo Comitê de Ministros do Conselho da
Europa. O Estado não pode simplesmente pretender participar da Convenção.
É necessário ser convidado e ter sua participação aprovada, conforme se extrai
da leitura do referido artigo.
Neste ponto reside a importância do estabelecimento de procedimentos
comuns a todos os Estados membros da convenção.
No Brasil existe uma mobilização para que o país manifeste interesse
na ratificação da referida Convenção. Porém, para que isto ocorra, é necessário
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
observar outros requisitos básicos contidos no texto do tratado, como abordado
anteriormente.
Além disso, muito ainda será debatido acerca dos limites impostos
pela lei que está em discussão no Congresso Nacional. As autoridades
brasileiras alegam não ter intenção de assinar um tratado, no qual o país não
tenha participado das negociações para sua elaboração.
3 COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL
3.1 SOBERANIA
Torna-se praticamente impossível iniciar o estudo da cooperação
jurídica internacional sem antes abordar um tema essencial na sua compreensão,
qual seja: o conceito de soberania e suas especificidades.
Muitas vezes, este é o principal entrave no desenvolvimento das
relações internacionais, impondo-se como uma barreira que impede que os
pedidos de cooperação sejam concluídos.
A palavra em questão pode ser analisada sob inúmeros aspectos,
tendo em vista não ser um termo inerente à modernidade, mas sim atrelados ao
conceito de Estado desde o seu surgimento.
Porém, o que interessa para desenvolvimento do presente estudo é a
concepção mais moderna do termo, tendo em vista as relações internacionais,
no que tange aos pedidos de cooperação jurídica internacional. Nesses termos a
conceituação circundará os conceitos de competência e jurisdição.
Por soberania, entende-se a autonomia que cada Estado tem para
manter relações externas com a nação que desejar, sem que esta relação lhe seja
imposta por qualquer outro ente internacional.
Dalmo de Abreu Dallari (2001, p. 79), ao compilar as diversas teorias
que conceituam a soberania, conclui que,
[...] a noção de soberania esta sempre ligada a uma concepção de
poder, pois mesmo quando concebida como o centro unificador de
uma ordem está implícita a ideia de poder de unificação. [..] não se
preocupa em ser legitimo ou jurídico, importando apenas que seja
absoluto, não admitindo confrontações, e que tenha meios para impor
suas determinações.
Diante deste aspecto, a soberania pode ser afirmada no contexto
interno de cada Estado, ou seja, este só pode decidir sobre seus rumos ou
decisões no âmbito interno de sua jurisdição.
Em relação a outras nações, não há que se falar em soberania, pois
como ensina Goffredo Telles Junior (2001, p. 121),
41
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
[...] o governo é soberano, mas só é soberano dentro dos limites de suas
competências nacionais. Nenhum Estado é soberano relativamente a outro
Estado. Soberano conota superioridade, supremacia, predominância como
foi explicado. Logo, constituiria verdadeiro contrassenso a afirmação de
que os Estados são soberanos em suas relações internacionais.
Nas situações em que as autoridades de um país necessitem proceder
qualquer ato processual em outra jurisdição, podem ocorrer entraves decorrentes
da burocracia no procedimento de verificação de validade de pedido, sob o
argumento da preservação da soberania do país requerido.
A alegação da manutenção da soberania pode ser elencada como
uma das principais dificuldades no processamento da cooperação jurídica
internacional no mundo.
Sob o alicerce da nova realidade nas relações sociais, trazidas pela
evolução tecnológica, José Antonio Dias Toffoli e Virgínia Charpinel Junger
Cestari (2008, p. 21) ressaltam que,
[...] as concepções ultrapassadas acerca do conceito de soberania
necessitaram ser afastadas, sendo injustificável o receio de que a
cooperação internacional ofenda o poder soberano de cada país, mesmo
porque o atendimento aos pedidos de cooperação condicionam-se à sua
consonância aos preceitos da ordem pública e do interesse nacional.
Neste cenário, vale ressaltar que, o Estado que age no mesmo intuito da
colaboração junto às demais Nações, não estará colocando a sua soberania em risco,
mas, pelo contrario, estará sim, defendendo-a de todo e qualquer tipo de violação.
3.2 COOPERAÇÃO JURÍDICA
A cooperação jurídica internacional consiste, justamente, no
estabelecimento de procedimentos com o intuito de proporcionar ao Estado
requerido a agilidade necessária nas persecuções penais que nele estejam
andamento, mas que, para sua conclusão, dependam de que certos atos
processuais sejam executados em outra jurisdição.
Diante das profundas alterações sociais provocadas pela
tecnologia, o estudo da cooperação jurídica internacional tem se tornado
cada vez mais recorrente.
A explicação para isso surge justamente porque, diante desta nova
configuração social, os problemas que surgiram não podem ser resolvidos por
um Estado isoladamente, ou seja, sem contar com o auxílio de outros.
42
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Neste sentido, Márcio Mateus Barbosa Júnior (2012, p. 2) ensina que
a cooperação,
[...] pressupõe trabalho conjunto, colaboração. É nesse sentido que
toda e qualquer forma de colaboração entre Estados, para a consecução
de um objetivo comum, que tenha reflexos jurídicos, denomina-se
cooperação jurídica internacional.
Fábio Ramazzini Bechara (2011, p. 42) define o instituto como sendo,
[...] o conjunto de atos que regulamenta o relacionamento entre dois Estados
ou mais, ou ainda entre Estados e Tribunais Internacionais, tendo em vista a
necessidade gerada a partir das limitações territoriais de soberania.
O que justifica a cooperação internacional é a ausência de jurisdição
no território onde deverá ser praticado o ato, seja ele de qualquer natureza,
bastando apenas que ele seja transnacional.
A Convenção de Budapeste deu ênfase a uma modalidade de
cooperação judiciária mais célere, dada a nova dinâmica apresentada pelos
tempos modernos, caracterizados pelos relacionamentos globais, aumento da
ocorrência de crimes transnacionais, como os crimes relacionados à computação
e a eliminação das fronteiras entre países.
Diante da necessidade de prover agilidade na execução de pedidos
estrangeiros, as autoridades internacionais desenvolveram novos métodos para
colaboração entre os Estados. Conforme explicam José Antonio Dias Toffoli, e
Virginia Charpinel Junger Cestari (2008, p. 25),
[...] os Estados viram-se diante da necessidade de criar mecanismos
ainda mais arrojados de colaboração interestatal. Surgiu, então, uma
nova forma de cooperação, mais versátil e compatível com a era atual,
que se convencionou chamar de Auxílio Direto.
O processamento das solicitações de Auxílio Direto ocorre de
maneira diferente dos meios tradicionais de cooperação internacional como, por
exemplo, a carta rogatória. Naquela modalidade, o processamento é gerenciado
diretamente pelas Autoridades Centrais, tanto do Estado que solicita a diligência
quanto do Estado que recebe a solicitação.
Para Fábio Ramazzini Bechara (2011, p. 54), o que realmente
diferencia a carta rogatória do auxílio direto
43
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
[...] é o fato de que o Estado estrangeiro não se apresenta na condição
de juiz, mas de administrador, porquanto não encaminha um pedido
judicial de assistência, mas sim uma solicitação para que a autoridade
judicial do outro Estado tome providencias e as medidas requeridas
no âmbito nacional.
Outra importante diferença reside no fato de que na assistência
direta, o Estado requerido toma a decisão chegando até a analisar o mérito da
solicitação. O que não acontece na carta rogatória em que o Estado requerido
está limitado a uma cognição restrita à admissibilidade da solicitação.
Segundo Ministério da Justiça
Por meio do auxílio direto, o Estado abre mão do poder de dizer o direito
sobre determinado objeto de cognição para transferir às autoridades
do outro Estado essa tarefa. Não se pede, portanto, que se execute
uma decisão sua, mas que se profira ato jurisdicional referente a uma
determinada questão de mérito que advém de litígio em curso no seu
território, ou mesmo que se obtenha ato administrativo a colaborar com
o exercício de sua cognição. Não há, por consequência, o exercício de
jurisdição pelos dois Estados, mas apenas pelas autoridades do Estado
requerido.
Percebe-se que a diferença entre o auxílio direto e os demais
mecanismos reside no fato de que aquele não exige o juízo de delibação para a
concessão do exequatur no Estado requerido.
Vale ressaltar que o auxílio direto não possui previsão constitucional,
porém, possui vigência infraconstitucional, dado os tratados assinados pelo
Estado brasileiro que preveem este instrumento de cooperação judiciária.
A título exemplificativo pode ser citada a Convenção de Budapeste sobre o
cibercrime, que possui um capítulo dedicado exclusivamente para tratar do que
ele determina como auxílio mútuo.
Dessa forma, estabelecidos os principiais conceitos referentes
à cooperação jurídica internacional, bem como as principais ferramentas
disponíveis em âmbito internacional, cumpre abordá-los de maneira particular
quanto ao modo em que ela se processa no Brasil.
3.3 A COOPERAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 4º,
preconiza a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade como
44
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
um dos princípios que regem as suas relações internacionais. Este princípio é
o que provê respaldo para alguns tratados acerca de cooperação que o Brasil já
possui com alguns atores internacionais atualmente.
Tarso Genro (2008, p. 12) ressalta que, no geral,
[...] o Brasil é um país requerente de cooperação jurídica. Em
outras palavras: nós solicitamos mais cooperação do que recebemos
solicitações. Dessa forma, é de suma relevância que as autoridades
brasileiras dominem os procedimentos necessários para a obtenção de
cooperação jurídica, para que, assim, as solicitações brasileiras sejam
cada vez mais eficientes.
A autoridade central é o órgão responsável pelo recebimento dos
pedidos de cooperação internacional, ativa ou passiva. Segundo Romeu Tuma
Junior (2008, p. 14), a autoridade central
[...] foi concebida com o propósito de facilitar as relações entre
os Estados-Partes de determinado tratado de cooperação jurídica
internacional, por meio da unificação de todas as suas atribuições
em uma só instituição. A ideia é que um único órgão especializado
nas funções administrativas exercidas na cooperação jurídica possa
aprimorar essa forma de relação entre os Estados, de modo a tornar
a cooperação mais célere e eficaz. Isso representa o advento de um
segundo estágio na comunicação que surge na cooperação jurídica
internacional, posterior àquele em que tal comunicação somente
ocorria pelos canais diplomáticos.
A concepção de Autoridade Central obedece a um padrão estabelecido
por tratados internacionais que visam à efetividade da cooperação jurídica
internacional. Portanto, cada Estado deverá indicar o órgão que funcionará
como autoridade centralizadora dos pedidos.
Dessa forma, o órgão responsável pelo recebimento e expedição
de pedidos de auxílio é a Autoridade Central, representada pelo Ministério
da Justiça, tendo papel fundamental na distribuição e análise dos pedidos de
cooperação judiciária.
Nesse sentido, é possível perceber a importância do trabalho
administrativo desenvolvido pela Autoridade Central em todas as fases
da cooperação internacional, desde a chegada do pedido de cooperação
em determinado país até sua devolução, passando por todos os esforços
45
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
que visam a assegurar a satisfação dos interesses do Estado estrangeiro
que o solicita.
Com relação aos pedidos de auxílio direto, de acordo com o artigo 7º da
Resolução n.º 9, de 04.05.2005, serão encaminhados diretamente ao tribunal para
sua execução, desde que não se exija juízo de delibação na concessão do exequatur.
Mesmo sob a denominação de carta rogatória, os pedidos serão
tratados como se auxílio direto fosse tendo, portanto, os mesmos trâmites, pois
segundo Gilson Dipp (2012, p. 30),
o correto balizamento das questões em análise exige a compreensão
de que nem todo pedido de assistência jurídica, encaminhado por
autoridades estrangeiras a autoridades brasileiras, enquadra-se no
conceito de “carta rogatória” a que se refere a Constituição Federal,
no art. 105, I, a, ainda que tal assistência tenha sido encaminhada sob
esse rótulo. Em outras palavras, haverá, no universo de medidas que
podem ser rogadas por Estados estrangeiros ao Estado brasileiro, as
que exigem e as que dispensam o prévio juízo de delibação como
condição de seu atendimento.
Enquanto a competência para concessão do exequatur permaneceu
com o Supremo Tribunal Federal, a tese que prevalecia era de não dar
a autorização para execução de cartas rogatórias de caráter executório
no Brasil. A Emenda Constitucional 45/2004 transferiu a competência
para realizar o juízo de delibação e conceder o exequatur do Supremo
Tribunal Federal para o Superior Tribunal de Justiça.
De acordo com Dora Cavalcanti Cordani (2008, p. 100),
A realização de medidas determinadas por autoridade estrangeira
no território brasileiro afrontaria a ordem publica nacional. Assim, a
efetivação de tais medidas demandaria a homologação de sentença
estrangeira que as determinara antes do cumprimento do pedido no Brasil.
Essa mudança provocou profundas alterações no entendimento acerca
da cooperação jurídica internacional, tornando-a mais célere com o objetivo de
conferir-lhe maior efetividade, vindo ao encontro do compromisso assumido
pelo Estado brasileiro perante a comunidade internacional.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
3.4 DIFICULDADES
Percebe-se que a cooperação jurídica internacional tem evoluído no
sentido de se aprimorar o procedimento ao longo dos anos dando agilidade e
eficiência às solicitações de um modo geral no mundo.
Por outro lado, algumas questões ainda oferecem dificuldades, de
maneira que, ainda não se pode afirmar que a cooperação exerça seu objetivo
de forma plena em todos os países.
Uma dessas questões, diz respeito à soberania. Muitas vezes, é vista com
certo receio pelas autoridades estatais, sob o argumento de que cada Estado deseja
mantê-la livre de qualquer violação ao receber solicitação de auxílio internacional.
Segundo Tarso Genro (2008, p. 10),
o conceito de que um Estado tem o direito e o dever de zelar pela
justiça em sua jurisdição está diretamente relacionado com o próprio
conceito de Estado e de soberania. Tradicionalmente, a cooperação
jurídica é vista como o resguardo de interesses entre Estados: por um
lado, o interesse de um Estado em solicitar auxílio ou cooperação
e, por outro, a soberania do Estado requerido na hora de responder
a solicitação de auxílio. Hoje em dia, no entanto, já não se pode
vincular os conceitos tradicionais de soberania à cooperação jurídica
internacional. A cooperação jurídica entre Estados pode ser vista, de
certa forma, como um meio de preservar a própria soberania.
Principalmente quando se trata de crimes que atingem um número
incalculável de vítimas em todo o mundo, como no caso dos crimes tecnológicos.
Nesta dinâmica, facilmente poderão ser encontradas vítimas decorrentes de um
mesmo crime virtual tanto no Estado requerido quanto no requerente. Daí vem
a afirmação de que agindo no sentido da cooperação, o Estado requerido estará
reafirmando sua própria soberania.
3.5 COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL NA CONVENÇÃO DE BUDAPESTE
Como já abordado anteriormente, as características transnacionais da
internet incluem uma dificuldade a mais quando o assunto se refere à prevenção
de crimes tecnológicos. Essa transnacionalidade é que torna a ação dos órgãos
de investigação dos Estados ineficazes, tendo em vista o limite territorial
imposto pela observância ao princípio da soberania dos Estados.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Diante disso, os procedimentos de investigação criminal que
necessitem de dados armazenados, transmitidos, processados no exterior para
seu prosseguimento, inevitavelmente demandarão solicitações através de
cooperação jurídica internacional.
Estimulada pela Convenção de Budapeste sobre o Cibercrime, a
cooperação internacional surge como elemento essencial na repressão a esse
tipo específico de delito protegendo bens jurídicos potencialmente afetados.
Dessa forma, constata-se que a cooperação jurídica internacional,
estimulada pela Convenção de Budapeste sobre o Cibercrime, revela ser a
maneira mais adequada e eficiente na repressão ao crime cibernético em âmbito
internacional.
Isto porque, no tratado são definidas as condutas que cada Estado
deverá tipificar em âmbito interno, com o objetivo de se estabelecer uma
harmonização das legislações de cada país sobre uma determinada prática
ilícita.
Além disso, promove adaptações procedimentais para fins de
coleta, armazenagem e interceptação de dados informáticos no contexto das
investigações criminais.
Vladimir Chaves Delgado (2007, p. 262), em sua tese de mestrado,
confirma que a convenção em estudo
[...] logrou estruturar sólidas bases para a cooperação internacional em
matéria penal entre os Estados, estabelecendo um regime detalhado
e modalidades específicas de auxílio mútuo, visando atender às
demandas atuais no contexto de investigações e procedimentos penais
relativos a crimes informáticos, e também crimes tradicionais, que
envolvam a coleta de elementos probatórios em forma eletrônica.
A cooperação jurídica internacional começa a ser tratada no capítulo
terceiro do tratado. Nele são abordados os aspectos principais acerca dos
métodos, procedimentos e mecanismos disponíveis que deverão ser ajustados
para que atendam a demanda do crime virtual.
Logo no artigo 23 da Convenção, observa-se o princípio da
uniformização dos conceitos que deverão ser observados por todos os Estados
signatários do presente instrumento.
As Partes cooperarão entre si, em conformidade com as disposições
do presente capítulo, em aplicação dos instrumentos internacionais
pertinentes sobre a cooperação internacional em matéria penal, de
acordos celebrados com base nas legislações uniformes ou recíprocas,
48
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
e do seu direito nacional, na medida mais ampla possível, para efeitos
de investigações ou de procedimentos relativos a infrações penais
relacionadas com sistemas e dados informáticos, ou para recolher
provas sob a forma eletrônica de uma infração penal.
Diante do exposto, tem-se que para a repressão ao crime virtual seja
efetiva, em se tratando de crimes transnacionais, é imprescindível a adoção de
práticas predefinidas.
Com a adesão a Convenção de Budapeste de 2001, conceitos serão
padronizados e procedimentos serão estabelecidos, de forma proporcionar
agilidade na execução dos pedidos de auxílio.
Segundo Luciana Boiteux (2004, p. 167),
[...] o funcionamento e a eficácia dos instrumentos internacionais
de assistência mútua perpassam pela uniformização das legislações
nacionais, assim como preconizado pelo Conselho da Europa na
elaboração da Convenção sobre Crimes Cibernéticos, realizada em
Budapeste em 2001, pois um Estado a que se requer assistência somente
pode levar adiante medidas admitidas na sua própria legislação
nacional, bem como diante do princípio da dupla criminalidade que
constitui a base da cooperação internacional.
Neste ponto reside o cerne da questão do presente trabalho, qual seja
o instrumento da Convenção de Budapeste como principal ferramenta destinada
à cooperação internacional.
A extradição, que está disposta no artigo 24 da Convenção sobre o
Cibercrime, preza pelo princípio de que cada parte signatária da Convenção
possua leis tipificando condutas de maneira igualitária. Assim, não há que
se falar em extradição se uma das partes envolvidas não houver tipificado a
conduta que tenha dado motivo à solicitação. Outra condição para que ocorra a
extradição diz respeito à sanção imposta ao crime em cada país signatário.
3.6 AUXÍLIO MÚTUO NA CONVENÇÃO DE BUDAPESTE
No que tange a extradição, vale ressaltar que a presente Convenção apenas
reproduziu soluções vigentes em outras convenções que tratam do assunto, sem que
para isso houvesse a necessidade de alguma adaptação para a cibercriminalidade.
O mesmo não pode ser observado ao tratar do auxílio mútuo, previsto
no artigo 25, em que se buscou estabelecer um procedimento mais detalhado
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
relativo às infrações penais relacionadas com sistemas e dados informáticos ou
para captura de provas na forma eletrônica de uma infração penal.
Desta forma, estão previstos procedimentos como: “preservação
expedita de dados informáticos armazenados” no artigo 29, no artigo 30
a “divulgação expedita de dados de tráfego preservados”, no artigo 31 a
“busca ou acesso, apreensão ou obtenção, e divulgação de dados informáticos
armazenados”, no artigo 33 a “coleta de dados de tráfego em tempo real” e,
finalmente, no artigo 34 está prevista a “interceptação de dados de conteúdo”.
Além disso, o documento também prevê algumas outras medidas de caráter
menos específico.
Além dos procedimentos previstos nos artigos acima citados, outras
normas de natureza geral são previstas nos artigos 25, 27 e 28. Neles são
estabelecidos “princípios gerais relativos ao auxílio mútuo”, os “procedimentos
relativos aos pedidos de auxílio mútuo na ausência de acordos internacionais
aplicáveis” e “confidencialidade e limitação ao uso” do auxílio mútuo.
Com relação aos “princípios gerais relativos ao auxílio mútuo”
que estão contidos no artigo 25, são estabelecidos que, em caso de urgência,
mecanismos céleres de comunicação serão utilizados, visando dar efetividade
ao pedido de cooperação. Também delimitam o alcance do princípio da dupla
incriminação, além de estabelecer critérios para escolha do direito aplicável no
Estado requerido nos casos de auxílio mútuo.
O artigo 27 dispõe sobre o conjunto de normas aplicáveis à designação
de autoridades centrais, bem como hipóteses de adiamento e recusa na prestação
do auxílio, bem como na possibilidade do Estado requerente determinar sigilo
nos procedimentos de investigação, etc.
Em síntese, Vladimir Chaves Delgado (2007, p. 179) prescreve o
conteúdo do artigo 28 de maneira que,
trata das restrições à utilização dos dados ou informações fornecidas à
Parte requerente, em resposta a um pedido de auxílio mútuo. A Parte
requerida poderá impor duas restrições em relação ao uso dos dados
ou informações solicitadas pela Parte requerente: que sejam utilizadas
apenas em caráter confidencial; e que não sejam utilizadas em outras
investigações ou processos penais que não aqueles expressamente
indicados no pedido de auxílio mútuo.
Vale ressaltar que as normas contidas no artigo 25 são de natureza
obrigatória para os Estados-parte da Convenção de Budapeste. No entanto,
as normas dos artigos 27 e 28 vinculam as partes quando não existir outro
instrumento regulamentado o auxílio mútuo entre Estado requerido e requerente.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Ou seja, caso exista outro tratado disciplinando referido instituto, este será
aplicado em detrimento das normas contidas na presente Convenção.
3.7 MODALIDADES DE AUXÍLIO MÚTUO
A Convenção de Budapeste enumera modalidades de auxílio mútuo
em matéria penal que deverão ser observadas pelos Estados signatários. São
elas: “intercâmbio espontâneo de informações” (artigo 26); a “preservação
expedita de dados informáticos armazenados” (artigo 29), a “divulgação
expedita de dados de tráfego preservados” (artigo 30), a “busca ou acesso,
apreensão ou obtenção, e divulgação de dados informáticos armazenados”
(artigo 31), a “coleta de dados de tráfego em tempo real” (artigo 33), a
“interceptação de dados de conteúdo” (artigo 34), e o auxílio mútuo no
âmbito da Rede 24/7 (artigo 35).
Convêm salientar que, neste capítulo da convenção, foram necessárias
algumas adaptações visando adequar as medidas a serem tomadas frentes às
necessidades impostas pela tecnologia.
Vladimir Chaves Delgado (2007, p. 182) chama a atenção para o fato
de que
[...] os redatores da Convenção de Budapeste trataram de adaptar
determinados aspectos de algumas medidas tradicionais de obtenção
de elementos probatórios relativos a infrações penais, à realidade do
moderno contexto tecnológico. Assim, com base na tradicional medida
de busca e apreensão de bens (objetos tangíveis), criou-se a medida
de “busca ou acesso, apreensão ou obtenção, e divulgação de dados
informáticos armazenados” (objetos intangíveis). Por outro lado, a
tradicional medida de interceptação de telecomunicações deu origem
à “interceptação de dados de conteúdo” e à “coleta em tempo real de
dados de tráfego”.
Note-se, portanto, que a Convenção de Budapeste optou por manter
expressões já consolidadas, aliando a elas, novas terminologias em conformidade
com a realidade tecnológica. Assim, mantém no texto, expressões clássicas do
tipo “busca e apreensão”, porém associadas a expressões terminológicas ligadas
à tecnologia como, por exemplo, “acessar”, “copiar” ou “dados”.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
3.8 PROTEÇAO A ORDEM PÚBLICA DO ESTADO REQUERIDO
De acordo com o parágrafo 4º do artigo 27 da Convenção de
Budapeste, O Estado requerido poderá recusar-se a cooperar se julgar que o
pedido, por algum motivo, atente contra a sua ordem pública, sua soberania,
segurança e outros interesses essenciais.
Vladimir Chaves Delgado sintetiza que,
[…] a cláusula da ordem pública prevista na Convenção de Budapeste,
encerra uma autorização especial dada aos Estados para que deixem
de dar cumprimento a um pedido de cooperação internacional que lhes
seja endereçado, naquelas hipóteses em que o cumprimento da medida
solicitada for suscetível de atentar contra as normas e princípios – não
só de direito positivo, mas também os “interesses essenciais” – com
base nos quais cada Estado assenta a sua individualidade jurídica.
O fundamento utilizado para embasar a decisão da negação de
colaboração encontra respaldo em outros tratados cujo tema é a proteção dos
direitos fundamentais.
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, por exemplo,
contempla expressamente o “direito à proteção dos dados de caráter pessoal”
elevando-o à categoria de direito fundamental.
Importante salientar que a previsão de recusa na prestação do auxílio
mútuo, não demonstra ser característica exclusiva da Convenção de Budapeste,
sendo, portanto, observada também em outros instrumentos que tratam da
cooperação internacional.
3.9 CELERIDADE NOS PEDIDOS
A Convenção menciona também a forma com que deverão ser
estabelecidas as comunicações para pedidos de auxílio entre os Estados.
Assim, de acordo com o texto, qualquer Estado poderá, em caso de extrema
urgência, utilizar-se de meios céleres de comunicação para o envio o pedido
de auxílio mútuo. Observando que o meio escolhido deva oferecer segurança e
autenticação no momento da transmissão.
O Estado requerido não está obrigado a responder o Estado requerente
utilizando o mesmo instrumento de comunicação. A única questão é que o meio
elegido pelo Estado requerido para responder deva ser igualmente célere e
seguro, conforme artigo 25 parágrafo 3º, in verbis:
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Em caso de urgência, cada Parte pode formular os pedidos de auxílio
mútuo ou comunicações com ele relacionadas, através de meios de
comunicação rápidos, tais como o fax ou o correio eletrônico, desde
que esses meios ofereçam condições de segurança e de autenticação
(incluindo, se necessário, o uso da encriptação) com posterior
confirmação oficial sempre que o Estado requerido o exigir. O Estado
requerido aceitará o pedido e responderá através de qualquer desses
meios de comunicação rápidos.
Poderá, a critério do Estado requerido, ser requisitada, ao Estado
requerente, uma formalização tradicional antes de realização do que lhe foi
solicitado, com o objetivo de confirmar a autenticidade do pedido.
3.10 CARÁTER SUBSIDIÁRIO DA CONVENÇÃO
No texto da Convenção de Budapeste, pode-se verificar o caráter de
subsidiariedade com que ela foi elaborada tendo em vista outros tratados acerca
de temas relativos.
Segundo a redação da presente convenção sobre o cibercrime, o
objetivo é de complementar outras convenções que já tenham sido previamente
assinadas entre os Estados. Neste caso, os tratados previamente assinados
acerca do mesmo assunto, serão observados em detrimento das regras contidas
na Convenção de Budapeste, conforme se extrai da leitura do artigo 39.
O objetivo da presente Convenção é complementar os tratados
ou acordos multilaterais ou bilaterais aplicáveis existentes entre as Partes,
incluindo as disposições:
•
Da Convenção Europeia de Extradição, aberta para assinatura em
Paris a 13 de Dezembro de 1957 (STE Nº 24);
• Da Convenção Europeia de Auxílio Mútuo em Matéria Penal,
aberta para assinatura em Estrasburgo, a 20 de Abril de 1959
(STE n.º 30);
• Do Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Auxílio Mutuo
em Matéria Penal, aberta para assinatura em Estrasburgo, a 17 de
Março de 1978 (STE n.º 99).
A única restrição imposta é de que deverão ser respeitados os princípios
e objetivos da Convenção de Budapeste, caso as normas do tratado a ser utilizado
imponham maneira diversa da que esta estabelecida na presente convenção.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
4 DUPLA INCRIMINAÇÃO
Conforme mencionado no capítulo precedente, um dos requisitos para
o ingresso de novos Estados-Parte na Convenção de Budapeste é que o mesmo
preveja, em seu ordenamento jurídico, tipificação para condutas praticadas na
internet de maneira uniforme entre os Estados.
Esse requisito, emanado pelo principio da cooperação jurídica
internacional, representa a exigência de que, perante uma situação em concreto,
em que haja necessidade de se requerer a extradição de um indivíduo, ambos
os Estados envolvidos deverão possuir em seu ordenamento jurídico a conduta
previamente tipificada, tais como, nos crimes de lavagem de dinheiro.
Alguns tratados bilaterais poderão determinar a sua exigência ou não
quando se tratar de produção de provas. Ainda, poderá ser afastada, quando o
objeto do pedido de cooperação judiciária não possuir caráter coercitivo.
Conclui-se que, não obstante haja acordos bilaterais sobre a dupla
incriminação, a convenção de Budapeste já previu que ambos os países
possuam normas tipificando condutas praticadas na internet. Dessa forma,
quando se tratar de crimes praticados na Internet, em que os países envolvidos
são signatários da Convenção de Budapeste, tem-se a certeza de que o
principio da dupla incriminação observado.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com advento da tecnologia, mais precisamente da massificação da
internet, criou-se o que convencionou chamar de ciberespaço. Um ambiente
caracterizado pela ausência de legislação, supressão de limites territoriais,
sensação de anonimato de quem a utiliza e exclusão do fator distância entre
relacionamentos interpessoais.
A ausência de legislação, regulando a utilização da internet, denota a
existência de um lapso temporal entre o desenvolvimento das relações sociais,
em grande parte influenciada pela tecnologia, e a evolução do Direito, protegendo
bens jurídicos possivelmente atingidos por estas novas realidades sociais.
Gradativamente, cada Estado, isoladamente, passou a prever
legalmente as condutas praticadas na rede mundial de computadores, com
intuito de ferir bens jurídicos de outrem.
No ordenamento jurídico brasileiro, por exemplo, observa-se que
grande parte das condutas ilícitas praticadas na internet está tipificada em
legislações esparsas. Não há, portanto, no ordenamento jurídico brasileiro, uma
legislação específica sobre o cibercrime.
Há que se ter mente que as legislações vigentes no Brasil precisam
estar em consonância com os tipos penais previstos na Convenção em estudo.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Vale lembrar que a Convenção exige que o Estado que deseja ser signatário, deve
possuir legislação interna que preveja os tipos penais da mesma forma que o
tratado. Isto para manter os objetivos do documento que é estabelecer tipos penais
universais de modo a evitar problemas num provável pedidos de auxílio mútuo.
No Brasil, o tema da legislação sobre o crime virtual, ainda provoca
muitos debates de maneira que a produção legislativa sobre o tema se desenvolve
muito lentamente. A pequena parcela de condutas ainda não tipificadas no Brasil,
diz respeito exatamente sobre a tutela de sistemas de informática, proteção de
dados e redes informáticas.
Duas iniciativas importantes tramitam no Poder Legislativo
atualmente. Uma delas trata de um projeto de Reforma do Código Penal
brasileiro, que prevê a inclusão de um capítulo no Código Penal dedicado
exclusivamente ao direito digital. A outra iniciativa é um projeto de lei prevendo
condutas realizadas através da internet além de outras providencias.
O projeto de reforma do Código Penal, realizado por uma comissão
de juristas, parece estar mais em sintonia com o texto da Convenção, dada as
similaridades dos textos de ambos os documentos no que se refere a conceituação
de dados informáticos, sistemas informáticos e também a tipificação.
Como visto, atitudes isoladas não bastam para resolver o problema da
supressão dos limites territoriais que uma conduta ilícita praticada em ambiente
virtual possa atingir.
A necessidade premente de um instrumento único, de âmbito
internacional, estabelecendo conceitos, regras, e padrões procedimentais,
fez com que as autoridades internacionais discutissem e elaborassem um
tratado. Nesse cenário, a Convenção de Budapeste surge como ferramenta que
estabelece conceitos padronizados de condutas típicas que deverão ser adotados
pelos Estados que farão parte da Convenção.
A referida Convenção promoveu adaptações nos mecanismos de
cooperação judiciária, visando atender às demandas promovidas pelo espantoso
crescimento da criminalidade virtual.
Além de prever a utilização de institutos céleres de colaboração tais
como: o acesso direto às autoridades centrais, o incentivo a utilização do auxílio
mútuo, utilização de meios céleres de comunicação dos pedidos, etc.
A referida Convenção também estabeleceu limites a cooperação
internacional nos casos em que os Estados requeridos pudessem ter sua soberania
violada e visando resguardar, assim, os direitos fundamentais de seus cidadãos.
Conclui-se, portanto, que a Convenção de Budapeste, como observado,
preserva os princípios de cooperação internacional descritos em outros tratados
internacionais que tratam do respeito à soberania das Nações e também do
respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Obviamente, que o problema da cibercriminalidade mundial só terá
solução com a união de esforços no sentido da cooperação internacional na
repressão ao crime virtual. Impossível pretender solucionar este problema
quando um criminoso encontra-se localizado num país que, por exemplo, não
defina, em seu ordenamento jurídico, que uma determinada conduta seja crime.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
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58
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
A EXIGIBILIDADE DA CONCESSÃO DO BENEFÍCIO LEGAL DA MEIAENTRADA CUMULATIVAMENTE COM OUTROS DESCONTOS
THE CHARGEABILITY OF THE CUMULATION BETWEEN THE HALF-PRICE
ENTRY AND OTHER DISCOUNTS
André Luís Mikilita Mira
Graduando do 8º Período do Curso de Direito, pelo Centro
Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Estagiário da
Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor de Curitiba
Luciana Carneiro de Lara
Graduada em direito pela PUC/PR (2004). É pós-graduada
em Direito Processual Civil pela PUC/PR (2005) e em
Direito Civil e Empresarial pela PUC/PR (2009). É mestra em
Direito Econômico e Socioambiental pela PUC/PR (2011).
Atualmente é sócia do escritório Peregrino Neto e Beltrami
Advogados e professora de Direito Civil do UNICURITIBA.
É membro da Comissão de Direito Processual Civil e da 3a
Comissão de Fiscalização do Exercício Profissional da OAB/
PR. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em
Direito Civil e Processual Civil
RESUMO
Costumeira é a prática de casas de show, cinemas, teatros e similares
oferecerem descontos promocionais para determinadas categorias. Ocorre que,
além destas ofertas realizadas por liberalidade pelo fornecedor de serviços,
cabe também o dever de promover a meia-entrada para os casos previstos em
lei. O presente estudo tem como objeto este benefício legal e a possibilidade de
sua cumulação com um desconto promocional. Para tanto, serão analisadas as
categorias de beneficiados no Estado do Paraná, bem como os motivos que levaram
o legislador a escolhê-las. Este entendimento será defendido com base no Código
de Defesa do Consumidor e em posicionamentoss de órgãos especializados. Como
será exemplificado, a maioria dos realizadores de eventos veta uma possível soma
dos descontos. Esta prática permite aos organizadores burlar o direito à MeiaEntrada, negando sua cumulação e permitindo um enriquecimento provindo da
estipulação de um valor igual para todos os consumidores.
59
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Palavras-chave: Meia-Entrada, legislações específicas, Código de Defesa do
Consumidor, descontos promocionais, cumulação.
ABSTRACT:
It is a common practice used by show houses, cinemas, theaters and
similar to offer discounts for certain categories. Besides these offers made by
liberality by the service provider, it is also the duty to promote half-price for the
cases provided by law. The object of this study is that legal benefit and the possibility
of cumulation with a promotional discount. Therefore, it will be analyzed the
categories of beneficiaries in the State of Paraná, and the reasons that prompted the
lawmaker to choose them. This thesis will be defended on the basis of the Consumer
Protection Code and positioning of specialized organs. As will be illustrated, the
most promoters of events forbid a possible sum of discounts. This practice allows
organizers to circumvent Half-Price discount, denying the cumulation and allowing
an enrichment coming from the stipulation of an amount equal to all consumers.
Keywords: Half-Price, specific legislation, the Consumer Protection Code,
promotional discounts, cumulation.
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Considerações Iniciais Acerca da Meia-Entrada; 2.1 Origem;
2.2 Estudantes E A Medida Provisória N.º 2.208/01; 2.3 Doadores de Sangue; 2.4 Idosos;
2.5 Professores; 2.6 Relação com o Código de Defesa do Consumidor; 3 Cumulação do
Benefício Legal da Meia-Entrada com Descontos Promocionais; 3.1. Oferta de Descontos
Promocionais; 3.2 Problemática; 3.3 Exigibilidade da Cumulação; 3.3.1 Entendimento
Menos Abrangente do Ministério Público do Paraná; 4 Conclusão.
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como objetivo principal analisar a possibilidade
de cumulação do benefício legal da meia-entrada com outros descontos ofertados
promocionalmente para o acesso em eventos.
Como será elucidado, a meia-entrada surge para facilitar à grande
parte da população o acesso a eventos culturais. Seu histórico é analisado de
acordo com o surgimento das legislações específicas de cada grupo beneficiado.
Pretende-se abordar as categorias passíveis de usufruir o
desconto, especificamente, no Estado do Paraná. São elas: estudantes,
idosos, doadores de sangue e professores.
Para cada grupo beneficiado será apontada a lei aplicável e os possíveis
fundamentos que levaram a inclusão destas categorias no rol de beneficiados.
60
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Com o intuito de atingir maior publicidade ao show ou espetáculo,
os realizadores oferecem um rol de descontos, entre eles os legais (relativos
à meia-entrada) e os promocionais (ofertados por liberalidade ou em razão de
parcerias firmadas com outras empresas).
Ocorre que, na coexistência de um benefício legal e de um desconto
promocional, os realizadores de eventos acabam afastando um destes benefícios,
quando, a solução correta seria a sua cumulação.
Atualmente quase a totalidade de eventos que oferece a meia-entrada
no Brasil utiliza a prática questionada por este trabalho para obter vantagens e
burlar o que está expressamente previsto em lei.
A simples frase “descontos não cumulativos” logo abaixo da lista de
benefícios ofertados pelos fornecedores gera incertezas acerca da legalidade
desta conduta. Segundo os fornecedores, os consumidores teriam que optar por
um dos descontos.
O direito a meia-entrada não estaria sendo burlado, visto que o
fornecedor poderia determinar um preço elevado, sabendo que todos pagariam
metade do valor?
A resposta para essa questão será discutida no presente estudo,
utilizando-se para em sua construção as regras previstas no Código de Defesa
do Consumidor, bem como os entendimentos de Órgãos de Proteção e Defesa
do Consumidor.
A relevância do tema para a sociedade é a falta de informação a respeito.
Apesar de muitos utilizarem os descontos, a coletividade de consumidores não
sabe quando as ofertas realmente podem beneficiar os clientes ou apenas gerar
lucro para os fornecedores. Em suma, não sabem se efetivamente estão pagando
o valor da meia-entrada;
2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DA MEIA-ENTRADA
2.1 ORIGEM
Cabe esclarecer que a meia-entrada é um benefício cuja origem é
incerta. Sabe-se que na década de 1990 surgiram leis estaduais e municipais
visando incentivar a cultura no país.
Antes mesmo do surgimento de leis, o desconto era ofertado de
maneira liberal pelos realizadores dos eventos. Pode-se afirmar que a concessão
do benefício da meia-entrada era uma faculdade. Assim, poderia inexistir ou
ser, inclusive, limitada de acordo com a vontade do fornecedor.
Somente após discussões e propostas, os políticos resolveram adotar
a meia-entrada como direito positivado e, portanto, de observância obrigatória.
61
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
O objetivo de obtenção indiscriminada de lucro por parte dos
fornecedores passou a ser limitado pelo legislador, que expressamente dispôs
que, com o objetivo de facilitar o acesso das pessoas à cultura, educação e
lazer, determinados grupos de pessoas devem arcar com preço diferenciado de
ingressos, ou seja, semi-gratuidade da entrada.
A competência para legislar sobre a meia-entrada é determinada na
Constituição Federal de 1988, nos artigos 23, V e 24, IX:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios:
(...)
V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre:
(...)
IX - educação, cultura, ensino e desporto;
Os dispositivos são claros e revelam que não apenas compete, mas é dever
dos entes federativos legislar acerca do tema, bem como promover o incentivo ao
ingresso em eventos que promovam a cultura, esporte, educação e lazer.
Apesar de a competência ser concorrente, coube aos Estados o ofício
de editar as leis prevendo os possíveis beneficiados.
Desse modo, este estudo compreende, além das normas de aplicação
nacional, precipuamente, a legislação paranaense, considerada eficaz e bastante
abrangente.
Neste sentido, cabe informar que existem quatro categorias de
beneficiados com a meia-entrada no Estado do Paraná: estudantes, doadores de
sangue, idosos e professores.
2.2 ESTUDANTES E A MEDIDA PROVISÓRIA N.º 2.208/01
Em que pese a falta de estudos aprofundados, pode-se destacar os
seguintes fundamentos do legislador para o tratamento diferenciado dos
estudantes: a) parte-se do princípio de que estudantes não possuem renda
própria ou, ao menos, suficiente para participar deste tipo de evento; b) busca-se
incentivar a permanência dos jovens nos estudos, tendo em vista que o estudante,
para ter acesso ao benefício, precisa estar devidamente matriculado, como se verá
adiante; c) objetiva-se disseminar a cultura entre um grupo que, pela juventude e
falta de experiência, não se preocuparia em participar de determinados eventos.
62
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Segundo o “Portal da Meia-entrada”, website de propriedade da
UNIÃO DOS JOVENS E ESTUDANTES DO BRASIL, o direito à meiaentrada “foi a forma que o governo brasileiro achou para facilitar aos jovens, o
acesso à cultura e ao esporte, ajudando assim, na formação educacional e social
da juventude brasileira.”2
Na mesma linha é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao
analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1950, de São Paulo, julgada
em 03.11.2005:
Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei N. 7.844/92, do Estado
de São Paulo. Meia entrada assegurada aos estudantes regularmente
matriculados em estabelecimentos de ensino. Ingresso em casas de
diversão, esporte, cultura e lazer. Competência concorrente entre
a União, Estados-Membros e o Distrito Federal para legislar sobre
Direito Econômico. Constitucionalidade. Livre iniciativa e ordem
econômica. Mercado. Intervenção do estado na economia. Artigos 1º,
3º, 170, 205, 208, 215 E 217, § 3º, da Constituição do Brasil. 1. É
certo que a ordem econômica na Constituição de 1.988 define opção
por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa.
Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o
Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. 2. Mais
do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia
diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela
sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado
e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus
artigos 1º, 3º e 170. 3. A livre iniciativa é expressão de liberdade
titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por
isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da “iniciativa
do Estado”; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à
empresa. 4. Se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa,
de outro determina ao Estado a adoção de todas as providências
tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à
cultura e ao desporto [artigos 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217 § 3º,
da Constituição]. Na composição entre esses princípios e regras há de
ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário.
5. O direito ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer, são meios
de complementar a formação dos estudantes. 6. Ação direta de
inconstitucionalidade julgada improcedente. (grifo nosso) (Supremo
PORTAL DA MEIA ENTRADA. O que é MEIA ENTRADA? Disponível em: <http://www.
meiaentrada.com.br/info/1/index.htm>. Acesso em 27 de setembro. 2012
2 63
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1950.
Requerente: Confederação Nacional do Comércio - CNC. Requerido:
Governador do Estado de São Paulo e Assembleia Legislativa do
Estado de São Paulo. Relator Min. Eros Grau, Brasília, DF. Julgado
em 03/11/2005. Publicado em 02/06/2006)
O dispositivo normativo que trabalha com o direito à meia-entrada
dos estudantes no Paraná é a Lei Estadual n.º 11.182/19953.
A Lei discrimina quais são os estudantes alcançados pela norma e
mostra-se bastante abrangente: todos os alunos do ensino fundamental, médio e
superior, da esfera pública ou particular, têm direito à meia-entrada:
Art. 1º. Fica assegurado o pagamento de metade do valor efetivamente
cobrado para ingresso em casas de diversões, espetáculos, praças
esportivas e similares, ao estudante regularmente matriculado em
estabelecimento de ensino público ou particular, de 1º e 3º graus, no
Estado do Paraná, na conformidade da presente Lei.
§ 1º. Para os efeitos desta Lei, considerar-se-á como casa de diversões
ou
estabelecimentos que realizarem espetáculos musicais, artísticos,
circenses, teatrais, cinematográficos, atividades sociais, recreativas,
culturais, esportivas, e quaisquer outras que proporcionem lazer,
cultura e entretenimento.
§ 2º. Serão beneficiados por esta Lei os estudantes matriculados em
estabelecimentos de ensino público ou particular, de 1º, 2º e 3º graus,
cujo funcionamento esteja devidamente autorizado pelo órgão público
competente.
No mesmo período, outros Estados adotaram legislações com textos
praticamente iguais, todas estipulando o “novo” direito dos estudantes. São
Paulo editou a Lei Estadual n.º 7.884/92; Mato Grosso do Sul criou a Lei
Estadual n.º 1.352/92, posteriormente regulada pelo decreto 8.913/97; Goiás,
da mesma forma, adotou a Lei Estadual n.º 12.355/94, bem como o Estado do
Sergipe, que utiliza a Lei Estadual n.º 3.491/94.
PARANÁ. Lei n.º 11.182 de 23/10/1995. Assegura o pagamento de metade do valor efetivamente
cobrado para ingresso em casas de diversões, espetáculos, praças esportivas e similares, aos
estudantes regularmente matriculados em estabelecimentos de ensino. Publicada no Diário
Oficial Nº 4619 de 23/10/1995.
3
64
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Entretanto, em que pese a abrangência da norma paranaense, ao
mesmo tempo em que busca dar uma maior proteção aos estudantes, observa-se
que esta também trouxe requisito limitador a esse benefício, qual seja, carteira
expedida pela União Brasileira de Estudantes, pela União Paranaense dos
Estudantes Secundaristas ou pela União Nacional dos Estudantes:
Art. 2º. Para usufruir do beneficio, o estudante deverá comprovar a
condição referida no artigo anterior, através de identidade estudantil
expedida pela União Brasileira de Estudantes de 1º e 2º Graus, UBES,
União Paranaense dos Estudantes Secundaristas, UPES, e pela União
Nacional dos Estudantes - UNE.
§ 1º. A autenticação e expedição das carteiras referidas no «caput» deste
artigo deverão se dar como base em listagem de alunos regularmente
matriculados, fornecida pela direção de cada estabelecimento de
ensino, até um mês após o encerramento das matrículas.
§ 2º. As carteiras, válidas em todo o território nacional, só perderão
a validade após a expedição das novas carteiras, independentemente
do ano letivo.
Visando regulamentar o tema, então, surge a Medida Provisória n.º
2.208, de 17 de agosto de 20014, que tratou da meia-entrada para estudantes e
para menores de dezoito anos, este último não presente no Estado do Paraná,
razão pela qual, não será examinado.
Em relação aos estudantes, a Medida acabou com o monopólio da
UNE, da UBES e entidades similares. Não se mostra mais necessário possuir
a carteira estudantil aprovada por estes entes, e sim, qualquer documento de
identificação estudantil, como as carteirinhas de colégios e universidades
emitidas pelas próprias instituições:
Art. 1º. A qualificação da situação jurídica de estudante, para
efeito de obtenção de eventuais descontos concedidos sobre o
valor efetivamente cobrado para o ingresso em estabelecimentos
de diversão e eventos culturais, esportivos e de lazer, será feita
pela exibição de documento de identificação estudantil
expedido pelos correspondentes estabelecimentos de ensino
BRASIL. Medida provisória n.º 2.208, de 17/08/2001. Dispõe sobre a comprovação da qualidade
de estudante e de menor de dezoito anos nas situações que especifica. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 20 ago. 2001.
4
65
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
ou pela associação ou agremiação estudantil a que pertença,
inclusive pelos que já sejam utilizados, vedada a exclusividade
de qualquer deles. (grifo nosso)
Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo aplica-se nas hipóteses
em que sejam oferecidos descontos a estudantes pelos transportes
coletivos públicos locais, acompanhada do comprovante de matrícula
ou de freqüência escolar fornecida pelo seu estabelecimento de ensino.
Atualmente, quaisquer documentos que comprovem a situação
acadêmica do aluno são aceitos para a aquisição do benefício, incluindo
declarações de matrícula, fato que traduz a intenção protetiva da norma, dandolhe uma interpretação extensiva.
Em razão de ser a categoria mais antiga na lista, é menor sua violação
por parte dos fornecedores, visto que é um dos descontos mais conhecidos pela
população.
2.3 DOADORES DE SANGUE
Os doadores de sangue também foram lembrados pelo legislador
no Estado do Paraná. Este foi o segundo grupo a ser beneficiado com a semigratuidade.
A intenção da norma é bastante clara: incentivar a doação de sangue.
Por mais que haja quem critique este benefício, por entender
que a doação de sangue deve ser feita de forma voluntária, sem qualquer
contraprestação, o objetivo da norma possui uma função social relevante.
Este é o entendimento manifestado pelo Supremo Tribunal Federal,
ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3512, do Espírito Santo,
em 15.02.2006:
Ação direta de inconstitucionalidade. lei n. 7.737/2004, do estado
do Espírito Santo. Garantia de meia entrada aos doadores regulares
de sangue. Acesso a locais públicos de cultura esporte e lazer.
competência concorrente entre a união, Estados-Membros e o Distrito
Federal para legislar sobre direito econômico. Controle das doações
de sangue e comprovante da regularidade. Secretaria de Estado da
Saúde. Constitucionalidade. Livre iniciativa e ordem econômica.
Mercado. Intervenção do Estado na economia. Artigos 1º, 3º,
170 e 199, § 4º da constituição do Brasil. 1. É certo que a ordem
econômica na Constituição de 1.988 define opção por um sistema no
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância
não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na
economia em situações excepcionais. Muito ao contrário. 2. Mais do
que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia
diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela
sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado
e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus
artigos 1º, 3º e 170. 3. A livre iniciativa é expressão de liberdade
titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por
isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da “iniciativa
do Estado”; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas
à empresa. 4. A Constituição do Brasil em seu artigo 199, § 4º, veda
todo tipo de comercialização de sangue, entretanto estabelece que a lei
infraconstitucional disporá sobre as condições e requisitos que facilitem
a coleta de sangue. 5. O ato normativo estadual não determina
recompensa financeira à doação ou estimula a comercialização
de sangue. 6. Na composição entre o princípio da livre iniciativa
e o direito à vida há de ser preservado o interesse da coletividade,
interesse público primário. 7. Ação direta de inconstitucionalidade
julgada improcedente. (grifo nosso) (Supremo Tribunal Federal. Ação
Direta de Inconstitucionalidade n.º 3512. Requerente: Governador do
estado do Espírito Santo. requerido: Assembleia Legislativa do estado
do Espírito Santo. Relator Min. Eros Grau, Brasília, DF. Julgado em
15/02/2006. Publicado em 23/06/2006)
A partir da Lei Estadual nº 13.964/20025, os “doadores regulares de
sangue” pagariam, também, a metade do valor dos ingressos:
Art. 1º. Fica o Poder Executivo autorizado a instituir a meia entrada
para doadores regulares de sangue em todos os locais públicos de
cultura, em casa de diversões, espetáculos, praças esportivas e
similares, esporte e lazer do Estado do Paraná.
Parágrafo único. Para efetivos desta lei, considerar-se-á como casa
de diversões ou estabelecimentos que realizem espetáculos musicais,
artístico, circense, teatrais, cinematográficos, feiras, exposições
zoológicas, pontos turísticos, estádios, atividades sociais, recreativas,
PARANÁ. Lei n.º 13.964 de 20/12/2002. Concede desconto de 50% (cinqüenta por cento)
em Eventos Culturais Artísticos para doadores de sangue. Publicada no Diário Oficial Nº
6406 de 29/01/2003.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
culturais, esportivas e quaisquer outras que proporcionem lazer,
cultura e entretenimento.
Em seu artigo 3º a lei trouxe o conceito de quem seria este doador regular:
Art. 3º. Para efeito desta lei, são considerados doadores regulares de
sangue aqueles registrados no hemocentro e nos bancos de sangue
dos hospitais do Estado, identificados por documento oficial expedido
pela Secretaria de Estado da Saúde.
Todavia, esta lei não foi observada de imediato, visto que o dispositivo
não esclarecia quem efetivamente poderia usufruir o benefício.
Sem a devida regulamentação da Lei, as duas partes da relação de
consumo poderiam apresentar argumentos contra ou a favor de sua aplicação.
Os consumidores que haviam doado sangue apenas uma vez e que,
nesta, adquiriram uma espécie de “carteirinha”, poderiam exercer a condição
de doador e usufruir do benefício.
Já os fornecedores poderiam alegar que aqueles não seriam doadores
regulares de sangue, tendo em vista que nenhum dispositivo na lei informava o
que efetivamente seria um doador regular de fato.
Somente a partir da Resolução n° 329, de 4 de agosto de 2009, da
Secretaria Estadual de Saúde do Paraná, a qual definiu o conceito de doadores
regulares de sangue, a Lei Estadual foi corretamente aplicada.
A Resolução adotou como doador regular de sangue aquele que “faz
3 (três) doações de sangue efetivas, no período de 12 meses.”
É mister salientar que cabe ao consumidor requerer o Certificado de
Doador Fidelizado após três doações num período de 12 (doze) meses, pois o
certificado não é entregue automaticamente.
Além disso, o item 2.2 da Resolução ressalta que terão direito
ao benefício da meia-entrada os doadores que apresentarem o documento
de Certificação de Doador Fidelizado de Sangue, no prazo de validade,
conjuntamente com documento oficial com foto.
2.4 IDOSOS
Em 1994 surgiu o Conselho Nacional do Idoso, criado pela Lei n.º
8.842/946. No artigo 4º da lei foram traçadas as diretrizes que constituem a
BRASIL. Lei nº 8.842 de 04/01/1994. Dispõe sobre a política nacional do idoso, cria o Conselho
Nacional do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF. Publicada em 05/01/1994.
6
68
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
política nacional do idoso. E, especificamente no inciso I, foi elencada a
“viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio do
idoso, que proporcionem sua integração às demais gerações”.
Desse modo, cabe aos órgãos públicos e à iniciativa privada incentivar
e possibilitar a participação dos idosos na sociedade.
Para tanto, dentre outras medida, a lei especificou o pagamento de
entrada reduzida em eventos culturais:
Art. 10. Na implementação da política nacional do idoso, são
competências dos órgãos e entidades públicos:
(...)
VII - na área de cultura, esporte e lazer:
a) garantir ao idoso a participação no processo de produção,
reelaboração e fruição dos bens culturais;
b) propiciar ao idoso o acesso aos locais e eventos culturais,
mediante preços reduzidos, em âmbito nacional;
c) incentivar os movimentos de idosos a desenvolver atividades culturais;
d) valorizar o registro da memória e a transmissão de informações
e habilidades do idoso aos mais jovens, como meio de garantir a
continuidade e a identidade cultural;
e) incentivar e criar programas de lazer, esporte e atividades físicas que
proporcionem a melhoria da qualidade de vida do idoso e estimulem
sua participação na comunidade. (grifo nosso)
A meia-entrada está, expressamente, garantida no artigo 23 da Lei
Federal nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) 7:
Art. 23. A participação dos idosos em atividades culturais e de lazer
será proporcionada mediante descontos de pelo menos 50% (cinqüenta
por cento) nos ingressos para eventos artísticos, culturais, esportivos e
de lazer, bem como o acesso preferencial aos respectivos locais.
O objetivo do legislador ao esclarecer que os idosos devem receber
pelo menos 50% de desconto em eventos é buscar a reinserção destas pessoas
na sociedade. É incentivar a participação dos idosos em eventos culturais, os
quais atraem maior atenção do público jovem.
Nesse sentido, destaca Antonio Rulli Neto (2003, p. 155):
Cultura – o direito a cultura assegurado pelo Estatuto também é amplo,
BRASIL. Lei n.º 10.741 de 01/10/2003. Dispõe sobre o Estatuto do idoso e dá outras providências.
Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF. Publicada em 03/10/2003.
7
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
pois compreende diversões, espetáculos, meia-entrada etc. A intenção
do legislador foi realmente ampla ao permitir ao idoso, especialmente
com a meia-entrada, maneira mais efetiva de acesso à cultura.
Ao fazer tal afirmação, o autor sustenta que a pretensão do Estatuto
do Idoso foi a de promover o incentivo da cultura, o qual possui, inclusive, um
capítulo específico denominado “Da Educação, Cultura, Esporte e Lazer”.
Referido direito possui respaldo no artigo 215, da Constituição da
República Federativa do Brasil, qual assim determina:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará
a valorização e a difusão das manifestações culturais.
Desse modo, o idoso também é protegido por este artigo e sua
participação na vida cultural da sociedade deve ser incentivada, principalmente,
por meio da semi-gratuidade aqui estudada.
2.5 PROFESSORES
Os Professores também foram escolhidos pelo legislador para utilizar
o desconto e usufruir a semi-gratuidade. Seja com o objetivo de gratificar o
profissional em razão de sua importante função, seja com a intenção de permitir
que este profissional se mantenha atualizado, aprimorando seu desempenho.
Sua inclusão na lista dos beneficiados se deu apenas em 2008, com
a edição da Lei n.º 15.876/088, impondo o direito à facilitação de cultura para
quem tem o dever de incentivá-la.
São estas as palavras da autora do Projeto da Lei, então Deputada
Estadual, Rosane Ferreira, em reportagem concedida à Gazeta do Povo,
veiculada em 18.08.2008:
“As pessoas não entendem o alcance da lei porque não vêem que o
professor é um instrumento de divulgação da arte, sendo um grande responsável
pela criação do gosto pela cultura entre crianças e adolescentes”9
PARANÁ. Lei n.º 15.876 de 07/07/2008. Assegura, aos professores da rede de ensino público
e particular de todo o território do Estado do Paraná que estejam exercendo suas funções, o
pagamento de 50% do valor realmente cobrado para o ingresso em estabelecimentos e/ou casas
de diversões, praças esportivas e similares, que promovam espetáculos de lazer, entretenimento e
difusão cultural. Publicada no Diário Oficial Nº 7757 de 07/07/2008.
9
GAZETA DO POVO. Lei dá meia-entrada, mas professor encontra barreiras. Disponível
em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=798985&tit=Lei-da8 70
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Em decorrência da Lei de 2008, os professores da rede de ensino
particular e pública passaram a pagar 50% do valor do ingresso.
Como requisito fundamental para a utilização do desconto, a lei prevê,
em seu artigo 1º, a necessidade do professor estar no exercício da função:
Art. 1º. Fica assegurada, aos professores da rede de ensino público
e particular de todo o território do Estado do Paraná, que estejam
exercendo suas funções, o pagamento de 50% (cinqüenta por cento)
do valor realmente cobrado para o ingresso em estabelecimentos e/
ou casas de diversões, praças esportivas e similares, que promovam
espetáculos de lazer, entretenimento e difusão cultural.
Por fim, tramita no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de
Inconstitucionalidade n.º 3753, cujo objeto é a lei paulista que versa sobre a
meia-entrada para professores. Todavia, não há sequer decisão liminar neste
processo.
O fato é que seguindo a mesma linha de raciocínio utilizada em outras
ações diretas de inconstitucionalidade, o que se espera é que o pedido da ação
seja julgado improcedente.
No Tribunal de Justiça do Estado do Paraná há decisão, inclusive,
suspendendo o julgamento de recurso tendo em vista a ADI referida:
Apelação cível. ação declaratória de inexistência de relação jurídica. lei
estadual n.° 15.876/2008 que assegura aos professores da rede pública
e particular de ensino o pagamento, em todo o território paranaense,
de “meia-entrada” em estabelecimentos que promovam espetáculos de
lazer, entretenimento e difusão cultural. Sustentada inconstitucionalidade
formal sob a alegação de que o estado não pode legislar sobre essa
matéria, bem como material por ofensa aos princípios da isonomia,
da razoabilidade e da proporcionalidade. sentença de improcedência.
Suspensão do processo, com fulcro na alínea “a” do inciso iv do art. 265
do cpc, pelo prazo máximo de um ano (§ 5.°), no aguardo do julgamento
pelo supremo tribunal federal da adi n.° 3.753/sp, na qual se questiona
a constitucionalidade da lei paulista n.° 10.858/2001 que versa sobre
o mesmo tema, tendo em vista a teoria da transcendência dos motivos
determinantes. (grifo nosso) (Tribunal de Justiça do Estado do Paraná,
Apelação Cível nº 778.194-4. Apelante: Cinemark Brasil S.A. Apelado:
Estado do Paraná. 5ª Câmara Cível, Rel. Des. Adalberto Jorge Xisto,
julgado em 12.03.2012.)
meia-entrada-mas-professor-encontra-barreiras>. Acesso em: 27 de setembro. 2012
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Sendo assim, não havendo, ainda, decisão em sentido contrário, a
aplicabilidade da lei paranaense mostra-se correta e impositiva.
2.6 RELAÇÃO COM O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Como anteriormente citado, a meia-entrada pode ser tutelada pela
legislação consumerista.
Qualquer evento cultural, esportivo, teatral, musical, artístico e que
ofereça a semi-gratuidade para a aquisição de entradas é considerado serviço
prestado para o consumidor.
Segundo o § 2º, do artigo 3º, da Lei nº 8.078/90, “serviço é qualquer
atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive
as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes
das relações de caráter trabalhista.”
Diante deste conceito explícito na no Código de Defesa do Consumidor,
resta evidente a aplicação dos direitos do consumidor no que tange à realização
de eventos. Desde o momento da publicidade até a efetiva prestação do serviço, o
fornecedor deve respeitar o contido no Código de Defesa do Consumidor.
Neste sentido, a Lei nº 8.078/1990 concede segurança aos consumidores em relação à possível falha na prestação do serviço a ser ofertado com a
compra do ingresso.
Segundo o artigo 23, “a ignorância do fornecedor sobre os vícios de
qualidade por inadequação dos produtos e serviços não o exime de responsabilidade.”
Sendo assim, a partir do momento em que o ingresso é comercializado, a
responsabilidade do fornecedor surge, seja em relação à prestação do serviço no dia
do evento, ou ao atendimento dos consumidores em sanar dúvidas após a compra.
3 CUMULAÇÃO DO BENEFÍCIO LEGAL DA MEIA-ENTRADA COM DESCONTOS PROMOCIONAIS
3.1 OFERTA DE DESCONTOS PROMOCIONAIS
Os fornecedores são obrigados a conceder descontos de 50% para as
categorias previstas em lei. Entretanto, não existe nenhuma disposição legal
que não permita a oferta dos descontos chamados “promocionais”.
Descontos promocionais são aqueles que o fornecedor oferece por
liberalidade, visando atrair mais público para o estabelecimento. O valor do
benefício não tem uma quantia ou porcentagem determinada em lei, por este
motivo, o realizador do evento fixa o quanto pode ser abatido do valor normal
do ingresso e para quem é direcionado este desconto.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Casos comuns desta espécie de desconto são: a doação de alimentos,
assinatura de determinado periódico, clientes de algum banco específico, sóciostorcedores de clubes de futebol, alunos de cursos preparatórios entre outros.
Esta oferta pode surgir da necessidade de aumentar o público do evento
ou até mesmo de parcerias firmadas entre as empresas que promovem o evento e
as denominadas apoiadoras ou patrocinadoras (Jornais, bancos, clubes, cursos).
Além de arcar com despesas do capital inicial para a realização do
evento, estas empresas normalmente têm a função de auxiliar na divulgação e
aumentar o leque de consumidores atingidos pela oferta.
Em contrapartida, a marca das empresas também aparece nos meios de
divulgação, permitindo uma maior publicidade do evento e da própria empresa.
Assim, nestes casos, a intenção não é, pura e simplesmente incentivar
a cultura e a educação. Aqui, o objetivo é nitidamente auferir lucro.
3.2 PROBLEMÁTICA
De início, é de se ressaltar que a grande de dúvida que surge diz respeito,
apenas, à cumulação entre um benefício legal e um desconto promocional, a
qual é o tema principal deste trabalho.
A soma de mais de um benefício legal é vedada em razão de que o
legislador não criou o benefício visando diminuir o máximo o valor do ingresso e
sim, atender, ao máximo, a coletividade de consumidores, enquadrando o maior
número de categorias possíveis para estimular e incentivar a cultura e a educação.
Com relação à soma de dois ou mais descontos promocionais, mostrase inviável devido ao fato de que afetaria a política e a harmonia das relações
de consumo, pois prejudicaria a parte fornecedora, concedendo descontos
excessivos aos consumidores.
Assim, fica limitado o objeto da pesquisa: possibilidade ou não de
cumulação de um benefício legal com um desconto promocional.
Como explicado, o fornecedor pode oferecer os descontos promocionais
que bem entender. Além disso, é obrigado a conceder o benefício legal da meiaentrada a todos aqueles que estejam alcançados pelas Leis específicas.
Neste ponto do estudo surge a questão principal: é possível a
cumulação das duas benesses?
A maioria dos eventos, espetáculos, casas de show, entre outros, nega
a união de dois ou mais descontos, aqui interpretados em sentido amplo.
Tendo em vista que os descontos servem, em tese, para beneficiar os
consumidores, qual seria o motivo para não aceitar sua soma?
O que ocorre atualmente é uma tentativa dos fornecedores de burlar
o direito à meia-entrada. Os descontos promocionais acabam abrangendo um
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
leque tão grande de consumidores que, somados com os legitimados para
receber os descontos legais, resultam em quase a totalidade de espectadores.
Ora, se todos os adquirentes de ingresso receberem descontos, pode o
realizador de eventos determinar um valor superior ou até mesmo em dobro do
que seria realmente cobrado, tendo em vista que todos pagariam metade deste
valor, resultando no valor original dos ingressos.
Tal prática é comumente utilizada pelos fornecedores e o consumidor
sequer percebe, pois acredita que quanto maior o leque de descontos ofertados,
mais vantagens possuem os clientes.
3.3 EXIGIBILIDADE DA CUMULAÇÃO
As leis citadas anteriormente determinam claramente que o valor
da meia-entrada seja a metade do valor efetivamente cobrado, isto é, os
beneficiários têm o direito de pagar apenas a metade do total cobrado.
Desse modo, se lhes é concedido um desconto promocional que reduz
o valor do ingresso, aquele benefício legal corresponderá à metade do preço já
abatido. Em outras palavras, “metade da metade”.
Qualquer negativa a este direito afronta as legislações acerca da meiaentrada bem como o Código de Defesa do Consumidor, como se verá a seguir.
Os capítulos V e VI do referido diploma tratam das Práticas Comerciais
e da Proteção Contratual, que podem gerar responsabilização por eventuais
danos. E a redação do artigo 29 possibilita a qualquer pessoa exposta à oferta e
à publicidade o direito à reparação pelos danos sofridos:
Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos
consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às
práticas neles previstas.
Em razão do disposto neste artigo, não é necessário que o consumidor seja
concretamente prejudicado. Não é necessário que este adquira o ingresso e receba
apenas um desconto, quando era possível a cumulação, para ter o direito violado.
Qualquer espectador de eventos que seja atingido pela mensagem
publicitária “descontos não cumulativos” pode se utilizar dos fundamentos
constantes na legislação consumerista, pois a norma do artigo 29 é extensiva.
Assim explica Felipe Peixoto Braga Netto (2011, p. 220.):
O Art. 29, conforme transcrito acima evidencia que quaisquer pessoas
expostas às práticas comerciais abusivas serão tidas por consumidoras.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Há uma proposital ampliação do conceito de consumidor. Assim, quem
quer que tenha sido atingido por publicidade enganosa ou abusiva (CDC,
art. 37, § 1º e 2º), poderá fazer uso das categorias trazidas pelo CDC.
Com efeito, a oferta deve assegurar transparência e veracidade ao
consumidor. No momento em que as informações deixam de ser corretas, nasce
a conduta infrativa do fornecedor de serviços.
Nesta linha de raciocínio, o artigo 31, da Lei 8.078/90, prevê que:
Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem
assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em
língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade,
composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre
outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e
segurança dos consumidores. (grifo nosso)
Como já citado, o realizador de eventos deve, obrigatoriamente,
informar que concede o benefício da meia-entrada e, caso ofereça outros
descontos promocionais, que liste todos para que os consumidores saibam se
podem se enquadrar em alguma categoria ou não.
Nota-se que uma correta interpretação do Código de Defesa do
Consumidor não deixa dúvidas quanto à permissão da cumulação.
Tendo em vista que a casa de espetáculos normalmente afixa a
tabela dos descontos no próprio estabelecimento, pode o consumidor invocar
o efeito vinculante da oferta, com base no artigo 30, também do Código de
Defesa do Consumidor:
Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa,
veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a
produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor
que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a
ser celebrado.
Um correto exemplo é o caso de um cinema oferecer 50% de desconto
para quem for fantasiado à caráter na estréia de um filme. O consumidor pode ser
estudante devidamente matriculado (benefício legal) e, ao mesmo tempo, assistir ao
filme fantasiado para aproveitar a promoção. Sendo assim, não existe motivo para
que o consumidor tenha que dispor de um de seus descontos, se faz jus a ambos.
Como lhe foi ofertado o desconto em razão de vestir a fantasia, não
pode o fornecedor simplesmente retirar esta garantia, devendo o mesmo integrar
a oferta ao futuro contrato que será firmado na compra de ingressos.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Outro caso comum é o da oferta de descontos para assinantes de
determinados periódicos. Um consumidor pode ser professor e assinar a revista
que lhe permite o desconto. Sendo assim, não existem impedimentos para
cumulá-los, tendo em vista que um dos descontos é obrigatório ao fornecedor
ofertar e o outro, facultativo, por mera liberalidade.
O desconto para professores decorre de lei e o desconto para assinantes
do periódico decorre de oferta. Ora, se o consumidor pode usufruir dos dois,
não há motivo para negar a cumulação.
Ainda, outro motivo da improcedência de qualquer impossibilidade
de cumulação dos descontos é a prática abusiva, traduzida na exigibilidade
de vantagem excessiva, utilizada pelos realizadores de eventos culturais e
esportivos no momento da oferta.
De acordo com o artigo 39, inciso V, do Código de Defesa do
Consumidor “É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras
práticas abusivas: exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva.”
Segundo Antônio Herman de Vaconcellos e Benjamin (2011, p. 375),
“prática abusiva (lato sensu) é a desconformidade com os padrões de boa
conduta em relação ao consumidor.”
Como o assunto tratado se refere principalmente à fase pré-contratual,
em relação à oferta, faz-se necessário destacar que: “basta que o fornecedor,
nos atos preparatórios ao contrato, solicite vantagem dessa natureza para que o
dispositivo legal tenha aplicação integral.” (BENJAMIN, 2011, p. 384)
Trata-se claramente de vantagem excessiva imposta pelos
fornecedores, tendo em vista que, com a maioria dos consumidores tendo o
direito de pagar metade do ingresso, seja por meio de benefícios legais ou
promocionais, pode o proprietário do estabelecimento estipular qualquer preço,
sem efetivamente garantir a meia-entrada para os sujeitos determinados em lei.
O PROCON/PR também possui este posicionamento:
“Ainda é comum a venda generalizada de ingressos com 50% de
desconto, mediante a doação de um quilo de alimento. Neste caso, o
estudante, professor, idoso, ou doador de sangue tem o direito a
pagar a metade deste valor cobrado com a doação.” 10 (grifo nosso)
Ainda, a negativa da cumulação acaba por fazer distinção entres os
consumidores, tendo em vista que apenas a parcela que não se enquadra nas
modalidades descritas em lei pode usufruir dos descontos promocionais. Tal prática
fere o princípio da igualdade, presente no artigo 5º, da Constituição da República
Federativa do Brasil:
PROCON/PR. Orientações sobre meia-entrada. Disponível em: <http://www.procon.pr.gov.
br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=507>. Acesso em: 29 de setembro. 2012
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade (...)
Nesse sentido ensina Adolfo Mamoru Nishiyama (2010, p. 128):
Para que os consumidores possam atingir igualdade material nas
relações de consumo, torna-se imprescindível a desigualação na lei,
protegendo-os algumas vezes com privilégios e outras com benefícios
concedidos pela política constitucional. Dessa forma, tanto o intérprete
como o legislador infraconstitucional devem preservar os valores
contidos na norma constitucional que protege o consumidor (...)
Este também é o entendimento de Nelson Nery Junior (2011, p. 558):
Com isso vê-se que o Código, ao dar tratamento diferenciado aos
sujeitos da relação de consumo, conferindo maiores prerrogativas ao
consumidor, nada mais fez do que aplicar e obedecer ao princípio da
isonomia, tratando desigualmente partes desiguais.
Também nesta linha de raciocínio, a Promotoria de Justiça de Defesa
do Consumidor de Belo Horizonte, juntamente com o Procon estadual de
Minas Gerais, editaram recomendação sobre o cumprimento da legislação de
meia-entrada estudantil pelo Fórum Permanente dos Dirigentes das Casas de
Espetáculo de Minas Gerais.
Segundo o documento, é recomendado aos realizadores de eventos o
cálculo cumulativo:
Que na eventualidade de descontos concedidos provenientes de
convênios, o percentual de redução de 50% (cinqüenta por cento) para
os estudantes seja calculado sobre o menor valor praticado para o
ingresso de convênio, ainda que praticado a título promocional ou de
desconto eventual. 11 (grifo nosso)
Neste mesmo diapasão, observa-se que a Junta Recursal do PROCON
Estadual de Minas Gerais possui entendimento semelhante:
RECOMENDAÇÃO PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DEFESA DO CONSUMIDOR DA
COMARCA DE BELO HORIZONTE E PROCON ESTADUAL Nº 01/07. Disponível em: <http://
www.fcs.mg.gov.br/imagensDin/arquivos/1956.pdf>. Acesso em: 27 de setembro. 2012
11
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Ora, se os estudantes têm direito ao pagamento de meia-entrada “do
valor efetivamente cobrado para o ingresso”, pouco importará que
seja fixado valor simbólico para o ingresso normal. Deverá sempre ser
levado em consideração o preço cobrado dos demais consumidores.
Vale dizer: se por qualquer razão se reduzir o preço do ingresso,
mesmo que circunstancialmente, esse novo valor deve ser tido como o
de entrada inteira, e aqueles com direito à meia-entrada devem pagar
não mais que a metade disso.
Essa regra deve ser observada justamente para impedir ações que visem
a burlar o ordenamento jurídico, como in casu, em que a recorrente,
embora possuísse ingressos com valores diferenciados (inteira e
meia-entrada), cobrava indistintamente o valor correspondente ao
ingresso de meia-entrada, afrontando, dessa forma, o dispositivo legal
que assegura aos estudantes o pagamento diferenciado. (grifo nosso)
(Recurso n.º 711.302/2007. Processo Administrativo n.º 03/2006.
Comarca: Uberaba. Recorrente: A. Velloso Pavel. Recorrido: Procon
Estadual de Minas Gerais. Junta Recursal Promotor de Justiça
Francisco José Lins do Rêgo Santos – Procon Estadual.)
Outro argumento favorável à cumulação é a utilização do disposto
no artigo 47, da Lei 8.078/90: “As cláusulas contratuais serão interpretadas de
maneira mais favorável ao consumidor.”
Neste sentido, Leonardo Roscoe Bessa et al. (2012, p. 352) complementa:
Significa que, entre dois ou mais sentidos possíveis de ser extraídos
da leitura do contrato, deve-se privilegiar a interpretação mais
favorável ao consumidor, parte frágil da relação. Entre duas cláusulas
contraditórias ou aparentemente dissonantes, deve-se observar a que
mais vantagens apresenta ao consumidor.
A cláusula contratual, nestes casos, é a da oferta de descontos
promocionais. Tendo em vista que esta permite a concessão do desconto,
não resta dúvida que qualquer pessoa que se enquadrar na categoria descrita
pode receber o benefício, independentemente de já possuir benefícios legais
de meia-entrada.
A aplicabilidade do artigo 47 poderia, em tese, ser questionada tendo em
vista que o conceito de cláusula geralmente remete a ideia de itens de um contrato
escrito, contudo, Claudia Lima Marques (2002, p. 746) facilita sua interpretação,
em seu livro “Contratos no Código de Defesa do Consumidor”. Segundo a autora:
Em outras palavras, o conteúdo do contrato a interpretar não é
somente aquele “posto” em cláusulas pré-redigidas unilateralmente
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
pelo fornecedor, mas também todo o contexto anterior que constitui a
oferta, isto é, a publicidade veiculada, os prospectos distribuídos, as
informações prestadas ao consumidor, as práticas comerciais exercidas,
tais como a venda casada, a oferta de prêmios ou brindes especiais
para incitar a manifestação de vontade positiva do consumidor etc.
Diante desta interpretação, resta evidente a aplicabilidade do artigo 47
nos contratos de meia-entrada, mais especificamente, permitindo a cumulação
dos benefícios legais com os ofertados pelos realizadores de eventos à título
promocional.
Por fim, o último argumento de defesa seria afirmar que a cláusula que
veda a cumulação de benefícios, presente na oferta da maioria dos eventos, é
abusiva e, por consequência, nula de pleno direito.
Como o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor traz um rol
não exaustivo de cláusulas abusivas, é perfeitamente possível enquadrar neste
elenco a prática de informar a vedação à cumulação.
Prevê o texto legal que:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais
relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(...)
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que
coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam
incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
(...)
Fazendo a devida interpretação deste dispositivo, nota-se que o
ato de impossibilitar o consumidor de usufruir dois descontos, quando ele se
enquadra nas modalidades legal e promocional dos benefícios, o colocaria em
desvantagem exagerada, ferindo totalmente o principio da boa-fé nas relações
de consumo, prevista no artigo 4º do mesmo documento legal. 12
Destarte, conclui-se que qualquer modalidade de venda de ingressos
aberta ao público em geral possibilita os beneficiados legalmente (estudantes,
professores, idosos e doadores de sangue) a pagar a metade do valor cobrado
com o desconto, ou seja, “metade da metade”.
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das
necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de
seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e
harmonia das relações de consumo.
12
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
3.3.1 ENTENDIMENTO MENOS ABRANGENTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
DO PARANÁ
Evidentemente que o entendimento defendido no presente estudo não é
a posição dominante. Como exemplo, nota-se que o Ministério Público do Paraná
possui entendimento similar, contudo, menos abrangente acerca da cumulação.
Para aquela Promotoria, a cumulação deve ocorrer apenas entre um
desconto legal de meia-entrada e um desconto recebido à título de doação,
como no caso de alimentos, por exemplo.
Tal posição é defendida tendo em vista que, se o estabelecimento
oferece desconto para doações, acaba abrangendo todos os consumidores em
geral, burlando completamente a meia-entrada, pois nenhum adquirente de
ingresso precisaria pagar a entrada de valor inteiro.
O fornecedor pode simplesmente dobrar o valor que seria vendido
como “inteiro”. Como todos os consumidores pagariam “meia-entrada”, de
diversas maneiras, seja por meio de descontos legais, seja por meio de descontos
promocionais, o fornecedor estaria lucrando e burlando a legislação vigente.
Este posicionamento pode ser observado na Ação Civil Pública
interposta em face do Fetival de Teatro de Curitiba, neste ano de 2012:
Entretanto, a meia-entrada corresponde à 50% do valor efetivamente
cobrado pelo ingresso. Sendo assim, no caso do Projeto Páscoa
Solidária, onde há venda de ingressos vinculada à doação de bens,
o beneficiário da meia-entrada tem direito a pagar metade do valor
cobrado com a doação, sendo perfeitamente possível a cumulação da
meia-entrada legal/oficial com a doação da caixa de bombons de 400g.
A possibilidade da doação de chocolate é destinada à coletividade de
consumidores, enquanto outros descontos (clientes de determinados
bancos, assinantes de determinados jornais), correspondem à parcela
específica da coletividade, não havendo respaldo para cumulação.13
Correto é o entendimento do ilustre Parquet do Estado do Paraná,
contudo, tendo em vista todos os dispositivos do Código de Defesa do
Consumidor e de outras legislações citados neste capítulo, inexiste fundamento
para conceder a cumulação apenas no caso de doação.
Como já explanado, o fornecedor oferta o desconto promocional
porque entende ser pertinente à sua lucratividade ou, no caso das doações, à
responsabilidade social.
Ação Civil Pública nº 14932/2012. Autor: Ministério Público do Estado do Para MIINISTÉRIO
PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. Réu: PARNAXX LTDA. 9ª Vara Cível de Curitiba.
13
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Pode muito bem o mesmo ofertar descontos promocionais, contudo, a
partir do momento em que um consumidor se enquadra em uma das categorias
legais e uma promocional, deve sim, ser acariciado com o benefício.
4 CONCLUSÃO
A meia-entrada, independentemente da real intenção por trás de sua
criação, seja ela de natureza legal, seja ela decorrente de uma faculdade do
fornecedor de serviços, alcança um fim maior, que é a disseminação da cultura
e o incentivo e acesso de todas as pessoas à educação e ao lazer.
Tanto o instituto da meia-entrada quanto o do direito do consumidor
são relativamente novos. A figura jurídica do consumidor surge apenas com
a Constituição de 1988, a qual invocou a necessidade do Estado promover a
defesa desta nova categoria. A meia-entrada, em decorrência de movimentos
estudantis, surge apenas nos anos 90, sendo que algumas leis que a regulamentam
só foram criadas no século XXI.
A quantidade de debates e discussões possíveis acerca do tema meiaentrada, então, é diretamente proporcional ao número de consumidores que se
utilizam deste benefício.
Nos dias de hoje, grande parcela da população tem conhecimento sobre
a existência do desconto, entretanto, a busca de lucro por parte do fornecedor,
que acaba criando regras próprias em seu estabelecimento e limitando este
direito, dificulta uma normatização homogênea do assunto.
Neste trabalho foi apontada a prática habitualmente utilizada pelos
fornecedores para burlar o direito à meia-entrada, qual seja, a negativa da
cumulação de dois benefícios.
Entretanto, o tema ainda carece de fontes e decisões fundamentadas
que enfrentem diretamente a matéria. É o que pretende este estudo. Com a devida
explicação dos dispositivos previstos na Constituição Federal, no Código de
Defesa do Consumidor e nas legislações estaduais e federais, tentou-se defender
a posição de que um benefício legal e um desconto ofertado facultativamente
podem ser cumulados.
Foram apontadas as seguintes justificativas: a) efeito vinculante da oferta; b)
vedação à práticas abusivas; c) respeito ao princípio da isonomia entre consumidores;
d) interpretação mais favorável ao consumidor; e) nulidade de cláusulas abusivas.
Sendo assim, havendo dois benefícios, um promocional e um legal,
primeiro desconta-se o valor referente ao desconto promocional; feita a dedução,
o beneficio legal incidirá sobre esse resultado (“metade da metade”) uma vez
que o benefício legal leva em consideração o valor efetivamente cobrado
81
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Antônio Herman V. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor:
comentado pelos autores do anteprojeto.106. ed. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2011.
BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo
Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 4. ed. São Paulo: RT, 2012.
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de Direito do Consumidor: à Luz
da Jurisprudência do STJ. 6. ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2011.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor:
o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: Editora RT, 2002.
NISHIYAMA, Adolfo Mamoru. A Proteção Constitucional do Consumidor.
2. ed. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2010.
RULLI NETO, Antônio. Proteção legal do idoso no Brasil: universalização
da cidadania. São Paulo: Fiuza, 2003.
82
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO EM FACE DOS
DANOS AMBIENTAIS
CIVIC RESPONSABILITY OF THE STATE BY OMISSION RELATED TO
ENVIRONMENTAL DAMAGES
Fernanda Ferreira Netto Zanatto
Bacharelanda em direito do 10º período do Centro
Universitário Curitiba
José Mário Tafuri
Possui graduação em Direito pela Universidade São
Francisco (1986), especialização em Direito Tributário e
Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná (1997) e mestrado em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (2003). Tem experiência
na área de Direito, com ênfase em Direito Civil
RESUMO
O tema elencado abrange três matérias, a saber: direito civil,
ambiental e administrativo, e é exatamente em decorrência desta abrangência
que emerge o questionamento sobre qual seria a responsabilidade aplicável
à conduta estatal omissiva que permite a ocorrência de danos ambientais, se
ela é objetiva, subjetiva, solidária ou subsidiária com o poluidor direto entre
outros aspectos . A importância do tema reside em que o meio ambiente é
direito difuso, todos têm direito ao meio ambiente saudável como condição
para a própria existência, se este sofre um dano (por vezes irreparável)
o agente poluidor deve ser responsabilizado. Há controvérsia contudo,
principalmente quanto a qual responsabilidade seria aplicada no caso:
objetiva ou subjetiva, controvérsia esta que tentaremos solucionar. Com o
fim de destacar a relevância e facilitar a compreensão do tema, elencamos e
comentamos alguns casos práticos julgados pelo STJ.
Palavras-Chave: Estado; Responsabilidade; Omissão; Meio Ambiente; Dano
ABSTRACT
The referred theme will reach three main subjects: civil law, environmental
law and administrative law, and it is exactly because of this big field that emerges
83
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
the question about which would be the applicable responsibility to the omission in a
certain conduct of the state that permits the occurrence of environmental damage, if
it is objective or subjective, solidary or affiliated with the polluter. The importance of
the theme lies in the fact that the environment is a diffuse entitlement, everyone has
rights to and healthy environment like condition to the existence itself. But there are
controversies especially when the point is which responsibility would be applicable
to the case, objective or subjective, this controversy, is what we try to solve. To bring
attention to the importance of the theme, and to permit a better understanding of it, we
list and comment some practical cases judged by the Supreme Court of Justice.
Keywords: State; Responsibility; Omission; Environment; Damage.
1 INTRODUÇÃO
O artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, estabelece que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, é direito difuso (direito transindividual, indivisível de titularidade
indeterminada e ligada por circunstâncias fáticas) devendo ser preservado não
apenas em respeito às demais espécies existentes, mas pela própria razão de que,
sem um meio ambiente saudável a própria existência humana torna-se inviável.
Em sendo um direito amparado constitucionalmente, se é transgredido,
deverá ser reparado e o causador do dano responsabilizado. Em matéria
ambiental a responsabilidade civil é sempre objetiva (tanto em atos comissivos
ou omissivos), dispensa assim, o elemento da culpa. Em matéria administrativa,
por sua vez, em regra, a responsabilidade do Estado é objetiva quando por uma
ação causar um dano e subjetiva, quando por uma omissão permitir que o dano
ocorra. Há então, clara controvérsia ainda não pacificada jurisprudencialmente
e doutrinariamente conforme será demonstrado. Junte-se a isso a importância
do bem tutelado, qual seja, o meio ambiente, sem o qual a vida não seria viável.
Daí a importância de ser estudado e analisado com maior profundidade o tema.
2 DO MEIO AMBIENTE E DO DANO AMBIENTAL
O conceito de meio ambiente adotado pela Lei nº 6.938 de 31 de agosto
de 1981 (dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente) é amplo, pois o art.
1º afirma tratar-se de um “conjunto de condições, leis, influências e interações de
ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as
suas formas”. Destarte, atualmente o conceito de meio ambiente engloba todas
as formas de vida, ou seja, inclui não só os recursos naturais (como fauna e flora,
por exemplo), mas também a vida humana. Ao incluir a vida humana, surgem
84
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
novos aspectos do meio ambiente: artificial, cultural e do trabalho aspectos estes,
todavia, que dependem do meio ambiente natural.
Não há fronteiras para as questões ambientais, pois não é possível (ou
dificilmente o é) determinar quem será atingido por um dano ambiental, atinge
uma comunidade indeterminada.
A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, apesar de não
estabelecer o que seria “dano ambiental”, informa em seu artigo 3º, incisos II e
III o que é considerada degradação e poluição ambiental:
Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: (...)
II - degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das
características do meio ambiente;
III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de
atividades que direta ou indiretamente:
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
c) afetem desfavoravelmente a biota;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;
e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões
ambientais estabelecidos;
A degradação prevista no inc. II representa todo impacto negativo que a
natureza sofre, é um gênero do qual a poluição é espécie. A poluição por sua vez,
é a forma mais perniciosa de degradação, porque se difunde, se alastra, é possível
haver poluição do ar, subsolo, solo, visual, sonora, água, resíduos, entre outros.
A conseqüência da degradação ambiental é o dano ambiental. Em razão
de ser o meio ambiente um bem jurídico tutelado, a prática de um dano ambiental
configura um crime ambiental, devendo o agente poluidor ser responsabilizado
e assim, estaremos diante da responsabilidade ambiental, que pode ser civil,
administrativa ou penal. Trataremos aqui, apenas da responsabilidade civil.
3 DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS AMBIENTAIS
A Constituição Federal de 1988 não determina qual espécie
de responsabilidade deve ser observada nos casos de danos ambientais
(se subjetiva ou objetiva), porém, a já mencionada Lei nº 6.938, de 31 de
agosto de 1981, prevê em seu artigo 14, parágrafo 1º que deve ser aplicada a
responsabilidade objetiva:
Art 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal,
estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à
85
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela
degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:
(...)
§ 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo,
é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a
indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros,
afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos
Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil
e criminal, por danos causados ao meio ambiente (negritos nossos).
Não há margem para dúvidas quanto à eleição da responsabilidade
objetiva na seara do direito ambiental, com a leitura do parágrafo primeiro do
artigo acima colacionado, pois ele obriga que o poluidor indenize ou repare os
danos causados ao meio ambiente, independentemente de culpa. Isto implica
em que basta, para a responsabilização do poluidor, a prova do nexo causal
entre a conduta (comissiva ou omissiva) deste e o dano.
Sobre a responsabilidade objetiva ambiental, o doutrinador Paulo
Affonso Leme Machado (2010, p. 361):
A responsabilidade objetiva ambiental significa que quem danificar o
ambiente tem o dever jurídico de repará-lo. Presente, pois, o binômio
dano/reparação. Não se pergunta a razão da degradação para que haja
o dever de indenizar e/ou reparar. A responsabilidade sem culpa tem
incidência na indenização ou na reparação dos “danos causados ao meio
ambiente e aos terceiros afetados por sua atividade” (art. 14, § 1º da Lei
6.938/81). (...) Procura-se quem foi atingido e, se for o meio ambiente e o
homem, inicia-se o processo lógico-jurídico da imputação civil objetiva
ambiental. Só depois é que se entrará na fase do estabelecimento do
nexo de causalidade entre a ação ou omissão e o dano. É contra o Direito
enriquecer-se ou ter lucro à custa da degradação do meio ambiente.
Assim, a responsabilização civil por dano ambiental independe de
culpa na conduta do agente e isto se fundamenta na ideia de que quem expôs a
natureza aos riscos (na maioria dos casos, em razão de um desejo de obtenção
de lucro) deve reparar os danos advindos.
Um pensamento comum, em termos de responsabilidade civil na esfera
ambiental, é pensar nesta sempre como uma medida reparadora, repressiva e
por vezes, até punitiva, porém, importante destacar, que a responsabilidade
civil objetiva ambiental possui, além da função reparadora (almejando retornar
ao status quo ante, ou ao menos indenizar os danos sofridos), outra função
86
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
essencial, qual seja, a função preventiva, baseada no princípio da prevenção
(considerado um alicerce do direito ambiental), o qual visa fundamentalmente,
evitar os danos e prejuízos ao meio ambiente, tendo em vista que por vezes,
se não, em todas às vezes, estes são irreparáveis. Sobre o tema, acentua Paulo
Affonso Leme Machado: “Não é social e ecologicamente adequado deixar-se
de valorizar a responsabilidade preventiva, mesmo porque há danos ambientais
irreversíveis” (2010, p. 366).
Sobre o cabimento da responsabilidade objetiva em matéria ambiental,
à princípio parece não haver dúvidas, contudo, há divergência doutrinária no
que tange a modalidade da responsabilidade objetiva, se seria aplicável a teoria
do risco integral ou do risco mitigado.
A teoria do risco integral afirma não haver nenhuma excludente de
responsabilidade (nem mesmo a força maior) e fundamenta-se na ideia de que
quem cria o “risco deve reparar os danos advindos de seu empreendimento, pela
simples existência dele” (ZOCKUN, 2006, p. 82).
Todavia, alguns doutrinadores encaram esta teoria extrema demais,
pois ao não se importar com a existência ou não do nexo causal (visto que
casos de força maior quebram o nexo de causalidade), imputa por vezes, a uma
pessoa física ou jurídica a responsabilidade por fatos totalmente alheios à sua
conduta.
Exemplificaremos de forma bem extrema assim como a teoria, a razão
de parte doutrinária entender como extrema esta teoria: imagine a ocorrência
de um tsunami, que devaste uma cidade inteira, inclusive uma empresa (pessoa
jurídica “A”) e aos redores dela, com vegetação nativa. Pela teoria do risco
integral, estaria a pessoa jurídica “A” obrigada a reparar todos os danos causados
por essa força maior totalmente alheia a sua conduta. Não parece razoável.
Rui Stoco (2011, p. 989) comenta a incoerência que envolve a teoria
do risco integral:
Ora, tal posicionamento ofende não só o direito positivo como
e principalmente os princípios que informam o instituto da
responsabilidade civil. Seria a suma incoerência exigir-se o nexo
causal, que é o mínimo para efeito de responsabilização por danos,
e, ao mesmo tempo, não admitir a possibilidade de uma causa que
possa rompê-lo, máxime considerando que o nexo causal se refere
a fatos. Serve o nexo causal de elemento indispensável de ligação
entre o autor da ação ou omissão e o dano sendo, portanto, um dos
elementos essenciais da responsabilidade civil, mas que se converte,
como visto, no vínculo entre a conduta e o resultado.
87
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Na teoria do risco mitigado, por sua vez, há a possibilidade de
excludentes de responsabilidade, como a força maior, visto que esta rompe o
liame de causalidade entre a conduta e o dano.
Da própria leitura do §1º do art. 14 da Lei nº 6938, é possível
afirmar que adotaria a lei esta teoria, visto que exige o nexo causal: “(...) é o
poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou
reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua
atividade”. Desta forma, a Lei afastaria a teoria do risco integral já que “exime
a responsabilidade se provocado por fato diverso da atividade que desempenha
aquele a quem é atribuída à ação devastadora, como a ação de terceiros, o caso
fortuito ou de força maior” (RIZARDO, 2009, p. 706).
Destarte, até o momento temos que a todos é assegurado o direito ao
meio ambiente saudável, caso alguém o viole será responsabilizado civilmente
de forma objetiva e este que polui pode ser tanto pessoa física, jurídica, de
direito público ou privado (inciso IV, do artigo 3º da Lei nº. 6938/81), assim, se
o Estado causar um dano ao meio ambiente tanto por uma ação, quanto por uma
omissão deverá ser responsabilizado.
Todavia, eis que surge uma controvérsia, visto que existem divergências
doutrinárias, no que tange às características dessa responsabilização a ser
imputada ao Poder Público quando decorrente de uma omissão, ou seja, quando
não for o Estado o causador direto do dano, senão, vejamos.
4 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO FRENTE AOS
DANOS AMBIENTAIS
Dispõe o artigo 37, § 6º da Constituição Federal da República
Federativa do Brasil de 1988:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito
de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Nota-se que por expressa previsão legal, a responsabilidade do Estado
é em regra objetiva (teoria do risco administrativo), autorizada ação de regresso
em face do agente que agiu com dolo e/ou culpa.
88
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Contudo, por entendimento majoritário doutrinário, nos casos de danos
oriundos de uma omissão do Poder Público, aplicar-se-ia a responsabilidade
subjetiva (teoria da culpa administrativa), o que implica a necessidade da
existência da culpa na conduta estatal, sendo esta compreendida por uma ação
negligente, imprudente, imperita ou ainda dolosa. Sobre esta responsabilidade,
Celso Antonio Bandeira de Mello (2007, p. 977):
Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado
(o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de
aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o
Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E,
se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a
impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu
dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo.
[...]
Logo, a responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre
responsabilidade por comportamento ilícito. E, sendo responsabilidade
por ilícito, é necessariamente responsabilidade subjetiva, pois não há
conduta ilícita do Estado (...) que não seja proveniente de negligência,
imprudência ou imperícia (culpa) ou, então, deliberado propósito de
violar a norma que o constituía em dada obrigação (dolo)..
Percebe-se que o Estado só seria responsabilizado por atos de omissão,
quando além de causar dano a alguém, tinha o dever de agir e não agiu por uma
negligência, imprudência ou imperícia.
Os danos causados, por omissão, em regra decorrem de fatos da natureza
ou de terceiros, que poderiam ter sido reduzidos ou até mesmo evitados se o Estado
não tivesse se omitido frente a um dever de agir (DI PIETRO, 2009, p. 651).
Além de haver o dever de agir violado, para que exista a responsabilização
do Estado decorrente de omissão, necessário haver a possibilidade de agir para
evitar o dano, a esse respeito, Di Pietro (2009, p. 651):
A dificuldade da teoria diz respeito à possibilidade de agir; tem que
se tratar de uma conduta que seja exigível da Administração e que
seja possível. Essa possibilidade só pode ser examinada diante de
cada caso concreto. Tem aplicação no caso, o princípio da reserva do
possível, que constitui aplicação do princípio da razoabilidade: o que
seria razoável exigir do Estado para impedir o dano.
Havendo então para o Estado, o dever de agir, a possibilidade de
89
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
agir e mesmo assim se omitindo, incorre em ato ilícito e surge a obrigação de
reparar/indenizar o dano. Por ser uma atitude ilícita estatal, afirma-se que há
uma presunção de culpa do Poder Público, conforme acentua Celso Antonio
Bandeira de Mello (2007, p. 981):
Nos casos de responsabilidade por omissão, isto é, em que a
responsabilidade é subjetiva, deve-se considerar que vigora uma
“presunção de culpa” do Poder Público. Dessarte, o lesado não
necessita fazer a prova de que existiu culpa ou dolo. Sem embargo, se
a entidade pública provar que sua omissão – propiciatória do dano –
não decorreu de negligência, imprudência ou imperícia (hipóteses de
culpa) ou de dolo, ficará excluída a responsabilidade.
Destarte, resta evidente a aplicação da responsabilidade objetiva
quando o Poder Público por uma ação causar um dano e subjetiva quando por
uma omissão permitir que o dano ocorra.
Já na responsabilidade civil por danos ambientais, a regra é a
responsabilidade civil objetiva tendo em vista a previsão do §1º do art. 14 da
Lei Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81):
Art 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal,
estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à
preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela
degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:
§ 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo,
é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa,
a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a
terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União
e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade
civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.”
Ou seja, independe de culpa, mas, aceita as excludentes que romperem
o nexo causal, conforme expomos anteriormente.
Assim, há um conflito, pois, de um lado temos que tanto a
responsabilidade estatal quanto a responsabilidade ambiental são objetivas,
porém, em se tratando de uma ação omissiva do Poder Público, seria
responsabilidade subjetiva.
Ressalta-se, contudo, que, é previsto por lei que a responsabilidade estatal
e ambiental são objetivas enquanto que, a responsabilidade subjetiva aplicada em
casos de omissão estatal é um entendimento doutrinário e jurisprudencial.
90
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Tentaremos aqui, encaminhar para uma conclusão sobre o assunto.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 imputa
a responsabilidade de defender e preservar o meio ambiente, tanto ao Poder
Público quanto à coletividade, porém, é àquele que condiciona maiores deveres
e obrigações, conforme os incisos do §1º do art. 225, senão, vejamos:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder
Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o
manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do
País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de
material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais
e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a
alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada
qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que
justifiquem sua proteção;
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio
ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará
publicidade;
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas,
métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade
de vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas
que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção
de espécies ou submetam os animais a crueldade (negritos nossos).
Rui Stoco (2011, p. 987), ao comentar citado artigo afirma que, diante de
todas as obrigações conferidas ao Poder Público pelo dispositivo legal, caso o Estado
os viole, responderá direta e exclusivamente “sendo certo que não só a competência
legislativa e administrativa, como a responsabilidade civil são concorrentes”.
Ainda, segundo o inciso IV, artigo 3º da Lei nº. 6938/81, o Estado
(pessoa jurídica de direito público), será responsabilizado quando causar
danos ambientais:
91
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
[...]
IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado,
responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de
degradação ambiental;
Os danos ambientais podem ser causados por um ato omissivo ou
comissivo do Poder Público.
Parece ser de fácil compreensão que, quando o Poder Público
causar diretamente, por uma ação, um dano ao meio ambiente, agirá de forma
ilícita, pois, viola os preceitos do art. 225 da CF e do art. 3º, inc. IV, da Lei nº.
6938/81, devendo assim, arcar com as consequências de sua conduta sendo
responsabilizado por tal ação.
Aplicar-se-ia então, nestes casos (conduta comissiva estatal)
a responsabilidade civil objetiva (art. 37, § 6º, CF), fundamentada tanto
na teoria do risco administrativo, quanto pela teoria do risco mitigado de
direito ambiental.
Já quando, o Estado permitir a ocorrência de dano ambiental por
uma omissão, ou seja, casos de “falta de fiscalização, inobservância das regras
informadoras dos processos de licenciamento, inércia quanto à instalação de
sistemas de disposição de lixo e tratamento de esgotos” (MILARE, 2007, p.
909), entre outros, estar-se-á diante de uma conduta indireta do Estado, ou seja,
ele não seria o causador imediato do dano. Não obstante tratar-se de poluidor
indireto, subsiste a necessidade de ser responsabilizado por sua omissão,
conforme entendimento de Ântonio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Édis
Milaré e Nelson Nery Junior e Rui Stoco, citados por este (2004, p. 840):
Mas se o Poder Público, que deveria exercer seu poder de polícia e de
fiscalização obrigatória, não o faz e referida indústria sequer possui
autorização (alvará de funcionamento), ou vistoria prévia pelos órgãos
sanitários, responderá, também, e solidariamente com o particular,
por sua omissão, ficando obrigado a reparar. Esse nosso entendimento
é sufragado por Antônio Ântonio Augusto Mello de Camargo Ferraz,
Édis Milaré e Nelson Nery Junior, nos seguintes termos:
“Parte passiva da ação ambiental será o responsável pelo dano ou
pela ameaça de dano, seja pessoa física, seja pessoa jurídica, inclusive
a Administração Pública. Entendemos que o Poder Público poderá
sempre figurar no polo passivo de qualquer demanda dirigida à
reparação do meio ambiente: se ele não for responsável por ter
ocasionado diretamente o dano, por intermédio de um de seus agentes,
92
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
o será ao menos solidariamente, por omissão de um dever que é só
seu, de fiscalizar e impedir que tais danos aconteçam. Ao Estado
restará, no entanto, voltar-se regressivamente, neste último caso,
contra o direto causador do dano” (A ação civil pública e a Tutela
jurisdicional dos interesses difusos. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 76;
In: O Ministério Público e a responsabilidade civil do profissional
nas atividades modificadoras do meio ambiente, de Édis Milaré, RT
623/31 – grifos do autor).
Nestes casos, o Estado será responsabilizado e em decorrência
da previsão do caput do art. 225 da Constituição Federal, e conforme bem
lembrado por Rui Stoco no trecho acima, o Poder Público figurará no polo
passivo, respondendo solidariamente com o agente direto pelos danos causados.
A solidariedade entre o agente privado e o Poder Público, ocorreria
inclusive quando este por uma omissão causasse, ou melhor, permitisse a ocorrência
do dano, e isto visando a maior proteção do meio ambiente. Seria uma segurança
para a sociedade frente aos danos causados a um bem de suma importância para
a existência da vida humana. Álvaro Mirra (2008, p. 25), comenta a questão da
solidariedade entre causador direto do dano e causador indireto:
Assim, se por um lado, existe, no âmbito da relação jurídica de
direito material, corresponsabilidade do Poder Público perante a
sociedade pelo dano causado por terceiro, responsável direto pela
agressão ao meio ambiente, por outro lado, inexiste a possibilidade
de o responsável direto – como degradador principal – acionar
regressivamente o Estado para obter o reembolso total ou parcial
do que for eventualmente obrigado a pagar a título de indenização
pela degradação praticada. A responsabilidade solidária, na hipótese,
vincula ambos – responsável direto e indireto – perante a sociedade.
Desta feita, temos até o momento que, em casos de omissão do poder
público em matéria ambiental, ele responderá sim por sua falta e de forma
solidária, em que pese alguns entendimentos de que, apesar de poder ser chamado
à lide, o Estado responderia subsidiariamente (questão abordada a seguir).
A questão mais controversa, todavia, incitando divergências tanto
doutrinárias quanto jurisprudenciais reside em qual espécie de responsabilidade
seria aplicável, se objetiva ou subjetiva. Já vimos que, em casos de omissão
estatal, de forma mais genérica, a predominância doutrinária, inclina-se pela
aplicabilidade da responsabilidade subjetiva. Cabe-nos agora, verificar se o
mesmo ocorre no que tange aos casos de omissão estatal em matéria ambiental.
93
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Poder-se-ia afirmar que a responsabilidade civil do Estado por omissão
frente aos danos ambientais seria subjetiva pelos mesmos fundamentos que é
subjetiva a responsabilidade estatal em todos os outros casos omissivos, ou seja,
frente a um dever legal, deixou de agir ou agiu de forma ineficiente, conforme
Celso Antonio Bandeira de Mello (2007, p. 977), já citado anteriormente.
No caso, uma omissão estatal que conduza a um dano ambiental é
claramente um descumprimento ao dever legal de preservação do meio ambiente,
além de outros elencados no art. 225 da Constituição Federal, desta forma,
descumprindo este dever incide em um ilícito por agir de forma negligente,
imprudente ou com imperícia, e poder-se-ia afirmar que a responsabilidade
seria subjetiva, dependente do elemento culpa.
Defendendo pelo cabimento da responsabilidade civil subjetiva do
estado por omissão frente aos danos ambientais, Patrícia Cavalcante Falconeri14:
A omissão do agente público configura culpa in omitendo ou culpa
in vigilando, e é um dos fatores que tem dado causa aos prejuízos
ao meio ambiente, como também aos administrados e à própria
Administração. Um exemplo a ser observado é o dano decorrente de
inundações por ausência, ou limpeza pública adequada.
O dever de agir deve atuar dentro dos parâmetros da proporcionalidade
e razoabilidade. Portanto, há um padrão de conduta esperada do
Estado. Desse modo, não há como se admitir uma responsabilidade
estatal ilógica e injurídica, isto é, esperar que o Estado responda
em todos os casos, mesmo quando as providências necessárias não
estejam ao seu alcance.
Quando a conduta estatal é omissiva, há que se observar se essa retrata
um desleixo do Estado em cumprir um dever legal, para então configurar
a responsabilidade. Assim, somente haverá responsabilização do
Estado quando estiverem presentes os elementos que caracterizam a
culpa. Resulta, logicamente, que, em casos de omissão, a teoria da
responsabilidade objetiva não tem perfeita aplicabilidade. Adota-se,
em grande parte dos casos, a teoria subjetiva.
A autora, além de defender pela responsabilidade subjetiva em
decorrência de uma falta do poder público também o faz sob o ponto de vista
de que, por vezes, imputar ao Estado uma responsabilidade objetiva em casos
de omissão, seria esperar uma conduta onipresente, e faltaria ai um critério
FALCONERI, Patrícia Cavalcante. A responsabilidade civil do Estado por omissão nos casos
de dano ambiental. Revista Jus Vigilantibus, março. 2006. Disponível em: <http://jusvi.com/
artigos/20369>. Acesso em 18 set. 2012.
14
94
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
de razoabilidade, pois o poder público, formado por agentes públicos não
conseguiria “dar conta” de todos os fatos que ocorrem em seu território.
É compreensível o posicionamento de que seria excessivo talvez,
esperar que o Estado conseguisse adotar uma conduta onipresente, todavia,
também é possível afirmar que este posicionamento é um pouco, arriscado.
Poderia servir tal afirmação como uma “desculpa” do Poder Público em casos
concretos, visando uma responsabilização dependente de maiores elementos
probatórios.
Ressalte-se, contudo, que não se espera diante desta afirmação, que
o Estado consiga ser onipresente, mas apenas que este cumpra seus deveres
legais previstos, entre outros dispositivos, pelo art. 225 da CF. Se o Estado
adotar todas as precauções possíveis e necessárias, atuando nos termos legais
previstos, caso ocorra um dano ao meio ambiente por atuação de terceiro, não
haverá liame de causalidade entre a atitude estatal e o dano ambiental, o nexo
causal estará rompido, e assim, não será responsabilizado, já que o nexo causal
é elemento essencial para que a responsabilização do agente exista, seja ela
objetiva ou subjetiva.
Corroborando para este entendimento, citamos aqui, a ementa do
Recurso Especial nº 647493/SC julgado em 22.05.2007 pelo Ministro João
Otávio de Noronha:
Recurso especial. Ação civil pública. Poluição ambiental. Empresas
mineradoras. Carvão mineral. Estado de Santa Catarina. Reparação.
Responsabilidade do estado por omissão. Responsabilidade solidária.
Responsabilidade subsidiária.
1. A responsabilidade civil do Estado por omissão é subjetiva, mesmo
em se tratando de responsabilidade por dano ao meio ambiente,
uma vez que a ilicitude no comportamento omissivo é aferida sob a
perspectiva de que deveria o Estado ter agido conforme estabelece a
lei.
[...]
3. Condenada a União a reparação de danos ambientais, é certo
que a sociedade mediatamente estará arcando com os custos de tal
reparação, como se fora auto-indenização. Esse desiderato apresentase consentâneo com o princípio da eqüidade, uma vez que a atividade
industrial responsável pela degradação ambiental – por gerar divisas
para o país e contribuir com percentual significativo de geração de
energia, como ocorre com a atividade extrativa mineral – a toda a
sociedade beneficia.
4. Havendo mais de um causador de um mesmo dano ambiental,
95
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
todos respondem solidariamente pela reparação, na forma do art. 942
do Código Civil. De outro lado, se diversos forem os causadores da
degradação ocorrida em diferentes locais, ainda que contíguos, não
há como atribuir-se a responsabilidade solidária adotando-se apenas
o critério geográfico, por falta de nexo causal entre o dano ocorrido
em um determinado lugar por atividade poluidora realizada em outro
local.
[...] (STJ – Segunda Turma. Rel.: Min. João Otávio de Noronha.
REsp. 647493/SC, julgado em 22.05.2007, DJ 22.10.2007, p. 233 –
RDTJRJ vol. 75 p. 94 – grifos nossos)
Parece-nos que o fundamento da aplicação da responsabilidade
subjetiva no caso analisado pelo Superior Tribunal de Justiça é exatamente o
que abordamos, advém da falha do serviço público frente à situação em que
tinha o dever legal de agir e não agiu.
Por fim, em se aplicando a responsabilidade subjetiva, destaque-se
que “a imputação do Estado do dever de indenizar deve ser graduada na medida
de sua culpabilidade, bem assim observando a preferência do poluidor direto na
recuperação do dano” 15.
Feitas as considerações sobre a aplicabilidade da responsabilidade
subjetiva, parte-se para a análise sobre o cabimento da responsabilidade objetiva.
Conforme preceitua o parágrafo primeiro do artigo 14 da Lei 6938/81
o poluidor é obrigado a indenizar ou reparar danos causados ao meio ambiente e
a terceiros independentemente de culpa, ou seja, a responsabilidade é objetiva.
Ainda, tanto na Lei 6938/81, quanto na Constituição Federal de 1988,
não há dispositivo que preveja exceção à regra da responsabilização objetiva,
ou seja, não há preceito legal que afirme que em casos de omissão do Poder
público que conduza a danos ambientais seria aplicável a responsabilidade
subjetiva. Neste sentido, Rui Stoco (2011, p. 987):
Parte expressiva da doutrina, tendo em vista a previsão legal expressa,
afirma a responsabilidade objetiva do poluidor ou mesmo do Poder
Público que, devendo assumir determinado comportamento, omite-se
simplesmente ou age em desacordo com o regulamento.
E não há exceção prevista legalmente posto que o meio ambiente como
condição da própria vida humana deve ser protegido, assim, se há um dano,
deve haver uma reparação a ser realizada pelo poluidor e, caso não seja possível,
BARROSO, Ricardo Cavalcante. A responsabilidade civil do Estado por omissão em face do
dano ambiental.Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 16, n. 63,
julho/set 2011, p. 228.
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96
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
deverá este indenizar pelos danos causados (MACHADO, 2008, p. 347). É frente
à necessidade de reparação do meio ambiente que não há sentido em se verificar
a culpa na conduta do agente e assim, poder-se-ia afirmar sob o ponto de vista da
preservação do meio ambiente que não há como ser a responsabilidade subjetiva,
sob o risco do meio ambiente não ser devidamente reparado.
Todavia a própria justificativa pela aplicação da responsabilidade
objetiva, também encontra divergência, visto que para alguns doutrinadores,
como é o caso de Rui Stoco, não seria cabível a responsabilidade objetiva em
razão das disposições legais ambientais, que são infraconstitucionais, mas sim,
em decorrência do §6º do art. 37 da Constituição Federal de 1988, considerando
o fato de que o conceito de “terceiros”, integrante da redação do art., englobaria
“os direitos difusos ou individuais homogêneos” (2011, p. 987).
A adoção da teoria da responsabilidade objetiva nesses casos, também
é defendida jurisprudencialmente:
Ambiental. Unidade de conservação de proteção integral (lei 9.985/00).
Ocupação e construção ilegal por particular no parque estadual de
jacupiranga. Turbação e esbulho de bem público. dever-poder de
controle e fiscalização ambiental do estado. omissão. Art. 70, § 1º, da
Lei 9.605/1998. Desforço imediato. Art. 1.210, § 1º, do Código Civil.
Artigos 2º, I e V, 3º, IV, 6º e 14, § 1º, da lei 6.938/1981 (lei da política
nacional do meio ambiente). conceito de poluidor. responsabilidade
civil do estado de natureza solidária, objetiva, ilimitada e de execução
subsidiária. litisconsórcio facultativo.
1. Já não se duvida, sobretudo à luz da Constituição Federal de 1988,
que ao Estado a ordem jurídica abona, mais na fórmula de dever do que
de direito ou faculdade, a função de implementar a letra e o espírito
das determinações legais, inclusive contra si próprio ou interesses
imediatos ou pessoais do Administrador. Seria mesmo um despropósito
que o ordenamento constrangesse os particulares a cumprir a lei e
atribuísse ao servidor a possibilidade, conforme a conveniência ou
oportunidade do momento, de por ela zelar ou abandoná-la à própria
sorte, de nela se inspirar ou, frontal ou indiretamente, contradizê-la,
de buscar realizar as suas finalidades públicas ou ignorá-las em prol
de interesses outros.
[...]
4. Qualquer que seja a qualificação jurídica do degradador, público
ou privado, no Direito brasileiro a responsabilidade civil pelo dano
ambiental é de natureza objetiva, solidária e ilimitada, sendo regida
pelos princípios do poluidor-pagador, da reparação in integrum, da
97
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
prioridade da reparação in natura, e do favor debilis, este último a
legitimar uma série de técnicas de facilitação do acesso à Justiça,
entre as quais se inclui a inversão do ônus da prova em favor da vítima
ambiental. Precedentes do STJ.
5. Ordinariamente, a responsabilidade civil do Estado, por omissão, é
subjetiva ou por culpa, regime comum ou geral esse que, assentado no
art. 37 da Constituição Federal, enfrenta duas exceções principais.
Primeiro, quando a responsabilização objetiva do ente público
decorrer de expressa previsão legal, em microssistema especial, como
na proteção do meio ambiente (Lei 6.938/1981, art. 3º, IV, c/c o art.
14, § 1º). Segundo, quando as circunstâncias indicarem a presença de
um standard ou dever de ação estatal mais rigoroso do que aquele que
jorra, consoante a construção doutrinária e jurisprudencial, do texto
constitucional.
6. O dever-poder de controle e fiscalização ambiental (= dever-poder
de implementação), além de inerente ao exercício do poder de polícia
do Estado, provém diretamente do marco constitucional de garantia
dos processos ecológicos essenciais (em especial os arts. 225, 23, VI e
VII, e 170, VI) e da legislação, sobretudo da Lei da Política Nacional
do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981, arts. 2º, I e V, e 6º) e da Lei
9.605/1998 (Lei dos Crimes e Ilícitos Administrativos contra o Meio
Ambiente).
[...]
12. Para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano urbanísticoambiental e de eventual solidariedade passiva, equiparam-se quem
faz, quem não faz quando deveria fazer, quem não se importa que
façam, quem cala quando lhe cabe denunciar, quem financia para que
façam e quem se beneficia quando outros fazem.
13. A Administração é solidária, objetiva e ilimitadamente responsável,
nos termos da Lei 6.938/1981, por danos urbanístico-ambientais
decorrentes da omissão do seu dever de controlar e fiscalizar, na
medida em que contribua, direta ou indiretamente, tanto para a
degradação ambiental em si mesma, como para o seu agravamento,
consolidação ou perpetuação, tudo sem prejuízo da adoção, contra o
agente público relapso ou desidioso, de medidas disciplinares, penais,
civis e no campo da improbidade administrativa.
14. No caso de omissão de dever de controle e fiscalização, a
responsabilidade ambiental solidária da Administração é de execução
subsidiária (ou com ordem de preferência).
15. A responsabilidade solidária e de execução subsidiária significa
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
que o Estado integra o título executivo sob a condição de, como
devedor-reserva, só ser convocado a quitar a dívida se o degradador
original, direto ou material (= devedor principal) não o fizer [...]
18. Recurso Especial provido.(STJ – Segunda Turma. Rel.: Ministro
Herman Benjamin. REsp/SP 1071741. Julgado em 24.03.2009, DJe
16.12.2010 – negritos nossos).
Sobre a responsabilidade objetiva do poder público, o Min. Herman
Benjamin discorre no voto do recurso especial, cuja ementa foi colacionada acima:
[...] na responsabilidade civil ambiental, regime totalmente especial,
a culpa não entra pela porta da frente, tampouco pela dos fundos, ou
mesmo a título de temperamento dos deveres do Estado.
[...]
Numa palavra, seja a contribuição do Estado ao dano ambiental direta
ou indireta, sua responsabilização sempre observará, na linha de fator
de atribuição, o critério objetivo.
Vale dizer, se é certo que a responsabilidade civil do Estado, por
omissão, é, ordinariamente, subjetiva ou por culpa, esse regime,
tirado da leitura do texto constitucional, enfrenta pelo menos duas
exceções principais. Primeiro, quando a responsabilização objetiva
para a omissão do ente público decorrer de expressa determinação
legal, em microssistema especial, como na proteção do meio ambiente
(Lei 6.938⁄81, art. 3º, IV, c.c. o art. 14, § 1º). Segundo, quando as
circunstâncias indicarem a presença de um dever de ação estatal –
direto e mais rígido – que aquele que jorra, segundo a interpretação
doutrinária e jurisprudencial, do texto constitucional.
A responsabilização estatal decorre de omissão que desrespeita
estipulação ex vi legis, expressa ou implícita, fazendo tábula rasa
do dever legal de controle e fiscalização da degradação ambiental,
prerrogativa essa em que o Estado detém quase um monopólio. Ao
omitir-se contribui, mesmo que indiretamente, para a ocorrência,
consolidação ou agravamento do dano. Importa ressaltar, mais uma
vez, que não há porque investigar culpa ou dolo do Estado (exceto
para fins de responsabilização pessoal do agente público), pois não se
sai do domínio da responsabilidade civil objetiva, prevista no art. 14, §
1º, da Lei 6.938⁄81, que afasta o regime comum, baseado no elemento
subjetivo, de responsabilização da Administração por comportamento
omissivo (grifos nossos).
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
No mesmo sentido do voto do recurso especial colacionado,
entendendo pelo cabimento da responsabilidade objetiva estatal, citamos: REsp
nº. 604725/PR, julgado em 21.06.2005 pelo Ministro Castro Meira, AgRg no
Ag nº. 822.764⁄MG, julgado em 05.06.2007 pelo Ministro José Delgado.
No caso específico, cuja ementa foi acima colacionada, o Estado
tinha o dever de preservar o Parque Estadual de Jacupiranga, porém não o fez,
visto que permitiu a invasão em uma área do Parque, bem como a construção
irregular de uma casa e a exploração de área interna com o cultivo de mandioca
e feijão por um longo período de tempo, demonstrando assim, claramente a
omissão estatal.
Percebe-se que, a omissão do Poder Público foi condição essencial para
que pudesse ser construída irregularmente a casa no Parque Estadual, bem como
fosse desmatadas áreas de mata nativa para a plantação de mandioca e feijão. O
nexo de causalidade entre a omissão estatal e o dano ambiental é visível, é clara.
O nexo de causalidade, também foi elemento essencial para a
responsabilização objetiva do Poder Público em outro caso:
Ação civil pública. Dano causado ao meio ambiente. Legitimidade
passiva do ente estatal. Responsabilidade objetiva. Responsável direto
e indireto. Solidariedade. Litisconsórcio facultativo. [...]
3. O Estado recorrente tem o dever de preservar e fiscalizar a
preservação do meio ambiente. Na hipótese, o Estado, no seu dever
de fiscalização, deveria ter requerido o Estudo de Impacto Ambiental
e seu respectivo relatório, bem como a realização de audiências
públicas acerca do tema, ou até mesmo a paralisação da obra que
causou o dano ambiental.
4. O repasse das verbas pelo Estado do Paraná ao Município de Foz de
Iguaçu (ação), a ausência das cautelas fiscalizatórias no que se refere
às licenças concedidas e as que deveriam ter sido confeccionadas
pelo ente estatal (omissão), concorreram para a produção do dano
ambiental. Tais circunstâncias, pois, são aptas a caracterizar o nexo de
causalidade do evento, e assim, legitimar a responsabilização objetiva
do recorrente.
5. Assim, independentemente da existência de culpa, o poluidor,
ainda que indireto (Estado-recorrente) (art. 3º da Lei nº 6.938/81),
é obrigado a indenizar e reparar o dano causado ao meio ambiente
(responsabilidade objetiva). [...]
7. Recurso especial conhecido em parte e improvido. (STJ – Segunda
Turma. Rel.: Ministro Castro Meira. REsp 604725/PR, julgado em
21.06.2005, DJ 22.08.2005, p. 202. – grifos nossos)
100
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Citamos esses exemplos de casos práticos para tentar deixar mais
claro que há sim uma divergência entre se é cabível a responsabilidade civil
subjetiva ou objetiva, porém, a responsabilidade objetiva é aplicada, em regra,
quando a omissão estatal contribuiu de alguma forma para a ocorrência do
dano, quando é possível vislumbrar claramente o nexo causal entre a omissão
estatal e o dano produzido pelo terceiro poluidor direto. O procurador federal,
Ricardo Cavalcante Barroso16, comenta esse posicionamento jurisprudencial:
[...] resta evidente que a imputação da responsabilidade objetiva do
Estado, embora admissível, deve estar cercada de condicionantes
casuísticas que permitam concluir que o Estado não agiu para prevenir
o dano quando a situação era de conhecimento geral ou do Poder
Público. O Estado não agiu quando era legalmente exigida a sua
atuação, sem falar que era factível a ação estatal para evitar o dano.
Além da responsabilidade objetiva, é comum ainda, como o fez o Min.
Herman Benjamin, imputar ao Estado responsabilidade solidária (já abordamos
anteriormente), mas de execução subsidiária, ou seja, só deverá indenizar pelos
danos ambientais que não tiverem sido indenizados por aquele agente imediato
do dano, assumindo o Estado uma postura de “devedor-reserva”, só sendo
chamado quando o devedor original (poluidor direto) não quitar a dívida.
Isso ocorre principalmente, por duas razões: a) tendo em vista o
princípio do poluidor-pagador e b) o fato de que, os recursos através dos quais
o poder público iria arcar com a indenização decorrem do patrimônio público.
A forma de responsabilidade estatal nestes casos é determinada por
um critério de razoabilidade, pois, em sendo responsabilidade por omissão,
implica em que é o Estado o poluidor indireto, havendo então, um poluidor
direto, alguém que possivelmente poluiu o meio ambiente em decorrência de
sua atividade econômica com fins a obter lucro, assim, aplicar-se-ia o princípio
do poluidor-pagador.
A responsabilidade do Estado ainda, deveria ser subsidiária
considerando que o dinheiro através do qual o Poder Público pagaria as
indenizações por danos ambientais decorreria do próprio patrimônio público,
desta forma, caso não respondesse de forma subsidiária, a sociedade seria
duplamente penalizada, pois além de “sofrer” com o dano ambiental (que
dificilmente pode ser totalmente reparado) deveria ainda, arcar com a reparação
(econômica) deste. Neste sentido, Edis Milaré (2007, p. 909):
BARROSO, Ricardo Cavalcante. A responsabilidade civil do Estado por omissão em face do
dano ambiental.Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 16, n. 63,
julho/set 2011, p. 228.
16
101
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Na prática, para não penalizar a própria sociedade, que é quem paga
as contas públicas, e que teria, em última analise, de indenizar os
prejuízos decorrentes do dano ambiental, convém, diante das regras
da solidariedade entre os responsáveis, só acionar o Estado quando
puder ser increpada a ele a causação direta do dano. Na verdade,
se é possível escolher um dos responsáveis, segundo as regras da
solidariedade, por que não se valer da opção mais conveniente aos
interesses da comunidade, chamando-se, primeira e prioritariamente,
aquele que lucra com a atividade?!
Daí a importância de ser a responsabilidade do Estado subsidiária.
Ressalta-se, todavia, que em não sendo encontrado o poluidor direto, ou este
não conseguindo arcar com os reparos ambientais necessários, o Poder Público
deverá ser responsabilizado a indenizar os danos ambientais ou tentar repará-los,
podendo ajuizar ação regressiva em face do poluidor direto, considerando que
causa um prejuízo aos cofres públicos, nos termos do §5º do art. 37 da CF17.
Sobre os fundamentos da necessidade da responsabilidade estatal ser
executada de forma subsidiária, citamos novamente o Min. Herman Benjamin:
[...] seria desaconselhável chamar o Estado – que, fruto de sua posição
anômala, ao final das contas, como representante da sociedade-vítima
do dano urbanístico-ambiental, também é prejudicado –, a responder,
na linha de frente, pela degradação materialmente causada por terceiro
e que só a este beneficia ou aproveita.
[...] tendo por objetivo resguardar a plena solvabilidade financeira e
técnica do crédito ambiental, não é desiderato da responsabilidade
solidária e de execução subsidiária do Estado – sob pena de onerar
duplamente a sociedade, romper a equação do princípio poluidorpagador e inviabilizar a internalização das externalidades ambientais
negativas [...] Se por um lado é certo que, na sua origem, a
responsabilidade estatal por omissão de dever-poder de implementação
ambiental deriva da elevação do Estado, no âmbito constitucional,
à posição de guardião-maior do meio ambiente ecologicamente
equilibrado, também inequívoco que aos cofres públicos não se
impinge a função de garante ou de segurador universal dos poluidores
– seria um disparate. O compromisso do legislador é com as vítimas,
não com os degradadores. Tão injusta e inadmissível quanto a regra,
BARROSO, Ricardo Cavalcante. A responsabilidade civil do Estado por omissão em face do
dano ambiental.Revista de Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 16, n. 63,
julho/set 2011, p. 228.
17
102
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
do Direito inglês medieval, de que o Rei nunca erra ou comete ilícito
civil (“the king can do no wrong” ou princípio da irresponsabilidade
civil do Estado), será o seu oposto, no extremo antagônico, ou seja,
querer atribuir todos os erros do mundo à conta do Rei (= o Estado
moderno e os contribuintes).
Daí a importância de ser a responsabilidade estatal solidária executada
de forma subsidiária. Nota-se que não se trata de um “benefício” concedido ao
Estado, mas uma não penalização da sociedade às custas de um poluidor direto que
possivelmente lucrava com a atividade através da qual causou o dano ambiental.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
De toda a análise resta claro a controvérsia existente, tanto doutrinária
quanto jurisprudencial, entre qual a responsabilidade aplicável nos casos em
que o Poder Público por uma omissão permitir que ocorram danos ambientais,
já que em regra a responsabilidade estatal assim como a ambiental são objetivas,
excetuando-se os casos em que houvesse uma omissão do poder público,
momento em que, aplicar-se-ia a responsabilidade subjetiva.
Observa-se que, não há uma unanimidade, uma única resposta
para a questão.
Apesar de, ao se analisar casos práticos notar-se por vezes uma
alternância, entre a responsabilidade subjetiva e objetiva, cada vez mais há a
decisões pela aplicação da responsabilidade objetiva, postura esta que também
adotamos levando em consideração a extrema importância do meio ambiente
saudável para a vida em todas as formas. Ressalta-se apenas que, por não haver
um entendimento pacificado, deve-se sempre ter uma leitura atenta do caso
concreto atendendo aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Ainda, independentemente da forma de responsabilização concordamos
que deverá a administração pública ser responsabilizada subsidiariamente nos
casos de omissão, casos estes em que é poluidora indireta. Deve responder
subsidiariamente levando em consideração o princípio do poluidor pagador e
de que a sociedade vítima não pode sofrer duplamente, isto é, além de sofrer
a poluição em si, ter que arcar indiretamente com a indenização que o Estado
haverá de pagar.
Percebe-se que a responsabilidade estatal, não pode servir como uma
alternativa do poluidor direto, como por exemplo, um empresário que lucra
com a atividade e que, após causar um dano ambiental requeira que o Estado
seja condenado a arcar com metade do valor necessário para reparar o dano.
103
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Independentemente da forma de responsabilidade civil adotada, não parece
plausível que o poluidor direto se “aproveite” disso.
O que se quer, é que a responsabilidade do Poder Público atue em prol
da sociedade, visando à proteção, o melhor interesse desta, e não uma redução
da responsabilidade civil do agente econômico, poluidor direto, do causador
imediato do dano.
104
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
REFERÊNCIAS
BARROSO, Ricardo Cavalcante. A responsabilidade civil do Estado por
omissão em face do dano ambiental.Revista de Direito Ambiental, São Paulo:
Revista dos Tribunais, v. 16, n. 63, julho/set 2011.
BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out.
1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.
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BRASIL. Lei 6.938/81. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente,
seus fins
e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 02 set. 1981. p. 16.509. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6938.htm> Acesso em: 04 de
setembro de 2012.
BRASIL. Lei 8.078/90. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 set. 1990. Disponível
em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm> Acesso em: 10 de
junho de 2012.
BRASIL. Lei 10.406/02. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 10 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm> Acesso em: 10 de junho de 2012.
BRASIL, STJ. Segunda turma. recurso especial. Ação civil pública. Poluição
ambiental. Empresas mineradoras. Carvão mineral. Estado de Santa Catarina.
Reparação. Responsabilidade do estado por omissão. Responsabilidade
solidária. Responsabilidade subsidiária. Recurso especial nº . 647493/sc,
julgado em 22.05.2007, dj 22.10.2007, p. 233 – rdtjrj vol. 75 p. 94.
BRASIL, STJ. Segunda turma. Ambiental. Unidade de conservação de proteção
integral (lei 9.985/00). Ocupação e construção ilegal por particular no parque
estadual de jacupiranga. Turbação e esbulho de bem público. Dever-poder
de controle e fiscalização ambiental do estado. omissão. art. 70, § 1º, da lei
9.605/1998. desforço imediato. art. 1.210, § 1º, do código civil. artigos 2º, i e v,
105
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
3º, iv, 6º e 14, § 1º, da lei 6.938/1981 (lei da política nacional do meio ambiente).
Conceito de poluidor. Responsabilidade civil do estado de natureza solidária,
objetiva, ilimitada e de execução subsidiária. litisconsórcio facultativo. Recurso
especial/sp 1071741. julgado em 24.03.2009, dje 16.12.2010.
BRASIL, STJ. segunta turma. ação civil pública. Dano causado ao meio
ambiente. Legitimidade passiva do ente estatal. Responsabilidade objetiva.
Responsável direto e indireto. Solidariedade. Litisconsórcio facultativo. Art.
267, iv do cpc. Prequestionamento. Ausência. Súmulas 282 e 356 do STF.
Recurso especial/pr 604725, julgado em 21.06.2005, dj 22.08.2005, p. 202.
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FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro.
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JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo:
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__________________________. Direito Ambiental Brasileiro. 16. ed. São
Paulo: Malheiros, 2008.
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106
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 6. ed. São Paulo: Revista
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ZOCKUN, Carolina Zancaner. Responsabilidade do Estado na omissão da
fiscalização ambiental. In: FREITAS, Juarez (Org.). Responsabilidade civil do
Estado. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 82.
107
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
OS DESASTRES NATURAIS E A RESPONSABILIZAÇÃO ESTATAL
NO BRASIL
NATURAL DISASTERS AND STATE ACCOUNTABILITY IN BRAZIL
Gabriela Rolla Fonseca
Graduanda do Curso de Direito do UNICURITIBA
Lucimar De Paula
Possui mestrado em DIREITO pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (2005). É professora do Centro
Universitário Curitiba-UNICURITIBA, instrutora da Escola
de Governo do Estado do Paraná e advogada militante nas
áreas de Direito Administrativo, Empresarial e Civil
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. O artigo 37, § 6º, da Constituição da República Federativa
do Brasil. 3. A responsabilidade extracontratual do Estado pelos desastres naturais. 3.1
Responsabilidade Estatal por omissão diante dos desastres naturais. 3.2. Justificativas
do poder Estatal para a irresponsabilização. 3.3 Posicionamento Jurisprudencial 3.3.1
Deslizamentos 3.3.2 Inundações e Enchentes 3.3.3 Jurisprudências do STF e STJ 4. A
Efetivação da Indenização Pelo Estado
RESUMO
Por muito tempo o Estado se manteve como ente em quem não era
imputada responsabilidade, porque visto como instituição divina e, portanto,
isenta de erro. Nesta direção, perpetuou-se a tese da irresponsabilidade estatal
que, no entanto, não pode vigorar nos estados modernos, que impregnados
de ideais democráticos, passaram a agir buscando estabelecer os interesses
do povo, reconhecendo a existência de falhas na condução da administração
e possibilitando assim a correção de seus danos. Assim, saber como se dá a
ocorrência da responsabilidade estatal por danos advindos de desastres naturais
no Brasil, torna-se uma discussão de muita pertinência devido aos recentes
desastres naturais envolvendo a população brasileira, isso porque, devendo o
Estado prezar pelo bem-estar de seus administrados e possuindo meios para
resguardá-los torna-se responsável quando deixa de agir, ou seja, se omite
nestas situações. Neste sentido, entendendo a atualidade do tema observa-se
uma divergência existente tanto na doutrina quanto na jurisprudência no que diz
108
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
respeito à escolha da natureza jurídica (objetiva ou subjetiva) da responsabilidade
estatal nesses casos, bem como as várias nuances do tema, sendo relevante se
analisar de que forma a presença do Poder Público ocorre e qual teoria é a mais
adequada para lidar com as omissões do Estado diante de danos que em um
primeiro momento parecem advir exclusivamente de fenômenos naturais.
Palavras-Chave: Responsabilidade Extracontratual do Estado, Desastres
Naturais, Omissão, responsabilidade subjetiva e objetiva, indenização.
ABSTRACT
For too long the State has remained as an entity who was not imputed
responsibility, because seen as divine institution and, therefore, free from error.
This direction was perpetuated the theory of irresponsibility which, however,
cannot take effect in modern States, which impregnated with democratic
ideals, began to establish the people’s interests, recognizing the existence of
flaws in the conduct of the Administration and thus enabling the correction of
their damage. So, understand how State responsibility must occur for damage
from natural disasters in Brazil, becomes a discussion of great relevance due to
recent natural disasters involving the Brazilian population, this is because the
State should care for the well-being of its citizens, and because it has means
for safeguarding them, comes to be responsible when fails to act, that is, it
omits in these situations. In this sense, understanding the actuality of the theme,
one can observe a divergence that exists both in doctrine and in jurisprudence
with regard to the choice of legal nature (objective or subjective) of State
responsibility in such cases, as well as the many nuances of the theme, being
relevant to study how the presence of the Government occurs and which theory
is best suited to deal with omissions of the State before damage that at first seem
to originate exclusively of natural phenomena.
Keywords: Non-contractual liability of the State, Natural disasters, Omission,
Subjective and objective liability, indemnification.
1 INTRODUÇÃO
A responsabilidade extracontratual estatal parte do entendimento de
que também pode o Estado ser o causador de danos à população, sendo esta
uma percepção atual, já que por muito tempo figurou como instituição divina,
isenta de erros. (COELHO, 2005, p. 15).
Fato é que os danos causados pelo Estado podem vir tanto de uma
ação, como de uma omissão estatal (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 983),
109
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
entretanto, a dificuldade se encontra nas situações de desastres naturais em
que se indaga sobre como se dá sua responsabilidade, já que em um primeiro
momento os prejuízos causados parecem advir exclusivamente dos fenômenos
naturais, entretanto o mau planejamento urbano, que envolve, por exemplo, o
escoamento das águas, são fatores decisivos para que ocorram ou ocorram de
forma minorada os danos por esses incidentes.
A partir desta perspectiva buscou-se analisar a natureza da
responsabilização estatal- subjetiva ou objetiva- e suas nuances, tanto na
doutrina como na jurisprudência do Brasil atual, pela necessidade de encontrar
qual o entendimento mais coerente a ser considerado nesses casos, constatandose a relevância do tema pela ocorrência de fatos recentes envolvendo parcela
da população brasileira no que diz respeito às enchentes e desmoronamentos
causados pelas chuvas.
Assim, a escolha da abordagem do tema veio principalmente pela
atualidade e importância, bem como pela potencialidade de exposição à situação
anunciada, dado ser frequente os danos causados por fenômenos naturais.
Neste sentido, através de pesquisa bibliográfica, análise doutrinária
e também jurisprudencial, buscou-se como objetivo contribuir para o
esclarecimento de como se dá a responsabilidade estatal em casos que houve
danos à população decorrentes de desastres naturais e qual a teoria mais
adequada para o caso em tela.
2 O ARTIGO 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO
BRASIL.
No Brasil atual são duas principais teorias acerca da responsabilização
estatal, a teoria da responsabilidade subjetiva e a teoria da responsabilidade objetiva.
Pela primeira teoria observa-se o dever de ressarcir que é imputado a
alguém em decorrência de uma atuação contrária ao Direito, podendo ser dolosa
a conduta, pela qual por vontade própria se promoveu um dano a uma pessoa,
ou culposa, quando se deixa de impedir o mal por imprudência, negligência ou
imperícia, quando obrigado a isso (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 992).
Para o esclarecimento adequado é válido ressaltar que a imprudência
se caracteriza pela falta de diligência por conduta positiva. É a situação, por
exemplo, dos motoristas que dirigem sem observar as placas de trânsito. Já a
negligência trata-se da mesma falta de zelo, mas por conduta omissiva, é o caso
de carcereiro que se dá conta que o cadeado da cela está frouxo e não toma as
devidas providências. Por fim está a imperícia, que ocorre pela falta de habilidade
no desempenho de atividade técnica, pode se citar o exemplo de motorista que
só possui habilitação para motocicletas, mas se aventura a dirigir veículos da
110
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
categoria D que são os ônibus e vans (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 37).
Entretanto, sob a influência publicista, esclarece Bandeira de Mello
(2009, p. 992), não é necessária identificar uma culpa individual para instaurar-se a
responsabilidade do Estado. Esse entendimento é transformado pela ideia chamada
de Faute du Service. Nesta situação surge a “culpa do serviço”, onde ocorre o não
funcionamento do mesmo quando este devia funcionar (inexistência do serviço),
funciona indevidamente (mau funcionamento) ou funciona com atraso (retardamento
do serviço). É esta teoria, para Bandeira de Mello, uma ligação entre a responsabilidade
clássica do Direito Civil e a responsabilidade objetiva que se verá adiante.
Dessa mesma forma entendia Gasparini (2011, p.1112), argumentando
que a teoria da responsabilidade subjetiva na forma de culpa anônima do serviço
público trata-se de uma evolução da teoria da responsabilidade patrimonial com
culpa, porque enquanto esta exigia muito de seus administrados, (pois o que
sofreu o dano tinha que provar além do dano, que ele foi causado pelo Estado
e ainda a atuação culposa ou dolosa do agente estatal) naquela buscou-se dar
atenção pela culpa anônima ou também chamada de faute du service, pela qual
ocorria a culpa do serviço.
Por essa qualificação não se observa mais a culpa subjetiva do
agente do Estado, mas se busca a constatação da falta objetiva do serviço
em si mesmo, como fato que gera a obrigação de indenização a um terceiro
lesado. Exige-se uma culpa, mas uma culpa especial que se costumou chamar
de culpa administrativa, de forma que ocorrendo as hipóteses de falta de serviço
presume-se a culpa, surgindo à obrigação de indenizar, desse modo, pela só
ocorrência dessa falta anônima já surge à responsabilidade, englobando as áreas
de risco assumidas pelo Estado (MEIRELLES, 2011, p. 657).
No entanto apesar do elo, tal responsabilidade não deve ser confundida
com a objetiva, pois o elemento culpa continua sendo na teoria subjetiva
imprescindível para sua caracterização. Gasparini (2011, p. 1113) sobre o
pedido de indenização da teoria subjetiva asseverava: “O êxito do pedido de
indenização ficava, dessa forma, condicionado à demonstração, por parte da
vítima que o serviço se houvera com culpa”.
Já pela teoria objetiva observa-se o dever de indenizar que cabe a
alguém, no caso o Estado, que em razão de um comportamento lícito ou ilícito
produziu dano à outra pessoa. (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p.995).
Por este entendimento o dever do Estado de indenizar surge
simplesmente do ato danoso que ele provocou. Não há exigência da culpa do
serviço nem do agente público, bastando para configurá-la à prova da lesão e de
que esta foi ocasionada pelo Estado. (GASPARINI, 2011, p. 1114).
Sendo assim para se estabelecer esse tipo de responsabilidade são
necessários três requisitos: a ocorrência de fato administrativo, (podendo ser
111
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
qualquer forma a conduta: comissiva ou omissiva, havendo divergências quanto
a essa, legítima ou ilegítima, singular ou coletiva conferida ao poder estatal) o
dano e o nexo causal (CARVALHO FILHO, 1997, p. 329).
Hoje em dia a Constituição Brasileira em seu art. 37, § 6º, determina que:
As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito
de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Nesta direção, Meirelles (2011, p. 660) argumenta que o dispositivo
em tela revela a opção do legislador em aderir à teoria da responsabilidade
estatal objetiva sob a modalidade de risco administrativo, deixando para trás
a teoria subjetiva da culpa, sabendo que a culpa ou dolo só foi exigida para o
agente causador direto do dano.
Dessa forma, as pessoas jurídicas de direito público e as de direito
privado prestadoras de serviço público vão responder, pelo dano que causarem
independentemente de terem agido com dolo ou culpa, ou seja, de forma objetiva.
Mas se quanto aos atos danosos que o Estado provoca, fica clara a
adoção da teoria objetiva, conforme revelam os autores Alexandrino e Paulo
(2010, p. 725) e Meirelles (2011, p. 660), quanto à responsabilidade pela
omissão estatal cabe lembrar que existe uma discussão acerca da aplicação
do dispositivo constitucional e aplicabilidade da teoria da responsabilidade
objetiva nessas hipóteses (DI PIETRO, 2011, p. 654).
Segundo Stoco (2004, p. 962), a certeza do dispositivo em tela
não abarcar as situações de omissão está no fato do artigo dispor sobre a
responsabilidade estatal como consequência de atos dos seus agentes, o que
tornaria os atos de terceiros e os eventos da natureza excluídos, por não serem
estes agentes públicos. Nestes casos de atos de terceiro e eventos da natureza
o princípio a que se deve atentar é o da culpa civil, observado no artigo 186 do
Código Civil Brasileiro de 2002. (STOCO, 2004, p.963).
No entanto, para Meirelles (2011, p. 661), tanto a ação quanto a
omissão estão abarcadas pelo referido artigo, ou seja, abrigadas pela teoria da
responsabilidade objetiva, pelo menos é o que o autor deixava transparecer: “O
essencial é que o agente da Administração haja praticado o ato ou a omissão
administrativa na qualidade de agente público”.
Já para Gasparini (2011, p.1127) o disposto constitucional analisado
“exige para a configuração da responsabilidade objetiva do Estado uma ação
do agente público, haja vista a utilização do verbo causar (causarem)” (grifo
do autor). Nesses casos, de ação, ainda lembrava o autor, a culpa (negligência,
112
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
imprudência, imperícia) do Estado é pressuposta, invertendo-se dessa forma,
o ônus da prova para o poder Estatal. Sendo assim, concluía que não existirá
responsabilidade objetiva por atos omissivos, devendo quem for lesado pela falta
de atuação Estatal provar a culpa do mesmo, e não somente o nexo causal entre
o comportamento do Estado e o dano, pois sua responsabilidade é subjetiva.
Nessa última direção pela responsabilidade subjetiva nos de omissão
também é o entendimento de Aranha Bandeira de Mello (1969, p. 487):
Consiste em ato comissivo, positivo do agente público, em nome do e
por conta do estado, que redunda em prejuízo a terceiro, consequência
de risco decorrente de sua ação, repita-se, praticado tendo em vista
proveito da instituição governamental ou da coletividade em geral.
Jamais omissão negativa. Esta, em causando dano a terceiro, não se
inclui na teoria do risco-proveito. A responsabilidade do Estado por
omissão só pode ocorrer na hipótese de culpa anônima, da organização
e funcionamento do serviço, que não funcionou ou funcionou mal ou
com atraso, e atinge os usuários do serviço ou os nele interessados.
No entanto para Bandeira de Mello (2009, p. 1005) diferente
de Gasparini, como se verá, ocorre inversão do ônus da prova nos casos de
omissão estatal, onde a responsabilidade é subjetiva, pois o autor explica que
sem esse instrumento de inversão o administrado ficaria em posição frágil pela
dificuldade em demonstrar que o Estado não agiu com o zelo que deveria.
Esclarece ainda o autor que a presunção de culpa Estatal nesses casos não é
igual à responsabilidade objetiva, pois nessa existindo ou não existindo a culpa,
o Estado responderá do mesmo modo.
3 A RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO PELOS DESASTRES NATURAIS
Com base assim nas na divergência apresentada com relações às
hipóteses de omissão Estatal, se aborda de forma específica à responsabilização
Estatal decorrente de danos propiciados pelos desastres naturais em decorrência
da omissão do dever agir por parte do Estado.
Isso porque, a ocorrência de um evento natural, como chuvas,
desmoronamentos e enchentes no caso concreto não significa concluir que o
Estado não tenha responsabilidade pela situação, afinal conforme Gasparini
(2011, p. 1116) o fato de não ter sido a causador do prejuízo não o deixa livre
da responsabilidade de indenização, se devia ter agido e não agiu independente
de ter sido culposamente ou dolosamente.
113
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Pois apesar de não ser propriamente causa, no sentido que Bandeira de
Mello (2009, p. 1004) dá à palavra (causa como sendo fator que positivamente gera
um resultado) a omissão adquire relevância causal, porque a norma jurídica lhe dá
esse atributo, no momento em que estabelece ao Estado um dever agir. É a omissão
ilícita (não cumprimento do dever legal) que gera o dever de responsabilização. É
neste sentido que Cavalieri Filho (2012, p. 67-68) se posiciona:
Conclui-se, do exposto, que a omissão adquire relevância causal
porque a norma lhe empresta esse sopro vital, impondo ao sujeito um
determinado comportamento. Quando não houver esse dever jurídico
de agir, a omissão não terá relevância causal e, consequentemente,
nem jurídica.
Dessa forma, se deveria ter agido identificando e mapeando as áreas de
risco de desastres, por exemplo, e não o fez, instaurando-se o resultado danoso
(destruição de casas por desmoronamento, pessoas que morreram afogadas em
enchente) deve a administração ser responsabilizada por isso. Porque devendo
o Estado zelar pelo bem estar de seus governados, e possuindo meios para
resguardá-los, torna-se responsável quando deixa de agir, pois toda a ofensa,
por ato ou omissão sua, fere sua própria existência (BANDEIRA DE MELLO,
2009, p.989).
Assim é relevante destacar quais são os desastres naturais que no
Brasil estamos expostos, e então analisar os posicionamentos acerca da possível
responsabilização subjetiva ou objetiva nesses casos e qual dos entendimentos
devem ser aplicados.
Nesta direção, como é de conhecimento comum o Brasil não sofre com
as catástrofes proporcionadas por terremotos, furacões, maremotos ou vulcões,
mas ainda que o termo nos conduza a lembrar desses incidentes, os desastres
naturais também abrangem as inundações provocadas pelas chuvas intensas bem
como os deslizamentos. Sobre a constatação Tominaga et al. (2009, p. 10) relata:
No Estado de São Paulo, e no Brasil de uma forma geral, embora
estejamos livres dos fenômenos de grande porte e magnitude como
terremotos e vulcões, são expressivos os registros de acidentes e
mesmo de desastres associados principalmente a escorregamentos
e inundações, acarretando prejuízos e perdas significativas,
inclusive de vidas humanas.
São esses fenômenos, as chuvas intensas que nos últimos anos
provocaram enormes tragédias, como a da região de Santa Catarina em 2008
114
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
e o maior desastre natural que o país vivenciou, na região serrana do Rio de
Janeiro, conforme relata notícia publicada no site do Jornal Gazeta do Povo em
13 de janeiro de 2011.
Mas os desastres não ficam restritos as regiões destacadas, de
acordo com relatório da UNISDR (The United Nations Office for Disaster
Risk Reduction- que é uma agência parte do Secretariado das Nações Unidas
com o objetivo de assegurar a implementação da Estratégia Internacional para
Redução de Desastres), publicado no site da ONU (Organizações das Nações
Unidas) no Brasil, as enchentes do ano de 2011 foram as mais fatais da história
do país, deixando mais de 900 mortos.
Sobre o assunto Tominaga et al. (2009, p.19) afirma mesmo que no Brasil,
os principais fenômenos relacionados a desastres naturais são decorrentes dos
processos externos da Terra, tais como, inundações e enchentes, escorregamentos
de solos e/ou rochas e tempestades. Lembrando que estes eventos acontecem
normalmente ligados aos fenômenos pluviométricos intensos e prolongados, nos
períodos chuvosos. A autora ainda, de acordo com dados do EM-DAT, destaca
que “o Brasil encontra-se entre os países do mundo mais atingidos por inundações
e enchentes, tendo registrado 94 desastres cadastrados no período de 1960 a 2008,
com 5.720 mortes e mais de 15 milhões de pessoas afetadas”.
Tais notícias deixam assim bastante visíveis que o país não sofre
com os citados desastres naturais apenas no novo milênio, mas que se trata de
catástrofes com constância há certo tempo, apesar das maiores tragédias terem
ocorrido atualmente.
3.1 RESPONSABILIDADE ESTATAL POR OMISSÃO DIANTE DOS DESASTRES
NATURAIS
Como mencionado não existe uniformidade na doutrina nem mesmo
na jurisprudência brasileira acerca do tipo de responsabilidade (objetiva
ou subjetiva) quanto às condutas omissivas do Estado. Di Pietro (2011, p.
655) afirma que nas situações de omissão os prejuízos não são normalmente
provocados por agentes estatais, são causados por eventos da natureza ou
fatos de terceiros, mas que poderiam não ter ocorrido ou ter tido seus efeitos
abrandados se o Estado possuindo o dever de agir tivesse se posicionado.
Nesse ínterim,no entanto, no que se diz respeito à responsabilização
estatal advinda da omissão por desastres naturais, parece que o amplo
direcionamento é pela adoção da responsabilidade subjetiva. Os autores
Alexandrino e Paulo (2010, p.733), por exemplo, argumentam que para que
os prejuízos advindos dos desastres da natureza provoquem para o Estado o
dever de indenizar é necessário que a pessoa que sofreu o agravo prove que a
115
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
situação danosa ocorreu porque o Estado deixou de agir em evento que lhe era
esperada sua iniciativa, ou seja, é provar a sua omissão culposa, na forma da
culpa administrativa. Lembrando para isso, que para a configuração dessa culpa
estatal não é necessária haver sua individualização em um agente público. Os
autores exemplificam:
Assim, na hipótese de ocorrência de uma enchente, se ficar comprovado
que os serviços prestados pela Administração foram ineficientes,
deverá ela ser responsabilizada (por exemplo, as galerias pluviais e
os bueiros de escoamento das águas, cuja manutenção é obrigação do
Poder Público, estavam entupidos ou sujos, propiciando acúmulo das
águas e os consequentes prejuízos). Nesse caso, não há dúvida: existe
dever de reparação por parte da Administração (ALEXANDRINO e
PAULO, 2010, p. 733).
Em meio aos exemplos de responsabilização subjetiva dados pelos
autores podem ainda ser citados os casos dos deslizamentos de terra decorrente
das tempestades, ou ocorridos de forma espontânea, se já era claramente
perigoso morar perto das encostas e ainda assim o Estado nada tenha feito para
retirar as pessoas do local. Para os autores, a responsabilidade subjetiva em caso
de omissão do Estado é uma regra geral, isso porque há situações como as que o
poder Estatal tem o dever de cuidar de coisa, ou pessoa, que o dano provocado
é tratado a partir da responsabilidade objetiva estatal.
Também adotando a teoria da responsabilidade subjetiva nas condutas
omissivas estatais, e, portanto também englobando os danos por desastres
naturais, está Cretella Junior. Importante parecer expõe o autor dizendo que não
há como separar a omissão da culpa, sendo que dessa forma todos os casos em
que houver omissão a responsabilidade será subjetiva porque é essa teoria que
leva em consideração o comportamento culposo. Observa-se:
A omissão configura culpa in omittendo ou in vigilando. São casos
de inércia, casos de não atos. Se cruza os braços ou se não vigia,
quando deveria agir, o agente público omite-se, empenhando a
responsabilidade do Estado por inércia ou incúria do agente. Devendo
agir, não agiu. Nem como o bônus pater familiae, nem como bônus
administrator. Foi negligente. As vezes imprudente ou até imperito.
Negligente, se a solércia o dominou; imprudente, se confiou na sorte;
imperito, se não previu a possibilidade de concretização do evento.
Em todos os casos, culpa ligada à ideia de inação, física ou mental.
(CRETELLA JUNIOR, 1970, p.210, grifo do autor).
116
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Mas enfim sobre essa responsabilidade na situação proposta é
pertinente analisar o posicionamento comum de Meirelles (2011, p. 663)
que apesar de se diferenciar de uma boa parte da doutrina considerando que
o artigo 37º,§6º, da Constituição da República trata tanto da ação como da
omissão, deixa claro que isso é só em relação aos atos dos agentes públicos,
que podem tanto ser comissivos como omissivos. No entanto, nos casos de
fenômenos naturais que causem danos aos particulares à configuração adotada
pelo doutrinador também é a subjetiva, com a consideração da culpa civil em
sua forma genérica. Isso por que:
Na exigência do elemento subjetivo culpa não há qualquer afronta
ao principio objetivo da responsabilidade sem culpa, estabelecido no
art. 37§ 6 da CF, porque o dispositivo constitucional só abrange a
atuação funcional dos servidores públicos, e não os atos de terceiros e
os fatos da Natureza. Para situações diversas, fundamentos diversos.
(MEIRELLES, 2011, p. 663)
Esse também é o posicionamento de Cavalieri Filho (2003, p. 256),
para o autor o Estado só deve vir a ser responsabilizado nesses casos se ficar
provado que sua omissão genérica ou atuação falha foi um dos pressupostos
para que ocorresse o evento, isso porque deixou de realizar obras que podiam
ter impedido o dano e eram razoavelmente exigíveis.
Mas se por um lado parte da doutrina, como os autores Alexandrino
e Paulo (2010, p. 733) e Pestana (2008. p. 513) opta pela responsabilização
subjetiva, exigindo a comprovação da culpa por aquele que sofreu o dano,
temos doutrinadores como Bandeira de Mello e Di Pietro, que adotam um meio
termo da questão, ou seja, apesar de se posicionarem a favor do elemento culpa,
transferem seu ônus de prova para o Estado.
A presunção de culpa é assim, para esses autores, do poder Estatal,
resguardando de forma mais justa a parte vulnerável da situação que detém
menos recursos para comprovar o que o Estado deveria ter feito. Bandeira de
Mello (2009, p. 1005) estabelece:
Com efeito, nos casos de “falta de serviço” é de admitir-se uma
presunção de culpa do Poder Público, sem o que o administrado
ficaria em posição extremamente frágil ou até mesmo desprotegido
ante a dificuldade ou até mesmo impossibilidade de demonstrar que o
serviço não se desempenhou como deveria.
Dessa mesma forma Di Pietro (2011, p.656) argumenta:
117
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Por essa razão, acolhemos a lição daqueles que aceitam a tese da
responsabilidade subjetiva nos casos de omissão do Poder Público.
Com Celso Antônio Bandeira de Mello, entendemos que, nessa
hipótese, existe uma presunção de culpa do Poder Público. O lesado
não precisa fazer prova de que existiu a culpa ou dolo. Ao Estado é
que cabe demonstrar que agiu com diligencia, que utilizou os meios
adequados e disponíveis e que, se não agiu, é porque sua atuação
estaria acima do que seria razoável exigir; se fizer essa demonstração,
não incidirá a responsabilidade.
Assim, observado alguns posicionamentos e apesar da adesão de
grande parte dos doutrinadores e da jurisprudência como se verá, a adoção da
responsabilidade subjetiva pode ser um subterfúgio para que o Estado não arque
com as responsabilidades de sua falta de zelo com os administrados, que acabam
ficando a margem da atuação daquele que devia resguardar seus direitos, é assim
que se posiciona Marrara (2010) em artigo para o Jornal Carta Forense. O autor
argumenta que tal posicionamento, da responsabilidade subjetiva pelos danos
causados à população decorrentes de desastres naturais, é acolhido por alguns
doutrinadores pela tese de que o Estado não pode ser um segurador universal e
ainda pela literalidade do artigo 37,§ 6º, da Constituição Federal, que utiliza o
verbo causar, sendo esse verbo dependente de uma ação e não omissão estatal.
Sobre o verbo causar, Marrara (2010) argumenta ser descabida a
interpretação excludente dos atos omissivos da responsabilidade objetiva
prevista no artigo constitucional, já que causar, expõe o autor, significa ter por
efeito e não fato jurídico que gerou situação de dano.
Já quando o assunto é seu pensamento a favor da responsabilização
objetiva nas situações expostas, afastando a crítica do Estado como segurador
universal, Marrara (2010) argumenta que a série de princípios e deveres do
Estado, suas normas programáticas, não deve ser lida todas como dever
concreto de ação do Estado. Porque então cada omissão que desrespeitasse um
princípio geraria um dano e consequentemente a responsabilização civil e a
falência do Estado. Mas propõe que para as omissões do caso em tela possam
ser consideradas de forma objetiva (considerando apenas a razoabilidade da
omissão) deve haver:
Conhecimento real ou presumido do risco pela administração,
possibilidade fática do afastamento do risco pelo Estado e
omissão especifica que por consequência, dá origem ao dano
ainda que em concausa.
118
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Nesta direção se posicionava Aguiar Dias. O autor entendia que não se
deve deixar de adotar a responsabilidade objetiva do Estado apesar das muitas
hipóteses em que não atua de forma satisfatória, pois:
Tem-se inocentado demais o Estado, entre nós. Parece que é tempo
de dizer que, se os governantes cumprissem melhor os seus deveres,
não precisaria o Estado de se ver defendido nos tribunais por
argumentos que o colocam, sem qualquer lógica, contra os interesses
da comunidade. Aí estaria o melhor corretivo ao risco de empobrecer
o erário, por via de indenização. (AGUIAR DIAS, 1987, p. 679-680).
Dessa forma, tratar objetivamente a responsabilidade estatal nesses casos,
na visão dos autores, é impedir a sujeição eterna aos danos oriundos de omissões
Estatais em matéria de planejamento urbano, manutenção e controle de infraestruturas,
bem como de cuidado e desocupação de áreas de risco. É cuidar dos interesses dos
administrados, afastando argumentos frágeis que tentam colocar o ente maior em
oposição a seus administrados, em contraditória manifestação à essência estatal.
3.2 JUSTIFICATIVAS DO PODER ESTATAL PARA A IRRESPONSABILIZAÇÃO
De posse de toda essa fundamentação doutrinária observada, e
jurisprudencial (como se verá), constata-se que o Estado busca (ou pode buscar)
tanto no afastamento do nexo causal pelas excludentes (força maior, caso
fortuito, culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, e como causa atenuante pode
ser apontada a culpa concorrente da vítima), assim como na descaracterização
de sua culpa, justificativas para que sua responsabilidade seja afastada.
Notável, entretanto, é que tal distanciamento advém, muitas vezes,
por exemplo, pela argumentação de que fez tudo o que lhe era possível, ou
então que não era razoável exigir tal postura, através da utilização equivocada
do princípio da reserva do possível ou da hegemonia absoluta, e inexistente
na verdade, do princípio da competência orçamentária do legislador e da
competência administrativa do Executivo, como bem cita Mânica (2010, p.16).
No entanto tais argumentos, como a força maior, caracterizadas
por sua imprevisibilidade, bem como a falta de razoabilidade da exigência
de determinada postura, perdem totalmente sua força diante de divulgações
que deixam bem clara a frequência com que ocorrem determinados eventos
naturais que causam danos à população. Esse é o caso da matéria publicada
no jornal Gazeta do Povo em Março de 2012 de autoria de Osny Tavares. A
matéria intitulada: “Curitiba tem mapa informal de enchentes” deixa claro que
a prefeitura não tem levantamento dos locais que alagam com mais frequência
119
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
no Centro da capital paranaense, mas que a população já conhece bem os pontos
mais problemáticos, e isso porque os pontos de retenção de água se repetem a
cada tempestade e são assim memorizados pelos pedestres e motoristas que
passam por esses lugares. O texto ainda traz a informação de que um morador
de rua morreu no local, devido sua queda em um vão da galeria durante a chuva,
vindo a se afogar. O fato é que, divulga o jornalista, nem mesmo a própria
prefeitura deixa de reconhecer as recorrentes inundações. E tem buscado
formas de combater os frequentes alagamentos, pelo menos é o que alegam
os agentes públicos entrevistados. O que não podia mesmo ser diferente já
que as argumentações por imprevisibilidade ou razoabilidade ficam em total
descrédito, diante do conhecimento público das enchentes.
Outra matéria a ser citada é a publicação de outubro de 2011 no Jornal
Folha de São Paulo, intitulada “Época de chuvas começa, mas obras em áreas
de risco, não”. O texto de José Benedito da Silva e Natália Cancian divulga
que há oito anos o poder público tem conhecimento das áreas de risco, mas
que em todo esse tempo quase nada de efetivo foi feito. Diante de tal omissão
a matéria termina com o posicionamento do promotor Maurício Ribeiro
Lopes, esclarecendo que irá propor ações civis públicas nos casos em que as
autoridades não executaram as intervenções necessárias, já que ironicamente
diz o promotor “oito anos deve ter sido um bom tempo para o mapeamento,
chegando o momento da cobrança de resultados mais efetivos”.
O que se vê é que o Estado tem sim a possibilidade de se defender
por suas excludentes, e o faz através da alegação da falta dos pressupostos que
integram a responsabilidade, já que a responsabilidade integral foi desprezada
pelo sistema brasileiro (GASPARINI, 2011, p. 1115).
No entanto o Estado não pode exonerar-se de suas obrigações através
de alegações frágeis de que não há omissão jurídica, argumento rapidamente
combatido diante da realidade e da positivação legal esclarecedora como o
artigo 2º, inciso VI alínea h, da lei 10.257/2001 que dispõe:
A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as
seguintes diretrizes gerais: [...] VI – ordenação e controle do uso do solo,
de forma a evitar: h) a exposição da população a riscos de desastres.
E ainda como um todo, a recente lei 12.608/2012, que Institui a Política
Nacional de Proteção e Defesa Civil, dispondo sobre o Sistema Nacional de Proteção
e Defesa Civil e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil, autorizando ainda
a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres, afastando assim
qualquer alegação de que não há positivação da matéria.
Diz a supracitada lei em seu artigo 2º que: “É dever da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios adotar as medidas necessárias
120
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
à redução dos riscos de desastre.” Surgindo como objetivos de tal política,
a redução de desastres, o combate da ocupação de áreas ambientalmente
vulneráveis e de risco e promoção da transferência da população residente
nessas áreas conforme seu artigo 5º incisos I e XI, competindo aos municípios:
“identificar e mapear as áreas de risco de desastres, promover a fiscalização
das áreas de risco de desastre e vedar novas ocupações nessas áreas,
organizar e administrar abrigos provisórios para assistência à população
em situação de desastre, em condições adequadas de higiene e segurança
e ainda prover solução de moradia temporária às famílias atingidas por
desastres” (incisos IV, V, VIII, XVI do artigo 8º da lei 12.608/2012).
Sendo assim fato é que o Estado não tem como exonerar-se da
responsabilização por omissão alegando falta de positivação legal nesse sentido,
porque essa permeia todo o sistema jurídico nacional, tanto de forma geral,
através dos princípios como por leis como as citadas que estabelecem de forma
direta as funções devidas do Estado nos casos de desastres naturais.
3.3 POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL
Os desastres naturais como já citado, são as situações de impacto dos
fenômenos naturais à população, causando-lhe grandes prejuízos.
Como é de conhecimento geral o Brasil não sofre com terremotos,
furacões, maremotos ou vulcões, mas apresenta muitos danos advindos
da incidência intensa das chuvas. São os deslizamentos, enchentes e
desmoronamentos, todos em um primeiro instante analisados de forma
autônoma como simplesmente eventos naturais, mas que melhor observados
levam ao entendimento de que estão fundamentalmente ligados a omissões,
cabendo à responsabilidade estatal pelos danos por esses eventos, podendo ser
ela configurada pela responsabilidade subjetiva ou objetiva.
Cabe à citação assim de alguns julgados nos próximos tópicos para
se analisar os posicionamentos dos tribunais sobre a responsabilidade Estatal
nesses casos de danos por omissão
3.3.1 DESLIZAMENTOS
São processos de deslocamento de massa englobando materiais que
revestem as superfícies das encostas como o solo, a rocha e vegetação. Sendo
que é o crescimento da ocupação desordenada em regiões de encostas que tem
conduzido a um constante crescimento do número de acidentes ligados aos
121
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
deslizamentos, em muitas ocasiões em proporções catastróficas (TOMINAGA
et al., 2009, p. 27 e 37) como os eventos que ocorreram na região serrana do Rio
de Janeiro nos últimos anos.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais em ementa do acórdão no
processo de número 1.0024.03.009941-0/001, advindo da 8ª Câmara Civil,
tendo como apelado o município de Belo Horizonte assumindo a teoria da
responsabilidade subjetiva estatal nos casos de deslizamento revela:
Ementa: Direito Administrativo - Responsabilidade Civil do Estado
- Ação de Indenização - Dano moral - Omissão do Poder Público
-Deslizamento de Terras em Razão da Chuva - Soterramento Tragédia na Vila Morro das Pedras - Responsabilidade subjetiva
- culpa caracterizada - ‘Faute du service’. - A responsabilidade da
Administração Pública, pela ‘faute du service’, é subjetiva e está
subordinada à prova dos danos, da culpa, e do nexo de causalidade
entre a ausência ou má prestação do serviço público e o evento
danoso. - O Município tem o dever de indenizar a mãe, a título de
danos morais, pelo sofrimento advindo da trágica perda dos 06 (seis)
filhos, mortos por soterramento, em consequência do deslizamento de
terras, restando caracterizada a omissão, em virtude da inexecução de
obras ou da adoção de medidas preventivas com o fim de conter os
danos provocados pelas chuvas torrenciais que, apesar de registradas
no passado, não foram objeto de cautelas técnicas da Prefeitura. (AC
nº1.0024.03.009941-0/001,rel. Desembargador Fernando Bráulio, j.
em 02.02.2006)
Já o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em ementa do acórdão no
processo de número 0003428-20.2004.8.19.0042, advindo da 7ª Câmara Civil,
tendo como apelante o Município de Petrópolis, assume a responsabilidade
Objetiva estatal por omissão específica em caso de deslizamento:
Apelação cível. Responsabilidade civil do Estado. Ocorrência de
fortes chuvas no Município de Petrópolis. Deslizamento de terra, com
prejuízo para os proprietários das casas atingidas. A incidência de
fortes chuvas não é fato estranho naquela região. A previsibilidade
do evento impõe ao ente público o dever de executar obras e serviços
de prevenção para evitar ou minorar as consequências do evento.
Omissão específica do Poder Público. Aplicação do artigo 37,
§6°, da CRFB. Dano moral manifesto. Verba fixada em atenção ao
princípio da proporcionalidade e razoabilidade. Recursos a que se
122
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
nega seguimento, nos termos do artigo 557, caput, do CPC (AC. nº
nº0003428-20.2004.8.19.0042, rel. Desembargador Luciano Saboia
Rinaldi de Carvalho, j. em 30.06.2011).
O acórdão identifica ainda que a posição questionada reflete o
entendimento majoritário do Tribunal fluminense sobre a questão, que se situa
no campo da responsabilidade civil objetiva das pessoas jurídicas de direito
público por ato omissivo, apesar de existirem decisões contrárias.
Sendo perceptível que o Estado que mais sofreu nos últimos anos
com os desastres naturais, advindos dos deslizamentos, por exemplo, adota de
forma ampla a teoria objetiva de responsabilização estatal.
3.3.2 INUNDAÇÕES E ENCHENTES
Inundações e enchentes são acontecimentos naturais que ocorrem
de forma periódica nos caminhos d’água, que habitualmente se desencadeiam
por chuvas fortes e rápidas ou chuvas de extensa duração. É certo que existem
algumas diferenças entre as inundações, as enchentes e ainda os alagamentos
e as enxurradas, no entanto fato é que todos advêm de alguma precipitação
atmosférica, acumulada com outros fatores. (TOMINAGA et al., 2009, p. 41-42)
Pela responsabilização subjetiva nesses casos estão o acórdão do
processo número 70014276059 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
vindo da 9ª Câmara Cível:
APELAÇÃO CÍVEL. Responsabilidade civil. AÇAO DE INDENIZAÇAO. município. alagamento de imóvel. caso fortuito não configurado. rede de escoamento pluvial insuficiente. omissão do ente
estatal. culpa.
1. Não se está diante de caso de responsabilidade objetiva da
Administração Pública, em que poderia ser aplicada a teoria do risco administrativo. Trata-se, na verdade, de hipótese
de responsabilidade subjetiva, tendo por fundamento a omissão estatal, decorrente de comportamento ilícito, sendo necessária a prova do dolo ou de alguma das modalidades de culpa.
2. O alagamento do imóvel da autora não pode ser considerado
como caso fortuito, tendo em vista que ficou demonstrada a omissão do Município em relação à limpeza dos bueiros da região.
3. Agiu com culpa o Município, principalmente na modalidade de negligência, ao deixar de atuar preventivamen123
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
te, a fim de evitar a ocorrência de danos aos moradores.
4. Presentes os pressupostos da obrigação de indenizar, evidente se mostra a ocorrência dos danos em virtude do alagamento e
destruição do imóvel da autora decorrentes da insuficiente rede
de escoamento pluvial existente na região. Danos comprovados.
APELO DESPROVIDO (AC. nº70014276059, rel. Desembargador
Iris Helena Medeiros, j. em 7.02.2006).
Pela responsabilização objetiva nesses casos, está o acórdão do
processo número 671379-7 da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná:
Ação de reparação de danos materiais e moral.
1. Acúmulo de água de chuvas em estrada municipal - Sistema de
drenagem ineficaz, que permitiu a inundação da propriedade da autora
- Enxurrada que resultou em perda de safras e erosão - Ocorrência
de danos materiais - Negligência do Município, que deixou de
promover a instalação de um sistema adequado de drenagem
pluvial - Responsabilidade civil do Município - Aplicação do artigo
37, parágrafo 6.º, da Constituição Federal - Indenização devida Inexistência de responsabilidade atribuída exclusivamente a terceiro,
tampouco havendo falar-se em culpa concorrente. 1.1. Exclusão da
responsabilidade por ocorrência de caso fortuito ou força maior Impossibilidade - Chuva que representou apenas o ponto culminante
para a ocorrência dos prejuízos.
2. Valor indenizatório reputado excessivo - Não configuração Prova pericial produzida para apurar o montante devido - Apuração
dos danos limitados à área afetada pelas águas oriundas da estrada
municipal - Não demonstração, outrossim, pelo réu, de que o valor
dos danos mensurados é excessivo - Manutenção.
3. Reembolso do valor dos honorários periciais adiantados pela autora
em ação cautelar de produção antecipada de prova - Possibilidade Despesas processuais que devem ser indenizadas ao final pela parte
vencida - Laudo pericial, ademais, que demonstra os danos materiais
decorrentes da omissão da Administração Pública Municipal.
4. Dano moral - Pessoa jurídica - Não configuração no caso - Honra
objetiva não-violada.
5. Ônus de sucumbência - Sucumbência recíproca - Distribuição
correta. 5.1. Honorários advocatícios - Compensação admitida - STJ,
súmula 306 e REsp 963528-PR (recurso repetitivo).
124
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
6. Recursos desprovidos e sentença mantida em sede de reexame
necessário. (AC. nº 671379-7, rel. Francisco Pinto Rabelo Filho, j.
em 27.10.2010).
Assim o que se observa é que pelo menos em relação aos tribunais de
instância inferior não há unanimidade em relação à teoria adotada, sendo, entretanto
sempre posta à responsabilidade Estatal. Agora se torna pertinente analisar como se
comportam os tribunais superiores em relação à matéria em apreço.
3.3.3 JURISPRUDÊNCIAS DO STF E STJ
Também nas mais altas cortes do país tem se encontrado decisões
divergentes quanto à teoria a ser adotada nos casos de omissão estatal. Rui
Stoco, em capítulo do livro Grandes Temas de Direito Administrativo (2009, p.
788), cita algumas jurisprudências que revelam o alegado.
Uma delas está estampada no voto proferido pelo ministro
Themístocles Brandão Cavalcanti no julgamento do Recurso Especial 61.387
da segunda Turma do Supremo Tribunal Federal no ano de 1968, assevera o
ministro nos casos de omissão que:
Nesses casos, a responsabilidade se aproxima da culpa, pela omissão
em tomar as providências exigidas para a segurança do serviço, hipótese
em que caberá à vítima provar a falta de serviço, quer dizer, a culpa,
em sentido lato, da Administração Pública. (Parte do voto proferido no
julgamento do RE 61.387, da 2ªT do STF, j. 29.5.68, RDA 97/177).
Outra vez decidiu o colendo Tribunal neste sentido nos casos de
omissão estatal, como revela o Ministro Sepúlveda Pertence em seu voto no
Recurso Especial 283.989-2 de 2002:
Parece dominante na doutrina brasileira contemporânea a postura
segundo a qual somente conforme cânones da teoria subjetiva, derivada
da culpa, será admissível imputar ao Estado a responsabilidade
pelos danos possibilitados por sua omissão. Sustentada por Oswaldo
Aranha Bandeira de Mello, a tese, herdada e desenvolvida por Celso
Antônio, tem colhido adesões de tomo (Maria Sylvia Z. Di Pietro,
Sérgio de Andréa Ferreira, Odília da Luz Oliveira, Sérgio Cavalieri
Filho, Lúcia Valle Figueiredo e Rui Stoco). Ora, se parte desta visão,
a mim parece claro que a fonte de regência da hipótese, que se deu
por concretizada na espécie, não é o art. 37§6º, da Constituição- que
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
diz com a responsabilidade objetiva do Estado, à qual basta a relação
de causalidade entre a ação do agente público e o dano- mas sim, as
normas ordinárias da responsabilidade subjetiva, a começar do art. 15
do Código Civil [atual art. 43] (refere-se ao Código Civil de 1916).
(Parte do voto proferido no RE 283.989-2, j. 28.05.2002, RT 804/166).
Com posição divergente, adotando a responsabilidade objetiva
nos casos de omissão, está o entendimento do Ministro Celso de Mello, no
julgamento do Recurso Especial 109.615:
A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos
documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de
1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil
objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos
houveram dado causa, por ação ou por omissão (RE nº 109.615-RJ,
rel. Ministro Celso de Mello).
No entanto, embora o respeitável Tribunal tenha relatado tais
posicionamentos, o fato é que tanto o Supremo Tribunal Federal como o
Superior Tribunal de Justiça não adentram de forma mais profunda na questão da
omissão nos casos de desastres naturais, pois que para a adoção, por alguma das
teorias nas situações dos acórdãos prolatados, se exige, conforme os tribunais, o
exame fático probatório dos casos em questão, situação em que estão impedidos
de atuar conforme súmula 7 STJ e 279 STF .
É o que assevera a ministra relatora Eliana Calmon Alves da segunda
turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Agravo 1.127.395:
PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO
ESPECIAL. MATÉRIA DE PROVA (SÚMULA Nº 7/STJ). AGRAVO
REGIMENTAL. NÃO PROVIMENTO. 1. O Tribunal a quo assentou
que os apelantes deixaram de produzir um mínimo de provas
no sentido de evidenciar a efetiva inserção das falhas do serviço
como causa ou concausa da enchente. 2. A se admitir o reexame
de provas nesta instância especial significa transformar o Recurso
Especial em segunda apelação e transgredir a competência recursal
constitucionalmente afeta ao STJ. 3. Agravo Regimental não provido.
(STJ, AgRg-Ag 1.127.395, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon
Alves; j. em: 9-6-2009, original sem destaque).
Da mesma forma está à decisão do Agravo de instrumento nº 1.325.523
– SP, proferida pelo relator Ministro Humberto Martins:
126
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
ADMINISTRATIVO -INDENIZAÇÃO -ENCHENTE -OMISSÃO
DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA -CASO FORTUITO -PRETENSÃO DE REEXAME DE PROVAS -SÚMULA 7/STJ -AGRAVO DE INSTRUMENTO IMPROVIDO. (Agravo de Instrumento
nº1.325.523 – SP, Rel. Ministro Humberto Martins.j em 31.08.2010)
Em parte do julgamento do Agravo o Ministro conclui:
Dessarte, conclui-se que restou demonstrada a alegada omissão
por parte da Prefeitura, um dos elementos caracterizadores da
responsabilização não pretendida pelo ora agravante.
Ademais, não há como afastar a aplicação do óbice da Súmula 7 do
STJ, uma vez que o entendimento esposado pelo Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo, acerca da existência da responsabilidade
da ora agravante e de sua conduta omissiva, baseou-se na análise
do conjunto probatório reunido nos autos, e rever tal entendimento,
obviamente, demandaria revolvimento dessas provas, o que é inviável
em sede de recurso especial, nos termos da Súmula 7 desta Corte
de Justiça.(Ag. De instrumento nº1.325.523 – SP, relator Ministro
Humberto Martins)
Pela impossibilidade de reexame também se posiciona a mais alta corte
do País, não decidindo assim quanto à teoria a ser adotada nos casos em tela.
É o que relata o ministro Dias Toffoli da Primeira Turma do Supremo
Tribunal Federal no julgamento do Agravo de instrumento 739.569:
EMENTA Agravo regimental no agravo de instrumento. Responsabilidade objetiva do Estado. Reexame de provas. Impossibilidade.
Precedentes. 1. Inadmissível, em recurso extraordinário, o reexame
das provas dos autos. Incidência da Súmula nº 279/STF. 2. Agravo
regimental não provido (Ag. De instrumento nº 739.569, relator Ministro Dias Toffoli)
O Ministro explica o caso:
O Tribunal de origem, ao apreciar a responsabilidade do Município
recorrente em indenizar a parte autora, consignou expressamente
que: ‘Conquanto o imóvel da autora tenha sido construído em área
cujo solo não oferecia resistência adequada, uma vez que se tratava de
‘brejo’, sua localização não exclui a responsabilidade do Município,
que agiu de modo negligente, visto que tinha conhecimento da
inadequação do sistema de drenagem no local das enchentes e não
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
tomou quaisquer providências para sanar o problema. Forçoso
concluir, portanto, que as chuvas poderiam ter sido contidas caso o
Município houvesse realizado as obras necessárias de adequação do
sistema de drenagem de Franca (...)
E profere seu voto dizendo:
O inconformismo não merece prosperar. Conforme expresso na
decisão agravada, o Tribunal de origem concluiu pela responsabilidade
objetiva da Administração e o consequente dever de indenizar, haja
vista a existência de nexo de causalidade entre a conduta do Poder
Público e o dano causado ao ora agravado, com fundamento nos
elementos fáticos probatórios constantes dos autos. Assim, para
chegar a entendimento diverso haveria a necessidade de reexaminar
fatos e provas, o que é inviável em recurso extraordinário.
Ficam assim visto que nenhum dos Tribunais Superiores deu seu
parecer quanto à teoria a ser adotada nos casos de omissão estatal em desastres
naturais, sendo obstado seu entendimento quanto à matéria em tela pela
impossibilidade de se posicionar sem analisar os fatos e as provas dos autos,
situação proibida pelas referidas súmulas, como já expresso, deixando, até o
momento, a cargo dos tribunais de justiça e tribunais federais à decisão quanto
à teoria a ser apreciada.
4 A EFETIVAÇÃO DA INDENIZAÇÃO PELO ESTADO
Por fim é consequência observar o desenvolvimento do processo e a
forma de efetivação da responsabilidade estatal.
Certo é que a petição inicial da ação de indenização deve preencher
como todas as outras demandas, os requisitos da lei processual civil e assim
provado os fatos, como o dano realmente suportado por terceiro e o nexo de
causalidade entre o evento que gerou a lesão e o prejuízo, está garantido o
sucesso da ação, isso se assim considerado os atos omissivos pela ótica objetiva,
em que não há arguição da culpa, mesmos pelos atos omissivos. (GASPARINI,
2011, p 1121). Nesse sentido vale lembrar que o Estado pode se salvar de pagar
indenização demonstrando que a culpa pelo dano é do prejudicado ou que não
foi o ente o causador do dano (força maior ou caso fortuito).
Para a obtenção da indenização ressaltando tanto os casos comissivos
como os omissivos, está Meirelles. Para o autor comprovado o nexo causal
entre o fato que gerou lesão (comissivo ou omissivo) e o dano, surge à
obrigação estatal pela reparação. Evidenciando a culpa da vítima, exclui-se a
responsabilidade do Estado, se a culpa é parcial diminui-se a indenização.
128
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
A indenização da lesão deve abranger, conforme o autor supracitado:
O que a vítima efetivamente perdeu, o que despendeu e o que
deixou de ganhar, em consequência direta e imediata do ato lesivo
da Administração, ou seja, em linguagem civil, o dano emergente e
os lucros cessantes, bem como honorários advocatícios, correções
monetária e juros de mora, se houver atraso no pagamento.
(MEIRELLES, 2011,p. 666)
Meirelles (2011, p. 667) explica ainda que a liquidação desses danos é
feita conforme os preceitos comuns, prosseguindo o pedido de pagamento pela
Fazenda Pública na forma do artigo 100 da Constituição Federal (precatórios) e
artigo 730 e 731 do CPC. Abrangendo a indenização a correção monetária e os
juros de mora, sendo possível a indenização por dano moral também. Já se for
contra entidade do Estado Gasparini (2011, p. 1121) ressalva que a execução se
procede como se fosse contra o particular.
Vale ressaltar a crítica expressa tanto por Bandeira de Mello (2009,
p. 1035) como por Pestana (2008, p. 517). Os autores claramente posicionamse dizendo que a determinação do pagamento da indenização por precatórios
trata-se de outra espécie de dano, isso porque o pagamento nunca é feito de
forma satisfatória. Pestana (2008, p. 517) evidencia que tal forma de pagamento
predispõe o alongamento constitucional da dívida pública, realizado pela
emenda número 30/2000, que prejudicou sobremaneiramente aquelas vítimas
que esperavam receber seus créditos de uma só vez, mas que por causa dessa
emenda o receberão em até 10 anos.
Por fim, de forma a destacar o tema deste trabalho, vale ressaltar
que quando se trata de processo judicial pelos danos advindos de desastres
naturais, está se falando de situações em que o poder público como um todo
foi omisso. Nesse sentido a doutrina entende que independente da adoção da
responsabilidade objetiva ou subjetiva pela culpa anônima não necessita haver
individualização do agente para que os prejudicados sejam indenizados. Nesta
direção à discussão sobre a possibilidade do funcionário ocupar o polo passivo
da demanda fica desvalorizada, entretanto se identificado o agente que devendo
atuar não atuou para conter os danos, pode haver sim, proposição de ação em
litisconsórcio (Estado e agente) ou só contra o agente público.
CONCLUSÃO
Constatou-se pelo presente trabalho que não há unanimidade na
doutrina nem mesmo na jurisprudência sobre qual teoria deveria ser adotada
129
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
nos casos de responsabilidade estatal por omissão diante dos danos causados à
população decorrentes dos desastres naturais.
O fato é que o artigo 37,§ 6º, da CR, fundamento da responsabilidade
objetiva, ao ser considerado em sua literalidade, encontra dificuldade em
abranger as hipóteses de omissão estatal nesses casos, isso porque o artigo diz:
“... responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a
terceiros...” e nessas situações de desastres naturais o que se acaba realmente
considerando é a omissão da atividade estatal como um todo e não de um
agente apenas. Entretanto mesmo havendo a possibilidade de individualização
do agente estatal, a teoria objetiva vê-se deslocada, porque a omissão que
levou ao dano jurídico, que também pode ser entendida como negligência, é
um dos fundamentos da culpa, de modo que a omissão estatal nesses casos
estaria mais bem caracterizada pela teoria da culpa anônima, que recepciona
a responsabilidade estatal subjetiva, tanto é que boa parte dos doutrinadores,
como Cretella Junior, Cavalieri Filho, Di Pietro, Bandeira de Mello, Paulo e
Alexandrino, adotam este tipo de responsabilização para o caso em tela.
No que diz respeito à jurisprudência, pode-se ver mais vezes a
recepção pela teoria objetiva do que na doutrina. São casos de deslizamentos,
enchentes e inundações sendo observados pela ótica objetiva e sendo balizadas,
vale lembrar, em muitos casos, pela omissão específica (onde o poder público
tem prévio conhecimento da área de risco, mas negligencia seu dever de agir
para impedir ou atenuar os danos do evento).
Constatou-se dessa forma que a responsabilidade sem a consideração
da culpa nos casos de desastres naturais é mais uma recepção jurisprudencial
do que doutrinária, ficando a cargo daquele que propõe a ação contra o Estado
apenas instruir a omissão estatal, o dano jurídico e o nexo de causalidade.
Entretanto o que vale ressaltar é que a adoção da teoria objetiva para
omissão nos casos de desastres naturais não eleva o Estado a um patamar de
segurador-universal, isso porque o Poder Público para defender-se das acusações
impostas pode invocar as excludentes de responsabilidade, comprovando que
não houve descuido estatal, bem como pode usar dos princípios como o da
proporcionalidade e da reserva do possível.
De qualquer forma mesmo sendo plausível a adoção da teoria
objetiva, (até porque na sua aplicação também se deve assegurar os direitos
administrativos enquanto se observa sua real possibilidade de se concretizar
através das finanças e a estrutura estatal) a teoria que se encontra mais adequada
para a presente situação é a subjetiva, pelos argumentos já expostos. Mas não
simplesmente a subjetiva, em que a vítima da omissão tem que provar a culpa
Estatal. Mas a responsabilização subjetiva com inversão do ônus da prova, em
que o lesado não tem que provar a culpa do Estado como requisito da procedência
da ação, pois aqui a presunção da culpa é do Estado, cabendo a este demonstrar
130
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
que agiu com diligência, que utilizou os meios adequados e acessíveis e que
não tomou atitude porque sua atuação estaria acima do que seria razoável
exigir, sendo este o posicionamento dos autores Bandeira de Mello e Di Pietro.
Porque como bem preleciona Bandeira de Mello, tal entendimento não deixa
que a parte mais vulnerável da situação, os administrados, que possuem menos
recursos para comprovar o que o deveria ter feito, fiquem com este encargo
de provar, que os deixariam em posição extremamente frágil, ou até mesmo
desprotegida ante a dificuldade ou impossibilidade de demonstrar que o serviço
não se desempenhou como deveria.
Neste sentido, o estudo do tema pretendeu e poderá contribuir para o
despertar de um olhar mais crítico sobre as notícias envolvendo as calamidades
ambientais, mostrando aos leitores os seus direitos nos casos concretos, além
de trazer a consciência do imediato e imprescindível planejamento urbano, da
manutenção, construção e controle da infraestrutura por parte do Ente maior.
131
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
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135
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
A BÚSSOLA DO BRASIL: ORÇAMENTO PÚBLICO
THE COMPASS OF BRAZIL: PUBLIC BUDGET
Giulia Alessandra de Carli de Oliveira
Bacharelanda do curso de Direito do Centro Universitário
Curitiba – UNICURITIBA
Luiz Gustavo de Andrade
Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de
Curitiba (2002), pós-graduação pela Universidade Candido
Mendes do Rio de Janeiro (2005) e Mestrado em Direito
pela Faculdade de Direito de Curitiba (2008). Atualmente
é professor da Faculdade de Direito de Curitiba do Centro
Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e advogado
militante no Paraná
SUMÁRIO: Resumo. Abstract. Introdução. 1. Elaboração do Orçamento Público. 1.1.
Plano Plurianual - PPA. 1.2. Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO. 1.3. Lei Orçamentária
Anual – LOA. 1.4. Processo Legislativo Orçamentário. 2. Execução do projeto
orçamentário. 3. Fiscalização das leis orçamentárias. 3.1. Lei de Responsabilidade Fiscal –
LRF. 4. Aplicações de recursos públicos em saúde e educação à luz da Constituição Federal.
5. A Relação dos investimentos mínimos em saúde e educação com a teoria do mínimo
existencial. 6 Breve análise acerca da judicialização das políticas públicas em saúde e
educação. 7. Considerações finais
RESUMO
O presente trabalho objetiva demonstrar o quão é importante haver
um orçamento público bem planejado, bem como a população participar de
todo o trâmite orçamentário, eis que a partir deste planejamento políticofinanceiro que as políticas públicas do país serão traçadas, de modo a garantir
que o Estado preste estes serviços de forma digna e com qualidade. Buscarse-á saber qual o mínimo de investimentos estabelecidos pela Constituição
Federal a serem realizados em saúde e educação, assim como a relação desses
percentuais constitucionais para a garantia de um mínimo existencial aos
cidadãos, de forma digna. Assim, será abordado sob um panorama geral acerca
do orçamento público, desde a fase de elaboração, execução até a fiscalização
orçamentária, bem analisando o papel da Lei de Responsabilidade Fiscal no
controle dos gastos públicos .Busca-se, portanto, desmitificar a complexidade
136
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
que norteia o tema orçamento público, a fim de que o leitor se inteire mais sobre
as diretrizes do país, bem como o Poder Público não só através de audiências
públicas realizadas, mas também através da divulgação de informações em uma
linguagem acessível e não tão técnica, convide a sociedade a planejar junto ao
Estado as leis orçamentárias, uma vez que estas serão as norteadoras dos rumos
a serem tomados pelo Brasil.
Palavras–chave: Orçamento Público, Políticas Públicas e População.
ABSTRACT
This paper aims to demonstrate how important a well planned public
budget is, as well as the popular participation in the whole budget procedure,
since it is from this political and financial planning that the country public policy
will be drawn, in order to ensure that the state provides these services with
quality. It will be studied under a general perspective of the budget statute, since
the elaboration phase, execution until the budget control, analysing the rol of
the Fiscal Responsability Law to control public spending. The search will also
aim to know the minimum investment established by the Federal Constitution
to be made in health and education, since they are extreme important areas for
the social-economic development of the country. It is intended to desmistify the
complexity that drives the public budget theme, enabling better knowledge of
the country guidelines and the government, and participation not only through
public hearings, but also through information in a acessible and not so technical
language, as an invitation for society to plan the budget laws with the state,
guiding the directions to be taken by Brazil.
Keywords: Public Budget. Public Policy. Population.
INTRODUÇÃO
O presente artigo visa analisar à luz da Constituição Federal a
importância do bom e eficaz planejamento do orçamento público como garantia
do direito à saúde e educação, uma vez que é a partir das leis orçamentárias que
serão traçadas as políticas públicas para o país por determinado período.
Será abordado, sob um prisma geral, o estatuto orçamentário no
âmbito federal, em suas fases fases de elaboração, execução e fiscalização
do projeto orçamentário, buscando desmitificar a complexidade que rodeia a
matéria, a fim de que o leitor compreenda que o orçamento público é a bússola
política-financeira que norteará os rumos a serem tomados pelo Brasil.
137
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Estudar-se-á qual o percentual mínimo a ser investido em saúde e
educação consoante a Carta Magna, bem como sua relação com a teoria do
mínimo existencial. Nesse diapasão, será explanado sucintamente sobre a
crescente judicialização das políticas públicas, mormente no que tange a estes
direitos fundamentais e sociais, como forma de assegurar o cumprimento desses
direitos constitucionais pelo Estado.
Pretende-se demonstrar a importância de se compreender o orçamento,
bem como de participar de todo o seu trâmite, seja fornecendo informações sobre as
demandas mais urgentes e precárias que precisam ser priorizadas, seja pelo efetivo
exercício de cidadania que é o conhecimento das políticas públicas do país.
1 ELABORAÇÃO DO ORÇAMENTO PÚBLICO
O orçamento público é o instrumento de planejamento políticofinanceiro formado pelas receitas a serem arrecadadas e as despesas a
serem empenhadas ao longo do exercício financeiro18, durante determinado
período de tempo.
Assim, o orçamento público “deixou de ser mero documento de
caráter contábil e administrativo, para espelhar toda a vida econômica da Nação,
constituindo um importante instrumento dinâmico do Estado a orientar sua
atuação sobre a economia”. (HARADA, 2005, p. 84). Desta forma, o orçamento
público não é apenas uma peça estimando receitas e despesas públicas, pois é a
partir da elaboração orçamentária que serão traçadas as políticas públicas para o
país, a fim de suprir as necessidades prioritárias da população, sendo efetivadas
através da execução e fiscalização do projeto orçamentário.
Muito se discute na doutrina quanto à natureza jurídica do orçamento
público, uma vez que para alguns teria status de ato-condição19, para outros
teria status de lei material20 ou ainda status de lei formal21. Atualmente, a
posição dominante adotada pelo Superior Tribunal Federal é que o orçamento
público possui natureza de lei formal, pois o fato de fixar despesa na Lei
Orçamentária Anual não geraria o direito de exigência de sua realização pela
via judicial por qualquer cidadão.
O projeto orçamentário será norteado principalmente pelo princípio
Exercício financeiro: 01 de janeiro até 31 de dezembro do corrente ano.
Fixa apenas receitas e despesas públicas, sendo o ato-meio para atingir o ato-fim, que seria a
efetivação das políticas públicas sociais.
20
Criando direitos subjetivos.
21
Somente prevê as receitas públicas e autoriza os gastos sem criar direitos subjetivos e sem
modificar as leis tributárias e financeiras (TORRES, 2009, p.177)
18
19
138
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
da legalidade22, princípio da universalidade23 e o princípio do equilíbrio
orçamentário24.
O orçamento público compreende três leis orçamentárias, são estas:
O Plano Plurianual – PPA, a Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO e a Lei
Orçamentária Anual.
O Orçamento público será elaborado pelo Chefe do Executivo (de
acordo com esfera em que estiver inserido, neste artigo será tratado no âmbito
federal) e enviado para o Congresso Nacional para apreciação, discussão e
votação das referidas leis. Após todo o trâmite legislativo orçamentário, estas
serão devolvidas ao Presidente da República para sanção.
1.1 PLANO PLURIANUAL - PPA
O PPA estabelece os objetivos e as metas da Administração Pública
para as despesas públicas, programas de longa duração continuada (programas
com duração superior a um exercício financeiro) e outras afins de longo prazo,
visando ao desenvolvimento econômico estável, com o objetivo de diminuir as
desigualdades regionais no país.
O PPA possui vigência de quatro anos, sendo elaborado no primeiro
ano de mandato do Chefe do Executivo, executado a partir do segundo ano
de exercício financeiro subsequente até o final do primeiro ano do fim o
primeiro mandato (ex: 2012-2015). Assim, a União deverá encaminhar o PPA
ao Congresso Nacional até 31 de agosto do primeiro mandato do Presidente
da República, e o Congresso Nacional devolverá para sanção presidencial até
22 de dezembro do mesmo ano (art. 57, da Constituição Federal, com a nova
redação dada pela EC n° 50/2006).
Esclarece-se que nenhum investimento que ultrapasse o exercício
financeiro poderá ser iniciado sem a prévia inclusão no plano plurianual, ou
sem lei que autorize a inclusão, sob pena de crime de responsabilidade (art. 167,
§1º, da Constituição Federal).
Os planos e programas nacionais, regionais e setoriais serão
elaborados consoantes ao plano plurianual (artigos. 48, IV, e 165, § 4º, da
Constituição Federal). Portanto, é a partir deste plano de governo que será
elaborada a Lei de Diretrizes Orçamentárias, que por sua vez orientará o
planejamento da Lei Orçamentária Anual.
Denota que o orçamento público deverá ser planejado e executado dentro da lei, sem haver
desvio de finalidade com os recursos públicos arrecadados.
23
O orçamento deverá prever receitas e despesas pelo valor bruto, sem haver deduções e exclusões,
buscando que os recursos públicos sejam divididos em forma igualitária entre os entes federados.
24
Consubstancia-se na compatibilidade entre as receitas arrecadadas e as despesas públicas feitas,
de modo a assegurar que o orçamento público seja executado em conformidade ao planejado,
mantendo o controle e estabilidade das contas públicas.
22
139
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
1.2 LEI DE DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIAS - LDO
À luz do art. 165, § 2°, da Constituição Federal, a LDO consiste
em estabelecer metas e prioridades elencadas pela Administração Pública na
confecção do orçamento com base no plano plurianual, traçando os programas
de média e curta duração que deverão ser cumpridos, as áreas que serão
priorizadas, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro, bem
como dispondo sobre as alterações na legislação tributária, tendo em vista que
a receita tributária é a principal fonte de financiamento dos gastos públicos, e
principalmente orientando a elaboração da Lei Orçamentária Anual.
A lei também norteará as políticas públicas das agências financeiras
de fomento (ex: Banco Nacional de Desenvolvimento Social - BNDS e Caixa
Econômica Federal - CEF), bem como autorizará aumento de remuneração
de servidores e demais despesas em relação ao quadro funcional para a
Administração Pública. Cumpre salientar que as empresas públicas e sociedades
de economia mista não precisam dessa autorização da LDO, conforme art. 169,
§ 1°, da Constituição Federal.
A LDO será enviada ao Congresso Nacional até o dia 15 de abril
e este deverá devolve-lá para sanção presidencial até 17 de julho (art. 35, §
2°, II, do ADCT), para vigorar no exercício financeiro subsequente. Caso a
sessão legislativa não aprove a LDO até 17 de julho, a sessão legislativa será
prorrogada automaticamente até a aprovação da lei.
Assim, a LDO orientará a LOA para ulterior elaboração da proposta
orçamentária dos Poderes da República e Ministério Público.
1.3 LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL - LOA
A LOA fixa as receitas e despesas públicas para o exercício financeiro,
traçando as metas e as necessidades prioritárias da população que serão
atendidas, devendo estar compatível com as diretrizes do Plano Plurianual e os
objetivos da Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Conforme art. 165, § 5º, da Constituição Federal, a LOA compreende
três orçamentos: I - orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos,
órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações
instituídas e mantidas pelo Poder Público; II - orçamento de investimento das
empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital
social com direito a voto (empresas públicas e sociedades de economia mista);
III – orçamento da seguridade social (saúde, previdência e assistência social),
abrangendo todas as entidades e órgãos a elas vinculados, da administração
direta ou indireta, incluindo os fundos e fundações instituídas e mantidas pelo
Poder Público, sendo a principal fonte financiadora da saúde pública.
140
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
O orçamento de investimento e o fiscal, compatibilizados com o Plano
Plurianual, buscam reduzir as desigualdades inter-regionais, segundo o critério
populacional.
A LOA deverá ser enviada ao Congresso Nacional até 31 de agosto,
e este devolver para sanção presidencial até 22 de dezembro do mesmo ano.
1.4 PROCESSO LEGISLATIVO ORÇAMENTÁRIO
Primeiramente, é mister dizer que os prazos determinados na
Constituição Federal, Constituição Estadual ou Leis Orgânicas Municipais,
deverão ser cumpridos pelo Chefe do Executivo, sob pena de crime de
responsabilidade, conforme Lei n° 1.079/1950 – Presidente e Governador - , e
Decreto-Lei n° 201/1967 – para Prefeitos.
Tais prazos estarão dispostos em lei complementar, á qual se refere
o art. 165, § 9º, I, da Constituição Federal, que fixará o exercício financeiro, a
vigência, os prazos, a elaboração e organização dessas leis. Ocorre que até o
presente momento essa lei complementar não foi editada. Deste modo, a União,
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que não estabeleceram prazos
específicos, devem seguir os prazos estabelecidos no art. 35, § 2º, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT.
As leis orçamentárias e as propostas de créditos adicionais (despesas
não computadas ou insuficientemente previstas na LOA) enviados pela União,
serão apreciadas pelas duas Casas do Congresso Nacional, na forma de
regimento comum - art.166, da Constituição Federal.
Assinala Luiz Gustavo Bambini de Assis, quanto à esfera federal, que
após o Presidente do Congresso Nacional encaminhar a proposta orçamentária
ao Presidente do Senado, ele também deverá ler a mesma em sessão conjunta
das duas casas no prazo de quarenta e oito horas da sua entrega. Posteriormente,
a proposta será encaminhada à Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos
e Fiscalização, formada por Senadores e Deputados, que emitirá parecer sobre o
PPA, a LDO, a LOA, os créditos adicionais apresentados pelo Executivo, os planos
e programas regionais e setoriais; assim como fiscalizará e emitirá parecer sobre as
contas apresentadas anualmente pelo Presidente da República e demais documentos
relacionados com a execução e gestão orçamentária (ASSIS, 2012, p. 214).
Ressalte-se, ainda, que o Chefe do Executivo poderá encaminhar
mensagem para haver modificações no PPA, na LDO e na LOA, desde que
não tenha sido iniciada a votação na comissão mista, e que tais propostas não
alterem consideravelmente a redação original, conforme art. 166, § 5º, da
Constituição Federal.
O Congresso Nacional também poderá apresentar emendas ao texto
original orçamentário perante a Comissão Mista, que por sua vez emitirá
parecer, sendo as eventuais modificações apreciadas por ambas as casas.
141
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
As emendas ao projeto do PPA não podem acarretar o aumento do
valor das despesas previstas (art. 63, I, da Constituição Federal). Já as emendas
a LDO só poderão se aprovadas se compatíveis com o PPA (art. 166, § 3°, da
Constituição Federal). As emendas à LOA, ou a projetos que a modifiquem,
somente serão aprovadas se compatíveis com o PPA e o LDO, e que indiquem os
recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa,
excluídas as que incidam sobre dotações para pessoal e seus encargos, serviço
de dívida, transferências tributárias constitucionais para Estados, Municípios
e Distrito Federal, bem como sejam relacionadas com a correção de erros ou
omissões ou com os dispositivos do texto do projeto de lei.
Após analisadas pela Comissão Mista, as leis orçamentárias
serão enviadas ao Plenário das duas casas do Congresso Nacional para
votação e aprovação. Em sendo aprovados os projetos orçamentários, o
Poder Legislativo dará ciência ao Chefe do Poder Executivo, para que este
sancione se estiver de acordo.
Não acordando com a lei orçamentária aprovada, o titular do Chefe do
Executivo poderá vetá-lo total ou parcialmente, em quinze dias úteis a partir do
seu conhecimento - art. 66, da Constituição Federal.25
Quanto à possibilidade de rejeição do projeto orçamentário, assinala
José Afonso da Silva, que “a Constituição não admite a rejeição de projeto
de lei de diretrizes orçamentárias, porque declara expressamente que a
sessão legislativa não será interrompida sem a aprovação da lei de diretrizes
orçamentárias - art. 57, § 2º, da Constituição Federal” (SILVA, 2010, p.747).
Contudo, admite-se a possibilidade da rejeição do projeto de lei orçamentária
anual, na hipótese do art. 166, § 8º da CF, que estatuiu que os recursos que,
em decorrência de veto, emenda ou rejeição do projeto orçamentário anual,
ficarem sem despesas correspondentes poderão ser utilizados, conforme o
Art. 66. A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente
da República, que, aquiescendo, o sancionará: § 1º - Se o Presidente da República considerar o
projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total
ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará,
dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto;§ 2º - O
veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea;§
3º - Decorrido o prazo de quinze dias, o silêncio do Presidente da República importará sanção;§
4º - O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento,
só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em escrutínio
secreto;§ 5º - Se o veto não for mantido, será o projeto enviado, para promulgação, ao Presidente
da República; § 6º Esgotado sem deliberação o prazo estabelecido no § 4º, o veto será colocado na
ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua votação final;§ 7º - Se
a lei não for promulgada dentro de quarenta e oito horas pelo Presidente da República, nos casos
dos § 3º e § 5º, o Presidente do Senado a promulgará, e, se este não o fizer em igual prazo, caberá
ao Vice-Presidente do Senado fazê-lo.
25
142
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
caso, mediante créditos especiais ou suplementares, com prévia e específica
autorização legislativa. (SILVA, 2010, p.747)
E caso esta rejeição ocorra, as despesas terão que ser autorizadas
previa e especificamente pelo Poder Legislativo, caso a caso, mediante leis de
abertura de créditos especiais.
Caso o Chefe do Executivo tenha cumprido os prazos previstos na
legislação caberá, através do princípio da simetria, a promulgação do plano
orçamentário pretendido, sem se ater a possíveis emendas aprovadas ou em
discussão. Porém, se o Chefe do Executivo não tiver enviado a proposta
orçamentária ao Congresso Nacional, este apreciará a lei do orçamento vigente,
conforme dispõe o art. 32 da Lei n° 4.320/1964.
Já, se o orçamento não for votado até o exercício do ano seguinte, à
luz da atual Constituição Federal será admitida a prorrogação do orçamento
anterior, na razão de 1/12 das dotações, até que o novo projeto orçamentário
seja publicado. (TORRES, 2009, p.180).
2 EXECUÇÃO DO PROJETO ORÇAMENTÁRIO
Os recursos públicos são compostos por receitas e despesas públicas.
Receitas públicas são todas as verbas arrecadadas pelo governo, as quais abarcam
o caixa do país, ou seja, é o ingresso de valores monetários aos cofres públicos.
E as despesas públicas constituem a aplicação das receitas públicas arrecadas
nas áreas determinadas pela lei orçamentária, atendendo concretamente às
necessidades dos cidadãos. Desta maneira é na fase de execução do orçamento
público que serão aplicados efetivamente os recursos públicos.
Assim, aprovado o orçamento, este ganha eficácia e vigência,
devendo os entes federativos executar o programa de acordo com os ditames
das leis orçamentárias. Esta fase compreende três etapas: o empenho, a
liquidação e o pagamento.
O empenho ocorre após a licitação da despesa, sendo o relacionamento
entre o executor ou fornecedor com a autoridade pública. Conforme artigos 58
e 61, da Lei de Finanças Públicas nº 4.320/64, o empenho é o ato emanado de
autoridade competente que cria ao Estado obrigação de pagamento pendente ou
não de implemento de condição, sendo que para cada empenho será extraído
um documento denominado “nota de empenho” que indicará o nome do credor,
a operação e o valor da despesa correspondente.
A liquidação da despesa visa constatar se realmente o objeto do
contrato foi realizado dentro do combinado e exigido pela Administração
Pública. Nos termos do art. 63 da referida lei, a liquidação da despesa consiste
na verificação da proporção do serviço prestado com o valor cobrado através de
títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.
143
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Já o pagamento é a fase final da execução da despesa, quando através
de ato administrativo do ordenador da despesa será determinada a satisfação do
crédito, sendo entregue o valor devido ao contratado.
3 FISCALIZAÇÃO DAS LEIS ORÇAMENTÁRIAS
A fiscalização orçamentária será feita por meio do controle interno da
Administração Pública, dos Poderes da República, dos Tribunais de Contas e
do Ministério Público, bem como pelo controle externo - exercido pelo Poder
Legislativo com o auxílio do Tribunal de Contas e através Lei de Responsabilidade
Fiscal – LRF, a qual trouxe transparência ao fluxo orçamentário e estabeleceu
limites e controle de gastos públicos.
O controle interno será exercido por cada ente, cabendo a cada um
o poder de gerenciar a aplicação dos recursos advindos do orçamento público,
atendendo às necessidades dos servidores, instituições e órgãos. Através do
controle interno é que será verificado se existe compatibilidade entre o ingresso
e a saída dos recursos públicos recebidos, conforme o orçamento previsto.
Quando constatada qualquer irregularidade ou ilegalidade, será dado ciência ao
Tribunal de Contas, sob pena de responsabilidade solidária, para averiguar se há
ou não desvios de finalidades com as verbas aplicadas.
O controle externo tem a função fundamental de identificar se as
verbas empregadas pelo ente foram aplicadas dentro da legalidade e de acordo
com o previsto pelo legislador. O Tribunal de Contas emitirá parecer técnicoadministrativo sobre as contas apresentadas pelo Chefe do Executivo, a
auditoria financeira e orçamentária sobre as unidades administrativas do Poder
Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário, bem como o juízo de valor
das contas dos administradores e responsáveis por bens e valores públicos.
(RAMOS FILHO, 2012, p. 299).
Caso se defronte com irregularidades, o mesmo comunicará ao Poder
Legislativo para adoção das medidas cabíveis junto ao Ministério Público.
Assim, tanto o controle interno como o controle externo buscam
garantir plena legalidade na execução do orçamento e identificar eventuais
irregularidades, a fim de evitar prejuízos à população e ao erário.
3.1 LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL - LRF
A Lei de Responsabilidade Fiscal - Lei Complementar nº 101,
sancionada em 4 de maio de 2000, é o instrumento regulador dos gastos públicos,
e tem por objetivo assegurar que os gestores públicos tenham responsabilidade
na gestão fiscal, no gerenciamento e aplicação dos recursos públicos.
144
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
A LRF é aplicável à União, Estados, Distrito Federal, Municípios,
Poder Executivo, Poder Legislativo, Poder Judiciário, Tribunais de Contas,
Ministério Público, Fundos Especiais, Autarquias, Fundações, Empresas
Estatais Dependentes e Sociedades de Economia Mista e Empresas Públicas,
desde que recebam verbas públicas.
Referida lei estabelece limites de gastos com o quadro de pessoal
da Administração Pública, limites à dívida pública, definição de metas fiscais
através do planejamento e execução das leis orçamentárias, gastos com
materiais, além de mecanismos para controle em ano eleitoral e mecanismos de
compensação para despesas de caráter continuado.26
Conforme dispõe o art. 73, da LRF, o não cumprimento das normas
estabelecidas na lei incorre infrações, as quais serão punidas de acordo com
o Código Penal; Lei n° 1.079/1950 - define os crimes de responsabilidade e
regula o respectivo processo de julgamento; Decreto-lei n° 201/1967 - dispõe
sobre a responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores, Lei de Improbidade
Administrativa n° 8.429/1992 e Lei de Crimes de Responsabilidade Fiscal nº
10.028/2000.
As infrações apuradas serão aplicadas sanções institucionais e/ou
sanções pessoais, de acordo com cada caso. As sanções pessoais são aplicáveis
à pessoa do gestor público e as sanções institucionais são aplicáveis ao ente ou
órgão em virtude da infração realizada pelo agente. Veja-se: se o gestor público
não apresentar o relatório de gestão fiscal semestral, tal conduta enseja sanção à
instituição – podendo o órgão deixar de receber recursos públicos, assim como
o gestor público pode sofrer multa de 30% dos vencimentos anuais, sendo que,
conforme a gravidade da infração, poderá até ter o mandato cassado (art. 5º, I, da
Lei nº 10.028/2000). Assim, as sanções previstas possuem o caráter de punição
do órgão, do ente federado, da instituição pública ou do gestor público, mas tem
também o caráter preventivo e educacional, haja vista que buscam combater as
ações corruptíveis, que acabam por acarretar prejuízos imensuráveis aos cofres
públicos e a sociedade como um todo.
Vê-se, portanto, que a fiscalização orçamentária tem por escopo
assegurar a aplicação efetiva dos recursos públicos para o atendimento das
necessidades da população, primando pelo interesse público e o princípio da
dignidade da pessoa humana.
MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO. Publicações. Lei de
Responsabilidade Fiscal. Cartilha sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. Gestão Fiscal
Responsável. p.2/3. Disponível em: <http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/
Arquivos/publicacao/lrf/080807_PUB_LRF_Cartilha_port.pdf>. Acesso em: 24 set. 2012.
26
145
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
4 APLICAÇÕES DE RECURSOS PÚBLICOS EM SAÚDE E EDUCAÇÃO À LUZ
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Conforme dispõe o art. 196, da Constituição Federal, todos os cidadãos
brasileiros ou residentes no País, possuem direito à saúde. O serviço será prestado
em conjunto pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios – art. 198, da
Constituição Federal - por meio do Sistema Único de Saúde – SUS, através de
verbas advindas da seguridade social – art. 194, da Constituição Federal e demais
políticas públicas. Cada ente federado fornecerá os atendimentos voltados a ações
que visem à diminuição do risco de doenças, possibilitem a implementação de
ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde.
A Lei Complementar n° 141, de 13 de janeiro de 2012, regulamentou
a Emenda Constitucional n° 29/2000, alterou os artigos 34, 35, 156, 160, 167 e
198, da Constituição Federal, acrescentando o artigo 77 ao Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias - ADCT para assegurar os investimentos mínimos
no financiamento de ações e serviços públicos em saúde.
A partir das novas disposições, a União deverá aplicar na saúde o
valor empenhado no ano anterior, somado à variação nominal do Produto
Interno Bruto (PIB). Os Estados e o Distrito Federal deverão investir 12% de
sua receita e os Municípios 15%.
Quanto aos investimentos mínimos em educação, assevera o art. 212,
da Constituição Federal que a União deve aplicar, anualmente, no mínimo 18%
e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios no mínimo 25%, da receita
resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na
manutenção e desenvolvimento do ensino.
Vê-se que os percentuais estabelecidos na Carta Magna, a serem
investidos nestas áreas, devem ser respeitados e aplicados pelos gestores públicos,
para garantia que o Estado preste um serviço digno e com um nível mínimo de
qualidade, buscando a atender os anseios da teoria do mínimo existencial.27
5 A RELAÇÃO DOS INVESTIMENTOS MÍNIMOS EM SAÚDE E EDUCAÇÃO
COM A TEORIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL
A Carta Magna garantiu a todos o direito à saúde e educação, de
forma universal e igualitária, tendo estabelecido percentuais mínimos a serem
investidos pelo Estado, a fim de atender às demandas essenciais dos cidadãos.
Pode-se dizer que a ideia de do mínimo existencial surgiu na fase Pós-Guerra da segunda Guerra
Mundial, com o publicista Otto Bachof, o qual sustentava a possibilidade do reconhecimento de
um direito subjetivo à garantia positiva dos recursos mínimos para a existência digna (…) A
doutrina alemã entende que a garantia das condições mínimas para uma existência digna integra
o conteúdo essencial do princípio do Estado Social de Direito, constituindo uma de suas principais
tarefas e obrigações. (SARLET, 2008, p. 20)
27
146
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Neste diapasão, assevera Ingo Wolfgang Sarlet que a saúde e a
educação vão além de direitos meramente constitucionais, sendo também
direitos fundamentais, eis que outorgam direitos e prestações positivas ao
indivíduo, que podem ser exigidas do Estado. (SARLET, 2008, p. 347).
Segundo a Organização Mundial da Saúde, a saúde pode ser definida
como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas
a ausência de doenças”. A educação, por sua vez, desempenha importante
papel dentro da sociedade e do país, tendo em vista seu eminente caráter
potencializador no desenvolvimento pessoal do indivíduo, seja no exercício da
cidadania, seja no mercado de trabalho e no desenvolvimento econômico da
nação. (BARCELLOS, 2008, p. 290/291).
Assinala o art. 205 da Lei Maior que “a educação, direito de todos e
dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração
da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para
o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Deste modo, os
entes federados deverão proporcionar a todos o acesso à educação de forma
igualitária e com qualidade, principalmente durante a educação infantil até o
ensino médio, para que os alunos cheguem realmente preparados ao ensino
superior, com uma base forte de conhecimento. Assim, prestar um ensino de
qualidade na rede pública, tal como o que é fornecido nas escolas privadas,
tecnológicas e militares, é efetivar o real acesso a educação.
Vê-se, portanto, a direta relação dos investimentos mínimos em saúde e
educação com a teoria do mínimo existencial, tendo em vista que esta compreende o
conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma
vida condigna, no sentido de uma vida saudável (SARLET, 2008, p. 25). Desta
forma, a saúde e a educação, como direitos fundamentais/sociais, relacionamse diretamente com o mínimo existencial, uma vez que compõem o núcleo do
princípio da dignidade da pessoa humana, o qual assegura um mínimo necessário
para a manutenção da vida do ser humano. (BARCELLOS, 2008, p. 358)
Nas palavras de Ingo Wolgang Sarlet a “garantia do mínimo existencial
independe de expressa previsão constitucional para ser reconhecida, visto que
decorrente já da proteção da vida e da dignidade da pessoa humana”. (SARLET,
2008, p. 24). E embora não haja previsão constitucional expressa consagrando
os anseios do mínimo existencial, segundo o autor, o art. 170 da Constituição
Federal, dispõe que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna.
(SARLET, 2008, p.25).
Neste sentido, destaca-se ainda, o art. 7°, IV, da Constituição Federal,
o qual dispõe que o salário mínimo deve suprir as necessidades vitais básicas de
todos, assegurando e proporcionando o direito à saúde, educação, alimentação,
moradia, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Desta forma,
147
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
verifica-se que o legislador pretendeu assegurar a todos um mínimo existencial,
ou pelo menos a busca de concretização dessas garantias essenciais, haja vista
que são direitos básicos e fundamentais para que o cidadão viva de forma digna.
Entretanto, cabe saber, qual seria esse mínimo existencial, qual seria o
nível de qualidade dos serviços a serem prestados, bem como as prestações que
estariam aí incluídas, pois muitas vezes o que é essencial para um, para outro já
não é; além de que esse mínimo de necessidades pode variar de acordo com as
necessidades culturais ou pessoais.
Neste sentido, leciona Ingo Wolgang Sarlet que é difícil estabelecer
de forma taxativa os elementos nucleares do mínimo existencial, pois o que
“compõe o mínimo existencial reclama, portanto, uma análise (ou pelo menos a
possibilidade de uma averiguação) à luz das necessidades de cada pessoa e deu
núcleo familiar, quando for o caso”. (SARLET, 2008, p.26).
O mínimo existencial abarca questões complexas, relevantes e
polêmicas, tendo sido o objetivo neste estudo apenas demonstrar que a saúde
e educação integram preceitos defendidos pela teoria, buscando que sua
interpretação seja almejada além de questionamentos filosóficos, jurídicos e
éticos, mas que na prática, passe a ser aplicado em sua inteira intenção, a fim de
se ter um Estado realmente social, em que a pessoas possam fazer pelo menos
seis refeições diárias, haja políticas de saúde efetivas que visem à prevenção,
promoção e recuperação da saúde, um ensino educacional de qualidade, com
vistas a diminuir as desigualdades sociais tão gritantes em nosso país. Vejase como exemplo: por diversas razões políticas-sociais, parte da população
do sertão nordestino sofre com a falta de irrigação das suas terras, passando
sede e fome e chegando muitas vezes a se alimentar apenas de plantas de
cactos para sobrevivência e, em contra-ponto, os salários e remunerações dos
políticos superam muitas vezes o valor do salário mínimo vigente, havendo
uma discrepância entre a falta de recursos a serem aplicados naquelas áreas
com os salários extremamente altos de alguns gestores públicos, comparados
ao efetivo dever no cumprimento de seu mandato.
6 BREVE ANÁLISE ACERCA DA JUDICILIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
NA ÁREA DE SAÚDE E EDUCAÇÃO
Nos últimos anos vem crescendo as demandas judiciais pleiteando
direitos na área de saúde e educação em virtude da omissão das políticas
públicas para estas áreas ou pela negativa da Administração Pública em
atender determinadas necessidades postuladas pelo cidadão, devido aos limites
148
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
orçamentários existentes, abrangidos pela teoria da reserva do possível.28
Pode-se verificar que há um embate entre o Poder Judiciário,
Poder Executivo e Poder Legislativo no que tange à área de políticas
públicas, uma vez que o Poder Judiciário estaria intervindo diretamente no
campo orçamentário ao determinar a alocação de recursos públicos para o
atendimento de determinados indivíduos, a par da omissão do Executivo em
prestar um bom atendimento aos cidadãos.
No que tange à judicialização das políticas públicas em saúde e
educação, observa-se que o cerne da questão está em saber quais são as
prestações de saúde que o Poder Público está obrigado a fornecer à luz da Carta
Magna, e que por sua vez são exigíveis perante o Poder Judiciário, haja vista
que as necessidades da população são ilimitadas e os recursos públicos são
escassos. (BARCELLOS, 2008, p.311).
Pode-se verificar que o embate maior não estaria dentro das teorias
do mínimo existencial ou da reserva do possível, e sim no embate entre a
intervenção judicial para a defesa de uma ou mais vidas x as demais pessoas
que deixaram de ser atendidas.
Assim, o magistrado depara-se, no caso do direito à saúde, entre
o direito constitucional à vida e saúde do requerente e o fato de que aquela
decisão beneficiará somente um cidadão.
Esclarece Ana Paula Barcellos que esse mínimo existencial, no
que tange à área de saúde, envolve escolhas trágicas, tendo em vista que
em determinadas situações “o indivíduo não poderá exigir judicialmente do
Estado prestações possivelmente indispensáveis para o restabelecimento ou a
manutenção de sua saúde, mesmo que elas não estejam disponíveis na rede
pública de saúde” (BARCELLOS, 2008, p. 310), uma vez que muitas vezes
a prestação de serviço pode não estar compreendida pelo mínimo existencial
previsto pela Constituição Federal ou pelas políticas públicas.
É notório que o drama entre salvar uma vida em determinada
situação envolve questões além de uma simples decisão, pois envolve direitos
constitucionais, direito à vida, políticas públicas, limites orçamentários e acima
de tudo questões atreladas intrinsecamente ao princípio da dignidade da pessoa
humana (BARCELLOS, 2008, p. 308/309).
Verifica-se, portanto, que o Poder Judiciário, quando reconhece o
direito constitucional à saúde do cidadão, não tem o intuito - a priori - de causar
A construção teórica da “reserva do possível”, surgiu na Alemanha, no início dos anos de 1970.
De estaria sob a reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria
sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais
dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos, sintetizadas no orçamento público.
(SARLET, 2008, p. 29)
28
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
um desequilíbrio nas finanças públicas por determinar a alocação de recursos
públicos para suprir demandas não previstas nas leis orçamentárias, mas sim
garantir de alguma forma o direito à vida, mesmo que esteja fazendo escolhas
entre quem salvar e entre quem ficará desassistido.
Há que se observar, por isso, até que ponto a intervenção do Poder
Judiciário é viável, porquanto ao proferir sentenças judiciais pode causar um
desequilíbrio nas finanças públicas. Isto é, dependendo da decisão, verbas
serão remanejadas, resultando em grupos de pessoas beneficiadas e outras que
continuarão desassistidas.
O tema acerca da judicialização das políticas públicas nestas áreas
é mais complexo do que sucintamente abordada neste artigo, devendo ser
analisado em outra oportunidade, tendo em vista a relevância da questão.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vê-se quão importante é haver um bom e eficaz planejamento
orçamentário, bem como conhecer, participar e acompanhar a elaboração,
execução e a fiscalização das leis orçamentárias29, eis que é a partir do orçamento
público que as políticas públicas do país serão traçadas. Nesta esteira destaca-se,
à guisa de exemplo sobre a importância dos cidadãos integrarem a elaboração
das leis orçamentárias, a administração do Município de Porto Alegre/RS, o
qual adota o orçamento participativo.
Aplicar o mínimo de investimentos em saúde e educação é buscar
assegurar e concretizar os anseios constitucionais, uma vez que tanto a saúde
como a educação são áreas de extrema importância, tendo em vista que a saúde
é o bem vital do ser humano e a educação possui o caráter potencializador de
informar, ensinar e conscientizar o cidadão do seu papel junto ao país em seu
País, medida essencial para que o Estado ofereça vida digna e de qualidade.
É através do orçamento público bem planejado que se dará todo o
desenvolvimento sócio-econômico da Nação, bem como a efetivação do
atendimento das demandas essenciais da população, primando pelo princípio
da dignidade da pessoa humana e pelo alcance dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil de construir uma sociedade livre, justa e solidária;
No orçamento participativo os cidadãos opinam e ajudam a decidir sobre quais políticas
públicas serão adotadas durante o exercício financeiro de mais períodos. Muitas prefeituras
adotaram a participação popular baseando-se no modelo de Porto Alegre (RS) como é o caso de
Saint-Denis (França), Rosário (Argentina), Montevidéu (Uruguai), Barcelona (Espanha), Toronto
(Canadá), Bruxelas (Bélgica), Belém (Pará), Santo André (SP), Aracaju (Sergipe), Blumenau (SC),
Recife (PE), Olinda (PE), Belo Horizonte (MG) Atibaia (SP), Guarulhos (SP) e Mundo Novo
(MS). Disponível em: < http://www2.portoalegre.rs.gov.br/op/default.php?p_secao=1>. Acesso
em: 23 nov. 2012.
29
150
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalidade e
reduzir das desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, cor, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
151
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
REFERÊNCIAS
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BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais
– o princípio da dignidade da pessoa humana. 2 e.d. Rio de Janeiro: Renovar,
2008.
BRASIL, Constituição Federal (1988). Planalto Central. Brasília, DF, 5
out.1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
Constitui%C3%A7ao.htm>Acesso em: 27 fev. 2012.
BRASIL, Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964. Estatui Normas Gerais de
Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da
União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Planalto Central.
Brasília, DF, 4 mai.1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/L4320.htm> Acesso em: 27 fev. 2012.
BRASIL, Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. Estabelece
normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e
dá outras providências. Planalto Central. Brasília, DF, 4 mai. 2000. Disponível
em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp101.htm> Acesso em:
27 fev. 2012.
HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 14. ed. São Paulo: Atlas,
2005.
MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO.
Publicações. Lei de Responsabilidade Fiscal. Cartilha sobre a Lei de
Responsabilidade Fiscal. Gestão Fiscal Responsável. p.2/3. Disponível em:
<http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/publicacao/
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ORÇAMENTO PARTICIPATIVO. Disponível em: <http://www2.portoalegre.
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RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. Curso de direito financeiro. São
Paulo: Saraiva, 2012.
SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos fundamentais:
152
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33. ed. São
Paulo: Malheiros Editores, 2010.
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 16 e.d.
Rio de Janeiro: Renovar, 2009
153
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
BASTIDORES DO INCENTIVO CULTURAL NO BRASIL: CRÍTICAS À LEI
ROUANET
BACKGROUND OF CULTURAL INCENTIVE IN BRAZIL: CRITICISM TO “LEI
ROUANET”
Marcella Souza Carvalho
Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba –
UNICURITIBA; Acadêmica do curso de Bacharelado e
Licenciatura em Dança da FAP – Faculdade de Arte do
Paraná; Conselheira da área artístico/cultural da Dança do
CONSEC – Conselho de Cultura do Estado do Paraná;
Conselheira do Fórum de Dança de Curitiba
Heloísa Fernandes Câmara
Mestre em Direito do Estado na Universidade
Federal do Paraná (2010). Graduada em Direito pela
Universidade Federal do Paraná (2008). Professora de
Direito Constitucional e Direitos Humanos no Centro
Universitário Curitiba. Participante do grupo de pesquisa
Constitucionalismo e Democracia (UFPR) e Direito e
Subjetividade (UFPR). Com experiência em pesquisa
em Direitos Humanos e Direitos Fundamentais, ditadura
militar brasileira e justiça de transição
SUMÁRIO: Introdução. 1. Relação Estado x Cultura – o dever do Estado na proteção dos
Direitos Culturais. 2. O Incentivo Fiscal à Cultura no Brasil. 3. A Lei Rouanet. 4. Análise
crítica da Lei Rouanet. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
RESUMO
O presente artigo visa analisar a situação da cultura no país partindo
de uma perspectiva de valorização dos Direitos Culturais, analisando portanto
como se dá a relação da cultura com o Estado, e quais os meios de, através das
chamadas políticas culturais, proteger esses direitos. Mapeando a trajetória e as
ações propostas, a lei de incentivo fiscal – Lei Rouanet –, apresenta-se como
principal foco das proposituras governamentais e como modelo majoritário
de incentivo à cultura no Brasil. eis que encarada não como um meio de
política governamental entre os demais instrumentos de incentivo, mas como o
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
próprio sistema de política cultural existente. Isso se deve em grande parte ao
fato da renúncia fiscal por parte das empresas chegar a até 100% do imposto
renunciado, causando exclusão e desigualdade na área, além de que o poder
de decisão do investimento em cultura e arte do Estado permanece junto ao
setor privado, especificamente ao crivo dos departamentos de marketing de
empresas privadas unicamente, restando pouca autonomia ao artista bem como
ao produtor cultural.
Palavras-Chave: Cultura, Direitos Culturais, Incentivo Fiscal, Lei Rouanet.
ABSTRACT
This article aims to analyze the situation of culture in the country
from the perspective of valuation of Cultural Rights, analyzing the relationship
between culture and State, and what are the means to protect these rights
through the so called cultural policies. Mapping the trajectory and the proposed
actions, the tax incentive law - Rouanet - presents itself as the main focus of
governmental propositions and as a principal model to encourage culture in
Brazil, as it is not seen as a means of government policy between other incentive
instruments, but as its existing cultural policy system. This is due largely to the
fact that tax breaks for companies reach up to 100% of the tax waived, causing
exclusion and inequality in the area, and that the decision-making on investment
in culture and art of the state sector remains close to private, subject to approval
of private companies marketing departments only, leaving little autonomy to
the artist and cultural producer.
Key Words: Culture, Cultural Rights, Fiscal Incentives, “Lei Rouanet”.
INTRODUÇÃO
Conforme estatísticas do IBGE e do IPEA, do ano de 2010, no Brasil,
44,7% da população não tem nenhum acesso a equipamentos de cultura. O total
de 2.953 municípios brasileiros não possui qualquer estabelecimento público com
investimento cultural, quer seja museus, casas de cultura de espetáculos ou cinema.
Em somente 905 cidades existem museus e/ou salas de espetáculo, representando
um total de 16,3% dos municípios do país. Há somente 01 biblioteca para cada
26,7 mil brasileiros. Apenas 14% dos brasileiros vão ao cinema pelo menos uma
vez por mês; 92% da população nunca frequentou museus; 93% nunca foram à
exposições de arte; enquanto 78% nunca assistiram a um espetáculo de dança.
155
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Tais dados revelam a carência e alarmante situação da cultura no país,
além de representarem uma afronta aos chamados Direitos Culturais, plasmados
na Constituição Federal de 198830. Infortuniamente esses direitos constituem
um núcleo descuidado de atenção da maior parte dos estudos constitucionais e
das demais áreas jurídicas.
Grande parte dessa situação, bem como da desvalorização cultural no
país se deve à dominadora política de incentivo fiscal, em especial a Lei Rouanet,
modalidade majoritária de financiamento à cultura no País. Por conseguinte, o
poder de decisão continua nas mãos das empresas em detrimento do Estado. O
formato de renúncia fiscal totaliza 80% do dinheiro público destinado à cultura.
Ou seja, o financiamento continua a ser, ainda hoje, amplamente dependente
das leis de incentivo.
Essa transferência do poder de decisão do investimento em cultura e
arte do Estado para o setor privado, considerando a atrativa e desejável renúncia
fiscal por parte das empresas, têm sido motivo de constantes críticas, polêmicas
e desigualdades no universo artístico-cultural. Ocorre que, ao limitar as fontes de
financiamento ao incentivo fiscal e, dessa maneira, ao crivo dos departamentos
de marketing de empresas privadas unicamente, pouca autonomia resta ao artista
e produtor cultural. As grandes empresas que possuem departamentos próprios
para seleção de projetos, nada mais fazem do que escolher quais, dentre os
aprovados pelo governo, são os mais adequados à sua política de comunicação.
A legislação de incentivo fiscal é apenas uma forma de introdução
dessas políticas, e não a própria política cultural de um governo. Fato é que
elas passaram a ser entendidas como o próprio sistema de política cultural do
Brasil, sendo que deveriam ser entendidas como mais um dos instrumentos de
proporção de financiamento e política cultural, para que não se firam os Direitos
Culturais plasmados na Constituição Federal Brasileira.
1 RELAÇÃO ESTADO X CULTURA – O DEVER DO ESTADO NA PROTEÇÃO
DOS DIREITOS CULTURAIS
Parafraseando Michel Prieur, o autor luso Vaco Pereira da Silva
(2007) estabelece que entre o Direito e a Cultura existe uma espécie de “relação
amorosa”, em que cada um dos pares “completa” o outro, com vantagens e
benefícios recíprocos, na medida em que a “cultura obriga o direito a evoluir e
Para os fins deste artigo considera-se o seguinte conceito de Direitos Culturais, de Francisco
Humberto Cunha Filho: Direitos Culturais são aqueles afetos às artes, à memória coletiva e ao
repasse de saberes, que asseguram a seus titulares o conhecimento e uso do passado, interferência
ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão de opções referentes ao futuro, visando sempre
à dignidade da pessoa humana.
30
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
o direito recompensa-a, tornando-a mais universal e democrática” (PRIEUR,
2004 apud SILVA, 2007, p.7). Nessa mesma linha de raciocínio, Francisco
Humberto Cunha Filho (2000, p.18) relata em sua obra Direitos Culturais
como Direitos Fundamentais no Ordenamento Jurídico acerca de como
conseguiu aliar suas duas grandes paixões: a Cultura e o Direito, praticando
esta espécie de “bigamia”.
Em que pese a existência de uma relação indissociável entre
a Cultura e o Direito, a área da cultura tende a ser vista como acessória no
conjunto das políticas governamentais de Estado, qualquer que seja a instância
administrativa. Tanto é que na maioria das vezes só se vê os militantes da área
cultural (criadores, produtores, gestores, etc.) como únicos defensores da ideia
de que a cultura está incluída obrigatoriamente em todos os aspectos da vida
da sociedade e de que, sem ela, os planos de desenvolvimento sempre serão
incompletos e, conseqüentemente, sem sucesso.
Fato é que a cultura é um componente estrutural e estruturante da
Constituição. No entanto, ainda falta à maioria dos cidadãos e dos gestores
estatais reconhecer o papel estratégico das políticas culturais na promoção e
proteção dos direitos culturais. Imprescindível rememorar que os direitos
culturais vêm inexoravelmente acompanhados dos respectivos deveres culturais,
de responsabilidade não apenas do Estado, mas de múltiplos atores sociais.
É dever do Estado, como direito fundamental e de personalidade,
dispor de recursos financeiros no fomento e na implantação de políticas
públicas que venham a incrementar o acesso à criação e à fruição dos bens
culturais e o direito à informação, fazendo da cultura o veículo mais eficaz na
inclusão social e reforçando-a como um direito fundamental dos indivíduos
(MAMBERTI, 2003, p.17).
O Estado tem múltiplos papéis na missão de garantidor do pleno
exercício dos direitos culturais, passíveis de síntese no asseguramento de
liberdades, na entrega de bens e serviços e na realização de estímulos positivos
e negativos, conforme os limites constitucionais. A programaticidade
de muitas das normas de direitos culturais, por seu turno, significa a
possibilidade de adaptação da forma de concretizá-las segundo distintos
programas políticos. Desse modo, por exemplo, quando a Constituição
brasileira determina que “a lei estabelecerá incentivos para a produção e o
conhecimento de bens e valores culturais”, o legislador, em dado momento,
pode entender que os referidos incentivos advirão de renúncia fiscal; noutro,
pode avaliar que o mais adequado é que o Estado diretamente os forneça.
(CUNHA FILHO; VIEIRA COSTA, 2011, p.12).
Evidente que a sociedade também deve colaborar para que se efetivem
os direitos fundamentais culturais, pois somente dessa forma pode-se afirmar
157
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
que se vive em uma sociedade democrática, onde os cidadãos têm iguais direitos
de desenvolver plenamente sua personalidade (LOPES, 2008, p.39).
Para Olivieri (2004, p.57), as teorias neoliberais têm a tendência de
desqualificar o papel do Estado na gestão da sociedade, incluindo a produção cultural.
Referidas teorias transferem totalmente para o mercado todos os investimentos e
atividades, defendendo fundamentalmente que a empresa privada age melhor do
que o Estado. Isso porque seria mais rápida e eficiente e otimizaria a verba investida.
Todavia, ainda que possa possuir maior eficiência, o mercado
proporciona apenas parte das manifestações culturais: aquelas que correspondem
ao regramento de produção de lucros. Ora, não só essas manifestações são
dignas de proteção e objeto de fomento. E, havendo a possibilidade de conciliar
os incentivos públicos e privados porque não o fazer? Fato é que o modelo de
atuação do Estado repercute consequências diretas no modo como a cultura é
considerada e encarada pela sociedade.
O Estado enquanto garantidor das variadas formas de produção
cultural deve então ter sua atuação discutida e delimitada. Em especial, deve
ser analisada a forma como será procedida a distribuição da verba, de modo a
evitar o desvio e o clientelismo.
Entre outras razões, este mercado é insatisfatório pois exclui grande
parte da população dos processos de produção, do consumo de bens culturais e
dos modos de manifestação cultural que muitos gostariam de exercer, mas que
por motivos econômicos não podem. Na visão de Brockmann (1995, p. 269),
“esse mercado carece de dinamismo, de produtividade, de competitividade,
e tende a criar súditos, e não cidadãos da vida cultural. E de que maneira
poderia dar-se essa maior presença do Estado? O assunto, como se sabe, é
polêmico, devendo-se caminhar com cautela”.
Segundo Albino Rubim (2009, p. 32), nos últimos cem anos, o percurso
histórico das políticas culturais foi permeado por propriedades como ausência,
autoritarismo e descontinuidade, sendo esta última também mencionada pelo
autor como “instabilidade” e compreendida como uma “conjugação de ausência
e autoritarismo”. O autor ainda estabelece como “tristes tradições e enormes
desafios” as políticas culturais no Brasil (Rubim, 2007).
Trata-se, em suma, de falta de ambientes e condições que propagassem
políticas culturais nos diversos momentos históricos nacionais. A verdade é que
a cultura necessita e sempre necessitou de subsídios, recursos e condições para
sobreviver, e que infelizmente permanece ausente enquanto preocupação por
parte dos gestores estatais, e também pela sociedade, que muitas vezes não a
encara como área de conhecimento e saber igualitariamente às demais. Questões
como a saúde, segurança e educação permanecem como as mais requisitadas
para debates e impasses políticos.
158
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
2 O INCENTIVO FISCAL À CULTURA NO BRASIL
Com o fim da ditadura, o setor da cultura até então inserido no
Ministério de Educação e Saúde (passando a compor o Ministério de Educação
e Cultura em 1953), teve sua autonomia ministerial no ano de 1985 (governo de
José Sarney). Ainda sim, sua implantação foi um tanto complicada e instável.
Nessa época, várias áreas depararam-se com o deslocamento do papel
estatal antes imperioso, para o campo privado e para a sociedade enquanto
coletivo. O Estado transferiu parte das responsabilidades para a sociedade civil,
afastando de certo modo seu papel de pleno garantidor de direitos.
Outro motivo para que houvesse essa transferência, é que para que se
garantisse o acesso e a produção da cultura, não se podia contar somente com
a receita direta, advinda unicamente do Estado. Em outras palavras, “não se
pode reduzir a produção cultural àquelas sustentáveis pela sua receita direta”
(OLIVIERI, 2004, p. 29). Ainda, aquelas produções destinadas a um público
maior, geralmente não auferem receita direta suficiente que custeie sua produção.
Por isso, parte da produção cultural deve buscar soluções de
financiamento externas à sua própria produção, alicerçando-se em políticas
culturais de Estado, na benevolência das doações dos amantes das artes, nos
patrocínios decorrentes do marketing cultural, ou, como predominantemente
ocorre, nas leis de incentivo fiscal. Ou seja, o Estado que antes agia diretamente
passa a transferir parte ou a totalidade desta responsabilidade para o setor
privado e para a sociedade.
O marco inicial desse deslocamento de responsabilidades foi a criação
da Lei Sarney, em 02 de julho de 1986, sendo a primeira lei de incentivo fiscal
à cultura no país. Foi criada com a intenção de disponibilizar mais verbas para
custeio das produções culturais, permitindo que o próprio mercado realizasse a
escolha da atividade cultural que seria patrocinada. Para isso, previa a concessão
de benefícios fiscais federais para as empresas que investissem em cultura, na
modalidade denominada mecenato. A Lei Sarney vigorou de 1986 a 1990,
quando seria então substituída pela Lei Federal de Incentivos Fiscais nº 8.313
de dezembro de 1991, a famosa Lei Rouanet.
Tal criação corroborou a instabilidade mencionada porque quebrou
uma continuidade de incentivo direto advinda das inaugurações governamentais
pelo ministério e demais órgãos públicos. Com isso, o incentivo proveniente
da ação estatal diretamente, através do Ministério da Cultura e demais órgãos
públicos, reduzia-se, haja vista a nova propositura da lei de que as verbas
fossem buscadas no mercado. Só que este dinheiro em boa medida era público,
decorrente do mecanismo de renúncia fiscal. Apesar disto, o poder de decisão
era privatizado, pois se desloca do Estado para o mercado.
159
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Para Rubim (2009, p. 32): “Outra vez a articulação entre democracia
e políticas culturais se mostrava problemática. O Estado persistia em sua
ausência no campo cultural em tempos de democracia”.
Quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a presidência, Francisco
Weffort assumiu o Ministério da Cultura. O financiamento cultural advindo da
lei de incentivo fiscal incorporou-se derradeiramente como o próprio modelo
de política cultural vigente à época, já que a política governamental de FHC era
de claro estímulo à utilização das leis de incentivo pelo mercado, o que acabou
por despertar maiores críticas por parte das áreas artístico-culturais com relação
a essa retirada do Estado da decisão sobre políticas culturais, já que o uso de
dinheiro público subordinado a decisão privada aumentou significativamente.
A transferência do poder do Estado para o mercado no governo FHC afirmouse ainda mais com publicação da cartilha “Cultura é um bom negócio”, pelo
Ministério da Cultura. Lançada para explicar o funcionamento e trâmites da Lei
Rouanet, a cartilha transformou-se em símbolo da política privatizante sobre a
cultura nacional.
Ocorre que, desde a implementação da Lei Sarney, as políticas
de incentivo fiscal têm sido confundidas com o próprio objeto das políticas
culturais no país, pois assumiram uma predominância esmagadora frente
às demais políticas de cultura existentes, criando uma inesgotável e viciosa
dependência mercantil, e, consequentemente, desigualdades nas áreas culturais.
O fato da dedução fiscal, aliado às condições do marketing cultural,
trouxe posição de conforto e comodidade (principalmente para as empresas
investidoras) para que esta fosse encarada não como mais uma forma de política
cultural, mas como a própria política de cultura existente no país, maneira como
atualmente é vista pela maioria dos cidadãos.
Os benefícios fiscais à cultura existentes no Brasil podem se dar
nos âmbitos federal, estadual e municipal. O governo, representado por estes
entes federados, é quem aprova os projetos apresentados; o Produtor Cultural
(pessoa física ou jurídica representante do segmento artístico a que se destinará
o patrocínio) é o proponente dos projetos, e também o receptador dos recursos
e responsável juntamente com o Governo pelo desenvolvimento do projeto; e a
Empresa patrocinadora ou investidora (que podem também ser pessoa física) é
quem destina recursos para os projetos aprovados e recebe os benefícios fiscais.
A Empresa patrocinadora/investidora pode ser, a nível federal,
tributada em seu lucro real (aplicação do Imposto de Renda); a nível estadual
contribuinte do ICMS; e a nível municipal contribuinte do ISS ou IPTU, para
que possa haver a devida dedução fiscal. O volume de deduções previsto para
a atividade cultural está limitado a 4% (quatro por cento) do Imposto de Renda
devido pela empresa (aplicados sobre a alíquota principal de 15% de imposto
160
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
de renda que incide sobre o lucro real) e 6% do IR devido pela pessoa física.
(BRASIL/MINC, 2011).
Em sua essência, o incentivo fiscal é uma estratégia de aplicação do
dinheiro público objetivando estimular o investimento privado (SALGADO;
PEDRA; CALDAS, 2010, p.95). Ou seja, é um instrumento de multiplicação
de recursos em áreas onde o Estado e as empresas têm possibilidades conjuntas
de ganho. (SARKOVAS, 2005) “A premissa óbvia é a existência de interesse e
dinheiro privado na operação. O incentivo fiscal transferiu a responsabilidade
do Estado sobre a cultura para o setor privado”. Assim, o Brasil deparouse ao longo dos anos com o cenário de investimentos em cultura obedecendo
somente aos interesses dos departamentos de marketing das empresas e à lógica
de mercado.
3 A LEI ROUANET
Com a suspensão em 1990 dos benefícios da Lei Sarney e dos
outros incentivos fiscais vigentes à época no governo Collor, o mecanismo de
incentivo às atividades culturais foi restabelecido pela aprovação da Lei 8.313
de 23 de dezembro 1991, conhecida popularmente pelo nome do então ministro
da Cultura Sérgio Paulo Rouanet. Compunham o contexto político-econômico
a abertura de mercado, o processo de privatização e a remodelação do setor
público para uma sociedade auto-gestora, ou seja, como já apresentado nos
itens anteriores, o Estado transferia para o setor privado o poder de decisão
sobre o financiamento cultural – princípios do Estado Neoliberal:
Como reflexo dessa descentralização governamental e consequente
transposição da responsabilidade para o empresariado, o setor
cultural ficou enfraquecido e a criação da Lei Rouanet tinha objetivo
de resguardar as consequências da avalanche cultural importada que
estaria por vir com o neoliberalismo implantado (SÁ SILVA, 2012).
A Lei Rouanet instituiu o Programa Nacional de Apoio a Cultura
(PRONAC)31, cuja finalidade é a captação e canalização de recursos para os
diversos setores culturais, por meio da implementação de concessão de incentivo
fiscal a contribuintes de Imposto de Renda que custeiam projetos culturais, via
patrocínio ou doação, modalidade regularmente conhecida como “mecenato”
(OLIVIERI, 2004, p.79). O PRONAC tende, através da proteção à diversidade
O PRONAC visa apoiar e direcionar recursos para investimento em projetos culturais. Seus
produtos e serviços resultantes serão de exibição, utilização, e circulação públicas, não podendo
ser destinados ou restritos a circuitos privados ou coleções particulares (BRASIL/MINC, s/d, p.3).
31
161
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
cultural, a facilitar, apoiar, estimular e desenvolver a produção e difusão de bens
culturais de valor universal das mais variadas áreas e segmentos culturais32.
Inúmeros são os projetos culturais que podem ser beneficiados com o
apoio instituído pela Lei Rouanet através do PRONAC, dentre eles: concessão de
bolsas de estudo, pesquisa e trabalho no Brasil e exterior; concessão de prêmios
a criadores, autores, artistas, técnicos e suas obras em concursos e festivais
realizados; promoção de cursos de caráter cultural ou artístico; produção de
vídeos, discos, filmes e outros audiovisuais; edição de obras; exposições,
festivais, espetáculos; construção, manutenção e organização de bibliotecas e
museus; preservação de arquivos e acervos culturais; conservação e restauração
de prédios e monumentos tombados pelo poder público; restauração de obras
de arte; proteção ao folclore, artesanato e tradições populares; distribuição de
ingressos para espetáculos culturais, entre outros.
A Lei Rouanet (PRONAC) possui três formas de financiamento:
o Fundo Nacional de Cultura - FNC; os Incentivos Fiscais – Mecenato; e os
Fundos de Investimento Cultural e Artístico – FICART.
O FICART prevê a constituição de fundos de investimento em cultura
com isenção de Imposto de Renda nas operações de crédito, câmbio e seguro,
bem como rendimentos auferidos. funciona sob a forma de um condomínio,
sem personalidade jurídica e constituído por quotas emitidas sob as formas
nominativa e escritural. É um fundo sujeito às regulamentações da Comissão
de Valores Mobiliários (CVM) e ao regime tributário definido pela Secretaria da
Receita Federal, entretanto o mercado financeiro não o operacionalizou ainda,
inexistindo exemplos práticos de sua implantação, ou seja, o fundo não foi
ativado, razão pela qual não será aprofundado neste trabalho.
O FNC destina recursos diretamente a projetos culturais, sob as
formas de apoio a fundo perdido ou de empréstimos reembolsáveis. Os
projetos são apresentados por entidades públicas e privadas sem fins lucrativos,
através de transferência de até 80% do valor total do projeto, sendo 20% a
contrapartida do proponente. (OLIVIERI, 2004, p.102). Por ser um fundo
proveniente de arrecadação, de verbas provenientes de várias fontes e de
outros serviços públicos, permite ao MinC realizar o investimento diretamente
em projetos culturais, tendo como objetivo “além de preservar o patrimônio
cultural brasileiro, preocupar-se com uma produção cultural que garanta a
regionalização, a diversidade, o aperfeiçoamento humano, o experimental e a
vanguarda” (OLIVIERI, 2004, p.102).
Podem ser aprovados pelo PRONAC as seguintes áreas e segmentos: teatro, dança, ópera, circo,
mímica; produção cinematográfica, videográfica, fotográfica, discográfica; literatura; música;
artes visuais, artes gráficas, gravuras, cartazes, filatelia; folclore e artesanato; patrimônio cultural;
humanidades; rádio e televisão educativas de caráter não comercial; culturas tradicionais e étnicas.
32
162
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Podem ser proponentes pessoas físicas e jurídicas, enquadrando
seus projetos em uma das oito áreas de produção cultural assim divididas
pelo FNC: artes cênicas, artes integradas, artes plásticas, audiovisual,
humanidades, música, patrimônio cultural e outros, podendo estar
circunscritos em todas as regiões do país ou ainda ser realizados no exterior.
O proponente deverá encaminhar seu projeto via correspondência dirigida
ao MinC, onde será submetido ao respectivo processo de análise para o
recebimento de verbas do Fundo.
Passa-se agora à análise do procedimento de maior adesão e
predominância da Lei Rouanet: O mecenato. Através do incentivo fiscal deste
mecanismo, pessoas físicas ou jurídicas podem aplicar parte do Imposto de
Renda, a título de doações ou patrocínios, tanto no apoio direto a projetos
culturais, como através de contribuições ao FNC (SALGADO; PEDRA;
CALDAS, 2010, p. 88).
O contribuinte pessoa física pode aplicar em projetos culturais até 6%
do Imposto de Renda devido, enquanto que para o contribuinte pessoa jurídica
este percentual é de 4%. O apoio através deste mecanismo pode se dar de duas
formas: a primeira, através do artigo 26, permite que o doador ou patrocinador
deduza do Imposto de Renda os valores contribuídos em favor de projetos
culturais aprovados. No caso de o financiador ser pessoa física, a dedução será
de 80%, para as doações, e de 60%, para patrocínios (SALGADO; PEDRA;
CALDAS, 2010, p.88).
Para financiador pessoa jurídica, as deduções serão tributadas com base
no lucro real, sendo de 40%, no caso de doações, e de 30%para os patrocínios.
A segunda forma, dá-se através do artigo 18, pelo qual os financiadores podem
abater até 100% do Imposto de Renda, quando do investimento em projetos
de áreas consideradas menos atrativas, como, por exemplo, música erudita e
instrumental e exposição de artes visuais, dentre outras (SALGADO; PEDRA;
CALDAS, 2010, p.89)
A análise e aprovação dos projetos é prerrogativa do MinC, com o
auxílio da Comissão Nacional de Incentivos à Cultura (CNIC), que atua como
órgão consultivo nos processos de aprovação dos projetos, possuindo também
a função de propor medidas de aperfeiçoamento do PRONAC e assumir
atribuições específicas solicitadas pelo MinC.
Ainda que movimente quase a totalidade dos recursos hoje dispostos
no mercado cultural – e talvez justamente por este motivo –, a Lei Rouanet
também permanece permeada por falhas, restrições e desigualdades, assunto
que será melhor delineado no item seguinte. A principal crítica tecida com
relação à Lei de Incentivo é a de que representa um mero repasse de dinheiro
público para a aplicação privada, e não exatamente um instrumento de incentivo
163
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
(SARKOVAS, 2005), além da centralização constante dos recursos para o Eixo
Rio – São Paulo. Ainda, não há exigência de contrapartida pelas empresas, que
podem inclusive lucrar com as produções apoiadas:
A concessão de 100% de incentivo fiscal retirou das empresas a
responsabilidade de custear parte dos projetos. Com o custo zero
no seu investimento, o incentivo fiscal é um mero repasse de verbas
do Estado e a parceria da iniciativa privada não existe (SALGADO;
PEDRA; CALDAS, 2010, p.98).
Com vistas à esse estigma criado em torno da Lei de Incentivo, foi
proposta pela primeira vez uma revisão pública da Lei Rouanet, com o objetivo
de sanar as defeituosas arestas perpetuadas ao longo dos anos no meio cultural:
O governo Lula, através do Ministério da Cultura, propôs, pela primeira
vez, uma revisão pública da Lei Rouanet, acabando com os 100% de
renúncia, que tem se mostrado um mecanismo perverso, inibindo que
outras modalidades de financiamento entrem em funcionamento no
País. A proposta de mudança apresentada pelo governo foi duramente
criticada pelos meios de comunicação, órgãos de imprensa, artistas e
produtores culturais do eixo Rio-São Paulo. As severas críticas foram
realizadas justamente pelos maiores beneficiados das leis de incentivo na
forma em que atualmente se apresenta. A reforma da Lei Rouanet prevê o
fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura, o fim da dedução de 100%
e maior autonomia do MinC na escolha de projetos que realmente atendam
ao interesse público (SALGADO; PEDRA; CALDAS, 2010, p.99)
A revisão pública culminou na elaboração, em 2009, de proposta
de alteração da Lei Rouanet, concluindo-se que o PRONAC seria substituído
pelo Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura – PROCULTURA,
sendo o deputado Pedro Eugênio o relator da Proposta de Lei - PL 6722/10, em
trâmite em Brasília aguardando aprovação33. O PROCULTURA é composto por
quatro mecanismos: Fundo Nacional da Cultura, Incentivos Fiscais a Projetos
Culturais, Fundo de Investimento Cultural e Artístico – FICART e Vale Cultura.
A principal mudança no âmbito dos Incentivos Fiscais é a graduação
da renúncia, permitindo que pessoas físicas e jurídicas tenham direitos ao mesmo
Aprovada no dia 08 de dezembro de 2010 pela Comissão de Educação e Cultura O projeto já está
sendo apreciado na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados. Assim que for
votada na CFT, segue para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Depois será discutida no
Senado. Se sofrer mudanças, volta para as comissões da Câmara.
33
164
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
percentual de dedução, no caso de doações e copatrocínios incentivados: pessoas
físicas e jurídicas, tributadas com base no lucro real terão direito a deduzir do
imposto de renda até 80% do valor apoiado, a título de doação incentivada. Para
o patrocínio – denominado de copatrocinio de acordo com o projeto de lei, as
pessoas físicas ou jurídicas poderão deduzir 40%, 60% ou 80% do valor apoiado.
Com relação às mudanças propostas para o FNC, Haverá repasse
automático de 30% dos recursos do Fundo Nacional de Cultura para estados e
municípios, criação de novos fundos setoriais e recursos em parcerias públicoprivadas para a construção de espaços culturais. Destaca-se ainda sua ênfase
como o principal mecanismo de fomento, incentivo e financiamento à cultura e
o fortalecimento da ação do poder público sobre o financiamento cultural
Destaca-se ainda o Vale Cultura, que, embora também seja um dos
quatro mecanismos do Procultura, deverá ser criado por lei específica para a
qual já existe um projeto de lei em trâmite no Congresso. O PL nº 5.798 de
200934, se aprovado, instituirá o Programa de Cultura do Trabalhador e criará
o Vale Cultura, primeira política pública voltada para o consumo cultural no
Brasil (SALGADO; PEDRA; CALDAS, 2010, p.101)
A proposta concede R$ 50,00 (cinquenta reais) para trabalhadores,
servidores públicos federais e estagiários que recebem até cinco salários
mínimos. Os aposentados também terão direito ao benefício, mas no valor de
R$ 30,00 (trinta reais) – nesse caso o recurso será disponibilizado pela União.
Para os trabalhadores que recebam mais de cinco salários, receberão o benefício
desde que esteja garantido o atendimento à totalidade dos empregados que
ganham abaixo desse patamar. O trabalhador poderá ter descontado do seu
salário até 10% do valor do Vale Cultura.
A nova Lei Rouanet prevê ainda mudanças com relação à preservação
do direito autoral, que ganha fim educacional após terminar a vida comercial
do produto. Em suma, percebe-se que o Projeto de Lei apresentado e em vias
de aprovação traz mudanças significativas para o futuro da cultura no país,
principalmente pela extinção da possibilidade de dedução dos 100%, permitidos
pela lei em vigor. Todavia, algumas críticas permanecem com relação a esse
mecanismo, como por exemplo O fato de o PROCULTURA continuar sendo
baseado na renúncia fiscal, fator incômodo para os agentes culturais. Referidas
considerações serão feitas no item que se segue.
Alia-se à propositura da nova Lei de Incentivo a esperada instituição
da PEC 150, a qual partiu da Câmara dos Deputados, e encontra-se em processo
Previa-se a aprovação do Vale Cultura para o primeiro semestre de 2012, entretanto, em
razão dos senadores terem modificado o PL incluindo ainda a possibilidade de usar o dinheiro
para compra de revistas e jornais, a Câmara terá que analisar novamente a proposta antes de
encaminhá-la para a sanção da presidente da República.
34
165
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
de aprovação pelo plenário da Câmara – já tendo sido aprovada por algumas
Comissões por unanimidade, como por exemplo a Comissão de Educação e
Cultura. A PEC objetiva estabelecer uma dotação orçamentária da União para a
Cultura de, pelo menos, 2% dos impostos federais, 1,5% dos impostos estaduais
e distritais e 1% da arrecadação de impostos municipais35.
Isso porque, por obviedade, os recursos do Estado para a cultura
nunca serão menores que 2% dos orçamentos. Entretanto, ainda há resistência
da área econômica do governo, a qual se mostra contrária à essa vinculação.
Não se pode olvidar que, atualmente, o orçamento da cultura representa apenas
0,5% das receitas federais, abaixo inclusive do mínimo de 1% recomendado
pelas Nações Unidas. Acaso aprovada, a PEC 150 viabilizará a tão sonhada
autonomia do Ministério da Cultura na execução e implantação de sua política
pública, elaborando estratégias e investindo no desenvolvimento cultural
(RUBIM, 2010, p.18).
4 ANÁLISE CRÍTICA DA LEI ROUANET
A Lei de Incentivo que domina a política cultural no país completou
vinte anos em 2011, e, juntamente com a expectativa de instituição do
PROCULTURA, deu-se a continuidade da centralização dos recursos e da
desigualdade gerada por este mecanismo. Ainda que tenha estimulado uma
indústria cultural no meio empresarial crescente nos últimos anos, toda a
produção artística que não dialoga com o mercado permaneceu excluída,
sendo até hoje constantemente ameaçada pela falta de mecanismos estatais
responsáveis por suprir da infraestrutura, da pesquisa e do acesso à cultura.
O Incentivo Fiscal foi criado com objetivo de promover produção
e fruição cultural, todavia restou deturpado devido à instituição do modelo
neoliberal de Estado não interventor que se instalou no Brasil na década de
1990, passando para o mercado a responsabilidade sobre as decisões.
Dessa maneira, a Lei Rouanet tornou-se um meio de manutenção de
poder e instrumento de exclusão social. Ocorre que com o incentivo da produção
cultural por esse mecanismo, há um paradigma entre cultura e mercado,
favorecendo os campos econômicos e sociais privilegiados e agindo em
Ressalta-se que com a referida PEC, estabeleceu-se proteção Constitucional no que se refere
a investimento mínimo para a cultura – ainda que pareça ínfimo as porcentagens estabelecidas
pela PEC 150, destaca-se que o repasse atual é consideravelmente menor. Por exemplo, no Estado
do Paraná o índice de orçamento público para a cultura é de aproximadamente 0,3%. No caso
do Município de Curitiba, a Cultura recebeu 0,89% dos recursos municipais para o ano de 2012
(Fonte: Redação Gazeta do Povo, 22/09/2012).
35
166
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
detrimento das comunidades, etnias, artistas e culturas periféricas, justamente
os que mais precisam.
Conforme já visto, as decisões permanecem nas mãos do patrocinador,
e, consequentemente, do mercado. Eles são os maiores beneficiados e, graças ao
sistema que só permite patrocínio de empresas com lucro presumido, somente
grandes empresas são patrocinadoras; o restante vem do próprio governo. Nas
palavras do cientista político Manoel de Souza Neto (2012):
O mercado e o mundo publicitário assumem a forma de agentes
intermediários do modelo, que de tão afunilado gerou uma
moeda de troca ilegal, um cambio negro. Políticos, agências de
publicidade, departamentos de marketing e captadores exigem
comissões “extras” para liberarem recursos, tornando os fazedores
de arte em pagadores de propina, criminalizando o artista, que
acaba refém da “turma” instalada ao centro do poder. Se por um
lado a distribuição de recursos da Lei Rouanet já supera mais
de 10 bilhões de reais desde a década de 1990, chegando na
atualidade a mais de um bilhão de reais ao ano, de fato 95% dos
patrocínios ainda vem das empresas do governo.
Mais grave ainda é a questão da concentração de beneficiados por metro
quadrado, já que os dados revelam que 80% das verbas ficam no eixo Rio-São
Paulo. Manoel de Souza Neto (2012) rememora os apontamentos do ex-secretário
do Ministério da Cultura nas gestões de Gil e Juca Célio Turino de que:
3% do total dos proponentes de projetos culturais captam
50% dos patrocínios. Outros 20% de proponentes ficam com
o restante dos recursos, sendo que quase 80% dos autores de
propostas culturais a serem incentivadas nada captam. Uma
concentração inacreditável, em que 3% significam menos de 100
pessoas, empresas ou instituições no país. Mesmo com o sucesso
do cinema nacional, a produção gerada pela Lei de Incentivo
não chega nem a 10% da população; e este dado é otimista, pois
inclui um ou outro sucesso de bilheteria.
A ilustração a seguir, demonstra a concentração de verbas no
território nacional:
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Concentração das Verbas da Lei Rouanet (Fonte: BRASIL/MINC, 2011)
A distribuição de recurso Lei Rouanet já supera os R$ 10 bilhõe desde a década de 1990, de
acordo com dados do Ministério da Cultura
No ano de 2009, 34,79% da renúncia fiscal concentrou-se somente no
estado de São Paulo, sendo 34,62% no Rio de Janeiro. Para os demais estados,
a renúncia não atingiu os dois dígitos. Dezessete estados ficaram abaixo de 1%,
e, em três deles, o índice foi zero. Em que pese tenham os estados de São Paulo
e Rio de Janeiro dominado o equivalente a 70% dos recursos, a concentração
localizada vai muito além disso: não se distribui em municípios, tampouco
nas capitais, mas tão somente em alguns bairros delas. Para além do eixo RioSão Paulo, a verba se concentra em bairros como Pinheiros, Jardins e Leblon.
(CAROS AMIGOS, 2012)
Fato é que, a esperança depositada no PROCULTURA não
prosperará, uma vez que o fato de continuar sendo baseado na renúncia fiscal
segue incomodando os agentes culturais. Mesmo depois da provável aprovação
da nova Rouanet, permanecerá a transferência de uma competência que é do
estado para o campo privado, continuando com a extrema desigualdade entre
os incentivos.
Exemplifica essa lamentável situação o fato de que o orçamento para
o Minc em 2011 foi de 1,64 bilhão de reais – um dos maiores dos últimos
anos –, enquanto que a cantora baiana Maria Bethânia teve um projeto de 1,35
milhão de reais aprovado para fazer uma produção artística em um blog.
Traçando-se um paralelo de análise exemplificativa, cita-se a recente
construção da montadora automotiva Nissan, na cidade de Resende, no Rio de
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Janeiro, que será inaugurada em janeiro de 2014, ao custo de 2,6 bilhões. Para
sua instalação, que contará com aproximadamente com 350 funcionários, a
empresa recebeu diversos incentivos fiscais dos governos estadual e municipal.
Do Estado, serão R$ 5,9 bilhões como financiamento de 80% do ICMS
(Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre o investimento.
O crédito poderá ser pago em até 50 anos, com carência de 30 anos. Pela
Prefeitura de Resende, a fábrica ganhou isenção de IPTU por 20 anos e alíquota
de ISS (Imposto Sobre Serviços) de 0,05% para os custos com a obra, quando
o normal seria de 3%. O município concedeu isenção total do ITBI (Imposto
sobre Transmissão de Bens Imóveis) e prometeu devolver à empresa parte do
ICMS com a receita gerada por ela36.
O que se dá neste caso é um exemplo taxativo do que a guerra
fiscal pode causar: quantias exorbitantes concedidas por meio de créditos
dados irregularmente em incentivos fiscais. Fato é que cada vez mais se
operam dispositivos legais criados para beneficiar por meio dos créditos de
impostos tais como o ICMS, indústrias e importadores na grande maioria
dos estados brasileiros. Os dispositivos, na sua maioria, são arquitetados
sob a forma de decretos, sem necessidade de serem aprovados nas Câmaras
Legislativas. Com a concessão incontrolada de benefícios fiscais, os Estados
ficam sem recursos para pagar suas próprias contas, uma verdadeira afronta
e desrespeito ao sistema tributário nacional.
Não é preciso muito para que, depois da análise dos números acima
demonstrados, se chegue à conclusão de que o incentivo fiscal promova a
desigualdade social, e, principalmente, que a cultura é desvalorizada pelos entes
governamentais, em detrimento de pretensos incentivos a empresas estrangeiras.
É vergonhoso contar com um orçamento de apenas 2 bilhões (orçamento
previsto para o ano de 2013 para o Ministério da Cultura, que fica atrás apenas
do Ministério da Pesca no país), enquanto que para uma montadora estrangeira
seja concedido quase 6 bilhões de reais a título de renúncia fiscal para sua
instalação. Frise-se ainda que, evidentemente, o número de envolvidos na área
cultural é imensamente maior do que o de envolvidos na instalação de uma
empresa do ramo automobilístico no Brasil, até mesmo maior do que o próprio
ramo automobilístico.
Retomando a análise específica do campo cultural, destaca-se o
seguinte pensamento de Célio Turino, administrador cultural e ex-secretário da
Cidadania Cultural do MinC (CAROS AMIGOS, 2012):
Dados retirados da Folha de São Paulo, “Nissan transfere sede brasileira do Paraná para o Rio de
Janeiro”, de Venceslau Borlina Filho. Acessada em: 20 de novembro de 2012
36
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A renúncia fiscal não agrega novos recursos à cultura, apenas
transfere recursos arrecadados por toda a sociedade para a decisão
de alguns. Impostos que seriam pagos de qualquer maneira tornamse ferramentas de promoção e marketing privados. E sob uma lógica
que não é pública, e sim de mercado. [...] A Lei de Incentivo não
passa de ficção. O projeto é aprovado, mas não se tem acesso ao
decisório, que é formado pela diretoria da empresa. É a política de
imagem, de marketing.
Projetos que podem ser realizados com o incentivo privado são
custeados com o incentivo, enquanto que os que eram função do poder público
financiar com verba orçamentária foram de encontro também ao incentivo fiscal.
No ano de 2011, 3.516 projetos foram incentivados com o montante de R$ 1,25
bilhão de reais. Todavia, o valor autorizado soma a monta de R$ 3,64 bilhões
de reais. Da totalidade dos recursos, 95% foram investidos na modalidade de
patrocínio. (CAROS AMIGOS, 2012)
O dinheiro público para a cultura é, em sua maioria, distribuído via
renúncia fiscal, representando 80% dos recursos. Pela renúncia fiscal, foram
disponibilizados12 bilhões de reais nesses vinte anos de Lei Rouanet. Entretanto,
50% desses recursos estão concentrados em somente 100 captadores. A outra
metade fica com 20% deles. Enquanto que os outros proponentes não captam
nada. Ainda, apenas 5% dos projetos aprovados são efetivamente realizados.
Pelos índices do Ministério da Cultura, os maiores incentivadores via mecenato
são os bancos e as grandes estatais: Petrobrás, Vale do Rio Doce, Banco do
Brasil, Bradesco e Fiat Automóveis. (CAROS AMIGOS, 2012)
O resultado dessa prática desleal são os aportes milionários de verbas
advindas de renúncia fiscal para superproduções internacionais, tais como o
Cirque de Soleil ou os festivais da Disney, produções voltadas essencialmente
ao entretenimento e que cobram valores excessivos nos ingressos.
Isso tudo reflete o equivocado entendimento de se misturar e encarar
como o mesmo o objeto das políticas culturais e das Leis de Incentivo. É
necessário entender e saber distinguir os dois que são bem diferentes. O que
ocorreu é que o Estado, pelo fato de não inovar em suas políticas públicas e
culturais, induziu esse pensamento de “fusão” de um e de outro, enquanto que a
distinção é grande. Não se pode encarar as leis de incentivo como portadoras do
lugar das políticas culturais, pois a primeira é apenas uma forma de introdução
dessas políticas, e não a própria política cultural de um governo.
Conforme destaca Leão (2004): “De meados da década de 1980 até
os dias de hoje, sucedeu que os incentivos fiscais se configuraram não como
uma parte de um projeto de política cultural – que deveria ser o seu papel – mas
passaram a ocupar o lugar da própria política cultural.”
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Há que ser considerado que por meio das Leis de Incentivo a
mobilização de artistas e produtores cresceu, sendo estes obrigados a sair a
campo em busca de patrocínio privado para o desenvolvimento de suas
atividades. Ainda, destaca-se a criação de associações de vários tipos, como
por exemplo para a promoção de projetos de natureza artística e cultural, e para
auxiliar a manutenção de instituições como museus, teatros, cinemas, espaços
culturais etc., tudo isso à parte da tutela do Estado.
Por outro lado, o que deveria ser mais um instrumento de proporção de
política cultural, hoje se tornou o ponto principal dos debates, deixando as Leis
de Incentivo de ser apenas um mecanismo de financiamento para as políticas
culturais para passarem a ser entendidas como o próprio sistema de política
cultural, dando pouca autonomia ao artista e produtor cultural em virtude de
limitar as fontes de incentivo às empresas privadas unicamente, e de reduzir a
demanda da oferta de produtos culturais à apenas um chancelador, qual seja o
diretor de marketing dessas mesmas empresas.
Assim, o artista estará sempre fadado a criar aquilo que o “mercado
cultural” busca no momento, muitas vezes deixando de lado suas próprias
inspirações e criações, por estas não se encaixarem no perfil das empresas
patrocinadoras. Isso quando tem a sorte de ser “escolhido”, pois o que está
mais do que evidente é que esse tipo de prática de Lei de Incentivo Fiscal
atende à demanda de grandes artistas e produtores, grandes companhias que
correspondam à altura aquilo que a empresa proporciona. Não é de todo ruim,
mas gera com toda certeza um mecanismo de exclusão evidente, pois o artista
autônomo, o produtor que não é amplamente reconhecido não tem o seu trabalho
patrocinado e vive lutando para sobreviver e mostrar suas criações.
Até quando produtores culturais de grande e pequeno porte lutarão
pelos mesmos recursos, num universo o qual se promove uma concorrência
desequilibrada com os produtores independentes? Não podemos mais submeter
os produtores culturais a criar de acordo com o que esperam as empresas
privadas, e sim impor a arte própria de cada artista como elemento cultural
inovador digno como qualquer outro de ser patrocinado, gerido e incentivado
pelo Estado, afinal, não é isso que ilustra o já mencionado art. 215 da
Constituição Federal? Um dos grandes questionamentos é quem está e quem
deve estar servindo a quem? A política servir à cultura ou a cultura à política?
E o que se diz de um entendimento amplo dessas duas vertentes instituindo
políticas de cultura proporcionais aos artistas e sociedade?
Para Helena Katz (2005), as leis de incentivo legitimam juridicamente
o Estado de exceção “pois promove a exclusão através do mecanismo de
inclusão [...]. Porque dizem respeito ao mercado, as leis de incentivo, ao
incluírem alguns, pespegam estrelas amarelas discriminatórias em todos os que
171
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
exclui”. O financiamento tem que ser sim reconhecido como um importante
mecanismo para a implementação de políticas públicas.
Todavia, para que esse mecanismo seja funcional e efetivo, é essencial
que seja acessório de um planejamento de gestões estratégicas diversificadas,
instigando na população uma postura de interesse e cobrança, para que haja
uma receptividade adequada e esse tipo de política cultural, que não deve em
hipótese nenhuma, ser o próprio sistema de políticas culturais gerido pelo
Estado, como vem acontecendo devido às influências causadas por este que
é o único mecanismo de incentivo financeiro. Se já proporciona bons frutos,
porque parar por aí julgando estar de bom tamanho? Porque não investir tempo
e ideias inovadoras nessa área de ações estatais, quando se tem milhares de
artistas esperando por essa chance?
Fica claro e evidente, portanto, que uma lei de incentivos fiscais
específica para a cultura não é o único instrumento capaz de carrear recursos
para o setor. O fato é que lamentavelmente os governos vêem nos incentivos
fiscais uma forma de oferecer recursos sem precisar, necessariamente, aumentar
de maneira efetiva seus orçamentos.
É imprescindível apresentar à população que é também público
essa situação atual, e como isso repercute e influência na vida cotidiana
de cada um, pois sabemos que cada indivíduo constrói em torno de si seu
próprio universo cultural, com seus gostos musicais, preferência por gêneros
de filme, lugares que freqüenta, livros que gosta de ler, etc., e lembrar o fato
de que isso também é cultura, e como tal deve ser legitimada coerentemente
pelo Estado Democrático.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para pleno exercício dos Direitos Culturais, assegurados
constitucionalmente, a relação entre Estado e Cultura deve se dar de forma
mútua, preservando especialmente a diversidade cultural e buscando superar as
desigualdades já instaladas. De forma direta ou indireta, o Estado não deve ser
somente um produtor de cultura, mas pode e deve ter a função de democratizar as
áreas de produção, distribuição e consumo. Cultura é fator de desenvolvimento.
A atuação do Estado esteve sempre permeada pelas ausências nas
políticas culturais, prevalecendo sempre interesses econômicos e políticos
em detrimento da real valorização da cultura e dos artistas. O incentivo fiscal
instituído juntamente ao modelo de Estado Neoliberal na década de 1990,
bem como a instabilidade do Ministério da Cultura, deturparam seriamente o
desenvolvimento e viabilidade da distribuição de recursos.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
A estruturação da Lei Rouanet faz com que o empresariado aplique
seus recursos, estrategicamente, somente em sua esfera de atuação e seu
alcance geográfico, social e estético. Isso se dá pelo fato de não existirem
mecanismos que obriguem, ou ao menos promovam a distribuição regional
de verbas para a cultura, situação que hoje deturpa, desiguala e promove
a exclusão do artista, produtor e gestou cultural. De acordo com o próprio
Ministério da Cultura, “o mecanismo de renúncia fiscal é intrinsecamente
ligado ao lucro e à liquidez das empresas”.
A pretensa aprovação da nova Lei de Incentivo – Procultura –, que
havia trazido esperança para os caminhos das políticas culturais tomarem um
novo rumo, já não é mais tão aclamada, diante do atual cenário de mudanças eu
seu Projeto de Lei. Ainda assim, permanece o desejo de que, de alguma forma, se
concretize uma real inclusão de toda forma de manifestação cultural e produção
artística, valorizando desde o artista autônomo até as grandes produções, bem
como que haja a descentralização da distribuição das verbas que hoje são fator
de desigualdade no campo cultural.
Não se pode mais admitir um modelo tão desigual instituído por um
governo que não destina nem 1% de seu orçamento público para a cultura,
tampouco que a decisão da produção cultural permaneça nas mãos dos
departamentos de marketing das empresas que visam somente a publicidade e
o lucro. A mudança necessária é também grande parte de se repensar conceitos
e comportamentos, pois não basta que o Estado faça a sua parte sem que a
sociedade dê o devido valor e prestigie as produções culturais, manifestações
artísticas e o profissional artista.
A Lei de Incentivo não precisa ser apenas revista, mas completamente
reinventada para cumprir os princípios culturais previstos na CF/88 nos artigos
215 e 216. Ainda assim cabe admitir, que quaisquer mudanças legais, podem
no máximo promover pequeno ajuste social diante de algo muito maior e que
não tem solução, que é a prática socialmente aceita de apropriação das relações
de poder (NETO, 2012). A cultura, apesar das leis de incentivo, da mídia, da
indústria cultural, ainda existe. Na verdade, resiste.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
A TEORIA DA IMPREVISÃO E A ONEROSIDADE EXCESSIVA
Marcelo Yudi Umeda
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Curitiba –
UNICURITIBA. Atua como Advogado.
Cleverson José Gusso
Mestre em Direito Empresarial pelo Centro Universitário
Curitiba - UNICURITIBA. Cursando Master em Derecho
Patrimonial Privado na Universidade Pablo de Olavide,
em Sevilha, Espanha. Aperfeiçoamento em Direito
Contratual pela Universidade Federal do Paraná - UFPR.
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná - PUCPR. Integrante do Grupo de Pesquisas
“Liberdade de Iniciativa, Dignidade da Pessoa Humana
e Proteção ao Meio Ambiente Empresarial: inclusão,
sustentabilidade, função social e efetividade”. Atua como
Advogado autônomo, como Coordenador do Núcleo de
Prática Jurídica do Centro Universitário Internacional
- Uninter, como professor do Centro Universitário
Curitiba - Unicuritiba (graduação), como professor da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR
(pós-graduação) e como professor orientador da Escola
da Magistratura do Trabalho - EMATRA (pós-graduação)
1 INTRODUÇÃO
A urgência das relações contratuais contemporâneas corresponde
às mudanças que a sociedade ocidental vem sofrendo de forma abrupta nos
últimos duzentos anos. O advento de uma forma de produção fabril mais
acelerada, conjuntamente com um avanço da técnica e uma nova estruturação
das instituições tanto públicas quanto privadas geraram, por conseguinte,
uma modificação nas formas de estabelecimento das relações negociais e nas
relações econômicas e tal modificação surtiu efeito nas relações contratuais,
que se tornaram cada vez mais complexas e cada vez mais exigiam uma posição
atuante e presente por parte do Direito. Enquanto matéria de direito privado, os
contratos cobrem grande parte das relações sociais, sobretudo se considerado
que a sociedade ocidental é emoldurada pelo sistema capitalista não apenas no
âmbito econômico, mas também no âmbito político. Assim, coube ao direito
privado responder com presteza às necessidades dos cidadãos que, inseridos em
176
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
um mundo e um tempo onde tudo é muito célere e mutável, precisam encontrar
um mínimo de segurança no direito e nas relações determinadas pelo direito, e
os contratos são, talvez, a forma mais recorrente de segurança que um cidadão
pode encontrar, principalmente quando considerado o direito privado.
Dessa maneira, devemos observar as alterações e as necessidades do
mundo contemporâneo sob o prisma da insegurança e há que se buscar no direito
privado, e portanto nos contratos, uma base de segurança que garanta aos cidadãos
a possibilidade de permanecer relacionando-se. O impasse surge do fato de que a
grande velocidade com que as mudanças recorrentemente são impostas às pessoas
é incompatível com qualquer relação negocial que pretenda perdurar no tempo,
sobretudo quando consideradas as relações econômicas que dependem não apenas
de um trato continuado e extenso no tempo, mas que estão também sujeitas às
intempéries dos acasos que são comuns em tempos de grande velocidade.
A resposta da teoria contratual com vista a sanar o problema
da insegurança advinda dos tempos contemporâneos se deu, em verdade,
no aperfeiçoamento de técnicas de direito privado que já perduravam por
algum tempo, mas que encontraram em seus mais recentes avanços a melhor
conformação para as situações apresentadas, ou seja, as técnicas avançaram de tal
forma que as necessidades práticas parecem complementar e, simultaneamente,
obter respostas suficientes de tais teorias. Trata-se, no caso, de uma nova
abordagem sobre a revisão, resolução ou rescisão contratual, considerando,
assim, desde a cláusula rebus sic standibus até a noção de onerosidade excessiva
e chegando, por fim, à Teoria da Imprevisão.
O presente trabalho pretende desenvolver uma breve análise da forma
com que tais formulações teóricas encontraram aporte nas necessidades práticas
dos tempos contemporâneos, apresentando as inovações e os problemas inerentes
a essas formulações teóricas e, por fim, abordar tais questões contratuais sob a
perspectiva de dois casos jurisprudenciais, desenvolvendo uma pequena observação
sobre aplicabilidade de tais teorias e as possíveis falhas ainda remanescentes.
2 REVISÃO CONTRATUAL: PERSPECTIVA TEÓRICA
O objetivo inicial de uma relação contratual é a obtenção de um
fim desejado por ambas as partes. Quando se inicia uma relação contratual
o interesse firmado deve perdurar tanto quanto possível e alcançar a plena
satisfação para ambas as partes. O exemplo mais recorrente, que versa sobre
um simples contrato de compra e venda, aponta o fato de que, por um lado o
comprador pretende ter o produto firmado como objeto da relação contratual, e
por outro lado o vendedor pretende receber o pagamento pelo objeto. Contudo,
esse é o posicionamento ideal de uma relação contratual, em que todas as
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
condições se mantenham perfeitamente iguais e que, com isso, os interesses
não se vejam frustrados e alcancem sua finalidade. Esse posicionamento ideal,
no entanto, nem sempre é encontrado na realidade, sobretudo com a celeridade
das alterações dos últimos tempos.
Assim, muitas vezes uma simples relação contratual de compra e venda
por se ver frustrada das mais diversas maneiras. Considera-se, então, que, uma
vez que já se tenha estabelecido a relação contratual, as causas supervenientes
podem, muitas vezes, alterar o equilíbrio da relação, ou seja, modificar as
bases pelas quais o contrato foi moldado e, com isso, reconfigurar o interesse
das partes. Isso ocorre, sobretudo em função do fato de que os contratos são
expressões de vontades e, ao que tudo indica, a estrutura contratual deve ser
sempre a ideia de vontade:
O preceito basilar que continua a servir de trave-mestra da teoria dos
contratos é o da liberdade contratual. A liberdade contratual consiste
na faculdade que as partes têm, dentro dos limites da lei, de fixar, de
acordo com a sua vontade, o conteúdo dos contratos que realizarem,
celebrar contratos diferentes dos prescritos no Código ou incluir nestes
as cláusulas que lhes aprouver. As partes são livres, ao contratar, na
medida em que podem seguir os impulsos da sua razão, sem estarem
aprisionadas pela jaula das normas legais37.
Essa expressão da vontade, portanto, por vezes é alterada ou
modificada em razão das condições que permeiam a relação contratual. De certa
maneira, alterados alguns elementos essenciais, altera-se também o fundamento
pelo qual se formou a vontade e, por conseguinte, altera-se a vontade em si.
Historicamente essas condições supervenientes não eram consideradas e os
contratos deveriam ser cumpridos cegamente, seguindo o princípio do pacta
sunt servanda que, como afirma Pablo Stolze Gagliano, representava a obrigação
de cumprimento de “vontade contratual”38. Porém, uma vez que os contratos
foram se tornando cada vez mais perduráveis no tempo, ou seja, encontrando
uma continuidade cada vez maior e, como consequência, acabaram sendo
suscetíveis às mais variadas possibilidades de modificações, foi considerada
então uma reformulação não apenas na teoria contratual, mas na própria prática
VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral. 10 ed. Coimbra: Almedina, 2010.
p. 230-231.
38
Pablo Gagliano Stolze pontua historicamente esse fato quando afirma que “durante muitos
anos (...) o princípio da força obrigatória dos contratos imperou absoluto, sem que se pudesse
conceber, sob pena de se cometer uma verdadeira “heresia jurídica”, revisão ou resolução de um
determinado contrato por força de uma circunstância superveniente imprevisível”. GAGLIANO,
Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil. 6 ed. São Paulo, Saraiva. 2010. p. 264.
37
178
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de formação e análise dos contratos, sendo que essa reformulação perpassou o
próprio princípio do pact sunt servanda:
Se considerássemos absoluta a vinculatividade contratual, uma série
de injustiças se perpetuariam em desfavor do contratante prejudicado
pelo desequilíbrio posterior à data da conclusão do ajuste. E o pacta sunt
servanda verdadeiramente não seria cumprido, senão formalmente, já
que materialmente haveria uma desproporção entre as prestações não
esperada, nem assumida ou pretendida pelos contratantes39.
A evidente injustiça que adviria da estrita aplicação do princípio
pact sunt servanda foi aumentando consideravelmente quando considerado
o fato de que as alterações supervenientes se tornaram mais recorrentes em
uma época de tamanha instabilidade como tem se apresentado a modernidade.
Assim, para que se pudesse pensar ainda sob os termos do pact sunt servada foi
necessário, não apenas para a doutrina, mas sobretudo pela prática, ou seja, para
a jurisprudência, encontrar soluções mais flexíveis. Uma dentre essas soluções
foi tomar o princípio do pact sunt servanda sob a perspectiva da vontade que,
indubitavelmente, funda o contrato. Os pactos, ou seja, os contratos devem ser
mantidos na medida em que a intenção original, e com isso pensa-se também na
situação original, sejam mantidas. O princípio romano do pacta sunt servanda
encontrou uma grande proximidade com outro dispositivo também advindo do
direito romano: a cláusula rebus sic standibus.
Aparentemente a preocupação em lidar com fatores supervenientes
e passíveis de gerar desequilíbrio no contrato não é uma exclusividade da
modernidade. Embora os últimos tempos tenham tornado necessária a análise
da teoria contratual, também para o direito romano existia a possibilidade
de salvaguardar os contratos de possíveis alterações na situação original e,
portanto, na vontade. Para isso se pensava na cláusula rebus sic standibus.
Em verdade, o que se pretendia, tanto no direito romano quanto nos
tempos contemporâneos é, principalmente, encontrar subsídios que evitem a
criação de uma injustiça como decorrência de um contrato que foi tomado por
um desequilíbrio em função de um fator superveniente e inesperado e, portanto, o
que se pretendia era criar teorias que fundamentassem a possibilidade de revisão
contratual em casos que se mostravam litigiosos. Assim, é necessário abordar não
apenas a questão da cláusula rebus sic standibus, que com certeza foi um primeiro
passo na direção da revisão contratual, mas também considerar outras duas
inovações teórico-práticas; a onerosidade excessiva e a Teoria da Imprevisão.
LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. 3ª ed. São Paulo, Editora Revista dos
Tribunais, 2005. v. 3 p. 147
39
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Os ensinamentos de Roberto Senise Lisboa são válidos no sentido de
esclarecer que “é comum a utilização dessas teorias como se fossem a mesma
teoria. Seus pressupostos de aplicabilidade, no entanto, são diferentes”40. Buscase, então, apresentar tais teorias conforme suas similaridades e diferenças e, por
fim, considerar uma análise de aplicabilidade desses subterfúgios de revisão
contratual.
3 CLÁUSULA REBUS SIC STANDIBUS
O primeiro pressuposto que deve ser abordado quando se pretende tratar
sobre a questão das revisões contratuais é, sobretudo, o fato de que alguns contratos
não possuem uma liquidez imediata e, em verdade, alguns contratos perduram
tempo o suficiente para que as situações originais sejam alteradas. Tais contratos
são aqueles de trato sucessivo que, em alguns nichos financeiros, permitem o
desenvolvimento de determinada parcela do mercado. Em uma breve análise é
possível aferir que esses negócios que dependem de um longo desenvolvimento e de
uma longa extensão temporal não possuem a menor compatibilidade com contratos
céleres e imediatos e que, em verdade, objetos como empreitadas, construções,
plantações ou outros investimentos que se estendem no tempo, demandam uma
forma de contrato que perdure tanto quando os próprios investimentos.
Negócios tais como plantações não são uma exclusividade da
modernidade e, em toda a história da civilização surgiram impasses em razão
do investimento na plantação em contraponto com a necessidade do produto,
por exemplo. Assim, os contratos que vislumbram um trato sucessivo
também vislumbram a problemática da extensão temporal, principalmente
se considerado que grande parte desses contratos versa sobre a geração de
produtos essenciais, como alimentos, vestuário, etc. Dessa maneira, não é
exclusividade da modernidade a preocupação com a estruturação contratual
que permita a manutenção das situações originárias de um contrato, ou
seja, desde há muito havia a preocupação em salvaguardar os contratos de
um eventual desequilíbrio inesperado e superveniente. De início isso foi
conhecido como cláusula rebus sic standibus e tal instituto possui um caráter
extenso que, remonta ao tempo de glória da república romana41. Contudo,
é importante mencionar que tal instituto não encontrava aplicação apenas
durante o período clássico, mas obtém aplicabilidade na atualidade, sobretudo
em função das bases estruturais pelas quais existe:
LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. 3ª ed. São Paulo, Editora Revista dos
Tribunais, 2005.
41
GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil. 6 ed. São Paulo, Saraiva. 2010. p. 363264.
40
180
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
A expressão “Cláusula Rebus Sic Standibus” remonta, como visto,
a tempos imemoriais. Mesmo sendo, em verdade, bastante anterior
cronologicamente à concepção da Teoria da Imprevisão, sua finalidade
acaba por se revelar uma aplicação dela, no reconhecimento pretoriano
no sentido de que em todo contrato de prestações sucessivas, haverá
sempre uma cláusula implícita de que a convenção não permanece
em vigor se as coisas não permanecerem (rebus sic standibus) como
eram no momento da celebração. Tal construção teórica, inclusive,
foi uma das responsáveis pela consagração jurisprudencial da
correção monetária do país, ainda na época em que o texto codificado
prestigiava o nominalismo42.
O que revela o ensino doutrinário é que a cláusula rebus sic standibus
é uma primeira sinalização teórica e prática da tentativa de conter as injustiças
inerentes aos contratos que perduram tempo o suficiente para serem afetados
por eventuais desequilíbrios e alterações supervenientes. Enquanto primeira
movimentação teórica e prática, a cláusula rebus sic standibus é bastante
limitada em sua aplicação e encontra sua efetividade e legitimação em uma ideia
bastante simples, ou seja, a manutenção das bases estruturais de um contrato a
partir da intenção originária.
A condição que permite a construção teórica da cláusula rebus sic
standibus é o primado de que é possível uma alteração natural na situação fática,
sendo que tal alteração deve estar em consonância com o contrato na medida
de ser inesperada ou não prevista. Uma vez que um contrato crie uma relação
jurídica, entre duas ou mais partes, tendo como meio dessa relação um objeto
lícito, é possível que, alteradas as condições de iniciais de existência do contrato,
incorra em prejuízo na relação jurídica em si. A maneira de salvaguardar as
condições iniciais é criar uma espécie de um ponto fixo, um “ponto fictício”, ou
seja, uma cláusula contratual que busque, tanto quanto possível, resguardar as
condições que existiam no tempo da criação da relação jurídica. É do perigo de
um desequilíbrio econômico entra as partes que surge a necessidade de previsão
dessa cláusula, como evidencia a doutrina:
Deriva o princípio do equilíbrio econômico do contrato das diretrizes
da eticidade e da sociabilidade. Da primeira à medida que os
contratos que não observarem o equilíbrio inicial, nos casos de lesão
e estado de perigo, poderão ser anulados, o que força uma atitude
ética e de cooperação das partes contratantes. Da segunda decorre
o equilíbrio econômico, à medida que se reconhece uma natureza
Ibid. 2010. p. 311.
42
181
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
ultrassubjetiva das relações privadas, objetivando-se, em primeiro
lugar, a manutenção, ainda que para tanto seja o contrato revisado, em
virtude da importância que a circulação de riqueza operada por meio
desse instituto possui não somente para os contratantes, mas também
para a sociedade43.
Há que se considerar, no entanto, que apesar da inovação teórica e
prática que a cláusula rebus sic standibus manifestou dentro de uma necessidade
jurídica, a previsão contratual ou a inserção de uma “cláusula”, mesmo que por
vezes pressuposta, dentro do cerne de um contrato, muitas vezes não é suficiente
para resolver uma injustiça advinda de um desequilíbrio contratual decorrente de
um fator superveniente e inesperado. O que se pretende afirmar é que a cláusula
rebus sic standibus serve, no máximo, para uma eventual revisão contratual em
casos em que se faz flagrante o desequilíbrio contratual em decorrência de fato
superveniente inesperado, contudo, não oferece parâmetros para medição dos
casos mais complexos e, em verdade, apresenta uma base pouco sólida para a
própria revisão contratual44.
Isso acontece, sobretudo porque a cláusula rebus sic standibus apenas
permite a previsão da possibilidade de revisão, ou seja, a principal inovação de
tal instituto foi a criação de um importante pressuposto, ou seja, o pressuposto
de que os contratos devem ser observados conforme a situação e a intenção
originária e que o princípio do pacta sunt servanda não deve ser lido de forma
estrita e limitada, mas antes de forma a compreender as estruturas criadoras de
um contrato, sempre buscando a manutenção do equilíbrio contratual e, por
decorrência, o equilíbrio financeiro. Em verdade, nota-se que, principalmente
em casos em que se trata de negócios financeiros de longa perduração temporal,
o mais importante é a manutenção do equilíbrio econômico entre as partes,
e a cláusula rebus sic standibus é bem pouco esclarecedora para esses casos.
Uma vez que se atenta para esse fato, da relevância do equilíbrio econômico
nos contratos, a cláusula rebus sic standibus se mostra ineficaz e clama por
MAZZEI, Rodigo. O princípio da relatividade dos efeitos contratuais e suas mitigações. In:
Direito contratual – temas atuais. (coord.) Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka; Flávio
Tartuce. 1. ed. São Paulo: Método, 2007. p. 209.
44
Nesse sentido alerta J. R. Vieira Netto: “A conseqüência da pressuposição é uma conditio ou
exceptio de resolução do contrato por circunstância imprevista: a contradição entre o suposto
e a realidade subseqüente. Sofreu a teoria a oposição de que levaria a insegurança a todos os
contratos, e de fato era assim – porque a concepção partia de uma unilateralidade que nem sequer
seria conhecida de outra parte. Aplicando-se ao passado, ao futuro, teria outra extensão que a
cláusula rebus sic standibus, destinada a servir somente “na mudança futura e imprevista daquele
estado de coisas que teria sido a base de fato do contrato”. VIEIRA NETTO, J. R. O Risco e a
Imprevisão. Curitiba: Juruá, 1989. p. 130.
43
182
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
outra postulação teórica e prática. Tal postulação se dá pela consideração da
“onerosidade excessiva”.
4 A ONEROSIDADE EXCESSIVA
A abordagem que se faz perante a onerosidade excessiva não
é a mesma abordagem feita para com a cláusula rebus sic standibus, e isso
ocorre em função de diversos motivos que devem ser pontuados. O primeiro
motivo fundamental é a situação que se encontram esses institutos em relação
ao negócio contratual, ou seja, em que momento da relação contratual. Já foi
apontado que a cláusula rebus sic standibus está inclusa no contrato, mesmo que
por vezes isso ocorra tacitamente, razão pela qual tem a alcunha de “cláusula”.
Nesse sentido, o instituto da cláusula rebus sic standibus encontra-se em meio
à relação jurídica, ou seja, ocorre em concordância e concomitância com o
contrato e está adstrito ao tempo de perduração do contrato. A onerosidade
excessiva, no entanto, é um fenômeno que transcorre não na formulação do
contrato e, por vezes, não se manifesta em grande parte da relação jurídica, mas
surge apenas quando ocorre uma alteração no equilíbrio contratual e, então,
transparece a onerosidade excessiva.
Em outras palavras, a onerosidade excessiva não é um instituto
jurídico no mesmo sentido que a cláusula rebus sic standibus por não constar
como “previsão contratual”, mas é um efeito identificável em alguns contratos,
em função de alterações fáticas, que prevalece em casos críticos, como nos
casos de desequilíbrio contratual. Essa diferença é essencial para demonstrar
o avanço teórico e prático na revisão e resolução contratual. Assim, cabe
responder ao questionamento que perquire saber sobre o que exatamente é a
onerosidade excessiva.
Feita a diferenciação entre o caráter de fenômenos e efeito da
onerosidade excessiva, não podendo caracterizá-la como uma cláusula ou um
“artigo” contratual, deve ser explicitado o fato de que a onerosidade excessiva
deve ser entendida, inicialmente, de maneira que:
Existem, na verdade, situações-limite, caracterizadas pela particular
gravidade do posterior desequilíbrio da economia contratual e,
ao mesmo tempo, da excepcionalidade dos acontecimentos que o
determinaram, em que a lei considera justo e racional intervir em favor
do contraente atingido, oferecendo-lhe a possibilidade de libertarse dos compromissos contratuais que se tornaram muito pesados: o
remédio é a resolução do contrato por excessiva onerosidade45.
ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 2009. p. 260.
45
183
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
O que se percebe é que, para tratar de onerosidade excessiva é
necessário ponderar sobre uma relação contratual que perdura suficientemente
no tempo para que as situações originais, ou seja, as vontade primeiramente
impressas, tenham sido alteradas por fatos supervenientes e inesperados que,
em razão dessas alterações fáticas, geram um desequilíbrio contratual. Por
desequilíbrio aqui se compreende, quase que na totalidade, alguma desmesura
econômica ou financeira, uma vez que tratam-se de direito privado e, em geral,
em relações negociais de cunho comercial. A onerosidade excessiva, nesse
sentido, é excessiva pelo dispêndio econômico causado em desfavor de uma
ou mais partes do contrato que, em relação à situação inicial, são prejudicadas
pelas alterações supervenientes e inesperadas.
A ideia central da onerosidade excessiva não é tanto a manutenção ou a
nova interpretação do princípio do pacta sunt servanda, mas é antes uma tentativa de
medir a revisão ou resolução contratual com base na vontade formadora dos contratos.
Essa “vontade” que dá origem aos contratos é permeada por uma pressuposição, ou
seja, uma espécie de raciocínio que permite a todas as partes desenvolver um juízo
de vantagens perante o negócio jurídico46. Essa pressuposição, conjuntamente com
a vontade, é o que determina a pretensa finalidade de um negócio jurídico e é aquilo
que se busca manter ao longo de todo o contrato.
As mudanças, assim sendo, são esperadas dentro de uma determinada
amplitude, ou seja, as partes conhecem a possibilidades de determinadas
alterações em suas pressuposições de tal modo que a vontade que gera o
contrato já prevê, mesmo que tacitamente, uma certa gama de possíveis
alterações. Assim, deve ser pontuado que as partes, quando contratam, se valem
de determinados pressupostos para atingir uma determinada intenção, ou seja, é
baseando-se em uma condição específica, tendo objetos determinados e formas
negociais determinadas, que o contrato acaba por realizar sua função, sendo que
a alteração que eventualmente vier a ocorrer em qualquer um desses fatores –
pressupostos, objeto, finalidade, etc... – pode alterar toda a relação contratual
e, portanto, a própria vontade das partes se vê deturpada. Contudo, frisa-se
que as partes estão cientes de possíveis alterações, e algumas alterações são
possíveis e, por vezes, até esperadas, sem que isso leve ao prejuízo do negócio
jurídico. O que ocorre, no entanto, que não é esperado e que, em sua intensidade
Sobre essa perspectiva, aponta a doutrina: “A pressuposição é uma condição não desenvolvida,
uma limitação da vontade que não chega a revestir a forma de uma condição. Quem manifesta a
sua vontade sob uma pressuposição, do mesmo modo que quem faz uma declaração de vontade
condicionada, somente quer que o efeito jurídico que tem em vista tenha lugar enquanto se
verifique um determinado estado de coisas; mas não chega a tornar a existência desse estado
jurídico dependente desse estado de coisas ou dessa situação pressuposta” ROCHA, Pinto da. Das
cláusulas acessórias dos negócios jurídicos, II, p. 171, apud NETTO, José Rodrigues Vieira. O
Risco e a Imprevisão. Edição Póstuma. Curitiba, Editora Juruá, 1989. p. 129.
46
184
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
gera alterações de tal grau que se modifica o equilíbrio contratual, pode ser
identificado pela onerosidade excessiva:
Isso diz respeito à manutenção do ambiente objetivo em que o contrato
se formou. Concordaríamos com os teoristas da imprevisão que a
mudança dessas condições, por acontecimentos imprevisíveis, pode
dar lugar não só à impossibilidade da prestação, mas ao sacrifício
enorme e lesionário do devedor, à onerosidade excessiva, acarretando
a indenização ou satisfação de riscos que não estavam nem podiam
estar nas previsões normais dos contraentes. O devedor assim não
seria responsável por esses riscos exteriores e imprevisíveis oriundos
de novas condições e que não foram criados nem aceitos47.
A onerosidade excessiva surge como um fenômeno que, uma vez
identificado, permite à instauração de uma lide que vise interpretar a situação
contratual conforme as intenções originárias e as alterações supervenientes
para determinar se a manutenção do negócio jurídico não geraria uma possível
injustiça para uma ou para todas as partes. O que se pode afirmar, nesse sentido,
é que a onerosidade excessiva é um fenômeno que dá margem à revisão e, por
vezes, à resolução contratual sem que, para isso, seja necessário comprometerse com uma previsão contratual, ainda que tácita, como é feita com a cláusula
rebus sic standibus. O Código Civil de 2002, em sua redação, trazendo inovações
de suma importância, vislumbrou a necessidade de considerar a onerosidade
excessiva e, em função disso, apresentou-a em um de seus artigos48:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção
manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua
execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que
assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
O artigo 317 é bastante preciso teoricamente ao abordar a questão
da onerosidade excessiva e traz consigo uma série de inovações, sobretudo se
comparado à cláusula rebus sic standibus. Sua precisão, por exemplo, reside na
previsão de “motivos imprevisíveis” que podem sobrevir gerando “desproporção
VIEIRA NETTO, J. R. O Risco e a Imprevisão. Curitiba: Juruá, 1989. p. 125.
Outro artigo que pode ser mencionado, e normalmente mais recorrente como parte da
onerosidade excessiva, é o artigo 478 do Código Civil, que postula: “Art. 478. Nos contratos de
execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente
onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários
e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a
decretar retroagirão a data da citação.”
47
48
185
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
manifesta”, sendo cabível ao “juiz corrigi-lo”, buscando assegurar “o valor real da
prestação”. O que se explicita com o artigo, de outra forma, é que o desequilíbrio
contratual em decorrência de fatores supervenientes e inesperados possibilitam
a revisão ou resolução contratual motivada pela onerosidade excessiva. As
inovações que tal dispositivo legal trouxe são enunciadas pela doutrina:
Interessante notar também que o novo diploma exige, além da
imprevisibilidade, a extraordinariedade do evento, ou seja, deverá
ser excepcional, escapando, assim, do curso normal e ordinário
dos acontecimentos da vida. Aliás, por se tratar de cláusula geral,
deverá o juiz efetivar a sua concreção atento às características do
caso concreto49
Todos esses elementos trazidos pela onerosidade excessiva são,
em verdade, novas abordagens desenvolvidas perante o contrato buscando
solucionar o mesmo problema que buscava sanar a cláusula rebus sic standibus,
contudo, ao invés de desenvolver uma inserção de cláusula no contrato, ou seja,
o invés de buscar a previsão contratual, o que se apresentou com a onerosidade
excessiva foi a identificação de um fenômeno que, uma vez ocorrido, com
seus pressupostos preenchidos, surge então a possibilidade de litigância para
revisão ou resolução. De forma bastante sistemática Carlos Roberto Gonçalves
apresenta o fenômeno da onerosidade excessiva com alguns elementos:
a) vigência de um contrato comutativo de execução diferida ou de
trato sucessivo; b) ocorrência de fato extraordinário e imprevisível;
c) considerável alteração da situação de fato existente no momento
da execução, em confronto com a que existia por ocasião da
celebração; d) nexo causal entre o evento superveniente e a
conseqüente excessiva onerosidade50.
Todos esses pontos encontram sua gênese nas preocupações que
legitimaram a criação da cláusula rebus sic standibus e possuem uma
forte vinculação com as necessidades que permitiram a criação da Teoria
da Imprevisão, em uma espécie de avanço sobre as considerações da
onerosidade excessiva.
Ibid., 2010. p. 320.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 3,
p. 175
49
50
186
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
5 A TEORIA DA IMPREVISÃO
É notório o fato de que as diversas necessidades que foram surgindo para
com a teoria dos contratos foram moldando também as soluções apresentadas.
Se em um determinado momento se pensava que era suficiente a previsão de
uma cláusula, mesmo que tácita, como foi a cláusula rebus sic standibus, para
a solução das possíveis alterações e prejuízos supervenientes aos contratos,
em outro momento se entendeu que tal cláusula não seria suficiente e que só
a compreensão do fenômeno que permitiria a revisão ou a resolução seriam
uma solução mais eficaz, como foi o caso da onerosidade excessiva. Contudo,
também os tempos mudaram e a compreensão do fenômeno que apresenta
a onerosidade excessiva não foi o bastante tanto para a teoria quanto para a
prática que analisava os contratos sob a ótica das alterações extraordinárias e
supervenientes. Identificar a onerosidade excessiva era parte de um processo
que o juiz deveria fazer ao buscar aplicar, para melhor encontrar a justiça no
caso concreto, a revisão ou a resolução contratual.
O direito privado atual, em uma consonância com as últimas
tendências de todo o direito, busca não apenas a realização de uma ordem
social, mas principalmente a realização de uma ordem social justa, ou seja,
que encontre a exata medida para todos que procuram amparo no direito. Os
contratos devem ser interpretados sob essa nova tendência de tal modo que em
nenhuma aplicação interpretativa, ou seja, uma vez sendo chamado o juiz para
a solução de uma lide, o que se pretende é primar pela justa medida. Se um
contrato é equilibrado em sua feitura, se possui uma justiça inicial estabelecida
pelas partes, é essa justiça que se deve alcançar:
É com base nessa linha de pensamento que afirmamos estar vivendo um
direito contratual preocupado com o equilíbrio das contratações, e não
apenas com a proteção do contratante vulnerável. De fato, a percepção
de uma parte vulnerável no contrato é a indicação da necessidade de
protegê-la, justamente tem como meta o equilíbrio. Esta é meio de
alcançá-lo. Diante disso, pode-se dizer que o princípio da equivalência
material ou do equilíbrio contratual é aquele por meio do qual se
deve buscar e manter a justiça contratual, objetivamente considerada,
em todas as fases da contratação, independentemente da natureza
do contrato, e sempre com base na eticidade, lealdade, socialidade,
confiança, proporcionalidade e razoabilidade nas prestações51.
BRITO, Rodrigo Toscano. Equivalência material: o equilíbrio do contrato como um dos
princípios sociais. In: Direito contratual – temas atuais. (coord.) Giselda Maria Fernandes
Novaes Hironaka; Flávio Tartuce. 1. ed. São Paulo: Método, 2007. p. 187.
51
187
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Nota-se, então, que a onerosidade excessiva é parte de algo mais
complexo, ou seja, a identificação da onerosidade excessiva faz parte de um
raciocínio jurídico que vislumbra outros quesitos, como a manutenção do
equilíbrio da justiça e a busca por encontrar uma solução para as lides contratuais
que não se limite às considerações financeiras, mas que englobe um todo.
Essa nova formulação dada, esse novo raciocínio jurídico que
perpassa a análise das cláusulas e das intenções contratuais, que vislumbre os
pressupostos e a situação original, que trabalhe com a busca de um equilíbrio
e que, nesse contexto, trabalhe com o surgimento de efeitos danosos a uma
ou mais partes, como é o caso da onerosidade excessiva, mas que considere
isso tudo sob a ótica de uma abrangência maior, ou seja, considerando o
impacto da justiça e da perspectiva social, a isso se compreende como a
aplicação tanto teórica quanto prática da Teoria da Imprevisão, que encontra
uma posição muito própria da doutrina:
Teoria da Imprevisão foi a roupagem moderna adotada para a antiga
cláusula rebus sic standibus. Assim, em contratos, sinalagmáticos de
execução diferida no tempo, ou seja, quando as partes celebrarem
um acordo em dado momento, para que o comportamento acordado
seja realizado em outra ocasião, a ocorrência de acontecimentos
imprevisíveis e desvinculados da vontade das partes, que tornem muito
difícil ou excessivamente onerosa a prestação, o comportamento de
um dos contratantes, facultará à parte prejudicada pretender a revisão
judicial das cláusulas contratuais, com o fim de ajustá-la à nova
realidade, e restabelecer o equilíbrio contratual. Tal revisão deverá ser
sempre judicial, a não ser que as partes adotem-na espontaneamente52.
A ideia que descende dessa nova modalidade de racionalidade
jurídica é, sobretudo, a formulação de que não basta a demonstração de um
fator superveniente inesperado, como também não basta uma demonstração de
simples desequilíbrio para as partes, mas é preciso demonstrar que a imprevisão
fez decorrer uma alteração essencial nas bases fundamentais do contrato.
Assim, a Teoria da Imprevisão não se limite à identificação do juiz, como talvez
poderia sugerir a onerosidade excessiva, como também não se limita ao âmbito
contratual estritamente tomado, como talvez poderia ocorrer com a cláusula
rebus sic standibus, mas exige de todas as partes envolvidas no litígio, ou
seja, partes contratuais e órgão julgador, que se posicionem para demonstrar o
processo que levou o contrato à derrocada em função da imprevisão, portanto,
que apliquem a Teoria da Imprevisão:
KLANG, Marcio. A Teoria da Imprevisão e a Revisão dos Contratos. 1. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1983. p. 17.
52
188
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Uma parte que almeje evitar um contrato com fundamento de que
um evento tornou impossível a prestação ulterior deve demonstrar
não meramente que o evento tornou o contrato mais oneroso do que
ele esperara mas também que ele tenha destruído por completo a
base do contrato; ou, como às vezes tem sido colocado no tocante a
contratos comerciais, que ele tenha destruído toda a “base do risco”,
tenha feito continuar o cumprimento de algo radicalmente diferente
daquilo que foi contemplado originalmente ou tenha transformado a
sua continuação em alguma coisa positivamente injusta53.
Essas posições doutrinárias confirmam o fato de que a Teoria da
Imprevisão é a chamada de todas as partes ao raciocínio jurídico que antes
era feito adstrito ao contrato ou sob uma determinada identificação fenomênica
de uma jurisdição54. Assim, uma vez que se compreenda que essas novas
formulações teóricas advieram de uma constante e crescente necessidade fática
de responder às intempéries da manutenção de contratos que sofriam com
alterações extraordinárias, é possível analisar, mesmo que brevemente, alguns
casos em que se demonstra a aplicação de tais teorias sob problemáticas reais.
6 CONTRATOS DE SOJA VERDE
Dentre as modalidades contratuais da contemporaneidade, os
contratos que abordam empreendimentos de longo trato são aqueles mais
sujeitos à aplicação de teorias que resultam na revisão, rescisão ou resolução
contratual. O empreendimento agrícola, dentre os muitos mercados atuais,
tem demonstrado uma imensa suscetibilidade às alterações pelas mais
diversas razões, uma vez que são vários os motivos que podem levar às
alterações fáticas supervenientes e imprevisíveis. Portanto, cabe analisar
uma dessas modalidades de empreendimento, mais especificamente os
contratos de soja verde, que abrangem o investimento de plantio e entrega
de soja e possuem a extensão temporal desse plantio. Para esses contratos
Ibid., 1983. p. 45.
Cabe o complemento doutrinário: “Pode-se, assim, conceituar a lesão como sendo o prejuízo
resultante da desproporção existente entre as prestações de um determinado negócio jurídico, em
face do abuso da inexperiência, necessidade econômica ou leviandade de um dos declarantes. (...)
A teoria da imprevisão, por sua vez, pressupõe a existência de um contrato válido, de execução
continuada ou diferida, que, por circunstância superveniente, onera excessivamente o devedor.
Não há, pois, aqui, fundo de abuso de poder econômico, como ocorre na lesão, mas sim alteração
na base objetiva por fato posterior imprevisível”. GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de
Direito Civil. 6 ed. São Paulo, Saraiva. 2010. p. 314.
53
54
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
devem ser aplicadas as questões anteriormente apresentadas55.
O primeiro caso a ser analisado diz respeito a um julgado que versa sobre
rescisão contratual em negócio de compra e venda de soja, tendo como causa
do litígio o contrato de execução futura coadunado com a teoria da imprevisão,
sendo que esse julgado tem seu relatório exposto conforme se apresenta:
Recurso de Apelação Cível interposto contra sentença proferida
pelo Juízo da Vara Única da Comarca de Alto Graças, de fls. 573596, que julgou improcedente a Ação de Resolução Contratual
c/c Pedido de Tutela Antecipatória nº 29/2003 proposta pelo ora
apelante/ODELIR ANTÔNIO BALBINOTTI e o condenou ao
pagamento das custas processuais e a honorários advocatícios,
que fixou em R$12.000,00(doze mil reais). Aduz o apelante, que a
onerosidade excessiva ao longo do período contratual em razão de
alteração de condições político-econômicas internas tornou o contrato
insustentável, um fator extraordinário e imprevisível, a justificar
a aplicação do princípio da boa-fé e da função social do contrato.
Alegando assim, que essa imprevisão não foi em decorrência da
variação do valor da soja, mas sim, da alta excessiva do dólar em um
curto espaço de tempo, exatamente no período do plantio da lavoura
o que lhe causou prejuízos de ordem financeira e não foi considerado
na sentença. Alega ainda, que a Cédula de Produto Rural é nula, pois
não circulou, nem foi paga quando de sua emissão, constituindo-se
exclusivamente como garantia extra ao contrato de venda e compra,
não sendo um título circulável no mercado agronegocial. Ao final
requerer a reforma da sentença, no sentido de que seja reconhecida
a existência de prejuízos ao ora apelante e a excessiva lucratividade
do apelado, decorrente do citado fato extraordinário e imprevisível,
que autoriza a resolução do contrato com fulcro no art. 478 do CC,
invertendo-se o ônus da sucumbência, ou sua divisão proporcional,
ainda, alternativamente, sua redução56.
Nesse sentido: “A parte lesada no contrato por esses acontecimentos supervenientes,
extraordinários e imprevisíveis, que alteram profundamente a economia contratual,
desequilibrando as prestações recíprocas, poderá, para evitar enriquecimento sem causa ou abuso
de direito por desvio de finalidade econômico-social, sob a falsa aparência de legalidade, desligarse de sua obrigação, pedindo a rescisão do contrato ou o reajustamento das prestações recíprocas,
por estar na iminência de se tornar inadimplente tendo em vista a dificuldade de cumprir o
seu dever, ingressando em juízo no curso da produção dos efeitos do contrato, pois se este já
foi executado não haverá intervenção judicial”. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil
Brasileiro. São Paulo, Saraiva, 2005. v. 3, p. 164.
56
BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso. Apelação Cível nº 54226. Apelante:
55
190
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Deve ser pontuado que, conforme o relatório, a alegação do apelante
não buscou apresentar-se sobre uma possibilidade de previsão, mas alegou
antes uma razão superveniente absolutamente inesperada. O apelante referese a uma questão político-econômica, no caso a elevação exagerada da
cotação do dólar, que supostamente teria gerado, de forma superveniente e
inesperada, o desequilíbrio financeiro e, portanto contratual, que legitimaria
a aplicação da teoria da imprevisão. Alega-se em favor da boa-fé e da função
social do contrato, questões essas que trazem grande pertinência perante a
aplicação da Teoria da Imprevisão, como já foi pontuado anteriormente57.
Tanto ocorre dessa maneira que se identifica no presente caso a acolhida por
parte do órgão julgador, uma vez que é deferido o pedido feito pela Autora,
efetuando-se a rescisão contratual. Mesmo que tenha sido acordado entre as
partes que a venda ocorreria após a colheita, notou-se que em função do fato
identificado como superveniente e imprevisível, a venda se mostraria inviável
para o produtor agrícola. É com base na consideração sobre a onerosidade
excessiva, mas em franca aplicação da racionalidade emendada pela Teoria da
Imprevisão, que o voto é definido favorável a rescisão contratual, tendo como
ponto nevrálgico a argumentação:
Assim, a possibilidade de rescisão do contrato por onerosidade
excessiva é inegável, desde que se comprove que os fatos
supervenientes, imprevisíveis e externos à vontade dos contratantes
alteraram as circunstâncias do passado, imprimindo severos e
injustos ônus a uma das partes. Na hipótese dos autos, nota-se que a
fundamentação do pedido do autor/apelante foi justamente o elevado
valor do dólar norte americano, em razão do temor da eventual vitória do
atual Presidente da República, que ocasionando forte deterioração dos
indicadores financeiros, exatamente no período do plantio da lavoura,
Odelir Antônio Balbinoti. Apelado: Caramuru Alimentos LTDA. Desembargador Relator:
Jurandir Florêncio de Castilho. Cuiabá, 11 de agosto de 2008.
57
Nesse sentido pondera a doutrina: “Em diversos termos, não caberia à parte, de quem se espera
conduta adequada a um padrão de retidão moral, de lealdade e cooperação nas relações contratuais,
exigir da outra uma prestação já assimétrica em virtude de alteração de circunstâncias. Seria, com
efeito, uma conduta contrária à boa-fé. Por isso se lhe permite a resolução ou modificação do ajuste.
O fundamento, pois, seria a boa-fé objetiva.Não se há de negar, porém, que, de alguma maneira,
a alteração das circunstâncias sobreleva quando denota um desequilíbrio do contrato, ainda que
atue, aliado ao princípio da equidade contratual, a boa-fé objetiva, de resto como salientado por
ocasião da abertura do item presente, relativo à justiça contratual. Mas é fato que a alteração das
circunstâncias não envolve apenas uma questão de conduta das partes, ou de interpretação para
integração do contrato, de acordo com a boa-fé. Envolve, também, ou antes, um desequilíbrio
econômico do contrato”. GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. 3 ed. São
Paulo: Saraiva, 2009. p. 64.
191
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
elevou excessivamente os custos de produção, que além de anular a
lucratividade do produtor rural, resultou em prejuízos significativos
ao apelante. Fato que restou incontroverso e corroborado pelo laudo
pericial às fls. 334, no sentido de que na época do plantio da lavoura,
mais precisamente de setembro a dezembro, os insumos denominados
biocidas tiveram um aumento na ordem 21,03% (vinte e um vírgula
três por cento) e os fertilizantes um acréscimo em torno de 18,88%
(dezoito vírgula oitenta e oito por cento), que influenciaram os custos
da produção da lavoura de soja, ocasionando-lhe sérios prejuízos.
Assim, diante desse posicionamento técnico, tenho que houve, de
fato, onerosidade excessiva ao apelante, tendo em vista o expressivo
aumento do custo de produção ocasionado por evento extraordinário,
redundando em fatores inesperados totalmente alheios ao mercado de
soja. Aumentos de custos esses que, diante da natureza do contrato
firmado, recaíram unicamente à responsabilidade do apelante, que
assumiu sozinho os riscos da produção, incumbindo-se de produzir
e entregar o produto nos rigorosos padrões exigidos pela apelada.
Denotando-se a desproporcionalidade nos riscos assumidos pelos
contratantes, onde os riscos impostos à empresa adquirente restringemse, tão-somente, à tendência do mercado de soja e a alteração do valor
da moeda norte-americana, certo que uma empresa especializada,
tem pleno conhecimento das nuanças do mercado externo e, de certa
forma, já torna desigual a situação entre os contratantes. Acrescentese a esse fator, que a teor dos contratos firmados, os riscos de ordem
interna recaem inteiramente à exclusiva responsabilidade do produtor
local. Que implica em clara a ofensa aos artigos 421 e 422 do Código
Civil de 2002, invocados pelo apelante58.
O voto confirma a posição de que a identificação do fenômeno da
onerosidade excessiva se dá em conjunto com a consideração de outros elementos,
como a análise da situação fática em um âmbito suficientemente amplo – como
no caso da situação político-econômica – e também em razão de elementos
como a função social e a boa-fé, presentes na teoria contratual contemporânea.
Deve ser pontuado que o voto faz menção reiterada à onerosidade excessiva e
não chega a abordar a questão sob a ótica da Teoria da Imprevisão. Contudo, é
notório que, em sua elaboração e em seu raciocínio jurídico, o voto transcende
os limites de mera apresentação fenomênica da onerosidade excessiva. Esse
BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso. Apelação Cível nº 54226. Apelante:
Odelir Antônio Balbinoti. Apelado: Caramuru Alimentos LTDA. Desembargador Relator:
Jurandir Florêncio de Castilho. Cuiabá, 11 de agosto de 2008.
58
192
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
caso apresentado é uma evidente demonstração de um desequilíbrio que gera
prejuízo a uma das partes.
O segundo caso a ser apresentado, no entanto, busca a aplicação das
teorias anteriormente apresentadas não para um caso de evidente prejuízo,
mas para um caso de prejuízo que ocorre em função da “perda de lucro”. Em
uma relação jurídico-econômica o lucro consta de igual maneira como um
importante elemento e, nesse sentido, poderia ser pensado que um considerável
aumento na possibilidade de lucro poderia ser considerado como uma situação
de aplicabilidade da teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva. Por ter
alcançado o Superior Tribunal de Justiça o caso é bastante interessante e tem
uma relevância considerável, tendo o seguinte relatório:
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
1. Alcindo Caetano Machado Júnior ajuizou em face de Sementes
Selecta Ltda ação objetivando rescisão contratual, noticiando ter
celebrado com a empresa ré, em 07 e 22 de junho de 2002, contratos
de compra e venda de 600.000 kg de soja em grãos, cuja entrega
restou estabelecida para 25 e 30 de abril de 2003. Ocorre, todavia,
que, na vigência dos contratos, por fatores diversos, houve expressiva
valorização do produto vendido, sendo que o preço cobrado pelo
autor por saca de 60 kg de soja, acertado em R$ 25,00, estaria no
patamar de até R$ 35,00, segundo notícias de jornais. Assim, também
os insumos que estão atrelados à produção de soja sofreram aumentos
em patamares expressivos, de até 50%, motivo pelo qual o autor
entendeu que os contratos tornaram-se-lhe excessivamente onerosos,
na mesma medida em que provocarão ganhos extraordinários ao
réu, comprador da safra. O Juízo de Direito da 1ª Vara da Comarca
de Goiatuba/GO julgou improcedente o pedido (fls. 251/256,
e-STJ). Em grau de apelação, todavia, a sentença foi reformada, nos
termos da seguinte ementa: APELAÇÃO CÍVEL. RESOLUÇÃO
CONTRATUAL. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE SOJA
EM GRÃOS. RESCISÃO. PACTA SUNT SERVANDA . TEORIA
DA IMPREVISÃO. APLICABILIDADE. 1 - O princípio do pacta
sunt servanda encontra-se abrandado com a vigência do Código Civil
de 2002 e o principal objetivo da função social do contrato é tornálo equilibrado entre as partes, para que as obrigações equilibremse e tornem-se mais proveitosas para ambos os contratantes, como
corolário, inclusive, dos princípios da boa-fé e da eqüidade (art.
422, Código Civil). 2 - A Teoria da Imprevisão tende a fazer admitir
193
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
que, em qualquer matéria, a parte lesada por um contrato pode ser
exonerada de suas obrigações quanto fatos extraordinários, que
escapam de toda previsão, no momento em que aquele se fez e que
alteraram tão profundamente a economia que é certo que esta parte
não teria consentido em assumir o agravamento dos encargos, que dele
resultam, se pudesse ter previsto os acontecimentos que provocaram
esta exacerbação. Cabe portanto ao Judiciário repelir as práticas
abusivas do mercado para coibir principalmente o lucro excessivo
de um em detrimento do prejuízo de outrem, revisando as cláusulas
contratuais que Justiça ocasionem um desequilíbrio flagrante entre
os contratantes, como na hipótese. Apelo conhecido e provido. (fls.
289/310, e-STJ) Sobreveio recurso especial apoiado nas alíneas “a” e
“c” do permissivo constitucional, no qual se alega, além de dissídio
jurisprudencial, ofensa aos arts. 421, 422 e 478 do Código Civil de
2002 e 535, inciso II, do Código de Processo Civil. Em síntese, afirma
o recorrente ser impossível, no caso concreto, aplicar-se a teoria da
imprevisão ou da onerosidade excessiva, sendo que a boa-fé não foi
observada pelo recorrido, e não pelo recorrente, como entendeu o
acórdão recorrido. Sem contrarrazões, o especial foi admitido (fls.
377/378). O Ministério Público Federal, mediante parecer subscrito
pelo i. Subprocurador-Geral da República Antônio Carlos Pessoa
Lins, opina pelo conhecimento parcial do recurso e, na extensão, pelo
seu provimento (fls. 444/449, e-STJ). É o relatório59.
Trata-se de um contrato de compra e venda de soja verde, que por se
tratar de um insumo de relevante importância na economia mundial, tem sua
variabilidade conforme as regras de um mercado conhecidamente instável. A
parte obrigada a entregar uma determinada quantia de sacas de soja alega que
tal supervalorização inviabilizaria a manutenção do negócio, pois, de acordo
com a nova perspectiva de obtenção de lucros, a entrega de sacas de soja
que antes fora acordada passou a ser supostamente considerada um prejuízo
para o obrigado. Essa perda seria virtualmente considerada em relação a nova
perspectiva de lucros gerada pela variabilidade da cotação do insumo da soja
no mercado, ou seja, o prejuízo seria contabilizado pela perda de obtenção de
lucro. Com base nesse litígio decidiu o STJ:
1. A cláusula rebus sic stantibus permite a inexecução de contrato
comutativo - de trato sucessivo ou de execução diferida - se as bases
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 849.228. Recorrente: Sementes
Selecta Ltda. Recorrido: Alcindo Caetano Machado Júnior. Ministro Relator: Luis Felipe Salmão.
Brasília, 12 de agosto de 2012.
59
194
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
fáticas sobre as quais se ergueu a avença alterarem-se, posteriormente,
em razão de acontecimentos extraordinários, desconexos com os
riscos ínsitos à prestação subjacente. 2. Nesse passo, em regra, é
inaplicável a contrato de compra futura de soja a teoria da imprevisão,
porquanto o produto vendido, cuja entrega foi diferida a um curto
espaço de tempo, possui cotação em bolsa de valores e a flutuação
diária do preço é inerente ao negócio entabulado. 3. A variação do
preço da saca da soja ocorrida após a celebração do contrato não se
consubstancia acontecimento extraordinário e imprevisível, inapto,
portanto, à revisão da obrigação com fundamento em alteração das
bases contratuais. 4. Ademais, a venda antecipada da soja garante a
aferição de lucros razoáveis, previamente identificáveis, tornando o
contrato infenso a quedas abruptas no preço do produto. Em realidade,
não se pode falar em onerosidade excessiva, tampouco em prejuízo
para o vendedor, mas tão-somente em percepção de um lucro aquém
daquele que teria, caso a venda se aperfeiçoasse em momento futuro.
5. Recurso especial conhecido e provido60.
A decisão feita pelo voto do STJ é de suma importância para demarcar
a aplicabilidade da Teoria da Imprevisão na mesma medida que determina a
questão da onerosidade excessiva, definindo assim uma problemática do
contrato contemporâneo. O que se pretende salvaguardar em um contrato é,
como foi demonstrado anteriormente, a intenção originária em conjunto com
a condição originária. Para isso, analisam-se as alterações supervenientes
e extraordinárias sob a perspectiva de uma amplitude tal que comprometa
essencialmente o contrato. O STJ, no caso apresentado, acaba definindo limites
para a aplicação da revisão, rescisão e resolução contratual, considerando que
os fatos supervenientes e extraordinários devem ocorrer de forma a real e
efetivamente prejudicar uma das partes, ou seja, sob a forma de um decréscimo,
não considerando a possibilidade de uma “perda de acréscimo”. A análise
pondera que o lucro que, em alegação, uma das partes deixaria de obter, faz
parte de uma movimentação natural do mercado e, não tendo ocorrido prejuízos
efetivos, não há razões para a aplicação tanto da onerosidade excessiva quanto
da Teoria da Imprevisão, determinando, assim, uma importante decisão do STJ
no sentido de delimitar a amplitude prática e jurisprudencial das teorias perante
as questões contratuais contemporâneas.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 849.228. Recorrente: Sementes
Selecta Ltda. Recorrido: Alcindo Caetano Machado Júnior. Ministro Relator: Luis Felipe Salmão.
Brasília, 12 de agosto de 2012.
60
195
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
7 CONCLUSÃO
As novas teorias voltadas para a resolução de questões suscitadas
pelo direito privado contemporâneo não encontram plena aplicabilidade
quando encerradas em considerações meramente abstratas. O que percebe,
cada vez com mais evidência, é que os contratos contemporâneos, sobretudo
os contratos que perduram no tempo, estão sujeitos a uma série de intervenções
e de possíveis alterações que os prejudicam em suas essências e que, por essa
razão, a segurança se vê abalada. Em compensação, o avanço das teorias que
vislumbram a revisão, rescisão e resolução contratual seguem no sentido
de fornecer a todas as partes um método e um raciocínio de interpretação
suficientemente completo para permitir uma abordagem pormenorizada das
situações complexas que se formam rotineiramente.
Partindo da cláusula rebus sic standibus, que buscava determinar a
solução dos conflitos por meio de uma inserção no âmbito contratual, alcançando
a onerosidade excessiva, que fornece uma análise do fenômeno e, portanto,
mais ampla e interpretativa, alcançando por fim a Teoria da Imprevisão, que
se encontra em maior conformidade com os novos moldes do direito privado
contemporâneo e com as necessidades de um mundo exageradamente célere
e complexo, é possível notar que a questão da alteração contratual em
decorrência de fatores supervenientes e imprevisíveis clama por uma aplicação
delimitadora. Tanto é assim que, nos dois casos jurisprudenciais apresentados
nota-se uma tentativa por parte dos órgãos julgadores de definir a aplicação tanto
da onerosidade excessiva quanto da Teoria da Imprevisão nos casos práticos,
visando dar certa consistência para teorias que, em suas abstrações iniciais,
parecem bastante soltas e passíveis de lacunas. O caso analisado pelo STJ, por
exemplo, é paradigmático no sentido de dar ensejo a uma clara delimitação, ou
seja, definir que o prejuízo é um decréscimo e não uma “perda de acréscimo”.
É possível apreender, portanto, da breve análise apresentada, que
as teorias de revisão, rescisão e resolução contratual, sobretudo para aquelas
que antes de tudo motivam a revisão contratual, tal como a cláusula rebus sic
standibus, a onerosidade excessiva e a Teoria da Imprevisão, estão sujeitas
a uma constante necessidade de confirmação por parte do poder judiciário
que, constantemente e com frequência cada vez maior, é chamado a dizer os
limites daquilo que se considera como plausível para constar como elemento
legitimador de uma lide instaurada com vistas a confrontar uma relação
contratual em função de um fato superveniente e extraordinário.
196
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
REFERÊNCIAS
BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso. Apelação Cível nº
54226. Apelante: Odelir Antônio Balbinoti. Apelado: Caramuru Alimentos
LTDA. Desembargador Relator: Jurandir Florêncio de Castilho. Cuiabá, 11 de
agosto de 2008.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 849.228. Recorrente:
Sementes Selecta Ltda. Recorrido: Alcindo Caetano Machado Júnior. Ministro
Relator: Luis Felipe Salmão. Brasília, 12 de agosto de 2012.
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apud NETTO, José Rodrigues Vieira. O Risco e a Imprevisão. Edição Póstuma.
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197
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 2009.
VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral. 10 ed. Coimbra:
Almedina, 2010.
VIEIRA NETTO, J. R. O Risco e a Imprevisão. Curitiba: Juruá, 1989.
198
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO ELEMENTO PROTETIVO DA
BIODIVERSIDADE, SOB O PRISMA DA RIO+20.
SUSTENTAIBLE DEVELOPMENT AS A PROTECTIVE ELEMENT OF
BIODIVERSITY, OVER RIO+20 PERSPECTIVE.
Maria Victoria Papy
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Curitiba
– UNICURITIBA
Regina Maria Bueno Bacellar
Possui graduação em direito pela Faculdade de Direito
de Curitiba (1985), mestrado em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (2002) e especialização
em Ecologia e Direito Ambiental. Atualmente leciona
em cursos de graduação e Pós Graduação no Centro
Universitário Curitiba - UNICURITIBA e em Cursos de
Pós Graduação na UNIFAE, UNIBRASIL, FEMPAR. Tem
experiência nas áreas de Direito Civil, Administrativo,
Ambiental, Urbanístico e Direito de Energia/Regulatório
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Biodiversidade; 3. Sustentabilidade; 4. Rio+20, reflexos
práticos do desenvolvimento sustentável; 5. Conclusão; 6. Referências.
RESUMO
O presente artigo acadêmico tem como objetivo principal demonstrar
que o desenvolvimento sustentável é um elemento social e profissional, o qual
deve ser também considerado, responsável para conservação da biodiversidade,
uma vez que tal conceito se mantém inserido em diversas ações ambientais,
políticas governamentais e ações da iniciativa privada, estabelecendo o enfoque
principal nas perspectivas brasileiras e nos resultados práticos a cerca de
sustentabilidade discutidos na Rio+20, Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio ambiente, realizada em junho de 2012 no Rio de Janeiro, Brasil. Fez-se
necessária a breve conceituação da biodiversidade, correlacionando-a a efetiva
proteção da mesma frente ao desenvolvimento sustentável. Frisando ainda, a
importância do engajamento social, governamental e privado, para que as metas
ambientais de proteção sejam atingidas, as quais são alcançadas através de um
consumo consciente bem como com a realização de práticas sustentáveis feitas
199
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
pela sociedade como um todo, dando assim possibilidade às gerações futuras
de gozarem dos mesmos recursos naturais que atualmente são usufruídos,
garantindo assim à sua integridade e não só o seu desenvolvimento econômico.
Palavras-chave: Desenvolvimento Sustentável; Conservação; Biodiversidade;
Rio+20.
ABSTRACT
This academic paper’s main objective is to demonstrate that
sustainable development is a key social and professional element, which
must also be considered responsible for biodiversity conservation, since this
concept remains inserted in various environmental initiatives, government
policies and private enterprise actions, establishing the main focus in Brazilian
perspectives and practical results on sustainability discussed at Rio +20, the
UN Conference on the environment, held in June 2012 in Rio de Janeiro,
Brazil. It was necessary a brief evaluation of biodiversity, correlating to the
effective protection of biodiversity for sustainable development. Stressing
also the importance of social, government and private engagement, so that
the environmental protection goals are achieved, which are achieved through
a conscious consumption as well as the achievement of sustainable practices
made ​​by society as a whole, thus giving possibility to future generations to
enjoy the same natural resources that currently are enjoyed, thus ensuring its
integrity and not only its economic development.
Keywords: Sustainable Development, Conservation, Biodiversity; Rio +20.
1 INTRODUÇÃO
Como cediço, ainda que de maneira tardia e tímida, a humanidade vem
reconhecendo a importância do meio ambiente e a necessidade de sua proteção
e preservação. Diante disso, vislumbram-se, no atual panorama mundial,
diversas ações ambientais, as quais se materializam através da implementação
de políticas governamentais, bem como da iniciativa privada.
Assim sendo se enaltece a realização da Conferência RIO+20,
pela Organização das Nações Unidas (ONU), realizada entre os dias 13 e
22 de junho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro, a qual reuniu diversas
lideranças governamentais e do setor privado, além de representantes sociais,
com o escopo de discutir a importância do desenvolvimento sustentável e
disseminar sua aplicação.
200
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Por conseguinte, verifica-se a necessidade de uma abordagem
quanto a importância de uma política de desenvolvimento sustentável, além
de caracterizar a influência e dimensão da Conferência Rio+20, bem como as ‘
conseqüências desta prática sustentável em relação a biodiversidade.
Imperioso destacar a relevância do tema, eis que versa sobre um
elemento fundamental para a manutenção da vida, ou seja, o meio ambiente,
o qual, invariavelmente, está correlacionado com a biodiversidade. Espera-se,
que diante desta abordagem seja transmitida a necessidade de atribuição de
novas práticas relacionadas ao desenvolvimento sustentável, inclusive, como
modo de proteção à biodiversidade, além da contribuição para o incremento da
matéria e, dos efeitos oriundos da realização da conferência em voga.
2 BIODIVERSIDADE
Primeiramente, é oportuno esclarecer que toda comunidade ecológica,
como por exemplo: cada pedaço de terra, campos, pedras e/ou mares possuem
micro organismos que ali se desenvolvem quais mantém uma interação entre si
com diversas trocas de energia.
A variedade dessas interações entre os diversos organismos e o meio
nos quais eles se encontram inseridos, considerando a sua forma de interação, é
chamada de biodiversidade.
Existem três formas para melhor classificar a biodiversidade, sendo
elas: a genética, específica e ecossistêmica.
Quando se fala de biodiversidade genética se trata de todos aqueles
indivíduos pertencentes a uma mesma espécie.
Na biodiversidade específica, ficam restritos a ela aqueles indivíduos
os quais pertencem ao mesmo conjunto de espaço e tempo. Seguindo o exemplo:
de um chafariz de uma praça no inverno de uma cidade e um chafariz de uma
casa no inverno na mesma cidade. Com precisão se poderá dizer que haverá
diferenças entre as duas comunidades.
E quanto a biodiversidade ecossistêmica, a ela pertencem todos os
indivíduos que são formados em um determinado tempo e espaço.
Desta forma, Américo Luis Martins da Silva aduz (2004, p. 70):
Quando se fala em ecossistema está se referindo à questão das
relações que as espécies, formadas por indivíduos, estabelecem entre
si (por exemplo, a cadeia alimentar e todas as relações ecológicas)
e as relações que estabelecem com o meio físico (fluxo de energia e
ciclagem de matéria). Um aquário, montado na escola ou em casa, por
201
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
exemplo, é um ecossistema. Nele existem indivíduos de diferentes
espécies que estão relacionando-se entre si e com o ambiente físico,
no caso a água, as pedras, a areia etc.
Após, esta breve conceituação da biodiversidade é importante
ressaltar que a mesma deve ser protegida, no mundo e de uma forma
mais direta no Brasil. Sendo assim, para que seja possível a proteção em
predominância no Brasil por exemplo, é importantíssimo também que a ética
ambiental seja exercitada. Essa ética se trata do comportamento humano em
si, aonde o homem, principal explorador da biodiversidade, irá desenvolver
suas capacidades de discernimento do que é certo ou errado, por exemplo,
tornando o seu comportamento ético, explorando as práticas sustentáveis,
para que ele mesmo possa atingir o desenvolvimento econômico esperado
sem comprometer os seus próprios recursos no futuro.
O homem passa assim a conhecer a biodiversidade de forma mais
madura e real a partir do momento que o mesmo considera a exploração do
patrimônio genético da natureza fazendo a correlação necessária da vida em
sociedade regrada por uma realidade jurídica que tem por finalidade justamente
regrar a mesma (FIORILLO; DIAFÉRIA, 1999, p. 13-14).
E justamente nesse sentido frisam Celso Antonio Pacheco Fiorillo e
Adriana Diaféria (1999, p. 37):
E, se atualmente nos encontramos numa situação caótica e alarmente,
nada mais coerente do que estruturar mecanismos de preservação e
recuperação da biodiversidade, não só para melhorar a qualidade de
vida das gerações presentes, mas principalmente para garantir uma
existência digna às gerações futuras.
Então, o homem só é capaz de sobreviver, a partir do momento em que
luta para que a natureza se mantenha conservada, pois, todos os elementos essenciais
para o desenvolvimento econômico e social que ele necessita se encontram nela e
no saber interagir com a mesma (FIORILLO; DIAFÉRIA, 1999, p. 39).
3 SUSTENTABILIDADE
A conceituação de desenvolvimento sustentável não é muito facilmente
alcançada, pois ela não depende somente da esfera ambiental, ou seja, a matéria
compreende outras relações humanas e não somente as matérias pertencentes ao
202
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
meio ambiente. E sobre este tema, dispõe Geraldo Ferreira Lanfredi (2002, p.137):
No que diz respeito ao conceito de sustentabilidade, este é complexo
e de difícil definição. No entanto, todo mundo sente a urgência de
se criar um futuro sustentável, malgrado a dificuldade em definir em
que consista essa forma de desenvolvimento. Com efeito, facilmente
se percebe o problema no ar ou no sabor da água, na poluição ou nos
problemas de saúde, na mortandade dos peixes ou na destruição das
florestas, nos desastres naturais ou no desemprego crescente.
Assim sendo é possível através da aplicação de políticas de
desenvolvimento sustentável, alcançar um equilíbrio entre as atividades
econômicas e de subsistência da sociedade em prol do meio ambiente. Ou seja,
o desenvolvimento ambiental sadio se consegue através de políticas econômicas
e ambientai. Este desenvolvimento alivia os possíveis impactos a natureza em
virtude do desenvolvimento desenfreado.
E nesse sentido Geraldo Ferreira Lafrendi mais uma vez aduz: (2002,
p.138-139):
E nesse sentido A sustentabilidade em síntese – que abrange
não só o meio ambiente, senão também a população, pobreza,
alimento, saúde, democracia, direitos humanos e paz -, é a busca da
segurança da humanidade, em que a implementação das exigências
sociais, culturais e econômicas se compatibiliza com a proteção
do meio ambiente. Nesse sentido, a sustentabilidade acolhe as
advertências dos ecologistas e os argumentos dos economistas em
favor do desenvolvimento, procurando um “pronto de equilíbrio” e
reconhecendo a interdependência entre as necessidades humanas e as
exigências ambientais.
Porém, é necessário desvincular-se da idéia de que o desenvolvimento
de uma sociedade não esta correlacionado com a proteção do meio ambiente,
para que se possa ter uma efetiva aplicação do desenvolvimento sustentável. E
sobre isso, Édis Milaré dispõe (2007, p. 61):
É falso o dilema “ou desenvolvimento ou meio ambiente”, na medida
em que, sendo este fonte de recursos para aquele, ambos devem
harmonizar-se e complementar-se. Compatibilizar meio ambiente
com desenvolvimento significa considerar os problemas ambientais
dentro de um processo continuo de planejamento, atentando203
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
se adequadamente às exigências de ambos e observando-se suas
inter-relações particulares a cada contexto sociocultural, político,
econômico e ecológico, dentro de uma dimensão tempo/espaço. Em
outras palavras, isto implica dizer que a política ambiental não deve
erigir-se em obstáculo ao desenvolvimento, mas sim em um de seus
instrumentos, ao propiciar a gestão racional dos recursos naturais, os
quais constituem a sua base material.
E assim sendo, desenvolvimento sustentável é um conceito
interdisciplinar, tendo em vista que sua aplicabilidade é dependente de inúmeros
fatores, como por exemplo, a população, política, pobreza, entre outros.
Apesar de que em sua essência se têm o desenvolvimento sustentável como
aquele que preza pelo desenvolvimento econômico, sem que para isso seja
feita uma abdicação ambiental. Isto é, esse desenvolvimento almejado é uma
mitigação do desenvolvimento desenfreado frente à proteção e manutenção
ambiental, possuindo sempre o intuito de prolongar a atividade econômica
e, principalmente, o patrimônio ambiental, obtendo, portanto, no futuro
integridade às suas gerações.
Importante destacar segundo Cristiane Derani que (2008, p. 106):
É evidente, dentro do panorama exposto, que a questão da conservação
da natureza integra uma perspectiva mundial, não só pelos efeitos
da destruição ambiental que desconhece fronteiras, mas sobretudo
pela sua vinculação à dinâmica do mercado internacional. (...) A
destruição do meio ambiente não se deve a uma simples relação entre
o crescimento econômico de um país e a imediata poluição decorrente
causada. Esta destruição faz parte de um processo global de expansão
de produção. Causas e efeitos não estão necessariamente ligados ao
mesmo território nacional.
Em 1987 foi o ano que o desenvolvimento sustentável foi divulgado
“a priori” em um documento a cerca das estratégias do desenvolvimento, este
documento foi chamado de “informe Brundtland”. Esse estudo do informe trouxe
a primeira definição de desenvolvimento sustentável como: “o desenvolvimento
sustentável pretende satisfazer as necessidades do presente sem comprometer
os recursos equivalentes de que farão uso no futuro outras gerações”, segundo
Cristiane Derani (2008, p. 110-111).
Constata também Derani (2008, p. 110-111) que existe uma maneira
correta de conduta para que o desenvolvimento sustentável aconteça, a qual é:
204
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Modificar a natureza pela sua apropriação ou por meio de emissões,
somente quando for para a manutenção da vida humana ou para
proteção de outro valor básico, ou quando for justificada a capacidade
de se apropriar dos meios sem danificar a sua reprodução. Donde se
concluiu que a sustentabilidade é um princípio válido para todos os
recursos renováveis.
Não obstante, Derani (2008, p. 111-112) complementa da seguinte maneira:
A realização do desenvolvimento sustentável assenta-se sobre dois
pilares, um relativo à composição de valores materiais e outro
voltado à coordenação de valores de ordem moral e ética: uma justa
distribuição de riquezas nos países e entre os países, e uma interação
dos valores sociais, onde se relacionam interesses particulares de
lucro e interesses de bem-estar coletivo. A primeira condição seria
genericamente de proporcionalidade econômica, e a segunda seria
uma condição voltada à proporcionalidade axiológica (referente
aos diversos valores ou princípios existentes na sociedade). (...) O
conteúdo da definição de desenvolvimento sustentável passa por
uma relação intertemporal, ao vincular a atividade presente aos
resultados que dela podem retirar as futuras gerações. As atividades
que visam a uma vida melhor no presente não podem ser custeadas
pela escassez a vivida no futuro. Para tanto, apresentam-se como
elementos a serem trabalhados, os seguintes fatores da produção:
natureza, capital, tecnologia, os quais deverão ter sua dinâmica
vinculada às aspirações presentes sem danificar possíveis interesses
futuros. Além disso dando-lhes o devido suporte, são necessárias
alterações institucionais e nas respectivas políticas, visando uma
espécie de planejamento, dentro de uma visão redistributiva das
riquezas e dos ônus da atividade humana.
Portanto, desenvolvimento sustentável esta relacionado a convivência
harmônica da economia e da natureza. Conciliando sempre as limitações dos
recursos naturais junto com o crescimento econômico avassalador, o qual deve
ter como objetivo maior proporcionar o aumento do bem-estar social.
No entanto, como bem explica Derani (2008, p. 114) existe uma
dificuldade em se conseguir alcançar na prática a sustentabilidade:
Não são encontrados elementos suficientes, capazes de indicar
medidas concretas que levem a uma manutenção dos recursos naturais
205
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
perante o crescimento da produção de bens. Para resolver este dilema,
economistas que defendem tal concepção afirmam que só é possível
o desenvolvimento sustentável durante um período de prosperidade
econômica. Isto é, depois que a população tenha conseguido
adquirir uma quantidade ideal de bens de consumo, suficiente para
sua satisfação e bem-estar. Qual é esta quantia e a que tipo de bens
se refere, dentro da imensidão de ofertas existentes no mercado, e
como tal distribuição é possível de ocorrer, não se pode saber pelos
defensores do desenvolvimento sustentável. Aqui suprir necessidade
representa o ponto de partida para a justificação do crescimento
econômico, o que lhe confere uma aura de indiscutibilidade, tornando
obviedade a prática da conservação dos recursos naturais, somente à
medida que permita a expansão da atividade econômica.
Como se percebe, o desenvolvimento sustentável se consubstancia
em grande desafio, muito por envolver ultrapassados conceitos de economia
e consumo. Insta esclarecer a necessidade de sua prática, posto que imperioso
para o próprio desenvolvimento econômico, além de, como demonstrado,
consistir até mesmo como meio socialização, eis que se trata de matéria que
rompe a barreira do próprio direito ambiental, bem como da economia e
desenvolvimento industrial, agropecuário, entre outros.
4 RIO+20, REFLEXOS PRÁTICOS NA POLÍTICA DO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL.
Na cidade do Rio de Janeiro, entre os dias 13 e 22 de junho de
2012, foi realizada a Conferência da Organização das Nações Unidas sobre o
Desenvolvimento Sustentável, também denominada de RIO+20, a qual segundo
informações da própria ONU, contou com a presença de cerca de 190 chefes
de estado, sendo considerada a maior conferência já realizada pela entidade
(JORNAL DO BRASIL, 2012).
Certamente, a pompa do evento já demonstra a importância
de discussão do tema, além de evidenciar certa preocupação dos países
em discutir a questão, bem como viabilizar a prática de condutas de
desenvolvimento sustentável.
A composição dos membros participantes foi dividida em dois blocos de
articulação, sendo o primeiro formado pelos representantes de estado e, o segundo
pelos representantes da sociedade civil. Estes grupos traçaram como objetivo: a)
assegurar e renovar o compromisso político com o desenvolvimento sustentável;
b) avaliar o progresso e falhas de implementação diante dos compromissos já
cortados; c) definir novos desafios emergentes (RIO+20.ORG/RIO20, 2012).
206
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
O grupo representante da sociedade civil era composto por nove
subgrupos, denominados de major groups, o quais eram formados por
representantes das seguintes classes e esferas sociais, sendo elas: a) comunidade
científica e tecno; b) crianças e jovens; c) agricultura; d) povos indígenas;
e) autoridades locais; f) organizações não governamentais; g) mulheres; h)
trabalhadores e sindicatos; i) negócios e indústrias.
Conforme elenca a própria organização da conferência, estes grupos
possuem o condão de “propor a cada segmento econômico que os países
atendam suas demandas em prol do desenvolvimento sustentável” (RIO+20.
ORG/RIO20, 2012).
Esta formatação demonstra a necessidade de interação entre as mais
diversas camadas da sociedade para que, em conjunto, e, de maneira democrática
seja aferido o melhor posicionamento em relação ao desenvolvimento sustentável.
O Brasil, como sede da conferência, bem como diante de seu papel
como organizador do evento, coordenou debates e direcionou a formação de
consensos para que os países membros adotassem decisões práticas sobre o
desenvolvimento sustentável (BRASIL NA RIO+20, 2012).
Desde já, como consequência da conferência em voga, pode-se destacar
a adoção do princípio da não regressão, o qual “não aceita retrocessos com
relação a conceitos e compromissos internacionais previamente assumidos” (A
PERSPECTIVA BRASILEIRA, 2012).
A respeito, extrai-se que:
É importante destacar que a Rio+20 foi uma Conferência sobre
desenvolvimento sustentável, e não apenas sobre o meio ambiente. O
desafio da sustentabilidade, portanto, representou uma oportunidade
excepcional para se mudar um modelo de desenvolvimento
econômico que ainda precisa incluir plenamente as preocupações com
o desenvolvimento social e a proteção ambiental. (...) Para o Brasil, as
discussões na Rio+20 serviram para incrementar a conexão entre os
objetivos gerais expressos no conceito de desenvolvimento sustentável
e a realidade econômica, tornando-se, assim, um instrumento para
implementar compromissos com o desenvolvimento sustentável (A
PERSPECTIVA BRASILEIRA, 2012).
Verifica-se, assim, a conscientização de que o desenvolvimento
sustentável é indispensável para o próprio fomento da economia, sendo reconhecida
a atribuição de proteção ao meio ambiente a um processo de incremento econômico.
Neste viés, elenca-se o documento final da RIO+20, o qual consigna que:
1. Ser baseada na Agenda 21 e do Plano de Implementação de
Joanesburgo.
207
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
2.
3.
4.
5.
Respeitar plenamente todos os Princípios do Rio.
Seja consistente com o direito internacional.
Construir sobre compromissos já assumidos.
Contribuir para a plena implementação dos resultados de todos
os grandes cimeiras nos domínios económico, social e ambiental.
6. Concentre-se em áreas prioritárias para a realização do
desenvolvimento sustentável, sendo guiado pelo documento final.
7. Tratar e incorporar de forma equilibrada todas as três dimensões
do desenvolvimento sustentável e suas interligações.
8. Seja coerente com e integradas na agenda de desenvolvimento
das Nações Unidas para além de 2015.
9. Não desviar o foco ou o esforço da realização dos Objetivos de
Desenvolvimento do Milénio.
10. Incluir a participação ativa de todos os interessados, conforme
o caso, no processo. (METAS DO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL,2012)
Da análise do documento verifica-se que as metas de desenvolvimento
sustentável, reforçam o consolidado na Agenda 21, que no Brasil foi estabelecida
pelo, então presidente, Fernando Henrique Cardoso, em 2002, além de outras
providências.
Percebe-se, do exame das metas fixadas, a preocupação com a
execução dos projetos assumidos, ou seja, a intenção de materializar as enormes
discussões sobre o tema, em práticas do cotidiano, e não apenas em discursos
políticos de apenas compromisso de intenções.
Destarte, outros documentos importantes foram originados nas
discussões ocorridas na Conferência da Organização das Nações Unidas sobre o
Desenvolvimento Sustentável, dentre estes, se destaca a Carta de Compromisso
de Pacto Global, que teve sua versão brasileira.
Esta carta possui como fito, angariar contribuições do setor privado
para a busca da erradicação da pobreza. Vislumbra-se a importância de tal
documento diante do reconhecimento da pobreza como óbice do desenvolvimento
sustentável, além de seu próprio reflexo social e, principalmente humano.
Por conseguinte, foram assumidos os seguintes compromissos pelas
empresas signatárias do pacto:
1. Buscar sempre o resultado econômico sustentável, aquele que considera
a obtenção desses resultados associados à maximização dos benefícios
ambientais e sociais e à minimização de possíveis impactos negativos;
2. Atuar nos nossos processos produtivos e nas nossas cadeias de
valor (fornecedores e clientes) de forma a:
208
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
a. Continuar a melhorar a eficiência do uso de recursos ambientais
(energia, materiais, solo, água etc.) e a reduzir qualquer forma de
desperdício (resíduos, efluentes, gases de efeito estufa etc.);
b. Ampliar o uso de fontes de energia ou de matérias-primas renováveis; c. Promover a geração de empregos dignos. Aqueles que consideram
o atendimento aos diretos humanos e a capacidade das pessoas de se
desenvolverem continuamente;
d. Promover o diálogo, a cooperação e o comprometimento visando
ampliar a contribuição da cadeia para o desenvolvimento sustentável. 3. Reforçar nosso investimento em inovação e tecnologia de forma
a introduzir novas soluções em processos, produtos e serviços que
possibilitem a redução dos impactos decorrentes da produção,
do uso e eventuais descartes associados aos produtos e serviços; 4. Fortalecer o papel do consumidor e a importâncias das suas
escolhas de consumo considerando todo o ciclo de vida dos produtos
e serviços;
5. Direcionar nossos investimentos sociais ao fortalecimento de três
aspectos: a. Inclusão social da camada mais pobre da população; b. Educação e desenvolvimento de competências para a
sustentabilidade;
c. Promoção da diversidade humana e cultural;
6. Reforçar o cuidado com os nossos relacionamentos com as
respectivas partes interessadas de forma a promover o comportamento
ético e a coibir toda e qualquer forma de corrupção. Isso inclui os
cuidados éticos no processo de comunicação das características dos
nossos produtos e serviços;
7. Definir metas concretas para os aspectos mais relevantes da
contribuição de cada um dos nossos negócios para o desenvolvimento
sustentável e relatar publicamente a evolução do atendimento destes
compromissos;
8. Promover a difusão do conhecimento, respeitando a propriedade
intelectual, de melhores práticas empresariais focadas na ampliação da
contribuição para o desenvolvimento econômico, social e ambiental; 209
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
9. Contribuir nas discussões sobre desenvolvimento sustentável,
economia verde e inclusiva, economia de baixo carbono ou qualquer
outro tema correlato nos fóruns empresariais, como sindicatos e
associações, dos quais fazemos parte, especialmente no Comitê
Brasileiro do Pacto Global; em universidades e escolas de negócios;
junto à sociedade organizada e junto ao governo; de modo a influenciar
e ser influenciado nessa interação; 10. Influenciar e apoiar as decisões e políticas do governo brasileiro
que contribuam para o desenvolvimento sustentável (CARTA DO
COMPROMISSO DO PACTO GLOBAL, 2012).
Destas metas, imperioso exaltar, aquela que reconhece o papel do
consumidor como fundamental para a ocorrência de um desenvolvimento
econômico sustentável. Com isso, o consumo consciente está atrelado ao bom
deslinde daquilo que tange a idéia de sustentabilidade.
Também, vale ressaltar, a disposição que versa sobre a necessidade de
investimentos em face da inclusão social mais pobre da camada social, bem como
na educação e no desenvolvimento de competências para a sustentabilidade,
além da promoção da diversidade humana e cultural.
Neste sentido, oportuno elencar que:
A sustentabilidade em síntese – que abrange não só o meio ambiente,
senão também a população, pobreza, alimento, saúde, democracia,
direitos humanos e paz -, é a busca da segurança da humanidade, em
que a implementação das exigências sociais, culturais e econômicas
se compatibiliza com a proteção do meio ambiente. Nesse sentido, a
sustentabilidade acolhe as advertências dos ecologistas e os argumentos
dos economistas em favor do desenvolvimento, procurando um
“pronto de equilíbrio” e reconhecendo a interdependência entre as
necessidades humanas e as exigências ambientais (LANFREDI,
2002, p. 138-139).
Contudo, em contrapartida, o pacto reconhece a necessidade de ações
por parte do próprio Governo Federal, requerendo que o mesmo se coadune a
efetivar práticas que possibilitam a inclusão e propagação do desenvolvimento
sustentável no Brasil, requerendo o:
A. Fortalecimento da educação em todos os níveis (primários,
secundários, profissionalizantes, universitário e pós-graduação), dando
destaque à difusão dos princípios e das práticas do desenvolvimento
sustentável;
210
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
B. Favorecimento de investimentos em inovação, pesquisa e
desenvolvimento de ciência e tecnologia, especialmente daqueles que
podem introduzir melhorias radicais nos impactos ambientais e sociais; C. Promoção da produção e do consumo mais sustentável,
favorecendo aqueles que melhorem os impactos ambientais e
sociais considerando todo o ciclo de vida dos produtos e serviços; D. Apóio às empresas que assumam os riscos da introdução de novos
produtos e serviços mais sustentáveis; E. E fortalecimento da participação empresarial e da integração das
diversas políticas nacionais e globais considerando o equilíbrio entre
o desenvolvimento econômico, social e ambiental (CARTA DO
COMPROMISSO DO PACTO GLOBAL, 2012).
Ressalta-se, que o vertente documento possui a participação e
anuência de empresas de grande porte no Brasil, demonstrando o engajamento
do setor privado, bem como a consciência para garantir e buscar práticas que
resultem em um desenvolvimento sustentável. Como exemplo, é possível
elencar as seguintes empresas, dentre as 220 (duzentos e vinte) que assinaram
o documento: Banco do Brasil; Petrobras; TAM, Vale, Votorantim, e etc.
(PLANETA SUSTENTÁVEL. ABRIL, 2012).
A celebração deste pacto afasta a equivocada idéia de que somente
ao poder público, caberá o exercício de políticas e ações em face do meio
ambiente. Tal documento reforça a idéia e cooperação para a efetiva busca
de resultados, sendo para tanto, necessário o engajamento da comunidade, da
iniciativa privada, e do próprio Estado.
Importante observar que:
Um evento como a Rio+20, essencialmente uma conferência de
governos, pode dar a impressão de que cabe apenas ao poder público
o dever de analisar o problema e propor soluções. Na verdade não
é assim. Se não houver uma expressiva participação da sociedade
– e, principalmente das empresas, sempre tão capazes de exercer
influência nos governos quando precisam defender seus próprios
interesses – pouco se pode esperar de soluções que, de outra maneira
ficariam restritas às decisões de gabinetes. Por isso é tão importante
que empresas assumam elas próprias, diante de seus colaboradores,
clientes, fornecedores, enfim, diante da sociedade, o compromisso
de que buscarão práticas empresariais mais adequadas à solução dos
problemas que já são bem conhecidos (PLANETA SUSTENTÁVEL.
ABRIL, 2012).
211
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Pois bem, no que tange a iniciativa privada, especificamente em
relação as empresas signatárias do Pacto Global e outros diversos, no Brasil, é
possível listar algumas das ações tomadas por elas em favor do meio ambiente,
visando o desenvolvimento sustentável.
No caso, da Votorantim Industrial, conforme se extrai de seu site, se
verifica a elaboração de diversos estudos e práticas na área do desenvolvimento
sustentável, como por exemplo: programa com metas anuais de melhoria do
consumo de energia por tonelada produzida; ampliação do uso de combustíveis
renováveis e flexibilidade energética; estudos com o objetivo de transformar
outros resíduos em produtos ou insumos (VOTORANTIM.COM.BR, 2012).
Também, de seu relatório de sustentabilidade (VALE.COM.BR, 2012),
é possível verificar as ações tomadas pela empresa Vale S/A, onde constam
várias de suas atividades, das quais se destaca: “respeitar e compreender as
comunidades próximas a suas operações e projetos, incluindo sua diversidade
cultural, e apoiar seu desenvolvimento, deixando para elas um legado positivo”,
para tanto, a empresa alega ter investido 165 milhões de dólares no controle
de redução de emissões atmosféricas, bem como a construção de 7.900 (sete
mil e novecentas) residências, fruto da aprovação da aprovação de projetos de
prefeituras apoiadas pela Fundação Vale.
É possível, também, apontar a política ambiental da Fiat Automóveis
(FIAT.COM.BR, 2012), diante da qual se compromete a:
1- Manter um Sistema de Gestão Ambiental para assegurar o
atendimento aos requisitos legais e outros requisitos, em seus
processos, produtos e serviços.
2- Promover a utilização otimizada de recursos energéticos.
3- Gerenciar os resíduos industriais, minimizando a sua geração e
otimizando a reciclagem dos mesmos.
4- Buscar a melhoria contínua do desempenho ambiental de suas
atividades, visando sempre a prevenção da poluição e aplicando
tecnologia economicamente viável.
5- Produzir veículos condizentes com a legislação ambiental vigente.
6- Promover a conscientização e o envolvimento dos seus empregados,
contratados e subcontratados que trabalham em suas instalações, para
que atuem de forma ambientalmente correta.
212
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Do mesmo modo, imprescindível elencar os compromissos assumidos
pelo Governo Federal, ante a realização da Conferência Rio+20 (GOVERNOS:
ALGUNS COMPROMISSOS ASSUMIDOS NA RIO+20, 2012). Notoriamente,
se destaca o pacto, de juntamente com as prefeituras das maiores cidades do país,
reduzir a emissão de gases de efeito estufa em 12% (doze por cento) até 2016, e,
em 1,3 bilhões de toneladas até o final do ano de 2030.
Além deste compromisso, o Brasil comprometeu-se a investir,
independentemente de específico fundo mundial, no continente africano e, em
pequenas ilhas a quantia de 10 milhões de dólares, com o intuito de fomentar a
adaptação e mitigação dos países contemplados com o investimento na questão
ambiental (GOVERNOS: ALGUNS COMPROMISSOS ASSUMIDOS NA
RIO+20, 2012).
Já no âmbito mundial, frisa-se a criação do Banco do Investimento
Verde, anunciado pelo Vice-Primeiro Ministro da Inglaterra, Nick Glegg. Este
banco, que terá um investimento de aproximadamente 3 bilhões de libras, com
o escopo de financiar o desenvolvimento de novas tecnologias que garantam um
menor impacto do carbono (INSTITUTO CARBONO BRASIL.ORG.BR, 2012).
Logo, vislumbra-se a importância dos debates ambientais,
principalmente diante do engajamento daqueles que promovem o
desenvolvimento sustentável em suas relações econômicas.
Não obstante, apesar da adoção de políticas e medidas em prol do
desenvolvimento sustentável, é cediço que seus resultados serão evidenciados
ao longo dos anos, ou até mesmo décadas, vez que trata-se de uma política
extremamente importante e necessária, que trará resultado de médio a longo prazo,
desde que inserida no cotidiano governamental, social, e, da iniciativa privada.
5 CONCLUSÃO
Ainda que de maneira morosa, o reconhecimento da importância do
meio ambiente, vem acarretando diversas ações no que tange a sua proteção
e preservação, de forma que se vislumbra a prática de diversas políticas
governamentais e, da própria iniciativa privada, com o escopo de disseminar a
aplicação de um desenvolvimento sustentável.
Como elemento essencial para a proteção do meio ambiente, podese elencar a biodiversidade, eis que consiste na variedade de interação entre
os diversos organismos e o meio nos quais ele se encontram inseridos, sendo
assim, toda comunidade ecológica que mantém relações entre si.
Para tanto, imperioso que seja atendida a ética ambiental, a qual consigna
que através do comportamento do homem, bem como do desenvolvimento
de suas capacidades de discernimento, seja aplicado ao caso concreto práticas
sustentáveis, no intuito de garantir um bom deslinde às gerações futuras.
213
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Não obstante, a sustentabilidade se demonstra como caminho hábil
para a proteção ao meio ambiente, além de resguardar a própria biodiversidade,
assumindo uma visão ponderada quanto ao desenvolvimento econômico e o
esgotamento da natureza como um todo.
Contudo, o desenvolvimento sustentável não é algo simples de se
afirmar, posto que diante de sua complexidade abarca diversos elementos que
não são apenas ligados à questão ambiental, mas também, compreende as
matérias correlacionadas a própria subsistência do homem.
No entanto, também, em elevado grau, temos a importância de
abordagem do tema, posto que através da aplicação de políticas de desenvolvimento
sustentável, Podendo-se almejar um equilíbrio entre as atividades econômicas em
prol do meio ambiente, isto é, mediante a implementação desta filosofia, pode-se
buscar um meio termo entre o interesse do capital, privado ou governamental,
em manutenção ao meio ambiente, por conseqüência à biodiversidade, eis que
elemento essencial para a subsistência da vida humana.
Certamente a aplicação da política do desenvolvimento sustentável
iria além da manutenção e proteção ao atual quadro ambiental, de forma
intentar-se também contra danos já existentes na esfera ambiental, resultado de
um desenvolvimento desenfreado ocorrido ao longo do tempo.
Como dito, a questão da sustentabilidade não rasa, consistindo na
interdisciplinaridade de fatos, como por exemplo, a população, pobreza, saúde,
política, economia, direitos, entre outros. Isto é, a sustentabilidade não visa
apenas um equilíbrio ambiental em face da atividade econômica, mas sim, um
equilíbrio nas relações humanas e outros fatores.
Entretanto, o principal desafio da propagação do desenvolvimento
sustentável é a falsa percepção de que tal entendimento confronta aquilo que se entende
por desenvolvimento e expansão econômica, isto é, geração de bens e riquezas.
O vertente equívoco mostra-se claro à medida que se assimila a
idéia de que o desenvolvimento sustentável visa o prolongamento da atividade
econômica, garantido que o patrimônio ambiental seja usufruído pelas diversas
gerações, além da prática comercial.
Destarte, temos que o desenvolvimento sustentável esta pautado na
convivência harmônica entre economia e natureza, acarretando, invariavelmente,
reflexos na vida em sociedade.
Porém, o desafio se mostra amplo, muito por envolver ultrapassados
conceitos de economia e consumo. Importante, ainda, frisar a necessidade de seu
exercício, posto que imprescindível para o próprio incremento econômico. Além
disso, esta conduta consiste como meio de socialização, vez que se trata de matéria
que transcende o próprio direito ambiental, bem como a esfera econômica.
Como resultado do incremento de disposições em função do
desenvolvimento sustentável, podemos elencar diversas ações postas,
214
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
ou, discutidas pelos entes governamentais, além da iniciativa privada e,
representantes das diversas classes que compõem a sociedade.
Destes, recentemente, contribui a realização da Conferência da
Organização das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável,
realizada na cidade do Rio de Janeiro, no mês de junho, de 2012.
Este evento consistiu em um importante marco para futuras discussões
e implementações de propostos e princípios, contando com enorme participação
dos países membros da ONU.
Além da integralização dos representantes de diversos países, a
Conferência ainda contou com a participação de grandes empresas e indústrias,
além da participação popular.
Obviamente, esta interação representa a importância do debate
democrático como elemento acima de interesses políticos e econômicos,
efetuando a discussão em prol do bem comum, no caso o meio ambiente, diante
da prática de condutas sustentáveis.
Entre as diversas deliberações ocorridas na RIO+20, como também
ficou conhecida a conferência em voga, podemos citar a adoção do principio da
não regressão o qual se refere a impossibilidade de retrocessos aos conceitos e
compromissos assumidos na constância do evento.
Por conseguinte, vislumbra-se a conscientização de que o
desenvolvimento sustentável é indispensável para o próprio incremento
econômico, restando imprescindível a proteção ao meio ambiente.
Assim, o importante papel da biodiversidade, como elemento de
proteção ao meio ambiente é reconhecido, eis que intrínseco ao próprio conceito
de proteção ambiental, ainda mais quando tratado sob o prisma brasileiro, diante
da enorme variedade da fauna e flora, a qual enriquece o próprio conceito de
meio ambiente.
De uma maneira ampla, dos documentos que atestam as metas fixadas
pelos participantes da convenção, percebe-se a preocupação com a execução
dos projetos assumidos, isto é, a intenção de materializar as discussões do tema
em elementos do cotidiano, afastando assim, um discurso meramente político.
Ademais, conforme demonstrado há o reconhecimento da necessidade
de cooperação, no sentido de que além da política da própria indústria, o
consumidor possui papel fundamental no sucesso de tal filosofia, além, é claro
do próprio Estado.
Neste liame inclusive, a Carta do Pacto Global, firmada por diversas
empresas brasileiras, reconhece a necessidade de engajamento do Estado, no
intuito de possibilitar a inclusão e a propagação do desenvolvimento sustentável.
Vale ressaltar, que as ações cobrados em face do Estado possuem o cunho social,
novamente sendo evidenciado a multidisciplinaridade do tema.
215
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Em razão disso, verifica-se a desvinculação da idéia de que o somente
o poder público é responsável pela garantia do bem estar ambiental, vinculandose a idéia de cooperação, onde todo indivíduo possui papel fundamental na
formação de um desenvolvimento sustentável.
Todavia, ainda que a RIO+20 tenha permitido o alcance de resultados
significativos, a caminho a ser trilhado é longo e complexo, tratando-se de
políticas permanentes, isto é, não provisórias, visando garantir a manutenção,
proteção e recuperação do meio ambiente, de forma que seu impacto tenha
reflexo nos mais variados setores da sociedade, causando acima de tudo, um
incremento na qualidade de vida, sem no entanto, causar uma estagnação
econômica.
216
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
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217
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Nossa evolução desafios e compromissos em relação aos temas materiais
impróprios.Disponível em: http://www.votorantim.com.br/relatorioanual/
relatorioanual2011/nossa-evolucao-desafios-e-compromissos-em-relacao-aostemas-materiais-prioritarios/index.html. Acessado em: 11.11.2012.
Reino Unido promete bilhões para o crescimento verde Disponível em http://
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218
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
A RECEPÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL PELO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO
RECEPTION OF THE PRINCIPLE OF SOCIAL FUNCTION BY
THE BRAZILIAN LAW
Nicole Voltarelli Amador
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Curitiba
– UNICURITIBA.
José Leandro Farias Benitez
Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Universidade Federal de Santa Maria (1985) e mestrado
em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
(1990). Atualmente é professor do Centro Universitário
Curitiba. Tem experiência na área de Direito, com ênfase
em Direito Civil
RESUMO
O presente artigo científico conta com o objetivo da análise do princípio
da função social perante a nossa atual legislação. A integração da função social
no panorama da desapropriação por interesse social que visa a reforma agrária
nem sempre reflete um comprometimento com a sociedade e as necessidades
advindas das relações sociais, principalmente as que provêm da política agrária
brasileira. Por esse motivo, presta-se esse artigo a fazer uma análise crítica, tendo
por base o método dedutivo, dessa situação de desconformidade principiológica,
apontando doutrinas que se destacaram no estudo dessa matéria. A análise se
dará sem o prejuízo da apreciação das possíveis soluções para o problema, além
do enfrentamento das razões que o acarretaram.
Palavras-Chave: Desapropriação. Função social. Direito de Propriedade.
ABSTRACT
This research paper has the objective of analyzing the principle of
the social function before our current legislation. The integration of social
function in the panorama of expropriation by corporate interest aimed at land
reform does not always reflect a commitment to society and the needs arising
from social relationships, especially those from the Brazilian agrarian policy.
219
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Therefore, this article lends itself to a critical analysis, based on the deductive
method, this situation principled disagreement, pointing doctrines that have
excelled in the study of this matter. The analysis shall be without prejudice to
the consideration of possible solutions to the problem, beyond the coping of the
reasons that resulted.
Keywords: Expropriation. Social function. Property Rights
INTRODUÇÃO
A realidade que envolve o processo de desapropriação por interesse
social num país de extrema desigualdade e palco de acirradas debates e conflitos
rurais constitui motivo suficiente para o desenvolvimento de estudos científicos
embasados no tema.
Num país como o Brasil, cuja atividade econômica possui um cunho
fortemente agrícola e cujas riquezas naturais constituídas por uma fauna e flora
diversificada representam uma das maiores características da nossa nação, a
especial atenção para as mais diversas situações que se estabelecem a partir do
campo se torna imprescindível.
Com esse artigo pretende-se abordar uma dessas situações conflitantes
advindas do desdobramento do direito de propriedade garantido pelo Estado de
Direito, qual seja, a necessidade histórica que fez com que a sociedade alcançasse
o princípio da função social, a as necessidades atuais para a perpetuação e o
respeito a esse princípio.
A situação apresentada fará referência ao princípio da função social
e o que se espera do seu cumprimento em vista da redação de alguns artigos
presentes na Constituição Federal.
A nossa atual Constituição da República, trouxe a alcunha de cidadã,
também por elencar no seu texto direitos tidos como de 3ª geração, que
representavam valores como a fraternidade e a solidariedade, como é exemplo a
tutela por parte do Estado relativa ao progresso humano, à autodeterminação dos
povos, ao meio ambiente, entre outros que buscavam a proteção da humanidade.
Por isso o discurso da função social, passa a ser um discurso primordialmente
constitucional, e o presente artigo também busca ressaltar esse aspecto.
Essa discussão acarretará invariavelmente o estudo do direito de
propriedade por si só visto o aprofundamento constitucional do tema, já que o
princípio da função social se insere no rol do artigo 5° da Constituição Federal,
o que o torna cláusula pétrea perante o ordenamento jurídico.
220
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
1 A INCERÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL NO DIREITO DE PROPRIEDADE
O que conduziu a sociedade à consagração da idéia de função social,
com certeza, foi a marcha da humanidade. À medida que o homem ia tomando
consciência de si perante o mundo, descobrindo-se e compreendendo as
consequencias de pertencer a um grupo social, as teorias foram se aperfeiçoado
e se encaixando nos modelos de sociedade existentes.
Injusto seria excluir dessa evolução humana a Suma Teológica de
São Tomás de Aquino, que na defesa da lei natural, tornava indispensável a
utilização da propriedade para um bem comum. Assim como também seria
injusto excluir o positivismo de Augusto Comte no que tangia à afirmação da
lei como detentora de um poder que sujeitava a todos indiscricionariamente, e
dessa lei advinham deveres superiores a qualquer direito, a obrigatoriedade do
cumprimento desses deveres era justamente a segurança da vida em sociedade.
Cada passo que a doutrina, e a ciência política dão em direção á
justiça social, gera uma necessidade de nova discussão quanto ao Direito
empregado em determinada época. Em tempos recentes, isso é o que precisa
acontecer dada a emersão da Constituição de 1988, com cunho fortemente
solidário e com claros objetivos de dar vida à justiça social, e seu choque com
a antiga civilística de 1922.
A Constituição de 1988 trás para junto do rol dos artigos fundamentais,
consagrados no seu artigo 5°, a função social da propriedade e isso também nos
dá fundamento para defendê-la com o status de cláusula pétrea.
Obviamente toda a discussão a seguir decorre da necessária revisão
do direito subjetivo de propriedade em decorrência desse novo parâmetro que
se estabelece: a função social. E para isso é imprescindível que nos esforcemos
no sentido de conceituá-la e defini-la.
A maior parte dos debates que envolvem essa tentativa de conceituação
e delimitação da função social resume-se a um primeiro dilema a respeito da
propriedade que logo separa correntes doutrinárias. O dilema se origina na
doutrina de Léon Duguit, e toda a sua tese de negação do direito subjetivo.
Esta divergência que consiste no divisor de águas e traz um debate interessante
para a tese aqui apresentada resume-se a indagação sobre a possibilidade de a
propriedade consistir num direito subjetivo ou numa função.
Isso porque muitos autores, como veremos, defendem em relação
ao direito de propriedade, nos termos de Eros Grau (GRAU, 1979, p. 17) “a
concepção romana, que justifica a propriedade por sua origem (família, dote,
estabilidade dos patrimônios)”, enquanto outros defendem a “concepção
aristotélica, finalista, que a justifica por seu fim, seus serviços, sua função”.
221
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Ao lado de autores como Duguit, muitos entendimentos que concebem
a propriedade destituída do cunho fortemente individual e absoluto, afirmam
ser esta um instrumento de promoção social, pois a partir dela seria possível
manter um equilíbrio entre as classes, uma vez que é capaz de empregar os
indivíduos que nela trabalham e torná-los independentes; e econômica, pois
é potencialmente geradora de riquezas, incluindo todas as atividades de
exploração, extração e produção, e a promoção social. Por esses motivo, a
propriedade, segundo o autor, coincidiria com a função social, que é a função
de empregá-la para um fim maior, um fim social. Este posicionamento acentua
o caráter coletivo da propriedade.
Alguns civilistas fazem uma ressalva no entendimento de Duguit,
afirmando que esse viés só se encaixaria em sociedades cujo regime se pautasse
pelo socialismo. A ressalva se dá, naturalmente, pois toda essa discussão
envolve a figura do homem como indivíduo de um lado e de outro a figura do
homem como cidadão.
Nesse sentido, contribui Eros Grau (GRAU, 1979, p. 18), fazendo
uma referência a Karl Renner, ao afirmar que “o poder sobre as coisas engendra
um poder pessoal, impondo sua vontade às pessoas”. O que o autor cita como
a conversão de título de poder em título de domínio é que move o Estado na
construção de mecanismos jurídicos que consigam superar a idéia de dominação.
Daí também a justificativa da força estatal em restringir direitos, como ocorre
com a desapropriação em relação à propriedade privada. E essa desapropriação,
como veremos no decorrer desse trabalho, é estabelecida através da função
social, ou assim deveria ser.
Reforçando a idéia da inseparabilidade entre a propriedade e a função
social, Tupinambá Miguel Castro do Nascimento (NASCIMENTO, 2003, p.
116) expõe claramente a respeito:
A função social se opõe ao exercício egoístico do direito de
propriedade. As ações do proprietário se refletem na coletividade em
que se vive. Por isso, deve haver respeito não à vizinhança, mas ao
erga omnes. Hoje, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é
bem de uso comum do povo, sendo essencial à qualidade de vida [...]
A função social da propriedade se preenche de ações desenvolvidas
com base nestes valores sócias.
No esboço apresentado, cumpre-nos ressalvar que Duguit faz uma
diferenciação entre os bens de produção e os bens de consumo. Pode existir
algum dever referente a um direito sobre um bem de consumo, mas o esquema
apresentado acima é o que melhor traduz a relação do homem com os bens de
222
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
produção, pois especificamente nesse objeto de análise é que se nota uma maior
interferência da atitude individual perante a coletividade.
2 A FUNÇÃO SOCIAL PRESENTE NA LEGISLAÇÃO
Quando se pensa em interpretação de qualquer conceito estabelecido
pelo ordenamento jurídico, não podemos deixar de nos lembrar dos estudos
daqueles precursores da disciplina do Direito, que desenvolveram o método
adequado para o trato das demais fontes dessa matéria que penetra incisivamente
o cotidiano da sociedade.
Com a lição de Hans Kelsen, aprendemos que a norma fundamental, ou
Grundnorm, uma norma superior, é quem traduz o norte a ser seguido por todo
complexo sistema de normas. A partir dessa norma fundamental, materializamos
a famosa pirâmide de Kelsen, que representa hoje a estrutura basilar normativojurídica. O estudo dessa pirâmide apresenta-nos três invariáveis características
que permeiam a relação entre a norma superior para com as inferiores. São elas:
relação de hierarquia, relação de coerência e relação de interdependência.
Isso significa que dentro do um mesmo sistema, não poderá haver antinomia,
ou seja, incoerência (o conflito de regras ou institutos); e a cadeia normativa, o sistema
deve se completar em um todo harmonioso e principalmente em sintonia. Dessa
forma, o sistema permite à norma superior determinar, não somente o conteúdo, mas
a validade das inferiores, precisando, se for o caso extremo de não compatibilidade,
excluir uma norma em dissonância com o sistema, ou se for o caso de divergência
interpretativa, orientar o intérprete na melhor apreciação da norma.
Claramente notamos, portanto, a importância da interpretação das
demais normas à luz dos preceitos instituídos pela nossa norma superior, a
Constituição Federal.
Este primeiro esboço sobre a relação hierárquica entre as normas,
torna mais fácil a tarefa de esclarecer a integração entre o caso e a regra, dado a
importância que o texto legislativo assume para a matéria.
Primeiramente, olhamos detalhadamente para o artigo 186 da
Constituição Federal que estabelece os requisitos da função social, e podemos ver
que todos eles são reflexos das garantias fundamentais que foram estabelecidas
pela própria Constituição. A função social compreende vários outros direitos
constitucionais. Essa constatação é de suma importância e evidencia o status da
função social no nosso ordenamento, simplesmente por ser um princípio que,
sozinho, agrega vários outros consagrados e petrificados pelo constituinte.
Art. 186 - A função social é cumprida quando a propriedade rural
atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência
223
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação
do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores.
Dessa forma, conseguimos ver com clareza que o princípio da função
social engloba várias “sub-funções sociais da propriedade”, como são chamados
no artigo de Joaquim Modesto Pinto Júnior e Valdez Adriani Farias (PINTO
JÚNIOR e FARIAS. 2005, p. 23).
Essas sub-funções possuem previsão no texto constitucional e são,
além da produtividade, a ambiental, com respaldo no artigo 225, caput, que
assegura a todos o meio ambiente ecologicamente equilibrado, também a subfunção trabalhista, que encontra garantia no artigo 6°, constando no rol dos
direitos sociais, e a sub-função do bem-estar, este, corolário do princípio da
dignidade da pessoa humana, que não se exaure nos incisos do artigo 5°. E por
fim, a própria função social é prevista no artigo 5°, no inciso XXIII, no qual
preceitua que a propriedade atenderá a sua função social, ou seja, a todos os
incisos correspondentes às “sub-funções”.
Desse exposto é possível deduzir o papel essencial da propriedade
para a função social dentro da ordem econômica do país, ao ponto de estar
presente entre os direitos e garantias fundamentais presentes na Constituição. A
propriedade rural é o mais importante instrumento de cumprimento da função
social, pois dela é possível extrair a garantia do cumprimento de inúmeros
direitos sociais ou difusos
Essa é a hermenêutica mais adequada, por ser a que se pode extrair da
Constituição, sendo fiel ao sentido que a norma quis impor para os aplicadores
do Direito. Representa uma evolução da Constituição anterior de 1967, que
anteriormente incluía a função social no capítulo da Ordem Econômica tão
somente, como esclarece Gustavo Tepedino: (TEPEDINO,1991 p. 317)
A Constituição anterior já denotava a preocupação do legislador com
a função social nos termos do art. 160, III. O que diferencia o preceito
pré-vigente do atual tecido constitucional – e a diferença não é
insignificante nem secundária – é que o Texto vigente inclui a matéria
no âmbito dos direitos e garantias fundamentais, no inciso XXIII do
art. 5°, o qual dispõe (ao lado da proteção à propriedade privada, art.
5°, XXII), que “a propriedade atenderá a sua função social”.
224
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Além dessa expressa condição constitucional, também o Estatuto da
Terra, Lei n° 4.504 de 30 de novembro de 1964, já se mostrava em seu tempo,
atento à justiça social e ao fim social da propriedade quando traz estabelecidos
requisitos ainda mais específicos para o cumprimento da função social.
Essa definição de função social foi umas das primeiras orientações
latino-americanas a respeito do tema, que trazia desde o caput do seu artigo 2° a
previsão expressa “é assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade
da terra, condicionada pela sua função social”.
No § 1° do mesmo artigo 2°, a lei traz as condições para o cumprimento
da função social:
§ 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função
social quando, simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela
labutam, assim como de suas famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de
trabalho entre os que a possuem e a cultivem.
Também os artigos 12 e 13 do Estatuto da Terra vêm no mesmo
sentido condicionar o uso da propriedade à função social, onde se lê que “à
propriedade privada da terra cabe intrinsecamente uma função social e seu uso
é condicionado ao bem-estar coletivo previsto na Constituição Federal” e impor
ao Estado a promoção da “gradativa extinção das formas de ocupação e de
exploração da terra que contrariem sua função social” respectivamente.
3 A NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE SOB A ÓTICA DA
FUNÇÃO SOCIAL
A partir do englobamento da idéia de função social no Código Civil
italiano de 1942, tiveram início vários debates para que se chegasse a um
consenso sobre a definição do direito de propriedade. Os civilistas não aceitavam
a idéia de transformar a propriedade, que até então sempre fora tratada como
direito subjetivo, numa função. Mais uma vez, ficamos de frente para o debate
entre o individualismo do direito subjetivo e o coletivismo da função social. E
isso colocava em pauta o debate quanto à norma que buscava conciliar o direito
de propriedade e a função social.
Como bem explicou Salvatore Pugliatti, na sua obra La definizione della
proprietá nel nuevo Codice Civile a respeito das normas jurídicas impróprias,
225
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
que essas não dão vida a outras normas jurídicas quando são simples definições
legais, e que não tenham englobado a realidade existente no plano fático, concreto.
Assim, o que seria uma parte de uma norma jurídica contida em outra norma com
a finalidade apenas de direcionar aplicação não estaria sujeita a discussão quanto
a sua legitimidade, mas somente quanto à sua clareza.
Essa era a situação da função social perante o direito de propriedade. O
legislador, no momento da redação da norma, imprimiu um conceito — função
social — que era amplo e genérico com a finalidade de orientar o exercício
de outra norma, a qual concedia o direito de propriedade. Esse espaço amplo
gerado pela forma demasiadamente genérica como foi impressa a função social,
não permitia ao aplicador determinar expressamente quais casos seriam de
utilização inadequada do direito de propriedade, o que gerava um questionamento
a respeito dos meios possíveis para que fossem infringidas limitações a esse
direito, que dominantemente era compreendido como subjetivo.
A esse respeito, a observação de Pugliatti, por ora citada por Hermano
Augusto Machado (MACHADO, 1981, ps. 242 e 243), apresenta-se em boa
hora e mostra como essa complexidade conceitual da função social implicava
numa recusa, por muitos doutrinadores da época, da conexão entre o direito
subjetivo e a função social:
A idéia de função social não se pode assumir num sentido por demais
genérico, por exemplo, como reflexo do fato que o proprietário,
como indivíduo, faz parte de um agregado social, e portanto, o seu
direito deve achar um limite genérico na necessidade de conciliar o
interesse de cada um com aquele da coletividade social. Isto vale para
a propriedade enquanto direito subjetivo, porque vale para qualquer
direito subjetivo como tal; não é, portanto, o caso de se falar nisso se
se deseja definir um aspecto específico e peculiar do novo direito de
propriedade.
Pugliatti alerta ainda que a propriedade-função social, como tida por
Duguit, era um meio de exercitar exclusivamente as atividades pretendidas pelo
interesse público, transformando um direito num órgão com a finalidade de
atingir os anseios do Estado e de sua respectiva política e fugindo totalmente da
concepção de direito subjetivo. E por mais que os conceitos que, agora vemos
claramente serem contraditórios, se oponham um ao outro, isso se deve à falta
de uma maior especificação, da norma que procura conciliar função social e
direito subjetivo.
A supressão da lacuna gerada pela expressão função social também
foi abordada por Duguit em seu trabalho, onde o autor também reconhece o
226
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
exercício irregular, ou como costuma chamar, anti-social, da propriedade. Duguit
critica o individualismo e constata que este sistema está fadado ao afastamento
do mundo jurídico por estar em contradição com a consciência moderna.
Daí extrai-se a conclusão de que toda conduta que ponha em risco a vida em
sociedade deve ser, pelo legislador, classificada como uma conduta anti-social
e por isso, merecedora de sanção. Destacamos, em sua tese, a necessidade do
Poder Legislativo intervir e definir todas as condutas reprováveis. Assim, para
o autor, a supressão da lacuna deveria se dar com a determinação específica de
cada uma das formas de exercício irregular do direito.
Quanto à prevalência da função ou do direito subjetivo, como
possibilidades de conceituação do direito de propriedade, é justo que se faça
uma ponderação no sentido de que na doutrina jurídica e na Constituição, o
direito subjetivo possui raízes mais profundas para solucionar esse embate e
definir o direito de propriedade, num estado capitalista.
Portanto, não se trata aqui de nos conduzirmos à teoria de que a
propriedade seria uma função social, no sentido de a função social constituir
a propriedade, uma vez que mesmo conciliadas, função e direito não se
confundem, e por isso, a propriedade não deixa de ter caráter de direito subjetivo
para a doutrina dominante do Direito, ela apenas perde a sua antiga justificativa
embasada exclusivamente pelo critério origem, como já citado anteriormente.
Ainda restam muitas indagações a respeito da possibilidade de os
mecanismos que geram uma obrigação ao proprietário constituírem limitação
do direito de propriedade ou da propriedade em si. E para responder a esse
anseio social, podemos utilizar a explicação a pouco exposta.
Como bem sabemos a propriedade não constitui função social.
Propriedade é um direito subjetivo de possuir uma quantidade de terra e dela
usufruir, gozar, dispor e assim por diante. Ocorre que, dada a importância
que assume a propriedade rural diante do contexto nacional, e cientes de
que a instituto da propriedade rural é um importantíssimo instrumento de
cumprimento da função social, seja por uma necessidade ambiental ou uma
necessidade social, o Poder Público, e aqui não somente o legislador, através da
redação da norma, mas toda máquina estatal assume a obrigação de proceder
a uma tutela e guarda mais efetiva, atenta e próxima das propriedades rurais.
Sendo assim, a função social penetra no direito de propriedade apenas
com o claro objetivo de limitar não um direito ou o objeto desse direito, mas
tão somente o seu exercício. E através disso, deduzimos que, a despeito do que
Duguit defendia, não é necessário que o legislador determine e defina cada caso
de exercício ilegal da propriedade, tarefa que se mostra absolutamente inviável
na prática. Mas é possível que o juiz, ao atender o caso concreto, disponha de
forma orientada pelo princípio da função social.
227
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Esse dilema que acompanha a humanidade na evolução do Direito nos
faz indagar o motivo que torna a função social tão inaplicável da forma como
é tratada pela lei. E a resposta só pode ser uma: função social consiste em um
princípio, não um direito, ou um dever. Princípio é tudo aquilo que nos serve de
norte, de orientação na aplicação de leis e normas. Princípio consiste na forma
como devemos agir e empregar nossas faculdades, seja na utilização de um direito
ou no cumprimento de um dever. Por isso chamamos de carga principiológica
tudo aquilo que reveste um determinado objeto de um fundamento, seja ele meio
para se atingir um resultado ou propriamente a finalidade esperada.
Assumindo a função social como um princípio, se torna mesmo
difícil assimilá-la da forma como consta na Constituição. É claro que pela sua
complexidade e toda carga histórica que pesou para que se chegasse a uma
aproximação da sua definição não se esgota nas letras constantes da lei. Mas
isso, por si só, não representa uma falha legislativa. É natural que como todo
princípio, a maior parte do conceito esteja embutido na própria expressão e não
haja, nessa lei, uma própria explicação a respeito.
A forma como devemos proceder ao analisarmos um princípio, como é o
caso da função social, não é direta e expressiva como ocorre com a maioria dos direitos
preceituados. Os princípios ocultam no seu bojo uma carga axiológica de valores
demasiadamente grande para ser imposta na letra da Lei. Quando nos deparamos com
um princípio, precisamos recorrer a estudos doutrinários, teses científicas e demais
métodos de aprofundamento no meio jurídico, que nos ajudem a entender melhor
como esse instituto desenvolveu-se assumindo forma de paradigma.
Os casos de contradição do princípio da função social e sua recepção
perante o ordenamento jurídico
Em análise aos artigos 184 e 185 da Constituição Federal, percebemos
uma incongruência entre o princípio da função social e a aplicação da norma.
A análise do artigo 184, pela sua redação, assim estipula:
Art. 184 - Compete à União desapropriar por interesse social, para
fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo
sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da
dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis
no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e
cuja utilização será definida em lei.
Fica claro que através desse dispositivo, a Constituição outorga
poderes à União para que possa, mediante instrumento hábil e legal, desapropriar
as propriedades que não estejam cumprindo sua função social.
228
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
A função social é critério que convalida a propriedade em si, e por
extensão o direito de possuí-la. O pensamento coroado por Duguit é de que o
direito de propriedade somente é protegido pelo ordenamento jurídico desde
que atendidos os requisitos da função social, ou seja, usufruir da propriedade
com a finalidade de trazer às pessoas uma maior independência e elevar o nível
e a qualidade de vida da nação toda.
Essa consequência que liga o direito de propriedade ao cumprimento
da função social fica prejudicada se analisarmos atentamente o próprio artigo
184. Visto a importância desse princípio para a ordem social, o esperado seria
um mecanismo sancionatório no caso de seu descumprimento, ou seja, deveria
importar numa possibilidade de prejuízo ao agente, valorando assim a carga
de obrigatoriedade imposta pelo efetivo cumprimento do critério. Porém, não
é o que observamos na prática, em decorrência da previsão de indenização
constante no mesmo artigo. O que nos leva a crer que o dispositivo não está
adequado ao devido comprometimento com o princípio da função social,
pois restituído o valor da propriedade, sem contar os pagamentos muito além
do real valor do imóvel, para quem usufrui do seu direito de forma egoísta,
desatento aos direitos alheios, seja dos seus trabalhadores ou de toda sociedade.
Configura o que Carlos Frederico Marés (MARÉS, 2003, p. 89) nos demonstra
ser o “prêmio pela terra ociosa”.
A desconformidade com o princípio da função social se torna
ainda mais aparente se nos dispusermos a fazer a análise do artigo 185 da
Constituição Federal.
Quando nos deparamos com esse artigo, somos levados a crer na
total intangibilidade da propriedade simplesmente por cumprir um dos vários
requisitos exigidos na função social. O artigo, analisado separadamente, induz
ao raciocínio de que a produtividade é única condição para o proprietário
assegurar seu direito de propriedade.
Art. 185 - São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma
agrária:
I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde
que seu proprietário não possua outra;
II - a propriedade produtiva.
Ora, a expressa proibição de desapropriação por somente um dos
fatores de cumprimento da função social, faz-nos colocar esse fator em lugar de
preponderância sobre os demais fatores, e sobre a função social como um todo.
Isso porque a proteção que advém desse dispositivo é muito mais reforçada
por consistir numa proibição de fazer (desapropriar se estiver cumprindo um
229
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
requisito), e a proteção dispensada à função social no artigo 184 consiste numa
faculdade de fazer (não desapropriar se cumprir todos os requisitos).
Essa diferença vai contra o “espírito” da Constituição, pois de acordo
com matéria já abordada, a preocupação da Constituição de 1988, a cidadã, é no
sentido de salvaguardar o interesse e as necessidades da sociedade, envolvendo
seus direitos e garantias fundamentais, como já foi esboçado através do artigo 5°
e 6° principalmente, mas longe de serem os únicos voltados para essa finalidade.
A mesma diferença também abre possibilidade para um erro prático
grave, que seria deixar de desapropriar uma área que seja produtiva, mas conte
com métodos desrespeitosos à função social para tanto. A repercussão do erro
vai além disso. Abre brechas para como ocorre, nesses casos o aplicador da
norma desrespeitar o princípio constitucional da igualdade, e tratar de forma
desigual aqueles que igualmente não cumprem a função social, desapropriando
as propriedades improdutivas e protegendo as produtivas sendo que ambas
se identificam no descumprimento dos requisitos do artigo 186 e por isso
necessitando mesmo tratamento, qual seja o sancionatório.
Não há que se duvidar da essencialidade da produtividade integrar os
requisitos do artigo 186, porém, não podemos esquecer que este é somente parte
do todo que constitui a função social, juntamente com o direito ao trabalho, o
direito ao meio ambiente preservado e o direito ao bem estar. Não podemos
deixar que uma leitura equivocada faça com que a produtividade prevaleça
sobre a função social, pois seria o mesmo que a parte prevalecer sobre o todo.
Bem como, não há também que se questionar se a norma do inciso
II não seria de imediata aplicação uma vez que presente na Carta Magna. O
“espírito” da Constituição de 1988, que elencou a justiça social como um dos
seus nortes a serem seguidos tornou a função social um princípio essencial e
portanto, na análise de qual orientação seria a mais cogente com todo o bojo
constitucional, o que prevalece é a finalidade social da propriedade.
Muitas doutrinas abordam essa matéria, conceituando e buscando um
aprofundamento que explicasse essa incongruência constituicional.
E essa explicação pode encontrar-se até mesmo no campo da lógica,
se percebermos uma relação de incompatibilidade, uma antinomia real entre
as normas, como defende Gladstone Leonel da Silva Júnior por estarem elas
inseridas num mesmo grau cronológico, hierárquico e específico e, portanto,
não ser possível de resolução por nenhum desses critérios, como é comum
procedermos em casos de antinomias aparentes.
Nesse caso, a possibilidade que temos de resolução dessa antinomia,
que foge aos remédios aplicados em antinomias aparentes é dada por Norberto
Bobbio (BOBBIO, 1999, p. 100):
230
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
A solução do conflito é confiada à liberdade do intérprete; poderíamos
quase falar em um autêntico poder discricionário do intérprete, ao
qual cabe resolver o conflito segundo a oportunidade, valendo-se de
todas as técnicas hermenêuticas usadas pelos juristas por uma longa e
consolidada tradição.
Joaquim Modesto Pinto Júnior e Valdez Adriani Farias (PINTO
JÚNIOR e FARIAS, 2005, p. 22) caracterizam esse fenômeno por “negação
hermenêutica” por sustentar que um dispositivo não corporifica o outro, ou
seja, juntando ambos, não conseguimos detectar uma “cogência absoluta”,
necessária para todo qualquer sistema normativo que pressuponha ser conexo,
coerente, como aprendemos com Kelsen.
Alguns autores sustentam que essa preponderância da produtividade
em vista da função social caracteriza uma ilegalidade ou um abuso de poder.
Josserand, em sua tese que defende a limitação do direito subjetivo, qual é dotada
a propriedade, constrói uma linha de raciocínio com as seguintes hipóteses: se
a destinação da propriedade é seu fim social e econômico, deixar de lado essa
finalidade no decorrer do uso da propriedade é exercê-la fora e destituída de
sua utilidade natural, o que caracteriza um desvio de finalidade. O desvio de
finalidade está diretamente ligado ao abuso de direito. Portanto, desde que o
direito de propriedade não esteja sendo exercido da forma como é destinado, o
proprietário pode ter seu direito limitado, por ter abusado das prerrogativas que
detinha a princípio.
Também autores como Joaquim Modesto Pinto Júnior e Valdez
Adriani Farias percebem uma ilegalidade na interpretação que supervalora
a produtividade, uma vez que as garantias abrangidas pela função social
representam deveres a serem observados pela sociedade como um todo, não
somente os governantes, nem somente os governados. E para garantir isso,
podemos citar como exemplo o §3° do artigo 225 da Constituição Federal,
relativo às sanções penais e administrativas que podem ser impostas a quem
agir de forma lesiva ao meio ambiente. Sendo assim, vai contra o ordenamento
jurídico, além de ser ilegal desconsiderar os focos de desrespeito aos preceitos
estabelecidos pela função social, mesmo que seja produtivo. A isso, referem-se
bem os autores a pouco citados: (PINTO JÚNIOR e FARIAS, 2005, p. 28)
Reconhecendo a razoabilidade do raciocínio segundo o qual direitos
são assegurados até a medida em que não configurem ilícitos ou
abusos de direito, anuir em que o art. 185 estaria referindo-se apenas
à produtividade lícita ou não abusivamente obtida, não vigendo
como garantia em caso de produtividade haurida por decorrência
231
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
de ato ilícito ou abuso de direito, porquanto a negativa, implicando
em incentivo ao brocado segundo o qual os fins justificam os meios,
exigiria admitir defesa da apologia do ilícito pela carta constitucional
da nação, premissa inadmissível em qualquer regime.
Como defende o autor a pouco citado, a exclusão da norma que impeça
ou comprometa a aplicação de outras é possível em se tratando de antinomia real,
como nos ensina Norberto Bobbio. Mas também seria possível uma outra saída.
Como já dito, é ilícita a produtividade que desrespeite as condições dos
trabalhadores, o meio ambiente ou não proporcione o bem estar às pessoas que
trabalham na propriedade. Essas situações entram no campo do ilícito por violar
preceitos legais, o “espírito” que a lei preceitua no escopo de vários dos seus textos.
Sendo assim, ao depararmos com o inciso II do artigo 185, onde se lê produtividade,
leia-se produtividade lícita. A inclusão da palavra lícita no dispositivo legal nos
remete justamente ao cumprimento de todos os requisitos da função social.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da forma como vista e interpretada a função social até aqui, os
critérios elencados pelo artigo 186 não são excludentes um em relação ao outro.
Ao contrário, a própria interpretação sistemática, teleológica, ou conforme nos
aponta para o fato de que todos os bens e garantias ali defendidos são requisitos
que se somam em prol do interesse e benefício da sociedade.
A soberania do princípio da função social, presente na Constituição
Federal encontra respaldo, antes que no próprio texto constitucional, nas
necessidades históricas da humanidade e na evolução da justiça social.
Admitir a produtividade como um pré-requisito, é admitir que o inciso
II do artigo 185 criasse uma exceção para a regra preceituada pelo artigo 184.
Porém o artigo 186, que confere respaldo ao artigo 184 por caracterizar função
social, apresenta o rol de direitos a serem preservados “simultaneamente” e
“segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei”, como expressa
o texto constitucional. Assim, fica claro que os artigos 184 e 186 não deixam
espaço para uma exceção, da forma como o Ministro defendeu em seu voto,
assim como não o faz todo o restante do texto constitucional por conter
sempre em seus dispositivos os princípios defendidos em seu escopo. Como
demonstram Joaquim Modesto Pinto Júnior e Valdez Adriani Farias (PINTO
JÚNIOR e FARIAS. 2005, p. 26) em passagem constante no artigo já citado:
Mas, mais grave do que imprimir ao comando do art. 185 um
caráter de hegemonia sobre o comando do art. 184, rompendo
232
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
com os postulados de jus-hermenêutica constitucional, mais grave
do que subverter o conceito constitucional de função social, essa
exegese, no que subtraísse à desapropriação sanção tal imóvel
SIMULTANEAMENTE descumpridor de três componentes
(elementares) da função social (meio ambiente, juslaboralismo e bem
estar), expondo ao mesmo imóvel descumpridor de apenas um desses
componentes (produtividade), estaria promovendo inominável ruptura
com a coesão normativa da Constituição, porquanto desprestigiaria os
seguintes outros comandos constitucionais:
Os mesmos autores chamam a atenção para o dispositivo impresso
no mesmo §3° do artigo 225 da Constituição Federal, que prevê “sanções”
justamente para abrir a possibilidade de punições penais, e administrativas
não se restringindo à multa, mas também à sanção administrativa para
descumprimento da função social por excelência, a desapropriação, e por
isso, não poderia excepcionar essa regra, o artigo 185, inciso II. Sendo assim,
conseguimos vislumbrar mais um dispositivo constitucional que permite e
autoriza a desapropriação pelo descumprimento de um dos requisitos da função
social, a conformidade ambiental.
Nessa ótica não existe requisito superior ou pré-requisito. Nem
a produtividade, nem nenhuma outra das quatro sub-funções fazem com
que, se observadas individualmente, excluam a observância de outra.
A importância que a produtividade assumiu historicamente para a vida
humana é sem dúvida substancial, porém, ela é um meio para efetivar a
complexidade principiológica que é a função social, não um fim em si.
Como cita o economista Jean Fourastié (FOURASTIÉ. 1990. p. 100) em
conclusão ao que seria a produtividade: “a técnica é um meio de favorecer
o que, no homem, é o mais essencialmente humano.”
A função social da propriedade apresenta-se como um princípio
regulador das condutas e do trato humano para com as áreas rurais. Agir
conforme a função social é atentar para os anseios da sociedade e usufruir de
algo que se tenha a titularidade de forma a preservar o bem estar social.
O status de princípio que esse instituto assume é suficiente para
que possamos distanciá-lo do questionamento entre a preponderância do
seu conceito ou do conceito de produtividade gerado pela antinomia que se
apresenta na redação dos artigos 184 e 185 da Constituição da República.
A posição da produtividade frente à política agrária é indiscutível
num país extenso como o Brasil. Porém, como prezou Jean Fourastié, em
todos os países a produtividade é essencial para o desenvolvimento e
aprimoramento dos povos e nações por possuir uma característica evolutiva
233
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
e ao mesmo tempo alimentícia. A humanidade carece da produtividade como
carece do sustento diário.
A essa significativa relevância da produção é que se deu a inserção do
elemento produtividade no cumprimento do princípio da função social, como
fonte da justiça social, emoldurada no “espírito” da Constituição cidadã.
Mesmo assim, o direito de propriedade não perde sua natureza de
direito subjetivo, como muito se temeu por correntes doutrinárias mais liberais.
Isso porque a propriedade é um direito garantido a nós como cláusula pétrea.
Uma garantia não superior, nem inferior a nenhum outro direito. Mas, pela sua
característica de extrema essencialidade á toda população, não permitirmos uma
política mais enfática sobre a sua utilização seria o mesmo que negligenciar o
futuro da nação.
A forma como afirma Duguit de correção dessa lacuna advinda do
Poder Legislativo se mostra demasiadamente inviável. Mas é prescindível
que se recorra a essa resolução. Como aplicador do Direito, o juiz também
pode solucionar empecilhos dessa natureza, na esfera jurídica, já que possui
instrumentos para agir conforme os princípios que avaliar justo naquele caso
concreto.
234
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
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rev. atual – Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2003
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PUGLIATTI, Salvatore. La proprietá nel nuevo diritto. La proprietá e le
proprietá. Milano, Giuffrè, 1964.
235
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
TEPEDINO, Gustavo. Aspectos da propriedade privada na ordem constitucional.
Livro de estudos jurídicos. Número 3. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo:
Malheiros Editores, 1999
236
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
OS GRUPOS ECONÔMICOS E A RESPONSABILIDADE CIVIL
ECONOMIC GROUPS AND CIVIL LIABILITY
Eduardo Antonio Perine
Graduando em Direito pelo Centro Universitário Curitiba
– UNICURITIBA. Estagiário W Soares Advocacia.
Autor da Monografia: Responsabilidade Civil de Grupos
Econômicos e Franquias Empresariais Perante Terceiros
Sandro Mansur Gibran
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de
Curitiba (1996), Mestre em Direito Social e Econômico
pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2003)
e é Doutor em Direito Econômico e Socioambiental
pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2009).
Atualmente é professor do Programa de Mestrado em
Direito do Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba,
também de Direito Empresarial e de Direito do Consumidor
da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba
- UniCuritiba -, de Direito Empresarial junto ao Centro
de Estudos Jurídicos do Paraná e junto à Escola da
Magistratura Federal do Paraná, além de coordenador
do Curso de Pós-Graduação em Direito Empresarial do
Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba - e advogado
- Roberto Ferraz Advogados. Tem experiência na área de
Direito Empresarial
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Os Grupos Econômicos 2.1 Os Grupos Econômicos e
o Direito do Consumidor 2.2 Os Grupos Econômicos e a Incidência Tributária 2.3 Os
Grupos Econômicos e o Direito do Trabalho 3. Conclusão
RESUMO:
A presente pesquisa tem como objetivo principal esclarecer e definir
as hipóteses e as modalidades de responsabilidade civil dos Grupos Econômicos
ante três áreas do Direito. De início, se estudará os grupos econômicos e suas
modalidades, destacando a evolução econômica e a união das empresas visando
o crescimento dentro de um mercado em intensa ampliação para, posteriormente,
aplicar na prática a responsabilidade desses holdings nas áreas do direito
tributário, direito do consumidor e direito do trabalho. A aplicação prática
237
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
tem como exclusivo escopo identificar as hipóteses de proteção do Estado, do
consumidor ou, ainda, do trabalhador, mediante o entendimento dos operadores
do direito empresarial. Por fim, o estudo apresentará as formas defesa e quais os
instrumentos de proteção do Estado, do consumidor e do trabalhador.
Palavras-chave: responsabilidade civil, grupo econômico, tributário, consumidor
e trabalhador.
ABSTRACT
This research aims to clarify and define the main assumptions and
procedures for liability of Economic Groups ante three areas of law. Initially,
if the study groups and economic arrangements, highlighting the economic
evolution and merger of the companies seeking growth in a market where
intense magnification to subsequently apply in practice the responsibility of those
holdings in the areas of tax law, consumer law and employment law. The practical
application is to identify the assumptions unique scope of state protection,
consumer or even the worker, through the understanding of legal business.
Finally, the present study forms the DEFENSE AND WHICH INSTRUMENTS
OF STATE PROTECTION, CONSUMER AND WORKER.
Keywords: civil, economic group, tax, consumer and worker.
1 INTRODUÇÃO
O instituto empresarial dos grupos econômicos vem crescendo
consideravelmente no Brasil e no mundo nos últimos anos, isso se deve muito
em razão do crescimento do mercado econômico e do crescimento do consumo.
O grupo econômico caracteriza-se pela força empresarial em virtude
da união de empresas nas modalidades de coligadas, consorciadas e controladas.
Assim como outros institutos empresariais, como consequência natural,
os grupos econômicos são responsáveis pelos seus atos, de forma que são alcançados
por diversas áreas do direito brasileiro, entre elas o direito tributário, o direito do
consumidor e o direito do trabalho. Em face disso, os grupos econômicos e suas
empresas membros são responsáveis pelos seus atos jurídicos e devem responder
por suas consequências. Entra, aí, a responsabilidade civil desse instituto jurídico.
A responsabilidade civil nos holdings é mutável, varia de acordo
com a pretensão do direito e da modalidade de grupo econômico, assim, a
responsabilidade pode ser solidária, subsidiária, objetiva ou subjetiva.
238
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Dito isso, a presente pesquisa apresentará as formas de responsabilidade civil aplicada nos grupos econômicos e quais as modalidades dessa
responsabilidade nas áreas do direito tributário, direito do consumidor e direito
do trabalho.
2 OS GRUPOS ECONÔMICOS
O sistema de grupos econômicos começou a fazer parte
do cenário mundial no século XX, em razão de grandes alterações sociais e
econômicas que resultaram de modo natural em uma grande inovação no direito
comercial e, como consequência, desenvolveram-se ideias a fim de constituir
uma grande concentração econômica (REQUIÃO, 1995, p. 215).
A revolução neste campo empresarial ocorreu em função de três
fatores: do crescimento tecnológico, de uma maior dependência do mercado
nacional e do crescimento das barreiras ao comércio internacional. Funcionou,
bem na verdade, como um instrumento para fortalecer o capital da empresa, com
objetivo de sobreviver ao mercado e ganhar força no mercado concorrencial do
serviço prestado ou produto oferecido, baixando os custos e, claro, aumentando
os lucros. Outro, aliás, não é o entendimento de Marlon Tomazette:
Os grupos societários podem apresentar inúmeras vantagens, para as
sociedades envolvidas, como por exemplo, o aumento da produtividade
dos membros, o aumento da capacidade de comercializar e distribuir
em grande quantidade seus produtos, o aumento dos lucros, a redução
dos custos de produção, o favorecimento dos progressos tecnológicos, e
eventualmente permitir a integração de mercados, quando o grupo se formar
entre sociedades de países diferentes (TOMAZETTE, 2004, p. 466).
A saída diferencial para suportar o aumento dos consumidores, o
crescimento econômico e a, cada vez maior, concorrência no mercado, seja
interno ou externo, foi uma atuação empresarial forte atrás de novas tecnologias
e capacidade financeira.
Com o passar dos anos, com o grande aumento desses grupos de
sociedades e da sua alta relevância no mercado interno e, principalmente,
externo, foi necessário, por óbvio, a criação de uma legislação própria, com
intuito de regulamentar as inúmeras situações que, naturalmente, nascem em
contratos e formações nesses grupos, pois, em razão da falta de legislação
própria, perguntas simples encontravam-se sem respostas.
O primeiro país a se adequar a esse novo instituto empresarial foi à
Alemanha, em 1965 (REQUIÃO, 1995, p. 216), com a criação da lei que regulava
a sociedade anônima. Por conseguinte, o Brasil se inspirou na lei da sociedade
anônima alemã, que resultou na criação da Lei nº 6.404, de dezembro de 1976.
239
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Surgiram os chamados grupos econômicos, nada mais que um
instrumento eficaz de suportar o crescimento do mercado, com objetivo de
atender as exigências e o desenvolvimento em que o mundo globalizado se
transformou através da união de forças e capital.
Para Sérgio Campinho o grupo econômico é:
[...] técnica de exploração racional da atividade empresarial, na busca
do atingimento de um processo de investimento, pesquisa, produção
e comercialização mais eficientes. A aglutinação empresarial é uma
forma de encarar eficazmente os desafios da economia de escala
(CAMPINHO, 2009, p. 299).
Observa-se, ainda, que o grupo econômico pode ser definido através
da lei, pela Consolidação das Leis de Trabalho, em seu artigo 2º, §2º que,
em outras palavras, afirma ser a constituição de uma ou mais empresas, com
personalidades jurídicas diferentes, com a administração de outra, formando
um grupo de qualquer atividade econômica, ou seja, nada mais é que a união de
empresas integradas por algum meio legal, com uma única direção econômica.
Ressalta-se que para a caracterização do grupo, não é necessário que
se tenha apenas um ramo econômico, sequer parecido ou complementar, assim,
as empresas podem se agrupar e ocupar áreas econômicas distintas.
Outro ponto peculiar do instituto do grupo econômico é o fato de
existirem varias sociedades com personalidade próprias, juridicamente
independentes e com patrimônio próprio, mas ainda sim são unidas, mediante
controle ou direção de uma empresa ou pessoa física e pelo interesse comum no
sucesso econômico.
Nota-se, que não há fusão das personalidades jurídicas, tampouco do
patrimônio das empresas participantes dos grupos.
Ademais, a partir da criação da Lei nº 6.404 de 15 de dezembro de
1976, as óbices legislativas foram deixadas para trás e trouxeram, aos acionistas e
as sociedades, uma maior segurança jurídica e ampla noção de direitos e deveres.
A legislação própria das sociedades teria como objetivo principal
fortalecer as grandes empresas, auxiliando as pessoas jurídicas que não
detinham poderio econômico e de mercado de consumo forte, além da união
dos grandes bancos, formando grandes grupos econômicos, alguns, inclusive,
com potência mundial.
Existem duas formas de grupo econômico que podem ser explicadas
por Marcelo M. Bertoldi e Marcia Carla Pereira Ribeiro, da seguinte maneira:
Formam grupos de direito aquelas sociedades que se relacionam entre
si mediante convenção formalizada no Registro Público de Empresas
240
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Mercantis, por meio do qual se obrigam a combinar recursos ou
esforços para a realização dos respectivos objetos, ou a participar de
atividades e empreendimentos comuns. Os grupos de fato, por sua vez,
constituem-se de sociedades que relacionam mediante a participação
acionária de umas em relação a outras, todas pertencem a uma mesma
organização de fato. Estas se apresentam sob a forma de coligadas,
controladoras e controladas (BERTOLDI; RIBEIRO, 2009, p. 359).
São grupos econômicos de fato aquelas sociedades que são ligadas,
sem estabelecer uma relação profunda e sem manter uma organização jurídica.
Advém, ainda, desta modalidade, a ligação das empresas através do
regime de coligadas, controladoras e controladas.
A outra modalidade de grupo econômico é o grupo empresarial de
direito que se constituem através de uma convenção, isto é, são formalizadas
nas Juntas Comerciais – Registro Público de Empresas Mercantis e tem como
objeto uma organização própria.
A essência desses grupos econômicos de direito é a formalização do
ato jurídico, ou seja, há uma obrigatoriedade de uma convenção para definir
a relação jurídica e patrimonial das empresas, como informa o art. 266 do
Código Civil.
Destaca-se, no entanto, que o registro não oferece personalidade
jurídica ao grupo, tampouco a união de patrimônio.
Há distinção, portanto, entre essas duas formalidades dos grupos
econômicos, mas diz respeito à tão somente a formalização dessa união na
Junta Comercial, nada além da formalização do ato jurídico.
2.1 GRUPO ECONÔMICO E DIREITO DO CONSUMIDOR
O direito do consumidor positivado na Lei nº 8.078/90 tem como
principal objetivo a proteção do polo mais fraco da relação jurídica do consumo,
ou seja, busca a proteção de um grupo social específico, em virtude de o grupo
do consumidor ser o mais fraco em frente às relações jurídicas com o fornecedor,
empresário, do comerciante e afim.
O direito do consumidor ganhou espaço com a promulgação da
Constituição Federal de 1988, que instituiu esse ramo do direito como uma
garantia fundamental e como um princípio da garantia da ordem econômica do
país, tornando-se um reflexo do caráter protetivo da Constituição como um todo.
Nesse sentindo, CF/1988 através do art. 48 do Ato das Disposições
Transitórias Constitucionais, determinou a elaboração de um código específico
à área consumerista com base exclusiva na proteção ao consumidor.
241
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Essa determinação do Ato das Disposições Transitórias se procedeu
da melhor maneira, isso porque, com a promulgação do código, o Estado
promoveu, e continua promovendo, o interesse protetivo através dos três
poderes (Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder judiciário).
A partir dessa concepção de direito protetivo, do caráter tutelar e
caracterizando o devedor não mais como um objeto do direito, aquele que sofria
das mais variadas punições em razão do inflexível pacto sunt servanda, mas
como um sujeito de direitos, passou-se a ter reconhecido a sua liberdade, ainda
que na existência de uma obrigação contratual.
Além do considerável aumento da liberdade do consumidor nas
relações jurídicas, o Código de Defesa do Consumidor carrega em seu texto
positivo outros princípios que caracterizam o seu sistema protecionista,
sendo eles o princípio do imperativo da ordem pública e interesse social, da
hipossuficiência, da vulnerabilidade, do equilíbrio e da boa-fé objetiva, do dever
de informar, da revisão das cláusulas contrárias, da conservação do contrato, da
equivalência, da transparência e, por fim, da solidariedade.
Não se pode olvidar, ainda, que essa evolução impar do direito
consumerista decorreu, além da determinação da Constituição nos pontos já citados,
em virtude de outro princípio da Carta Federal, especificamente da isonomia.
Isso porque em razão do caráter isonômico, do preceito do tratamento
igual aos iguais e do tratamento desigual na medida da sua desigualdade, atenuou
a força dos credores, sem mais que houvesse o cumprimento da obrigação
a qualquer custo e sem qualquer ajuste (pacto sunt servanda) e ofereceu o
crescimento dos direitos dos devedores.
Significar dizer, em suma, que o papel da Constituição foi determinante
para a evolução legislativa no foco consumerista, de forma que se pôde garantir
a proteção ativa ao consumidor, amparando-o frente ao hiperssuficiente
fornecedor, mediante a criação de um texto positivado com ampla garantia
constitucional e da fiscalização ativa do Estado.
É importante destacar que consumidor, conforme elude o código
próprio, é o destinatário final do produto, aquele que adquiri o produto com
exclusivo escopo de utilizar sem fins econômicos, conforme disposto no art. 2º
da Lei nº 8.078/90.
Essa definição de destinatário-final pode apresentar um conceito
muito variável e inclusive abre margem para interpretações ampla, contudo
ainda sim a interpretação por mais variável que seja é restrita a expressão de
último destino do produto ou serviço.
O destinatário final, então, é aquele que utiliza o produto adquirido,
durável ou não durável, sem contrair lucro direto. Isso porque, parece razoável
em razão do caráter protecionista do código em proteger, inclusive, aquelas
242
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
pessoas jurídicas que adquirem um bem sem finalidade direta de lucro, que
faz do produto adquirido uma forma indireta de melhorar o desempenho e o
rendimento da empresa.
Outro, aliás, não é o entendimento do nobre Desembargador
Rizzatto Nunes:
Mas o que acontece se a concessionário se utiliza do veículo como
“destinatário final”, por exemplo, entregando-o para seu direito usar?
A resposta dessa questão é fácil: para aquele veículo a concessionária
não aparece como fornecedora, mas como consumidora, e a relação
está tipicamente protegido pelo Código (o que será confirmado pela
exposição que se segue) (NUNES, 2010, p. 163).
Ademais, assim como a definição do consumidor, a legislação
consumerista demonstra a função social (MARQUES; BENJAMIN; BESSA,
2012, p. 54) da lei, conforme o primeiro artigo da Lei nº 8.078.
Conforme o primeiro artigo do código, através da expressão utilizada
ordem pública, conclui-se tratar de um direito indisponível, ou seja, direito que
o consumidor não pode ceder para terceiro viola-lo, mesmo que essa seja a
vontade do titular do direito.
Trata-se de lei de ordem pública, de preceito fundamental, com
garantia Constitucional, em que pese seja oriundo de um direito privado, isto é
da divisão do direito civil e do direito empresarial.
Por essa razão que a grande diferença do referido código é a especificidade
que buscou ao determinar e atribuir o caráter tutelar a determinado grupo social.
Com o advento do CDC, vieram os princípios básicos do consumidor,
aqueles que restariam garantidos pela lei e pela atuação protetiva estatal.
Portanto, a Lei nº 8078 visa sobre tudo garantir a perfeita ordem
da relação jurídica e proteger o principal personagem desse mundo jurídico,
além de evitar que o consumidor não se sinta, e nem saia, lesado em virtude de
inobservâncias do fornecedor.
Em outras palavras, os direitos básicos do consumidor concretizam o
objetivo do legislador constitucional ao definir a natureza especial da proteção
a um determinado grupo social, pois elaborou com vasta propriedade uma das
maiores evoluções legislativa do país.
Na prática jurídica consumerista, mais especificamente em relação
ao caráter tutelar em frente às poderosas forças empresariais, como os grupos
econômicos, o Código de Defesa do Consumidor não decepcionou. Isso porque há
um considerável aumento de possibilidades de satisfazer e indenizar o dano gerado
ao consumidor por quaisquer inobservâncias ocorridas pelo grupo societário.
243
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Dessa forma, como bem elude o código, o consumidor que se encontrar
lesado em razão de qualquer ato ilícito descrito no caput, e outros atos que
resultarem na lesão, poderá ingressar com ação contra a pessoa jurídica agente
do ato ilícito e, subsidiariamente, contra qualquer outra empresa que pertença a
esse mesmo grupo de sociedade.
A responsabilidade presente nas situações em que envolvam os grupos
econômicos será, portanto, a subsidiária, ou seja, há um critério de ordem, de
forma que é necessário ingresso de ação contra a empresa responsável e tão
somente no insucesso da ação que se restará autorizado para ingressar contra
qualquer outra empresa membro do grupo econômico.
Nesse sentindo, Antônio Herman, leciona que nas relações jurídicas
em desfavor de um grupo econômico “trata-se de operação de adição e não
subtração do numero de agentes econômicos responsáveis pelos acidentes de
consumo” (MARQUES, BENJAMIN, BESSA, 2012, p. 168). Logo, a intenção
do legislador é clara ao adicionar responsáveis na relação jurídica consumerista,
pois, o consumidor é fraco e não por outra lógica abrir um rol de opções de
responsabilidade auxilia o poder judiciário e, também o poder executivo,
a responsabilizar pelo dano causado, ainda mais se tratarmos de danos ao
consumidor em níveis catastróficos.
Nesse sentindo, bem votou o Rel. Desembargador Luiz Lopes, na
ação 891358-8, do TJPR:
Ao lado disso, para que seja possível a adoção da medida excepcional
da desconsideração da personalidade jurídica, além da insolvência,
deve estar demonstrado nos autos, de forma robusta, o abuso da
personalidade, com os requisitos do artigo 50, do Código Civil, e do
artigo 28, do Código de Defesa do Consumidor.
É possível a aplicação da referida medida nos casos de empresas
pertencentes ao mesmo conglomerado econômico, geridas pela
mesma administração, e com identidade igual perante o mundo fático,
que objetivam se furtar de responsabilidades.
Ante o exposto, nos grupos econômicos de direito, aqueles que
formalizam em Junta Comercial, que se unem através de poderio econômico,
matéria prima, mão de obra, etc., recai a responsabilidade subsidiária.
Ademais, no mesmo artigo e os parágrafos seguintes, §3º e §4º dizem
respeito às outras formas de grupos empresárias.
O parágrafo 3º, afirma a responsabilidade solidária das empresas
consorciadas, aquelas que unem esforços para determinado empreendimento,
isto é, não há uma formação permanente de um grupo econômico, mas uma
244
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
formação para determinado empreendimento. Melhor definição através do artigo
278, da Lei nº 6.404/76, “As companhias e quaisquer outras sociedades, sob o
mesmo controle ou não, podem constituir consórcio para executar determinado
empreendimento, observado o disposto neste Capítulo”.
Trata-se daqueles grupos econômicos de fato, que se unem sem
um registro na Junta Comercial, que decorrem somente para determinados
empreendimentos, de forma que para esses atos empresariais recai a
responsabilidade solidária.
Desse modo, diferente dos grupos econômicos de fato, o consumidor,
nestes casos, pode atribuir e ingressar com ação contra uma ou outra empresa,
ou ainda, ambas as empresas.
Mais adiante, o parágrafo 4º, diz respeito à exceção da regra da
aplicação da responsabilidade objetiva, em virtude de tratar de responsabilidade
subjetiva, pois afirma que ajuizamento de ação contra a empresa coligada
ocorrerá tão somente na ocorrência de culpa no vicio ou defeito no produto ou
prestação de serviço.
Essa possibilidade incide somente nas empresas coligadas, uma das
formas de grupos societários.
Isso porque, como demonstrado no capítulo dos grupos econômicos,
as sociedades coligadas são aquelas que detêm 10%, ou mais, da participação
em outra empresa, mas que não detém o controle e não administra, e não por
outra razão que a responsabilidade não deve recair na modalidade objetiva,
tampouco em responsabilidade solidária, pois não é possível vincular o produto
na mera participação nas ações da empresa, mas por outro lado, é possível
vincular se ocorrer culpa do ato ilícito, de uma consequência gerada por culpa
da empresa coligada.
Além dos parágrafos acima citados, não se pode olvidar do citado
parágrafo 5º, pois ele também possibilita a desconsideração da pessoa jurídica
em razão dos obstáculos criados para o ressarcimento do consumidor também
nos casos de grupos econômicos.
Sendo assim, parece razoável que na aplicação do parágrafo 5º, do
art. 28 do CDC, mediante danos gerados por pessoas jurídicas pertencentes
ao mesmo grupo econômico, quer seja nos grupos econômicos de fato, grupos
econômicos de direito ou nas empresas coligadas, possível a desconsideração da
pessoa jurídica da empresa agente do ato ilícito, assim como da desconsideração
das empresas pertencentes ao grupo societário. Essa possibilidade, inclusive,
ocorre no direito tributário, onde os danos ao erário público é, via de regra,
muito superior aos danos causados ao consumidor.
Nesse sentindo, muito bem exposto por Cláudia Lima Marques:
Como consequência do método escolhido pelo CDC, de imputar de
forma objetiva (independentemente de culpa) deveres solidariamente
245
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
a todos os fornecedores da cadeia de fornecimento, tem-se que o art.
28, caput e §5º, direito e “sempre que a sua personalidade jurídica for,
de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento” dos consumidores. O
art. 28 refere-se a todos os fornecedores (diretos e indiretos) da cadeia,
contratantes ou não, de forma a permitir o ressarcimento (art. 6º, VI) dos
danos morais e materiais, individuais e coletivos ocorridos no mercado
de consumo, menciona especialmente as “sociedades pertencentes
a grupos societários” e as “sociedades controladas” (art. 28, §2.º), as
sociedades consorciadas (art. 28, §3.º), e propõe um único privilégio
para as sociedades coligadas, que respondem somente por culpa (art.
28, §4.º). (MARQUES, BENJAMIN, MIRAGEM, 2010, p. 624)
Ante o exposto, fica claro que a intenção de proteção ao consumidor atribuída
pelo legislador é efetivamente utilizada na prática, de forma que a responsabilidade
atinge a todos os envolvidos na relação jurídica consumerista, não somente ao ‘ultimo
comerciante’, possibilitando, por fim, a indenização do consumidor.
De início, para melhor compreensão do fenômeno da incidência
tributária perante a pluralidade de sujeitos passivos no mesmo polo do fato
decorrente de uma mesma relação jurídica tributária, cumpre entender melhor o
que é o sujeito passivo, a responsabilidade tributária e suas formas.
O sujeito passivo tributário diz respeito àquela pessoa física ou
jurídica, pública ou privada, que desempenha atos tributários, constituindo
fatos geradores tributários de obrigações principais ou ato de obrigações
instrumentais, passando ser exigido o cumprimento em forma pecuniária da
obrigação jurídico-tributária.
Nesse sentido, afirma Geraldo Ataliba:
Sujeito passivo da obrigação tributária é o devedor convencionalmente
chamado contribuinte. É a pessoa que fica na contingência legal de
ter o comportamento objeto da obrigação, em detrimento do próprio
patrimônio e em favor do sujeito ativo. É a pessoa que terá diminuição
patrimonial, com arrecadação do tributo (ATALIBA, 2005, p. 86).
Em uma análise mais ampla do conceito de sujeito passivo, é possível
encontrar o que o Código Tribunal Nacional denomina de contribuinte. O
contribuinte refere-se ao sujeito passivo direto, o responsável tributário, por sua
vez, refere-se ao sujeito passivo indireto.
Essa possibilidade de exigência de um terceiro vinculado ao fato
do contribuinte (responsável tributário), por vezes, traz benefício ao Estado a
respeito da cobrança do tributo, em razão da facilidade de cobrança da obrigação
246
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
tributária, pois provoca maior facilidade para encontrar o devedor, evitando,
por consequência, fraudes ao fisco.
Nessa linha de raciocínio, a responsabilidade tributária se decompõe
duas modalidades, a transferência tributária e a substituição tributária para
frente ou para trás. A transferência, por sua vez, novamente, abre-se em três
funções: solidariedade, sucessão e responsabilidade.
Pois bem, passa-se a analisar a responsabilidade tributária solidaria
do sujeito passivo.
A responsabilidade solidaria passiva é utiliza como instrumento de
auxilio para a cobrança de terceiros frente à relação jurídico-tributária e encontra-se
legalmente prevista no art. 264 do Código Civil em conjunto com o art. 124 do CTN.
Ocorre a atribuição da lei para impor a o fato jurídico a terceira pessoa
vinculada ao fato. Observa-se que essa terceira pessoa não pode ser o sujeito
passivo direto, isto é, não pode praticar o fato gerador.
Nesse sentindo, leciona Fabio Zambitte Ibrahim:
A responsabilidade solidária tem como objetivo precípuo garantir a
arrecadação, transferindo o ônus do pagamento a terceiro vinculado
ao sujeito passivo direto, aquele que realizou, com sua conduta, fato
gerador de tributo (IBRAHIM, 2009, p. 388).
A primeira possibilidade de atribuição tributária emana do interesse
comum, como disposto no inciso I, do art. 124, supracitado.
Esse interesse comum diz respeito somente ao fato jurídico gerado
através de mais de uma pessoa no mesmo polo da ação, não há bilateralidade
na ação, portanto.
Em outras palavras, não há responsabilidade solidária tributária
e chegaria ao absurdo cobrar o tributo do Imposto Sobre Serviço (ISS), por
exemplo, do prestador de serviço e do tomador do serviço, como leciona Paulo
de Barros Carvalho:
Basta imaginar que tanto prestador quanto o tomador do serviço,
em se tratando de ISSQN, estão interessados na concretização da
ocorrência, mesmo porque, não fora assim, e o acontecimento não se
daria. Todavia, nem por isso ousaríamos proclamar o absurdo de que
ambos seriam devedores solidários. (CARVALHO, 2006, p. 163).
Ao aludir a solidariedade no polo passivo, fala-se de um mesmo lado no
negócio jurídico, ou seja, quando há dois ou mais interessados na concretização do
negócio no mesmo polo do fato gerador tributário. No caso do ISS, do exemplo do
Paulo de Barros Carvalho, quando houver pelo menos dois tomadores do serviço.
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Além da imputação da responsabilidade do tributo através do interesse
comum, a legislação tributária afirma que são solidariamente responsáveis pelo
fato gerador àqueles que forem designados por lei.
Extrai-se desse inciso II, do art. 124, do CTN, que para atribuir a
responsabilidade das pessoas expressamente designadas por lei, o sujeito passivo
solidário deverá estar relacionado na situação fática do fato gerador tributário, ou
seja, não basta estar encarregado solidariamente pela lei, mas também participar
do fato, fazer parte do ato jurídico tributário (CARVALHO, 2006, p. 163).
Por essa razão, Paulo de Barros Carvalho, define que a relação
jurídica tributária solidária advém quando esse ato jurídico ultrapassa a barreira
do interesse comum, isto é, ocorre a responsabilidade solidária quando mais um
tomador de serviço fizer parte da mesma relação jurídica.
Paulo de Barros Carvalho, leciona, ainda, que nos grupos econômicos
pode incidir a responsabilidade do fato gerador tributário em empresas membros
do grupo em razão do dever de observar (CARVALHO, 2006, p. 164).
Em outras palavras, significa dizer, que para Paulo de Barros Carvalho,
na relação de grupo econômico compete as empresas participantes do grupo
o dever de fiscalizar as empresas pertencentes a esse grupo. Dessa forma, é
cabível nestes casos a imputação da responsabilidade tributária mediante sanção
administrativa, quer seja da obrigação principal ou da obrigação acessória,
visando evitar a cobrança do tributo a titulo administrativo sancionador.
Ante o exposto, a solidariedade passiva no tributo pode decorrer, de
acordo com CTN, efetivamente, quando (i) há interesse comum no mesmo
polo da relação (ii) quando há designação por lei, e, aqui, para Paulo de Barros
Carvalho, enquadra-se, ainda, o dever de fiscalizar o cumprimento da obrigação
quando ligado por laços indiretos na relação tributária.
Após breve análise a respeito do sujeito passivo, responsabilidade
solidaria tributária e suas hipóteses de incidência, cumpre coloca-las em
situações fáticas dos grupos econômicos, faz-se necessária análise concreta e se
efetivamente ocorrem na prática.
O grupo econômico, como bem citado anteriormente, são sociedades
que através da união de força econômica, seja pela comunhão de mão de obra,
de matéria prima ou de patrimônio, tem, sem sobre de dúvidas, interesse no
sucesso econômico das empresas membros.
Dito isso, através da leitura do Código Tributário Nacional, em
primeira análise conclui-se que o grupo econômico enquadra-se corretamente
na previsão do I e II, do art. 124, do CTN.
Contudo, há se observar que o entendimento extensivo de Paulo de
Barros Carvalho, citado anteriormente, pode não ser a melhor interpretação
sobre o assunto.
248
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Isso porque para incidir o interesse comum, em análise concreta,
não basta pertencer ao grupo econômico, mas tão somente nas hipóteses de
pertencer a relação fática do fato gerador do ato jurídico tributário, além da
clara designação em lei.
Nesse sentindo, o Ilustre Ministro Luiz Flux, do Superior Tribunal de
Justiça, Relator do REsp 884.845/SC, bem lecionou em seu voto ao afirmar que
não pode haver presunção tributária em relação às empresas pertencentes ao
mesmo grupo econômico e que o CTN ao utilizar-se de interesse comum tem
como escopo a participação das empresas na mesma relação negocial.
O Ilustre Ministro Relator Luiz Flux assim fundamentou seu voto:
Nesse diapasão, tem-se que o interesse comum na situação que
constitua o fato gerador de obrigação principal implica que as pessoas
solidariamente obrigadas sejam sujeitos da relação que deu azo à
ocorrência do fato imponível. Isto porque feriria a lógica jurídicotributária a integração, no polo passivo da relação tributária, de
alguém que não tenha tido qualquer participação na ocorrência do
fato gerador da obrigação.
[...]
Destarte, a situação que evidencia a solidariedade, no condizente ao
ISS, e a existência de duas ou mais pessoas na condição de prestadores
de apenas um único serviço para o mesmo tomador, integrando, desse
modo, o polo passivo da relação. Forçoso concluir, portanto, que o
interesse qualificado pela lei não há de ser o interesse econômico
no resultado ou no proveito da situação que constitui o fato gerador
da obrigação principal, mas o interesse jurídico vinculado à atuação
comum em conjunta da situação que constitui o fato imponível.61
Por essa razão, não é suficiente para configurar o polo passivo da
relação tributária o fato de pertencer ao grupo econômico, mas faz-se necessário
participar do negócio jurídico, entendimento sedimentado pelo E. Superior
Tribunal de Justiça.
A respeito da dos responsáveis solidários no regime jurídico tributário
encontra-se sedimentada no E. STJ, de forma que o ingresso no polo passivo
da relação jurídica tributária pode ocorrer se, e somente se, as duas empresas
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processual Civil. Tributário. Responsabilidade solidária
de empresas no mesmo Grupo Econômico. Legitimidade Passiva. Recurso Especial Cível nº
884845/SC (2006/0206565-4). Recorrente: Banco Safra S/A. Recorrido Município de Brusque.
Relator Min. Luiz Flux. Brasília. Disponível em <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/
detalhe.asp?numreg=200602065654&pv=010000000000&tp=51> Acesso em 07 ago. 2012
61
249
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
participarem do mesmo polo da ação, como no caso do ISS.
No entanto, há uma exceção a essa regra, é possível desconsiderar a
pessoa jurídica, em casos de abuso de direito, mesmo que não ocorra participação
efetiva e direta no fato gerador tributário, matéria já ventilada pelo E. Tribunal
de Justiça do Estado do Paraná.
Conclui-se, assim, que a interpretação do inciso I e II, do art. 124, do
CTN é estrita e não ampla.
Isso porque não é suficiente o mero o interesse do grupo societário,
pois, por óbvio, o interesse no sucesso no grupo sempre vai existir e é inerente
a função desse modelo empresarial, razão pela qual, para enquadrar-se como
interesse comum é necessária a participação na relação jurídica do fato gerador
tributário. Ressaltando, no entanto, a hipótese descrita no art. 50º do CC/2002,
ao tratar da desconsideração da pessoa jurídica.
2.3 GRUPO ECONÔMICO E O DIREITO DO TRABALHO
O direito do trabalho, a exemplo do código de defesa do consumidor,
foi um grande marco e avanço para o direito brasileiro, pois, mais uma vez, o
legislador agiu em favor de determinado grupo social, ou seja, do trabalhador.
De início, faz-se necessário entender os princípios que garantem a
maior e adequada proteção ao trabalhador.
Este ramo do direito contém quatro princípios fundamentais, o
princípio da proteção, da irrenunciabilidade de direitos, da continuidade da
relação de emprego e da primazia da realidade.
Primeiramente, o princípio da proteção diz respeito ao protecionismo
do trabalhador, por óbvio, sendo certo que o caráter da legislação trabalhista,
assim como o CDC, visa essa assistência do hipossuficiente. Isso porque com
a ciência da possibilidade de operações fraudulentas por parte da empresa
empregadora, a CLT visa diminuir qualquer ocasião que faça o empregador
prejudicar o trabalhador.
Por conseguinte, o princípio da irrenunciabilidade dos direitos é
aquele que proibi o trabalhador de renunciar um direito, de forma que não é
possível ceder o direito a um terceiro para viola-lo, é um direito indisponível.
O artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho é transparente ao
aduzir que, “Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de
desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente
Consolidação”.
O próximo princípio é o da continuidade da relação de emprego. Esse
princípio nada mais é que presunção de validade por tempo indeterminado nos
contratos, quando não ajustado em contrário.
250
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
O contrato deve, portanto, conter o termo da prestação de serviço se
não almejar que seja presumido como indeterminado.
Por fim, o princípio da primazia da realidade, de suma importância
para a relação trabalhista, diz respeito aos fatos ocorrem de forma cotidiana
na empresa, mas que não se encontram regulados no contrato. São as
informações trazidas ao processo trabalhista que apresentam muito mais
força jurídica do que provas documentadas. Aqui se enquadra, por exemplo,
serviço praticado após o horário de expediente, caracterizando as horas
extras, que será provado através de situações fáticas, através da prova
testemunhal e não somente pelos documentos.
Em suma, é possível observar que, assim como no Direito do
Consumidor, os princípios que conduzem o direito do trabalho também tem por
escopo a proteção de determinado grupo social, no caso o trabalhador, daquele que
por muitas vezes se encontra em situações desfavoráveis frente ao empregador.
Destaca-se que os grupos econômicos detém no âmbito trabalhista
uma definição própria na CLT para efeitos na relação de emprego no dispositivo
2º, §2º, uma vez que determina a solidariedade na responsabilidade dos contratos
de trabalho entre todas as empresas do grupo.
A partir dessa definição é possível verificar que há uma ampla
proteção e que não há, por sua vez, instrumentos para operações fraudulentas
ao trabalhador, não há, pois, instrumentos capazes de ludibriar a seara
judiciaria trabalhista, sendo certa a incidência da responsabilidade solidária,
se assim for necessário, mediante comprovação e conforme previsão
expressa pelo respectivo códex.
Isso porque é cristalina a vontade do legislador em evitar que a união dessas
empresas que geram inúmeros empregos diretos, e mais ainda empregos indiretos,
seja meio eficaz de fraudar e abusar um direito garantido pela Magna Carta.
Em que pese se tenha mais de uma pessoa jurídica autônoma nos
grupos societários, o empregador responde como se um fosse, como se uma
pessoa fosse, isto é, sob o prisma trabalhista não é relevante se o empregador
contratou com uma, duas, ou mais empresas do grupo, sequer que desempenhou
atividade laborativa para mais de uma delas, mas que se há um contrato legal
entre empregado e empregador, todas as empresas desse grupo responderão
solidariamente por cada empregado das empresas membros.
Não por outro motivo, como explica Sérgio Pinto Martins:
A anotação na CTPS do empregado será feita na empresa em que o
obreiro prestar serviços. Nada impede, porém, que o empregado seja
registrado em nome da holding, já que o empregador é o grupo. Na
prática, o empregado normalmente é registrado na empresa em que
presta serviços. (MARTINS, 2009, p. 181)
251
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Sendo assim, não há óbices ao trabalhador que, sabendo da existência
de outra empresa pertencente ao mesmo grupo econômico, deseja ingressar
com ação judicial contra ambas as empresas.
Outro, aliás, não é o entendimento de Wilson Alves Polonio, “No
que se relaciona às verbas trabalhistas, a questão não nos parece de maior
complexidade, pois a responsabilidade por seu adimplemento é, objetivamente,
do empregador”. (POLONIO, 2000, p. 125).
Além disso, o TST já editou súmula a respeito de grupos econômicos,
afirmando que em que pese o trabalhador desempenhe atividades laborativas
para outras empresas do grupo econômico, não se caracteriza por si só mais de
um contrato de trabalho.
Logo, mesmo que o trabalhador exerça atividade laboral para outras
empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico não caracteriza mais
de um contrato de trabalho. No entanto, não significa dizer que não se será
solidariamente responsável pelos débitos trabalhistas.
Vale destacar, por fim, que para a execução de mais de uma empresa na
via judicial é necessário que participem em conjunto na primeira fase processual.
Em outras palavras, significa dizer que, para figurar no polo passivo da execução,
as empresas deverão figurar no polo passivo do processo de conhecimento.
3 CONCLUSÃO
A presente pesquisa tem como foco principal a responsabilidade civil
e suas formas de aplicação, os grupos econômicos e franquias empresariais
frente à legislação tributária, legislação do consumidor e a consolidação das
leis do trabalho.
De início, o grupo econômico é a união de empresas através de mão de
obra, matéria prima e de interesses em comum que se encontram sob uma mesma
administração, em pessoas jurídicas e patrimônios distintos, e através dessa
modalidade criou-se o grupo econômico de fato e grupo econômico de direito.
Assim, ao aferir os casos práticos em três distintas áreas do direito,
foi possível aplicar a responsabilidade civil em sua forma ampla com exclusivo
escopo de garantir uma adequada segurança jurídica, tanto às empresas como
também para judiciário.
Na esfera tributária, verificou-se que as empresas membros respondem,
como regra, isoladamente por seus débitos tributários, de forma que a solidariedade
estar-se-á presente somente nos casos em que as empresas membros do grupo
estiverem juntas no mesmo polo passivo da relação jurídico-tributária, ou seja,
somente se executarem em conjunto o negócio jurídico-tributário.
252
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Ressalte-se, no entanto, que para Paulo de Barros Carvalho, essa
responsabilidade solidaria deveria tratar-se da regra e não exceção, em virtude
de sempre existir um interesse comum nas empresas membros dos grupos
econômicos nos fatos geradores e, assim, como uma espécie de consequência,
caberia às empresas membros a fiscalização e repressão de qualquer prática
ilícita na esfera tributária no grupo empresarial. Não por outra razão que para
Paulo de Barros, em razão da fiscalização, a responsabilidade solidariedade
deveria acontecer mediante o caráter sancionador administrativo do Estado.
O direito do consumidor, através do seu caráter protecionista,
também prevê e, assim, aplica na prática a solidariedade e a subsidiariedade
dos fornecedores, seja diretos ou indiretos, por vícios ou defeitos, nos produtos
e serviços ofertados ao consumidor.
Na área Trabalhista, a responsabilidade solidária encontra-se prevista
na CLT para os casos dos grupos econômicos, de forma que toda empresa membro
pertencente ao grupo responderá solidariamente, em qualquer hipótese, pelos
débitos trabalhistas, ainda que o trabalhador tenha desempenhado atividade
laborativa tão somente para uma empresa membro.
Além disso, presente, inclusive, uma possibilidade que ignora o
dogma da proteção a pessoa jurídica, uma vez que se for necessária o magistrado
deverá desconsiderar a personalidade jurídica do grupo, nos termos do art. 50
do Código Civil, em virtude de obstáculos criados para dificultar a reparação do
dano causado pela holding, evitando, assim, quando meio de fraude.
Ante o exposto, a presente pesquisa demonstrou que através da
legislação pátria, dos grandes operadores do direito e do entendimento
jurisprudencial, que a responsabilidade civil, os grupos econômicos e a
legislação pátria encontram-se em plena evolução, uma vez que há adaptações
na aplicação da lei visando a máxima proteção garantida pela Magna Carta,
evitando, por consequência, a realização de operações lesivas na esfera
tributária, na área consumerista e na esfera trabalhista.
253
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
REFERÊNCIAS
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ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2009
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Tributários. 4. ed. São Paulo. Saraiva, 2006.
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 14.ed. Rio de
Janeiro: Impetus, 2009.
MARQUES, Claudia Lima. BENJAMIN, Antonio Herman. BESSA, Leonardo
Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 4. ed. São Paulo. Revista dos
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MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
MIRAGEM, Bruno. Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2008.
NUNES, Rizzatto. Comentário ao Código de Defesa do Consumidor. 5. ed.
São Paulo: Saraiva, 2010MIRAGEM, 2008.
POLONIO, Wilson Alves. Terceirização: aspectos legais, trabalhistas e
tributários. São Paulo: Atlas, 2000
REQUIÃO, Rubens, Curso de Direito Comercial: 2.vol. 20.ed. São Paulo:
Saraiva, 1995.
TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. 2. ed. São Paulo: Juarez de
Oliveira, 2004.
254
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
FUNDAMENTOS DA INAPLICABILIDADE DA APOSENTADORIA
COMPULSÓRIA AOS TITULARES DE ESCRIVANIAS JUDICIAIS PRIVADAS
NO ESTADO DO PARANÁ: A RESERVA MORAL E A DIGNIFICAÇÃO DA
PESSOA HUMANA COMO RESPONSABILIDADES DO ENTE FEDERATIVO
Fernando Gustavo Knoerr62
Viviane Coêlho de Séllos Knoerr63
Cinge-se a controvérsia à impossibilidade de aplicação da regra
constitucional que trata do afastamento compulsório dos titulares de escrivanias
judiciais, providos na serventia antes da Constituição de 1988, tal como a tem
aplicado o TJPR aos serventuários judiciais.
Em casos que tais, registrada a implementação da idade de 70
(setenta) anos do titular da escrivania privada (porque não remunerada pelos
cofres públicos), o Departamento da Corregedoria-Geral da Justiça oficia
ao Desembargador Presidente da Corte, consultando-o sobre a hipótese de
afastamento do serventuário e suas funções.
O Desembargador Presidente, por sua vez, pronunciando-se
positivamente sobre a consulta, imediatamente comunica o Chefe da Divisão
Jurídica da Corregedoria-Geral de Justiça que então solicita ao Juiz Diretor do
Foro o afastamento imediato e definitivo do serventuário das funções públicas nas
quais foi investido, com a designação de substituto, fazendo-o mediante portaria.
Esse é o procedimento adotado pelo TJPR.
Entretanto, à luz do entendimento exarado no procedimento de controle
administrativo n.º 2008.10.000.01375-9, instaurado perante o Conselho Nacional
de Justiça em face do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, as serventias
judiciais do Paraná são privadas. Mais não é necessário dizer para concluir que, se
são privadas, não se aplica aos seus titulares a regra da aposentadoria compulsória,
reservada apenas ao servidores públicos, titulares de cargo efetivo.
Na decisão, este Colendo Conselho determinou inclusive que as
serventias judiciais criadas e tituladas no Estado do Paraná a partir de 05
Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Direito
Administrativo da Escola da Magistratura do Paraná e da Fundação Escola do Ministério Público
do Paraná. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, do Instituto Paranaense de
Direito Administrativo, do Instituto Catarinense de Estudos Jurídicos, do Instituto Paranaense de
Direito Eleitoral e do Instituto dos Advogados do Paraná.
63
Doutora em Direito do Estado – Direito Constitucional pela PUC/SP. Mestre em Direito
das Relações Sociais pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUCCAMP.
Coordenadora e Professora do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do
Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Advogada. Pesquisadora Científica.
62
255
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
de outubro de 1988, nos moldes da norma contida no artigo 31 do ADCT,
devem ser estatizadas, estabelecendo o concurso público como única forma
de provimento, enquanto que, com relação às providas na vigência do antigo
modelo constitucional, entendeu por bem mantê-las sob a forma privada.
É o que se lê na ementa, assim, textualizada:
SERVENTIA JUDICIAL PRIVATIZADA. CONCURSO PÚBLICO.
IRREGULARIDADE.
A norma constante do art. 31 do ADCT prescinde de regulamentação,
sendo de aplicabilidade imediata.
- “SERVENTIAS JUDICIAS. PRIVATIVAÇÃO APÓS A
CONSTITUIÇÃO DE 1988. ESTATIZAÇÃO. A manutenção das
serventias judiciais privatizadas após a Constituição de 1988 afronta
o disposto no art. 31 do ADCT. Estatização imediata, com adoção de
providências decorrentes. (PP 14814)
Eis a conclusão do voto lavrado pelo Eminente Conselheiro Relator
Paulo Lôbo:
Assim, voto pelo deferimento do pedido, para anular o concurso
público para provimento do cargo de escrivão cível do Foro Regional
de Fazenda Rio Grande – Comarca da Região Metropolitana de
Curitiba, e, de ofício:
I – Declarar estatizadas todas as serventias judiciais indevidamente
providas no Estado do Paraná, a partir de 05 de outubro de 1988;
II – Fixar o prazo de 12 meses para efetivar as providências necessárias
ao funcionamento das serventias, inclusive a substituição dos titulares
atuais e respectivos servidores que não integrarem o quadro do Poder
Judiciário paranaense;
III – Promover e apresentar ao CNJ o levantamento das receitas da
serventias judiciais privatizadas, referida no item I;
IV – Autorizar a permanência das pessoas que exercem atividades
nessas serventias, até que haja o preenchimento dos cargos, de acordo
com o cronograma aprovado ulteriormente pelo CNJ, a fim de evitar
a descontinuidade dos serviços.
De fato, como assentou o CNJ, no Estado do Paraná a criação
das serventias judiciais e a forma de provimento da sua respectiva titulação
permaneceu sob a forma privada, por meio da transferência do serviço a
particular que, assumindo-o mediante delegação, o desempenha às suas próprias
256
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
expensas, mediante a percepção de remuneração advinda da exploração direta
da própria atividade.
Assim, diga-se mais uma vez, secundando o já decidido pelo CNJ que,
embora as escrivanias judiciais exerçam atividade estatal, seus titulares não se
enquadram na condição de servidores públicos, não lhes atingindo, portanto, a
regra da compulsoriedade prevista no artigo 40, § 1º, inciso II da Constituição,
muito menos o afastamento preconizado na Instrução Normativa n.º 02/2008.
Típica hipótese de delegação do exercício de atividade pública
titularizada pelo Estado e juridicamente transferida para outrem. O Poder
Judiciário do Paraná transferiu aos titulares das serventias judiciais o exercício
da atividade cartorial, mas em nenhum procedeu seu enquadramento em
cargo público, negando-lhes sempre a condição de servidores públicos. São
remunerados pela exploração do serviço, mediante a cobrança de custas
processuais, atividade que, em definitivo, não enquadra o delegatário na condição
de servidor público e também não o confunde com cargo público a autorizar a
aplicação da norma contida no artigo 40, §1º, inciso II, da Constituição.
Para melhor esclarecer as peculiaridades da atividade desenvolvida
pelas escrivanias judiciais e sua relação com o Poder Público, revela-se
necessário analisar os limites de incidência da expressão servidores titulares de
cargos efetivos, contida na regra constitucional da aposentadoria compulsória.
Eis o que dispõe o artigo 40, §1º, inciso II, da Constituição, in verbis:
“Art. 40 - Aos servidores titulares de cargos efetivos da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas
autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de
caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo
ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas,
observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e
o disposto neste artigo.
§ 1º - Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que
trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a
partir dos valores fixados na forma dos §§ 3º e 17:
(...)
II - compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos
proporcionais ao tempo de contribuição;”
Titular de escrivania judicial não é servidor público e, deste modo,
nunca contribuiu para o regime previdenciário público. Não se encontra
portanto incluído no regime contributivo frisado pelo artigo 40 da CF, que lhe
257
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
garante a aposentadoria, bem como na Instrução Normativa n.º 02/2008. Aliás,
pretender impor aposentadoria compulsória lhe permitirá aposentar-se pelo
regime público sem nunca ter contribuído para este regime e sem nunca ter
sofrido desconto da contribuição previdenciária em contracheque. Aliás, nunca
recebeu um contracheque do Poder Judiciário do Paraná.
Leciona CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (2010) que
servidor público abarca a existência de relação jurídica que o vincula ao Estado,
de natureza institucional, estatutária, sendo que seus direitos e deveres não
advêm de contrato travado com o Poder Público, mas descendem diretamente
da Constituição e das leis.
De outro modo, extrai-se da doutrina de ODETE MEDAUAR (2000) que,
cargo público é o conjunto de atribuições e responsabilidades cometidas
a um servidor, criado por lei, em número certo, com denominação
própria, remunerado pelos cofres públicos. Segundo preleciona, [...] O
cargo efetivo é aquele preenchido com o pressuposto da continuidade
e permanência do seu ocupante. Ao se nomear alguém para um cargo
efetivo, há o pressuposto de permanência da pessoa no desempenho
das atribuições. Este é, portanto, o sentido do termo efetividade [...].”
Arremata ainda que, “...a lei, ao criar o cargo, indica o modo pelo
qual é preenchido, em geral usando a expressão, “de provimento efetivo,
mediante concurso público”. Portanto, não se deve confundir efetividade com
estabilidade.” (MEDAUAR, 2000).
A par desses ensinamentos, tem-se que servidor público é o que ocupa
cargo público efetivo remunerado diretamente pelos cofres do Estado, integrado
ao regime estatutário, o que, por certo, não se amolda à situação jurídica
sustentada dos titulares de escrivanias judiciais no Paraná, pois toda serventia
cartorária no Estado tem na delegação do serviço público a sua inafastável forma
de investidura, sendo o exercício da atividade de serventia judicial remunerado
pelas pessoas naturais ou pessoas coletivas que dele se utilizem.
Assim, se ao conjunto dos titulares de cargo efetivo se aplica um
estatuto ou regime jurídico-funcional comum, ditado pela lei de cada qual das
pessoas federadas a que o servidor se vincula, o que recai sobre cada um dos
titulares de serventia judicial é um ato unilateral de delegação de atividades,
expedido de conformidade com legislação paranaense.
Todavia, nota-se que, no caso do Estado do Paraná, aqueles
que executam a atividade judicial, sejam titulares da escrivania, sejam
funcionários por ela empregados, nunca integraram Quadro Funcional do
Poder Judiciário do Estado do Paraná.
258
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Tanto assim é que em 19 de dezembro de 2008, pouco mais de 20
(vinte) anos após o advento do modelo constitucional vigente, foi editada lei
dispondo especificamente sobre a substituição das escrivanias por unidades
estatizadas, bem como criando Quadro de Pessoal do Poder Judiciário de
1º Grau de Jurisdição. Todas as anteriores - é dizer, criadas e providas até
hoje - são privadas.
Trata-se da Lei n.º 16.023, que, criando o cargo de diretor de secretaria,
antes nominado escrivão titular da serventia, no seu artigo 5º, §1º, estabelece
que este será exercido apenas por funcionários das carreiras nela previstas e é
privativa do bacharel em Direito.
Ademais, se as pessoas investidas em cargo público efetivo se
estabilizam no serviço do Estado, vencido com êxito o que se denomina de
“estágio probatório”, e são aquinhoadas com a aposentadoria integral do regime
estatutário, pensão igualmente estatutária para os seus dependentes econômicos,
possibilidade de greve, direito à sindicalização do tipo profissional (não da
espécie econômica), tudo somado à cláusula constitucional de irredutibilidade
de ganhos incorporáveis aos respectivos vencimentos ou subsídios, nada disso
é extensível aos titulares de serventia judicial, jungidos que ficam os escrivães
aos termos de uma delegação administrativa que passa ao largo do estatuto
jurídico do conjunto de servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios.
E é nesse sentido o entendimento firmado pelo SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, no julgamento da ADI n.º 2.791, proposta pelo Governo do Estado
do Paraná em face do artigo 34, §1º, da Lei Estadual n.º 12.398/98, com redação
dada pela Lei Estadual n.º 12.607/99, incluindo os serventuários de justiça não
remunerados pelos cofres públicos, no sistema de Previdência Funcional criado
por àquela lei, ad litteram:
Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Art. 34, §1º, da Lei Estadual do
Paraná nº 12.398/98, com redação dada pela Lei Estadual nº 12.607/99.
3. Preliminar de impossibilidade jurídica do pedido rejeitada, por ser
evidente que o parâmetro de controle da Constituição Estadual invocado
referia-se à norma idêntica da Constituição Federal. 4. Inexistência
de ofensa reflexa, tendo em vista que a discussão dos autos enceta
análise de ofensa direta aos arts. 40, caput, e 63, I, c/c 61, §1º, II, “c”,
da Constituição Federal. 5. Não configuração do vício de iniciativa,
porquanto os âmbitos de proteção da Lei Federal nº 8.935/94 e Leis
Estaduais nºs 12.398/98 e 12.607/99 são distintos. Inespecificidade
dos precedentes invocados em virtude da não-coincidência das
matérias reguladas. 6. Inconstitucionalidade formal caracterizada.
259
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Emenda parlamentar a projeto de iniciativa exclusiva do Chefe do
Executivo que resulta em aumento de despesa afronta os arts. 63, I,
c/c 61, §1º, II, “c”, da Constituição Federal. 7.Inconstitucionalidade
material que também se verifica em face do entendimento já pacificado
nesta Corte no sentido de que o Estado-Membro não pode conceder
aos serventuários da Justiça aposentadoria em regime idêntico ao dos
servidores públicos (art. 40, caput, da Constituição Federal). 8. Ação
direta de inconstitucionalidade julgada procedente. - ADI 2.791, Rel.
Min. Gilmar Mendes,Julgamento: 16/08/2006, Publicação DJ 24-112006, Órgão Julgador: Tribunal Pleno).
Aliás, tal entendimento foi acolhido inclusive pelo Tribunal de Contas
do Estado do Paraná para negar registro à aposentadoria de serventuário da
justiça, consubstanciado na Resolução n.º 7274/05. Concluiu o Tribunal que
“...o fato de a interessada exercer suas atribuições no foro judicial não lhe
confere por si só direito à aposentadoria como servidora pública estadual.”, de
modo que deve pleitear sua inativação junto ao INSS.
E esse caráter privado da escrivania judicial fica mais evidente quando
se constata que é sob seu encargo que são contratados escreventes e auxiliares,
como empregados, arcando, inclusive e integralmente, com sua remuneração,
por sua vez, livremente ajustada e sob o regime da legislação do trabalho.
Situação, aliás, que difere do serviço público propriamente dito, ou
daquela serventia estatizada, onde as despesas administrativas e financeiras dos
respectivos serviços, inclusive no que diz respeito ao custeio, investimento e
pessoal, são arcadas pelo Poder Público.
Como bem se vê, as distinções pululam do próprio texto da Magna
Carta, permitindo a serena enunciação de que as atividades judiciais exercidas
pelo escrivão provido na serventia antes da Constituição de 1988, são privadas.
Não há aposentadoria compulsória de particular, por mais que seja
prestador de serviços públicos. Imaginar o contrário imporá à Administração
Pública, por exemplo, determinar o rompimento de todas as concessões e
permissões de serviços públicos cujos titulares das empresas concessionárias
ou permissionárias completem 70 (setenta) anos de idade.
Com efeito, a não ser por arrematada ilegalidade, não existe situação
impeditiva da permanência do titular de escrivania judicial quando completa 70
(setenta) anos de idade na atividade que desempenha. Nessa exata linha opina
BANDEIRA DE MELLO (2010), in verbis:
O CONSULENTE NÃO É SERVIDOR PÚBLICO, MAS EXERCE
ATIVIDADE PÚBLICA EM CARÁTER PRIVADO, COMO O
260
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
DECLARA O TEXTO CONSTITUCIONAL, NO ART.236. ASSIM,
NÃO É ATINGIDO PELA APOSENTADORIA COMPULSÓRIA A
QUE ALUDE O ART.40 DA LEI MAIOR, A QUAL DIRIGE-SE A
SERVIDORES PÚBLICOS E NÃO A EXERCENTES DE FUNÇÃO
PÚBLICA.
Com efeito, o regime previdenciário do artigo 40 da Constituição
destina-se, atualmente, aos servidores stricto sensu, titulares de cargos efetivos,
portanto, aqueles providos nas serventias após a Constituição de 1988 e por
meio de concurso público, o qual, aliás, passou a ser obrigatório no Estado do
Paraná apenas com o advento da Lei n.º 16.023/2008.
Nessa senda decidiu o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no
julgamento da ADI nº 2.602-0 (MC), publicada em 6 de junho de 2003, ad
litteram:
...Pela redação dada pela Emenda Constitucional nº 20/98 ao artigo
40 e seu parágrafo 1º e inciso II, da Carta Magna, a aposentadoria
compulsória aos setenta anos só se aplica aos servidores titulares
de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, incluídas suas autarquias e fundações...
Tal entendimento é acolhido in totum, como não poderia deixar de ser,
pelo CNJ no pedido de providências n.º 1355, de relatoria do Conselheiro Rui
Stoco, concluindo:
O art. 40, §1º, inciso II da Constituição da República determina que os
servidores titulares de cargos efetivos de todos os níveis da federação
deverão ser aposentados compulsoriamente aos setenta anos de
idade...
Em síntese, não há amparo constitucional para a imposição de
aposentadoria compulsória a particular que, mesmo na condição de prestador
de serviço público no cumprimento de delegação administrativa, encontra-se
vinculado ao Regime Geral da Previdência Social.
Para evidenciar os tópicos que aqui foram tratados, vejam-se as
decisões dos Tribunais:
ADMINISTRATIVO. MEDIDA CAUTELAR. CARTÓRIO. CONCESSAO DE EFEITO SUSPENSIVO ATIVO A RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ESCRIVAO E TITULAR DEDISTRIBUIÇAO. APOSENTADORIA COMPULSÓRIA
261
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
APÓS A VIGÊNCIA DA EC N. 20/98. IMPOSSIBILIDADE.
1. Trata-se de medida cautelar em que se almeja a concessão de efeito
suspensivo ativo ao RMS 28.826/PR, interposto pelo ora requerente
em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que
denegou a segurança.
2. Está consolidada na jurisprudência do STJ e do STF que escrivão
não é servidor público, mas particular em colaboração com o Estado.
Por tal razão, não há de aplicar-se a norma constitucional que preconiza
a aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade. Precedentes.
3. No caso concreto, o requerente só implementou o requisito temporal
em 2007, quando já em vigor o novo texto constitucional, motivo
pelo qual a aposentadoria, na espécie, é contrária ao ordenamento a
aposentadoria compulsória.
4. Medida cautelar deferida.
(MC 15857 PR 2009/0149335-8, Rel. Min. Mauro Campbell Marques
– T2, DJe 09/12/2011)
ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO
DE SEGURANÇA. NOTÁRIOS. APOSENTADORIA COMPULSÓRIA. IMPLEMENTAÇAO DAS CONDIÇÕES PARA TANTO JÁ NA VIGÊNCIA
DA EC N. 20/98. IMPOSSIBILIDADE DA MEDIDA.
1. Conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal, “[o]s notários
e os registradores exercem atividade estatal, entretanto não são titulares de
cargo público efetivo, tampouco ocupam cargo público.
Não são servidores públicos, não lhes alcançando a compulsoriedade
imposta pelo mencionado artigo 40 da CB/88 --- aposentadoria compulsória aos
setenta anos de idade”
(ADIn n. 2.602/MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Rel. p/ acórdão
Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, DJU 31.3.2006).
1. Assim sendo, tem-se que: (i) até o advento da EC n. 20/98, em
razão da menção a “servidor” no caput do art. 40 da Constituição da
República, estendia-se o instituto da aposentadoria compulsória aos
notários; (ii) depois da EC n. 20/98, com a substituição do termo
“servidor” pela expressão “servidores titulares de cargos efetivos”, os
notários não mais se submetem à aposentadoria compulsória.
Precedente.
2. A recorrente só implementou a idade para a aposentadoria
compulsória em 29.12.2000, quando já em vigor o novo texto
262
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
constitucional, motivo pelo qual é contrária ao ordenamento a
aposentadoria compulsória.
3. Recurso ordinário em mandado de segurança provido.
(RMS 19.388/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES,
SEGUNDA TURMA, julgado em 03/03/2009, DJe 25/03/2009)
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇAO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. OFENSA AO ART. 535 NAO CONFIGURADA. SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO. APOSENTADORIA COMPULSÓRIA.
IMPLEMENTO DA IDADE MÁXIMA EM DATA ANTERIOR À
EC 20/1998. REDISCUSSAO DA MATÉRIA DE MÉRITO. IMPOSSIBILIDADE.
[...]
1. O Supremo Tribunal Federal fixou o entendimento de que, a partir da
Emenda Constitucional 20, de 15/12/1998, os notários e registradores
não se subordinam à aposentadoria compulsória, prevista pelo art. 40,
1º, inciso II, da CF/88, por não se enquadrarem na definição de
servidores públicos efetivos.
[...]
2. Embargos de Declaração rejeitados.
(EDcl no RMS 25.631/PE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN,
SEGUNDA TURMA, julgado em 05/05/2009, DJe 17/06/2009)
ATIVIDADE
NOTARIAL
E
DE
REGISTRO.
APOSENTADORIA COMPULSÓRIA. ADIN Nº 2.602. EFEITOS
“EX NUNC”. ATOS ANTERIORES À MEDIDA.
I - O Colendo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 2.602, afastou a interpretação
que permite a aposentadoria compulsória dos titulares de serventias
cartorárias. II - Entretanto, o Plenário do Pretório Excelso destacou
que a decisão teria efeitos ex nunc, de modo que as situações anteriores
não se encontram ao seu abrigo.
III - Recurso Ordinário improvido.
(RMS 18.006/MG, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO,
PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/04/2007, DJ 30/04/2007 p. 282)
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVENTUÁRIOS DE CARTÓRIO. ART. 40, 1º, II, DA CONSTITUI263
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
ÇÃO FEDERAL. APOSENTADORIA COMPULSÓRIA. INAPLICABILIDADE. PRECEDENTES. RECURSO PROVIDO.
1. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a ADI 2.602/MG em
24 de novembro de 2005, firmou entendimento no sentido de que o
art. 40, 1º, II, da Constituição Federal, na redação que lhe foi dada pela
EC 20/98, não se aplica aos notários e registradores, à consideração
de que esses não ocupam cargo público, de modo que não podem
ser alcançados pela determinação prevista na citada norma quanto
à compulsoriedade da aposentadoria aos setenta anos de idade.
2. Em razão da manifestação do Pretório Excelso acerca da
interpretação que deve ser dada ao art.40, 1º, II, da Carta Magna, esta
Corte Superior modificou entendimento anteriormente adotado, para
afastar a aplicação da regra referente à aposentadoria compulsória
quando se tratar dos aludidos serventuários.
3. Não se aplica, assim, aos servidores notários e registradores a
aposentadoria compulsória a que fez referência o inciso II do 1º do
art. 40 da Constituição da República.
4. Recurso ordinário provido.
(RMS 18.489/RS, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA
TURMA, julgado em 13/03/2007, DJ 16/04/2007 p. 167).
264
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
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266
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
BEM JURÍDICO PENAL E O DIREITO SOCIAL AO TRABALHO:
UMA VISÃO DO DIREITO PENAL COMO INSTRUMENTO DE
CONCRETIZAÇÃO DA JUSTIÇA SOCIAL
Michelle Gironda Cabrera64
Fábio André Guaragni65
RESUMO
A delimitação dos bens jurídicos penais possui fundamental importância
para a edificação de normas, regras de conduta e valores a serem seguidos em
determinada sociedade. A eleição destes ou daqueles bens jurídicos influencia não
só a consecução de objetivos por parte do Estado, indivíduos e empresas, como
denota quais valores devam ser considerados primordiais, mesmo fundamentais,
para a sociedade que se nos apresenta nesta virada de século. Através do encontro
das vias do direito penal e do direito do trabalho, especialmente quando da
criminalização da redução à condição análoga à de escravo, intenta-se promover
aquilo que a Constituição previra desde 1988, a constituição dos valores sociais
do trabalho em conformidade com a construção de uma sociedade livre, justa
e solidária. Cabe às corporações alimentar este objetivo precípuo para que a
comunidade veja cumprida, já que imposta por lei, sua função social.
Palavras-chave: Direito penal. Direito do trabalho. Direito Penal do Trabalho.
Redução à condição análoga à de escravo. Justiça social.
ABSTRACT
The legal definition of criminal rights have fundamental importance for
the construction of norms, rules of conduct and values ​​to be followed in a given
society. The election of this or that legal rights affects not only the achievement of
objectives by the state, individuals and businesses, as denoting what values ​​should
be considered paramount, including fundamental to society that faces us at the
A autora é advogada, Especialista em Direito Criminal pelo UNICURITIBA e em Ciências
Jurídicas pela FEMPAR. É Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania, na Linha de pesquisa
Atividade Empresarial e Constituição: Inclusão e Sustentabilidade, pelo UNICURITIBA.
65
O autor é Promotor de Justiça no Estado do Paraná, Doutor e Mestre em Direito das Relações
Sociais (UFPR). É Professor de Direito Penal Econômico do Programa de Mestrado em Direito
Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA. É Professor de Direito Penal do UNICURITIBA,
FEMPAR, ESMAE, CEJUR e LFG. Atuou neste texto como orientador.
64
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COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
turn of the century. Through the meeting of paths between criminal law and labor
law, especially when the criminalization of reduction to a condition analogous to
slavery, an attempt to promote what the Constitution anticipated since 1988, the
constitution of the social values of
​​ work in accordance with the construction of
a free society, justice and solidarity. It is for the corporations power this primary
objective for the community to see fulfilled, as required by law, its social function
Keywords: Criminal law. Labour law. Criminal-labor law. Reduction to a
condition analogous to slavery. Social justice.
INTRODUÇÃO
Modernamente, o Direito penal tem sido palco de discussões acerca
de seus limites na resolução de conflitos, onde se tem a eleição de determinados
valores considerados essenciais ao convívio em sociedade e, posteriormente,
sua incidência no rol de bens jurídico-penalmente tuteláveis.
A compreensão do crime como ofensa a bens jurídicos penais, embora tenha
soado durante muitas décadas como trivialidade, no atual espaço de discursividade
social, nomeadamente após o advento dos chamados direitos de segunda geração onde o direito social (e fundamental) ao trabalho está inserido - ganhou corpo.
No presente artigo, o intento é discorrer acerca da evolução da proteção
do bem jurídico como modelo na estruturação do sistema de imputação penal,
até traçar o panorama a partir do qual novos valores (que não só os de ordem
individual) passaram a ocupar papel central na busca pela justiça social, a ponto
de se adotarem justificativas de cunho político-criminal para sua inserção especialmente o direito social ao trabalho de que trata o artigo 6º da Constituição
Federal - como verdadeiro recurso penal de controle social.
Através da eleição exemplificativa do crime de redução à condição
análoga à de escravo, serão abordadas as razões pelas quais a organização do
trabalho deve ser protegida penalmente, na figura de um de seus componentes,
qual seja, a coletividade de trabalhadores. Mais de um século após a assinatura
da Lei Áurea no Brasil, os relatos (embora abafados em boa parte pelos sistemas
de mídia, de outra parte pela crescente individualização egocêntrica de massa)
de trabalhos exercidos em condições desumanas, subumanas e degradantes
abrem as portas para os novos fenômenos sociais desta virada de século, onde as
corporações ganham destaque vital, não só cultural, como político e econômico.
De fato, a existência das empresas globais (unificadas, tanto pelo
pensamento único de que trata Milton Santos66, como pela sociedade em rede de
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio
de Janeiro: Editora Record, 2006.
66
268
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que discorre Manuel Castells67, tem legitimado o poder punitivo trabalhista (quer
pela via do direito penal, quer pela via do direito administrativo sancionador),
como verdadeiro instrumento de controle na observação e no cumprimento da
função social da empresa.
2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E DIFERENTES CONCEPÇÕES DE BEM JURÍDICO.
CRITÉRIOS DETERMINANTES PARA A ESCOLHA DE BENS JURÍDICOS PENAIS
Para que se possibilite uma análise acerca dos critérios determinantes
da inclusão dos diversos e atuais direitos sociais no rol de proteção jurídico-penal,
é fundamental que se discorra, ainda que não com o animus de exaurimento do
tema, acerca da evolução histórica dos bens jurídicos penais.
A realidade do direito penal desdobra-se sempre sob dois atores: autor
e vítima. Isto quer dizer, o saber empírico penal concentra-se sobre pessoas
ou grupos de pessoas, e assim igualmente o é o direito do trabalho, onde ele
exatamente se aproxima daquele ramo do direito público. Por tratar do interesse
de pessoas, e não coisas ou direitos em si, estes dois ramos perseguem o objetivo
de contribuir com a paz e a justiça sociais e, em algum momento esbarram no
objetivo de conter condutas consideradas injustas, ilegais e/ou criminosas.
Foi a partir dos ideais jusnaturalistas do século XVI, e de autores
atemporais como Cesare Beccaria (e seu Dei delitti e delle pene) que o crime
passa a ser entendido não mais como um pecado, uma expiação, mas como um
fato danoso à sociedade; este momento consagra o nascimento do direito penal
secularizado68. Assim é que o italiano pode ser considerado o precursor da
humanização nas penas, vez que a medida do crime passa a ser exatamente o
dano causado à sociedade, não mais a intenção de quem os comete. 69
Não se cogitava, ainda, da existência de bens jurídicos em sentido
estrito, mas de direitos subjetivos, o que permitia traçar, simultaneamente, os
limites de liberdade garantidos pela ordem jurídica e o início de seu exercício
arbitrário, violador de direitos alheios. Cada indivíduo possuía um “âmbito de
vida” a ser protegido, o que demarcava a fronteira entre o lícito e o ilícito,
Para um aprofundamento a respeito do que o sociólogo espanhol chamou de “Sociedade em
rede”: MANUEL CASTELLS, A sociedade em rede. Prefácio de Fernando Henrique Cardoso.
Volume I, São Paulo: Paz e Terra, 2011.
68
Laicização (ou secularização do direito) representa os processos pelos quais a sociedade, a partir
do século XV, viu ocorrer uma cisão entre a cultura eclesiástica e as doutrinas filosóficas. Em
outras palavras, abandonou-se a crença religiosa como meio de explicação de todos os fenômenos
mundanos e a razão e o antropocentrismo atingem o status de fonte científica maior. Crime e
pecado não mais se confundiriam.
69
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de José de Faria Costa. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1998, v. 7, p.75.
67
269
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
entre a violação e a não violação de direitos subjetivos alheios. Assim é que,
neste período iluminista, a essência do crime consistia na violação de um
direito subjetivo. Feuerbach (1801) foi a mais forte expressão desta concepção
material de crime. O Estado existia somente para proteger o âmbito da liberdade
do indivíduo, e prevenir violações a direitos subjetivos, na exata medida dos
chamados direitos positivos de primeira geração. Nas suas palavras, “a razão
geral da necessidade e da existência” da sanção penal “é a necessidade de
preservar a liberdade recíproca de todos mediante o cancelamento do impulso
sensual dirigido às lesões jurídicas”.70
Esta concepção de crime, porém, deparava-se com algumas limitações,
nomeadamente no que se refere ao conteúdo de crimes contra a incolumidade
pública, contra o erário nacional, o crime de falsidade, dentre tantos outros cuja
legitimidade não se poderia delimitar. Para além desta questão, há ainda que se
ressaltar que a lesão à integridade física de outrem não coloca em risco o direito
subjetivo em si, pois que este continua intacto, mas o objeto do direito, que
neste caso se coaduna com a integridade física, mas bem poderia ser a vida, a
honra, o patrimônio, etc.
Assim surgiu a concepção material de crime como ofensa a bens
jurídicos, cujo maior intérprete foi Birnbaum (1834), que afirmou que “o
conteúdo do crime deveria ser buscado não na violação de direitos subjetivos,
mas na ofensa a valores assim reconhecidos pela sociedade”.71 Uma formulação
que, por um lado, destaca uma noção de bem jurídico como objeto de proteção
da norma penal incriminadora e, por outro, a noção de ofensividade em suas
duas formas fundamentais, dano e perigo.
Posteriormente, e sob a influência do positivismo jurídico, Binding trará
uma noção de bem jurídico que vai além do Direito e do Estado. Norma e bem
jurídico irão se tornar termos inseparáveis, na medida em que toda norma possui
um bem jurídico que é exatamente produto de uma decisão política do Estado.
Bem jurídico para Binding é “um estado valorado pelo legislador”. 72 Em outras
palavras, o jurista alemão supervalorizava a atuação legislativa na formulação do
bem jurídico, restringido-o a uma total conformidade com a norma.
Ainda, e mais posteriormente, sobrevém o corte político-criminal de
Von Liszt, para quem “todos os bens jurídicos são interesses vitais, interesses
VON FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter. Tratado de Derecho Penal. Trad, Eugenio Raul
Zaffaroni e Irma Hagemeier. Buenos Aires: Hammurabi, 1989, p. 61.
71
BIRNBAUM, J. M. apud DÁVILA, Fábio Roberto e SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder. Direito
penal secundário: estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p .79.
72
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. 4ª edição, tradução de José Luiz
Manzanares Samaniego, Granada: Comares: 1993, pp. 231-232.
70
270
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
do indivíduo ou da comunidade”. 73 O que se verifica é uma aproximação com o
modelo de direito penal clássico que perdurou, e ainda perdura, salvo algumas
tendências de expansão do direito penal, nos dias hodiernos. Os bens jurídicos,
ainda na concepção de Von Liszt, ultrapassam as fronteiras do ordenamento
jurídico, chegando mesmo a atingir os valores da vida, daí é que se explica a
estreita relação existente entre os modelos de crime e os modelos de Estado,
claramente perceptível através do transcorrer dos tempos.
Restava delimitar quais seriam os “interesses vitais”, os “valores
supremos”, as “condições primordiais” de dada comunidade, no que, sem
dúvida, Von Liszt pecou, ao se olvidar de demarcá-los. A escolha destes valores
supremos merecedores de proteção normativa e fonte de criação de bens
jurídicos é tema que desde sempre acomete os pesquisadores da ciência penal,
desde o nascimento do positivismo até a expansão da sociedade de risco atual.
Fez-se necessário este breve transcorrer histórico para a propagação
do entendimento atual do bem jurídico-penal, que após Roxin74 passou a ser
fundamentado desde uma perspectiva político-criminal. Em outras palavras, a
noção de bem jurídico foi moldada através de modernos recortes constitucionais
que, sob a influência de Roxin, vinculou a teoria do bem jurídico com os fins
do ordenamento jurídico-penal e, também, com os fins do Estado. Assim é que
a proteção dos bens jurídicos passou a ser entendida como missão fundamental
do direito penal, daí sobrevindo a funcionalização do direito penal. Diz-se,
assim, que o direito penal orienta seus procedimentos através da escolha dos
valores humanos mais relevantes e, a partir desta eleição, os seleciona como
bens jurídicos penais e pune, por consequência, aquelas condutas que, concreta
ou abstratamente, os lesionem.
3 A EMERGÊNCIA DOS DIREITOS SOCIAIS COMO MERECEDORES DE TUTELA PENAL
Dadas as premissas básicas e o ponto de partida que se utilizará
neste texto, qual seja, a revolução teórica fundada por Roxin, tem-se que é a
partir da Constituição Federal e dos valores ali contidos, que são obtidos os
valores sociais de referência para a seleção de bens jurídicos merecedores de
intervenção penal. Neste sentido, leciona o jurista alemão:
“O ponto de partida consiste em reconhecer que a única restrição
previamente dada ao legislador se encontra nos princípios da
LISZT, Franz Von. Tratado de derecho penal. Tomo 2, 3ª edição, tradução de Luis Jiménez de
Asúa. Madrid: Instituto Editorial Reus S/A, 1927, p. 06.
74
ROXIN, Claus. Política Criminal e sistema jurídico-penal. Trad. Luiz Greco. Rio de Janeiro e
São Paulo: Renovar, 2000, p. 14. A versão original, de 1970, é usualmente apontada como obra
inaugural do funcionalismo jurídico-penal.
73
271
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Constituição. Para tanto, um conceito de bem jurídico vinculante
político-criminalmente só pode derivar, orientado pela Lei
Fundamental, do nosso Estado de Direito baseado na liberdade do
indivíduo, através do qual se marcam os limites ao poder punitivo
estatal. Em consequência, se pode dizer: os bens jurídicos são
circunstâncias dadas ou finalidades que são úteis para o indivíduo
e seu livre desenvolvimento como marco de um sistema global
estruturado.” 75 (t.n.)
A teoria da lesividade social ganha destaque no estudo do direito
penal, aproximando-o das modernas ciências sociais, de que a política criminal,
enquanto ciência empírica e interdisciplinar, é parte. Em outras palavras, o
conceito de “lesividade social”, para além de importar ao direito penal, importa,
sobremaneira, às necessidades e aos interesses do sistema social.
Historicamente, tem-se em meados dos anos 1930 do século passado
a passagem de um Estado Liberal para um Estado Social de Direito, perspectiva
histórica enquadrada num mundo que esteve diante do início da Segunda
Grande Guerra e da Grande Depressão que se propagou com a queda da bolsa
de valores de Nova Iorque.
À época, o modelo sociopolítico adotado pelo Estado brasileiro
correspondia a um Estado basicamente inerte, não interventor e, logicamente,
não protecionista do interesse público como prima ratio. Era o tempo da
República Velha. O giro se deu com o trabalhismo de Vargas. Com esta bandeira
ideológica, ganhou lugar, no país, a segunda geração de direitos - os sociais,
econômicos e culturais – que relocou o Estado como garantidor de trabalho,
educação, previdência social, etc. Tais direitos já eram fortes noutros lugares,
nomeadamente aqueles sob a influência socialista. Uma nova face era dada –
com algum atraso - à ação do Estado brasileiro, uma face intervencionista e
garantidora da igualdade entre os indivíduos, através da invocação do interesse
público em lugar do particular.
O advento do Estado Social não representou uma derrocada do
liberalismo, mas uma reestruturação – ainda que efetiva – nas dimensões
socioeconômicas vigentes. O viés primordial do Estado de bem-estar social
consubstancia-se na busca pela igualdade material, através de um modelo
mínimo de exigências à condição vital. Segundo esta teoria, valora-se a pessoa
humana como digna de um mínimo de patrimônio e condições necessárias à
vida em sociedade, o que certamente não se coaduna com elementos meramente
ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general. Fundamentos. La estructura de la teoría del delito.
Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente
Remesal. Madrid: Civitas, 1997, pp. 55-56.
75
272
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
quantitativos, vez que este “mínimo” não se converge em valores, mas em
salvaguarda da dignidade humana.
Após vencerem seus direitos individuais à liberdade, estes direitos
básicos foram alçados ao controle do Estado: direito à educação, saúde,
previdência, moradia, etc. A intervenção estatal veio para suprir estas
carências, só neste momento sentidas, da maior parte da população. Este
modelo intervencionista só se legitimaria na medida em que os próprios
indivíduos, enquanto possuidores dos direitos sociais, participassem
ativamente na escolha de seus representantes políticos, pois, afinal, já não
persistia, há muito, a autotutela.
O advento da Constituição Federal de 1988 culminou na consagração
dos direitos sociais, alçados a um status de fundamental relevância. O primeiro
dos direitos salvaguardados no preâmbulo da Lei Maior são os direitos sociais,
que, “promulgado sobre a proteção de Deus”, empresta seu nome ao espírito da
Constituição: Estado Democrático e Social de Direito.
Desde a virada do século XIX para o XX, a emergência dos direitos
sociais deu-se para frear os direitos “negativos” de liberdade dos cidadãos.
Propagou-se a ideia de que “os direitos sociais, econômicos e culturais
são autênticos e verdadeiros direitos fundamentais e, por isso, devem ser
reivindicados como direitos e não como caridade ou generosidade.” 76
Convergem, assim, os direitos sociais como direitos fundamentais do
homem, cuja observância é obrigatória em um Estado Social (e Democrático)
de Direito, e que se fundamentam na busca pela melhoria de condições de vida
aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, conforme
preconiza a Carta Magna, em seu artigo 1º, IV. Carta esta, aliás, de orientação
sócio-democrática, considerada inovadora e detalhista, que lista os direitos
sociais como rol amplo, especificado nos artigos 6º ao 11. Opta-se, neste texto,
por analisar um dos direitos sociais, o direito do trabalho, fortemente marcado
pelo conteúdo socioeconômico e sua relevante inclusão constitucional.
Canotilho e Vital Moreira bem complementam:
“A individualização de uma categoria de direitos e garantias dos
trabalhadores, ao lado dos de caráter pessoal e político, reveste um
particular significado constitucional, do ponto em que ela traduz o
abandono de uma concepção tradicional dos direitos, liberdades e
garantias como direitos do homem ou do cidadão genéricos e abstractos,
fazendo intervir também o trabalhador (exactamente: o trabalhador
subordinado) como titular de direitos de igual dignidade.”77
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. Prefácio de Fábio Konder Comparato. São
Paulo: Max Limonad, 2003, p. 110.
77
CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada.
76
273
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Para além do seu reconhecimento como direitos sociais, os direitos
fundamentais assim previstos no Capítulo II dos “Direitos e Garantias
Fundamentais” da Constituição da República são verdadeiros direitos humanos,
uma vez que resumem a concepção de mundo e informam a ideologia política de
cada ordenamento jurídico. 78 O trabalhador subordinado possui, nesta medida,
direitos fundamentais, sociais e humanos, previstos constitucionalmente, que
são normas de ordem pública e carregam as características da inviolabilidade e
da imperatividade em relação ao que for contratado numa relação trabalhista.
Nesta medida é que, listados os direitos sociais como bens culturais
vitais e fonte de proteção do Direito, certamente podem (e devem) estar
autorizados a ingressarem no rol de bens jurídicos penais. E a lição é dada por
Roxin, ao lecionar que:
“a função do direito penal consiste em garantir a seus cidadãos uma
existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre quando estas
metas não possam ser alcançadas com outras medidas políticosociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos. (....)
A ideia que se subentende a esta concepção é que se deve encontrar
um equilíbrio entre o poder de intervenção estatal e a liberdade civil,
que então garanta a cada um tanto a proteção estatal necessária como
também a liberdade individual possível.” 79
A lição do jurista alemão se dá nos exatos moldes do artigo 1º da
Constituição Brasileira de 1988, que dedica um de seus fundamentos à eleição
dos valores sociais, paralela e simultaneamente, à eleição da livre iniciativa
como formas de propagação do bem estar e da justiça social à sociedade.
Corroborando esta tese, Jescheck sustenta que “os bens jurídicos são interesses
vitais da comunidade aos que o Direito Penal outorga sua proteção”. 80
Ocorre que um novo modelo socioeconômico surgiu em escala global
no último quartel do século XX, um modelo pós-industrial, informacional, global
e em rede, que elevou o papel das corporações a níveis poderosos de influência
generalizada. A atual rede de empresas alcança diferentes níveis da sociedade,
e seu poder é tão corrosivo que Milton Santos chegou a lecionar sobre a “morte
Volume I. Lisboa: Coimbra Editora, p. 285.
78
A. HENSEL apud LUÑO, Antonio Enrique Perez. Derechos humanos, estado de derecho y
constitución. 8ª edición. Madrid: Tecnos, 1999, p. 31.
79
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Tradução de André
Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2009, pp.
16-17.
80
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. 4ª edição, tradução de José Luis
Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993, p. 231.
274
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
da política”, pois que a política, hoje, é exercida para, e através das empresas.
De fato, “a identificação da empresa como uma comunidade institucional da
qual fazem parte o empregador e o empregado, é uma das principais e mais
usuais formas de fundamentação de seu poder punitivo.”81
Emerge o chamado “Direito penal do trabalho”, atualmente, como
poder punitivo de contrabalanço ao poder punitivo corporativo. Atua em
conjunto com o direito administrativo-sancionador. Não há que se olvidar, e
nesta toada seguiu Hassemer, que um cuidado precípuo deve ser tomado aqui: o
respeito ao princípio non bis in idem. Se de um lado se tem o direito penal, com
sua principiologia clássica de ser ultima ratio do sistema, por outro, tem-se o
moderno direito administrativo sancionador, que, igualmente, define infrações
e fixa sanções no âmbito das relações laborais. O tema foi abordado por Antonio
Baylos y Juan Terradillos:
“A existência desta dupla via tipificadora e sancionadora provoca
problemas derivados da possibilidade de subsunção dos comportamentos
infracionais nas normas administrativas e penais, pelo pressuposto de
que se deve respeitar o principio non bis in idem. (…) Os riscos que
correm são menos evidentes, já que a decisão sobre bens e interesses
em conflito deve ser realizada pela autoridade administrativa, que por
esta via decidirá sobre a imposição ou não de penas, convertendo-se o
direito penal em apêndice das decisões administrativas.”
O atual direito penal laboral modificou-se em comparação àquele
que constou do Código Penal de 1940. O legislador, na primeira metade do
século XX, quando elegeu proteger a chamada organização do trabalho,
designou “um bem jurídico que representava o projeto das relações laborais
criado, implantado e mantido pelo ente estatal brasileiro, sob a ideologia do
trabalhismo.” 82 O bem jurídico-penal em questão representava uma extensão
das razões – e ideologia – de estado. Este propunha um modelo organizativo
do trabalho. Assim, “todo indivíduo que, por razões pessoais desprezasse este
modelo, fosse na condição de trabalhador ou na de empresário, seria captado
pelo sistema penal e sofreria reprovações pela prática de crimes contra esta
organização do trabalho.”83 Atualmente, o bem jurídico tem outra interpretação.
ANDRADE, Guilherme Oliveira de. Democracia e poder punitivo do empregador. In Direito
penal do trabalho: reflexões atuais, de Eduardo Milléo Baracat. Belo Horizonte, Editora Fórum,
2010, p. 26.
82
GUARAGNI, Fábio André. Organização do trabalho: contornos atuais do bem jurídico-penal.
In: Direito penal do trabalho: reflexões atuais, de Eduardo Milléo Baracat. Belo Horizonte, Editora
Fórum, 2010, p.139.
83
GUARAGNI, Fábio André. Op. Cit., p. 140.
81
275
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Esta mudança de interpretação deriva de uma necessidade democráticoliberal: o direito penal não pode (e não deve) ser levado a cabo por meras
razões de Estado, o que se explica pela proibição de ser ter um direito penal
atrelado a ideologias políticas, morais, sociais ou ideológicas. A organização do
trabalho aqui mencionada não é objeto de tutela penal como bem jurídico em
si, mas um de seus componentes, este sim, merece proteção jurídica do “braço
armado” do direito. Trata-se, pois, da coletividade dos trabalhadores. São três
as argumentações para as quais este elemento é induzido como destinatário da
proteção penal nos crimes contra a organização do trabalho:
“a) A histórica hipossuficiência do trabalhador nas relações laborais
mantidas no ambiente capitalista de produção de bens e serviços,
atualmente intensificada pelo fenômeno da globalização; b) a tutela
dos interesses empresariais pelo direito penal clássico, caracterizado
pelo comprometimento com o ideário liberal burguês de proteção ao
patrimônio; c) a percepção destes fenômenos no conteúdo da Carta
Constitucional de 1988.”
A sociedade desta virada de século vivencia uma outra lógica global,
diferenciada da de 40 anos atrás - perspectiva temporal não tão longínqua. A
difusão das instituições modernas, em uma escala de progressão geométrica,
quebrou barreiras e gerou uma interdependência generalizada. “Hoje em dia, as
ações cotidianas de um indivíduo produzem consequências globais. É um mundo
em que a oportunidade e o perigo estão equilibrados em igual medida” 84, leciona
certeiramente Anthony Giddens.
Assim é que os efeitos danosos produzidos pelas corporações,
em grande medida intensificados neste cenário global de riscos e riquezas,
na vida de um trabalhador podem (e devem) gerar punição estatal penal,
conquanto sejam reconhecidos numa coletividade e pertencentes a uma
dada organização de trabalho85.
Neste artigo, optou-se pela abordagem do artigo 149 do Código Penal,
como exemplificação empírica de crimes que, como a redução à condição
análoga à de escravo, se enquadram no rol de bens jurídico-penalmente
tuteláveis.
GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização reflexiva. Política, tradição e
estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1995, p. 75.
85
Súmula nº 115 do extinto TFR: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra
a organização do trabalho, quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos
dos trabalhadores considerados coletivamente.”
84
276
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
4 O CRIME DE REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO COMO
DESTINATÁRIO DA PROTEÇÃO PENAL NO ÂMBITO DA ORGANIZAÇÃO DO
TRABALHO
Em primeiro plano, faz-se necessário elucidar que os crimes previstos
no Título IV do Código Penal (crimes contra a organização do trabalho) carregam
valores sociais merecedores de tutela penal, uma vez que transcendem a esfera
do singular e ofendem a organização do trabalho. O crime previsto no artigo
149, de que se tratará aqui, não engloba o rol de crimes previstos naquele Título
por mera desatenção do legislador, uma vez que, se incorporado à relação de
trabalho mantida por empregador em relação a trabalhadores, possui todos os
requisitos próprios desta esfera de crimes.
Mais de 120 anos após a abolição da escravatura no Brasil, as
estatísticas demonstram não serem poucos os casos de trabalhadores, sobretudo
os pertencentes à zona rural, submetidos a condições subumanas, degradantes,
e porque não dizer, de verdadeira escravidão, no trabalho.
É recente, contudo, a atenção que o governo brasileiro despendeu a estes
modernos casos de exploração desumana do trabalhador. Trata-se, certamente, de um
problema de liberdade, ou melhor, da falta dela. Um direito fundamental cotidiana e
reiteradamente sendo desrespeitado. A questão da liberdade, outrossim, não é nova;
já fora tratada por Adam Smith e Karl Marx, este último ressaltou a importância
de “substituir o domínio das circunstâncias e do acaso sobre os indivíduos pelo
domínio dos indivíduos sobre o acaso e as circunstâncias.”86
O desenvolvimento das técnicas e a proliferação de informações em
escala de progressão geométrica certamente formam um paradoxo se tomados
em comparação às baixíssimas concentrações de renda de mais da metade
da população que sem possibilidade de escolhas mais benéficas acaba por se
submeter a condições degradantes de trabalho (valor social alçado ao status de
fundamental pela Lei Maior).
O Código Penal brasileiro vigente abarca em seu artigo 149 o crime
de “reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a
trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção
em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”, e prevê a pena
de dois a oito anos de reclusão e multa, além da pena correspondente à violência
praticada contra a pessoa do trabalhador.
Ainda que o bem jurídico tutelado no caso em tela seja a liberdade do
trabalhador enquanto vítima, certo é que o direito social ao trabalho, previsto
MARX, Karl apud SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira
Mota. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 328.
86
277
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
no artigo 6º da Constituição Federal (e, portanto, um direito fundamental),
combinado com um dos objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, qual seja, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, acaba
sendo relativizado, o que tem induzido as sociedades modernas a combaterem,
de forma acirrada, esta modalidade de crime.
Com efeito, nossa Suprema Corte, ao cuidar da competência para o
julgamento do crime em análise, tratou de rechaçar quaisquer condutas que
possam ser tidas como violadoras dos direitos dos trabalhadores e da própria
organização do trabalho. Segue a ementa de julgado do Supremo Tribunal
Federal, lançado no Recurso Extraordinário n. 398.041-6, Relator Ministro
Joaquim Barbosa:
“EMENTA: DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. ART.
149 DO CÓDIGO PENAL. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE
ESCRAVO. TRABALHO ESCRAVO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
DIREITOS FUNDAMENTAIS. CRIME CONTRA A COLETIVIDADE
DOS TRABALHADORES. ART. 109, VI DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO
PROVIDO. A Constituição de 1988 traz um robusto conjunto normativo que visa
à proteção e efetivação dos direitos fundamentais do ser humano. A existência
de trabalhadores a laborar sob escolta, alguns acorrentados, em situação de total
violação da liberdade e da autodeterminação de cada um, configura crime contra
a organização do trabalho. Quaisquer condutas que possam ser tidas como
violadoras não somente do sistema de órgãos e instituições com atribuições
para proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também dos próprios
trabalhadores, atingindo-os em esferas que lhes são mais caras, em que a
Constituição lhes confere proteção máxima, são enquadráveis na categoria dos
crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto das relações
de trabalho. Nesses casos, a prática do crime prevista no art. 149 do Código
Penal (Redução à condição análoga a de escravo) se caracteriza como crime
contra a organização do trabalho, de modo a atrair a competência da Justiça
federal (art. 109, VI da Constituição) para processá-lo e julgá-lo. Recurso
extraordinário conhecido e provido.”87
Na mesma esteira, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem
proíbe expressamente a manutenção de qualquer modo de escravidão ou trabalho
forçado e, pormenorizadamente, exclui algumas condutas que se enquadram do
lado de fora destas modalidades:
“1- Ninguém pode ser mantido em escravidão ou servidão.
2- Ninguém pode ser constrangido a realizar um trabalho forçado ou
obrigatório.
O documento pode ser acessado no endereço eletrônico <http://www.stf.jus.br>
87
278
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
3- Não será considerado trabalho forçado ou obrigatório no sentido
do presente artigo:
a - Qualquer trabalho exigido normalmente a uma pessoa submetida a
detenção nas condições previstas pelo artigo 5º da presente Convenção,
ou enquanto estiver em liberdade condicional;
b - Qualquer serviço de carácter militar ou, no caso de objectores
de consciência, nos países em que a objecção de consciência for
reconhecida como legítima, qualquer outro serviço que substitua o
serviço militar obrigatório;
c - Qualquer serviço exigido no caso de crise ou de calamidade que
ameacem a vida ou bemestar da comunidade;
d - Qualquer trabalho ou serviço que fizer parte das obrigações cívicas
normais.”88
As exceções ficam por conta do trabalho ou serviço realizado em
casos de crise ou de calamidade pública. Nestes casos, a vida ou o bem-estar
da comunidade poderá exigir a prestação de um serviço. A situação, porém,
além de carregar consigo extremo nível de gravidade, deve possuir caráter
temporário, como, por exemplo, uma catástrofe natural, circunstância em
que pode ser exigido a cada um, segundo suas capacidades e possibilidades,
determinado trabalho ou serviço.
Não se admite que, nesta virada de século, formas desumanas e
degradantes de trabalho persistam em diversas corporações mundo afora. A
importância de se promover modificações conceituais e valorativas na cultura
jurídica brasileira é inquestionável, devendo-se afastar alguns preceitos jurídicos
que ainda hoje são utilizados como suporte para diversas empresas e, até mesmo
pela sociedade civil, para mitigar suas obrigações com a comunidade em que
estão inseridas.
A concepção contemporânea de empresa não mais admite uma cultura
empresarial que privilegie tão somente o lucro, em detrimento de
valores éticos que tenham por escopo a valorização da dignidade da
pessoa humana. Toda e qualquer corporação que assim se denomine
nesta sociedade contemporânea (uma sociedade paradoxal, de riquezas
e riscos) deve primar pelo respeito à sua função social, que deixou de
ser mera funcionalidade, e passou a ser verdadeiro dever. Pensar a
função social da empresa implica, assim, posicionar a empresa em
face da função social da propriedade, da livre iniciativa (autonomia
privada para empreender) e da proporcionalidade (equilíbrio na
consecução dos interesses privados diante das necessidades sociais).
BARRETO, Irineu Cabral. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada. Lisboa:
Editora Coimbra, 2005, p. 78.
88
279
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A DEVIDA PROTEÇÃO PENAL AO DIREITO
SOCIAL AO TRABALHO
Em que pese o artigo 149 do Código Penal prescrever o crime de
submeter alguém (trabalhador, no caso) à condição análoga à de escravo, tem-se
que não só o direito individual à liberdade encontra-se violado, mas, e ousamos
dizer, sobretudo, viola-se o direito social (e fundamental) ao trabalho. A Carta Política de 1988 fez por bem alçar o direito ao trabalho (leiase trabalho digno, exercido sob condições regulares de exigência à dignidade da
pessoa humana) como um verdadeiro direito fundamental. O legislador ordinário
elegeu o citado valor como essencial à existência harmoniosa em sociedade e
fato é que o direito penal existe exatamente para “garantir a seus cidadãos uma
existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre quando estas medidas
não possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais.”89
Isto significa que a tutela penal da coletividade dos trabalhadores,
como elemento da organização do trabalho, é medida que se perfaz necessária
frente ao novo contexto social pós-industrial, reflexivo e de riscos. O papel das
empresas ganhou não só destaque em uma escala de progressão geométrica,
como status de influenciadoras da política e da economia mundiais.
O crime de redução à condição análoga à de escravo causa espanto e
alguma intriga, pois que sua existência mais de um século depois da abolição
da escravatura no país, se dá em um contingente significativo da população,
principalmente a da zona rural. É de se perceber, infelizmente, que a promulgação
da lei não garantiu a efetiva liberdade dos trabalhadores, nem, tampouco, seu
direito a um trabalho digno e em conformidade com os ditames de um Estado
que se diz Democrático e Social de Direito.
O que se buscou argumentar, neste artigo, foram os motivos
determinantes para a escolha do direito ao trabalho, enquanto direito
eminentemente social (leia-se, de prestação positiva por parte do Estado,
com o fim de se atenuarem as desigualdades existentes), na ordenação de
bens jurídicos merecedores de intervenção penal. Para isso, fez-se necessária
uma argumentação histórico-evolutiva dos bens jurídicos penais, desde
Feuerbach, Birnbaum, passando pelo direito penal clássico do século passado
e aterrissando nas modernas escolas de direito penal, hoje conglomeradas
essencialmente na Alemanha.
Para além de reconhecer que o direito penal deva se debruçar sobre
condutas que causem lesão ou perigo de lesão a bem jurídicos penais, deve-se
compreender que dentre os diversos ramos da ciência jurídica, a intervenção
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Tradução de André
Luiz Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2006, pp. 16-17.
89
280
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
penal é a mais radical, a ultima ratio do sistema e só deve subsistir “en los casos
de ataques muy graves a los bienes jurídicos más importantes. Las perturbaciones
más leves del orden jurídico son objetos de otras ramas del Derecho”.90 E isto
porque o direito penal possui plenas condições de fornecer aos bens jurídicos
tutela diferenciada, tanto civilmente, como administrativamente, devendo a
tutela penal estar resguardada àquilo que, indubitavelmente, perturbe o convívio
social e ponha em risco a segurança da sociedade. Reconhece-se, neste artigo, e
sem sombra de dúvidas, que o direito social ao trabalho mereça destaque no rol
de valores merecedores da intervenção do direito penal.
MUÑOZ CONDE, Francisco, Introducción al Derecho penal, Barcelona, Bosch, 1975, pp. 59-60.
90
281
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
REFERÊNCIAS
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empregador. In Direito penal do trabalho: reflexões atuais, de Eduardo Milléo
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Anotada. Lisboa: Editora Coimbra, 2005.
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Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, v. 7.
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Milléo Baracat. Belo Horizonte, Editora Fórum, 2010.
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José Luis Manzanares Samaniego. Granada: Comares, 1993.
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Luis Jiménez de Asúa. Madrid: Instituto Editorial Reus S/A, 1927.
LUÑO, Antonio Enrique Perez. Derechos humanos, estado de derecho y
constitución. 8ª edición. Madrid: Tecnos, 1999
MUÑOZ CONDE, Francisco, Introducción al Derecho penal, Barcelona,
Bosch, 1975.
282
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. Prefácio de Fábio Konder
Comparato. São Paulo: Max Limonad, 2003
ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general. Fundamentos. La estructura de
la teoría del delito. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y
García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, pp. 55-56.
___________. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal.
Tradução de André Luiz Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre:
Livraria do advogado, 2006.
__________. Política Criminal e sistema jurídico-penal. Trad. Luiz Greco. Rio
de Janeiro e São Paulo: Renovar, 2000.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira
Mota. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
VON FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter. Tratado de Derecho Penal.
Trad. Eugenio Raul Zaffaroni e Irma Hagemeier. Buenos Aires: Hammurabi,
1989.
283
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E A PROMOÇÃO DOS
OBJETIVOS CONSTITUCIONAIS
Ariosto Teixeira Neto91
Fábio André Guaragni92
RESUMO
O texto trata sobre a valorização da discricionariedade como
instrumento da intervenção estatal na atividade econômica e social pelo
fenômeno da crise da origem parlamentar da Lei, pelo sociedade contemporânea
e pela rapidez do desenvolvimento tecnológico. Também trata sobre a
observância dos objetivos constitucionais como forma de aprimoramento das
decisões discricionárias, em especial, ao serem tratadas como finalidade dos
atos discricionários em conjunto com os “interesses públicos”.
Palavras-Chave: Direito Administrativo. Intervenção Econômica. Discricionariedade. Objetivos Constitucionais.
ABSTRACT
The text treat about the valuation of discretion as an instrument
of state intervention in economic activity and social by the phenomenon of
crisis of the Law`s parliamentary origin, by contemporary society and the
quickness of technological development. It also treat about the observance of
constitutional objectives as a way to improve the discretionary decisions, in
particular, being treated as purposes of discretionary acts in conjunction with
the “public interest”.
Keywords: Administrative
Constitutional objectives.
Law.
Economic
Intervention.
Discretion.
SUMÁRIO: I. Introdução. II. Transformação Estatal e Social. III. Discricionariedade
– Noção. IV. A Discricionariedade, A Lei e o Direito Administrativo Contemporâneo.
Mestrando em Atividade Empresarial e Cidadania da UNICURITIBA. Grupo de Pesquisa Científica de
Direito Penal-Econômico da UNICURITIBA. Advogado Tributarista e Penalista
92
O autor é Promotor de Justiça no Estado do Paraná, Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais
(UFPR). É Professor de Direito Penal Econômico do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e
Cidadania do UNICURITIBA. É Professor de Direito Penal do UNICURITIBA, FEMPAR, ESMAE, CEJUR e
LFG. Atuou neste texto como orientador.
91
284
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
V. Discricionariedade e Razoabilidade. VI. Objetivos Constitucionais. VII.
Objetivos Constitucionais da Discricionariedade. VIII. Conclusão. IX. Referências
Bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
A evolução da figura estatal desde a sua fundação até os
tempos contemporâneos demonstrou que a intervenção na vida privada e,
consequentemente, na atividade econômica e social foi determinante para a
proteção de diversos direitos.
Tal evolução nas últimas décadas, derivando em especial do progresso
tecnológico, acelerou ainda mais a intervenção estatal pela necessidade da
existência no ordenamento jurídico de instrumentos normativos cada dia mais
adaptados a essa realidade e até mesmo pela maior quantidade de aplicação em
casos concretos.
Diante disso, o fenômeno da desconcentração da produção de leis
pelo Poder Legislativo para outras esferas do Estado, como o Poder Executivo,
causou uma maior liberdade para o administrador público.
Ou seja, a discricionariedade administrativa, a liberdade de decisão
do administrador público tornou-se um dos mais importantes instrumentos de
intervenção do Estado na vida privada e das atividades econômicas e sociais.
Assim, o presente trabalho está estruturado em uma breve análise da
transformação estatal e social do séc. XVIII aos dias atuais, seguido de um
tópico acerca da noção atual do termo discricionariedade.
A seguir, verificar-se-á algumas das conjunções entre a lei, a
discricionariedade e o Direito Administrativo, mostrando que a discricionariedade
está cada vez mais se tornando um elemento importante para a definição da
intervenção estatal na atividade econômica e social.
Posteriormente, será visto que além dos princípios existentes, deve
haver destaque para a razoabilidade e a finalidade na discricionariedade, que
quando conjugados com os objetivos constitucionais e aplicados, auxiliam na
decisão da melhor opção do administrador.
2 TRANSFORMAÇÃO ESTATAL E SOCIAL
Quando existe a proposta de uma observação histórica de certos fatos,
mesmo que de forma breve, cabe uma ressalva sobre a interpretação de fatos
pretéritos que não devem ser verificados de maneira tão pontual ou de forma
isolada sob olhares de pessoas de fora daquela sociedade, de outro tempo, vez que
as mudanças, transições e crises são frutos de anos e séculos de evolução humana.
285
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Sobre isso Diego Bonfim alerta que: “na história, as evoluções
são paulatinas e maturadas sem que as mudanças sejam percebidas, em sua
plenitude, por quem as vive. Os acontecimentos de hoje são contados e vertidos
na linguagem reconhecida pela ciência histórica amanhã”93.
Com essa ressalva em mente, ousa-se fazer algumas observações acerca
da formação do Estado na acepção moderna que necessariamente remonta à
Revolução Francesa de 1789, uma manifestação humana única e, historicamente,
com a mais radical quebra de paradigmas de uma sociedade até hoje conhecida.
A Revolução Francesa e suas consequências, como a Declaração
Universal dos Direitos do Homem foi a primeira grande Revolução da história
da humanidade em que o homem deixa de ser súdito para ser cidadão, conforme
as lições de Paulo Bonavides94.
Outra consequência dessa Revolução, juntamente com o formulação
do Estado Moderno e Revolução Norte-Americana pela independência, foi o
surgimento do princípio da igualdade formal, ou seja, a igualdade perante a lei,
codificada e/ou constitucionalizada dessa forma para inicialmente dar fim as
discriminações usadas pelos reis absolutos em face de toda a população95.
Nessa fase da Revolução Francesa os pressupostos centrais do Estado
Liberal não são a participação da vontade popular ou a igualdade de direitos,
mas apenas a liberdade, em especial, mercantil e econômica frente ao Estado,
uma verdadeira “negação da soberania estatal”96 apregoada essencialmente
pela teoria de Montesquieu, ou seja, é a negação do próprio Estado leviatânico,
consagrando os direitos fundamentais de primeira geração97.
Dessa forma, criaram-se os fundamentos do princípio da legalidade
tão utilizado no Direito Administrativo e na Administração Pública em que o
Estado só deve fazer, a priori, o que a lei expressamente mandar, como será
verificado no próximo tópico acerca desse ponto.
Assim, o liberalismo de primeira fase teve seus méritos, como a
consagração do princípio da legalidade e que ao Estado, a princípio, cabe atuar
apenas quando a Lei determinar.
Nesse contexto histórico, Emerson Gabardo destaca que as principais
revoluções ocidentais (Francesa e Industrial) mudaram paulatinamente o
BONFIM, Diego. Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva, 2011. p.77.
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
p. 30.
95
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade (o
Direito como instrumento de transformação social: A experiência dos EUA). Rio de Janeiro:
Renovar, 2001. p. 02.
96
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
p. 50.
97
BONFIM, Diego. Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 79.
93
94
286
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
status do Estado nacional no âmbito econômico de guardião para interventor
esporádico e, posteriormente, um interventor institucionalizado98.
Contudo, a própria formulação ideológica da Revolução Francesa,
com a aderência e participação popular maciça, trouxe com ela as sementes
democráticas ao justificar a participação da burguesia na política, consequentemente, justificou também a participação de outras classes sociais, algo que
gerou conflito entre o princípio liberal, de cunho burguês, e o princípio democrático na segunda fase da Revolução.
Resumidamente, Paulo Bonavides expõe da seguinte maneira a
situação: “do princípio liberal chega-se ao princípio democrático. Do governo
de uma classe, ao governo de todas as classes”99.
Diversas foram as alterações ideológicas ocorridas na figura Estado
Liberal puro, ou seja, aquele idealizado na primeira fase e desenvolvido no curso
do séc. XVIII e XIX, mudanças estas que foram em grande parte impulsionadas
pela teoria democrática encontrada de maneira incipiente na ideia de vontade
geral (volonté générale) de Rosseau, tudo isso sempre movido pela pressão
da força das massas, da população em geral conferindo as legitimidade as
demandas desses grupos sociais, fazendo com que o Estado se preocupasse
e interferisse em várias áreas que antigamente eram exclusivas da iniciativa
privada, individual.
À primeira vista, houve uma interferência direta na liberdade mercantil
e econômica conquistada pela burguesia na primeira fase da Revolução
Francesa confrontando com os direitos das outras classes, em especial, dos
trabalhadores e seus direitos essenciais para sobrevivência, ou seja, há uma
clara vinculação de que uma classe iria abrir mão de certas regalias enquanto
outra iria se beneficiar com os a efetivação de direitos de sua dignidade. Essa
fase é a clássica luta de classes com auge ao longo do séc. XIX e início do séc.
XX, preconizadas e resumidas por Karl Marx.
Após a segunda metade do século XX, em especial, após as grandes
guerras mundiais, as preocupações com os direitos sociais aprofunda-se e
abrangem outras formas de manifestações em defesa de direitos não apenas
de classes específicas como outrora, mas em favor de uma coletividade,
de pessoas indetermináveis ou difusas, sem uma maior palpabilidade ou
concretude desses direitos.
Essa defesa de direitos coletivos sem maior visibilidade concreta
deriva em muito da sociedade atual, muito bem explicada pela Teoria do Risco
GABARDO, Emerson. Interesse Público e Subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para
além do bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 156.
99
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 43.
98
287
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
de Ulrich Beck100, na qual demonstra que as ameaças e os riscos produzidos
pela sociedade industrial são potencializados com a inovação tecnológica. Ou
seja, a “sociedade de risco é aquela que, em função do seu contínuo crescimento
econômico, pode sofrer a qualquer tempo as consequências de uma catástrofe
ambiental”101.
A criação de diversas tecnologias com desconhecido exato do alcance
de seus riscos, ou seja, são imensuráveis muitas vezes esses riscos, bem como
a rapidez da evolução frenética dessas tecnologias, faz com que os riscos e
ameaças sejam ainda mais potencializados e difíceis de verificação.
Visando o controle desses riscos e ameaças constantes na sociedade
contemporânea, a atividade legislativa aumentou de forma exponencial em
diversos ramos do Direito e, consequentemente, afetam também a atuação
estatal e administrativa do Estado.
Ora, essa foi uma resposta natural do Direito frente ao aumento do
conhecimento técnico produzido, que por se revelar perigoso causa um temor
na própria sociedade que exige uma resposta no campo jurídico para o controle
e diminuição desses riscos a níveis aceitáveis, toleráveis.
Essa ampla produção legislativa no Estado atual contudo gera uma
defasagem na dogmática no Direito, e cria diversos núcleos de organização,
trazendo dificuldades para seleção e adequação do Direito e em especial do
Direito Administrativo, que devem estar abertos para as mudanças102.
3 DISCRICIONARIEDADE – NOÇÃO
Antes de falar sobre o papel da discricionariedade nesse mundo
contemporâneo e até mesmo sua influência direta no âmbito administrativo,
deve-se ter ao menos noção científica do que é discricionariedade.
Ao comentar sobre atos administrativos, Celso Antônio Bandeira de
Mello define atos discricionários e, portanto, a própria discricionariedade, como
os em que existe “certa margem de liberdade de avalização ou decisão segundo
critérios de conveniência e oportunidade formulados por ela mesma, ainda que
adstrita à lei reguladora da expedição deles”103.
Teoria desenvolvida inicialmente no livro com primeira edição na língua nativa na Alemanha
em 1980: BECK, Ulrich. A Sociedade do Risco: rumo a uma nova modernidade. São Paulo:
Editora 34, 2010.
101
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (organizadores). Direito
Constitucional Ambiental Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 152.
102
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000. p. 119.
103
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed, rev., atual.. São
Paulo: Malheiros Editores. 2011. p. 430.
100 288
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
A discricionariedade é vista por Marçal Justen Filho como um
dever-poder, no qual “é da essência da discricionariedade que a autoridade
administrativa formule a melhor solução possível, adote a disciplina jurídica
mais satisfatória e conveniente ao poder público”104.
Mais adiante em seu curso, Celso Antônio Bandeira de Mello analisa
com maior atenção a questão da discricionariedade não só como um tipo de
ato administrativo, mas como liberdade decisória do administrador público105 e
conceitua discricionariedade da seguinte forma:
É a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger,
segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois
comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de
adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força
da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela
não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente106.
Ou seja, de breve maneira, a discricionariedade é ligada com a
liberdade de decisão do administrador público buscando a melhor solução ao
caso concreto, de acordo com as limitações do ordenamento jurídico, e é com
essa ideia que se usará esse termo no decorrer desse trabalho.
4 A DISCRICIONARIEDADE, A LEI E O DIREITO ADMINISTRATIVO CONTEMPORÂNEO
O Direito Administrativo, assim como todo ramo do Direito Público,
tradicionalmente era entendido como o ramo do estudo do Direito destinado
as atividades administrativas do Estado, ou seja, na clássica separação entre
os Poderes do Estado, seria o estudo da execução das leis e normas jurídicas,
variando apenas o conteúdo e a extensão dessa atividade107, portanto, um
entendimento de uma atividade quase mecânica.
Contudo, essa visão de que ao Estado, entendido como Administração
Pública, só deveria atuar conforme a Lei e nos estritos ditames da Lei, não cabe
mais no presente ordenamento jurídico e nem frente aos desafios da sociedade
atual, conforme a lembrança de Diogo de Figueiredo Moreira Neto sobre essa
corrente de pensamento:
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2006. p. 168.
105
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed, rev., atual.. São
Paulo: Malheiros Editores. 2011. p. 980.
106
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed, rev., atual.. São
Paulo: Malheiros Editores. 2011. p. 981.
107
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória,
parte geral e parte especial. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009. p. 24.
104
289
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Em consequência, a função administrativa não poderá ser exercida
sem prévia e expressa admissibilidade na ordem jurídica, embora para
alguns, que entendem que a função administrativa não se propõe a
realizar fins de Direito, mas a atingir fins de fato determinados pelo
Estado, sejam de opinião que ela possa ser exercida praeter legem,
proibida apenas sua atuação contra legem108.
E continua:
Esta segunda corrente já fez escola, nela pontificando o ilustre Otto Mayer,
como seu destacado epígono, mas é a primeira delas, que, consistentemente
com o conceito de Estado Democrático de Direito, tem neste um
instrumento executor da vontade sociedade, que só pode agir estritamente
secundum legis, corrente hoje amplamente dominante, embora autores
contemporâneos, como Hartmut Maurer, mantenham a possibilidade de
existência de atividades estatais não previstas em lei, exemplificando-as,
como administração pública livre de vinculação legal (Gestzfreiverwaltung),
com certas atividades, como a construção de estradas, a criação de serviços
comunitários, o planejamento público ou a escolha de meios de fomento109.
Prova de que a corrente de pensamento de Otto Mayer se preocupa
em justificar e entender o presente momento social e jurídico como uma
tendência legislativa é que a lei parlamentar como conhecemos deixa de ser o
centro das atenções na ordem jurídica, outorgando esses poderes ainda mais ao
Poder Judiciário e Poder Executivo110, isso porque, como dito anteriormente, a
sociedade, o Estado e o Direito são alterados constantemente pela tecnologia e
invenções das ciências exatas, bem como seus riscos e ameaças, fazendo com
que o conhecimento se torne mais especializado e complexo a cada momento.
Assim, a elaboração das normas é repassada em muitos casos para
pessoas de conhecimentos técnicos sobre o assunto, seja parcialmente ou até
mesmo totalmente, e essas pessoas não estão alocadas no Poder Legislativo
na estrutura estatal, mas no Poder Executivo tipicamente ou até mesmo no
Poder Judiciário quando necessário a sua consulta ao caso concreto por meio de
peritos contratados pelas partes.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória,
parte geral e parte especial. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009. p. 24.
109
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória,
parte geral e parte especial. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009. p. 24.
110
DE MONCADA, Luís S. Cabral. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 95.
108
290
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Essa ideia de transpasse de algumas normas para os técnicos visam a
maior proximidade da lei com assuntos complexos para maior eficácia e sentido
à própria lei, técnicos esses muitas vezes em entidades independentes (agências
reguladoras no Brasil), autônomas ou não do Poder Executivo111.
Poder-se-ia questionar acerca da “desnormatização” total pela
ausência de lei em sentido estrito para regular certos setores, contudo vale as
palavras de Luis Cabral De Moncada “o que está em crise não é tanto a lei como
instrumento de decisão mas a sua origem parlamentar”112.
Ora, as consequências desse fenômeno de atribuir competência
legislativa às agências reguladoras e, mesmo à Administração Pública mais
tradicional, gera um maior campo de discricionariedade para o agente
administrativo, maior liberdade decisória, em que pese de maneira diversa da
discricionariedade costumeira, vez que em uma é a liberdade de escolha de criação
da própria norma jurídica e na outra discricionariedade nos atos administrativos há
liberdade de como executar tal ato, discricionariedade em sentido estrito, que na
prática acabam por se assemelhar pela função que o administrador irá realizar113.
Exemplos da importância discricionária no Brasil são as agências
reguladoras que possuem poder normativo, aqueles poder que “consiste em
editar comandos gerais para o setor regulado (complementando os comandos
legais crescentemente abertos e indefinidos)”114 e mesmo que haja controvérsias
acerca da possibilidade das agências reguladoras utilizarem-se desse poder
normativo “o fato é que a maioria da doutrina admite que as agências reguladoras
emitam normas gerais, evidentemente desde que tais normas se submetam ao
contido na Constituição e nas diversas Leis”115.
Dessa forma, o que se vê em nosso país é exatamente o uso da
discricionariedade pelas agências reguladoras, e não só elas, mas também
toda a Administração Pública, por meio do poder normativo, criando-se
normas “administrativas” de caráter cogente. Isso tudo sem cogitar outras
atribuições repassadas para as agências reguladoras em que é feito o exercício
da discricionariedade.
Sobre a mudança do papel do Estado brasileiro nas últimas décadas
do séc. XX e aumento da importância das agências reguladoras, vale lembrar as
DE MONCADA, Luís S. Cabral. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 98.
DE MONCADA, Luís S. Cabral. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 96.
113
DE MONCADA, Luís S. Cabral. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 122.
114
CARDOSO, André Guskow. As agências reguladoras e arbitragem. In: PEREIRA, Cesar
Augusto Guimarães, e; TALAMINI, Eduardo (coord.). Arbitragem e Poder Público. São Paulo:
Saraiva, 2010. p. 24.
115
CARDOSO, André Guskow. As agências reguladoras e arbitragem. In: PEREIRA, Cesar
Augusto Guimarães, e; TALAMINI, Eduardo (coord.). Arbitragem e Poder Público. São Paulo:
Saraiva, 2010. p. 25.
111
112
291
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
palavras de Luís Roberto Barroso sobre o Estado que “em lugar de protagonista
na execução dos serviços, suas funções passam a ser as de planejamento,
regulação e fiscalização”116.
O mesmo autor levanta o questionamento acerca do problema dessa
delegação do poder normativo do Poder Legislativo para o Poder Executivo e mesmo
agências reguladoras, embora existam alguns limites Constitucionais impostos para
essa delegação, “é preciso determinar os limites dentro dos quais é legítima a sua
flexibilização, sem que se perca sua identidade como uma norma válida e eficaz”117.
Outro problema visto por Tomàs Font y Llovet é “uma fragmentação
dos interesses públicos, que ressalta os problemas em uma determinação da
discricionariedade”118.
Não se alongando sobre a questão da legalidade e limites da delegação
da norma por não ser foco desse trabalho, cabe lembrar também que mesmo
havendo um menor grau de liberdade para o administrador decidir frente a
questões de cunho mais “técnico”, deve-se pautar que tais questões científicas
não sejam vinculativas119, ainda mais após a prova de que nem mesmo as ciências
exatas possuem um grau de certeza absoluto, assunto muito bem explorado e
demonstrado por Ulrich Beck120.
Assim, pela dificuldade do legislador em conhecer certos assuntos
técnicos ou especializados, vale-se muitas vezes de conceitos indeterminados
expostos na Lei para que a interpretação desses conceitos nos casos concretos,
com o exercício da discricionariedade, resultem em uma melhor aplicação ao
caso concreto, não importando se há ou não uma existência de consenso entre
as opiniões das mais diferentes áreas do conhecimento, mas que possa ser uma
“válvula de escape” para o administrador na aplicação ao caso concreto121.
Exemplo dessa maior liberdade de decisão, de discricionariedade,
repassada ao administrador público está na questão da administração chamada
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do estado
e legitimidade democrática. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Uma avaliação das
tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 170.
117
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do estado
e legitimidade democrática. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Uma avaliação das
tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 189.
118
Original em espanhol: “una fragmentación del interés general, que ponde de manifesto los
problemas em la determinácion de la discrecionalidad” in LLOVET, Tomàs Font y. Dessarrollo
Reciente de los Instrumentos de la Adminstrátion Consensual en España. In: MOREIRA NETO,
Diogo de Figueiredo. Uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 365.
119
DE MONCADA, Luís S. Cabral. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 125.
120
BECK, Ulrich. A Sociedade do Risco: rumo a uma nova modernidade. São Paulo: Editora 34,
2010.
121
DE MONCADA, Luís S. Cabral. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 129-130.
116
292
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
consensual para solução dos conflitos entre os interesses da administração e do
particular.
Antes de falar diretamente sobre a consensualidade devemos lembrar
que o Direito Administrativo possui como pressupostos a supremacia do
interesse público sobre o privado e a indisponibilidade dos interesses públicos122,
resultando em um dos atributos dos atos administrativos que é a imperatividade
de seus atos frente o interesse de terceiros, de particulares.
Essa imperatividade, melhor explicada como “a qualidade pela
qual os atos administrativos se impõe a terceiros, independentemente de
sua concordância”123 por Celso Antônio Bandeira de Mello, é muitas vezes
ineficiente, pois é necessária a participação desse terceiro para que o interesse
público seja alcançado no caso concreto.
Dessa forma, visando a melhor administração e o alcance de resultados
mais positivos, a consensualidade é vista “como alternativa preferível à
imperatividade, sempre que possível, ou em outros termos, sempre que não seja
necessário aplicar o poder coercitivo”124, por serem alternativas “mais baratas
e mais ágeis”125.
Ou seja, a Administração Pública ao procurar a não imposição da
imperatividade do rigor da lei em certos casos e optar pela consensualidade em
um caso concreto, haverá a liberdade do agente público em decidir acerca desse
consenso e os seus limites, até mesmo em aceitar ou negar a possibilidade de
um consenso com o administrado quando é verificado que o interesse público
seria demasiadamente lesado ou prejudicado.
Também é possível verificar a existência de discricionariedade quando
há o chamado costumeiramente poder de polícia, que Ricardo Marcondes
Martins comparando com a ponderação no âmbito legislativo afirma que
É possível, contudo, excepcionalmente, que as restrições fundadas nos
princípios constitucionais não estejam fixadas em regras legislativas,
decorram da ponderação administrativa, realizada diante do caso
concreto. Esse, e somente esse, é o campo do poder de polícia.126
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed, rev., atual.. São
Paulo: Malheiros Editores. 2011. p. 55.
123
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed, rev., atual.. São
Paulo: Malheiros Editores. 2011. p. 419.
124
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000. p. 41.
125
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000. p. 48.
126
MARTINS, Ricardo Marcondes. Poder de polícia. In: PIRES, Luis Manuel Fonseca; ZOCKUN,
Maurício. Intervenções do estado. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 95.
122
293
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Mais uma vez é demonstrado pelo exemplo que a liberdade de decisão
ao caso concreto é um ponto chave na atuação administrativa no âmbito do
poder de polícia.
Em outro campo do Direito Administrativo que é possível observar
o aumento da importância da discricionariedade é no Direito Administrativo
Sancionador, ou seja, na imposição de sanções administrativas frente a um
administrado que venha a contrariar a lei com previsão de sanção administrativa.
Cabe a lembrança da impossibilidade de opção pelo administrador
quando a sanção já foi comprovada, conforme afirma Daniel Ferreira
recebida a notícia de ilícito administrativo, deve-ser a sua investigação.
E em caso de comprovação, deve-ser a imposição da correspondente
sanção administrativa – salvo se a lei permitir ou determinar em
contrário127.
Por outro lado, durante a fase de investigação de certas infrações
administrativas, algumas agências reguladoras são autorizadas a firmar um termo
de compromisso com o infrator, similar a um termo de ajustamento de conduta,
conforme exposto por exemplo no art. 53 da Lei nº 8.884/1994128 (Lei do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica - CADE), no art. 11 e seguintes da Lei nº
6.385/76129 (Lei da Comissão de Valores Mobiliários - CVM).
Ora, mais uma vez, em que pese o termo de compromisso ser
considerado mesmo um direito subjetivo do infrator, não há como discordar que
o administrador irá definir os termos desse compromisso dentro do seu poder
discricionário e caso não haja um “acordo” ou “compromisso” firmado deverá
continuar com a investigação.
FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal
de 1988. Belo Horizonte: Fórum. 2009. p. 333.
128
BRASIL. Lei nº 8.884. 1994. Art. 53: “Em qualquer das espécies de processo administrativo, o
Cade poderá tomar do representado compromisso de cessação da prática sob investigação ou dos
seus efeitos lesivos, sempre que, em juízo de conveniência e oportunidade, entender que atende
aos interesses protegidos por lei”.
129
BRASIL. Lei nº 6.385. 1976. Art. 11: “A Comissão de Valores Mobiliários poderá impor aos
infratores das normas desta Lei, da lei de sociedades por ações, das suas resoluções, bem como
de outras normas legais cujo cumprimento lhe incumba fiscalizar, as seguintes penalidades: (…)
§5o A Comissão de Valores Mobiliários poderá, a seu exclusivo critério, se o interesse público
permitir, suspender, em qualquer fase, o procedimento administrativo instaurado para a apuração
de infrações da legislação do mercado de valores mobiliários, se o investigado ou acusado assinar
termo de compromisso, obrigando-se a: I - cessar a prática de atividades ou atos considerados
ilícitos pela Comissão de Valores Mobiliários; e II - corrigir as irregularidades apontadas, inclusive
indenizando os prejuízos”.
127
294
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Assim, até mesmo no mais rigoroso ramo do Direito Administrativo,
em que a legalidade estrita é mais cogente, existe a liberdade de decisão, de
escolha para o administrador.
Como visto por todos esses exemplos, a discricionariedade é um
instrumento para o exercício do Direito Administrativo contemporâneo,
surgindo questionamentos sobre essa figura: como se sabe qual é a melhor
decisão administrativa em um caso concreto? Como o administrador opta pela
melhor solução no seu campo de discricionariedade?
Certamente não existe uma fórmula científica para essas respostas,
mas a análise de alguns princípios constitucionais e mesmo objetivos da
Constituição da República130 podem direcionar o caminho para uma solução
mais adequada, o que será visto nos próximos tópicos.
5 DISCRICIONARIEDADE E RAZOABILIDADE
Como visto, a discricionariedade é cada vez mais usada e incentivada
na Administração Pública e não existe uma fórmula exata para se atingir a
“melhor decisão” ao caso concreto, mas alguns princípios jurídicos são em
certa medida informadores para o alcance dessa melhor solução.
De início, os princípios administrativos devem ser todos observados
pelo administrador em uma análise discricionária, em especial os constitucionais
citados no art. 37 da Constituição da República131, sendo que o foco do artigo
não necessita de maior análise de cada um deles, apenas citando-os: legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Também são identificados diversos outros princípios administrativos,
como a supremacia do interesse público sobre o privado, o da motivação,
mas em especial para a discricionariedade e para o presente estudo, é de
suma importância discorrer acerca dos princípios da proporcionalidade, da
razoabilidade e a sua correlação com a finalidade do ato.
A razoabilidade é vista por Carmen Lúcia Antunes Rocha como “uma
razão suficiente, justa e adequada, fundada em norma jurídica amparada em
uma necessidade social específica, que identifique a validade de determinada
prática estatal”132.
Ao discorrer sobre o princípio da razoabilidade no campo da
discricionariedade administrativa Rita Tourinho expõe que:
BRASIL. Constituição. 05 de outubro de 1988.
BRASIL. Constituição da República. 05 de outubro de 1988. “Art. 37. A administração
pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também, ao seguinte: (...)”
132
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública.
Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p 113.
130
131
295
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
O ato praticado pelo administrador deve estar dentro dos limites
legais impostos na norma jurídica, observando, também, os limites de
razoabilidade. Logo, diante da ocorrência de uma situação de fato, o
administrador deverá não somente atentar para os limites legais, como
também observar a pertinência e eficácia dos meios para o alcance dos
fins contidos na norma.133
Dessa forma, percebe-se que a razoabilidade refere-se aos limites
gerais acerca do ato administrativo possuir uma razão adequada de existência e
validade de acordo com o ordenamento jurídico.
Por outro lado, o princípio da proporcionalidade diz respeito sobre
a adequação entre meios adotados e os fins que um ato busca. Muitos autores,
como Maria Sylvia Zanella Di Pietro134, Celso Antônio Bandeira de Mello135 e
José Roberto Pimenta Oliveira136, afirmam que o princípio da proporcionalidade
não é autônomo mas estaria contido no princípio da razoabilidade.
De uma forma ou de outra, esse princípio ou faceta do princípio da
razoabilidade é importante para a discricionariedade haja vista que
A norma deixa um campo livre para a decisão administrativa, o caso
concreto exigirá que as medidas sejam adequadas às necessidades
públicas, quer dizer, que haja proporcionalidade entre os meios e fins137.
Também é essencial o destaque oferecido por Rita Tourinho ao dizer que
Ora, não se pode perder de vista que a liberdade ou poder de escolha
conferido ao administrador público de apontar a melhor solução no
caso concreto, está subordinado ao dever de melhor atender à finalidade
pública. Logo, sendo o poder conferido meramente instrumental para
o alcance da finalidade pública, só se justifica se existe na medida
necessária.138
TOURINHO, Rita. A Principiologia Jurídica e o Controle Jurisdicional da Discricionariedade
Administrativa. In: GARCIA, Emerson (coord.). Discricionariedade Administrativa. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 131-132.
134
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22ª ed. São Paulo: Atlas,
2009. p. 81.
135
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed, rev., atual.. São
Paulo: Malheiros Editores. 2011. p.81.
136
PIMENTA OLIVEIRA, José Roberto. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade
no direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 158.
137
TOURINHO, Rita. A Principiologia Jurídica e o Controle Jurisdicional da Discricionariedade
Administrativa. In: GARCIA, Emerson (coord.). Discricionariedade Administrativa. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 134.
138
TOURINHO, Rita. A Principiologia Jurídica e o Controle Jurisdicional da Discricionariedade
133
296
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
Dessa forma, o princípio da proporcionalidade, diferenciando-se
do princípio da razoabilidade, é uma adequação específica do ato com a sua
finalidade exposta claramente para atendimento de interesses públicos.
Nesse ponto deve-se tecer algumas palavras acerca da finalidade de
um ato administrativo, definido como “o objetivo inerente à categoria do ato”139
por Celso Antônio Bandeira de Mello, ou seja, “cada ato tem a finalidade em
vista da qual a lei o concebeu”140, cujo melhor exemplo é “a finalidade do ato
que dissolve passeata tumultuosa é a proteção da ordem pública, da paz pública.
A finalidade do ato que interdita fábrica poluidora da atmosfera é a proteção da
salubridade pública”141.
Desta forma, percebe-se que a finalidade do ato administrativo e, por
analogia, a finalidade de toda ação administrativa, em especial, a discricionária,
deve perseguir um objetivo definido em lei, e aqui cabe a ressalva do termo lei
ser usado no sentido amplo, de ordenamento jurídico, haja vista que salubridade
pública, ordem pública e paz pública não estão definidos em nenhuma lei como
finalidades de um determinado ato administrativo, mas são finalidades justas e
inseridas na interpretação de todo o sistema jurídico nacional.
A finalidade de um ato administrativo é a chave para qualquer campo
de discricionariedade na administração pública, haja vista, que qualquer ato
feito pelo administrador em seu campo de liberdade deve ter como meta sempre
a finalidade, o objeto definido em seu início.
Assim, a finalidade é na verdade o elemento principal ao se falar em
discricionariedade, vez que ao fazer a opção ou mesmo no processo decisório
de opção pelo administrador, o que se ponderará serão as finalidades de cada
ato, o que eles busca em seu âmago.
Por isso a definição da razoabilidade (aqui usado incluindo o princípio
da proporcionalidade na razoabilidade) em um ato administrativo é de essencial
importância para a sua finalidade, pois ao se definir o objeto do ato deve-se ter
em mente também as outras circunstâncias para chegar-se até esse objeto, em
uma ponderação que dependerá basicamente do princípio da razoabilidade.
Tais princípios (proporcionalidade e razoabilidade) são importantes
para a discricionariedade pois possibilitam a melhor limitação acerca de um
objeto no momento de escolha por meio da razoabilidade, bem como só podem
Administrativa. In: GARCIA, Emerson (coord.). Discricionariedade Administrativa. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 135.
139
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed, rev., atual.. São
Paulo: Malheiros Editores. 2011. p. 405.
140
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed, rev., atual.. São
Paulo: Malheiros Editores. 2011. p. 405.
141
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed, rev., atual.. São
Paulo: Malheiros Editores. 2011. p. 405.
297
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
ser exercidos quando se faz uma comparação direta com a finalidade que se
busca com aquele ato em especial.
6 OBJETIVOS CONSTITUCIONAIS
Nossa Constituição da República142 deve ser elogiada pela sua
clareza e didática ao expor logo no início os seus fundamentos, seus deveres e,
especialmente, seus objetivos no art. 3º143.
Embora em alguns casos esses objetivos possam parecer utópicos ou
até mesmo demagógicos pela distância da realidade concreta, sua observância
deve ser sempre um norte para qualquer ato ou atuação do indivíduo, da
sociedade organizada ou não e, em especial, do Estado.
Ignorar ou desconsiderar tais objetivos, rotulando-os de utópicos, é
justamente o oposto de uma ação com respaldo constitucional, vez que de nada
adianta um ordenamento jurídico constitucional lógico e bem estruturado se
não houver uma finalidade para ele, assim, tais objetivos são finalidades de
todas as ações e atos ocorridos em todo o território nacional.
Novamente, em que pese muitas vezes leis e atos não deixarem claros
os seus objetivos constitucionais, todas elas tem (ou ao menos deveriam ter) esse
respaldo, sendo que nossa Constituição foi forjada sobre bases principiológicas
sólidas, “consagrando um formato típico de um Estado protetivo, responsável e
interventor, cuja interpretação precisa ultrapassar as barreiras de um positivismo
clássico”144.
Os objetivos constitucionais fundamentam alterações muitas vezes
contrária a lei fria, positivista e infraconstitucional em busca da tão sonhada
“sociedade livre, justa e solidária”145.
Nesse ponto, cabe citar como exemplo a introdução da função social à
licitação pública, conforme explicação de Daniel Ferreira sobre o tema
BRASIL. Constituição da República. 05 de outubro de 1988.
BRASIL. Constituição da República. 05 de outubro de 1988. Art. 3º: “Art. 3º Constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa
e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização
e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
144
GABARDO, Emerson. Interesse Público e Subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para
além do bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 195.
145
BRASIL. Constituição da República. 05 de outubro de 1988. Art. 3º: “Art. 3º Constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa
e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização
e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
142
143
298
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
[...] não parece difícil concluir no sentido de que o exercício de função
administrativa sempre exigiu, desde 1988, atenção dos gestores
públicos (responsáveis pelas licitações, inclusive) com vistas a (i)
“garantir o desenvolvimento nacional”, enquanto objetivo republicano
(de todos, portanto!), [...]”146.
Na mesma linha de raciocínio serve de exemplo a justificativa da
preferência de contratação de pequenas empresas em licitações públicas por
meio da função social da contratação administrativa147.
Ora, tais objetivos constitucionais fundamentam uma releitura da
função da própria ordem econômica, como exposto nas palavras de Amartya
Sen combinar o uso extensivo dos mercados com o desenvolvimento de
oportunidades sociais deve ser visto como parte de uma abordagem ainda mais
ampla que também enfatiza liberdades de outros tipos (direitos democráticos,
garantias de segurança, oportunidades de cooperação etc.)148
E complementa com o seguinte pensamento
O mecanismo de mercado obteve grande êxito em condições nas
quais as oportunidades por ele oferecidas puderam ser razoavelmente
compartilhadas. Para possibilitar isso, a provisão de educação
básica, a presença de assistência médica elementar, a disponibilidade
de recursos (como a terra) que podem ser cruciais para algumas
atividades econômicas (como a agricultura) pedem políticas públicas
apropriadas (envolvendo educação, serviços de saúde, reforma agrária
etc.). Mesmo quando é suprema a necessidade de uma “reforma
econômica” para dar mais espaço aos mercados, essas facilidades
desvinculadas do mercado requerem uma ação pública cuidadosa e
resoluta149
Os reflexos disso para a Ordem Econômica, prevista nos art. 170 a 191
da Constituição da República150, conjugada com os objetivos constitucionais de
FERREIRA, Daniel. Função social da licitação pública: o desenvolvimento nacional sustentável
(no e do Brasil, antes e depois da MP nº 495/2010). Fórum de Contratação e Gestão PúblicaFCGP. V. 9, n. 107, nov. 2010. Belo Horizonte; Fórum, 2010. p.59.
147
JUSTEN FILHO, Marçal. O estatuto da microempresa e as licitações públicas. São Paulo :
Dialética, 2007. p. 23.
148
SEN, Amrtya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
p. 152.
149
SEN, Amrtya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
p. 169.
150
BRASIL. Constituição. 1988.
146
299
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
“desenvolvimento nacional”151, é que esse capítulo econômico não pode e nem
deve ser lido separadamente do todo constitucional e do todo do ordenamento
jurídico nacional, deve ser analisado com olhos para os fundamentos e
objetivos constitucionais sempre e antes mesmo de observar a legislação
infraconstitucional sobre o tema.
Assim, pelo fato do desenvolvimento abranger mais do que apenas
questões econômicas, aproximando esse termo de outros de âmbito social
e cultural, a nossa Constituição utilizou termos muito acertados como
“desenvolvimento nacional ou regional”, inclusive como um dos objetivos
fundamentais da República, e de outro lado, considerado como um princípio ou
mesmo um direito fundamental152.
Nesse mesmo sentido Sílvio Luís Ferreira da Rocha afirma
O art. 170 deve ser lido de modo que o conjunto de relações econômicas
tenha por fundamento a valorização do trabalho humano (o que já serve para
impedir qualquer iniciativa de automatizar por completo as linhas de produção
ou proibir qualquer trabalho escravo) e a livre iniciativa, com o fim de assegurar
existência digna a todos, especialmente aos trabalhadores, conforme os ditames
da justiça social, que reclama a erradicação da pobreza, da marginalização, a
redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos
(CF, art. 3º, III e IV)153.
Partindo desse pressuposto, Gabardo define que os principais objetivos
do Estado de bem-estar, uma das facetas do Estado brasileiro, são a tolerância e
a solidariedade, que vão ao encontro de outro principio econômico democrático
contemporâneo, a redistribuição de riqueza154.
Enfim, é notória que os objetivos constitucionais são hodiernamente
aplicados em vários ramos do Direito, em especial aos que se ligam ao Direito
Público, as formas que o administrador deve se portar e efetivar o fim último da
Constituição expostos em seus objetivos.
BRASIL. Constituição. 1988. Art. 3º, inc. II.
GABARDO, Emerson. Interesse Público e Subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para
além do bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 244-245.
153
ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Breves considerações obre a intervenção do Estado no domínio
econômico e a distinção entre atividade econômica e serviço público. In: SAPARAPANI, Priscilia;
ADRI, Renata Porto (coord.). Intervenção do Estado no domínio econômico e no domínio
social: homenagem ao professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
p. 17.
154
GABARDO, Emerson. Interesse Público e Subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para
além do bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 182.
151
152
300
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
7 OBJETIVOS CONSTITUCIONAIS DA DISCRICIONARIEDADE
Percorrido todo esse caminho no presente trabalho, cabe agora fazer a
correlação da importância dos objetivos constitucionais com a discricionariedade
administrativa.
Preliminarmente, cabe lembrar que o administrador público ao buscar
uma finalidade ou um objetivo com um ato administrativo discricionário deve
buscar um “interesse público”.
Sobre o interesse público deve-se ter em mente a observação de
Daniel Ferreira, fundamentando-se nas lições de Marçal Justen Filho e Maria
Sylvia Di Pietro, que não existem um interesse público apenas, mas vários,
sendo demonstrado no caso concreto qual se sobreporá sobre o outro155.
Mesmo assim, em um caso concreto o termo interesse público pode
encontrar diversas justificativas e a verificação da melhor solução em uma
decisão discricionária se torna ainda mais árdua, tanto para o administrador
como para quem fiscaliza determinado ato.
Em que pese o interesse público muitas vezes coincidir com o
interesses coletivos, continuam sendo coisas diferentes, e a delimitação entre
eles cada vez fica mais nebulosa, a ponto de na Europa existir a diferença
entre o serviço materialmente público que atende aos fins comunitários do
formalmente público156.
Isso tudo pois é pouca a visualização dos objetivos claros e exatos
que devem ser perseguidos quando se está muito próximo de um objeto,
procura-se até mesmo justificativas em regulamentos, normas administrativas,
leis esparsas, mas não se olha para a própria Constituição da República para
encontrar esse norte.
Assim, a discricionariedade administrativa deve além de buscar a
melhor solução no caso concreto com base não apenas no quase infinito interesse
público, mas deve pautar-se com os objetivos constitucionais em suas finalidades.
É óbvio que essa observação não irá resolver o problema do
administrador público para lhe dar sempre a certeza de ter feito e melhor
opção ao caso concreto quando possui discricionariedade para isso, mas é
uma observação que certamente facilita essa opção e até mesmo oferece maior
segurança na decisão.
Também é muito claro que não se deve excluir a teoria acerca dos
interesses públicos na discricionariedade, mas utilizar a razoabilidade e
FERREIRA, Daniel. Função social da licitação pública: o desenvolvimento nacional sustentável
(no e do Brasil, antes e depois da MP nº 495/2010). Fórum de Contratação e Gestão PúblicaFCGP. V. 9, n. 107, nov. 2010. Belo Horizonte; Fórum, 2010. p. 50.
156
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000. p. 127-128.
155
301
COLETÂNEA 02 - SUSTENTABILIDADE SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL EM FAVOR DOS DIREITOS HUMANOS
proporcionalidade, para ponderar qual interesse público é mais importante na
consecução dos objetivos constitucionais.
Essa teorização vai ao encontro da ideia de muito doutrinadores que
modernamente defendem uma aproximação da Administração Pública como
um todo à população e seus anseios, em homenagem ao princípio democrático,
da participação democrática na própria administração do administrado.
Com a maior aproximação da população e do público em geral, faz-se
também a distinção entre a discricionariedade político-administrativa em que a
participação popular é recomendável, da discricionariedade técnica em que não
há tamanha necessidade, mas continua existindo, sendo que a gestão no primeiro
é a transferência de certas responsabilidades do Estado para a sociedade157.
A mudança da sociedade atual com a era da informática e possibilidades
cada dia mais palpáveis de comunicação e de participação da sociedade nas
decisões do Estado e da administração faz com que a Administração Pública
passe por certas transformações e deve ter como norte não só os princípios da
eficiência, legitimidade e capacidade de intervenção, mas também o princípio
da subsidiariedade para assegurar a racionalidade na alocação dos recursos e na
mais correta escolha pública158.
No mesmo sentido Emerson Gabardo defendendo que a democracia
é superior a qualquer procedimento formal de criação de leis, por ser sua
legitimadora, expõe que
A democracia (incluindo o “ativismo”, principio da subsidiariedade
ao indivíduo) só não é conciliável com o constitucionalismo a partir de uma
perspectiva positivista e exclusivamente deliberativa, em que se presume que
só será democrática a vontade das pessoas expressas plebiscitariamente.159
Ou seja, se a democracia pode legitimar atos contrários a leis
específicas por serem suas reais legitimadoras, é plenamente aceitável que
a participação popular e a democracia seja um elemento de formação da
decisão discricionária do administrador público em casos concretos, desde que
consonantes aos objetivos constitucionais.
Com a mudanças na sociedade, em especial com a informatização,
globalização e uma sociedade cada vez mais plural, é possível uma participação
maior dessa sociedade, bem como uma competição individual e coletiva, sendo
reguladas por instituições e/ou organizações políticas160.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000. p. 128-129.
158
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000. p. 140-142.
159
GABARDO, Emerson. Interesse Público e Subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para
além do bem e do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 181.
160
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro:
157
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Ora, toda essa preocupação da Administração Pública em ouvir a
população, possibilitar esse contato mais direto, nada mais é de uma forma de
atingir os objetivos constitucionais de forma mais efetiva, rápida e digna.
8 CONCLUSÃO
Verificou-se que a evolução estatal e social decorridos por anseios
da sociedade levaram ao atual estágio do Estado em que a Lei vista no sentido
estrito, como de iniciativa parlamentar, não é suficiente para acompanhar as
evoluções dessa sociedade, seja pela rapidez do desenvolvimento tecnológico,
seja pelo aumento de casos concretos ocorridos no cotidiano.
Dessa forma, o repasse de parte dessas decisões foram atribuídos ao
Poder Executivo, em especial, aos seus administradores, inclusive atos que
intervém diretamente na atividade econômica e social.
Ao ocorrer esse repasse, a discricionariedade do agente administrativo
é aumentado exponencialmente, e para isso se deve atentar aos princípios
constitucionais.
Mais que isso, a discricionariedade dos administradores sempre
necessita de uma finalidade que tenham não só um objeto concreto de interesse
público, mas que esteja de acordo com as finalidades constitucionais, ou seja,
com os objetivos constitucionais do art. 3º da Constituição da República.
Essa ideia a princípio pode parecer óbvia, contudo ao se cogitar a
ponderação de interesses públicos e utilizando-se os mais variados princípios
para essa ponderação como a razoabilidade, muitas vezes se esquece de cogitar e
dar a real importância para os atos estatais e discricionários que é o atingimento
dos interesses públicos, que concorrentemente é melhor explicitado pelos
objetivos constitucionais.
Assim, o termo “interesse público” que é tão combatido,
por englobar absolutamente tudo em uma sociedade cada vez mais
simbiótica, pode ser melhor especificado e facilitar a aplicação prática da
discricionariedade para o administrador público fazer a melhor solução, tão
importante para a atuação estatal.
Isso facilitaria inclusive a ponderação de “interesses públicos” no
momento da opção para o administrador, pois quanto mais claro os objetivos de
cada decisão do administrador, mais fácil e maior sucesso ele terá na ponderação
dos objetos.
Também existe uma facilidade para a definição de limites em um
certo caso concreto ou não, vez que ao saber de forma mais objetiva suas
metas, o administrador poderá exercer com maior desenvoltura a razoabilidade
ou não de uma ação.
Renovar, 2000. p. 120-121.
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Até mesmo é plausível cogitar o controle judicial de atos discricionários
com a justificativa de sua finalidade de acordo com os objetivos constitucionais,
ao invés apenas de justificá-los como de “interesse público” ou nem isso, apenas
informar o objeto direto do ato acreditando-se ser a finalidade daquela decisão.
Contudo, esse controle de discricionariedade com fundamento nos
objetivos constitucionais dependeriam de outro estudo.
Enfim, com o aumento da importância da discricionariedade no
âmbito administrativo e administrativo-legislativo (quando a Administração
possui a atribuição de editar normas), os objetivos constitucionais seriam uma
das formas de facilitar a melhor solução no caso concreto e até mesmo pautar
a razoabilidade.
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TÓPICOS CONCLUSIVOS
Da leitura dos artigos que compõem esta obra, podemos extrair, dentre
outas reflexões, os seguintes pontos:
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Todos têm a obrigação de ajudar no combate ao trabalho infantil,
sejam elas pessoas físicas ou jurídicas, Estado, organizações
não governamentais, enfim, a todos cabe o dever de zelar pela
integridade das crianças e jovens. O que não pode ser feito é
todos fecharem os olhos para uma realidade que está tão próxima
de todos e que levará a destruição do país. (KRASINCKI e
CAMPOS).
No Brasil, o tema da legislação sobre o crime virtual, ainda
provoca muitos debates de maneira que a produção legislativa
sobre o tema se desenvolve muito lentamente. A pequena
parcela de condutas ainda não tipificadas no Brasil, diz respeito
exatamente sobre a tutela de sistemas de informática, proteção de
dados e redes informáticas. (BERTONCELLO e KNOPFHOLZ).
Havendo dois benefícios, um promocional e um legal, primeiro
desconta-se o valor referente ao desconto promocional; feita a
dedução, o beneficio legal incidirá sobre esse resultado (“metade
da metade”) uma vez que o benefício legal leva em consideração
o valor efetivamente cobrado. (MIRA e LARA).
O que se quer, é que a responsabilidade do Poder Público atue em
prol da sociedade, visando à proteção, o melhor interesse desta, e
não uma redução da responsabilidade civil do agente econômico,
poluidor direto, do causador imediato do dano. (ZANATTO e
TAFURI).
A adoção da teoria objetiva para omissão nos casos de desastres
naturais não eleva o Estado a um patamar de segurador-universal,
isso porque o Poder Público para defender-se das acusações
impostas pode invocar as excludentes de responsabilidade,
comprovando que não houve descuido estatal, bem como pode
usar dos princípios como o da proporcionalidade e da reserva do
possível. (FONSECA e PAULA).
É através do orçamento público bem planejado que se dará todo
o desenvolvimento sócio-econômico da Nação, bem como a
efetivação do atendimento das demandas essenciais da população,
primando pelo princípio da dignidade da pessoa humana e pelo
alcance dos objetivos fundamentais da República Federativa
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do Brasil de construir uma sociedade livre, justa e solidária.
(OLIVEIRA e ANDRADE).
A atuação do Estado esteve sempre permeada pelas ausências nas
políticas culturais, prevalecendo sempre interesses econômicos
e políticos em detrimento da real valorização da cultura e dos
artistas. O incentivo fiscal instituído juntamente ao modelo de
Estado Neoliberal na década de 1990, bem como a instabilidade do
Ministério da Cultura, deturparam seriamente o desenvolvimento
e viabilidade da distribuição de recursos. (CARVALHO e
CÂMARA).
As teorias de revisão, rescisão e resolução contratual, sobretudo
para aquelas que antes de tudo motivam a revisão contratual, tal
como a cláusula rebus sic standibus, a onerosidade excessiva e a
Teoria da Imprevisão, estão sujeitas a uma constante necessidade
de confirmação por parte do poder judiciário. (UMEDA e
GUSSO).
Ainda que a RIO+20 tenha permitido o alcance de resultados
significativos, a caminho a ser trilhado é longo e complexo,
tratando-se de políticas permanentes, isto é, não provisórias,
visando garantir a manutenção, proteção e recuperação do meio
ambiente, de forma que seu impacto tenha reflexo nos mais
variados setores da sociedade, causando acima de tudo, um
incremento na qualidade de vida, sem, no entanto, causar uma
estagnação econômica. (PAPY e BACELLAR).
A soberania do princípio da função social, presente na
Constituição Federal encontra respaldo, antes que no próprio
texto constitucional, nas necessidades históricas da humanidade e
na evolução da justiça social. (AMADOR e BENITZ)
A responsabilidade civil, os grupos econômicos e a legislação pátria
encontram-se em plena evolução, uma vez que há adaptações na
aplicação da lei visando a máxima proteção garantida pela Magna
Carta, evitando, por consequência, a realização de operações
lesivas na esfera tributária, na área consumerista e na esfera
trabalhista. (PERINE e GIBRAN).
Não há amparo constitucional para a imposição de aposentadoria
compulsória a particular que, mesmo na condição de prestador
de serviço público no cumprimento de delegação administrativa,
encontra-se vinculado ao Regime Geral da Previdência Social.
(SÉLLOS-KNOERR e KNOERR).
A tutela penal da coletividade dos trabalhadores, como elemento
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da organização do trabalho, é medida que se perfaz necessária
frente ao novo contexto social pós-industrial, reflexivo e de riscos.
O papel das empresas ganhou não só destaque em uma escala de
progressão geométrica, como status de influenciadoras da política
e da economia mundiais. (CABRERA e GUARAGNI).
A discricionariedade dos administradores sempre necessita
de uma finalidade que tenham não só um objeto concreto de
interesse público, mas que esteja de acordo com as finalidades
constitucionais, ou seja, com os objetivos constitucionais do
art. 3º da Constituição da República. (TEIXEIRA NETO e
GUARAGNI).
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