3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS:
UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS
e
100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL
AFRÂNIO COUTINHO, 100 ANOS POR UM AMADURECIMENTO
CULTURAL DA BAHIA 1
Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho (GELC/UEFS)
Uma das primeiras experiências com Afrânio Coutinho vem da visão da coleção
A literatura no Brasil vendida na livraria da PIDL, na Universidade Estadual de Feira
de Santana. No início dos anos 1990, os seis volumes da publicação orgulhosamente
mostrada e comentada pelo professor e diretor da livraria Raimundo Luiz, tornaram-se
para os estudantes mais aplicados do curso de Letras da UEFS um objeto de desejo.
Comprávamos aos poucos, volume a volume, como numa coleção. Os exemplares
volumosos eram consumidos primeiro pelos olhos, depois pela leitura e, ao final,
descobríamos os autores, os ensaios de peso. A narrativa no plural era fato, lembro que
mais colegas chegavam à livraria interessados no conjunto de ensaios, principalmente,
sobre Antonio Vieira, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Jorge
Amado. Alguns próximos podem também testemunhar, como Valéria Soares, Maria da
Conceição Araújo, Jecilma Alves, Maria Valdilene, Glória Mendes, Francisco Fábio de
Vasconcelos e José Francisco da Silva (esses últimos não lembro que compravam, mas
queriam ter). Aliás, uma das poucas fontes de estudo sobre o romancista baiano que irá
comemorar centenário no ano próximo.
Como tínhamos manias que parecem desaparecidas ultimamente, discutíamos
em sala de aula, biblioteca e mesas de bares sobre os ensaios e, pasmem, conseguíamos
identificar ensaístas como o famigerado Luis Costa Lima, Barreto Filho, Brito Broca,
Lúcia Miguel Pereira, Antonio Candido, e o polêmico Eugênio Gomes, que
evidentemente não sabíamos que era baiano e, com justiça ou não, oscila entre os mais
notáveis vilões ou perseguidos da história literária brasileira. Estão neste pódio
Sousândrade, Lima Barreto, José do Patrocínio, Coelho Neto, Monteiro Lobato.
Ignorávamos a tumultuada querela do papel da história da literatura no contexto, nos
1
Texto apresentado no III Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um
cosmopolitismo nos trópicos e 100 Anos de Afrânio Coutinho (1911-2011): a crítica literária no Brasil,
Universidade Estadual de Feira de Santana/PPGLDC, 15 e 16 de dezembro de 2011.
ISBN 978-85-7395-210-0
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interessava discutir os grandes textos da literatura brasileira a partir do peso daqueles
ensaios reunidos.
Outro assunto indigesto, as ligações ideológicas entre tais senhores de farta
bibliografia e estilo marcante não passavam por nossos temas de debate. Nem tão pouco
que, alheio ao sonoro esforço de separação entre direita integralista e esquerda
socialista, Afrânio Coutinho reunia numa mesma publicação, Adonias Filho, Eugênio
Gomes, Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, e outros. Intelectualmente, isto
era muito grave, pois as facções estavam divididas. Outros empreendimentos foram
tentados e fracassaram porque alguns estudiosos não queriam estar associados ao
regime de Getulio Vargas ou ao Integralismo de Plínio Salgado (nossa versão fascista
de nacionalismo). Sobre estes assuntos, senhores sentados nestas cadeiras, presentes a
este evento comemorativo e de estudos literários, 2 podem versar com mais intimidade e
até conforto (ou aflição!) de testemunhas. Para indivíduos como eu, que escolheu
enveredar por esta via de estudo da literatura, a historiografia, somente vi aumentar a
importância da obra para os estudos literários brasileiros, pois além de reunir o nosso
melhor momento de amadurecimento nestes estudos, víamos ali, o que, saberíamos
depois, seria o nosso melhor momento criativo de literatura (BUENO, 2009). Ao que
parece, os ensaístas também estavam impressionados com as possibilidades de reflexão,
aprofundamento, variação e temas capazes de ser encontrados e construídos em seus
textos.
E isto somente foi possível porque um baiano polêmico, incansável e agregador
resolveu fazer obra coletiva ainda num contexto dos estudos individuais, das grandes
soluções personalistas e, ainda, da formação de um líder espiritual e intelectual que
conduzisse para aprisco seguro os nossos sempre incipientes estudos da literatura.
Obviamente estou falando de Antonio Candido e do que se tornou, ao seu redor, os
estudos da literatura na Universidade de São Paulo e foi disseminado para todos os
cursos de Letras do Brasil, sempre com muita justiça. Por outro lado, ao que parece,
Afrânio Coutinho, na sua faina de pesquisador, via mais longe. Conseguiu legar alguns
exemplares de trabalho coletivo capazes de, ao tempo em que promovia a divulgação da
2
Estavam presentes ao evento o filho de Afrânio Coutinho, Eduardo de Faria Coutinho, Jorge de Souza
Araújo, professor da UEFS, que realizou estudos de pós-graduação junto a Afrânio Coutinho, na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luiz Roberto Veloso Cairo, professor da Unesp de Assis/SP e
egresso da UFBA, e passou a juventude na Bahia em tempos ideológicos e de regime militar.
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crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 47-54.
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literatura no Brasil, dos modelos de pesquisa, também promover avaliação de tais obras
e estudiosos. Os alunos de letras, nos quais eu me incluía, discutiam, através daquela
obra, literatura, escolhiam os melhores momentos, muitas vezes não os mais populares:
parnasianismo, pré-modernismo. A contragosto, meus colegas elegiam o modernismo
sobre o qual eu indagava “quem ele havia lançado?” Não se preocupem, todos nos
uníamos em torno de Guimarães Rosa, Jorge Amado e Clarice Lispector.
Gostaria de justificar um pouco do meu entusiasmo com Afrânio Coutinho na
conta da sua baianidade. Se a pertença a esta parte do país pouco importou para ele (a
afirmação merece estudo mais apurado), para a minha pesquisa é fundamental. Naquele
momento de estudante de Letras, ao que me lembro, não sabíamos disso e nem se
tornava informação digna de constar em nossa pauta de apreciação da literatura. As
lições de literatura como sistema de Candido não faziam efeito, mas o estudo do estilo e
o comparatismo com as grandes obras ocidentais eram a tônica de desvendamento.
Também, se nossa via de entrada para o debate a respeito do autor de Tieta do
agreste e Gabriela, cravo e canela tinha outro mestre na figura da caixa iluminada da
televisão e do cinema, são questões ainda por resolver. Era o tempo, os anos 1990, das
adaptações populares da literatura para um público mais amplo. De fato, o Brasil
tomava conhecimento de O tempo e o vento, de Erico Verissimo; de Grande sertão,
veredas, de Guimarães Rosa; de O primo Basílio, de Eça de Queiroz; de Tieta do
agreste, de Jorge Amado, através dos seguidos capítulos da teledramaturgia.
Transformados em folhetim muito bem elaborados, adaptados e encarnados por atores e
atrizes famosos do público, velhos conhecidos do sofrer e das paixões de outros
personagens, tais livros gloriosos da nossa galeria literária chegavam ao conhecimento
do público brasileiro em geral. Se os leitores atuais podem ser chamados de geração
internet ou das redes sociais, a nossa facilmente se reconhece como geração TV.
Em se tratando de literatura, indiferenciáveis de outros leitores mais
cosmopolitas, tínhamos nossos hábitos de leitura clandestina, como diz Roger Chartier.
Explico-me. Nossos professores mandavam ler Machado, Graciliano, Drummond, João
Cabral, líamos também Jorge Amado, Marquez, Kundera, Sidney Sheldon, quiçá Paulo
Coelho. Os anos 1990 também tinham a marca do livros populares, geralmente
divulgados pelas listas dos mais vendidos das revistas Veja, Isto é e dos grandes jornais,
como Estadão, Folha e JB. Os bestsellers até faziam divulgação em intervalos
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comerciais da televisão, anunciando que estavam à disposição do público Nas bancas. A
insustentável leveza do ser e O amor nos tempos do cólera apareciam anunciados junto
a Fernão Campelo gaivota e O alquimista.
Em termos de estudos literários, a fala recente do pesquisador João César de
Castro Rocha demonstra que aquela energia formada nas entradas e saídas da livraria do
Prof. Raimundo Luiz e investida ao longo dos anos por alguns de nós não foi em vão. O
professor carioca, um dos principais teóricos da nova história da literatura, afirmou na
PUCRS, em outubro de 2011, que iria utilizar a metodologia de A Literatura no Brasil,
para organizar a sua nova história da literatura. Para um dos mais interessantes
estudiosos de literatura da nova geração, o modelo de Coutinho é viável porque agrega
os pesquisadores da área, fornece painel da literatura no Brasil, assume a diversidade
nacional quase impossível já de ser conhecida de outra forma que não seja a chamada de
publicação, mesmo recortada, torna possível avaliação das diferenças. Isto tudo
levando-se em conta também todos os pontos polêmicos, questionáveis e incontroláveis
que se podem deparar para quem resolve empreender tal atividade. As agências de
fomento e avaliação acadêmicas, como a CAPES, também pensam de forma
semelhante, quando resolvem financiar eventos e produtos que comprovem o esforço de
agregação nacional de especialistas em torno de temas comuns, em vez da dispersão e
multiplicação de eventos sobre o mesmo tema.
Faz algum tempo realizei estudo sobre a figura do poeta Castro Alves a partir de
termo proposto por mim, esteio de sistema. Naquela oportunidade, tomei Castro Alves
como estio de sistema da Bahia. Lá, afirmava que, além da figura poética, erguida ao
campo semântico de monumento (LE GOFF, 2003), Alves se tornara essencial para a
memória cultural do Estado. Reúne-se, mobiliza-se, sonha, reconhece-se em torno desse
Castro Alves emblemático, erótico, mítico, gerações e mais gerações de intelectuais,
literatos, artistas, incentivadores, acadêmicos. O poeta de A Cachoeira de Paulo Afonso
toma o lugar, simboliza, corporifica e insufla o que vem a ser a própria Bahia. Pertencer
a uma esfera de literatura nacional pouco importa, ou melhor, implementa tais
expectativas.
Autorizado pelos laços de identidade que ligam literatura e pertença, pode-se
pensar numa alegoria estadual. Do mesmo modo que o Estado se acomoda entre os
empurrões e solavancos dos outros Estados mais a oeste, pressionando-o em direção ao
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mar, como é impedido de esgueirar-se sinuosamente para o sul e aparenta, vigoroso,
suster os estados do nordeste, a presença de Alves pretende guardar lugar para obras do
passado, geradas no presente e gestadas para o futuro. Obviamente, para não parecer
bairrista, não é esta a minha a intenção, a Bahia também pressiona e fragiliza as outras
unidades da federação. Basta lembrar os discursos do nosso recentemente desaparecido
Antonio Carlos Magalhães.
Em suas áreas de atuação, outros autores são capazes de tais proezas, como
Jorge Amado e Afrânio Coutinho. Não por acaso, são exatamente estes 3 autores que
inspiraram a ideia agora exposta de esteio de sistema (PINHO, 2008). Naquele
momento, os pontos historiográficos explorados na produção de Castro Alves, Afrânio
Coutinho e Jorge Amado foram a consagração e a polêmica. Agora, após a investida em
outros referenciais, como é o caso de Jacques Le Goff, até o silêncio pode ser
catalogado nesta descrição de fisionomia de sistema.
Nesse caminho crítico, outro intelectual de relevo da Bahia causou admiração
pela obra que foi capaz de erguer, nas condições que lhe foram oferecidas. Trata-se do
Afrânio Coutinho (1911-2003) que neste ano completa o seu centenário de nascimento.
O seu desempenho é tão insinuante que o biógrafo (BELÉM, 1987) justifica a
capacidade de trabalho, polêmica e deslocamento com a projeção de obras e
instituições, com a saída do tacanho Estado e uma viagem para os Estados Unidos da
América. A explicação é muito fácil e poderia reduzir a sensação angustiante de não
poder afirmar a força cultural do sistema que vê nascer Coutinho. Óbvia a pretensão de
enfatizar tais discursos contra a força intelectual formativa de autores tão distantes no
tempo, Padre Vieira e Afrânio Coutinho, nas escritas de seus intérpretes.
Contudo, a minha experiência de trabalho com os jornais e as instituições
culturais, os quais me fazem ver por um lado totalmente desconhecido da história e da
crítica literária tradicional, mostra-me não um Afrânio Coutinho, mas um conjunto
sólido anterior de longa data de intelectuais bastante interessados em fortalecer a sua
visão particular de cultura (talvez matizada por messianismos, visão particular da terra,
etc). Infelizmente, esta mesma solidez não permitiu movimentos positivos como passos
decisivos para assunção de visões mais democráticas, menos coronelistas, etc. Por seu
lado, a narrativa hegemônica tenta transformá-los em exceções para depois classificálos fora do estereótipo de atraso que melhor explica o sistema cultural baiano. A
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dificuldade do discurso hegemônico está na quantidade de exceções, na temporalidade
envolvida e nos projetos que os unem.
Em vista do prestígio do Modernismo, a Bahia pagou alto tributo por esta
mesma possibilidade de vinculação na longa duração da cultura do ocidente em nossas
terras e em nosso imaginário. Convidada a esquecer e abandonar vínculos ditos como
retrógrados, antinacionalistas, retóricos, algo sempre a fez insistir pela permanência e
festejo.
No mais forte mergulho no tempo, autores do calibre de Padre Antonio Vieira e
o poeta boca de brasa Gregório de Matos ofereceram a maturação de leitura e recepção
de Jorge Amado, Adonias Filho e Afrânio Coutinho. Não se pode negar também a
existência da instituição do Colégio dos padres Jesuítas como formadora de uma prática
de pensamento que moldou formatos de comportamento e agir intelectual bem-sucedido
na longa duração: Vieira é uma celebridade internacional no seu tempo, formado ali na
grosseira e diminuta, como disse José Veríssimo, capital das Américas. A passagem dos
regimes coloniais para imperialista e desse para republicano e depois todos os reveses
no século XX podem demonstrar insatisfações e diálogos nem sempre em sintonia.
Afinal, trata-se da cultura que se vai vencendo enquanto entra e é testada na crise, como
defende Martim Heidegger. Não se deve negar, no entanto, a cultura que veio arrolada e
providenciou uma identificação própria, talvez não propícia, o que é outra história. Por
hora, convém entrarmos com dignidade nesta linha de amadurecimento cultural,
reconhecendo os valores intelectuais e seus esforços. Afrânio Coutinho, nos seus 100
anos completos, certamente fornece tintas a esta aquarela bafejada de mares e sertões.
RESUMO
Pretendo aproximar a leitura da obra do crítico e historiador Afrânio Coutinho a alguns
dos termos forjados por mim durante o estudo do sistema literário da Bahia e da
pesquisa de periódicos. Esteio de Sistema e Amadurecimento de Cultura são dois desses
termos. Caros para a argumentação, pretendem na sua prática, reverter em positivo o
negativo do termo tradição (amadurecimento de cultura) e as íntimas ligações entre
escritores cuja obra são capazes de manter acesos os formatos dos acervos literários da
Bahia: esteio de sistema. Afrânio Coutinho, por seu lado, é um esteio. É capaz de
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erguer, nas suas inúmeras pesquisas, principalmente nas obras A Literatura no Brasil e
Enciclopédia da Literatura Brasileira, um rol imenso de autores e obras ligadas ao
sistema literário do Estado. Sendo assim, me utilizo das ideias da Teoria da Recepção,
dos estudos culturais e da nova história da literatura.
PALAVRAS-CHAVE: Afrânio Coutinho; Amadurecimento Cultural; Sistema Literário;
Bahia.
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