FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
FLAVIANNY TIEMI OTOMURA
SUICÍDIO – A DECISÃO PELA MORTE
CUIABÁ-MT
2009
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
SUICÍDIO – A DECISÃO PELA MORTE
FLAVIANNY TIEMI OTOMURA
Monografia de conclusão de
curso
de
graduação
em
bacharelado e licenciatura
em Filosofia
Prof. Dr. Silas Borges Monteiro
Orientador
CUIABÁ-MT
2009
Resumo: O presente trabalho trata do suicídio, na perspectiva de situar a
morte voluntária como uma decisão individual de morrer. Para isso
tensiona com a medicina, a psiquiatria e a sociologia. Essas áreas do
conhecimento adotam noções e explicações para o suicídio enquanto
patologia e fenômeno social. Construiu-se, historicamente, uma
indisposição social para o suicídio e uma recusa em aceitar a morte
voluntária como uma decisão livre do arbítrio humano. O trabalho situa
o suicídio como uma questão filosófica, moral, de avaliação de uma
conduta. É uma tentativa de retirar a interdição social ao ato, que
condena os suicidas à doença, à anormalidade, ao silêncio ou à
literatura. Os seres humanos se matam, eis uma constatação. O
homem que deseja morrer prepara sua própria morte e o faz
deliberadamente.
Palavras – chave: suicídio – morte – loucura – doença
Sumário
1. Introdução_____________________________________________4
2. Medicalização da morte voluntária __________________________9
3. A loucura associada ao suicídio___________________________14
4. O suicídio como problema moral___________________________23
5. A filosofia trágica e a decisão pela morte____________________28
6. Referências bibliográficas________________________________35
4
I – Introdução
Ao decidir estudar o suicídio, elaborei algumas perguntas que, a meu
ver, iam desvendar o tema e me levariam à compreensão e também a
superar um mal-estar pessoal que me acompanhava quando me deparava
com a notícia de um suicídio, seja por noticiários ou conversas nos círculos
de amizade. O suicídio me causava uma espécie de silêncio na alma, um
sentimento de vazio, a ausência de resposta a pergunta primeira que é: por
qual motivo alguém se determina a tirar a própria vida pelas próprias mãos?
Meu intuito primeiro era responder a essa questão – era, pois no decorrer da
pesquisa percebi que procurar um motivo, uma causa única, seria
estabelecer uma pretensa verdade e não efetivamente compreender o que é
o suicídio. O ato de morrer voluntariamente denuncia algumas coisas,
responde a algumas questões, nos colocam outras, mas o motivo, a causa é
enterrada com quem pratica o ato.
Na tentativa de responder a essa questão, fui pesquisar as respostas
nas áreas de saúde, sociologia, história e filosofia. Ensaiei respostas, mas
quando me convenci da impossibilidade, abandonei este questionamento ao
perceber que não faz sentido perguntar os motivos, afinal as respostas são
muitas e são de acordo com verdades estabelecidas, sejam elas
pressupostos morais, divinos ou sociais.
Assim comecei a elaborar outras, que foram surgindo diante a partir
das leituras. O tratamento dado ao suicídio é quase sempre como um
problema a ser resolvido, como um ato que não deveria acontecer, mas que,
quando acontece, tem algo de errado, de anormal. A pergunta do motivo, da
causa, é um sintoma desse pressuposto moral, que constrói uma aversão
natural ao ato ao indagarmos sobre. A partir disso, as perguntas que tentei
responder nesse trabalho foram: como se construiu essa aversão ao
suicídio, que nos leva ao silêncio? Que discurso, qual prática, estão postos,
velados, encobertos, quando nos deparamos com a morte voluntária?
Ao esboçar respostas, fui primeiramente definir o que é o suicídio –
suicídio é o ato de dar a morte a si mesmo, de matar-se por vontade própria
(morte voluntária), é o aniquilamento do próprio corpo. A noção de corpo é
importante, em primeiro lugar, porque exclui a possibilidade do suicídio
5
como uma morte metafórica em que a pessoa escolhe por “vegetar”, onde a
morte é metafórica, onde a morte não é do organismo, mas da “alma”. Em
segundo, porque é no corpo que se inscreveu a história de um tipo de
humano denominado suicida, é através do corpo que vai se construir um
saber, um discurso sobre, é efetivamente no corpo que se objetiva a morte.
Ao iniciar a pesquisa bibliográfica sobre o tema, averigüei a
ocorrência de inúmeros trabalhos na área de saúde (medicina, psiquiatria,
psicologia), que é a área que detém o conhecimento do corpo do homem e
suas relações com o ambiente. E no caso da sociologia que trata do corpo
social, do conjunto dos corpos individualizados. Nesses textos está posta a
perspectiva de cura e de doença, de harmonia e desequilíbrio, ou de
normalidade e anormalidade.
Nesses textos é recorrente a abordagem fortemente moralizada, que
é construída a partir da noção de doença, da anormalidade e tem o interdito
“é proibido matar-se” como um pressuposto – enunciado que tem suas
raízes na doutrina cristã, que condena o ato, pois a vida do homem não lhe
pertence, é doada por Deus, portanto não é admissível aniquilar algo que
não é seu. Será um condenado eterno, pois rejeitou em vida o seu corpo.
Mas é nas ciências humanas (médica e social) que a noção do suicídio
como uma doença vai se estabelecer, juntamente com o estabelecimento da
loucura como doença. O suicídio passa a ser doença da alma, doença do
corpo, doença da mente, doença social.
Para fazer o contraponto, utilizei como base os olhares do Foucault
sobre a medicina, a psiquiatria, a invenção da doença e da loucura,
construindo a partir disso uma trajetória para tentar demonstrar como os
discursos sobre o suicídio são bem marcados no tempo.
Como já dito a noção de corpo é importante na construção desse
trabalho, pois o suicídio, como já apontei, é uma ação humana, que se
efetua com o aniquilamento do corpo por voluntariedade. Não é, portanto,
um “suicídio filosófico” ou mesmo idealizado, mas efetivo. Efetividade que se
dá com a morte do corpo vivo. Foucault nos traz uma noção do que é o
corpo:
O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos
6
(enquanto que a linguagem os marca e as idéias os
dissolvem), lugar de dissociação do eu (que supõe a
quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua
pulverização. A genealogia, como análise da proveniência,
está, portanto no ponto de articulação do corpo com a
história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de
história e a história arruinando o corpo. (FOUCAULT, 2003,
p. 22)
É no corpo que estão inscritos os acontecimentos passados, e é
nesse corpo que estão contidos todos os conflitos e experiências do
presente. É na manipulação desse corpo, através dos cuidados com o corpo
vivo e morto, seus rituais de preparação para a morte, através das práticas
funerárias e também das práticas ligadas ao corpo do suicida que vamos
descobrindo com se construiu esse saber, essa experiência que culminou
numa indisposição cultural.
Há uma indisposição cultural para o suicídio e uma tirania da
sociedade, que obriga à vida. A indisposição cultural é conseqüência da
construção do suicídio como doença. A tirania se encontra no discurso da
manutenção da vida, na obrigatoriedade de viver bem e feliz, ainda que não
se queira, ainda que se tenham esgotado todas as possibilidades. Para
subsidiar essa indisposição e essa tirania social, temos o primado da razão,
que coloca o suicídio como uma des-razão, como uma anormalidade.
Essa indisposição na Idade Média se faz notar pela condenação e
punição do cadáver, da família e da alma.
O sétimo círculo do inferno
dantesco nos ilustra essa condenação eterna e Minois lista as condenações
ao corpo do cadáver que vai de suplício, enforcamento, arrastar o corpo em
público, queimá-lo ou esquartejá-lo, ou seja, o suicídio passa a ser
criminalizado e o corpo e família dos suicidas sofrem as sanções a partir do
século II, mas é na Idade Média que a penalização do cadáver e da família
se consolida.
É no final do século XVIII, juntamente com a medicalização da
loucura e, por conseqüência, do suicídio, que este deixa de ser punido no
7
corpo. Outro tipo de interdição está posta, que é a da des-razão, da
imoralidade racional do ato. É nesse contexto das Luzes que surgem os
bilhetes suicidas, justificando, desculpando-se, explicando a ação, marcando
a eliminação do diabo. Deles, Minois diz:
As notas de suicídio acabam com a secularização da morte
voluntária
dado
inscrevendo-o
que
numa
eliminam
tentativa
o
papel
racional,
do
diabo,
humanamente
explicável. O público acostuma-se a ler essas cartas, a
tomar conhecimento do suicídio como um fato normal, um
caso “diferente”, e não já como um ato criminoso. Mas por
ser uma afirmação do individualismo e da liberdade, ou
mesmo uma forma de acção sobre a sociedade, o bilhete a
explicar o suicídio é característico do espírito das Luzes.
(MINOIS, 1998, p. 357)
Entre a punição e a descriminalização do ato, está a questão da
responsabilização ou não do ato, o que coloca o suicídio como uma
possibilidade de ação de humano, o homem e sua liberdade de decidir sobre
a sua própria vida. Sempre houve quem formulasse a questão, como aponta
Minois (1998, p. 111), mas foi Shakespeare na peça Hamlet quem nos
trouxe a pergunta decisiva: “Ser ou não ser? – eis a questão”. Ao elaborar
essa pergunta, situa o suicídio no campo da decisão individual, da liberdade
humana, e muitos filósofos e literatos, em épocas distintas, enumeraram
razões que levam a uma ou outra resposta.
Nesse texto, faço uma tentativa de situar o suicídio como uma
questão moral, portanto filosófica, e individual, privada, onde se decide,
voluntariamente, por morrer, como aponta Camus em O Mito de Sísifo.
Circunscrevendo como questão moral, aquela que diz respeito à conduta, à
ação e está suscetível de avaliação.
Essa decisão por morrer, que trata da conduta da própria vida,
Foucault chama de governo de si e problematiza na governabilidade.
Governo de si para Foucault é o “governo de si mesmo, que diz respeito a
8
moral”. (FOUCAULT, 2000, p. 280)
Não pretendo avaliar o ato, condenar ou incitar, nem ao menos
responder se “a vida vale a pena”. Como maior desafio, pretendo com esse
texto retirar dos suicidas uma condenação que lhes é imputada, com
interditos velados. A principal afirmação é que aquele que se mata, decide
por morrer. Essa decisão por morrer, traz à tona a pergunta trágica, exposta
por Anaximandro, Shakespeare, Nietzsche, Camus: o que dá valor a
existência, se tudo que existe irá perecer? Qual é o sentido da vida?
9
II – A medicalização1 da morte voluntária
A Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou no ano de 2000
um documento destinado à prevenção do suicídio. Baseado no texto da
OMS, no ano de 2006, o Ministério da Saúde lançou um manual e distribuiu
aos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) por todo país. O conteúdo do
manual aborda o ato como um problema de saúde pública. De acordo com o
documento, o aumento do número de suicídios ocorridos nos últimos anos
alerta para a necessidade de desenvolver ações que visem diminuir o
número de mortes voluntárias.
Embora este documento admita que seja um problema complexo que
envolve fatores biológicos, genéticos, psicológicos, culturais, sociais e
ambientais, traz como enfoque privilegiado a abordagem dos transtornos
mentais, pois, são eles, uns dos mais “[...] importantes fatores de risco para
o suicídio [...]”. (BERTOLE, 2004, p. 193-4).
Ainda que não seja classificado como transtorno mental, as possíveis
causas apontadas – psicose, esquizofrenia, melancolia e depressão – estão
classificadas como transtornos mentais e exigem a intervenção, o
tratamento. Foi essa compreensão que apontou para a necessidade de uma
política de prevenção e situou a morte voluntária, atualmente, como um
problema de saúde pública.
Os profissionais da área de saúde2 dividem a conduta suicida em
várias categorias: suicídio consumado, tentativa de suicídio, ideação suicida,
ameaça de suicídio, gesto suicida (desprovido da intenção de morte),
equivalente suicida (conduta auto-destrutiva), suicídio crônico (alcoolismo e
drogadição) e propensão suicida (exposição a situações de risco).
(COUTINHO, 2001)
Os estudos e pesquisas realizadas na área da saúde têm, em geral,
1
Medicalização é a apreensão de todos os fenômenos da vida/saúde pelo olhar, saber, po-
der dos médicos. Fonte: Drª Laura Filomena dos Santos Araújo (explicação oral).
2
Utilizo o termo para abranger, para além da medicina, os campos de saber relacionados,
como a psiquiatria, psicologia, serviço social e enfermagem.
10
o intuito de prevenir o ato, acompanhar a família e tratar os “possíveis”
suicidas. São estudos diversos que descrevem o ato, no caso do suicídio
consumado, registrando sua forma: enforcamento, ingestão de venenos e
remédios, arma de fogo, local, mensagens deixadas, sexo, idade,
composição familiar e condição econômica.
No caso das tentativas e ideações, os estudos vão apontar a atitude
das pessoas diante da vida, como vivem e o que as levou a tentarem se
matar, possibilitando a prevenção e a reintegração, a convivência familiar e
social. É desta forma que se elaboram estatísticas que permitirão a
construção de uma “personalidade suicida” e do “comportamento suicida”,
bem como de uma etiologia, construindo “saberes” sobre o suicida.
É a partir da análise desses dados que se afirma que: homens se
matam mais do que mulheres, mas que entre elas as tentativas são mais
freqüentes; a faixa etária mais atingida varia entre 15 e 35 anos; as pessoas
que vivem sozinhas estão mais vulneráveis ao ato; o desemprego aparece
como fator associado (GRÜNSPUN, 1991).
O comportamento suicida é um indicador de possível consumação
do ato. Segundo o manual da OMS, a pessoa que deseja se matar expressa
e comunica essa vontade para os outros de algumas formas, é preciso
identificar e acompanhar os grupos de risco.
Os indicadores desses grupos são: estresse, desemprego, perda de
alguém próximo, irritabilidade, ansiedade, pânico, sentimentos de culpa,
solidão, desesperança, vontade de morrer, mudança de hábito alimentar e
idéia fixa de morte. É a partir desses fatores intrínsecos e extrínsecos que se
criam indicadores de risco suicida, através do qual é possível chegar a um
modelo de prevenção ao ato.
A psiquiatria biológica relaciona o comportamento suicida com a
alteração no sistema serotoninérgico3; neste caso, a causa é orgânica, e vai
influenciar nos estados psíquicos dos indivíduos (CORREA, 2004).
Contudo, na maioria das explicações há uma associação de diversas
3
A serotonina é uma substância química que atua na transmissão de impulsos de
terminação nervosa.
11
áreas para se compreender o suposto problema. Para Cassorla, é fuga de
uma situação insuportável onde a morte é a solução. Porém, o indivíduo não
quer morrer e, sim, fugir do sofrimento, seja para buscar uma outra vida
(sobrenatural), ou para se vingar de “inimigos reais ou fantasiados”
visualizando o sofrimento do outro, ou, ainda, para se punir por sentimentos
de culpa (CASSORLA, 1991).
A melancolia, psicose, luto, depressão e narcisismo aparecem como
possíveis causas. Ou seja, nem todo suicida é melancólico ou psicótico, mas
uma das conseqüências da melancolia e da psicose é o suicídio.
Knobel, afirma que o “[...] ato suicida é uma manifestação de psicose
clínica [...]” (KNOBEL, 1991, p. 19), agressão violenta que leva à autoaniquilação. Ele classifica como suicídio melancólico aquele que quer se
redimir de culpa; de psicopático quando quem se mata quer que os demais
se sintam culpados; de maníaco aqueles que se matam para a imortalidade,
para uma outra vida; e de esquizofrênico aqueles que o fazem sem motivos
aparentes, inesperadamente. Para ele, o suicídio é conseqüência de uma
“[...] conduta que invade patologicamente nossas estruturas psicosociais [...]”
(KNOBEL, 1991, p. 20), ou seja, é uma resposta aos conflitos psíquicos
(internos) e sociais (externos), que se consuma na aniquilação do
organismo, sendo, por isso, patológico.
O suicídio aparece associado para a área médica à anormalidade, a
estados de frustração, fuga da realidade e auto-agressão, ou seja,
relacionado a doença4. O que a área de saúde pretende é trazer esse
indivíduo que tenta se matar de volta à realidade, ao estado de normalidade.
Para aqueles que consumaram o ato, a terapêutica também está voltada
para a família que se fragmenta e se desestabiliza.
A medicina e a psiquiatria afirmam o suicídio como doença psíquica
ou patológica, como um problema que exige solução. Seguem, afirmando,
indiretamente, o ato como um “mal” que se evidencia nas formas como o
problema é apreendido, como os saberes são construídos e as práticas em
4
Utilizo o termo doença no sentido comum da palavra, conforme estabelece o
dicionário:“denominação genérica de qualquer desvio do estado normal”.
12
saúde são engendradas, assim como nos modos que suicidas e famílias são
abordados e tratados.
Desta forma, deseja-se prevenir, curar, tratar, extinguir o suicídio. No
discurso da prevenção, tratamento e cura, está velada uma proibição. Há um
interdito: é proibido matar-se!
Essa proibição é acompanhada pelo argumento de que tirar a própria
vida está contra a natureza humana. A conseqüência imediata desse
argumento é que contraria uma lei da natureza5. Há um saber, neste caso
médico, que estabelece um parâmetro para afirmar o que é normal ou
anormal e assim elaborar um retorno à normalidade, ao natural.
Ainda que durante a modernidade se tenha estabelecido que há uma
moralidade na natureza humana, fundamentada na razão, há uma
impossibilidade de afirmar ou refutar que existe uma lei natural que impede
o homem de morrer voluntariamente. Ainda que se analise esse argumento
pela perspectiva biológica, nascer e morrer são fenômenos da vida.
O humano planeja o nascimento de outro ser da própria espécie,
pois é capaz de cultura. Assim, planejar a morte deveria ser também
examinado como uma possibilidade do humano, mas há um mal-estar que
acompanha essa decisão.
Portanto, é um imperativo moral que subsidia todo o discurso da
prevenção, tratamento e cura. Há desaprovação do ato. Imperativo que se
constrói como um saber validado pela ciência médica que produz verdades
validadas pela sua própria produção.
A morte voluntária se apresenta como uma doença vergonhosa,
como um desvio da normalidade que carrega um sentimento de humilhação
e desonra. E é como doença vergonhosa que o suicídio chega até os dias
de hoje. A medicina ocidental foi quem muito contribuiu para que isso
ocorresse.
Os sentimentos de vergonha, humilhação e desonra se objetivam na
indisposição cultural que há para o suicídio. Esta indisposição é mediada e
produzida em discursos mais ou menos velados, nos silêncios que
5
Uma regra que define as relações constantes que existem entre os fenômenos naturais
13
condenam, nas práticas cotidianas médicas e de enfermagem, nos
atendimentos aos suicidas nas emergências dos hospitais e nas violências
implícitas e explícitas que se expressam nestes atendimentos, nos textos
médicos, jurídicos e nos demais locais nos quais o suicídio possa ser
problematizado (MINOIS, 1998).
Lopes questiona como a medicina transformou todos os que se
mataram em doentes mentais. E aponta que existe um caminho até a
medicina se apropriar do suicídio enquanto objeto de estudo e tratamento e
transformar este em doença (LOPES, 2003).
É através da loucura que as ciências médicas começam a produzir
um saber sobre o suicida, conforme nos indica Foucault. As associações
entre loucura e suicídio surgem no final da Idade Média, mas a loucura deve
ser entendida de forma diversa à dada pela medicina a partir do século
XVIII. Pois esta, na Idade Média poderia ser vista “[...] como religiosa, moral
ou médica, divina ou diabólica, boa ou má [...]” (POTTER, 1987, p. 21).
A loucura é entendida como um combate espiritual entre o bem e o
mal que causa desajuste e incapacidade de obediência às normas sociais
vigentes. Se a loucura é entendida como doença da mente, é por que é na
mente que se objetiva o combate espiritual.
14
III – A loucura associada ao suicídio
Segundo Minois, a morte voluntária teve uma maior tolerância na
antigüidade, no período clássico na Grécia e em Roma, mas em nenhum
momento passou despercebido. Maior tolerância não quer dizer ser
favorável, mas o tratamento dado era distinto. Segundo ele, várias escolas
filosóficas possuíam uma posição particular, “desde a oposição categórica
dos pitagóricos à aprovação benevolente dos epicuristas e dos estóicos”
(MINOIS, 1998, p. 60). Platão e Aristóteles também eram contrários ao
suicídio, como está em Fédon e na Ética, respectivamente.
Na antigüidade, o tratamento dado ao suicídio era como uma
questão filosófica de decisão individual. Se existiam aqueles que
condenavam, existiam aqueles que defendiam, estava no campo da
liberdade:
[...] o pensamento grego colocou a questão fundamental do
suicídio filosófico. Os cirenaicos, os cínicos, os epicuristas e
os estóicos reconhecem todos o valor supremo do indivíduo,
cuja liberdade reside no poder de decidir por si próprio da
sua vida e sua morte. [...] (MINOIS, 1998, p. 61)
À exceção de alguns rituais isolados gregos arcaicos para
purificação da alma através da mutilação do corpo suicida, não há qualquer
interdição legal ou religiosa na Grécia e Roma antiga ao corpo ou ao ato
suicida para os cidadãos livres. Em dois casos, por motivos econômicos e
patrióticos, é proibido se matar: aos escravos – pois é um crime contra a
propriedade privada, pois o corpo do escravo não pertence a ele e sim ao
seu senhor – e aos soldados – por estar em defesa da pátria, numa função
nobre. Nesses dois casos, segundo Minois, aparecem registros de punição
ao cadáver. (MINOIS, 1998, p. 66)
É a partir do século II d.C., com o declínio do estoicismo e para que
as pessoas que se matam não fujam de sua condenação – seja de ordem
fiscal, civil ou criminal –, que a morte voluntária passa a ser criminalizada, ou
15
seja, passa a ser uma transgressão à ordem social vigente e, portanto,
passa a ser punido aquele que transgredir:
[...] as autoridades civis, [...], desejando pôr termo às
evasões fiscais dos suspeitos que se matam antes da
própria acusação, reforçam o controle do estado sobre o
livre direito de morrer. Os suicídios no exército são
reprimidos mais severamente e uma lei da época de António
considera o suicídio dos suspeitos como uma declaração de
culpa que desencadeia a confiscação dos bens. A partir do
século III, o suicídio sem uma razão válida pode ser motivo
de sanções e aquele que casar com a viúva de suicida será
punido por infâmia. (MINOIS, 1998, p. 74)
Contudo é com a ascensão do cristianismo na Idade média que as
medidas punitivas se intensificam e começam a ser imputadas penas
severas. Há um julgamento do caso, são acionados dispositivos jurídicos,
médicos e religiosos para se identificar às causas e estabelecer a punição. É
a constituição moral da legalidade.
As punições são sancionadas ao corpo do defunto, a confiscação
dos bens e a condenação da alma. Minois descreve alguns tipos de
punições imputadas ao cadáver:
Adapta ao tipo de suicídio cometido: uma ponta de madeira
é enfiada no crânio se a morte ocorreu com um punhal; é
enfiado na areia a uns cinco pés da borda de água se
morreu por afogamento; é enterrado num monte com três
grandes pedras sobre a cabeça, o ventre e os pés se a
morte foi provocada por queda [...] depois de arrastado pela
lama, o cadáver é pendurado e deixado a apodrecer, e
quase sempre o corpo é colocado na posição inversa,
arrastado e pendurado de cabeça para baixo. (MINOIS,
1998, p. 49)
16
A confiscação dos bens poderia ser sobre móveis e imóveis, ou parte
dos bens ou ainda “pratica-se o costume de ‘recuperar’, que consiste em
abrir e desmantelar as paredes da frente da casa do suicida, queimar os
prados, cortar as vinhas e as árvores à altura de um homem”. (MINOIS,
1998, p. 50)
Para a alma e corpo suicida não se fornece sepultura, ou ritos
funerários cristão, não há perdão para o suicida. O suicídio é um ato
diabólico que consome a alma fraca do homem no momento de desespero,
onde o indivíduo se afasta da misericórdia divina e fica suscetível à ação do
demônio. A Divina Comédia, de Dante, retrata a condenação eterna do
suicida:
91. [...] quando homem violento, dominado pelo furor,
voluntariamente apaga sua vida, é atirado por Minos ao
sétimo círculo. Cai, ao acaso, no meio da floresta, qual
semente germina e se faz árvore, cuja fronde serve de
pasto às Harpias, as quais provocando a dor, a esta abrem
a janela que são nossos gritos. No dia do juízo final, como
os demais iremos procurar nossos corpos sem que deles
possamos jamais revestir-nos, pois não é justo recuperar o
que em vida se rejeitou. Serão arrastados para aqui e
permanecerão pendentes dos galhos da árvore na qual a
alma está reclusa. (ALIGHIERI, p. 64).
Não há possibilidade de salvação. É considerado um dos mais
horrendos atos, a rejeição da própria vida. Por isso, a punição é inevitável.
Entretanto, alguns suicidas – cadáveres e alma – conseguiam escapar à
punição, como os do clérigo e dos nobres, e para que isso ocorresse era
necessário provar que o indivíduo não se matou para fugir das suas
responsabilidades, mas por puro desgosto à vida, ou seja, por que não
desejava mais viver.
Quando a “causa” identificada é o desgosto à vida, a explicação
17
utilizada é a loucura – do modo como é entendido na Idade Média –, pois é
inconcebível afirmar que a vida não vale a pena ser vivida; a vida é um dom
e negá-la é uma loucura, pois uma alma sadia jamais dará a morte a si
mesma.
Segundo Minois, é por volta de 1265 que Brunetto Latini utiliza a
explicação da “loucura” como doença orgânica para alguns casos, onde o
suicídio passa a ser conseqüência do estado melancólico em que o
indivíduo se encontra. O suicídio poderia ser conseqüência da melancolia,
que é a condição de ter bile negra, um humor negro (MINOIS, 1998).
O suicídio associado à loucura é uma das muitas discussões acerca
da morte voluntária, que a partir do final do século XIV vai ser
problematizada pela filosofia, literatura, artes. O retorno aos clássicos da
Antigüidade (Renascimento) vai enfraquecendo os valores cristãos. Os
questionamentos em torno do ato abordam a decisão individual, a validade
da existência, a obrigatoriedade em viver os sofrimentos humanos (Minois,
1998).
Quando a Loucura toma a palavra, na obra de Erasmo de Roterdam
em “Elogio da Loucura”, denuncia a miséria da vida humana e diz que é ela
quem permite o amor à vida, pois só a loucura pode fazer com que os
homens desejem uma vida miserável. Deixa a mensagem de que a morte
voluntária é um ato de sanidade, de sabedoria:
[...] já sei que logo compreendereis de como o mundo
duraria pouco, se a sabedoria fosse comum entre os
mortais. Sou mesmo da opinião de que, em breve, haveria
necessidade de uma nova argila e um novo Prometeu
(ROTERDAM, 1969, p. 12).
Nunca, segundo Minois, se falou tanto sobre a morte voluntária. Isso
não implica em uma maior tolerância ao suicídio, pois se por um lado o
debate ocorreu, por outro, é neste ambiente que a loucura juntamente com a
morte voluntária vai se tornar objeto das ciências e se construir enquanto
18
uma doença, uma patologia (MINOIS, 1998).
Foucault narra, na História da Loucura, como foi sendo construído
um saber sobre a loucura e como a psiquiatria se constituiu enquanto
ciência. Se em determinado momento a (des)razão circulava pela
sociedade, ela foi gradativamente banida, isolada, internada, juntamente
com os vagabundos, libertinos e outros, e transformou-se em doença no
final do século XVIII. Doença a ser curada. Trata-se o louco no corpo físico
para retornar a mente à normalidade, à conduta moral (FOUCAULT, 1995).
É quando o suicida deixa de ter o corpo dominado por Satã e passa
a ser visto como um doente. Está no domínio da (des)razão, e aqueles que
tentaram e não conseguiram se matar são enjaulados e amarrados. O
suicida não é só uma vergonha, mas um doente. (FOUCAULT, 1995).
Esse é o argumento que vai ser utilizado para dar indulgência ao
cadáver no século XVIII e internar os propensos suicidas para tratamento.
Não se mata mais o suicida frustrado. Não se suplicia mais o corpo do
defunto, não se confiscam os bens da família. Não é o argumento divino que
impede o suicídio, é a própria racionalidade. O divino torna-se insuficiente,
mas a razão ordena o que é normal ou anormal, o que está no campo da
razão ou da desrazão.
A razão foi invocada durante o século das Luzes como um despertar
das crenças e superstições que povoavam o mundo, mas no submundo
desse esclarecimento nasceram as prisões dos corpos e das almas dos
homens.
Na Idade Média o homem não tinha domínio de si, sua alma não lhe
pertencia. Seu corpo, sua vida, foram doados por um ser bondoso e, pela
sua incapacidade de realizar o bem por si mesmo – pois sua natureza não
permite, o homem é decaído –, suas ações eram determinadas por dever e
obediência às leis do soberano do céu e da terra. O Deus.
A razão desperta os humanos desse mundo celestial e estes passam
a questionar essa força sobrenatural que os guia. O homem começa a se
emancipar. Ela, a razão, permite a investigação sobre a natureza humana,
sobre a ação moral. A verdade não está mais no ser externo ao humano, na
19
força sobrenatural, mas na própria razão, que conduzirá o homem à
emancipação. Substitui-se Deus pela razão. A busca pela verdade e
universalidade continua presente em todas as práticas desse humanismo
esclarecido.
É a ordenação racional, segundo Lopes, que irá transformar a
loucura em doença mental, em objeto de conhecimento, em patologia e
principal causa do suicídio. É a divisão entre loucura e razão que permitiu
que surgisse uma nova questão acerca do suicídio, a “[...] responsabilidade
ou não sobre o ato. Com essa questão e dúvida, tornaram-se necessários
novos olhares e constantes diagnósticos [...]” (LOPES, 2003).
Para precisar a responsabilidade ou não do ato, esta cientificidade
estava no saber médico, que aos poucos vai circunscrevendo o suicídio
como objeto de estudo da medicina social do século XIX.
Nesse momento, as ciências médicas começam a produzir um saber
sobre os indivíduos e a psiquiatria se institui enquanto ciência. Nas práticas
de isolamento, internação, terapias, registros, relatórios, vai se construindo
“o suicida”. Os relatórios jurídicos e médicos fornecem informações de quem
foi, como aconteceu e o que pensa esse indivíduo, para produzir as normas
de conduta suicida, situações de risco, ou seja, a produção de verdade
acerca do suicídio.
Essas verdades são afirmadas ou negadas apenas por aqueles que
detêm o saber científico, que detêm as informações. Este saber impôs o
silêncio para o suicídio, para bani-lo dos nossos olhos, assim como a morte
foi banida do cotidiano da vida. Fenômeno que é preciso isolar, dar um lugar
longe da vida cotidiana, para que a produção e a utilidade dos corpos e
mentes não sejam afetadas. A isso Foucault chama de biopoder
(FOUCAULT, 2003).
A área de saúde herda suas técnicas e procedimentos desse
momento e constrói, a partir desses registros, um conhecimento sobre o
suicídio. Esconde atrás do discurso científico uma proibição moral
fortemente marcada pela moral cristã. Inverte Deus pela razão e mantém-se
a verdade. A validade dessas “verdades” se justifica por seus registros, por
suas técnicas. O suicídio caminha da proibição religiosa para a proibição
20
“científica” ou racional. O tratamento deixa de ser espiritual para se tornar
corpóreo, físico.
A medicina e a psiquiatria não só vão produzir registros e saberes
sobre o suicídio, como vão normalizar comportamentos que são suicidas. Ao
traçar perfil dos suicidas – como se comportam, o que dizem, como se
movimentam – criam-se normas de comportamento e se produzem tipos6 de
suicida. A partir disso, se estabelece quem são as pessoas que estão em
um grupo de risco, com tendências suicidas.
Nesse processo se determina quando e como se deve morrer. Com
esse saber, a medicina aciona o poder de vida e morte sobre corpos dos
indivíduos, que anteriormente, na Idade Média, era o soberano7 quem
detinha.
Para Foucault são as técnicas disciplinares da Idade Clássica que
vai permitir a construção desse saber pela medicina. Essas técnicas
disciplinares vão produzir regulamentos. Esses dispositivos aliados a outra
tecnologia que é o biopoder, vão produzir as normas, a sociedade
normalizada (FOUCAULT, 2003).
O biopoder vai complementar as técnicas disciplinares, pois o foco
de sua atuação, não será mais o corpo do indivíduo, como nas disciplinas,
mas a população, o conjunto social, a vida da espécie humana, o homem
enquanto espécie. Se num determinado momento se produziu saber sobre
indivíduos, sobre corpos individuais, com o biopoder – que atua na massa
de indivíduos, na coletividade, na espécie humana, na vida desses
indivíduos enquanto uma população – se produzem saberes, como as
estatísticas, os índices de desenvolvimento social, taxa de natalidade etc. É
o poder de “fazer viver e deixar morrer” (FOUCAULT, 2003).
O biopoder quer preservar a vida em última instância e, ao fazer isso,
6
Identificação de características atribuídas a indivíduos que podem ser considerados
suicidas.
7
Soberano rei, poder político da terra proveniente do soberano Deus, poder divino do céu.
Foucault diz que o soberano detinha o poder de “causar a morte ou deixar viver”, e esse
“direito” foi substituído por um poder de “causar a vida e devolver a morte” (FOUCAULT,
2003, p. 131)
21
cria, aliadas às normas disciplinares, as normas de regulamentação, a
sociedade de normalização que tomou posse da vida. A medicina é um
desses mecanismos de “[...] saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre
o corpo da população, sobre o organismo e sobre os processos biológicos e
que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e regulamentadores [...]”
(FOUCAULT, 2003).
É esse poder que gere a vida, que vai estabelecer como se vive,
como se deve morrer e em que momento. O discurso sobre o valor da vida,
sua manutenção e prolongamento, o discurso do “como viver bem” é
suscitado em todas as esferas públicas e sociais, e a morte está cada vez
mais escondida e ausente dos espaços públicos, dos discursos, das
instituições. Não é sobre a morte que o poder atua como diz Foucault, mas
sobre a mortalidade:
[...] a grande ritualização pública da morte desapareceu, ou
em todo caso foi-se apagando, progressivamente, desde o
fim do século XVIII até agora. A tal ponto que, agora a
morte – deixando de ser uma daquelas cerimônias
brilhantes da qual participavam os indivíduos, a família, o
grupo, quase a sociedade inteira – tornou-se, ao contrário,
aquilo que se esconde; ela se tornou a coisa mais privada e
vergonhosa [...] agora a morte vai ser, ao contrário, o
momento que o indivíduo escapa a qualquer poder, volta e
se ensimesma, de certo modo, em sua parte mais privada.
O poder já não conhece a morte. No sentido estrito, o poder
deixa a morte de lado. (FOUCAULT, 2002, p. 295-6)
O suicídio torna-se algo repugnante para esse poder que quer fazer
viver, pois este escapa ao controle social e coloca a morte sob o domínio do
próprio homem.
Agora é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenrolar
que o poder estabelece seus pontos de fixação; a morte é o
secreto da existência, o mais “privado”. Não se deve
surpreender que o suicídio – outrora crime, pois era um
22
modo de usurpar o direito de morte que somente os
soberanos, o daqui debaixo ou do além, tinham o direito de
exercer – tenha-se tornado no decorrer do século XIX, uma
das primeiras condutas que entraram no campo da análise
sociológica; ele fazia aparecer, nas fronteiras e nos
interstícios do poder exercido sobre a vida, o direito
individual e privado de morrer. Essa obstinação em
morrer, tão estranha e, contudo tão regular, tão
constante em suas manifestações, portanto tampouco
explicável
pelas
particularidades
ou
acidentes
individuais, foi uma das primeiras surpresas de uma
sociedade em que o poder político acabava de assumir a
tarefa de gerir a vida. (FOUCAULT, 2003, p. 131)8
8
O grifo é meu.
23
IV – Suicídio enquanto problema moral
Foucault nos remete ao tratado sociológico de Durkheim, intitulado
de “O Suicídio. Estudo Sociológico”. Essa obra tem por objetivo pesquisar o
suicídio enquanto fenômeno social. O que pretende é determinar a natureza
das causas sociais do suicídio, seus efeitos e sua relação com os estados
individuais dos fenômenos suicidas, demonstrando como esse ato se
relaciona com outros fatores sociais e buscando meios para a intervenção
sobre o ato.
A sociedade torna-se objeto, onde são aplicados os procedimentos
das ciências naturais. O suicídio é um fato a ser analisado no conjunto social
e não no indivíduo, são as estatísticas e gráficos que classificam a data, o
local, o sexo e as possíveis causas e a partir disso identificam as “leis” que
existem no fenômeno em questão.
A observação, registros, análises, as técnicas e dispositivos que
construíram o homem enquanto objeto, irão constituir a sociedade enquanto
objeto. A partir disso é possível estabelecer uma taxa de suicídio, que irá
permitir o controle social da mortalidade. Isso implica – na nossa sociedade
– em políticas públicas, em normas de conduta, em campanhas para
prevenção do ato.
Para Durkheim, toda sociedade humana, povo, força coletiva, tem
uma predisposição para o suicídio, porque o que determina o suicídio é a
condição moral, os valores da sociedade.
Para o autor, existem três tipos de causas sociais para o suicídio,
que estão relacionados com os valores morais da sociedade. O suicídio
egoísta – quando o homem não encontra mais laços sociais que o mantêm
inserido no tecido social; suicídio altruísta – que é por dever, porque é
honroso para o indivíduo perante a sociedade, pois há um reconhecimento
do todo pelo ato em determinadas circunstâncias; e o suicídio anômico –
que se dá pelas rápidas transformações sociais, onde as normas sociais, as
crenças, estão em mudanças e em conflito com o estabelecido ou o novo a
se estabelecer (DURKHEIM, 1973).
24
Independentemente das causas sociais do ato, o suicídio é sempre
um ato imoral, pois, para Durkheim, o homem constitui a sociedade ao
mesmo tempo em que esta lhe determina, determinando também seus
valores. Ao se matar o indivíduo destrói a si mesmo, lesa a sociedade, nega
o humano e o ideal de humanidade.
A morte voluntária é posta como um problema moral. A moralidade
é entendida como conduta humana disciplinada por normas que
prescrevem e regulam a vida das sociedades em conformidade com os
costumes e hábitos. Tem por objetivo último a vida coletiva.
O homem que se mata desestrutura a sociedade. Desestrutura
aquilo que faz a sociedade permanecer e faz com que a vida coletiva possa
ser possível: o contrato. Ao se matar o indivíduo rompe com as prescrições
sociais, mas não pode ser punido pelo ato, ele escapa.
Parece–me que a indisposição cultural para o suicídio surge desta
ausência de possibilidade de punir aquele que não cumpre as regras,
trazendo uma insegurança para todos os vivos em relação à possibilidade
de se viver em sociedade, porque a punição às transgressões de uma “lei
moral” é a única segurança que temos de uma vida comum.
A afirmação sobre a imoralidade do suicídio se consolida nos
argumentos de que transgride a um dever9 ou para com um Deus – a
vida é doada por um Deus e não pertence ao homem decidir sua morte, mas
ao deus criador – ou para com a sociedade – contraria uma lei social,
destrói o ideal de humanidade e põe em risco o contrato social e a
manutenção da sociedade – ou ainda para conosco – contraria a uma lei
da natureza humana, a qual todos nós estamos submetidos, pois somos
inclinados à vida e não à morte.
O dever é sempre uma obrigação que temos que cumprir. Conservar
a própria vida é um dever, ou seja, temos que viver em conformidade com
uma obrigação moral, que pode ser entendida como uma obrigação social,
ou seja, de cumprimento das regras impostas pela coletividade, ou pela
própria razão.
9
Um dever é uma obrigação a um preceito moral ou legal que o homem se submete.
25
Kant foi um desses grandes expoentes do século das Luzes que
afirmou a imoralidade do suicídio fundamentada nas leis da razão.
O autor ilustra a diferença entre uma ação por dever e uma ação por
inclinação imediata, que pode ou não estar em conformidade com o dever.
Conservar a própria vida é uma ação para a qual temos inclinação imediata,
ou seja, somos movidos a essa ação sem mediação da razão. Uma ação
realizada por inclinação, embora possa estar em conformidade com o dever,
não tem valor moral, já que não é uma regra da razão que a determina. Para
que uma ação seja por dever, a máxima que determina a ação deve ser uma
lei prática da razão. “Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei”
(KANT, 1989, p. 114).
Assim, podemos dizer que uma ação é por dever quando ela
obedece incondicionalmente a uma lei da razão – lei enquanto regras
universais, princípios determinados pela razão, essas leis são a priori e
constroem o princípio objetivo do querer, as leis práticas – há uma
subordinação da vontade a essa lei, sem que haja outros motivos que a
determinem. Kant Ilustra essa diferença dizendo
[...] quando as contrariedades e o desgosto sem esperança
roubaram totalmente o gosto de viver, quando o infeliz com
fortaleza de alma, mais enfadado do que desalentado ou
abatido deseja a morte e conserva, contudo a vida, sem
amor, não por inclinação, mas por dever, então sua máxima
tem conteúdo moral [...] (KANT, 1989, p.113).
A lei prática é o princípio objetivo do querer. Ela não pode expressar
nada de particular, pois deve ser válido para todos os seres racionais.
Expressa-se com forma, como uma fórmula. Essa lei deve determinar o
princípio subjetivo do querer, a máxima da ação. A máxima de uma ação se
expressa da seguinte forma: “devo proceder sempre de maneira que eu
possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal”
(KANT, 1989, p. 115).
26
Para ser lei universal, o princípio deve ser objetivo, pois deve valer
para todos os seres racionais; esse princípio objetivo se expressa pelo
imperativo categórico com a seguinte forma: “age apenas segundo uma
máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei
universal” (KANT, 1989, p.129).
Para saber se sua ação está em conformidade com a lei moral,
segundo a lei máxima, deve-se universalizar a máxima da ação retirando
dessa qualquer condição que a justifique como um fim externo a ela mesma.
Kant exemplifica da seguinte maneira:
Uma pessoa, por uma serie de desgraças, chegou ao
desespero e sente tédio da vida, mas está ainda bastante
em posse da razão para poder perguntar a si mesma se não
será talvez contrário ao dever para consigo mesma atentar
contra a própria vida. E procura agora saber se a máxima da
sua ação se poderia tornar em lei universal da natureza. A
sua máxima, porém é a seguinte: por amor de mim mesmo,
admito como princípio que, se a vida, prolongando-se, me
ameaça mais com desgraças do que me promete alegrias,
devo encurtá-la. Mas pergunta-se agora se esse princípio do
amor de si mesmo se pode tornar lei universal da natureza.
Vê-se então em breve que uma natureza, cuja lei fosse
destruir a vida em virtude do mesmo sentimento cujo objetivo
fosse a sua conservação, se contradiria a si mesma e,
portanto, não existiria na natureza. Por conseguinte, aquela
máxima não poderia de forma alguma dar-se como lei
universal da natureza, e, portanto é absolutamente contrária
ao princípio supremo de todo o dever (KANT, 1989, p. 130).
Expressar-se através desse imperativo prático, de que a minha
máxima é legisladora universal e deve legislar sobre mim e sobre toda a
humanidade. Minhas ações devem ter sempre como princípio que tanto eu
quanto toda humanidade não podemos ser usados arbitrariamente por uma
vontade.
27
Para Kant, uma ação moral é aquela que é prescrita pela razão, sem
inclinações naturais, pois as inclinações humanas naturais são patológicas.
O que está posto pelo autor é a imoralidade do suicídio, pois contraria uma
lei da razão, e a razão é quem deve determinar o querer.
O homem kantiano tem uma razão e um corpo, onde a razão deve
determinar as ações desse corpo. Aqui se percebe a manutenção do
argumento de que o homem é decaído, seu corpo sofre das paixões do
instinto e, portanto, algo pode salvá-lo: ou Deus – como querem os cristãos
– ou a razão – como querem os modernos.
O suicídio foi construído enquanto uma doença moral, pois
transgride a um dever, contraria leis sociais e essa construção, enquanto
doença moral, desencadeia o processo de “naturalização” da cultura.
Naturalizar é transformar aquilo que é cultural, produzido pelo homem, em
algo que se realiza sem a intervenção do humano. No caso do suicídio,
significa “patologizar” o ato, como se esse ato não dependesse da vontade
humana, como se fosse causado por uma deficiência biológica do próprio
organismo, da própria vida.
28
V – A filosofia trágica e a decisão pela morte
Os filósofos trágicos, como Nietzsche quer, tinham um estilo de vida
filosófico. Ter um estilo de vida filosófico é ser marcado por uma tonalidade,
uma nota que ressoa no filósofo, procedente do som forte e estridente que
há no mundo. “O filósofo busca fazer ressoar em si mesmo o clangor total do
mundo e tirá-lo de si para expor em conceitos” (NIETZSCHE, 1995, p. 31)
Os filósofos trágicos buscaram expressar pela palavra (logos) a
origem (gene) daquilo que brota da terra (physis). O que os sábios queriam
era ouvir o logos da physis, a palavra que vem da natureza.
De alguma maneira podemos entender que logos, em princípio, é
“colher” e tornar-se: o resultado da ação que é expresso pelo verbo, a
palavra. “‘Expor em conceitos’ é professar de maneira fecunda, aquilo que
foi colhido e saboreado, [...] uma faculdade penetrante de saborear e
conhecer as coisas, uma aptidão notável de discernimento, constitui, então,
segundo a consciência do povo, a arte genuína do filósofo.” (NIETZSCHE,
1995, p. 30)
Para Nietzsche, Anaximandro foi um desses filósofos trágicos, que
viveu como escreveu: “[...] falava de maneira tão solene como se vestia,
levantava a mão e pousava o pé como se esta vida fosse uma tragédia, na
qual tivesse sido predestinado a fazer o papel de herói [...]” (NIETZSCHE,
1995, p. 36).
Anaximandro identificou o movimento constante que há no mundo,
ao afirmar:
[...] de onde as coisas tiram a sua origem, aí devem também
seu perecer, segundo necessidade, pois elas têm que
expiar e ser julgadas pelas suas injustiças, de acordo com a
ordem do tempo [...] agora com Anaximandro todo devir
como uma emancipação criminosa do ser eterno, como uma
iniqüidade que tem de ser expiada com a ruína. Tudo o que
uma vez entrou no devir torna a perecer, quer pensemos na
29
vida humana, quer na água, ou no calor e no frio [...]
(NIETZSCHE, 1995, p. 33-34)
E foi o primeiro a expor o mais profundo problema moral. Não
tratando o
[...] problema da origem do mundo como um problema
puramente físico [...], se ele se apercebeu, na pluralidade
das coisas vindas à existência, de uma soma de injustiças a
expiar, foi o primeiro entre os gregos a captar como ousadia
o
núcleo
do
mais
profundo
problema
moral
[...]
(NIETZSCHE, 1995, p. 35)
e perguntar:
Como algo que tem direito à existência pode perecer? De
onde vem esse incessante devir e parturir, de onde procede
essa contracção dolorosa no rosto da natureza, essa
lamentação fúnebre infindável que ressoa através de todas
as esferas da existência? [...] qual o valor da vossa
existência? E se nada vale porque existis? (NIETZSCHE,
1995, p. 35).
Aqui está exposta a pergunta trágica da existência humana. Trágico
é aquilo contra qual não é possível vencer, o terrível, o fúnebre, o destino. E
aquilo que não é possível vencer é justamente o vir-a-ser constante a que
tudo está submetido. É a fatalidade, o destino, que é fiado, enrolado e
cortado pelas Moiras. O inevitável da vida, a morte.
O absurdo movimento, de vir a ser e perecer a que toda a existência
está submetida e para o homem que tem a consciência desse movimento
que ele não pode fixar – e para conhecer é preciso fixar – é aterrorizante.
Tudo se torna fugaz e momentâneo, mas ao mesmo tempo, belo, porque é
através do reconhecimento dessa tragédia da vida que o homem se afirma
30
enquanto um homem que deve ultrapassá-la, encarar seu destino e afirmar
a sua existência como um herói que deve enfrentar, ainda que saiba que irá
perder.
De outro modo Camus faz a mesma pergunta e traz o suicídio
enquanto um problema filosófico, uma questão moral. Uma questão moral é
aquela que diz respeito à conduta, à ação e está suscetível de avaliação. O
que Camus propõe como um problema filosófico é justamente essa
avaliação de uma conduta: a de continuar ou não, vivendo. “Só há um
problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida
merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da
filosofia [...]” (CAMUS, p. 13).
Julgar é avaliar algo, para avaliar tenho que estabelecer a partir de
que perspectiva se avalia. Para Camus, responder se a vida tem sentido –
ter sentido, é ter uma direção, um fim, uma finalidade que justifique, no caso,
a existência – é saber se ela merece ou não ser vivida. Depois dessa
resposta, a vida passa a ser resultado de uma avaliação, e não mais um
hábito. Aquele que se mata, confessa com seu ato que “a existência não
vale a pena”, confessa que a vida não tem sentido. É absurda.
O que Camus pretende investigar é se o suicídio é conseqüência
obrigatória do absurdo. O absurdo é a ausência de sentido na vida, que
diante da crueza do mundo ficamos expostos a nascer e morrer, sem razão,
explicação ou lógica qualquer.
E a vida, o que é? É o impensável, onde a tentativa de uma resposta
final fica em suspenso. O absurdo é essa clareza inumana, sem paixões,
crua, onde se evidencia esse movimento de nascimento e perecimento sem
trégua a qual estamos submetidos e com o qual nos revoltamos, pois
buscamos insaciavelmente o conhecimento, a razão, a coerência. “Um
mundo conhecido, nos é um mundo familiar” (Camus, p. 16). É desse
divórcio entre o homem e o mundo que nasce o sentimento de absurdo. O
absurdo é a constatação de que o mundo não é racional e para entendê-lo
seria preciso humanizá-lo.
31
Tudo que se pode dizer é que esse mundo não é razoável
em si mesmo. Mas o que é absurdo é o confronto desse
irracionalismo e desse desejo desvairado de clareza, cujo
apelo ressoa no mais profundo do homem [...] (CAMUS, p.
34)
Para Camus, viver é um hábito, e adquirimos o hábito de viver antes
do de pensar. É esse hábito que faz com que o corpo recue diante do
aniquilamento. É a pulsão pela vida, ainda que miserável.
Morrer voluntariamente implica reconhecermos o carácter
irrisório desse hábito, a ausência de qualquer razão
profunda de viver, o carácter insensato dessa agitação
cotidiana e a inutilidade do sofrimento [...] (CAMUS, p. 16)
Mas Camus escapa ao suicídio pela revolta. Viver o absurdo é viver
na revolta. Ser consciente do absurdo do mundo, da vida e da morte, pois
há ausência de racionalidade na vida e na morte, mas viver instalado na
revolta.
A revolta é a negação da racionalidade do mundo e é a afirmação da
vida absurda. Para se afirmar o absurdo do mundo é preciso viver, mesmo
sabendo que é inútil. É uma defesa do humano, é a afirmação da condição
humana de estar condenada à morte, ao aniquilamento, mas viver porque é
a única possibilidade de ser humano possível, já que a morte é a opção pelo
nada. “Que é o homem revoltado? Um homem que diz não. Mas se ele
recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde seu primeiro
movimento [...]” (CAMUS, p. 25)
A revolta é a recusa em morrer. O suicídio, a renúncia de viver. Ao
recusar a viver, “o suicídio resolve à sua maneira o absurdo” (CAMUS, p.
70). É a revolta que dá à vida o seu valor. E o homem revoltado morre “[...]
irreconciliado e não de bom grado [...] O contrário do suicida é,
precisamente, o condenado à morte [...]” (CAMUS, p. 71)
32
Camus responde à pergunta fundamental da filosofia, mas o que nos
interessa aqui é tensionar a decisão individual de morrer com a
obrigatoriedade de viver.
Todos nós estamos condenados à morte, mas há uma outra inversão
possível. Ser condenado à vida. Ser obrigado a viver, ainda que se tenham
esgotado todas as possibilidades.
Ao considerar o suicídio como uma conduta, que envolve uma
decisão individual, de um ser, afirmo a voluntariedade dessa decisão.
Vontade é uma força vital que deseja. O suicídio é um querer (vontade,
desejo) que se afirma no aniquilamento do corpo. Não é o aniquilamento de
um indivíduo abstrato, universal, retirado do corpo. Mas o aniquilamento do
corpo, onde o pensamento está mergulhado na vida.
Decidir por morrer é ser consumido por um desejo que vai se
apossando do indivíduo, no coração do homem, no lugar em que
metaforicamente se aloja a pulsão de vida, o movimento vai se dando até a
determinação pela própria morte e consumação do ato. “[...] um gesto como
esse prepara-se, tal como acontece numa grande obra, no silêncio do
coração [...]” (CAMUS, p. 14).
É uma decisão preparada, ninguém se mata de repente, de uma
hora para outra. Há uma trajetória, um percurso que o suicida realiza.
Decidir o método, escolher o ambiente, a hora solitária, adquirir os
instrumentos.
Não importa as causas infindas que o movem a isso, que são
inumeráveis. Não nos importa valorar essas causas, já que metrificar a dor
do outro nos é impossível. O que nos importa é a decisão individual que é
acompanhada de um silêncio lúcido.
E morrer por quê? A pergunta que sempre acompanha aqueles que
ficam é: por quê? Quais os motivos? Ainda que as “mensagens do adeus”10
possam nos trazer ressonâncias das pretensas razões, elas nos parecem
inúteis. Se há algo de impenetrável no suicídio, são suas causas. O motivo
que leva ao ato é coberto com flores, juntamente com a terra molhada que
São as mensagens dos suicidas que Dias organizou e publicou em um trabalho intitulado
de “Testemunhos do Adeus”.
10
33
cobre os corpos.
E se a vida não tem sentido qualquer, para viver ou morrer não há
razões. Posso dizer sim ou não. E não há razões para uma ou outra
decisão. Se decido viver, afirmo o meu querer – a decisão é uma afirmação
do meu querer. Se decido morrer, também afirmo o meu querer.
As razões que justificam o ato, viver ou morrer, são apenas
argumentos para que os outros possam avaliar o ato. O suicida, ao decidir,
decide por fazer cessar, se as causas que o levam nos soam banais ou
heróicas, não nos importa. São apenas argumentos que justificam para
aqueles que ficam que o ato não foi em vão, ou que tinha um motivo que
nos faça compreender e nos familiarizar com o mundo e nos harmonizar. Se
foi por amor, por tristeza, por felicidade, por pobreza, pelo próximo, o que
podemos dizer é que: não é mais possível continuar, esgotaram-se as
possibilidades.
Werther11 em um diálogo com Alberto12 sobre o suicídio argumenta
contra o senso comum que afirma o suicídio como uma covardia ou
coragem, dizendo
[...] – A natureza humana – prossegui – é limitada: ela
suporta a alegria, a tristeza, a dor, até certo ponto; se o
ultrapassar, sucumbirá. A questão não é saber, pois, se um
homem é forte ou fraco, mas se pode aturar a medida do
sofrimento, moral ou físico, não importa, que lhe é imposta.
Neste caso, acho tão absurdo dizer que um homem é
covarde por haver dado cabo da própria vida, como seria
absurdo chamar de covarde o que corre de uma febre
maligna [...] (GOETHE, 2000 p. 60,61)
É assim, não há como universalizar o ato, nem achar razões iguais
Personagem de Goethe em “Os sofrimentos do jovem Werther”, obra em que o
protagonista Werther se suicida pois se envolveu com uma jovem comprometida.
11
12
Personagem de Goethe em “Os sofrimentos do jovem Werther”, que desposa da jovem
pela qual Werther é apaixonado.
34
para todos os suicidas, nem ao menos prevenir o ato. As políticas de
prevenção acabam se tornando tirania social e moral. Quando alguém se
determina a morrer, é porque algo nele transborda, há um excesso que não
é possível mais carregar, a vida torna-se um peso que ele não suporta.
Termino esse texto com uma frase que me acompanha há algum
tempo: “o suicídio é belo”, e explico: belo por que é um ato humano que
denuncia o trágico da existência, o esgotamento de todas as possibilidades
do humano e, ao mesmo tempo, é a ação decisiva de um ser que toma pra
si sua própria vida e se recusa a ser um condenado. É aquele que
definitivamente quer morrer.
Para além de incitar ao ato, enxergar a morte voluntária por outros
olhos é libertar os suicidas das frondes das árvores, da condenação eterna
que nossa sociedade os encerrou. É retirar daqueles que ficam, uma culpa,
uma vergonha que os acompanha.
35
VI – Referências bibliográficas
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia; tradução Hernani Donato. São
Paulo: Abril Cultural, 1979.
BERTOLE, José Manuel. O suicídio e a sua prevenção. In MELEIRO,
Alexandrina Maria A. Silva; TENG, Chei Tung; WANG, Yuan Pang. Suicídio:
Estudos Fundamentais. São Paulo; Segmento Farma, 2004. p.193- 205
CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1996
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Ensaio sobre o absurdo. Edição
livros Brasil Lisboa.
CASSORLA, Roosevelt M.S. Considerações sobre o suicídio. In
CASSORLA, Roosevelt, coord. Do suicídio/estudos brasileiros. Campinas:
Papirus, 1991. 85-308-0160-1. p.17 – 26.
DIAS, Maria Luiza. Suicídio. Testemunhos do adeus. São Paulo:
Brasiliense, 1991.
DURKHEIM, Emile. O Suicídio. Estudos Sociológicos. São Paulo:
Martins Fontes, 1973
FOUCAULT, Michel. História da loucura no ocidente. Tradução José
Teixeira Coelho. 4ª ed.. Perspectiva: Rio de Janeiro, 1995.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber.
Vol.I, Graal: Rio de Janeiro, 1977.
36
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