A TUTELA COLETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS TRABALHADORES 1 2 JOÃO BATISTA MARTINS CÉSAR Mestre em Direito pela Unimep. Desembargador no TRT 15ª, em vaga destinada ao quinto constitucional (MPT). A TUTELA COLETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS TRABALHADORES 3 R EDITORA LTDA. Todos os direitos reservados Rua Jaguaribe, 571 CEP 01224-001 São Paulo, SP — Brasil Fone (11) 2167-1101 www.ltr.com.br Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: RLUX Projeto de capa: FÁBIO GIGLIO Impressão: COMETA GRÁFICA E EDITORA Maio, 2013 Versão impressa - LTr 4748.4 - ISBN 978-85-361-2546-6 Versão digital - LTr 7597.4 - ISBN 978-85-361-2641-8 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) César, João Batista Martins Tutela coletiva dos direitos fundamentais dos trabalhadores / João Batista Martins César. — São Paulo : LTr, 2013. Bibliografia 1. Direito do trabalho 2. Direito do trabalho — Brasil 3. Direito processual do trabalho 4. Direitos fundamentais 5. Interesses coletivos (Direito) 6. Interesses difusos (Direito) 7. Tutela jurisdicional I. Título. 13-03052 Índice para catálogo sistemático: CDU-342.7:331 1. Tutela coletiva dos direitos fundamentais dos trabalhadores : Direito do trabalho 342.7:331 1 O conhecimento humano não é uma obra singular, mas resultado do conhecimento coletivo da humanidade que é transmitido de gerações a gerações. Efetivamente, os pesquisadores sustentam seus trabalhos nos seus conhecimentos e no de outros que os antecederam. Portanto, o conhecimento transcende o aspecto individual e se fixa no âmbito coletivo. Não é à toa que existe o adágio popular a afirmar que “ninguém faz sucesso sozinho”, o que leva à conclusão de que os acertos devem ser creditados ao conhecimento humano acumulado e sua consequente evolução, enquanto eventuais falhas devem ser creditadas apenas a mim. Dessa forma, são inúmeros os agradecimentos e, com certeza, a mente nos trairá com o esquecimento de várias pessoas, pelo que desde já peço escusas. Assim, devo destacar que a concretização deste trabalho somente foi possível graças às bênçãos de Deus, bem como aos muitos colaboradores diretos ou indiretos, dos quais sou eterno devedor. Agradeço a todos e, em especial: À Professora Doutora Mirta Gladys Lerena Manzo de Misailidis, pela orientação precisa e dedicada, e mais do que isso, pela oportunidade do convívio e troca de informações, sem nunca esquecer o Direito e seu contexto na questão social; A todos que direta ou indiretamente colaboraram para a elaboração deste trabalho. Muito obrigado! 5 6 Aos meus pais, Heitor Martins César (in memoriam) e Maria Moreira César, por serem exemplos de vida e os meus melhores amigos, incentivando-me a continuar trilhando o caminho do saber e sacrificando-se para que meus irmãos eu e pudéssemos ter um futuro melhor por intermédio dos estudos, transmitindo-nos inúmeros valores positivos, os quais levarei até o fim dos meus dias; À minha esposa, Claudete de Castro Oliveira César, grande amor da minha vida, com quem sinto segurança, afeto, e com quem percebi nitidamente que a vida só vale a pena quando existe amor; Aos meus filhos, João Augusto e João Pedro, que vieram ao mundo para tornar a mim e a minha esposa pessoas mais completas e dispostas a tudo para que “os frutos do nosso amor” sejam felizes; Aos meus irmãos, Heitor, Odete, Maria José, Catarina e José Antonio, por terem me proporcionado todo o carinho e dedicação necessários à boa formação do indivíduo; Dedico este trabalho. 7 8 SOLILÓQUIO O pão do povo (Bertolt Brecht) A justiça é o pão do povo. Às vezes bastante, às vezes pouca. Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim. Quando o pão é pouco, há fome. Quando o pão é ruim, há descontentamento. Fora com a justiça ruim! Cozida sem amor, amassada sem saber! A justiça sem amor, cuja casca é cinzenta! A justiça de ontem, que chega tarde demais! Quando o pão é bom e bastante O resto da refeição pode ser perdoado. Não pode haver logo tudo em abundância. Alimentado do pão da justiça Pode ser feito o trabalho De que resulta a abundância. Como é necessário o pão diário É necessária a justiça diária. Sim, mesmo várias vezes ao dia. De manhã, à noite, no trabalho, no prazer. No trabalho que é prazer. Nos tempos duros e nos felizes O povo necessita de pão diário Da justiça, bastante e saudável. Sendo o pão da justiça tão importante Quem, amigos, deve prepará-lo? Quem prepara o outro pão? Assim como o outro pão Deve o pão da justiça Ser preparado pelo povo. Bastante, saudável, diário. 9 10 SUMÁRIO Introdução ........................................................................................................ 13 1. Direitos fundamentais dos trabalhadores .................................................. 17 1.1. Os direitos humanos fundamentais ......................................................... 17 1.2. Evolução dos direitos fundamentais ....................................................... 20 1.2.1. Direitos fundamentais de primeira dimensão ................................. 27 1.2.2. Direitos fundamentais de segunda dimensão ................................ 27 1.2.3. Direitos fundamentais de terceira dimensão ................................. 28 1.2.4. Direitos fundamentais de quarta dimensão ................................... 31 1.3. Os direitos fundamentais na Constituição Federal brasileira de 1988 ..... 34 1.4. A consagração dos direitos dos trabalhadores na Constituição Federal de 1988 ........................................................................................................ 36 1.5. Os direitos humanos e seus aspectos econômicos, sociais e culturais .... 40 1.6. Sobre a proibição do retrocesso social ................................................... 42 1.7. A globalização, a crise mundial e seus reflexos na efetivação dos direitos fundamentais dos trabalhadores ....................................................... 46 2. As modernas formas de soluções de conflitos e de acesso à justiça no Brasil e no mundo ....................................................................................... 58 2.1. Inquérito civil .......................................................................................... 60 2.1.1. Natureza jurídica ........................................................................... 63 2.1.2. Técnica para solução de conflitos coletivos ................................. 63 2.2. Termo de compromisso de ajustamento de conduta ............................... 63 2.3. Da audiência pública ............................................................................... 64 2.3.1. Previsão legal ............................................................................... 65 2.4. A ineficácia da defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores por meio da ação individual ........................................................................... 67 2.5. A morosidade na entrega da tutela jurisdicional ...................................... 69 2.6. Ação civil pública .................................................................................... 74 2.6.1. Objeto da ação civil pública .......................................................... 78 2.6.2. Interesses ..................................................................................... 79 2.6.2.1. Interesses sociais ............................................................ 81 2.6.2.2. Interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos .... 82 11 2.6.3. A ação civil pública e a ação civil coletiva .................................... 87 2.6.4. A legitimação ativa ....................................................................... 89 2.6.4.1. O Ministério Público ......................................................... 91 2.6.4.2. As associações ............................................................... 92 2.6.4.3. Os sindicatos ................................................................... 92 2.6.4.4. União, Estados, Municípios e entes paraestatais ............ 98 2.6.5. A legitimação passiva ................................................................... 99 2.6.6. A intervenção de terceiros na tutela coletiva ................................ 100 2.6.7. Competência e coisa julgada ........................................................ 102 2.6.7.1. Competência .................................................................... 102 2.6.7.2. Coisa julgada ................................................................... 109 2.6.8. Efeitos erga omnes da tutela coletiva ........................................... 110 2.7. A tutela coletiva no direito estrangeiro .................................................... 111 2.7.1. EUA — Estados Unidos da América ............................................. 112 2.7.2. Portugal ........................................................................................ 117 2.7.3. Alemanha ...................................................................................... 117 2.7.4. Venezuela ..................................................................................... 118 2.7.5. Conclusões ................................................................................... 118 2.8. Da aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição nas demandas coletivas ........................................................................................................ 119 3. As transformações das relações de trabalho por meio da tutela coletiva: análise de casos paradigmáticos ............................................................... 123 3.1. Cooperativas de mão de obra ................................................................. 123 3.2. Falsa parceria agrícola ........................................................................... 127 3.3. Medicina e Segurança do Trabalho — Indústria Cerâmica ...................... 129 3.3.1. Primeira ação civil pública da PRT da 15ª Região ........................ 129 3.3.2. Medicina e Segurança do Trabalho — Indústria Cerâmica na região de Santa Gertrudes ............................................................... 130 3.4. Jornada aleatória ..................................................................................... 132 3.5. Dispensas em massa ............................................................................. 135 3.6. Combate à exploração do trabalho de crianças e adolescentes .............. 137 3.7. Aliciamento de Trabalhadores ................................................................. 142 3.8. Conclusões sobre a utilidade da tutela coletiva ...................................... 144 Considerações finais ....................................................................................... 147 Referências bibliográficas .............................................................................. 151 12 INTRODUÇÃO Para introduzir o leitor ao contexto desta pesquisa, convém destacar primeiramente que se pretende demonstrar a importância da tutela coletiva para a efetivação dos direitos fundamentais dos trabalhadores, o que pode contribuir para a pacificação social e para o descongestionamento do Poder Judiciário, atualmente sobrecarregado com demandas individuais. A tutela coletiva é tema que sofre considerável abordagem na área acadêmica, especialmente no âmbito do processo civil, mas sua utilização na área trabalhista merece estudos mais aprofundados para a consolidação do instituto nesse ramo do Direito e, também, na condição de instrumento de defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores, os quais, na maioria dos casos, não têm condições financeiras para se defender adequadamente das injustiças que vêm sofrendo no decorrer da história. Destaque-se que o estudo será levado a efeito de forma empírica, não se descartando a análise das principais obras doutrinárias e da jurisprudência sobre o assunto, promovendo-se o necessário contraponto para o desenvolvimento da matéria. Os dados estatísticos demonstram que a globalização e as políticas econômicas dela decorrentes incidiram numa grande concentração de renda nas mãos de uma minoria privilegiada e na consequente exclusão de uma legião de pessoas que trabalham sem as mínimas condições de dignidade e, portanto, sem a observância dos direitos sociais, culturais e econômicos previstos no “Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, no qual se apregoa que o ideal do ser humano livre, em sua plenitude, só se tornará realidade quando todos os homens puderem gozar de tais direitos, bem como dos civis e políticos. Por seu turno, o Protocolo Adicional da OEA — Organização dos Estados Americanos — à “Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” — também conhecida como “Protocolo de San Salvador” — vaticinou que os direitos essenciais do homem não derivam do fato de ele possuir determinada nacionalidade, mas dos atributos da pessoa humana, razão pela qual merece proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar à disciplinada pelos Estados. O mesmo protocolo foi taxativo ao afirmar que os direitos econômicos, sociais e culturais, ao lado dos direitos civis e políticos, constituem um todo 13 indissolúvel, que configura a base da dignidade da pessoa humana, exigindo, assim, sua proteção permanente por parte das nações, que devem adotar medidas para assegurar o direito ao trabalho — pleno emprego —, a garantia no emprego de condições salubres e seguras, a jornada de horas razoável e a remuneração digna para atender às necessidades básicas. Assim, inicialmente, será promovida uma abordagem dos direitos fundamentais, tendo-se como objeto de estudo sua evolução — primeira, segunda, terceira e quarta dimensões — e prosseguindo-se com a análise dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Também será verificada a consagração desses direitos fundamentais na Constituição Federal brasileira de 1988, bem como os direitos humanos e seus aspectos econômicos, sociais e culturais, que formam um todo indissolúvel e interdependente. Na sequência será abordado o fenômeno da globalização, bem como a crise mundial de 2008 e seus reflexos na efetivação dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Posteriormente, serão analisadas as modernas formas de solução de conflitos, incluindo-se aqui a tutela coletiva, a audiência pública, o termo de compromisso de ajustamento de conduta, o inquérito civil e a ação coletiva. Não obstante, será tratada a necessidade de uma profunda alteração na mentalidade dos operadores do Direito, que não podem encarar a ação para defesa de interesses metaindividuais da mesma forma com que trabalhada uma demanda individual. De forma sucinta e no método do direito comparado, será levado a efeito um contraponto com a tutela coletiva em outros países e o pioneirismo do Common Law na utilização do instrumento, bem como a Rule 23, que disciplina a matéria nos EUA — Estados Unidos da América. Ainda no método será possível verificar uma breve abordagem da tutela coletiva, especialmente a ação de amparo, criação de juristas mexicanos para que as normas garantidoras dos direitos fundamentais passassem do plano programático para a concretude. Tal pioneirismo foi disseminado entre países latinos, com exceção do Brasil, que adotou a nomenclatura ação civil pública. Nos países europeus, onde os órgãos administrativos exercem poder de polícia — como na Alemanha, por exemplo —, inclusive com tribunais administrativos, a tutela coletiva não apresenta relevância significativa, diferentemente do que ocorre em países com a estrutura de fiscalização sucateada pelos imperativos da globalização e das exigências do FMI — Fundo Monetário Internacional. Nestes últimos, onde o exercício do poder de polícia é relegado a segundo plano, a tutela coletiva reveste-se de maior importância, pois faz às vezes do papel fiscalizador e repressor do Estado, o qual deveria ser o primeiro a dar efetivo combate às lesões de massa. 14 Dando sequência ao trabalho, será demonstrada a ineficácia da ação individual para a defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores, o que incidiu no congestionamento de processos na Justiça do Trabalho, apesar de ser este o ramo do Judiciário brasileiro com a taxa mais célere da resolução dos conflitos. O efetivo uso da tutela coletiva pode ajudar a descongestionar o Poder Judiciário, dando concretude ao princípio da duração razoável do processo, previsto no art. 5º, inciso LXXVIII, da Lei Maior. Em seguida, será levado a efeito um passeio sobre a questão que envolve a ação civil pública: sua origem, evolução e consequente previsão constitucional — art. 129 —, os interesses por ela defendidos — difusos, coletivos e individuais homogêneos —, bem como sua diferença em comparação com a ação civil coletiva. A pesquisa ainda abordará a legitimidade ativa para a defesa dos interesses metaidividuais e a tendência moderna de se ampliar os legitimados ativos. Por fim, será verificada a competência e a coisa julgada nas ações de defesa dos interesses metaindividuais, que ainda sofrem restrições inadequadas no Judiciário Trabalhista, conforme previsto na Orientação Jurisprudencial n. 130 do TST — Tribunal Superior do Trabalho —, sendo premente a necessidade de seu cancelamento — ou revisão —, já que está em posição divergente da jurisprudência do STF — Supremo Tribunal Federal — e do STJ — Superior Tribunal de Justiça. Enfim, de forma geral, esta pesquisa pretende contribuir para a consolidação da tutela coletiva como instrumento de pacificação social, com a efetiva observância dos direitos fundamentais dos trabalhadores. 15 16 1. DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS TRABALHADORES Em que pese o título deste capítulo, certo é que não se pode promover um mergulho epistemológico no tocante aos direitos fundamentais dos trabalhadores sem antes promover uma breve abordagem acerca dos direitos fundamentais, tópico este que poderá ser averiguado a seguir. 1.1. Os direitos humanos fundamentais As expressões direitos humanos e direitos fundamentais costumam ser usadas como sinônimos(1), mas estudiosos do tema costumam distingui-las, sendo que os direitos fundamentais seriam aqueles reconhecidos e positivados no âmbito do direito constitucional de cada país.(2) Por sua vez, no tocante aos direitos, tem-se aqueles positivados na esfera do direito internacional, desvinculados do caráter regional que incide naqueles primeiros.(3) Some-se a isso que os direitos humanos teriam uma espécie de moral jurídica universal e, sob essa ótica, contornos mais amplos e imprecisos. Seria o direito à vida, à liberdade, à igualdade, entre outros.(4) Noutra borda, os direitos fundamentais, ao contrário, possuem contornos mais precisos e restritos; representam um conjunto de direitos e liberdades (1) A expressão “direitos do homem” tem conotação jus naturalista e está ligada à fase histórica do início dos direitos fundamentais. (2) BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 561: este autor confirma essa assertiva ao apregoar que “podem ser designados por direitos fundamentais todos os direitos ou garantias nomeados e especificados no instrumento constitucional.” (3) SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 29: na visão deste autor, “o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).” (4) BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 30: para este autor, os direitos humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares — quando cada Constituição incorpora Declarações de Direito — para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais. 17 institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo texto constitucional de cada país. Portanto, são delimitados no tempo e no espaço, servindo de fundamento para o Estado de Direito.(5) Destaque-se que os direitos humanos devem ser entendidos como um conjunto de faculdades e de instituições que, em um dado momento histórico, dão concretude à dignidade, à liberdade e à igualdade, devendo tal conjugado ser reconhecido positivamente pelos ordenamentos jurídicos nacional e internacional.(6) Os direitos fundamentais, por sua vez, devem ser entendidos como os direitos humanos garantidos pelo ordenamento positivo, na maioria dos casos nas Constituições. A corrente doutrinária ora consultada separa os direitos humanos dos direitos fundamentais, asseverando que os primeiros seriam os previstos nas convenções internacionais e os segundos seriam os positivados no ordenamento jurídico de cada Estado. Os direitos fundamentais estão intimamente ligados à Constituição e ao Estado de Direito; sem estes, não há como se falar naqueles. Não é por outra razão que o art. 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, apregoava que “toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não possui Constituição.” Ingo Wolfgang Sarlet apregoa que “os direitos fundamentais integram, portanto, ao lado da definição da forma de Estado, do sistema de governo e da organização do poder, a essência do Estado constitucional.” Nesse sentido, constituem “não apenas parte da Constituição formal, mas também elemento nuclear da Constituição material.”(7) Assim, os direitos fundamentais, a Constituição e o Estado de Direito configuram o tripé fundamental para se atingir o Estado ideal, tarefa permanente de todos os que buscam uma sociedade mais justa e igualitária. (5) Cf. BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 38. Cf., ainda, VIGNEAU, Cristophe. [s.t.]. III Curso Avanzado en Derecho del Trabajo. (Seminário). Sevilha: Universidade de Sevilha, 31 ago. 2010: no evento em questão, este expositor afirmou que os direitos fundamentais são uma categoria aberta; não fechada. Representam, numa concepção axiológica, os valores mais importantes de uma sociedade, não havendo necessidade de previsão normativa, visto que existem independentemente dela. A concepção formalista positiva — Kelsen: teoria pura do Direito — prega que os direitos fundamentais devem estar no topo da pirâmide legal (constituição); caso não previstos, não existiriam. Cf., também no mesmo sentido, TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 503-504. (6) LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Los derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 1998. p. 46-47: segundo este autor, “los derechos humanos suelen venir entendidos como un conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humanas, las cuales, deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional. En tanto que con la noción de los derechos fundamentales se tiende a aludir a aquellos derechos humanos garantizados por el ordenamiento jurídico positivo, en la mayor parte de los casos em su normativa constitucional, y que suelen gozar de una tutela reforzada.” (7) SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 69-70. 18 As Constituições modernas preveem uma atuação juridicamente programada e controlada pelos órgãos estatais para dar eficácia material aos direitos fundamentais, os quais podem ser considerados conditio sine qua non do Estado Constitucional Democrático de Direito.(8) Some-se a isso que existe um estreito nexo — genético e funcional — de interdependência entre o Estado de Direito e os direitos fundamentais, na medida em que aquele primeiro deve garantir os segundos, os quais dependem do Estado de Direito para a sua efetiva realização.(9) Além de sua função originária como instrumento de defesa da liberdade individual, os direitos fundamentais passaram a ser considerados como integrantes de um sistema axiológico que atua como fundamento material de todo o ordenamento jurídico.(10) A Constituição Federal brasileira de 1988, especificamente em seu Título I — arts. 1º ao 4º —, garante os direitos fundamentais ao dar ênfase à dignidade da pessoa humana, aos valores sociais do trabalho, à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e à promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras forma de discriminação. Prossegue da mesma forma com o rol de direitos constantes nos arts. 5º a 7º, ou seja, os direitos e garantias fundamentais, os deveres e direitos individuais e coletivos e os direitos dos trabalhadores. Ainda no âmbito desta Norma Maior, merece destaque o § 3º do art. 5º, ao preceituar que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados em dois turnos, em cada casa do Congresso Nacional, e por três quintos dos votos dos respectivos membros serão equivalentes às emendas constitucionais. Na visão de Ingo Wolfgang Sarlet: No âmbito de um Estado social de Direito — e o consagrado pela nossa evolução constitucional não foge à regra — os direitos fundamentais sociais constituem exigência inarredável do exercício efetivo das liberdades e garantia da igualdade de chances (oportunidades), inerentes à noção de uma democracia e um Estado de Direito de conteúdo não meramente formal, mas, sim, guiado pelo valor da justiça material.(11) É a junção dos elementos Estado de Direito, Constituição e direitos fundamentais que leva ao autêntico Estado Democrático e Social de Direito, ou seja, uma democracia material que respeita a dignidade humana e não a (8) SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 70. (9) LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Op. cit., p.19. (10) SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 72. (11) Ibidem, p. 73-74. 19 deixa subjugada ao poder econômico. Aliás, esse deve ser o ideal do ser humano que pretende um mundo melhor para todos e não apenas para os poucos detentores dos meios de produção numa sociedade capitalista. Assim, o Estado Democrático de Direito deve reconhecer um patamar mínimo civilizatório de direitos, os quais serão a estrutura dessa sociedade. Esses são os direitos fundamentais que são reconhecidos nas Constituições de cada Estado, os quais devem ser garantidos e efetivados por estes, implementando-se a democracia substancial e construindo-se uma sociedade livre, justa e solidária. Fica aparentemente claro que ao não agir dessa forma o Estado provoca a ruptura da harmonia social e a fratura de sua ordem constitucional. O respeito à dignidade do trabalhador é indispensável para a convivência em sociedade, já que a carestia leva inevitavelmente ao conflito. A história mostra que o equilíbrio social é comprometido quando o poder econômico impera e não são garantidos os direitos fundamentais dos trabalhadores. Por fim, deve-se ressaltar que os direitos dos trabalhadores, amplamente resguardados pelo art. 7º da Constituição Federal, normalmente são indisponíveis, conforme previsto nos arts. 9º, 444 e 468 da CLT — Consolidação das Leis do Trabalho. 1.2. Evolução dos direitos fundamentais Nos ordenamentos constitucionais dos países ocidentais, os direitos fundamentais passaram por uma expressiva evolução, da sua origem até os dias atuais. A Magna Carta inglesa de 1215 foi a primeira a reconhecer os direitos fundamentais de liberdade de religião, do devido processo legal e da instituição do julgamento popular para os crimes contra a vida, limitando-se tais direitos aos homens livres, excluindo os escravos. Na Inglaterra de 1628, por meio da Petition of Rights — documento elaborado pelo parlamento inglês —, pleiteou-se o efetivo cumprimento pelo rei dos direitos previsto na Magna Carta de 1215, ou seja, foi ratificada a importância dos direitos fundamentais. Ainda naquele país, o Bill of Rights (1689) — declaração dos direitos formada após a Revolução Gloriosa — rompeu com as bases políticas da época — monarquia onipotente —, consolidando a monarquia constitucional e consagrando a supremacia do parlamento.(12) (12) COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 59. 20