3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL AFRÂNIO COUTINHO E O PROCESSO EVOLUTIVO DA LITERATURA BRASILEIRA Luiz Roberto Cairo 1 I A década de 50, na literatura brasileira, pode ser considerada como da crítica literária. É o momento em que se adquire a consciência exata do papel relevante da crítica em meio à criação literária e aos gêneros de literatura imaginativa, função da disciplina de espírito literário. Sem ser um gênero literário, mas uma atividade reflexiva de análise e julgamento da literatura, a crítica se aparenta com a filosofia e a ciência, embora não seja qualquer delas. É uma atividade autônoma, obediente a normas e critérios próprios de funcionamento, e detentora de uma posição específica no quadro da literatura. (Coutinho, 2003, p. 112) 2011 é um ano importante para a história da crítica literária brasileira, uma vez que há cem anos, no dia 15 de março, nascia em Salvador, Afrânio Coutinho (19112000), e, em 29 de outubro, falecia em Fortaleza, Tristão de Alencar Araripe Júnior (1848-1911). Ambos, homens de letras, críticos, cujas obras constituem marcos relevantes para a história da crítica literária brasileira. Como leitor da obra crítica desses dois grandes escritores, cujas trajetórias em momentos diversos eventualmente vieram a se cruzar, não poderia deixar de registrar a curiosa relação que entre eles se estabeleceu. Cada um em seu tempo contribuiu com competência para a renovação dos estudos literários no Brasil, deixando sua marca no exercício da atividade crítica e historiográfica, a ponto de se imortalizarem em tempos diferentes na Academia Brasileira de Letras. Araripe Júnior fundou a cadeira de número 16 e Afrânio Coutinho ocupou a cadeira que teve como patrono Raul Pompéia (1863-1895). Araripe mantinha laços de amizade com Pompéia. Afrânio tomou a si a tarefa de organizar em dez volumes a obra Professor Doutor da F.C.L. ― UNESP ― Campus de Assis Pesquisador CNPq (1D) 1 ISBN 978-85-7395-210-0 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL de Pompéia e em cinco volumes a obra crítica de Araripe Júnior, tornando-se seu leitor mais sensível ao apresentar o trabalho “Araripe Júnior e o nacionalismo literário”, como tese à Faculdade Nacional de Filosofia, em 1957, para concorrer à docência livre de Literatura Brasileira. II Sempre fui fiel, sempre fui solidário, ao lado da Bahia. Edições baianas fiz várias. Trabalhei sempre em favor dos baianos, sempre preocupado com figuras da Bahia. Mas no volume de coisas que fazia, a parte da Bahia ficava perdida no meio. (Coutinho, 2003, p.30) O primeiro contacto que tive com a crítica literária brasileira se deu através de um texto de Afrânio Coutinho, em 1961, nas aulas de português de duas inesquecíveis mestras do Colégio Estadual Severino Vieira, Maria Helena e Candolina Rosa, quando fazia o Curso Colegial - na modalidade Científico - em Salvador. Ambas me levaram a ler o capítulo referente ao Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, d’A literatura no Brasil. Para quem estava então habituado a pesquisas feitas apenas em livros seriados didáticos, aquela leitura aliada às performances brilhantes das duas mestras que nos introduziram uma, no universo psicológico de Raul Pompéia, outra, na linguagem sedutora de Machado de Assis, despertou o encanto pela literatura e pelas humanidades, que me conduziram respectivamente, aos cursos de Direito, em 1963, e Letras, em 1969. Em 1973, como não houvesse Programa de Pós-graduação em Letras, em Salvador, fui ao Rio de Janeiro e em seguida a São Paulo, para informar-me sobre o funcionamento dos Programas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de São Paulo. Foi aí então que tive a oportunidade de conhecer Afrânio Coutinho, a quem fui gentilmente apresentado por sua filha Graça, Bibliotecária da Faculdade de Letras da UFRJ. Foi um contacto rápido, mas estimulante. Além de gentil e acolhedor como costumava ser com os baianos, que o procuravam, Mestre Afrânio me passou todas as informações de que precisava a respeito do Mestrado em Letras da UFRJ. Em seguida, fui para São Paulo, onde conheci na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o crítico pernambucano João Alexandre Barbosa (19373º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30. 22 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL 2006) que, curiosamente, aconselhou-me a fazer minha dissertação sobre a obra crítica de Araripe Júnior, o que me reconduziu à leitura da obra do Mestre Afrânio, desta vez, dos seus textos sobre o crítico cearense. III A história literária do Brasil era vista como uma dependência da portuguesa. Os primeiros séculos eram vistos como um prolongamento da história literária portuguesa, simples continuação da mesma. Isto, apesar dos esforços de Sílvio Romero e outros. Nunca aceitei esta tese. Sempre me rebelei contra ela. Sempre enxerguei o início da literatura no Brasil como literatura brasileira. (Coutinho, 2003, p. 23) No ano em que se comemora o centenário de nascimento do crítico e historiador Afrânio Coutinho (1911-2011), optei por reler um de seus textos mais significativos, o “Prefácio da primeira edição (1955)” d’A literatura no Brasil, sua magistral história da literatura brasileira. O “Prefácio” é um texto que sozinho alimentaria uma disciplina de introdução aos estudos literários no Brasil. Nele, Afrânio Coutinho aborda questões de história literária, periodização, gêneros literários, as soluções brasileiras, definição e caracteres da literatura brasileira, influências estrangeiras, metodologia, conceito e plano de sua história coletiva da literatura brasileira. Paralelamente, reli a “Introdução” à Formação da literatura brasileira: (momentos decisivos) (1959), de Antonio Candido (1918-), uma vez que juntamente com o “Prefácio”, estes textos constituem importantes divisores de águas dos estudos literários no Brasil, de meados do Século XX. Minha escolha não foi aleatória, pois como professor, sempre os considerei textos de leitura obrigatória, na disciplina Literatura Brasileira I, ministrada, durante 22 anos, na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, em Assis. IV A crítica universitária hoje é filha desta renovação crítica que se fez no Brasil e em todo o mundo, com o espírito de seriedade e de profundidade, de pesquisa e de orientação metodológica. Hoje a crítica 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30. 23 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL universitária não é apenas isto. É a crítica brasileira pautada em princípio de ordem lógica, de raciocínio lógico e, sobretudo, com grande coisa, eu disse isto, que é a crítica baseada nas pesquisas intrínsecas da obra literária. (Coutinho, 2003, p. 31) Ao definir a literatura brasileira, na década de 50 do século passado, Afrânio Coutinho, com enorme lucidez, levanta cerca de dez características no processo evolutivo da literatura brasileira e de nossa atividade literária, “sem pretensões a trabalho definitivo, sem tampouco confiar de todo na perdurabilidade dos traços definidores” (Coutinho, 1986, I, p. 35): predomínio do lirismo, exaltação à natureza, ausência de tradição, alienação do escritor, divórcio com o povo, ausência de consciência técnica, culto da improvisação, literatura e política, imitação e originalidade, e metrópole e província. Estas características estão todas, na verdade, organicamente interligadas. Na tentativa de fazer circular alguns de seus pontos de vista exemplares entre os jovens leitores do século XXI, aproveito o espaço oportuno desta mesa-redonda onde se comemoram 100 Anos de Afrânio Coutinho (1911-2011): a crítica literária no Brasil no 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: Um Cosmopolitismo nos Trópicos, evento organizado pelo Programa de Pós-graduação em Letras da UEFS, numa iniciativa de Adeítalo Manoel Pinho, em Feira de Santana, para refletir sobre três destas características, que, de certa forma, antecipam os rumos que tomaram a literatura e os estudos literários brasileiros na contemporaneidade. São elas: ausência de tradição, alienação do escritor e divórcio com o povo. A “ausência de tradição”, resultado da oposição entre uma tradição importada e uma eventualmente nova, conduziu a literatura brasileira a uma “antropofagia das gerações”, pois, de seu ponto de vista: (...) cada nova geração, marcada pelo ceticismo e pelo iconoclastismo, em vez de procurar formar-se, só tem uma diretriz, a destruição da que antecedeu conforme o mito da soberania da geração presente, a que corresponde uma estase da realização artística e da acuidade crítica, somente possíveis num clima de continuidade. (1986, I, p.36 e 37) Isto, por sua vez, gerou o que Afrânio Coutinho chamou de “alienação do escritor”, ou seja: 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30. 24 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL Divorciado de uma tradição, o homem de letras sente-se separado dos predecessores, que ignora, da sociedade, que o desconhece ou dos seus pares, a que não presta atenção. É um desterrado em sua própria terra. É marca indelével de nossa vida intelectual a completa desatenção do escritor ao trabalho dos outros escritores, passados ou contemporâneos. (1986, I, p. 37) Esta situação de isolamento, conseqüentemente, trouxe consigo um equívoco, pois não o aproximou do povo enquanto público-leitor. Ao mesmo tempo em que esvaziou a possibilidade da existência de uma tradição, optou pelo “divórcio com o povo”, uma vez que a literatura brasileira é: (...) literatura requintada, feita por uma classe para divertimento dessa mesma classe, levando-se em conta o enorme abismo que separa elite e povo no Brasil, elite cultivada, e dona da vida, povo distante, analfabeto e deserdado. (1986, I, p. 37). Convém observar que Afrânio Coutinho registrou, naquele momento, sinais de transformação politicamente importantes como o “acesso da massa ao poder político, econômico, social, e a posse da cultura”. (1986, I, p. 37) No entanto, o contexto dos anos 50, marcado pela passagem de uma crítica temática para uma crítica mais voltada às questões da linguagem, centrada, portanto no valor estético, traço definidor de seu conceito de literatura, levou-o a complementar meio cético: Mas o risco perdura, pois a ninguém será permitido asseverar que essa ascensão não se fará em detrimento dos valores estéticos, com um desnivelamento dos padrões de cultura para adaptar-se às exigências da mesma massa. Assim, o conflito entre as tendências highbrow e lowbrow se resolveria por baixo. O divórcio com o público resultou em uma literatura a que falta o público. (1986, I, p. 37) É bom que se diga, porém, que, a partir da terceira edição d’A literatura no Brasil, datada dos anos 80, o crítico acrescenta que: “Esse divórcio acentua com o desenvolvimento dos órgãos de cultura de massa, apesar dos benefícios indiretos que propiciam.” (1986, I, p. 37) 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30. 25 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL Não se deve censurar o crítico por isso, em nenhuma hipótese, pois esta é ainda hoje, início da segunda década do século XXI, uma questão bastante polêmica. V Acredito na fecundidade do debate e da controvérsia infelizmente, entre nós, transformados em polêmica pessoal! Demais disso, [a seção “Correntes cruzadas”] cuida que é fundamental o trabalho doutrinário e teórico, o desbravamento dos problemas de princípio e método, sem o que não lograremos, no Brasil, jamais sair da fase do empirismo e da improvisação. (Coutinho, 2003, p. 110) Naquela mesma época, Antonio Candido, crítico carioca radicado em São Paulo, escreveu o ensaio “O escritor e o público” (1955), que constitui um dos capítulos d’A Literatura no Brasil, dirigida por Afrânio Coutinho, onde defendeu a existência de uma tradição auditiva que perpassou a história da literatura no Brasil desde o século XVI. Em sua opinião: (...) durante cerca de dois séculos, pouco mais ou menos, os públicos normais da literatura foram aqui os auditórios – de igreja, academia, comemoração. O escritor não existia enquanto “papel social” definido; vicejava como atividade marginal de outras, mais requeridas pela sociedade menos diferenciada: sacerdote, jurista, administrador. Querendo fugir daí e afirmar-se, só encontrava os círculos populares de cantigas e anedotas, a que se dirigiu o grande irregular sem ressonância nem influência, que foi Gregório de Matos na sua fase brasileira. (1986, I, 222) Convém registrar que Antônio Candido percebeu também neste texto a ausência de comunicação entre o escritor e a massa ao observar que: Com efeito, o escritor se habituou a produzir para públicos simpáticos, mais restritos, e a contar com a aprovação dos grupos dirigentes, igualmente reduzidos. Ora esta circunstância, ligada à esmagadora maioria de iletrados que ainda hoje caracteriza o país, nunca lhe permitiu diálogo efetivo com a massa, ou com um público de leitores suficientemente vasto para substituir o apoio e o estímulo de pequenas elites. (1986, I, p. 227) 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30. 26 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL Diferentemente de Afrânio Coutinho, Antonio Candido não considerou a literatura produzida pelos escritores brasileiros requintada, nem tampouco viu a elite literária, a que seus textos se dirigem como possuidora de um refinamento de gosto, mas apenas com “capacidade de interessar-se pelas letras”, conforme se pode constatar no fragmento seguinte: Correspondendo aos públicos disponíveis de leitores, - pequenos e singelos – a nossa literatura foi geralmente acessível como poucas, pois até o Modernismo não houve aqui escritor realmente difícil, a não ser a dificuldade fácil do rebuscamento verbal que, justamente porque se deixa vencer logo, tanto agrada aos falsos requintados. De onde se vê que o afastamento entre o escritor e a massa veio da falta de públicos quantitativamente apreciáveis, não da qualidade pouco acessível das obras. (1986, I, p. 227) Antonio Candido observa a presença de sinais de transformação da sociedade pelo acesso da massa ao poder político, econômico, social e cultural, mas também admitiu que algumas mudanças no campo tecnológico e político trouxeram prejuízos, na medida em que elas vieram reforçar a tradição auditiva: Em nossos dias, quando as mudanças assinaladas indicavam um possível enriquecimento da leitura e da escrita feita para ser lida, como é a de Machado de Assis, - outras mudanças no campo tecnológico e político vieram trazer elementos contrários a isto. O rádio, por exemplo, reinstalou a literatura oral, e a melhoria eventual dos programas pode alargar perspectivas neste sentido. A ascensão das massas trabalhadoras propiciou, de outro lado, não apenas maior envergadura coletiva à oratória, mas um sentimento de missão social nos romancistas, poetas e ensaístas, que não raro escrevem como quem fala para convencer ou comover. (1986, I, p. 229) Nos anos 50, os textos desses dois críticos - Afrânio Coutinho e Antonio Candido – alicerçaram efetivamente novos rumos para a literatura brasileira, por isso são divisores de águas, promoveram a ruptura dos estudos literários no Brasil com o passado de tradição historicista. Vale lembrar, porém, que a ruptura, traço característico daquele momento, significou como insistiu Antonio Candido, nos textos escritos em quase três décadas, - e eu me refiro principalmente aos anos 50, 60 e 70, em que alertava para o perigo das “pretensões excessivas do formalismo” (Candido, 1971, I, p. 33) - o encontro do crítico 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30. 27 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL com o texto, com o estatuto da literatura e o início da profissionalização do homem de letras e o abandono do historicismo, conforme se pode constatar neste fragmento do ensaio “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, redigido, segundo observação do autor em nota de rodapé, em 1950: Em nossos dias, estamos assistindo ao fim da literatura onívora, infiltrada como critério de valor nas várias atividades do pensamento. Assistimos, assim, ao fim da literatice tradicional, ou seja, da intromissão indevida da literatura; da literatura sem propósito. Em conseqüência, presenciamos também a formação de padrões literários mais puros, mais exigentes e voltados para a consideração de problemas estéticos, não mais sociais e históricos. É a maneira pela qual as letras reagiram à crescente divisão do trabalho intelectual, manifestado sobretudo no desenvolvimento das ciências da cultura, que vão permitindo elaborar, do país, um conhecimento especializado e que não reveste mais a forma discursiva. (Candido, 1973, p. 136) Se a década de 50 foi caracterizada pela ruptura, os anos que se seguiram trouxeram a necessidade da releitura, marcada pelas preocupações formais e estéticas, conforme João Alexandre Barbosa sugeriu lucidamente: (...) a crítica como releitura significa, em última instância, a possibilidade de uma decodificação que atende não somente para os elementos constituintes da literariedade como para o que, no texto, envolve a sua existência como radicação na história. Só que agora, esta radicação é percebida não como função, ou missão, do texto, mas como decorrência de seu próprio modo de constituir-se enquanto objeto de tensão entre forma e história. (Barbosa, 1990, p. 75) A necessidade de rever o cânone sob esta perspectiva, hoje, aos olhos de alguns, iluminista, pode ter sido o motivo que levou, nos anos 60, Afrânio Coutinho a publicar a Antologia Brasileira de Literatura (1965, 1966, 1967) e Antonio Candido e José Aderaldo Castello (1921-2011) a Presença da Literatura Brasileira (1964), onde, de maneira mais pragmática, puderam ilustrar as idéias propostas, respectivamente, em A Literatura no Brasil e no longo ensaio Formação da Literatura Brasileira. As duas antologias têm preocupação didática, apresentando um extenso corpus, organizado diacronicamente. A primeira reúne clássicos brasileiros e portugueses e a segunda reúne apenas os brasileiros. Posturas diferentes, conforme se pode perceber, mas que efetivamente contribuíram para a revisão do cânone, que por sua vez desencadeou novas 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30. 28 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL atitudes no modo como o leitor brasileiro passou a olhar e repensar o texto literário, na passagem do século XX para o XXI. O caminho do crítico e historiador é sempre árduo porque feito de erros e acertos, no caso de Afrânio Coutinho mais acertos que erros, o que o levou a dizer sobre “seu fôlego tão pouco comum entre escritores brasileiros”, em entrevista, concedida ao poeta e jornalista baiano Ildásio Tavares, em 27 de agosto de 1991: “Meu trabalho na área de crítica literária tem sido a tônica da minha vida. Espero que tenha frutificado, e que os seus frutos sejam permanentes.” (Coutinho, 2003, p.43) RESUMO No ano em que se comemora o centenário de nascimento do crítico e historiador baiano Afrânio Coutinho (1911-2011), releio o Prefácio à 1ª. edição d’A literatura no Brasil (1955), sua magistral história da literatura brasileira, que constitui um importante divisor de águas dos estudos literários no Brasil, no Século XX. Numa tentativa de fazer circular algumas de suas idéias entre os jovens leitores do século XXI, aproveito o espaço oportuno do 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: Um Cosmopolitismo nos Trópicos e da conferência 100 Anos de Afrânio Coutinho (19112011): a crítica literária no Brasil”, da UEFS, para refletir, particularmente, sobre algumas características da evolução da literatura brasileira e de nossa atividade literária, levantadas na década de 50, do século passado, com enorme lucidez, por este crítico, “sem pretensões a trabalho definitivo, sem tampouco confiar de todo na perdurabilidade dos traços definidores”. PALAVRAS-CHAVE: Afrânio Coutinho. Crítica Literária. História da Literatura. BIBLIOGRAFIA BARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo. São Paulo: Iluminuras, 1990. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: (Momentos decisivos). São Paulo: Livraria Martins Editora, 1971, 4.. ed., 2 vv. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo-SP: Companhia Editora Nacional, 1973, 3a. ed. rev., p. 136. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30. 29 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL CANDIDO, Antonio e CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira. São Paulo-SP: DIFEL, 1964, 3 v. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. (Dir. A.Coutinho) V. 1. Rio de JaneiroRJ: José Olympio; Niterói-RJ: EDUFF, 3a. ed., 1986. COUTINHO, Afrânio. Antologia Brasileira de Literatura. Rio de Janeiro-RJ: Distribuidora de Livros Escolares, 1965, 1966 e 1967, 3 vv. COUTINHO, Afrânio. Crítica e Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará/PROED, 1987. COUTINHO, Afrânio, COUTINHO, Graça et al. Afrânio Coutinho. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2003. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30. 30