3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL A CONTRIBUIÇÃO DE AFRÂNIO COUTINHO PARA OS ESTUDOS LITERÁRIOS NO BRASIL1 Eduardo F. Coutinho 2 Considerado uma das maiores expressões dos estudos literários no Brasil, no século XX, Afrânio Coutinho teve um papel fundamental na reestruturação dos estudos de Literatura no país, através das contribuições que introduziu no âmbito da Crítica, da Teoria e da Historiografia literárias. Além disso, destacou-se pela sua atuação no ensino da Literatura, onde transformou significativamente os métodos de abordagem de autores e textos, e na divulgação de escritores brasileiros por intermédio das obras coletivas que realizou. Neste trabalho, faremos uma breve apresentação de algumas das principais linhas de reflexão desenvolvidas pelo autor e ofereceremos uma visão de sua contribuição nos diversos estratos dos estudos literários no Brasil. A crítica literária brasileira em meados do século XX achava-se predominantemente dividida, salvo raras e honrosas exceções, entre resquícios de um historicismo novecentista e de um puro impressionismo, e exercia-se na maioria dos casos por meio da resenha jornalística. No primeiro caso, tratava-se de uma crítica dominada pelo estudo dos fatores exteriores ou extrínsecos que condicionam a gênese do fato literário, e que repercutia as teorias de Taine e Sainte-Beuve, do naturalismo e determinismo biológico, social e geográfico, e do biografismo, princípios esses a que se devem a obra de Sílvio Romero e dos outros críticos e historiadores literários da fase naturalista e positivista do final do século XIX e começo do XX. De acordo com essa perspectiva, a obra literária era vista como uma instituição social, um documento – de uma raça, uma época, uma sociedade, uma personalidade – e as relações entre a literatura e a vida se resolviam em favor da vida, de que a literatura tinha que ser um espelho. 1 Este texto foi publicado também no livro Crítica e Literatura, org. por Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo, Silvio Augusto de Oliveira Holanda e Valéria Augusti (Rio de Janeiro: De Letras, 2011, p. 185-96. 2 Professor Titular da UFRJ. ISBN 978-85-7395-210-0 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL No segundo caso, tinha-se um tipo de crítica calcado na ausência de qualquer método de abordagem, de qualquer organização sistemática. Era uma espécie de percepção, anterior à interpretação e ao julgamento. A tendência marcante da crítica impressionista, de que foram expoentes figuras como Anatole France e Walter Pater, era sair do objeto para o sujeito, mudar ou transferir o interesse para o crítico, suas impressões e emoções, despertadas pela leitura ou escuta de uma obra de arte. No entanto, no contexto brasileiro, o impressionismo crítico havia degenerado em torneios opiniáticos ou meros registro de impressões, sem conteúdo doutrinário nem base crítica, e se havia confundido com a simples resenha ou recensão crítica. Insatisfeito com essa situação da crítica literária no Brasil e imbuído de uma série de idéias desenvolvidas em cursos e pesquisas que realizou na Universidade de Columbia, em Nova York – cidade onde vivera no período de 1942 a 1947 como Secretário de Redação da revista Seleções do Reader’s Digest – Afrânio Coutinho desencadeou, a partir de 1948, intensa campanha de renovação, primeiro na seção denominada “Correntes Cruzadas” do Diário de Notícias do Rio de Janeiro, e em seguida em diversos livros que veio a publicar ao longo de sua carreira, dentre os quais Por uma crítica estética (1953), Correntes Cruzadas (1953), Da crítica e da nova crítica (1957), A crítica (1959), Crítica e poética (1968) e Crítica e críticos (1969). Nessa campanha, Afrânio advogava veementemente um tipo de crítica intrínseco ao próprio fato literário, que partisse do texto enquanto tal, reconhecendo e respeitando sua autonomia, e que o enfocasse à luz de pressupostos de ordem fundamentalmente estética. Era a derrocada do historicismo em seu sentido tradicional, que abordava a obra literária sempre por um movimento do contexto para o texto, e o abandono ao impressionismo crítico – ao “achismo”, como ele costumava dizer – em nome de um labor científico, técnico e meticuloso, que colocava a crítica brasileira ao lado das grandes correntes que se vinham desenvolvendo, havia já algumas décadas, na Europa e nos Estados Unidos. Com base em pressupostos dessas correntes, dentre as quais destacamos o Formalismo Russo, a Estilística Espanhola e Teuto-Suíça, o Aristotelismo de Chicago, a Analyse de Texte francesa e sobretudo o New Criticism anglo-americano, Afrânio Coutinho se bateu com ardor pela primazia do texto literário, enfatizando, na abordagem da obra, a necessidade de se focalizarem os seus elementos estruturais e ergocêntricos, e 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20. 10 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL a harmonia do conjunto, responsáveis pelo que os formalistas eslavos designaram de “literariedade”. Além disso, chamou atenção para a importância de o analista aproximar-se o máximo possível do texto, a fim de evitar o subjetivismo acentuado que tanto caracterizara a crítica de cunho impressionista. Todas essas correntes acham-se presentes em maior ou menor escala na Nova Crítica introduzida por Afrânio Coutinho no meio intelectual brasileiro, mas é preciso lembrar que a sua doutrina não se atinha exclusivamente a nenhuma delas. A Nova Crítica nunca foi, como se chegou erroneamente a afirmar, mero transplante dos princípios do New Criticism anglo-americano ao contexto brasileiro, e sim uma tendência com feição própria, que abarcou métodos e técnicas de várias origens, tendo tido inclusive como precursores figuras como Machado de Assis e Mário de Andrade, que desenvolveram estudos críticos calcados na primazia do texto e exploraram com rigor meticuloso os elementos intrínsecos das obras que analisaram. A ênfase posta por Afrânio Coutinho no primado do texto literário foi, aliás, uma questão que gerou certo mal-entendido no meio intelectual brasileiro, à época ainda muito aferrado aos métodos tradicionais, máxime aos que se voltavam para uma perspectiva extrínseca. Propor uma abordagem crítico-teórica que parta fundamentalmente do texto não significa, de modo algum, ignorar o contexto históricocultural em que a obra fora produzida. O que se nega na Nova Crítica é o enfoque extrínseco, que vê a obra como reflexo e não como realidade autônoma; a relação com o contexto, ao contrário, é uma etapa indispensável de qualquer processo crítico. A obra para a Nova Crítica é um conjunto harmonioso dos diversos elementos que a compõem, mas ela se acha sempre em relação dialética com o contexto em que surge. Combate-se na Nova Crítica o historicismo no sentido definido anteriormente, mas se respeita plenamente a história; rejeita-se do mesmo modo uma abordagem puramente extrínseca, mas se defende e se realiza, o estudo das relações da obra com o contexto sócio-político e econômico ao qual ela se encontra vinculada. A exigência de rigor metodológico na abordagem do fenômeno literário acha-se relacionada a uma tendência ocorrida no Brasil em meados do século XX, que foi a passagem da crítica literária do periodismo para o meio acadêmico, e das mãos dos críticos em geral para as dos professores e pesquisadores universitários. Até esse momento, a crítica literária era exercida no Brasil de duas maneiras: ora como crítica no 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20. 11 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL sentido estrito, em livros ou estudos, ora sob a forma militante, semanal, enciclopédica, na imprensa, na maioria dos casos em folhetins ou rodapés. Ao primeiro tipo reservavase a denominação de “ensaio” e ao segundo a de “crítica”, o que gerou à época uma série de equívocos, levando esta última a ser vista como algo superficial, e de caráter apologético ou restritivo, à maneira da mera resenha. Imbuído do espírito acadêmico resultante de sua formação, Afrânio Coutinho se empenhou na defesa da especialização da crítica literária como uma disciplina científica e autônoma, mostrando como o seu exercício não se coadunava com o espírito mais leve da imprensa diária. A crítica, para ele, deveria estar voltada para a cátedra, a revista especializada, o livro, como era o caso do chamado “ensaio”, e estar calcada em princípios e métodos rigorosos; à recensão ou resenha, importante também, mas de cunho mais leve, informativo, e exercida de modo diletante, ficariam destinadas as páginas dos jornais. Sua defesa teve um papel expressivo na passagem da crítica para as mãos especializadas do scholar e na sua futura institucionalização no meio universitário. A tentativa de sistematização dos elementos que integram a estrutura da obra literária, somada à busca de rigor na abordagem do texto, levou Afrânio Coutinho a uma preocupação com a teoria da literatura, que ele procurou explicitar em vários de seus livros, em especial no volume Notas de teoria literária (1976). O livro é um resumo das principais teorias existentes sobre os pontos fundamentais do estudo da Literatura, em nível bastante elementar, mas procurando ser informativo e, ao mesmo tempo, tentando orientar o estudante no intricado dos problemas, sem acumulá-lo com excessos doutrinários. Embora voltado primordialmente para o docente e o estudante de Letras, o livro pressupõe uma filosofia da Literatura, bem como uma teoria de seu ensino. Seu autor parte da idéia de que o aprendizado da Literatura não deve ser subordinado ao do vernáculo, como fora prática corrente no Brasil, e, portanto, deve estar centrado nos textos. Além disso, o que se visa não é a fornecer apenas informação de ordem histórico-cultural, como se fez durante longa data, mas a desenvolver o gosto pela leitura e a apreciação estética. Essa defesa do primado do texto, presente tanto na Nova Crítica quanto no âmbito da Teoria Literária, encontrou também terreno fértil na esfera da historiografia literária, com a publicação, entre 1955 e 1959 de A Literatura no Brasil, obra coletiva lapidar de história literária (em quatro volumes na primeira edição), idealizada, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20. 12 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL planejada, dirigida e, em grande parte, escrita por Afrânio Coutinho, com base em um método inteiramente novo – o periodizador estilístico. Deixando de lado a perspectiva extrínseca, remanescente do historismo lansoniano, e adotando como método em sua estruturação a periodização estilística, baseada na primazia do texto literário e numa abordagem centrada no caráter estético da obra, A Literatura no Brasil pôs em prática o projeto desenvolvido por seu idealizador na campanha que desencadeara em prol da Nova Crítica e do estudo da literatura baseado primordialmente nos elementos integrantes da composição da própria obra, e revolucionou completamente o conceito de historiografia literária no Brasil. Além disso, com o seu caráter coletivo – os capítulos específicos sobre autores ou movimentos literários foram confiados a especialistas distintos sob a supervisão de Afrânio Coutinho –, a obra adquiriu uma abrangência extraordinária, oferecendo um panorama crítico-evolutivo da literatura brasileira desde suas primeiras manifestações até os dias em que foi publicada, com estudos de profundidade sobre figuras ou movimentos específicos, até então nunca vistos em obras de história literária no Brasil. Seus capítulos foram estruturados com base em critérios intrínsecos à área dos estudos literários e divididos em subcapítulos específicos, voltados para tópicos ou autores, nem sempre restritos ao chamado “cânone” da literatura brasileira. Na obra, que se foi ampliando nas edições subseqüentes, sob a organização do mesmo autor, há estudos específicos sobre folclore, literatura oral e popular, sobre gêneros como o ensaio, a crônica e o drama, e modalidades como a chamada “literatura infanto-juvenil”, e há estudos de teor comparativo como “literatura e filosofia” e “literatura e artes”. Estes estudos são em geral produzidos por autores diversos e conseqüentemente oferecem no conjunto da obra uma multiplicidade de visões que complementam o cunho abrangente que lhe quis dar o seu idealizador. Com o sucesso de sua primeira edição, A Literatura no Brasil teve até o presente mais seis, revistas e atualizadas, e encontra-se agora em sua sétima edição, em seis volumes, publicada em 2004 pela Global, de São Paulo, já após seu falecimento. Mas observe-se que os capítulos introdutórios de cada parte do livro, escritos todos eles por Afrânio Coutinho, foram reunidos por ele mesmo em um volume, a Introdução à Literatura no Brasil, publicado pela primeira vez em 1959, mas que já conta com mais de quinze reedições e se encontra traduzido para o inglês e o espanhol. Este livro, que 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20. 13 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL assenta as bases da periodização estilística levada a cabo pelo autor, é obra indispensável para a compreensão de sua proposta inovadora e constitui um item fundamental na produção bibliográfica do autor. Outro ponto crucial dos estudos de Crítica e História Literária realizados por Afrânio Coutinho foi o movimento que desencadeou para demonstrar que a literatura brasileira já atingira a plenitude de sua personalidade, tanto na lírica quanto na ficção, em conseqüência do desenvolvimento de uma “tradição afortunada”, proveniente dos primórdios da vida nacional. Essa tradição, que constitui objeto de estudo de um dos livros mais expressivos de sua carreira, publicado em 1968 com este título – A tradição afortunada – consistiu na presença na literatura brasileira, desde suas primeiras manifestações (cite-se como exemplo a obra satírica de Gregório de Matos), do que Machado de Assis cunhou de “instinto de nacionalidade”, que veio tomando corpo ao longo dos anos até configurar-se em verdadeiro processo de descolonização literária, consolidado a partir do Romantismo. Desse momento em diante, segundo Afrânio Coutinho, a literatura brasileira já apresenta fisionomia própria, que nunca mais se dissipa. Ao contrário, vem ganhando em nitidez à medida que avança em seu percurso, sobretudo no século XX, após a eclosão do Modernismo. Com base nas primeiras manifestações da literatura produzida no Brasil, Afrânio Coutinho desenvolveu a tese de que as raízes de nossa literatura se encontram no barroco, estilo que aqui aportou pelas mãos dos jesuítas, mas que se modificou substancialmente no contacto com a nova terra, dando origem a algo novo, com uma feição bastante distinta da de seu contexto de origem. O autor combate a historiografia literária lusa que considerava a literatura produzida no Brasil no período colonial como ramo da portuguesa, e procura mostrar como desde Anchieta, passando por figuras como Vieira e principalmente Gregório de Matos, essa produção já apresentava não só traços que a distinguiam da literatura da metrópole, como sobretudo uma preocupação em marcar a sua singularidade, que se expressa, por exemplo, através das obras dos autores citados ou de figuras como a do Aleijadinho, no âmbito das artes plásticas. Tais questões acham-se presentes em seus livros Conceito de literatura brasileira (1960) e O processo de descolonização literária (1983), mas seus estudos sobre o barroco já se haviam iniciado desde a tese com que obteve a cátedra de Literatura Brasileira no 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20. 14 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL Colégio Pedro II em 1951 (Aspectos da literatura barroca), e depois se reuniram no volume Do barroco, publicado pela Tempo Brasileiro em 1994. Assim como na produção literária, também na esfera dos discursos sobre a literatura a preocupação com a busca de identidade nacional já se fazia sentir desde o período colonial, acentuando-se com o Romantismo e posteriormente com o movimento modernista. Mas, ao largo de todo esse tempo permaneceu também viva no Brasil uma tendência oposta de admiração quase cega dos modelos europeus, que eram para cá transplantados e freqüentemente apenas adaptados ao novo contexto. Contra esse colonialismo mental, esse sentimento de inferioridade, oriundo do processo de colonização, Afrânio Coutinho se bateu ardorosamente em muitos de seus textos, pregando a formação de uma consciência voltada para a realidade brasileira (vide A polêmica Alencar-Nabuco, 1965, e Caminhos do pensamento crítico, 1964). Para o autor, assim como era preciso procurar em nossa literatura não a semelhança com a européia, mas a diferença que a caracterizava e lhe conferia singularidade, era mister também que se lutasse, como afirmava assiduamente, “por uma crítica brasileira”, pela consolidação de um pensamento, ou de um corpus crítico-teórico, calcado sobre o húmus dessa terra. A preocupação de Afrânio Coutinho com a constituição de uma crítica literária brasileira e ao mesmo tempo científica e meticulosa, que tem como veículo o ensaio acadêmico e não apenas a resenha jornalística, somada aos seus muitos anos de experiência docente em nível tanto secundário quanto superior, se refletiu também no ensino da Literatura, onde, do mesmo modo, introduziu verdadeira revolução, marcada pela defesa do estudo centrado no texto literário em vez de na história da literatura, como era praxe ainda na maioria das instituições brasileiras. Era preciso, segundo ele, desenvolver no estudante o gosto pela literatura, e isso só era possível com o contacto direto com o texto literário, e não com uma listagem estéril de nomes e datas. Ao aluno competia, antes de mais nada, a leitura dos textos, e ao professor a orientação em sala de aula, que deveria partir de discussões conjuntas sobre os textos selecionados, visando a sistematizações teóricas e reflexões críticas. Ao aluno brasileiro faltava, segundo ele, saber ler, no sentido de extrair de um texto o fundamental, e pensar, refletir, sobre o material em questão. E era na orientação à reflexão crítica e teórica que residia o papel do professor. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20. 15 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL O papel de docente de Afrânio Coutinho fica bastante evidenciado, não só por sua atuação amplamente reconhecida em sala de aula e pelas palestras e conferências que pronunciou, muitas delas publicadas em separatas ou em periódicos no Brasil e no exterior, como também pela quantidade e qualidade de teses e dissertações que orientou, e de obras de ex-discípulos que prefaciou. Afrânio Coutinho era, além de crítico meticuloso, um entusiasta da produção literária e crítica que se fazia no Brasil, e sua contribuição como divulgador da obra de autores novos e de estudiosos da literatura foi significativa, conforme dão testemunho as obras de referência que coordenou e publicou, dentre as quais Brasil e brasileiros de hoje (1961), Crítica e críticos (1969) e a Enciclopédia de Literatura Brasileira, esta última já de 1989. Como organizador de edições de autores da literatura brasileira, Afrânio Coutinho apresenta também ampla produção, tendo elaborado entre outras as obras completas de Machado de Assis, Euclides da Cunha, Jorge de Lima e Carlos Drummond de Andrade, a obra poética de Vinícius de Morais, os romances completos de Afrânio Peixoto, a obra crítica de Araripe Júnior, os estudos literários de Alceu Amoroso Lima, e numerosas edições críticas de obras de autores como Ambrósio Fernandes Brandão, Manuel Antônio de Almeida, José do Patrocínio, Rocha Pombo, Viriato Correia, Lindolfo Rocha, Rodolfo Teófilo, Ribeiro Couto, Ascendino Leite e Adonias Filho, entre outros. Em todos esses casos, Afrânio Coutinho, além da organização da obra, escreveu substanciais estudos críticos introdutórios que constituem peças indispensáveis da fortuna crítica dos autores em questão, como é o caso do texto introdutório das Obras completas de Machado de Assis, autor por quem o crítico nutria especial admiração e sobre o qual escreveu os livros A filosofia de Machado de Assis (1940) e Machado de Assis na literatura brasileira (1960), ambos posteriormente reunidos em edição da Academia Brasileira de Letras (1990). O envolvimento de Afrânio Coutinho com o ensino foi tal que, além das cátedras que ocupou, primeiro no Colégio Pedro II e depois na Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, participou de inúmeros colegiados, inclusive o Conselho Federal de Educação. E no âmbito da universidade, foi fundador, nesta última, de uma Faculdade de Letras, moderna e dinâmica, que se tornou modelo à época em todo o país. Os cursos superiores de Literatura eram até então no Brasil ministrados nas Faculdades de Filosofia, ou de Ciências Humanas em geral, não sendo 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20. 16 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL dotados assim de espaço próprio para desenvolver-se. Afrânio Coutinho, imbuído da experiência que vivera no exterior, onde as Escolas ou Departamentos de Letras já haviam conquistado ampla e reconhecida tradição, lutou por torná-los independentes, e lançou a pedra fundamental de uma instituição hoje plenamente consolidada. Além disso, instituiu também nessa Faculdade seis Cursos de Pós-Graduação em diversas áreas das Letras, atualmente bastante conceituados, e construiu, entre outras coisas uma biblioteca – orgulho da instituição – que possui acervo respeitável e raridades incalculáveis. O interesse pelas bibliotecas sempre foi, aliás, uma das tônicas da carreira de Afrânio Coutinho. Além da biblioteca José de Alencar, da Faculdade de Letras da UFRJ, que ele criou, acrescentando a um núcleo básico proveniente da antiga Faculdade Nacional de Filosofia um grande número de bibliotecas particulares especializadas de professores sobretudo da casa que ele se empenhou em adquirir para a Faculdade quando fora seu diretor, Afrânio Coutinho construiu ao longo de toda sua vida uma extraordinária biblioteca particular. Esta biblioteca serve às áreas de Literatura Brasileira e Estrangeiras, Teoria e Crítica Literárias, Filosofia, História, Educação, Estudos Brasileiros, Lingüística, Filologia, Sociologia, Arte Brasileira e Universal e Estudos Culturais, entre outras, e inclui, além do seu acervo básico, um rico manancial de obras de referência, primeiras edições hoje raras, manuscritos de autores como Machado de Assis, Raul Pompéia, José de Alencar, Castro Alves e Afrânio Peixoto, coleções completas de revistas e periódicos nacionais e estrangeiros, arquivos de recortes de jornais de e sobre autores brasileiros e farto material iconográfico. Esse acervo, que no princípio, ainda reduzido, ocupava o terceiro pavimento da residência de Afrânio Coutinho, em Ipanema, foi-se avolumando de tal modo, que ao largo da década de 1970 estendeu-se a toda a casa, empurrando o seu morador para um pequeno cômodo na parte superior, que seus amigos jocosamente qualificaram de “cela de monge”. Ali, em meio a pilhas de livros e jornais, lendo e escrevendo sem cessar, Afrânio Coutinho concebeu a idéia de abri-la para o público, transformando a própria residência em um centro de pesquisas literárias, onde se realizariam, além da consulta à biblioteca, atividades de diversa sorte, englobando desde cursos variados até a organização de publicações. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20. 17 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL Surgida em 1979 e extinta em 1991 pela carência de recursos para mantê-la, a Oficina Literária Afrânio Coutinho (OLAC) floresceu na década de 1980, tendo-se tornado ponto de referência na vida cultural da cidade e uma instituição de prestígio, amplamente reconhecida no Brasil e no exterior. Nela se realizaram cursos em todos os setores do conhecimento ligados à literatura e às artes; por ela passaram especialistas de reputação internacional. De suas oficinas de literatura, a atividade que deu nome à casa, surgiram novos poetas e ficcionistas; das pesquisas ali executadas vieram a lume publicações. Seus arquivos de pastas de recortes que Afrânio Coutinho colecionou desde o início de sua carreira – uma das maiores preciosidades ali existentes – foram largamente consultados, sobretudo para a realização de teses e dissertações universitárias, e seus livros foram amplamente manuseados pelo público. Várias obras de autores brasileiros esquecidas ou pouco conhecidas do público foram revalorizadas na OLAC (lembremo-nos pelo menos da publicação das Obras de Raul Pompéia em dez volumes, e das obras de Otávio de Faria), e publicou-se em 1989 a Enciclopédia de Literatura Brasileira, elaborada durante anos por uma equipe de pesquisadores sob a sua orientação. Esta enciclopédia, que abrange a Literatura Brasileira desde o início da colonização até os dias atuais, teve uma segunda edição, ampliada e atualizada, em 2001. Três anos após a extinção da OLAC, a Biblioteca de Afrânio Coutinho, embora ainda amplamente freqüentada, foi vendida à UFRJ, com o propósito de ser abrigada, em ala à parte, anexa à Biblioteca José de Alencar, da Faculdade de Letras. Contudo, devido ao número elevado de itens que compunham o acervo, ela teve em sua maior parte de ser incorporada à Biblioteca da Faculdade, cada livro caracterizado com o exlibris da antiga OLAC, e na ala nova, então construída, foram instaladas as obras raras, edições especiais, as publicações do próprio autor e as obras assinadas ou com dedicatória dirigida a ele. Além disso, foi criado na ala designada a essas publicações um Centro de Estudos, batizado de Centro de Estudos Afrânio Coutinho (CEAC), com a finalidade de dar continuidade aos projetos interrompidos da OLAC e iniciarem-se outros nas áreas de Humanidades em geral, com ênfase especial sobre literatura e cultura. O CEAC vem sendo hoje bastante consultado pelo público e das pesquisas em seu acervo já saíram as primeiras publicações. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20. 18 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL Onze anos fez, em 2011, ano do centenário de seu nascimento, que Afrânio Coutinho faleceu, e sua contribuição aos estudos literários no Brasil segue viva e rendendo frutos preciosos. Afrânio Coutinho foi escritor, professor, pesquisador, jornalista, educador, humanista, bibliófilo, criador da primeira Faculdade exclusivamente de Letras do país, e membro da Academia Brasileira de Letras, mas foi antes de tudo um homem de seu tempo e lugar, dotado de grande talento filosófico, que revolucionou, com sua escrita fina, a Crítica, a Teoria e a Historiografia literárias, e mudou o rumo do ensino das Letras no Brasil. BIBLIOGRAFIA COUTINHO, Afrânio. Correntes cruzadas. Rio de Janeiro: A Noite, 1953. ________. Conceito de literatura brasileira. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. ________. A Crítica. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1959. ________. Crítica e críticos. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1969. ________. Crítica e teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Fortaleza: Edições UFCE -- PROED, 1987. ________. Crítica e poética. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. ________. Da crítica e da nova crítica. 2. ed. 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Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20. 19 3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL ________. A tradição afortunada (O espírito de nacionalidade da crítica brasileira). Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. ________. Universidade, instituição crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. ________, org. Brasil e brasileiros de hoje; enciclopédia de biografias. 2 vols. Rio de Janeiro: Foto Service, 1961. ________, org. Caminhos do pensamento crítico. 2. ed., 2 vols. Rio de Janeiro: Pallas; Brasília: INL, 1980. ________, org. A Literatura no Brasil. 7. ed., 6 vols. São Paulo: Global 2004. ________ & J. Gallante de Souza, orgs. Enciclopédia de Literatura Brasileira. 2 vols. Rio de Janeiro: FAE, 1989. Lima, Alceu Amoroso et al. Miscelânea de estudos literários. Homenagem a Afrânio Coutinho. 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