UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Universitas REVISTA FANORPI DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA N. 2, 2013 SANTO ANTÔNIO DA PLATINA Universitas Santo Antônio da Platina n. 2 p. 1-235 UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 2013 © 2013 FANORPI/UNIESP – FACULDADE DO NORTE PIONEIRO Todos os direitos desta edição reservados à Editora FANORPI. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio, guardada pelo sistema retrieval ou transmitida, sem prévia autorização por escrito. As opiniões emitidas nos artigos, bem como a referência a outras publicações, são da exclusiva responsabilidade dos autores. Solicita-se permuta. We ask for exchange. Piedese canje. Faculdade do Norte do Paraná – FANORPI/UNIESP BR-153, Km 40 – Parque das Exposições Rua Dr. Alício Dias dos Reis Santo Antônio da Platina, PR – CEP 86430-000 Fone: (43) 3534-4177 – E-mail: [email protected] UNIVERSITAS – Revista FANORPI de Divulgação Científica / FANORPI/UNIESPFaculdade do Norte Pioneiro. – n. 2 (2013) 050 Santo Antônio da Platina: FANORPI/UNIESP, 2013 UN588 Publicação anual ISSN 2316 1. Administração – Periódicos. 2. Contabilidade – Periódicos. 3. Comunicação Social – Periódicos. 4. Direito – Periódicos. 5. Pedagogia – Periódicos. 6. Marketing – Periódicos. 7. Modas – Periódicos. – 8. Psicologia – Periódicos. I. FANORPI/UNIESP-Faculdade do Norte Pioneiro. CDD 050.05 CDU 025(05) UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Universitas UNIVERSITAS é uma publicação da FACULDADE DO NORTE PIONEIRO, sediada na cidade de Santo Antônio da Platina, PR, com o objetivo de divulgação de trabalhos dos corpos docente e discente da instituição, bem como de convidados de outros meios acadêmicos, da região e de todo o país. CONSELHO EDITORIAL Nelson Borges (EDITOR) – FANORPI Christóvam Castilho Jr. – FANORPI/FASC/OAPEC Vanessa Padilha Catossi – FANORPI Mateus Faeda Pellizzari – FANORPI Mércia Miranda Vasconcellos – FANORPI NÚCLEO DE APOIO TÉCNICO Rondinele Aparecido Ribeiro – Revisão da língua portuguesa Newton de Camargo Braga – Editoração e revisão de inglês UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 FACULDADE DO NORTE PIONEIRO – FANORPI DIRETORA Maria das Graças Ferreira de Campos Zurlo COORDENADORES DOS CURSOS DE GRADUAÇÃO ADMINISTRAÇÃO Neimar Leonardi Minardi CIÊNCIAS CONTÁBEIS Nilson José Martins COMUNICAÇÃO SOCIAL Marcel Fonseca Carvalho DESIGN DE MODAS Eliza Ogawa Kubo DIREITO Mércia Miranda Vasconcellos Vanessa Padilha Catossi MARKETING Neimar Leonardi Minardi PEDAGOGIA Vânia Regina Barbosa Flauzino Machado UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 SUMÁRIO Contribuições da psicanálise e das psicoterapias de orientação psicoanalítica em um caso de adicção – Ana Carolina Barreto BRAGA . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Aplicabilidade direta das normas de direito fundamental às relações privadas – Lucyellen Roberta Dias GARCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 Acesso à justiça em face à litigância de má-fé por meio da assistência judiciária gratuita – Danielle Augusto GOVERNO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 A incidência do ICMS na circulação de mercadorias via internet – Nayara Marques LONGHINI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 Casamento entre pessoas do mesmo sexo à luz da Constituição Federal e da jurisprudência – Marlon Franco MACIEL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 103 Sobre guris e pivetes: as canções de Chico Buarque e o Estatuto da Criança e do Adolescente – Marilu Martens OLIVEIRA e Vívian Martens Oliveira Banks dos SANTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 Considerações acerca do universo machadiano: Memórias Póstumas de Brás Cubas na literatura e no cinema – Rondinele Aparecido RIBEIRO . . . . . 145 Ensino superior para quê – Maria Suely Fernandes da SILVA . . . . . . . . . 163 Justiça fiscal como fonte de promoção da dignidade no estado constitucional – Bruna Geovana Fagá TIESSI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181 A impossibilidade do reexame necessário de sentenças ilíquidas em Juizados Especiais Federais e a Súmula 490 do STJ – Tiago TONDINELLI . . . . . 203 O direito à educação em consonância com o princípio da dignidade humana – Tânia Maria ZANETTI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215 Normas para publicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 EDITORIAL Olá, leitor. Prazerosamente, eis-nos, uma vez mais, retomando fala sobre o mesmo tema, ao fim e ao cabo, sem muitas variações. Seria tarefa difícil – senão impossível –, tentar dimensionar a satisfação do Corpo Editorial da nossa revista UNIVERSITAS consequente à recepção de seu número inaugural. Em outra oportunidade, em desabafo incontido, já disséramos: para a pesquisa, o momento que vivemos é de perplexidade e desencanto. Os raros cenáculos que se dedicam ao estudo dos grandes dilemas sociais e científicos e as escassas publicações que divulgam seus resultados representam, cada vez mais, exceções nunca desejadas no campo investigatório. Não sabemos exatamente para onde vamos. Com alguma segurança, temos a constatação de que a história nos trouxe até este ponto. E daí? Seria isso suficiente? Não! É muito pouco contentar-se com “estar”, sem “ser”. Comodismo e estagnação grassam em todos os setores da vida acadêmica, se a compararmos com alguns países. Por tal negativo prisma, uma conclusão avulta com clareza: se as comunidades universitárias pretendem um futuro com garantias, não pode ser pelo prolongamento do presente. E é “por nos alimentarmos diariamente do tormento de saber pouco que não temos a faculdade do descanso, ou a prerrogativa da acomodação, e, como expiação, sempre nos deverá ser negado o direito de viver em paz, até que adotemos uma nova postura”, advertiu com propriedade o professor Fachin. A célere correção da atual rota, a caminho do nada, é necessária e urgente, sem desperdício das alternativas que se nos apresentam. A assunção de compromissos definitivos com o estudo e a pesquisa equivalem a um pacto com o amanhã, que não pode nem deve esperar mais. Não é outra a pregação que devemos ter, em constante busca de eco. Levados pelo propósito de manter vivo um centro de recepção, triagem e divulgação de produções científicas, nas mais diferentes áreas, logo no início o bom senso nos indicou linha editorial a ser seguida: abertura de espaço para professores e alunos, tanto da FANORPI como de outras instituições, bem como de colaboradores em áreas correlatas. Nesse passo, impulsionados por esse ideal é que UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 trazemos a público nosso segundo número, graças à onipresença de nossos abnegados colaboradores, a quem, na oportunidade, deixamos expressos nossos agradecimentos. Mais uma vez nos fizemos ao mar, com absoluta consciência das dificuldades que iríamos encontrar. E foram muitas, em todos os sentidos. Entretanto, independentemente do mau tempo, de ventos contrários, da alternância entre tormentas e calmarias, do cansaço deixado pela travessia e mesmo do canto das sereias que tentaram desvios, graças a nossos intimoratos argonautas, uma vez mais o audacioso barco da UNIVERSITAS chegou a seguro e bom porto. Com isso, uma vez mais restou provado que, dentre todas, a maior força que existe ainda é aquela que nasce da união motivada, como a que sempre encontramos na comunidade acadêmica da FANORPI. Nossa UNIVERSITAS, a princípio despretensiosa, buscando apenas preencher lacuna no âmbito universitário, desde logo se constituiu em precioso agente catalisador de produções científicas, responsável pelo nascimento de uma equipe de professores, alunos, profissionais liberais e pesquisadores das mais diversas áreas. Nessa feliz rota, com agradável surpresa, revelou um grupo de estudiosos, interessados em colaborar efetivamente para a consolidação de uma nova postura educacional que, além de científica, vem demonstrando louvável preocupação didático-pedagógica em suas pesquisas. Assim, nesta era em que, exitosa experiência em Londres nos dá conta de que robôs preparam comida e o delivering é feita por drones (veículos aéreos não tripulados); a nanotecnologia vem dominando a pesquisa científica, em busca de melhor qualidade de vida para o homem, já com resultados auspiciosos; em que o livro impresso – isso não sem muito saudosismo –, aos poucos vai cedendo lugar aos avanços da informática, enfim, diante de uma verdadeira revolução silenciosa, em todos os setores, é profundamente gratificante o lançamento de mais um número de uma revista científica. Esperamos – em reiteração – a mesma simpática acolhida e proveito, ora acompanhados de nossos agradecimentos e votos de boa leitura. Nelson Borges Editor UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE E DAS PSICOTERAPIAS DE ORIENTAÇÃO PSICOANALÍTICA EM UM CASO DE ADICÇÃO Ana Carolina Barreto Braga* RESUMO Este artigo inspirou-se em estudo desenvolvido a partir de um caso clínico, cujos atendimentos tiveram início em abril de 2012, no Centro de Educação para a Saúde (CEPS), do Centro Universitário Filadélfia (UNIFIL). Considerando a incidência da toxicomania, sua demanda clínica, a necessidade de compreender as diversas formas de manifestações sintomáticas decorrentes dessa prática e as possíveis maneiras de manejá-las, intentou-se demonstrar a importância e a contribuição da Psicanálise e psicoterapias de orientação psicanalítica como tratamento que possibilita a recuperação, abstinência e cura de si mesmo do sujeito adicto. A apreensão do fenômeno toxicomania realizou-se pela revisão de literatura, com o uso de referencial da Psicanálise e da Psicossomática psicanalítica. Essa é uma pesquisa qualitativa que se utiliza do método da construção do caso clínico. Serão descritos os principais conceitos psicanalíticos utilizados para compreensão do fenômeno da toxicomania e na análise do caso clínico. Palavras-chave: Psicanálise. Psicoterapia. Toxicomania. Adicção. ABSTRACT This article was inspired by a study from a clinical case, whose attendance began in April 2012, at the Center for Health Education (CEPS) of the University Center Philadelphia (UNIFIL). Considering the incidence of drug addiction, its clinical demand, the need to understand the various forms of symptomatic manifestations resulting from this * Especialista em Residência em Psicologia Clínica e da Saúde, pelo Centro Universitário Filadélfia (UniFil, 2013); graduada em Psicologia (UniFil, 2011) [email protected] UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 practice, and the possible ways to handle them, an attempt to demonstrate the importance and contribution of psychoanalysis and psychoanalytic psychotherapy as a treatment that enables the recovery, abstinence and self-healing of the individual addict. The seizure of the addiction phenomenon took place by means of literature review, using the reference of Psychoanalysis and Psychoanalytic Psychosomatics. This is a qualitative research which uses the method of construction of the clinical case. It will describe the major psychoanalytic concepts used in the understanding of the phenomenon of drug addiction and in the analysis of the clinical case. Key words: Psychoanalysis. Psychotherapy. Drug addiction. Addiction. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE E DAS PSICOTERAPIAS DE ORIENTAÇÃO PSICOANALÍTICA EM UM CASO DE ADICÇÃO Ana Carolina Barreto Braga 1 INTRODUÇÃO Este artigo baseia-se em caso clínico cujos atendimentos foram iniciados em abril de 2012 no Centro de Educação para a Saúde (CEPS), do Centro Universitário Filadélfia (UNIFIL), e contou com a valiosa supervisão da Dra. Denise Hernandes Tinoco. O CEPS realiza atendimentos de Psicologia e Psiquiatria, com psicólogos residentes, credenciados pelo SUS. Considerando a incidência do fenômeno toxicomania e sua demanda clínica, a necessidade de compreender as diversas formas de manifestações sintomáticas que surgem atualmente nessa prática, dentre elas, o fenômeno da drogadição, e sobre as possíveis maneiras de manejá-las, levanta-se o questionamento: qual a importância e a contribuição da Psicanálise e das psicoterapias de orientação psicanalítica como tratamento que viabiliza a possibilidade de recuperação, abstinência e a cura de si mesmo na questão da drogadição? Foi em torno desta questão que o presente estudo se desenvolveu no intuito de, a partir das respostas aqui encontradas, contribuir e enriquecer a prática de todos os profissionais envolvidos com essa problemática e que utilizam a Psicanálise como referencial teórico para suas intervenções e propostas de tratamento do sujeito adicto. Dessa forma, tornam-se relevantes novos estudos que abordam o complexo fenômeno toxicomania na perspectiva psicanalítica a partir da prática clínica e suas propostas de tratamento e recuperação do sujeito considerado como dependente de drogas no contexto atual. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Pretende-se demonstrar neste estudo como a Psicanálise e as psicoterapias de orientação psicanalítica podem contribuir no tratamento, possibilitar a recuperação, sustentar o período da abstinência e oferecer outra saída para a questão da toxicomania, a partir da elaboração de um caso de adicção, que serviu de referência para a análise e conclusão desta pesquisa. O objetivo geral deste trabalho é fazer um estudo psicanalítico do fenômeno da toxicomania, promovendo um recorte nesse campo para promover um marco clínico e teórico a partir do qual seja possível discutir suas possíveis contribuições no tratamento dos sujeitos adictos. Como objetivo específico, demonstrar por meio do método de pesquisa qualitativo na construção do caso clínico – fundamentado teoricamente desde os pressupostos freudianos e de outros conceituados autores da psicanálise – a importância e a contribuição da Psicanálise e da psicoterapia de orientação psicanalítica, como pilares teóricos e metodológicos que visam a ampliar as possibilidades de recuperação, abstinência e cura de si mesmo. 2 METODOLOGIA Este trabalho é uma pesquisa qualitativa que se utiliza do método da construção do caso clínico. Nele, serão descritos os principais conceitos psicanalíticos utilizados para a compreensão do fenômeno da toxicomania e na análise do caso clínico desse estudo. Os dados de pesquisa utilizados foram os prontuários da paciente, contendo o histórico clínico, a evolução do tratamento e informações sobre o núcleo familiar. Também foram utilizados os relatórios de algumas sessões e registros de memória de entrevistas realizadas com sua mãe, bem como relatos da própria paciente. Todos esses elementos foram relacionados à problemática discutida neste trabalho e analisados por meio das técnicas psicanalíticas de atenção flutuante, análise da transferência, contratransferência e das defesas egóicas da paciente. A apreensão do fenômeno toxicomania realizou-se por meio da revisão bibliográfica, utilizando o referencial da Psicanálise e da Psicossomática psicanalítica. Muitos autores seguiram a mesma direção para a compreensão dessa problemática, bem como seus UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 desdobramentos, utilizando da teoria psicanalítica desde sua fundação até os dias de hoje. De acordo com Chaves (2006, p. 108), o conceito de transferência sofre transformações ao longo da obra de Freud aproximando-se cada vez mais do centro da experiência psicanalítica. Segundo a autora, o fenômeno apresenta-se em três facetas: repetição, resistência e sugestão. Como repetição, atesta a existência do inconsciente, revela seu funcionamento e permite observá-lo em seu estado bruto não traduzido em palavras. A faceta da repetição ainda inclui o analista numa das séries psíquicas constituídas pelo analisando, que, a partir da experiência analítica, deve ser tomado como uma atualização das suas relações primordiais. Freud (1996c, p. 445) ilustrou o fenômeno quando comparou a transferência à camada de troca de uma árvore, entre a madeira e a casca, a partir do qual deriva a nova formação de tecidos e o aumento da circunferência do tronco. Como resistência, torna-se um obstáculo à análise por interromper as associações, permitindo ao paciente evitar recordar os conteúdos recalcados, repetir marcas das primitivas relações afetivas com o analista, e atuar no setting terapêutico. Por sugestão, entende-se a forma de influir sobre o paciente mediante os fenômenos transferenciais, que contribuem para a influência do analista sobre o paciente, para que este seja capaz de suportar os sofrimentos desagradáveis e persistir no tratamento (CHAVES, 2006, p. 108-9). Nas palavras da autora: A cura psicanalítica se realizará fundamentalmente no campo da transferência. Se a finalidade da análise é propiciar a emergência da simbolização, ela se realiza mediante a análise da resistência, pela colocação da repetição no campo da transferência, onde a significação encontra a condição de possibilidade para se articular. O campo analítico está assim circunscrito entre o sentido e a força pulsional. E o analista não pode se contentar em pensar as relações entre analista e analisando em termos racionais. Tem que se entregar à experiência transferencial, para manter as coordenadas do espaço analítico e para que a simbolização possa se articular. (CHAVES, 2006, p. 109) A contratransferência para McDougall (1996, p. 100), em acordo com o que formulou Freud, é o afeto positivo ou negativo UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 despertado por determinados analisandos ou por determinado discurso, proveniente de diversas fontes e que diz respeito ao analista. A técnica da atenção flutuante, conforme descrita por Freud (1996a, p. 125-6), rejeita o emprego de qualquer recurso especial, como o de tomar nota, por exemplo, consiste apenas em não dirigir reparo para algo específico e em manter a atenção uniformemente suspensa em face de tudo o que se escuta, em contrapartida da exigência feita ao paciente de que comunique tudo o que lhe ocorre, sem crítica ou seleção, regra fundamental da Psicanálise de associação livre. De acordo com Freud (1996b, p. 427): a escolha objetal que se faz após o estádio narcísico pode realizar-se segundo dois tipos diferentes. Um, segundo o tipo narcísico, no qual o próprio ego da pessoa é substituído por outro, que lhe é tão semelhante quanto possível; e o outro, segundo o tipo ligação, no qual as pessoas que se tornaram valiosas, porque satisfizeram suas necessidades vitais básicas, são escolhidas como objetos pela libido. Para o autor, “[...] uma intensa fixação ao tipo narcísico de escolha de objeto deve ser incluída na predisposição ao homossexualismo manifesto” (FREUD, 1996b, p. 427). Freud (1996b, p. 427-8) falou sobre a hipótese da libido objetal se transferir para a libido do ego e, portanto, ser a única capaz de resolver o enigma daquilo que se denominavam neuroses narcísicas, porém uma retirada da libido objetal para dentro do ego não seria diretamente patogênico, a exemplo do que ocorria no sono. Assim, chegou-se à conclusão de que se tratava de algo bem diferente quando determinado processo, muito vigoroso, força uma retirada da libido dos objetos, como constatado – posteriormente – na paranoia e na melancolia (quando perdiam o objeto sexual ou quando o objeto se tornava sem valor para os sujeitos, por sua própria falha). Compreendeu-se que o melancólico, na realidade, retira do objeto sua libido, mas que, por um processo de identificação narcísica, o objeto se estabelece no ego, projetando-se sobre o ego. O que ocorre a partir disso é que o ego da pessoa então é tratado à semelhança do objeto que foi abandonado e é submetido a todos os atos de agressão e expressões de ódio vingativo, anteriormente dirigidos ao objeto. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Nesses casos, a libido que se tornou narcísica não consegue retornar aos objetos. Essa interferência na mobilidade, certamente, torna-se patogênica, parecendo não ser tolerada uma acumulação de libido narcísica além de determinado nível. Freud (1996b, p. 428) afirma que na melancolia, bem como em outros distúrbios narcísicos, emerge, com acento especial, um traço particular na vida emocional do paciente – aquilo que, de acordo com Bleuler, foi acostumado a se descrever como ambivalência, o que significa que estão sendo dirigidos à mesma pessoa sentimentos contrários amorosos e hostis. Ainda de acordo com Freud (1996d, p. 375), a libido encontra as fixações necessárias para romper as repressões nas atividades e experiências da sexualidade infantil, nas tendências parciais abandonadas, nos objetos da infância que foram abandonados. Contudo, seus derivados foram mantidos com alguma intensidade na fantasia e é a esses, por conseguinte, que a libido retorna. Dessa forma, a retração da libido para a fantasia é um estádio intermediário no caminho da formação dos sintomas (introversão). Os sintomas são substitutos da satisfação frustrada, realizando uma regressão da libido a épocas anteriores do desenvolvimento, regressão a que necessariamente se vincula um retorno a estádios anteriores de escolha objetal ou de organização (FREUD, 1996d, p. 367). Freud (1996b, p. 422) afirmou que o ponto fraco no desenvolvimento libidinal das neuroses narcísicas situa-se numa fase diferente. A fixação determinante, que permite a irrupção que leva à formação dos sintomas, situa-se em outra posição, provavelmente na fase de narcisismo primitivo, ao qual a demência precoce retorna em seu resultado final. Ele considerou surpreendente, no caso de todas as neuroses narcísicas, ter de supor que os pontos de fixação da libido remontam a fases muito anteriores do desenvolvimento, em comparação com o que se observa na histeria e na neurose obsessiva. Orientou-se pelos conceitos obtidos em seus estudos das neuroses de transferência por se mostrarem adequados na compreensão das neuroses narcísicas, considerados por ele, na prática, tão mais graves. A experiência de Gurfinkel (1995), trabalhando em uma instituição de toxicômanos segundo o modelo de Comunidade Terapêutica, trouxe inquietações e uma série de perguntas. O autor se UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 perguntava sobre uma maneira de entender, em termos de investimentos pulsionais, o vínculo do toxicômano com a droga. Entre os questionamentos que precederam o início de sua pesquisa, esse tem, a meu ver, especial interesse para o presente trabalho: o autor pretendia compreender como pensar a toxicomania do ponto de vista da Psicanálise. Gurfinkel (1995) escolheu explorar as diversas configurações que a teoria das pulsões foi tomando, buscando subsídios para compreender o fenômeno dos usos de droga e da toxicomania. Ao tomar a toxicomania como um tipo particular de adicção, e não apenas como uma modalidade específica de uso de drogas, ele encontrou caminho fecundo para a abordagem propriamente psicanalítica do tema. Gurfinkel se propôs a trabalhar a noção de toxicomania em seus dois elementos constitutivos, drogas e adicções, no intento de compreendê-los separadamente. Para o autor, o maior problema metodológico no trabalho clínico com a questão das drogas foi a dificuldade de haver uma aproximação com o toxicômano que não fosse simplesmente externa, adaptativa, “do lado da realidade” (GURFINKEL, 1995, p. 17). Nos estudos de Gurfinkel (1995, p. 245), as relações entre pulsão de morte e narcisismo conduziram à revisão do significado do autoerotismo e da teoria da perversão em sua articulação com a toxicomania, partindo da vinculação das adicções com a atividade masturbatória, sugerida por Freud, para compreender essa relação. O que percebeu, em McDougall, na concepção contemporânea de perversão, foi “[...] uma reformulação que acrescenta, no aspecto qualitativo, conflitos de ordem mais arcaica em que está em jogo a identidade subjetiva e, do ponto de vista quantitativo, o problema econômico de uma atividade adictiva ou compulsiva” (GURFINKEL, 1995, p. 246). A partir desse ponto, passa-se a abordar, com certa ênfase, os conceitos desenvolvidos por McDougall em seus estudos baseados em outros autores psicossomatistas importantes como Pierre Marty, M’Uzan e Sifneos por ter sido a autora privilegiada na análise do caso clínico de que trata este trabalho. As razões que nos levaram a isto são especialmente a atualidade de seu trabalho, sua dedicação ao tema UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 adicção e sua enorme contribuição para a prática clínica com sujeitos adictos. McDougall (1996, p. 90) é taxativa ao dizer que, caso o bebê seja tratado apenas como objeto de satisfação narcísica da mãe, correrá o risco de ter problemas em sua constituição psíquica precocemente e em estágios posteriores de desenvolvimento. A autora se referiu à fase em que surgem os fenômenos transicionais descritos por Winnicott. Grosso modo, é o período em que a criança elege determinados objetos que a ajudam a suportar sentimentos de angústia diante da ausência materna por certo período de tempo até que, gradualmente, os possa abandonar. No adulto, falhas nessa fase podem ocasionar o que McDougall denominou de potencial de criação de objetos transicionais patológicos ou objetos transitórios, sob a forma de substâncias, das quais dependerá de forma adicta, ou de relacionamentos, em que a dependência ocorrerá como condutas sexuais adictivas. Avaliando os próprios sentimentos transferenciais, despertados na situação analítica por pacientes com um modo característico de funcionamento psíquico que eliminava grande parte das experiências emocionais, McDougall passou a se interessar e a observar, em muitos casos, como as experiências afetivas abalavam os indivíduos e determinavam a emergência de problemas psicossomáticos e adictivos (MCDOUGALL, 1996, p. 99). McDougall (1996, p. 100) percebeu que determinados sujeitos, em circunstâncias particulares, eliminavam indícios de sentimentos profundos, indicando que vivências que estiveram na origem de emoções intensas ficavam inacessíveis à consciência, tornando impossível elaborá-las psiquicamente. Notou que o traço de personalidade comum a esses pacientes era de manterem uma conduta fria em suas relações, regida por regras e normas sociais e sem manifestação de sentimentos, como se precisassem recusar sua dependência em relação aos outros. A autora cunhou o termo desafetação e o descreveu como um mecanismo de defesa. O prefixo des- contém a ideia de separação ou perda e sugere metaforicamente que o sujeito desafetado está psiquicamente separado de suas emoções, podendo ter perdido a capacidade de manter contato com suas realidades psíquicas. E UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 prossegue afirmando que perder a capacidade de se conectar com as próprias emoções é um problema psíquico grave. Na situação analítica, a desafetação surge no discurso, em palavras desafetadas, com ausência de sua função pulsional, apresentando-se esvaziadas de significado. O discurso pode ser inteligível, intelectualizado, porém desprovido de afeto (MCDOUGALL, 1996, p.104- 05). A autora preferiu o termo desafetação a outros mais difundidos atualmente – como pensamento operatório, alexitimia, neurose de comportamento –, para ressaltar que vivências prematuras de emoções intensas ameaçam a constituição subjetiva desses sujeitos, que para manter sua integridade psíquica, desenvolveram um modo de se defender que pudesse evitar lembranças de experiências traumáticas portadoras da ameaça de aniquilamento (MCDOUGALL, 1996, p. 105). As defesas mobilizadas para enfrentar essa ameaça de aniquilação psíquica impelem um bom número de adultos – através do abuso das drogas, do alcoolismo, do suicídio – a realizar aquilo que, em sua infância, inconscientemente acreditavam que pudesse abrir para eles a única passagem em direção à liberdade. (MCDOUGALL, 1996, p. 98) Sobre o funcionamento mental que gera esse estado de desafetação, McDougall formulou as seguintes hipóteses: os fatores dinâmicos formam a base da existência de uma brecha psíquica entre as emoções e as representações mentais às quais elas estão ligadas e os recursos econômicos, por meio dos quais funciona essa maneira de viver, excluem os sentimentos, as vivências afetivas, e dissimulam o poderoso mecanismo defensivo envolvido em seu funcionamento (MCDOUGALL, 1996, p. 106). Na impossibilidade de elaborar psiquicamente uma emoção, ela é descarregada no corpo, como na primeira infância, o que, afirma McDougall (1996, p. 107), “leva à ressomatização do afeto”, reduzindo-a a uma mensagem de ação não verbal. Para a autora, os indivíduos que tratam a emoção dessa forma são predispostos a explosões somáticas de todos os tipos, especialmente, quando surgem ocasiões de fortes impactos emocionais, como acidentes, nascimentos, luto, divórcio, abandono. McDougall (1996, p.107) diz que nessas ocasiões as soluções UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 adictivas falham e não permitem ao sujeito esquecer seus sentimentos, revelando a contradição do objeto adicto, já que nenhum objeto real pode substituir o objeto fantasístico, que falhou ou sofreu danos no mundo interno. Ao comparar os objetos transicionais às substancias adictivas, McDougall ressalta que: os indivíduos, que funcionam com uma economia psíquica adictiva a fim de fazerem desaparecer a dor psíquica, não dispõem de uma representação interna da mãe como objeto introjetado capaz de dispensar cuidados, mãe com a qual eles poderiam se identificar nas situações de tensão ou conflito. [...] [A] fragilidade interna torna-se maior pela falta (igualmente importante) do objeto paterno poderoso introjetado. (MCDOUGALL, 1996, p. 109-10) Para McDougall (1996, p. 110-11), a experiência da ruptura com determinada adicção permite ao analisando fazer descobertas durante o processo analítico e considera que as recaídas são antes a regra do que a exceção e que podem ser importantes para o analisando elaborar os sentimentos de feridas narcísicas e libidinais que o arrastam para a armadilha da adicção. Com os estudos desenvolvidos por McDougall, é possível pensar na questão da toxicomania e do sujeito adicto, propriamente dito, de uma maneira ampliada e com enormes possibilidades terapêuticas no contexto da perspectiva da psicossomática psicanalítica. 3 APRESENTAÇÃO DO CASO A paciente aguardava atendimento inscrita na lista de espera de procura espontânea do CEPS. Nessa lista, os únicos dados disponíveis aos residentes são o nome, a idade e o telefone do paciente. Por questões éticas, o verdadeiro nome da paciente será omitido e passará a ser identificada como P (de paciente). As iniciais dos nomes das demais pessoas eventualmente mencionadas também são fictícias. Foram marcados 130 atendimentos, dos quais a paciente compareceu a 103 sessões, portanto, faltou a 27. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 No início de seu atendimento, em março de 2012, P contava 38 anos. Era filha temporã em uma família de seis filhos, com mãe aposentada e pai falecido há cerca de um ano. Domiciliada em Londrina, morava com a mãe, possuía formação em curso superior e estava desempregada na época. Apresentava um histórico de abuso de diversos tipos de drogas ao longo de 28 anos. 4 ANÁLISE DO CASO Quando inquirida sobre a razão para estar desejando atendimento psicológico, P respondeu: “Minha mãe. Foi por causa dela que eu vim”. P relatou se drogar desde os dez anos de idade, usando preferencialmente crack e cocaína, e, eventualmente, maconha, bebidas alcoólicas e cigarros. Fazia uso de medicamentos controlados de forma indiscriminada para amenizar as reações físicas, como insônia e inapetência, e psíquicas, como alucinações e delírios persecutórios causados pelo uso constante de drogas. Sua opinião sobre os tratamentos aos quais havia se submetido era de que não surtiram nenhum efeito terapêutico sobre ela. Descreveu-se como drogada, ladra, mentirosa e fria, declarando não se sentir nem um pouco mal com isso. Informou que fora abusada pelo cunhado por três anos consecutivos, dos dez aos treze anos de idade, período em que começou a se drogar, e que hoje sua palavra de ordem era o desamor. Disse não acreditar na Psicologia, em psicólogos e em terapia, considerando-se um caso perdido e acreditando que a única solução para ela seria a morte, porém era covarde demais para tomar essa providência. Apesar de saber que o uso abusivo do crack e da cocaína poderia causar-lhe a morte, P não atribuía ao ato uma tentativa de se matar. Pelo contrário, ela considerava que o alívio e o prazer proporcionados pela droga a ajudavam a continuar viva. Homossexual assumida desde os 21 anos, relatou na primeira sessão que suas relações amorosas foram todas desastrosas e causaram muito sofrimento a ela. Desde sua última separação, há cerca de dois anos, desiludira-se e nunca mais se envolvera com alguém (P disse que viveu com essa mulher, também usuária e bem mais nova do que ela, durante alguns anos). Relatou que sempre preferira as mulheres que não correspondiam às suas investidas, considerando como o auge do UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 prazer apaixonar-se platonicamente. P relatou que em seus “casamentos” (foram dois), cumprira o papel de provedora, pois suas mulheres dependiam dela para tudo e, mesmo assim, elas a traíram, mentiram e a enganaram, porém P sempre as perdoara. Nas duas relações de P, foram as mulheres que decidiram pelo término. Ela contou sua história sem demonstrar emoções e os únicos sentimentos explícitos em sua narrativa eram o ódio e ressentimento. Na primeira entrevista, o manejo foi realizado visando a transformar a queixa originalmente feita pela mãe da paciente em uma demanda por tratamento da própria paciente. O primeiro eixo do trabalho consistiu em validar seu discurso para a percepção do desamparo e solidão como índice de seu mal-estar subjetivo, tamponados por sua dependência a drogas, com o objetivo de implicar a paciente em seu problema e possibilitar sua entrada em tratamento psicoterápico. O segundo eixo foi questionar sobre os eventos traumáticos com o objetivo de apoiar um novo posicionamento subjetivo diante do sofrimento, cuja origem estava no abuso sexual realizado por seu cunhado e na conduta de negação desse fato pela mãe e irmãos. P encontrava-se totalmente identificada ao objeto droga, chegando a dizer que ela era pura toxina e, por meio desse vínculo simbiótico com a droga, absteve-se, até aquele momento, de confrontar seus conflitos de maneira consciente. O terceiro eixo consistiu em confrontá-la com sua adicção e a função do abuso das drogas para fugir e se distanciar do sofrimento. Como o acontecimento traumático apontava para o fracasso familiar em prover segurança, confiança e amor e evidenciava o fracasso de seus pais em suas funções maternas e paternas, a paciente passou a se autodestruir abusando das drogas e planejando estratégias para se vingar dos irmãos. Em consequência, manteve intactos seus objetos de identificação narcísica. Assim, sua mãe passou a ser interpretada como vítima dos irmãos, que a incentivaram a não acreditar nela, e o pai, como um homem frágil, que não suportaria a decepção de se saber traído por alguém em quem confiava e amava. Nesse sentido, o trabalho consistiu em confrontá-la em sua posição de filha e de criança indefesa, que era na época do abuso UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 sexual, desmitificar as figuras paternas, aceitar a realidade, tolerar a frustração e o sofrimento de maneira consciente, para que ela pudesse encontrar uma nova maneira de viver, livrando-se da dependência das drogas. O objetivo de P em seu tratamento era ficar em abstinência de crack e cocaína, conseguir e manter um trabalho e conquistar novamente sua autonomia. No início do tratamento, antes de iniciar o acompanhamento psiquiátrico e o tratamento farmacológico, P comparecia a uma sessão semanal. Às vezes, eram necessárias duas sessões no mesmo dia, quando estava em surto psicótico decorrente do uso de drogas. Nessa ocasião, P foi classificada em um processo seletivo simplificado e convocada para trabalhar em duas escolas públicas, em dois períodos, tornando necessária a implantação de um tratamento medicamentoso domiciliar. Mas as chances de P aderir ao tratamento seriam bastante reduzidas, não fosse a presença do psiquiatra do CEPS. Além disso, sua presença e intervenções trouxeram à baila questões edipianas importantes para uma mudança de posição de P. O psiquiatra, convidado para aceitar P como paciente, colocou como condição a autorização e colaboração da mãe na administração de medicamentos, além de uma interconsulta semanal com a paciente acompanhada pela psicóloga. Em casos graves de adicção, sabe-se que apenas a dita "força de vontade" do paciente não asseguram sua permanência em abstinência. As questões orgânicas intrínsecas ao processo de abstinência se impõem e favorecem as recaídas, desde que nada seja feito para que sejam asseguradas condições para contê-las. Foi imprescindível promover-se o diálogo entre a psiquiatria e a psicologia para que o tratamento de P tivesse possibilidade de avançar. Após decidir interromper o uso de drogas, era previsto que o desejo de usá-las se intensificaria, pois a dependência química não afeta apenas o aspecto orgânico. Além disso, P não lidava com a realidade conscientemente havia muito tempo. Os sentimentos e angústias desencadeados pela desintoxicação e pelo próprio processo psicoterapêutico se constituiriam em um desafio ao seu propósito de abstinência. Partindo dessas premissas, assim que teve início o tratamento psiquiátrico, passou-se a realizar quatro sessões semanais UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 de psicoterapia, além daquela com o psiquiatra, para proporcionar apoio e continente1 à paciente. Em um período de três meses, durante o acompanhamento psiquiátrico, P teve três recaídas. Na primeira, Dr. L advertiu-a novamente sobre o perigo de um surto psicótico na mistura de medicamentos e drogas psicotrópicas e que não estava disposto a se arriscar caso ela voltasse a repetir tal comportamento. Na segunda vez, Dr. L atribuiu à psicoterapeuta o poder de decidir sobre a questão, considerando que naquela altura a medicação já estava agindo e não mais se tratava de uma crise de abstinência. Dr. L disse à paciente que podia perceber o quanto ela estava melhor e o quanto ele acreditava em sua capacidade de recuperação, porém que não poderia ser omisso diante da gravidade da situação. O parecer foi favorável à paciente, reconhecendo sua honestidade ao não omitir seu grave deslize, sua dedicação à psicoterapia e da necessidade de ter o acompanhamento médico nesse período tão delicado. Dr. L informou P que seria desligada, se o fato se repetisse. P teve sua terceira recaída. Foi decidido que, para o bem de P, o Dr. L encerraria seu acompanhamento. Mesmo considerando que seria um manejo muito arriscado, houve a disposição de correr-se o risco. Era conhecido o prazer pervertido de P em transgredir a lei e a ordem das coisas, de corromper o setting terapêutico, ainda que isso implicasse colocar em risco sua vida. Contudo, não era possível ser conivente. Dr. L considerou a possibilidade de voltar a atendê-la em momento oportuno. P manteve-se em abstinência por quatro meses, voltando a ter o acompanhamento do psiquiatra em sessões quinzenais. A primeira impressão, após a entrevista inicial com P, baseada na escuta e na interpretação transferencial, sinalizava um pedido de ajuda, porém os fatos não indicavam um bom prognóstico para o caso clínico devido ao obstáculo que a grave adicção da paciente representava para sua entrada e adesão ao tratamento. No decorrer dos atendimentos, percebeu-se que o conflito 1 Continente, palavra cunhada por Bion, indica a capacidade do terapeuta de conter as necessidades, angústias e demandas do paciente, análogas à função materna no início da vida do bebê. (ZIMERMAN, D. Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2001. p. 84-5) UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 psíquico da paciente centrava-se no abuso sexual sofrido na infância e mantido em segredo, agravado pela forma de sua mãe e irmãos lidarem com o assunto, assim que foi revelado. O que se verificou foi que, na aparência, todos negaram o acontecido, apoiando-se no fato de P ser uma dependente de drogas, por isso não merecedora de confiança. O abuso sexual consistiu em fato inaceitável para a instituição familiar. Foi uma situação geradora de extremo sofrimento para P. Assim, ela procurou esquecê-la apoiando-se na crença de que não haveria solução possível para esse problema. Aceitou o lugar de drogada na constelação familiar e considerou a dependência como única saída existente para evitar o sofrimento de uma realidade sem sentido algum para ela. Na impossibilidade de aceitar falhas das figuras paternas idealizadas, considerava que os pais eram vítimas dos acontecimentos e ela seria a culpada, aceitando sentir todo ódio, culpa e ressentimento apenas por si mesma e por seus irmãos. Nas relações amorosas, P promovia uma inversão de papéis, colocando-se no lugar de provedora, não se permitindo perceber o desejo de ser cuidada e amada, e negando sua necessidade de dependência. Ao preferir amar e não ser correspondida, ela repetia o que sentia em sua relação com a mãe. Sobre a personalidade de P, considerou-se a hipótese de uma sexualidade adictiva, com pontos de fixação da libido na fase de narcisismo primitivo, na qual o objeto sexual é buscado incessantemente como droga. Em decorrência do abuso sexual, a paciente sofreu inúmeros abalos narcísicos, principalmente na relação com a mãe, por falta desse olhar protetor e afetivo, denunciando sua vulnerabilidade dentro da própria família e tendo seu sofrimento agravado pela descrença de todos quando o fato veio à tona. P recorreu ao uso e abuso de drogas como uma forma de defesa poderosa na tentativa de esquecer e poder suportar o sofrimento diante da angústia de perder seus objetos de amor, do aniquilamento subjetivo e de não pertencimento familiar. Toda a sensação de prazer obtida pelo uso frequente de drogas havia gradativamente desaparecido ao longo dos anos, obrigando-a a recorrer a doses cada vez maiores, que, por sua vez, intensificavam as alucinações e os delírios persecutórios, aterrorizando-a. P se viu diante de um impasse. A solução adicta que a ajudara a fugir de seus problemas ao longo de tantos anos estava fracassando e fatalmente a UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 levaria a uma overdose, porém não conseguia encontrar outra saída para lidar com seus conflitos, a não ser afastando-os de sua consciência com o uso de drogas. A mãe de P, ao longo do tratamento, representou muitas vezes um entrave para sua recuperação. No início, ligava frequentemente queixando-se do comportamento destrutivo da filha, da agressividade, de ficar se esfregando publicamente com “aquela mulher” e envergonhá-la (P iniciou um namoro no início do seu tratamento), de criar problemas em sua relação com os outros filhos, de estar gorda, de não fazer nada para ajudar em casa, de não arrumar um emprego, etc. A Sra. S simplesmente se negava a aceitar que a filha tinha dependência de drogas, que sua adicção era de muitos anos e considerada grave e que, pela primeira vez na vida, havia pedido ajuda e estava em tratamento. Insistia em perceber P como seu prolongamento narcísico e a exigir que ela correspondesse ao seu ideal de filha, completamente alheia à realidade interna e externa. Ignorava as qualidades de P e exaltava os seus defeitos, fazendo-se de vítima ao expor seus problemas de saúde, o quanto havia sido boa mãe e que não era merecedora, naquela idade, de passar pelas situações criadas por P. Convocava constantemente a atenção de todos à sua volta. Naturalmente, a Sra. S não tinha consciência do que fazia. P era produto de uma gravidez indesejada, pois a Sra. S já possuía seis filhos nessa ocasião, sendo a mais nova uma adolescente. A culpa que sentia desde que soube estar grávida de P só piorava diante do sintoma de adicção da filha e se tornou uma fonte inesgotável de enorme angústia. Ela me relatou que P sempre recebeu dos pais mais atenção, afeto, dedicação e recursos do que seus irmãos, portanto não conseguia compreender porque insistia em se comportar de maneira tão inadequada e causar tantos problemas. Excluía completamente de suas considerações o fato da filha ter sofrido abuso sexual pelo genro e ter se tornado dependente de drogas. A Sra. S agia como se houvesse algum engano, parecia óbvio para ela que a verdadeira vítima de toda aquela situação era ela mesma e não sua filha. Parecia que a Sra. S tentava esclarecer que P precisava de atendimento psicológico para compreender tudo e passar a se comportar de acordo com o plano que ela e o marido traçaram. Não era para ser tratada por ter dependência química, o que a mãe sequer admitia existir. Convicta de que ela e o marido ofereceram a P uma educação UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 sólida e irrepreensível, a Sra. S possivelmente suspeitava e temia que aceitar a existência do abuso sexual – e que isto estava diretamente relacionado com a adicção da filha – implicava admitir ter ocorrido alguma falha em seu modelo idealizado de educação, assim como na execução das funções maternas e paternas, o que agravaria o sentimento de culpa pré-existente, inviabilizando a conscientização e participação no problema. Quando P tornou pública sua história e, consequentemente, a história de sua família, isso foi sentido pela Sra. S como humilhação e condenação, uma injustiça. A mãe descarregava toda sua frustração na filha, como se quisesse castigá-la por lhe causar tanto constrangimento. Porém, para promover a separação dessa relação simbiótica estabelecida entre mãe e filha, em que não havia uma distinção subjetiva clara indicando uma passagem mal sucedida pelo processo de estruturação psíquica conferida ao Complexo de Édipo, foi necessário acolher essas manifestações da Sra. S, para então poder ocupar a posição de terceiro (o pai) nessa relação e favorecer a operação de corte necessária para que cada uma pudesse se aplicar em suas próprias questões. Por outro lado, com sua nova companheira, a paciente estava estabelecendo o mesmo tipo de relação simbiótica que desejava manter com sua mãe, dependendo emocionalmente dela para realizar, inclusive, as necessidades mais básicas como comer e tomar banho. P estava muito mais estruturada quando conseguiu falar sobre questões mais delicadas de sua história. Ela nutria um intenso sentimento de ódio por uma de suas irmãs, a que era casada com o homem que a violentara por três anos. P estava convicta de que a irmã não havia acreditado no que ela disse ou sequer se importara por ela ter sido abusada pelo marido, mantendo seu casamento com ele. Certo dia, P chegou à sessão radiante. Aquela expressão em seu rosto era surpreendente. Contou, com muita satisfação, sobre uma conversa que tivera com a mãe na noite anterior. Sua mãe informoulhe que a irmã não continuara casada depois que soubera do acontecido. Ele se mudara para outra cidade e nunca mais entrara em contato com os próprios filhos, porque sua irmã nunca permitira. Antes de se casar com o segundo marido, sua irmã ficara anos sozinha, UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 informou-lhe a Sra. S. Outros detalhes da história foram esclarecidos por sua mãe, que nunca, antes daquele momento, havia permitido que P tocasse no assunto com ela. Naturalmente, isso não explicava toda a história e muitas questões continuavam pendentes, mas saber o que houve entre sua irmã e seu cunhado permitiu que P abrisse mão de seu apego ao ódio e possibilitou resignificar sua história, admitir o desejo de se reaproximar da família, de ser aceita, de ser amada e de perdoar. Agora P estava disposta a ouvir o outro lado da história e tomar conhecimento do que acontecera, sentia-se capaz de enfrentar o problema e o sofrimento ocasionado por ele. Para finalizar esta análise, menciona-se a dificuldade e a angústia de P, sabendo que o final das sessões estava próximo. Esse sentimento era causado justamente pelo tipo de vínculo simbiótico que a paciente sempre estabeleceu em suas relações com pessoas significativas. Soubera pela mãe, no início do tratamento, que as psicólogas do CEPS permaneciam somente durante certo tempo na instituição e, desde essa ocasião, preocupou-se com o término do vínculo. Especialmente no caso de P, a quem esse processo gerava muita ansiedade acentuando sua sensação de desamparo, tornou-se necessário trabalhar a separação desde o início do tratamento. A paciente sempre esteve ansiosa em obter resultados rápidos e certeiros, estimulada por essa premissa. No decorrer do tratamento, a questão pareceu ter ficado de lado e apenas eventualmente P se referia ao assunto. No final, P começou a faltar frequentemente e a apresentar muita dificuldade tanto em ficar até o término de cada sessão como de prosseguir no tratamento. Nesse ponto, o vínculo terapêutico entre paciente e psicóloga despertou o ciúme da companheira de P, dificultando ainda mais o processo de desligamento. Restavam poucas sessões e P faltou à metade, pretextando querer evitar desentendimentos com sua companheira. O que P realmente evitava era falar sobre os sentimentos despertados pelo iminente término do vínculo terapêutico e do quanto essa separação estava sendo difícil para ela. Quando finalmente voltou, P ficou surpresa ao saber que restavam apenas duas sessões. Nelas, P falou do quanto seria difícil recomeçar com outra terapeuta. Queria expressar que era muito grata por tudo o que a terapeuta havia suportado – o ódio, o desrespeito, as faltas – e o UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 quanto a figura da psicóloga se tornara importante: “Sem você, eu não teria conseguido”. Chorou muito e disse que agora se autorizava a chorar, a sorrir, que conseguia suportar melhor a tristeza, a frustração e sua impotência, mas que também estava ciente de que podia fazer muito mais do que supunha. Agora podia sonhar, “só por hoje”, disse, referindo-se ao lema dos Narcóticos Anônimo. P conseguiu, pela primeira vez na vida, manter vínculo de trabalho do início ao fim do contrato (final do ano letivo). Atualmente, aguarda sua renovação. O trabalho foi fundamental em sua recuperação, pelo sentido que proporcionou à sua vida. Ela sentia-se produtiva, tinha autonomia econômica e se ocupava diariamente, podendo acompanhar os resultados positivos de suas ações. Onze meses após o início do tratamento, ao término do período da especialização, o caso clínico foi encaminhado para outra psicóloga, que iniciava a residência. P estava em abstinência há sete meses e sabia que sua recuperação ainda exigiria muita dedicação e cuidado, mas desejava continuar seu tratamento. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O déficit de serviços extra-hospitalares, de profissionais especializados, de equipes transdisciplinares e de tempo hábil para acompanhamento pode ser destacado como o grande obstáculo ao atendimento a casos de sujeitos adictos à droga que, frequentemente, chegam a oferecer riscos a si próprios e a outros, e acabam sendo encaminhados para internação hospitalar psiquiátrica. Muitos casos poderiam receber acolhimento e intervenção em serviços ambulatoriais, pelo tempo necessário, permitindo a esses sujeitos permanecer em família e reintegrar-se à sociedade. A Psicanálise configura-se em importante referencial que contribui para a compreensão dessa problemática e de tantas outras, ressaltando a importância de uma prática clínica que, diante das contradições humanas, valorize o que há de mais humano no homem: sua própria história, conforme afirmou Dunker (2011, p. 433). A Psicanálise foi utilizada para compreensão do fenômeno da toxicomania e das adicções e a Psicoterapia de Apoio de Orientação Psicanalítica, nas intervenções durante o tratamento da paciente, cujo UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 caso clínico foi construído neste estudo. Sua contribuição foi imprescindível e inestimável na condução do caso. Por meio do espaço e vínculo terapêuticos, a paciente pode resignificar suas dores, perceber os sintomas psíquicos, a função de seu abuso de drogas, e retirar o investimento libidinal de alguns objetos e reinvestir em outros, além de conseguir enxergar novas possibilidades de vida e readquirir a capacidade de sonhar. Ressalte-se que o processo psicoterapêutico de P está apenas no início. Há um longo caminho a ser percorrido para compreensão das representações inconscientes que estão subjacentes ao seu sintoma de dependência a drogas e que se implicam em seu conflito. Durante o período de tratamento da paciente, foram trabalhados alguns sentimentos inconscientes que estavam relacionados ao evento traumático ocorrido no período de sua infância, o abuso sexual. Da observação da estrutura e do funcionamento psíquico e pela escuta do discurso da paciente, foi possível formular o psicodiagnóstico inicial que possibilitou escolher a forma de condução de seu tratamento. Os aspectos mais arcaicos de sua sexualidade, sua homossexualidade, vínculos afetivos, sua maneira de se relacionar e escolhas objetais são questões a serem analisadas na sequência do processo. É importante evidenciar a importância das experiências proporcionadas pelas Clínicas-Escolas ao oferecer aos psicólogos residentes ou em processo de graduação a oportunidade de vivenciar a realidade em sua pluralidade e de se aprimorar, sobretudo pelo apoio de seus supervisores. Como modelo de serviço ambulatorial integrante do SUS, o CEPS é um bom exemplo, oferecendo aos pacientes um tratamento pautado nos princípios dos Direitos Humanos, em que é possível tratar questões – como a toxicomania – vistas sob uma perspectiva crítica e holística do ser humano e suas contradições. Demonstrou-se, a partir da construção do caso clínico, como a Psicanálise e a psicoterapia de orientação psicanalítica contribuíram no tratamento de uma paciente adicta a drogas, possibilitando a recuperação, sustentando o período de abstinência e sua adesão ao tratamento, oferecendo outra saída para a toxicomania. Concluiu-se que os objetivos propostos neste estudo foram cumpridos e espera-se que tenham contribuído para que profissionais envolvidos com a questão da saúde mental possam ter se beneficiado e UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 se motivado a também publicar novos estudos abordando o assunto, compartilhando suas próprias experiências e fortalecendo, desta maneira, a prática da profissão. REFERÊNCIAS CHAVES. E. Toxicomania e transferência. Pernambuco, 2006. 199 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, Universidade Católica de Pernambuco. Disponível em: <http://www.unicap.br/tede//tde_busca/arquivo. php?codArquivo=8>. Acessado em: 15 mai. 2013. DUNKER, C. I. L. O Nascimento da Clínica. In: ______. Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo: Annablume, 2011. FREUD, S. Recomendação aos médicos que exercem a psicanálise (1912). Rio de Janeiro: Imago, 1996a. v. 12. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 24 v.) ______. Conferência XXVI: “A teoria da libido e o narcisismo”. (1916-1917 [1915-1917]). Rio de Janeiro: Imago, 1996b. v. 16. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 24 v.) ______. Conferência XXVII: “Transferência”. (1916-1917 [19151917]). Rio de Janeiro: Imago, 1996c. v. 16. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 24 v.) ______. Conferência XXXIII: “Os caminhos da formação dos sintomas”. (1916-1917 [1915-1917]). Rio de Janeiro: Imago, 1996d. v. 16. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 24 v.) GURFINKEL, D. A pulsão e seu objeto-droga: estudo psicanalítico sobre a toxicomania. Petrópolis: Vozes, 1995. MCDOUGALL, J. Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 APLICABILIDADE DIRETA DAS NORMAS DE DIREITO FUNDAMENTAL ÀS RELAÇÕES PRIVADAS Lucyellen Roberta Dias Garcia* RESUMO Este estudo promove reflexão crítica acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, analisando-os sob a ótica do Constitucionalismo moderno, da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e dos efeitos práticos que essa dimensão produz. Discute-se a necessidade de ponderação entre as normas de direito civil e direito constitucional, de modo a não excluir os princípios basilares do direito privado, mas adequá-los ao alcance axiológico que se quer atingir, para se obter a máxima efetividade dos direitos constitucionalmente garantidos. Confrontando-se os diferentes fundamentos teóricos, conclui-se que aquele constante na teoria da aplicação direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares é o que melhor se coaduna com a realidade e o ordenamento jurídico brasileiro por não admitir o condicionamento da prestação dos direitos fundamentais ao exercício da atividade legislativa, mas sim a aplicação direta desses direitos de modo a salvaguardar a dignidade da pessoa humana e o exercício dos postulados da democracia constitucional. Palavras-chave: Direitos fundamentais. Relações privadas. Eficácia horizontal. Dimensão objetiva. ABSTRACT This study promotes critical reflection about the horizontal effect of * Advogada; pós-graduada em Direito Aplicado (Escola do Ministério Público do Estado do Paraná e Escola da Magistratura do Estado do Paraná) e em Direito Constitucional (Academia Brasileira de Direito Constitucional); professora de Direito Ambiental e Agrário na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e na Faculdade do Norte Pioneiro (FANORPI/UNIESP); mestranda em Ciências Jurídicas (UENP). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 fundamental rights, analyzing them from the perspective of modern constitutionalism, of the objective dimension of fundamental rights and of practical effects that size produces. It discusses the need for balance between the rules of civil and constitutional rights, so as not to exclude the basic principles of private law, but adjust them to reach axiological you want to achieve, to achieve the maximum effectiveness of the constitutional rights guaranteed. While comparing the different theoretical foundations, it is concluded that one constant in the theory of direct or immediate application of fundamental rights in relations between individuals is the one that best fits with the reality and the Brazilian legal system by not allowing conditioning the provision of fundamental rights to the exercise of the legislative activity, but to the direct application of these rights in order to safeguard the dignity of the human person and the exercise of the tenets of constitutional democracy. Key words: Fundamental rights. Private relations. Horizontal effectiveness. Objective dimension. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 APLICABILIDADE DIRETA DAS NORMAS DE DIREITO FUNDAMENTAL ÀS RELAÇÕES PRIVADAS Lucyellen Roberta Dias Garcia 1 INTRODUÇÃO Para o doutrinador Carlos Roberto Siqueira Castro (2008, p. 10), [...] o sentimento constitucional contemporâneo passou a exigir que o princípio da dignidade do homem, que serve de estrutura ao edifício das Constituições da Era Moderna, venha fundamentar a extensão da eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas, ou seja, a eficácia externa, também denominada direta ou imediata que, na prática, coincide com o chamado efeito horizontal do elenco de direitos, de liberdades e de garantias que através dos tempos granjearam assento nos estatutos supremos das nações. O presente ensaio tem por escopo analisar a questão da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, resultado do rompimento do antigo pensamento liberal-burguês, para o qual a afirmação dos direitos e garantias fundamentais no plano constitucional se deu em razão dos abusos praticados pelo Estado Absolutista, e por essa justificativa deve permanecer atrelado, sem qualquer possibilidade de estender sua aplicação às relações travadas entre particulares. Neste cenário histórico, não se pode olvidar que a decadência das ideias liberais e a consequente substituição do regime pelo Estado Social deram-se em razão da inexistência de uma atuação positiva do Estado, capaz de garantir aos cidadãos os direitos sociais mínimos para a implementação dos direitos de primeira dimensão; a tão almejada igualdade material de direitos pôde ser alcançada a partir do momento em que o Estado passou a intervir em todas as esferas da sociedade, garantindo aos seus povos condições mínimas para se viver UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 com dignidade. Não obstante as diversas vozes que ecoam dos estudiosos sobre o tema, não se pode negar que a supremacia da Constituição Federal responsável por alocar os direitos fundamentais num plano superior e irradiar valores morais e éticos, também vincula todos os demais ramos do direito, sejam em aspectos materiais ou formais. No plano prático, porém, em muitas situações ainda se observa uma inatingível irradiação dos direitos fundamentais nos conflitos estabelecidos entre particulares, levando-se a crer que a sociedade neocapitalista esta sujeita a uma igualdade meramente formal, marcada pelo domínio dos poderosos grupos econômicos que atuam sob a égide de um direito privado, mas dissociado das garantias fundamentais elencadas pela Constituição de 1988. Destarte, o que se almeja através do presente estudo é o convencimento acerca da aplicação harmônica dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, de modo que não se estabeleça qualquer exclusão das regras de direito civil, mas sim que se utilizem critérios de ponderação dos bens e valores confrontados na esfera privada, necessário para garantir a plena eficácia dos direitos e garantias fundamentais presentes na Constituição Federal. 2 O CAMINHAR HISTÓRICO-EVOLUTIVO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS O surgimento da expressão “direitos fundamentais”, acompanhado de seu conteúdo normativo e axiológico, remonta de tempos antigos, então marcados por sangrentas e infindáveis batalhas entre classes, nas quais o objetivo comum era certamente o enfraquecimento do Estado soberano e opressor, violador das garantias humanas e de toda forma de dignidade que porventura restavam àqueles povos (SARMENTO, 2006, p. 4). Sob uma perspectiva histórica, os direitos fundamentais adquiriram diferentes formatos até alcançar a personificação e o hodierno âmbito de aplicabilidade no Estado contemporâneo. A começar pela terminologia do instituto, o que é motivo de repudio por grande parte dos constitucionalistas que rechaçam a utilização de expressões como “liberdades fundamentais”, “direitos individuais”, UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 “liberdades públicas”, dentre outras derivações que não abarcam todo o conteúdo dogmático-jurídico dos direitos fundamentais, por se tratarem de categorias específicas do gênero “direitos fundamentais”. Outra questão terminológica tratada pela doutrina ao traçar a evolução histórica dos direitos fundamentais diz respeito à abrangência dos termos “direitos humanos” e “direitos fundamentais”. De fato, os primeiros remetem ao conteúdo de normas que centralizam a proteção do ser humano numa esfera universal, ou seja, de caráter supranacional, desconsiderando as regras específicas de um determinado ordenamento jurídico, ao passo que o segundo retrata um conjunto de regras positivadas no âmbito constitucional de um Estado, reunindo direitos e garantias que assegurem a liberdade e igualdade dos povos daquela nação. Sob esse aspecto, seguro afirmar que as expressões em comento não se tratam de sinônimas, mas também não deixam de guardar uma íntima relação de cunho axiológico, já que o objetivo comum perseguido por ambos é a proteção do homem e a garantia de uma vida digna, sem interferência de quaisquer questões políticas, sociais e econômicas que possam suprimir o principal dos direitos que é a vida com dignidade. A proximidade que une o conteúdo e a direção de tais expressões, acoplado à luta incessante dos Estados em afastar toda forma de atrocidade e violência contra os povos tem desencadeado um autêntico processo de aproximação e harmonização dos direitos elencados na esfera nacional e internacional, resultando na formulação de um direito constitucional internacional, cuja autonomia didática já lhe é ínsita (SARLET, 2005, p. 39). José Afonso da Silva (1996, p. 176-7) insurge-se contra as expressões diferenciadas, salientando sua preferência por uma terceira categoria terminológica, qual seja “direitos fundamentais do homem”, sob a justificativa de que: [...] além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna livre e igual de todas as pessoas. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Bobbio, por sua vez, estabelece uma distinção entre direito do homem enquanto estritamente naturais e direito do homem enquanto direitos positivados, passando, pois, a equipará-los às expressões ora apontadas neste estudo. Para ele, os direitos naturais do homem equivalem aos direitos humanos, ao passo que os direitos positivados seriam os definidos como direitos fundamentais (BOBBIO, 1992, p. 31). Seguindo o critério de diferenciação, Ingo Sarlet (2005, p. 37) defende a existência de três espécies de direitos, que se distinguem tomando por base um único elemento caracterizador, qual seja, a positivação ou não em suas diferentes esferas; para o autor, existem os chamados direitos naturais, os quais não se encontram ainda positivados; os direitos positivados na esfera supranacional, que seriam denominados de direitos humanos e, por fim, os famigerados direitos fundamentais, cuja classe se encontra reunida e positivada no sistema de garantias interna de um determinado ordenamento jurídico, sendo, portanto, mais restritos e específicos do que aqueles últimos. Bruno Galindo apresenta uma veemente crítica ao posicionamento adotado por Ingo Sarlet, argumentando não ser possível enquadrar as três espécies de direitos em modalidades, como se coexistissem diferentes classes de ser humano. Segundo o seu parecer: Os direitos positivados, tanto na esfera estatal, como na internacional, são direitos fundamentais, uns abrangendo apenas os cidadãos de um determinando Estado e outros de espectro mais amplo, alcançando a comunidade internacional, podendo então ser considerados, respectivamente, direitos fundamentais estatais e direitos fundamentais internacionais. Os direitos inerentes ao ser humano, positivados ou não, são direitos humanos ou direitos do homem. (GALINDO, 2003, p. 49) Compreendidas algumas das mais importantes posições doutrinárias que permeiam o universo jurídico em torno da questão terminológica dos direitos fundamentais, cumpre proceder a uma análise histórica acerca dos caminhos percorridos ao longo do tempo para se alcançar a atual configuração e abrangência normativa dos chamados direitos fundamentais, os quais justificam, por si só, a instalação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 A contribuição da doutrina jusnaturalista clássica como elemento propulsor do processo de afirmação dos direitos fundamentais é indiscutível. Muitos dos direitos hodiernamente positivados na ordem estatal, antigamente eram já considerados naturais pelos jusfilósofos, os quais concebiam o ser humano como detentor de garantias naturais, ínsitas a sua pessoa e, portanto, inalienáveis, imutáveis e inatingíveis pelo Poder Estatal, soberano à época. Posteriormente, veementemente influenciado pelas ideias contratualistas e racionalistas de Hugo Grocio e Kant, inicia-se o processo de laicização do direito natural, o que inspirou a formulação do movimento iluminista, que apelava à razão como fundamento do direito. Neste aspecto, necessário ressaltar a expressiva contribuição de John Locke como primeiro filósofo a reconhecer a eficácia oponível dos direitos naturais, notadamente em face dos detentores do poder, reconhecendo-se, pois, aos cidadãos, então titulares de direitos e não meros objetos do governo tal qual eram associados sob a égide de um contrato social, o direito de resistência e de organização frente a um Estado guiado pela sua razão e vontade (SARLET, 2005, p. 46-7). Inspirado pelas ideias da razão humana inicia-se, neste período, o processo de universalização dos direitos naturais, dando ensejo a importantes documentos de concretização de garantias, como por exemplo, a Declaração dos Direitos do Homem (França, 1789) que posteriormente vieram a resultar na construção de uma teoria constitucional e o próprio movimento de codificação que marcou o século XIX (LAFER, 1998, p. 38). Amparada nas ideias contratualistas e iluministas de que o homem é titular de direitos naturais que antecedem a própria instituição do Estado, criando-se, por conta disso, uma esfera inviolável de direitos e garantias, iniciou-se no século XVIII uma árdua batalha dos povos com aspirações liberais pela efetivação desses mesmos direitos, e notadamente sua extensão às camadas mais humildes da sociedade. Surge a partir desse processo de luta pelo reconhecimento universal de direitos, então oprimidos pelo Estado Absolutista, a expressão “direitos humanos”, o qual serviu de fundamento para o UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 início da era constitucionalista, e como pilar do Estado Liberal, então substituto do decadente Estado Absolutista. 2.1 As diferentes dimensões dos direitos fundamentais No intuito de promover uma harmonização entre as três principais correntes do pensamento jurídico, quais sejam positivistanormativista, positivista-sociológico e jusnaturalista, Alexy propõe um estudo dos direitos fundamentais abalizado em uma tríplice dimensão de direitos que se sucedem consoante à progressiva conquista e afirmação destes no cenário mundial (GUERRA FILHO, 1997, p. 11). Sobre o tema, de início, necessário reportar-se às fundadas críticas operadas pela doutrina moderna concernente a adoção da terminologia “gerações”, ao invés de “dimensões” para se referir ao conjunto de direitos reconhecidos de forma gradativa, cada qual ao seu tempo e em momentos históricos marcantes, resultando numa autêntica mutação histórica dos direitos fundamentais. Com efeito, a ideia de dimensão, ao contrário do que se pretende afirmar ou que pelo menos transparecer com a utilização do termo “geração”, encontra-se intimamente relacionada com a noção de complementariedade, de soma gradativa de direitos, que longe está de indicar qualquer noção de substituição ou alternância de direito conforme se faz crer pela utilização da segunda terminologia ora apresentada (BREGA FILHO, 2002, p. 25-6). De qualquer forma, certo é que a problemática sob enfoque reside essencialmente na esfera terminológica, não alcançando expressiva importância para o que se pretende inferir neste estudo, mesmo porque basta uma singela análise acerca do conteúdo semântico normativo da Constituição Federal de 1988 para se rechaçar por completo qualquer possibilidade de abolição de direitos ditados pelas dimensões anteriores, considerando que a Carta Magna reúne em sua esfera de proteção, todos os direitos conquistados gradativamente ao longo da história (DIMITRI; MARTINS, 2007, p. 32). Os direitos fundamentais de primeira geração, fortemente influenciados pelas ideias jusnaturalistas, representam uma conquista da burguesia liberal frente ao poder do Estado Absoluto, sendo também denominados “direito de defesa” ou “direitos de UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 resistência/oposição”, por rechaçar a intervenção do Estado na vida social, política e econômica do cidadão; dentre o rol dos direitos negativos, podem ser destacados o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade e ao voto. Esses mesmos direitos dão início a uma nova fase do Constitucionalismo, sendo os primeiros a serem insertos nas Constituições após as Revoluções Liberais. Apesar de prever um dos principais direitos do cidadão, qual seja a igualdade, a esta lhe era atribuído um sentido meramente formal, e não material que ensejou uma segunda dimensão de direitos. Tal fato, deve-se, certamente, à predominância dos interesses da burguesia sobre a classe proletária, o que faz caracterizar essa “geração” de direitos como de cunho altamente individualista. Os fatos pretéritos que desencadearam a reação revolucionária da burguesia, influenciados pelos ideais liberais concentram-se na atuação ostensiva do Estado onipotente em não permitir o exercício das liberdades fundamentais, todavia, equivoca-se grande parte dos doutrinadores ao atribuir essa atuação abusiva contra os do cidadão tão somente ao Estado. Citado por Galindo (2003, p. 60), Neumann afirma que a ideia segundo a qual o Estado é sempre considerado inimigo do cidadão e legítimo violador das garantias fundamentais deve ser rechaçada, podendo outros seguimentos da sociedade ou Instituições também o fazê-lo, o que de fato ocorre às vistas do cidadão quando monopolizam ideias e produtos, notadamente no campo econômico onde tal prática se mostra mais patente. Reiterando as ideias acima, Galindo (2003, p. 60-1) expõe: O Estado não é o único violador de direitos fundamentais, mas também o são aqueles que detêm determinados poderes não estatais que, por vezes, têm muito mais força e efetividade do que os próprios poderes do Estado. Por isso, mesmo no conceito estrito dos direitos de primeira dimensão, não cabe ao Estado uma mera conduta omissiva, mas sim uma conduta necessariamente ativa em muitos casos para proceder a uma repressão às violações desses direitos, não só pelos próprios órgãos (a ideia de Montesquieu do poder se autolimitando), mas também pelos poderes não estatais em geral que, por ser uma esfera de poder com alcance efetivamente social, podem se tornar sérios violadores dos diUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 reitos fundamentais. As ideias encontram correspondência com o atual sistema neoliberal que permeia as sociedades contemporâneas, marcadas pela dominação absoluta do mercado pelas multinacionais, o que de fato representa um sério quadro de violação dos direitos fundamentais entre particulares, sendo este o objeto de estudo no presente trabalho científico. Em suma, caracterizam-se os direitos de primeira dimensão pelo seu caráter individualista, pela conquista e afirmação das liberdades civis e políticas, e pelo início de uma nova era, o constitucionalismo ocidental (SARLET, 2005, p. 56). Os direitos de segunda dimensão são chamados de direitos positivos e abrangem os direitos sociais, econômicos, culturais e as liberdades sociais justificam-se por não terem sido abrangidos totalmente no Estado Liberal, em razão da desigualdade entre as classes, que permitia somente aos nobres burgueses, detentores de recursos econômicos, a possibilidade de exercer as liberdades políticas e realizar os direitos econômicos e sociais. A grave crise gerada pelo Estado Social, o qual se mostrou incapaz de solucionar as mais diversas demandas decorrentes da deficiente prestação dos direitos sociais e econômicos, aliado ao assustador impacto tecnológico e expansão dos grupos econômicos que passaram a promover a dominação dos mercados e, dessa forma, sobrepor o ideal capitalista a quaisquer valores de ordem constitucional, determinou o surgimento de uma dimensão de direitos, os de fraternidade (que compõe a terceira dimensão de direitos). Essa inovadora e necessária reivindicação do ser humano que ultrapassa o caráter individual de suas relações e passa a enxergar o ser humano por meio dos problemas e anseios que atingem toda a coletividade compreendem, sob o manto da fundamentabilidade, os direitos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à paz, solidariedade universal, segurança. Dirley da Cunha Junior (2007, p. 34) retrata com clareza a essência dos direitos de fraternidade: [...] enquanto os direitos de primeira dimensão (direitos civis e políticos)- que compreendem as liberdades clássicas, negaUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 tivas ou formais- realçam o princípio da liberdade e os direitos da segunda dimensão (direitos sociais, econômicos e culturais)- que se identificam com as liberdades positivas, reais, materiais ou concretas- enfatizam o princípio da igualdade, os direitos fundamentais- que encerram poderes de titularidade coletiva ou difusa atribuídos genericamente a todas as formações sociais consagram o princípio da solidariedade ou fraternidade e correspondem a um momento de extrema importância no processo do desenvolvimento e afirmação dos direitos fundamentais, notabilizados pelo estigma de sua irrecusável inexauribilidade. Por fim, cabe esclarecer que a doutrina vem admitindo a existência de uma quarta, quinta e até sexta dimensões de direitos fundamentais. A quarta geração de direitos humanos esta relacionada à questão do biodireito. A preocupação em proteger esses direitos e incluí-los no rol de direitos fundamentais ocorreu após as atrocidades da 2ª. Grande Guerra Mundial, quando foram realizados inúmeros experimentos genéticos nos campos de concentração nazistas. A quinta, por sua vez, relaciona-se com o direito à paz, sendo a sexta dimensão decorrente da globalização, que abarca o direito à democracia, à informação correta e ao pluralismo. 2.2 As dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais O rompimento do pensamento liberal, segundo o qual os direitos fundamentais foram afirmados somente com a finalidade de evitar os abusos praticados pelo Estado Absolutista. Por essa razão, teria sua aplicabilidade adstrita às relações travadas entre Estadoparticular foi determinante para se operar uma mudança de paradigma das sociedades modernas e o reconhecimento de uma Constituição que reúne em seu corpo, além de regras e princípios, uma ordem objetiva de valores válidos em todo o ordenamento jurídico, que vincula não só o Estado, mas também os particulares em suas relações privadas. Neste contexto, um acontecimento histórico foi determinante para a sedimentação das bases necessárias para a construção da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, qual seja o caso Lüth julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão em 1958. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 De acordo com o caso ora citado: Um cidadão alemão chamado Erich Lüth, crítico de cinema e diretor do Clube de Imprensa da cidade de Hamburgo, na Alemanha, incitou, no início da década de 50, todos os distribuidores de filmes cinematográficos e ao público em geral, a boicotar o filme lançado por Veit Harlan. Harlan era um cineasta conhecido do regime nazista e acusado de ser um dos principais responsáveis pela alienação ideológica a que foi submetido o povo alemão no III Heicht. Harlan e seus parceiros comerciais ingressaram com ação cominatória, com base no art. 826 do Código Civil Alemão (BGB), na Justiça Estadual de Hamburgo, postulando que Lüth fosse impedido de continuar com o boicote. Isso porque o boicote estava causando dano a outrem por ação imoral. As instancias ordinárias acataram o pedido de Harlan, o que motivou Lüth a propor reclamação constitucional, no Tribunal Constitucional Federal, alegando ofensa ao direito fundamental à liberdade de expressão garantida na Lei Fundamental de Bonn de 1949. O Tribunal julgou o pedido da reclamação procedente e revogou a decisão do Tribunal Estadual de Hamburgo. A decisão teve por base a prevalência do direito de liberdade de expressão em detrimento da liberdade de exercício da atividade empresarial de promover e divulgar filmes. (DETROZ, 2012) Por meio da decisão proferida pela Corte Alemã, solucionouse uma questão individual, fixando-se, ao mesmo tempo, novos contornos objetivos da Constituição Federal e dos direitos fundamentais, de efeitos irradiadores e vinculantes para os três poderes do Estado na tomada de suas decisões, bem como aos particulares, no trato dos próprios interesses e dos seus pares. Como considerou Ingo Sarlet (2005, p. 167): A descoberta (ou redescoberta) da perspectiva jurídicoobjetiva dos direitos fundamentais revela, acima de tudo, que estes- para além de sua condição de direitos subjetivos (e não apenas na qualidade de direitos de defesa) permitem o desenvolvimento de novos conteúdos que, independente de uma eventual possibilidade de subjetivação, assumem papel de alta relevância na construção de um sistema eficaz e racional para a sua (dos direitos fundamentais) efetivação. Esse novo enfoque trazido pela dimensão objetiva dos direitos fundamentais, determinou o surgimento de um novo princípio, UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 denominado de “princípio de proibição de déficit”, o qual compreende a impossibilidade do Estado imitir-se no seu dever de prestar uma assistência eficiente e mínima para a implementação dos direitos fundamentais, em todas as esferas relacionais, vale dizer, pública e privada (ANDRADE, 2004, p. 115). Ao tratar do dever de proteção do Estado perante terceiros, Canotilho esclarece que o Estado não só possui o dever de proteger o direito do cidadão contra eventuais agressões de outros indivíduos, como também de propiciar condições seguras para propiciar a aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações travadas entre particulares. Veja-se: Diferentemente do que acontece com a função de prestação, o esquema relacional não se estabelece aqui entre o titular do direito fundamental e o Estado (ou uma autoridade encarregada de desempenhar uma tarefa pública), mas entre indivíduo e outros indivíduos. Esta função de protecção de terceiros obrigará também o Estado a concretizar as normas reguladoras das relações jurídico-civis de forma a assegurar nestas relações a observância dos direitos fundamentais (ex.: regulação de casamento de forma a assegurar a igualdade entre cônjuges) (CANOTILHO, 2002, p. 407). Em resumo, a construção de uma dimensão objetiva dos direitos fundamentais, retrata a ideia de que esses podem e devem ser considerados independentemente da perspectiva individualista contida na noção de sujeito de direito, presente na normativa civilista, os direitos fundamentais consagram os valores norteadores de toda a ordem jurídica e, que por representar interesses supraindividuais, acabam por vincular a atuação tanto do Estado quanto da sociedade civil. Sob outro viés, a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais abarca a função tradicional desses direitos, aqui entendidos em sua completude, como os clássicos direitos de liberdade, direitos políticos e direitos sociais. A clássica definição de direitos subjetivos indica que o titular de um direito fundamental detém legitimidade para postular em Juízo a reparação de lesão a qualquer dos interesses juridicamente tutelados em face de quem se obrigou a satisfazê-lo. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Destarte, denota-se que a clássica referência aos direitos fundamentais como direitos subjetivos atribui a esses a característica de serem exigíveis judicialmente em face do Estado. Tal perspectiva subjetiva com o passar dos anos, aliado à modernização das sociedades, permitiu que as Constituições passassem a adotar uma dimensão objetiva no sentido de vincular não só o Estado ao cumprimento dos direitos fundamentais, como também toda a coletividade, inclusive, nas relações regidas pelo Código Civil, cuja tendência contemporânea denota uma crescente constitucionalização do referido ramo de direito privado. 3 DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA APLICAÇÃO NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES PRIVADAS Historicamente, os direitos fundamentais foram concebidos no sentido de proteger o indivíduo contra os abusos praticados pelo Estado, os quais diretamente afrontavam o exercício das liberdades públicas e a própria dignidade humana. Essa nova submissão do Estado aos direitos fundamentais do cidadão, positivada pelas Constituições pós-liberalismo, impõe também, no sentido de resguardar a igualdade material, uma conduta ativa e prestacional a fim de garantir não só a consecução dos direitos individuais, mas também dos direitos sociais, os quais não possuem aplicabilidade sem o necessário aparato ofertado pelo Estado. Toda a construção jurídica realizada em torno da dicotomia público-privado se deu justamente por se atribuir ao Estado, nesse caminhar evolutivo dos direitos fundamentais, posições distintas em diferentes momentos históricos. De início, com o intuito de enfraquecer o Estado Absolutista, aliada as ideias liberais, insurgiu-se a burguesia contra os abusos do Poder Soberano, exigindo desse uma abstenção da vida privada dos cidadãos. Posteriormente, em razão da impossibilidade dos direitos de liberdade alcançar as classes menos favorecidas economicamente, passou o Estado a assumir uma posição de garantidor dos direitos sociais, essenciais para a própria dignidade humana. Essa noção de verticalidade de direitos, que se instalou após o advento do Estado Liberal e Estado Social, torna ainda mais UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 dificultoso o desafio de se compreender a possibilidade da aplicação dos direitos fundamentais às relações particulares. Necessário entender, nesse contexto, a posição do Estado opressor que motivou lutas, revoluções e guerras sangrentas no sentido de se afirmar os direitos fundamentais na ordem constitucional. Naquele momento histórico, certamente era a figura do Estado quem mais representava uma ameaça institucionalizada ao homem, o que deve ser repensado no atual contexto, marcado pela dominação dos mercados, em que a lei do mais forte travada entre particulares acaba por suprimir uma série de direitos fundamentais, violação esta que as disposições contidas no Código Civil não estão legitimadas a solucionar. A ordem constitucional vigente, ao estabelecer o sistema de garantias fundamentais a que faz jus todos os cidadãos, não determina necessariamente as figuras do ofensor e ofendido, de modo a deslegitimar qualquer outra ofensa a direitos que não se enquadre nos moldes estabelecidos na Constituição. Quaisquer pessoas ou entidades capazes de realizar condutas contrárias às garantias ali fixadas, sejam elas públicas ou privadas, encontram-se no mesmo patamar de responsabilidade, sendo ao ofensor indiferente a fonte de onde emanam as agressões. O problema em torno da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas surge a partir do momento em que se concebe a autonomia privada dos particulares, devidamente codificada em regras específicas que, para os críticos da ideia ora proposta, vai de encontro a essa limitação que se pretende impor, mitigando o poder de autodeterminação das pessoas. Não obstante as digressões doutrinárias que almejam refutar a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais ao âmbito dos particulares, certo é que não se podem empregar os mesmos critérios sistêmicos eleitos para tratar da relação Estado-particulares para solucionar outro problema que de igual forma representa uma lesão aos direitos fundamentais da pessoa humana, mesmo porque a lei que regula ambas as relações são distintas e disciplinadas em ramos autênticos do direito. Para tanto, busca-se fundamento nos conceitos trazidos pela dimensão objetiva dos direitos fundamentais para acatar-se a ideia de UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 vinculação dos direitos fundamentais nas relações privadas, não se olvidando a necessidade de adoção de critérios de ponderação, vinculados à aferição da intensidade e extensão da vinculação na relação sob enfoque, eis que ambas as partes comungam o mesmo plano de legitimação dos direitos fundamentais. Não parece crível estabelecer uma ordem constitucional em que somente o Estado tenha obrigações éticas e morais para com os direitos fundamentais e mínimos do cidadão, olvidando-se que essa lesão de direitos também pode se suceder nas relações travadas entre particulares. Por outro lado, não se pode desconsiderar a inevitável diferença do modo de atuar das entidades públicas e privadas, consequência do regime jurídico diferenciado aplicado em ambas as situações, o que exige uma análise interdisciplinar e uma cautelar especial no sentido de não suprimir o princípio da autonomia privada dos particulares, que pela sua natureza, por si só, condiciona a aplicação de direitos, liberdades e garantias fundamentais (MIRANDA, 1998, p. 287-8). Essa análise interdisciplinar e ponderação de valores e princípios podem ser facilmente aferidas em normativas diversas presentes no ordenamento jurídico vigente cujo destinatário exclusivo é o Poder Público, não podendo se opor, portanto, aos particulares, a saber: direitos de personalidade, direito políticos, etc. (SARLET, 2000, p. 115-6). Em suma, a Constituição Federal de 1988, além de não elencar expressamente qualquer possibilidade de aplicação horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas, tampouco apresenta um critério para solucionar esse difícil problema trazido a lume. Cabe, pois, ao exegeta, guiado pelas teorias formuladas em torno da questão, bem como os princípios constitucionais que norteiam as relações humanas, solucionar, de forma harmônica e ponderada, eventuais lesões ocorridas em face de particulares, sejam elas originadas do Poder Público, seja advindas de particulares. 3.1 Teoria dos deveres estatais de proteção Por essa teoria entende-se que o Estado, na qualidade de garantidor dos direitos fundamentais de todo cidadão, tem o dever não só de abster-se de violar esses mesmos direitos, como também de UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 adotar uma postura ativa em defesa de seus titulares, evitando lesões e ameaças advindas de terceiros. Para que possa exercer tal mister a contento, detêm o Estado mecanismos específicos de proteção, tal como poderes de polícia, de fiscalizar, de legislar, dentre outros, todos determinados a limitar a atuação do particular que porventura possa lesionar as garantias fundamentais de seus pares que se encontrem em par de igualdades. Adepto das ideias vinculadas à teoria do dever de proteção estatal, Daniel Sarmento (2006, p. 24) salienta que os direitos e garantias fundamentais arrolados pela Constituição Federal abarcam uma qualificação muito superior à de mera condição de direitos de defesa, sendo, pois, sucedâneo para uma atuação ostensiva do Estado em face das ameaças perpetradas pelos particulares. A principal crítica levantada a essa teoria diz respeito ao condicionamento irrestrito da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas a vontade do legislador, o qual deve traçar os parâmetros e intensidade de tais normas fundamentais nos conflitos instalados entre particulares, situação essa que não se coaduna com o atual estágio das sociedades modernas, sujeitas a constantes mutações que claramente o Legislativo não tem conseguido acompanhar, o que acaba por ensejar a figura do ativismo judicial. Daniel Sarmento (2006, p. 24) explica: Neste quadro, ele nega qualquer relevância à distinção entre Direito Público e Privado para fins de submissão aos direitos fundamentais. Portanto, segundo Schwabe, quando um ator privado viola um direito fundamental, o ato poderá ser imputado também ao Estado, seja porque não proibiu, através do legislador, aquele comportamento individual lesivo a direitos alheios, seja porque não impediu o ato, através [sic] da atividade administrativa ou da prestação jurisdicional. Na Constituição Cidadã, é possível visualizar a exigência normativa de uma postura ativa por parte do Estado, em situações que coloquem em risco a integridade de direitos fundamentais, como, por exemplo, no dever de proteger o meio ambiente (artigo 225 da CF/88), de propiciar segurança aos cidadãos (artigo 6º da CF/88), dentre outros. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 3.2 Teoria da aplicabilidade direta ou imediata Segundo a teoria da aplicabilidade direta ou imediata, os efeitos decorrentes dos direitos fundamentais nas relações privadas não deixam de se perpetuar em razão de eventual ausência de previsão normativa no plano infraconstitucional, sendo estes direitos válidos e de aplicação imediata em todo o ordenamento jurídico. Os direitos fundamentais, sejam eles observados nas relações travadas entre Poder Público e particulares, ou tão somente entre esses últimos, irradiam de forma incondicionada por todo o território em face de sua previsão Constitucional, não encontrando qualquer limitação advinda de outras espécies normativas, notadamente do Código Civil (GORZONI, 2007, p. 17). Afirmar a aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas não significa defender a aplicação irrestrita de tal preceito, sem o apoio das técnicas de ponderação e o respeito aos demais princípios que norteiam o ordenamento jurídico, tal como o da autonomia individual, o que determinaria, indubitavelmente, um verdadeiro desarranjo social. Exemplo prático da aplicação da técnica de ponderação em situações que exigem a afirmação dos direitos fundamentais nas relações privadas é a própria atividade jurisdicional. Estando o magistrado no cotejo dos conflitos trazidos a lide em que visualiza evidente situação de desrespeito a direitos fundamentais entre particulares, autorizado a decidir, consoante os ditames normativos da Constituição Federal, independente da existência ou não de legislação correlata. Nesse viés, importante ressaltar que a atuação do Estado-Juiz, baseada em técnicas de ponderação, para solucionar um conflito estabelecido entre particulares, em que presente uma situação de lesão a direitos fundamentais, não tem o condão de afastar o princípio da supremacia do legislador na concretização dos valores constitucionais. O que se busca é evitar uma lesão ainda maior, nas hipóteses em que o legislador não previu uma solução em norma específica (DETROZ, 2012). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 3.3 Teoria da aplicabilidade indireta ou mediata Diferentemente das ideias defendidas pela teoria da aplicabilidade direta ou imediata dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas, essa teoria perfilha do entendimento de que tal prática é possível, desde que não realizada de forma irrestrita, desvinculado de critérios estabelecidos diametralmente em cláusulas gerais do Código Civil, ou seja, desde que se estabeleça um ponto de conexão entre as normas constitucionais definidoras de direitos e garantias fundamentais e o Código Civil, o que se perpetuaria por meio de cláusulas gerais contidas nesse último Códex, não haveria oposição pela aplicação indireta dos direitos fundamentais nas relações envolvendo particulares. Daniel Sarmento (2006, p. 198) busca um entendimento para as ideias acima expostas, explicando que: [...] para a teoria da eficácia mediata, os direitos fundamentais não ingressam no cenário privado como direitos subjetivos, que possam ser invocados a partir da Constituição. Segundo Dürig, a proteção constitucional da autonomia privada pressupõe a possibilidade de os indivíduos renunciarem a direitos fundamentais no âmbito das relações privadas que mantêm, o que seria inadmissível nas relações travadas com o Poder Público. Defensor veemente desta teoria, Konrad Hesse defende a necessária atuação do legislador infraconstitucional em transformar o conteúdo dos direitos fundamentais em normas específicas de eficácia vinculante. Para o doutrinador, a aplicabilidade dos direitos fundamentais no âmbito de atuação dos particulares somente se mostra legítima, quando o legislador estabelece, caso a caso, ou seja, em um estado de exceção, situações em que se permite uma limitação aos princípios da autodeterminação e responsabilidade individual (HESSE, 1998, p. 149-50). Canotilho apresenta duras críticas ao pensamento de Hesse, que busca condicionar a eficácia dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas a uma mera mediação estatal. Para o doutrinador: Dizer, como faz Dürig e, na sua senda, os defensores da eficácia mediata, que as posições jurídico-subjetivas reconheciUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 das pelos direitos fundamentais e dirigidas contra o Estado não podem transferir-se, através de uma eficácia externa, de modo imediato e absoluto, para as relações cidadão-cidadão (melhor: particular-particular), embora se reconheça terem os direitos fundamentais força conformadora quer através [sic] da legislação civil susceptíveis ou carecidas de preenchimento valorativo (wertausfüllungsfähige und wertausfüllungsbedürftige Generalklauseln), parece-nos uma conclusão quase evidente que não responde, como demonstrou Leisner, ao verdadeiro problema da eficácia dos direitos fundamentais em relação a entidades privadas. Também não resolve o problema a ideia que, partindo do caráter jurídico-objetivo das garantias dos direitos fundamentais, prefere situar a questão não no plano de uma eficácia directa dos direitos nas relações cidadão-cidadão, mas no plano da congruência ou conformidade normativa jurídicoobjetiva entre as normas consagradoras dos direitos fundamentais e as normas de direito civil. Isto supõe a existência de dois ordenamentos autônomos e horizontais, quando a ordem jurídica civil não pode deixar de compreender-se dentro da ordem constitucional: o direito civil não é matéria extraconstitucional, é matéria constitucional. (CANOTILHO, 2002, p. 1207) Reforçando a crítica exposta por Canotilho, Marinoni (2008, p. 79) expõe: Quando se pensa em eficácia mediata, afirma-se que a força jurídica dos preceitos constitucionais somente se afirmaria, em relação aos particulares, por meio das normas e dos princípios de direito privado. Além disso, as normas constitucionais poderiam servir para a concretização de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, porém sempre dentro das linhas básicas do direito privado. As ideias reunidas nessa teoria ganharam força por meio da célebre decisão proferida pelo Tribunal Constitucional Alemão, no julgamento do afamado caso Luth, a seguir descrito: Em 1950, Erich Lüth, presidente de uma associação de imprensa em Hamburgo, na Alemanha, em uma conferência na presença de diversos produtores e distribuidores de filmes para cinema, defendeu um boicote ao filme Unsterbliche Geliebte (Amantes imortais), do diretor Veit Harlan, que, na época do regime nazista, havia dirigido filmes antissemitas e de cunho propagandístico para o regime em vigor. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Diante disso, o produtor do filme ajuizou ação, considerada procedente pelas instâncias inferiores, contra Lüth, com o intuito de exigir indenização e proibi-lo de continuar defendendo tal boicote com base no § 826 do Código Civil alemão, segundo o qual “aquele que, de forma contrária aos bons costumes, causa prejuízo a outrem fica obrigado a indenizá-lo”. Em face do resultado, Lüth recorreu ao Tribunal Constitucional, que anulou as decisões inferiores, sustentando que elas feriam a livre manifestação do pensamento de Lüth. Mas a decisão não se fundou em uma aplicabilidade direta do direito à manifestação do pensamento ao caso concreto, mas em uma exigência de interpretação do próprio § 826 do Código Civil alemão, especialmente do conceito de bons costumes, pois, segundo o Tribunal, “toda [disposição de direito privado] deve ser interpretada sob a luz dos direitos fundamentais”. (SILVA, 2004, p. 80) Malgrado existam vozes contrárias a este entendimento, no sentido de afastar qualquer contribuição do mencionado julgamento para a consolidação da teoria sob enfoque, certo é que a grande maioria dos defensores da teoria da aplicabilidade mediata comunga do entendimento de que a solução dada pelo Tribunal ao caso Luth contribuiu de forma veemente para reforçar a tese de que os direitos fundamentais podem ser aplicados nas relações estabelecidas entre particulares, desde que exista uma conformação dessas regras pelo legislador ou o magistrado. 3.4 Teoria da State Action Opondo-se aos posicionamentos ditados pelos defensores das teorias da aplicabilidade direta e indireta dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas, a presente teoria, também conhecida como teoria da ineficácia horizontal, afasta por completo a vinculação das condutas perpetradas pelos particulares aos direitos fundamentais, o que restaria adstrito tão somente ao Estado, por meio de suas ações. Para os defensores dessa teoria norte-americana, não há que se atribuir qualquer hierarquia entre as normas de direitos privado e o sistema normativo constitucional, mesmo porque os idealizadores de tal ideia se valem do sistema jurídico a que estão vinculados para justificar a autonomia dos Estados para solucionar embates estabelecidos entre particulares; nos Estados Unidos, a União não detém competência para legislar sobre regras de direito privado, UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 função essa atribuída diretamente aos Estados, afastando as Cortes Federais de proceder a eventuais ingerências em assuntos que permeiam as relações privadas. 3.5 Teoria da inaplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas Para aqueles que defendem a inaplicabilidade absoluta dos direitos fundamentais aos conflitos estabelecidos entre pessoas do direito privado, basta, ao seu entender, perquirir acerca da essência dos direitos fundamentais, ou seja, a motivação histórica que os levaram a ser reconhecidos na ordem constitucional na condição de cláusulas pétreas, para entender que qualquer tentativa voltada à vinculação dos direitos fundamentais aos particulares promoveria uma desnaturação da tradicional concepção liberal de sistema de direitos voltados à proteção do indivíduo. Outro argumento utilizado é que equiparar um dos particulares à figura do Estado opressor representaria uma agressão declarada ao princípio da autonomia individual, não sendo justo atribuir ao magistrado tamanhos poderes para decidir conflitos estabelecidos entre particulares, valendo-se da ponderação de direitos cuja abstração lhe é ínsita (SARMENTO, 2006, p. 198-9). O que se pretende, pois, por meio da presente teoria, é negar a vinculação dos particulares, justificada, unicamente, na origem histórica dos direitos fundamentais, o que se apresenta razoável, considerando que naquele momento histórico quem se apresentava como o maior opressor dos direitos e garantias fundamentais do cidadão era o Estado, mas também o poderia ser a Igreja ou a burguesia, o que relegaria ao insucesso os argumentos ora abarcados nessa teoria. Atualmente, com a evolução das sociedades modernas, notadamente com a forte influência que a corrente neoliberal exerce sobre todas as esferas da vida humana, outros perigos maiores existem que não a atuação do Estado na vida privada, sendo, pois, fundamental que se proteja o ser humano contra todas as ameaças que porventura possam suprimir os direitos que lhe garantam viver de forma adequada e digna, provenham elas de qualquer fonte que seja. A mera igualdade fática entre os particulares não é suficiente para afastar UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 as possíveis ameaças e lesões que um particular possa provocar em outro, mormente quando interesses mesquinhos tornam-se o objeto central de desejo. Outrossim, os poderes conferidos aos magistrados para decidir determinada lide levada ao seu conhecimento não o são exercidos de forma indiscriminada, estando, pois adstritos aos princípios constitucionais que guiam o seu oficio. Esse poder lhe conferido de decidir conforme a ponderação de valores morais e éticos que permeiam o objeto de disputa justifica-se em razão da evidente abstração das normas de direitos fundamentais e a própria utilização, pelo legislador, de cláusulas gerais, abertas e abstratas, rompendo-se com aquela ideia segundo a qual todas as situações deveriam receber previsão expressa. Andrey Borges de Mendonça e Olavo Augusto V. A. Ferreira (2010, p. 299-301) apresentam como justificativa para afastar quaisquer ingerências contrárias à eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas no direito brasileiro, o fato de que a própria: [...] Constituição direciona-se, para além de regular o poder político, também para reger a conduta do povo que integra o território submetido à Constituição. Assim, se o Poder Constituinte estabeleceu que é fundamento do nosso ordenamento jurídico a proteção aos direitos fundamentais, isto significa que todos aqueles que estiverem sob o império do ordenamento jurídico brasileiro estão submetidos aos fundamentos dele, dentre os quais se encontra o respeito aos direitos fundamentais. Não obstante a tentativa engendrada pelos defensores da teoria sob comento, restou a mesma fadada ao insucesso, notadamente após a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional Alemão no caso Luth, que definiu a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, considerando a dimensão objetiva destes, responsável por irradiar valores vinculativos a toda a sociedade, independente do regime jurídico adotado (público ou privado). 4 O USO DA PONDERAÇÃO PARA SE ALCANÇAR UMA TEORIA APLICÁVEL AO ESTADO CONTEMPORÂNEO Objetivando destacar somente os aspectos positivos das UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 teorias que procuram explicar a aplicabilidade (ou não) dos direitos fundamentais às relações privadas, Robert Alexy propôs uma harmonização das teorias da eficácia direita ou imediata; eficácia indireta ou mediata e a teoria dos deveres de proteção estatais acima relacionadas. De acordo com o pensamento do autor, o ponto de partida para se alcançar elementos eficazes que autorizem a aplicação dos direitos fundamentais nas relações estabelecidas no âmbito privado, sem, contudo, esvaziar a autonomia dos particulares, nada mais é do que a aplicação do critério da ponderação. Essa ponderação é realizada na aplicação das três teorias conjuntamente, as quais acabariam por conduzir a resultados equivalentes. Assim, em um primeiro momento, impõe-se ao Estado o dever de legislar e julgar conforme o alcance estabelecido pelos valores contidos na dimensão objetiva dos direitos fundamentais (teoria da aplicação indireta ou mediata). Na sequência, caberia ao Estado tutelar esses direitos fundamentais, assegurando a aplicação prática desses por meio de mecanismos específicos (teoria da proteção estatal). Por fim, reunindo todos os elementos necessários para a efetivação dos direitos fundamentais, não haveria óbice algum para se proceder a vinculação dos particulares ao referidos direitos (RABELO NETO, 2012). A teoria própria e diferenciada proposta por Alexy é vista por muitos doutrinadores como equivalente a própria teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais, a qual é adotada pela Espanha, Itália, Argentina e em Portugal. No Brasil, apesar de manifestos contrários, tem se observado uma forte tendência em adotá-la, haja vista o fato de a referida teoria se adequar à realidade e ao ordenamento jurídico brasileiro. Neste diapasão, seguem os ensinamentos Luís Roberto Barroso (2007, p. 17): O ponto de vista da aplicabilidade direta e imediata afigurase mais adequado para a realidade brasileira e tem prevalecido na doutrina. Na ponderação a ser empreendida, como na ponderação em geral, deverão ser levados em conta os elementos do caso concreto. Para esta específica ponderação entre autonomia da vontade versus outro direito fundamental em questão, merecem relevo os seguintes fatores: a) a igualdade ou desigualdade material entre as partes (e.g., se UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 uma multinacional renuncia contratualmente a um direito, tal situação é diversa daquela em que um trabalhador humilde faça o mesmo); b) a manifesta injustiça ou falta de razoabilidade do critério (e.g., escola que não admite filhos de pais divorciados); c) preferência para valores existenciais sobre os patrimoniais; d) risco para a dignidade da pessoa humana (e.g., ninguém pode se sujeitar a sanções corporais). O Supremo Tribunal Federal adotou a teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares no julgamento do RE 201.819/RJ, 2ª turma, relator para o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 11 de outubro de 2005, entendendo aplicável o direito fundamental ao devido processo legal, contraditório e ampla defesa em favor do sócio que se pretendia ver-se excluído pela associação: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privado garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações na ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não estatal. A União Brasileira de Compositores- UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura da ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão do sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. (BRASIL, 2006) O que se conclui da análise das diversas teorias que buscam encontrar critérios de interferência ou não do Estado na vida privada e a possibilidade de aplicação direta ou indireta dos direitos fundamentais às relações entre particulares é que o ordenamento jurídico é uno e complexo, sendo, pois, ilógico conceber uma fórmula simples e acabada para solucionar questões cuja resposta encontra-se na ponderação dos valores e bens determinados no caso concreto, em consonância com os princípios que regem o ordenamento jurídico, irradiando sua eficácia sobre todas as pessoas que se encontram sob sua tutela. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pela análise do conteúdo exposto, notadamente dos fundamentos utilizados por doutrinadores nas construções teóricas que ora defendem, ora negam a eficácia horizontal dos direitos fundamentais na seara privada, denota-se que em nenhum momento, a busca por argumentos justos e democráticos encontra-se presente no embasamento proposto. As digressões em torno da aplicabilidade dos direitos fundamentais para a solução de conflitos estabelecidos entre particulares não se devem concentrar na mera formalidade de serem direta ou indiretamente aplicáveis, mas sim na compreensão de que o particular, esteja ele em que posição se encontre, é destinatário dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. Essa irradiação de valores que deve nortear todo o atuar dos Poderes Estatais, na solução de conflitos levados a sua análise, foi determinante para a construção do atual cenário neoconstitucional em que a sociedade moderna encontra-se inserida. Nesse contexto, a aplicação direta dos direitos fundamentais, sem qualquer intermediação legislativa como condição a quo, é a solução que melhor se coaduna com o sistema de proteção e princípios adotados pela Constituição Federal de 1988. REFERÊNCIAS ANDRADE, J. C. V. de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almeida, 2004 BARROSO, L. R. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 201.819, relatora Ministra Ellen Gracie, relator do acordão Ministro Gilmar Mendes. Diário da Justiça, 27 out. 2006. BREGA FILHO, V. 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Este estudo pretende demonstrar o quão relevante é o acesso à justiça por ser uma das maiores garantias dentro do ordenamento jurídico brasileiro. A pesquisa mostra que de nada adianta o melhoramento legislativo, se não houver mudança na mentalidade dos operadores do direito, dos juízes, advogados e, principalmente, das partes envolvidas. Palavras-chave: Acesso à justiça. Assistência judiciária gratuita. Litigância abusiva. ABSTRACT This scientific work arose from the need to understand why the population crams the courts throughout Brazil with unnecessary litigations, produced in an abusive way, and often in bad faith. Starting from historical analysis, showing the transformation of the liberal in the social state, and later in post-social, in which there is a strictly individualistic vision, birthplace of a protectionist social legislation. The number of * Graduanda do curso de Direito, na Faculdade do Norte Pioneiro (FANORPI/UNIESP). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 adventurer litigants that misuse the right of action and access to free legal aid grew excessively. This study attempts to demonstrate how relevant access to justice is for being one of the best guarantees in the Brazilian legal system. The research shows that there is no point improving the legislative branch if there is no change in the mindset of jurists, judges, lawyers, and especially of the parties involved. Key words: Access to legal aid. Free legal aid. Abusive disputes. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 ACESSO À JUSTIÇA EM FACE À LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ POR MEIO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA Danielle Augusto Governo SUMÁRIO: 1 Introdução – 2 Antecedentes históricos – 3 Justiça gratuita x assistência judiciária – 3.1 Divergência entre assistência judiciária e justiça gratuita – 4 Assistência jurídica integral e gratuita – 5 Litigância de má-fé – 6 Considerações finais 1 INTRODUÇÃO Infelizmente, o Poder Judiciário brasileiro encontra-se em crise. Antes de ser apenas um mal em si, o fato deve ser encarado como uma extraordinária oportunidade de aperfeiçoamento, pois o problema é complexo. De um lado, a concorrência da sociedade com suas inúmeras dificuldades econômicas, sócio-políticas (degradação dos costumes político-administrativas), culturais (desagregação familiar, falta de acesso à escola), bem como conjunturais (corrupção, violência urbana, pauperização da classe média) concorrendo para o aumento das responsabilidades do aparelho jurídico em face de um conflito cada vez mais explosiva e crescente. Nesse sentido, a Magna Carta de 1988 ensejou nova visão jurídica, na qual o que falta à norma deve ser adicionado pelos intérpretes da lei, num construtivismo discricionário, porém coerente, que objetiva privilegiar a igualdade, com um mínimo de perda da liberdade de cada cidadão. Contudo, de nada adianta um judiciário moderno e equilibrado, se a sociedade o vê em percepção errônea de instituição paternalista, voltada a justiça corretiva de compensações, retrógrada e inexequível. Como se não bastasse esse cenário, o mesmo vem se acentuando paralelamente a um questionamento inevitável do ponto de vista sociopolítico, da eficácia das democracias representativas e da mui relevante figura do judiciário em frente à progressiva “falência” das mesmas. Diante do lançamento do objeto de estudo desta dissertação, conclui-se que é obrigação dos juízes, “representantes do Estado” e na condição de legisladores, usarem de toda sua perspicácia e poder UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 interpretativo para coibir as litigâncias abusivas. Também é obrigação dos causídicos prezarem a sua esfera e, por fim, do cidadão conviver com as vicissitudes, sem se deixar levar pelo chamariz da vantagem a qualquer custo. Destarte, este estudo auxiliará o amadurecimento humano, haja vista ser consequência desse debate a colocação do homem a refletir e, assim, melhorar aquilo que já existe, já que se pretende com o presente escrito analisar o instituto jurídico da litigância abusiva e a questão do acesso e assistência judiciária gratuita como uma das maiores causas da crise da efetividade da Justiça. 2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS Primeiramente, é mister fazer uma investigação histórica no tocante às transformações processadas ao longo dos séculos XVIII, XIX, XX e XXI. Nesse sentido, a história do direito é intrínseca ao surgimento e à evolução do Estado, bem como de suas atribuições, o que é mui relevante para este estudo, pois a sobrecarga é, sem sombra de dúvidas, a maior delas já que compromete a efetividade da prestação jurisdicional. Assim, bom é destacar que, nos séculos XVIII e XIX, duas grandes revoluções marcaram a história da humanidade, mudando de modo significativo a concepção do que vem a ser Estado e o relacionamento da sociedade com o Direito. O Direito, antes da Revolução Francesa, existia tão somente como instrumento para ajudar a impor privilégios à nobreza, com fulcro em códigos jusnaturalistas, os quais eram supostamente delegados pelo Poder Divino e absolutamente indiferentes e, pior ainda, eram inacessíveis ao homem comum (ALEXY, 2008, p. 203). Diante dessa ausência de preocupação com o bem comum, a Revolução Francesa, com seus apelos à igualdade e à fraternidade, modificou demasiadamente o relacionamento individual e as relações com o Poder, o que fez com que a burguesia tomasse posse das reivindicações e impregnasse a população dos ensinamentos filosóficos originados da produção intelectual de grandes mestres como Montesquieu, Rousseau e Locke (ALEXY, 2008, p. 204). Com o escopo de limitar os poderes concentrados nas mãos UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 dos reis, a classe burguesa solidificou o princípio da legalidade sob o manto individualista e voltado à noção de propriedade. Tal contexto histórico, pode se falar, favoreceu de modo excessivo o nascimento do Estado liberal de Direito e colocou a lei como um ato supremo, suprimindo as tradições jurídicas do absolutismo e as arbitrariedades, haja vista os direitos consistirem somente em norma jurídica, a qual não dependia de corresponder com a justiça, mas de ter sido feita apenas por uma autoridade competente. Outro fato de enorme curiosidade importância para esta pesquisa foi o surgimento das Cartas Americana de 1787 e a Francesa de 1791 que marcam o primado da Lei (ALEXY, 2008, p. 204). Sem enfatizar que as primeiras diferenças de concepção de ambas as Cartas eram que os franceses pretendiam afirmar primária e exclusivamente os direitos do indivíduo, enquanto que os americanos ligaram os direitos do indivíduo com o bem comum da sociedade. Vê-se que a Democracia, desde sua fase nascitura, já apresentava contradições, quais sejam, uma nova imposição da soberania marcada pela vontade da maioria, um Estado forte concebido por Rousseau e um grau quase irrestrito de liberdades, compatíveis com o Estado mínimo proposto por Montesquieu, em sua divisão tripartite (L’esprit de lois). Nesse sentido, o estado liberal de Direito garantia a propriedade e as liberdades individuais, mas estava muito mais preocupado em não retroceder do que fazer a Justiça propriamente dita e, infelizmente, não havia preocupações com o acesso à justiça que se revelava formal e caro. Em que pese os sucessivos infortúnios que continuavam a atingir os trabalhadores, no final do século XIX, começavam a se institucionalizar os direitos civis, políticos e econômicos da massa de trabalho, com o fim de corrigir as imensas injustiças sociais, acentuadas pelo capitalismo (ALEXY, 2008, p. 203). Posteriormente, nasce a segunda forma de Estado de Direito, chamada Estado de Bem Estar Social – expressão advinda do direito britânico (Welfare State) –, na qual se admitia a necessidade de proteção do estado para o cidadão desfavorecido, dependente, escravizado pelos ásperos contratos do sistema liberal em virtude de todos dispuserem de condições mínimas de renda, saúde, alimentação, UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 habitação, asseguradas pelo Poder Público como direito político e não como caridade ocorre hodiernamente. Ou seja, as leis, que antes libertavam o homem do jugo da nobreza, passaram a ser um instrumento de progresso social e superação dos valores burgueses de exploração operária. No tocante à esfera do acesso à justiça, o surgimento do Estado de Bem Estar Social foi essencial. Afirma-se isso em razão do Estado, ao resgatar para si a responsabilidade do controle e da equidade sociais, aproximou-se do cidadão para protegê-lo por intermédio da legislação que dispunha, visto que o Direito Público chegou perto do Direito Privado, fato esse conhecido como “publicização”2 do Direito (ALEXY, 2008, p. 203). Vale salientar que o homem comum, que não dispusesse de um sindicato forte que o protegesse ou força de um partido majoritário, necessitaria do judiciário, que era uma espécie de interlocutor protetor, pois os juízes e os “intérpretes da lei” passaram a ser vistos como a última esperança daqueles. Diante disso, a busca quase obsessiva pela Justiça lançou o Judiciário na complexa tarefa de intrometer-se nas funções de outros poderes para obrigá-los a cumprir as prestações positivas que a sociedade reivindicava. Já no Brasil, após a Proclamação da Independência em 1822, o acesso à justiça e as noções de liberdade das revoluções europeias pouco se modificou, infelizmente. Tenha-se presente que o Estado Social teve como marco inicial a Constituição de 1934, a qual dispunha uma grande evolução de direitos trabalhistas, embora, já em 1937 tenha havido um retrocesso político, por meio da criação de um estado centralizador e autoritário (MORAES; SILVA, 1984, p. 184). Nesse sentido, é imprescindível ressaltar que desde a década de 1930 até os anos 1980, assistiu-se a um processo de lenta e permanente expansão das políticas sociais. Diz-se isso porque a partir de 1988, com a promulgação da 2 PUBLICIZAÇÃO. Ação ou resultado de tornar público, de dar publicidade; Processo infraconstitucional de intervenção legislativa em área que antes interessava apenas ao âmbito privado do indivíduo. In: iDICIONÁRIO Aulete. Disponível em: <http://aulete.uol.com. br/publicização#ixzz2aa2LUsz8>. Acesso em: 30 jul. 2013. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 nova Carta Magna, o Poder Judiciário iniciou uma fase de modificações. Portanto, foi garantido incompletamente o acesso à justiça, de modo coletivo e individual. Infelizmente, contribuiu também para que os brasileiros apoderaram-se de seus novos direitos e, por consequência, superlotaram os tribunais. 3 JUSTIÇA GRATUITA X ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA Ab initio, a doutrina compreende justiça gratuita essencialmente como a isenção de custas processuais, no caso concreto, isto é, perante aquele juiz que irá responder pela prestação jurisdicional. Posta assim a questão, observa-se que justiça gratuita é a gratuidade de todas as custas e despesas, judiciais ou não, relativas a atos necessários ao desenvolvimento do processo e à defesa dos direitos do beneficiário em juízo (MARCACINI, 1996, p. 96). Cumpre assinalar que o benefício de justiça gratuita abrange a isenção de toda e qualquer despesa necessária ao pleno exercício dos direitos e faculdades processuais, sendo tais despesas judiciais ou não (JUNKES, 2008, p. 14). Em outras palavras, não apenas as custas relativas aos atos processuais a serem praticados como também todas as despesas decorrentes da efetiva participação na relação processual são tidas como elementos da justiça gratuita. Deve-se lembrar de que a justiça gratuita trata de concessão do Estado, que por intermédio da gratuidade processual assume uma postura passiva. No dizer sempre expressivo de Augusto Marcacini (1996, p. 33): A gratuidade processual é uma concessão do Estado, mediante a qual este deixa de exigir o recolhimento das custas e das despesas, tanto as que lhe são devidas como as que constituem crédito de terceiros. A isenção de custas não pode ser incluída no conceito de assistência, pois não há a prestação de um serviço, nem desempenho de qualquer atividade; trata-se de uma postura passiva assumida pelo Estado. Dessa forma, a assistência judiciária é, indubitavelmente, um serviço público organizado, consistente na defesa em juízo do assistido, que deve ser oferecido pelo Estado, contudo também pode UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 ser desempenhado por entidades não estatais, conveniados ou não com o Poder Público, para o exercício de tal atividade perante o Poder Judiciário. Como se observa no caso da Defensoria Pública – entidade não estatal que desempenha este serviço como objetivo principal –, os advogados que por ordem judicial ou por convênio com o Poder Público exerçam esse serviço podem ser considerados prestadores de assistência judiciária. Partindo desse pressuposto, a prestação de assistência judiciária nada mais é que um serviço público. Sob tal aspecto existe uma divergência entre as relações assistido e prestador de assistência judiciária e também entre cliente e advogado. No primeiro caso, o assistido não escolheu seu defensor, porém se dirigiu a um órgão prestador de assistência judiciária em busca de um serviço gratuito, que atenderá o carente, porque sua função é esta. Na segunda hipótese ocorre o inverso, pois o cliente procura o advogado privado, que lhe prestará um serviço por meio de contrato oneroso (JUNKES, 2008, p. 313). 3.1 Divergência entre assistência judiciária e justiça gratuita Em um primeiro momento, não se pode olvidar que a assistência judiciária não se confunde de modo algum com a justiça gratuita. Assegura-se isso, porque a assistência judiciária é garantida pelo Estado, que permite ao necessitado o acesso aos serviços profissionais do advogado e dos demais auxiliares da justiça, bem como dos peritos, seja por meio da defensoria pública ou da designação de um profissional liberal pelo Juiz (MARCACINI, 1996, p. 101). No tocante à justiça gratuita, a mesma consiste na isenção de todas as despesas inerentes à demanda, e é instituto de direito processual. Entretanto, as duas são fundamentais para que os desiguais tenham acesso à Justiça. Destaca-se que na assistência judiciária, o Estado assume a obrigação de arcar não só com as despesas processuais, como também com os honorários advocatícios do patrono do assistido. Enquanto que na justiça gratuita, a isenção suportada pelo Estado restringe-se às UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 despesas processuais, sendo o causídico escolhido constituído e remunerado pelo próprio cliente. 4 ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL E GRATUITA A princípio, a assistência jurídica integral e gratuita é conceito bem mais amplo que a assistência judiciária, visto que essa última está relacionada à tutela de direitos subjetivos, abrangendo atividades técnico-jurídicas de prevenção, informação, consultoria, aconselhamento, bem como atividades extrajudiciais e notariais, sendo que está disposta no Art. 5º, inciso LXXIV, da Carta Cidadã, “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. É óbvio que esse direito é conferido a quem não possua recursos financeiros para arcar com os ônus do processo, incluídos honorários de advogados e peritos, podendo obter a prestação jurisdicional do Estado. Em linhas gerais, nota-se que a Defensoria Pública presta “assistência jurídica integral e gratuita”, e não “justiça gratuita” ou “assistência judiciária” (MARCACINI, 1996, p. 101). Convém ressaltar que a assistência judiciária é um benefício do Estado, que é entendido como a defesa técnica gratuita dos interesses da pessoa assistida perante o Poder Judiciário. Neste ponto, é indispensável citar as palavras de Junkes (2008, p. 81-2): Já a “assistência jurídica integral” abrange não só o patrocínio judicial como também o extrajudicial. Isto é, através desse benefício, o Estado é incumbido não só de propiciar a defesa gratuita em juízo dos interesses do assistido em juízo, como também prestar-lhe orientação e aconselhamento jurídico gratuito. O benefício da assistência jurídica, portanto, é mais amplo que o da assistência judiciária, englobando-a. Já os benefícios da “justiça gratuita” implica a gratuidade de custas e despesas, tanto judiciais como extrajudiciais, atinentes a um processo judicial. Como já dito, a expressão assistência jurídica integral e gratuita é mais ampla que a mera assistência judiciária, haja vista importa até UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 mesmo na assistência profissional na esfera extrajudicial, quer dizer, na esfera tipicamente administrativa, quer seja a esfera administrativa vinculada ao Poder Judiciário, quer seja a esfera administrativa tipicamente relacionada com a atuação do Poder Executivo e dos seus órgãos, tais como secretarias de Estado e organismos outros vinculados à administração pública direta ou indireta. A assistência jurídica integral, pelo fato de ser integral, por via de consequência, tutela os interesses das pessoas necessitadas quer na esfera judicial ou extrajudicial. A assistência jurídica integral e gratuita trata de um conceito que vai dos dois anteriormente traçados, pois não se cinge apenas e tão-somente ao campo de atuação junto ao Poder Judiciário, mas abarca aspectos de assistência para ingresso em juízo bem como aspectos não diretamente relacionais ao processo tais como esclarecimentos, orientações e auxílios aos hipossuficientes na seara extrajudicial, por exemplo, como proceder junto a Cartórios de Registro de Pessoas Naturais, de Registro de Imóveis, etc. A assistência jurídica integral e gratuita prestada aos hipossuficientes transcende a pura e simples assistência judicial precipuamente levando-se em conta a expressão “assistência jurídica integral e gratuita” elevada ao patamar de direito fundamental para aqueles que, comprovadamente, são juridicamente carentes, conforme reza o inciso LXXIV, do art. 5º da Constituição Federal (MARCACINI, 1996, p. 87). Enfim, infere-se, ainda, que esse direito da assistência jurídica integral e gratuita é uma garantia para a efetivação de tantos outros direitos, ou seja, deve haver uma atenção maior com esse direito, na busca de uma almejada isonomia entre todos. 5 LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ Litigância simulada – advinda da expressão sham litigation do direito britânico – equivale a uma ação ou um conjunto de ações promovidas na esfera do Poder Judiciário, com bases objetivas, fundamentadas e, naturalmente, com expectativa plausível e razoável de sucesso, mas portando a finalidade dissimulada de prejudicar concorrente direto. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 A expressão está relacionada ao abuso do direito de petição ao Poder Executivo e Legislativo, haja vista a litigância simulada salientar a compreensão de utilização de camuflagem processual pelo competidor de má-fé, pois é essencial para a caracterização da conduta que a tutela estatal seja invocada com o desiderato claro de prejudicar a concorrência (MARINONI, 2006, p. 301). Sem esse último requisito comprovado, não há como se falar em sham litigation, pois a invocação da autoridade estatal acontece de maneira disfarçada, simulando uma situação para ocultar o fim almejado de prejudicar. Utiliza-se da má-fé para a obtenção de uma vantagem indevida. A Carta da República prega, em seu artigo 5º, inciso XXXIV, alínea "a", o direito fundamental de petição aos poderes públicos e também há o direito de ação que é protegido (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988) e seu abuso coibido com o instituto da má-fé processual. In casu, tendo em vista que no direito de ação o sujeito passivo é o Estado, o dolo do litigante provoca vício na vontade judicial e somente o Estado-juiz é titular para declarar o exercício abusivo desse direito. Em que pese o artigo 14, inciso III, do Código de Processo Civil que versa sobre a litigância de má-fé, como se pode observa: Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: [...] III – não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento. Nota-se que mesmo assim os brasileiros usam e abusam de seu direito de ação por meio da assistência judiciária gratuita, superlotando, assim, as varas dos tribunais desse país. Não se pode olvidar também que o artigo 17 do mesmo codex exemplifica condutas apuradas como má-fé do litigante. Dentre elas, o inciso III, que tacha como má-fé o uso do processo com fins de se alcançar objetivo ilegal. Para melhor entender, é preciso ver que as normas constitucionais são de hierarquia superior às demais normas do ordenamento jurídico e quando surge um conflito de aplicação normativa, prevalece o direito disposto na Constituição Federal, pois se deve optar qual delas favorecer e qual restringir e isso pode ser feito UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 por meio do teste do sopesamento – teoria de Robert Alexy, que requer a análise da proporcionalidade (MORAES, 2002, p. 34). Não se pode perder de vista que, para se restringir um princípio, exige-se competência processual e cabe unicamente ao Poder Judiciário a declaração da má-fé processual. Em outras palavras, para se limitar o direito de ação e de petição com fulcro na litigância de má-fé, a competência do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência depende de prévia declaração da má-fé pelo Judiciário (MORAES, 2002, p. 185). Registre-se ainda que a proporcionalidade, proposta por Alexy, compreende critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Em consonância, é mister explanar cada um deles: a) adequação refere-se ao fomento do objetivo privilegiado, no sentido de que a restrição a um dos direitos gera benefícios na esfera daquele que o contrapõe; b) necessidade está ligada à existência e possibilidade de utilização de outros meios que fomentem o objetivo proposto, com menos restrição a outro direito; c) proporcionalidade em sentido estrito é o emprego de método comparativo e equivalente: avalia-se, na situação concreta, se o grau de efetivação de um lado justifica o grau de restrição do outro (custobenefício), não por meio da comparação de medidas (como na avaliação da necessidade), mas pela análise interna da medida. Lida-se, neste último ponto, com direitos. Isto é, se a eficiência for muito grande com o mínimo de restrição, o ganho se encaixa na proporcionalidade, contudo se mesmo com elevado grau de eficiência a restrição também for muito grande, o ganho não compensará e a medida será desproporcional (MARINONI, 2006, p. 580). O conflito entre direito de ação e de petição versus a litigância de má-fé, se apurada esta última, pende para o lado da restrição ao direito de ação, pois atuando de má-fé, a parte infringe o dever do artigo 14, do Código de Processo Civil. Os casos em que há litigância de má-fé causada por meio de assistência judiciária gratuita geram muitos malefícios ao Poder Judiciário, visto que lotam fóruns de todo o Brasil. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Destarte, o que se percebe é que falta consciência cívica e o problema mais uma vez, lamentavelmente, se volta contra o Estado, porque este, por ter sucumbido em seu dever de promover a educação e semear a noção de cidadania, sofre agora, com mais esta mazela (DINAMARCO, 2001, p. 223). 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em que pese ter conhecimento de que o debate não se finda por aqui e diante dos argumentos até aqui levantados, vê-se que o problema é cultural, porque falta pedagogia cívica, entretanto a mudança dessa situação requer esforços do próprio Estado, o que é contrário à vontade dos detentores do poder. Foram analisados o acesso à justiça, a assistência judiciária gratuita integral e sua divergência, bem como a litigância de má-fé causada por aqueles institutos jurídicos, motivada também por inúmeros fatores sociais, culturais e educacionais. O Código de Processo Civil exige tanto da parte, quanto de seu representante, um comportamento ético, mas não responsabiliza este último pelo pagamento de perdas e danos em casos de litigância de má-fé e isso deve ser reformado, uma vez que não se concebe mais no atual contexto jurídico e social que o compromisso do defensor seja tão somente cuidar dos interesses das partes, quaisquer que sejam eles. Ad postremum, conclui-se que a sociedade deve pugnar do Estado o cumprimento das obrigações dispostas na Carta Cidadã e essa deve cumpri-las com o fim de evitar a litigância abusiva, visto que o próprio cidadão deve preservar os ganhos políticos e sociais presentes em tal Constituição, obedecer às leis e, mormente, exigir de seus iguais a mesma conduta. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001. v. II. JUNKES, Sérgio Luiz. Defensoria Pública e o princípio da justiça social. 1. ed. reimp. Curitiba: Juruá, 2008. MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Assistência Jurídica, Assistência Judiciária e Justiça Gratuita. Rio de Janeiro: Forense, 1999. MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conhecimento. 5. ed. rev., atual., amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2002. MORAES, Humberto Peña; SILVA, José Fontenelle. Teoria da assistência judiciária: sua gênese, sua história e a função protetiva do Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1984. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 A INCIDÊNCIA DO ICMS NA CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS VIA INTERNET Nayara Marques Longhini* RESUMO Este estudo tem o escopo de analisar a incidência do ICMS, enunciado no artigo 155, inciso II, da Constituição Federal, nas operações de circulação de mercadorias do comércio na Internet. Procede-se à análise das implicações que o comércio eletrônico trouxe ao mundo tributário e econômico, principalmente quanto à tributação de bens comercializados. Faz uma reflexão sobre a possível tributabilidade do ecommerce e a incidência do ICMS na operação de circulação de bens tangíveis, discutindo se os intangíveis também serão considerados mercadorias para fins de aplicação desse imposto. Concluindo e pregando que o comércio eletrônico é passível de tributação e que o imposto incidente no comércio virtual deve ser o ICMS. Palavras-chave: Sistema tributário nacional. Comércio eletrônico. ICMS. Circulação de mercadorias. ABSTRACT The scope of this study is to analyze the incidence of ICMS (VAT), as stated in Article 155, item II of the Federal Constitution, in the operations of movement of trade goods on the Internet. It proceeds to an analysis of the implications e-commerce has brought to tax and economic areas, especially regarding the taxation of goods sold. It makes a reflection on the possible taxation of e-commerce and application of ICMS in the operation of movement of tangible and intangible goods, discussing whether intangible goods will also be considered for the application of this tax. It concludes by asserting that e-commerce is * Advogada; pós-graduanda em Direito do Estado (Universidade Estadual de Londrina). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 subjected to tax and that the tax levied in virtual shopping should be ICMS. Key words: Electronic commerce. ICMS. Movement of goods. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 A INCIDÊNCIA DO ICMS NA CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS VIA INTERNET Nayara Marques Longhini 1 INTRODUÇÃO Desde o surgimento da grande rede mundial de computadores, o que se percebe é a grande revolução pela qual a sociedade vem passando com a implementação deste novo sistema. Rapidez e liquidez de informações, encurtamento de distâncias, velocidade de transações, virtualização de operações que antes só eram possíveis em meio físico, a exemplo do comércio eletrônico, trouxeram para todas as áreas de convívio social grandes modificações, e com o direito, ciência que se pauta no relacionamento humano, não seria diferente. Conceitos arraigados e diretrizes já firmadas precisam ser revistos frente a tantas transformações, até mesmo no campo tributário. Para abordagem do tema em estudo, proceder-se-á a uma análise do comércio eletrônico, nova modalidade de transação mercantil que se desenvolve via internet, em conjunto com institutos do direito tributário, para se discutir a possibilidade de tributação das operações de circulação de mercadorias realizada em rede virtual. O Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), de competência estadual e distrital, disposto no art. 155, II, da Constituição Federal, surgiu, justamente, para taxar a comercialização de bens que se dá em meio físico. No entanto, diante da atual conjuntura e da crescente disseminação do e-commerce não faz sentido que o citado tributo fique restrito àquilo que não seja eletrônico. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Dentro desse panorama, o presente estudo delimitará como objeto a incidência do ICMS em sua vertente que mais interessa ao comércio desenvolvido em meio eletrônico, qual seja, a transferência de bens via internet, sejam eles tangíveis ou intangíveis. Para tanto, esta pesquisa abordará especificamente a tributabilidade do comércio eletrônico, mais precisamente se discutirá a possibilidade de incidência do ICMS nas operações de circulação de mercadorias ocorridas em meio virtual, somando o que fora levantado nas proposições iniciais para definição de bens tangíveis e intangíveis, sua relação com o e-commerce e a aplicação do comentado imposto. 2 A TRIBUTABILIDADE DO COMÉRCIO ELETRÔNICO De forma assente, afirma-se que o comércio eletrônico, nova modalidade de operações mercantis, invadiu os meios sociais e veio pra ficar, se expandindo dia-a-dia e ganhando contornos mais claros e definidos com o passar do tempo. Entre os mais variados conceitos que foram se formando na tentativa de definir esta prática comercial, que surgiu com o aparecimento da internet lá por meados da década de 90, se torna consenso, que para ser caracterizado como comércio eletrônico é necessário a existência da troca de dados por meio de redes de computadores, principalmente a Internet. Para Albertin (2010, p. 3): O comércio eletrônico (CE) é a realização de toda a cadeia de valor dos processos de negócio num ambiente eletrônico, por meio da aplicação intensa das tecnologias de comunicação e de informação, atendendo aos objetivos de negócio. Os processos podem ser realizados de forma completa ou parcial, incluindo as transações negócio-a-negócio, negócioa-consumidor e intraorganizacional, numa infraestrutura pública de fácil e livre acesso e baixo custo. Com o mesmo sentido, discorre Coelho (2006, p. 32): Comércio eletrônico é a venda de produtos (virtuais ou físicos) ou a prestação de serviços realizados em estabelecimentos virtuais. A oferta e o contrato são feitos por transmissão e recepção eletrônica de dados. O comércio eletrônico pode realizar-se através da rede mundial de computadores (comércio internetenáutico) ou fora dela. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 O fato é que, como tudo que se torna inovador, tal forma de negociação ainda traz em seu bojo uma série de dúvidas, que influenciam até mesmo o campo tributário. A maioria dos questionamentos surge no sentido de que se tais operações seriam tributáveis. Se sim, como se faria essa tributação. E os conceitos clássicos e convencionais de fato gerador, definição de objeto, hipótese de incidência, bens corpóreos e incorpóreos, estabelecimento comercial, e tantos outros já enraizados no sistema tributário nacional há muito tempo, como seriam aplicados no comércio eletrônico. Uma série de posicionamentos aparece com a finalidade de dar tratamento à causa e solucionar os problemas acima levantados. Há quem defenda que o comércio eletrônico não deveria sofrer tributação, com a justificativa de que o fenômeno ainda possui pouca relevância no mundo comercial e que os mecanismos administrativos e tecnológicos para administrar de forma eficaz o cumprimento das regras tributárias são indisponíveis, bem como que por ser uma atividade ainda nova merece proteção e incentivo. Assim se posicionam os norte-americanos, como confirma Ribeiro (2012, p. 3) ao argumentar que os Estados Unidos tem proposta para eliminar qualquer barreira fiscal sobre a comercialização de diversos produtos pela rede de internet, podendo encontrar dificuldade para tentar controlar a comercialização na rede, face às inovações tecnológicas e a impossibilidade de controlar o acesso das pessoas. Em contrapartida, teoria aceita e melhor difundida postula pela incidência tributária nas operações mercantis realizadas eletronicamente, tendo em vista que, assim como as que se dão fora da internet, o comércio eletrônico é uma atividade capaz de propiciar o surgimento de fatos geradores sendo, portanto, tributável. É o que demonstra Ferreira (2011, p. 25): No entanto, os defensores da tributação do comércio eletrônico argumentam que a não tributação ameaça rapidamente parte da receita dos governos, além de representar concorrência desleal com o comércio tradicional. Além disto, quem tem acesso à Internet são pessoas de mais alta renda, representando a não tributação um subsídio aos mais ricos em detrimento dos mais pobres que realizam suas compras no comércio tradicional. Também a não tributação e a UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 consequente perda de receita devido ao comércio eletrônico representaria uma ameaça maior para países em desenvolvimento, que contam com uma base menos ampla de contribuintes de imposto de renda. O certo é que, diante das inúmeras discussões surgidas acerca do assunto, o que se resta afirmar e defender é que o comércio eletrônico, em suas diferentes formas, é uma atividade passível de tributação e que, assim, deve sofrê-la. Tal posição ganha ainda mais força e aceitabilidade depois do ano de 1998, quando em uma Reunião Ministerial, em Ottawa, Canadá, a Organization for Economics Cooperation and Development (OECD) traçou uma série de diretrizes com a finalidade de orientar os governos em como se tributar o e-commerce, como destaca Ferreira (2011, p. 31): Apesar de alguns especialistas e países proporem uma moratória, a OECD, em sua reunião ministerial de Ottawa, Canadá, em 1998 [OECD, 1998], estabeleceu que os princípios que orientam os governos na tributação do comércio convencional devem ser mantidos no comércio eletrônico: neutralidade, eficiência, certeza, simplicidade, efetividade, equidade e flexibilidade. Estes princípios devem ser implementados por meio das regras tributárias atuais, ainda que com algumas adaptações. Esse conjunto balizador, chamado de “Taxation Framework Conditions for e-Commerce”, logo no seu parágrafo introdutório, observa que os governos devem instalar um ambiente fiscal onde o comércio eletrônico possa crescer e, concomitantemente, transmite a eles o dever de operar um sistema tributário justo e previsível, capaz de atender às expectativas dos cidadãos. Assim, da leitura do documento pode se depreender que suas principais conclusões são pela aplicação ao comércio eletrônico dos conhecidos princípios que regem o comércio convencional: neutralidade, eficiência, flexibilidade e certeza. Portanto, deste enunciado da OECD, constata-se que o comércio eletrônico não deve sofrer tratamento discriminatório em sua tributação, ou seja, diferente daqueles que pregam a não tributação desse tipo de operação, a recomendação é pela aplicação das regras tributárias atuais, ainda que com algumas adaptações, para se evitar UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 que tributos específicos sejam impostos para a Internet. Conclui-se, assim, que o comércio eletrônico é uma atividade passível de tributação e o modelo proposto pela OECD vem sendo o espelho para a maioria das autoridades tributárias construírem seus sistemas de gestão da tributação das operações comerciais eletrônicas. Resta demonstrar que o negócio empresarial realizado via Internet pode referir-se a diferentes tipos de bens e serviços, tendo por objeto o fornecimento de bens ou serviços convencionais, como a compra de livros ou eletrodomésticos, o que se acerta chamar de comércio eletrônico indireto ou off-line, onde apenas a contratação é realizada de maneira eletrônica, sendo que a execução do contrato se dará da forma convencional com a entrega física do bem ou o desenvolvimento do serviço contratado de forma pessoal. Como também pode ser realizado de maneira direta ou on-line e, assim, não só a contratação é teleinformática, como a própria execução do objeto constante do contrato será de maneira virtual, como salienta Emerenciano (2003, p. 64), “as operações iniciam-se e terminam no âmbito da rede, sem remessa física de qualquer espécie, transitando somente no ambiente de rede de computadores, de forma virtual, em um espaço topológico”. É o que acontece, por exemplo, com o fornecimento de bens digitais como filmes, fotografias, músicas ou as atividades de desenvolver softwares, prestar aconselhamentos econômicos e realizar investimentos. Para abordar cada possível tributo incidente nas operações mercantis realizadas em meio eletrônico, convém distingui-las em três modalidades: comércio de bens tangíveis, comércio de bens intangíveis e serviços de provedores de acesso à Internet. 3 A INCIDÊNCIA DO ICMS NO COMÉRCIO ELETRÔNICO DE BENS TANGÍVEIS Importante para a questão aqui comentada se faz a conceituação do que seria um bem tangível. Assim, nas bases do Direito Civil e de acordo com Rodrigues (2003, p. 116), “bens” são coisas que, por serem úteis e raras, são suscetíveis de apropriação e contêm valor econômico. E, complementando a idéia, se define bens tangíveis ou corpóreos como “coisas que têm existência material, UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 como uma casa, um terreno, uma jóia, um livro” (DINIZ, 2008, p. 327). Para a incidência tributária de compras que apenas se iniciam em meio eletrônico, com a contratação usando a rede mundial como intermediadora, mas que pelo bem ser tangível, por ter existência material, palpável, ocorrerá execução contratual de maneira convencional, com a efetiva entrega física do bem ao seu destinatário, não há maiores problemas nem é diferente da tributação incidente sobre os bens que não usam meio eletrônico para serem adquiridos. É o que afirmam, por exemplo, Tôrres e Caliendo (2005, p. 171): [...] o comércio eletrônico de mercadorias não apresenta maiores distinções em relação a outras formas de contratação inter ausentes (telefone, fax, telex, entre outros), não se podendo indicar a “internet” como meio hábil para justificar tratamento específico, sob pena de criar-se grave medida de discriminação tributária. Desse modo, quando uma mercadoria for adquirida por meio de contratação eletrônica e a entrega física venha a ser operada mediante agente de transporte ou correio, aplicar-se-á a legislação tributária que normalmente incidiria nos casos similares, sem qualquer diferença. Assim também é o posicionamento de Barros (2003, p. 49): No caso do comércio de bens tangíveis ou corpóreos (mercadorias), sujeito à cobrança do ICMS, a transação via Internet recebe tratamento equivalente ao das transações realizadas via telefone, fax ou catálogo, com a saída da mercadoria representando o fato gerador do imposto devido ao Estado em que o vendedor está estabelecido. Portanto, tratando-se de mercadorias tangíveis, com existência física e material, o tributo incidente na comercialização delas será o conhecido ICMS, de competência estadual, que também incide em outras modalidades de compras onde vendedor e consumidor não estão presentes, frente a frente, como naquelas efetuadas via telefone, catálogos, etc. Assim, passamos à análise de alguns pontos do tributo incidente – ICMS – no comércio eletrônico que envolve bens tangíveis. O ICMS encontra-se estabelecido no artigo 155 da Constituição Federal (VADE MECUM SARAIVA, 2012, p. 54), o UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 qual traz suas diretrizes. Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: [...] II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior. O ICMS, de competência estadual e distrital, é um imposto plurifásico por incidir sobre o valor agregado e obedecer ao princípio da não cumulatividade, é também real e proporcional, de caráter eminentemente fiscal. O parágrafo §2º do artigo 155 da Constituição Federal (VADE MECUM SARAIVA, 2012, p. 55) determina expressamente que caberá à lei complementar definir seu contribuinte, sendo que, consoante leitura do artigo 4º da Lei Complementar nº 87/96, os sujeitos passivos do ICMS são as pessoas que pratiquem operações relativas à circulação de mercadorias, os importadores de bens de qualquer natureza, os prestadores de serviço de transportes interestadual e intermunicipal, bem como os prestadores de serviços de comunicação. Importante destacar que também há possibilidade do polo passivo ser ocupado pelo responsável tributário, quando determinado por lei, sem que tenha verdadeiramente realizado o fato gerador, é o que a própria Constituição Federal (VADE MECUM SARAIVA, 2012, p. 53-4) admite em seu artigo 150, §7º, in verbis: Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] § 7.º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido. Da leitura do dispositivo acima, em especial da frase “cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente”, percebe-se a existência daquilo UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 que se chama de substituição tributária progressiva ou ‘pra frente’, onde uma terceira pessoa é escolhida para recolher o tributo antes que o fato gerador ocorra, ou seja, uma clara antecipação de pagamento diante de um fato gerador presumido. Custa ressaltar, no entanto, que no âmbito do ICMS, é mais comum a chamada substituição regressiva ou ‘para trás’, caracterizada pela ocorrência do fato gerador em ocasião anterior ao adimplemento do tributo, sendo sua efetivação postergada ou diferida. Trata-se do diferimento, como explica Sabbag (2011, p. 1007): O diferimento é a postergação do recolhimento do tributo indireto para um momento ulterior ao da ocorrência do fato gerador. Está inserido no contexto tributacional do ICMS, havendo a efetiva extinção do crédito tributário (= pagamento) pelo “contribuinte de fato”, e não pelo “contribuinte de direito”. Tal fenômeno ocorre por conveniência do sujeito ativo (Fisco), que vê no responsável tributário (terceira pessoa escolhida por lei para pagar o tributo) alguém com maior aptidão a efetuar o pagamento do tributo, mesmo não tendo realizado o fato gerador. Ocorre com produtos como o leite cru, a sucata, a cana em caule, etc. Partindo para definição de seu fato gerador, se tem que a circulação de mercadorias ou prestação de serviços interestadual ou intermunicipal de transporte e de comunicação, ainda que com início fora do Brasil, são as bases nucleares para incidência do ICMS. Assim, existiria, na verdade, um conjunto de operações flagrantes a dar ensejo à cobrança do referido imposto, que, para maior didática, poderiam ser dividas em: circulação de mercadorias, prestação de serviço de transporte interestadual e intermunicipal e de serviço de comunicação. Importante para este trabalho se faz discorrer sobre um tipo de operação tributável por ICMS, qual seja, a circulação de mercadorias. O vocábulo “circulação” transmite a ideia de mudar de titular; se um bem ou uma mercadoria transmuta de titular, terá circulado para efeitos jurídicos. O comentado termo acaba por restringir as operações nas quais ocorrerá incidência do ICMS, ou seja, somente naquelas que estejam ligadas à transferência de uma determinada categoria de bens, as mercadorias, é que são passíveis de cobrança pelo referido imposto, devendo a operação se revestir de um caráter jurídico. É o que discorre Cezaroti (2005, p. 52-3): UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 O significado jurídico de circulação está ligado à mudança de titularidade de um direito sobre uma determinada mercadoria, ou seja, mediante a circulação o sujeito transfere sua posse de uma mercadoria ou propriedade sobre ela a outrem, mediante contraprestação; há uma transferência de disponibilidade. Essa mudança de titularidade do bem pressupõe a tradição deste, pelo industrial ou comerciante, em um percurso entre fornecedores e consumidores, até que o bem objeto da atividade mercantil chegue à posse de aluem que simplesmente irá retirá-lo da circulação jurídica com o intuito de integrá-lo ao seu patrimônio por um período de tempo prolongado ou para seu consumo. Diante do enunciado, em que se afirma que não haverá incidência de ICMS quando ocorrer mera circulação econômica, será necessário, para tanto, conhecer o caráter jurídico da operação. Por isso que o simples deslocamento de mercadorias entre diferentes estabelecimentos de um mesmo contribuinte não é flagrante para desencadear a incidência do comentado imposto, falta-lhe juridicidade na operação, ou seja, há circulação física, mas não destinada ao consumidor final, que lhe revestiria com o caráter jurídico para cobrança de ICMS. No entanto, se faz necessário expor o entendimento de Torres (2006, p. 384) acerca do assunto: Nesse fato gerador se consubstancia, portanto, a circulação econômica das mercadorias revestida obrigatoriamente de uma qualquer forma jurídica. Todo ato jurídico que implique circulação econômica de mercadoria, independentemente de sua categoria ou de sua natureza gratuita ou onerosa será fato gerador do ICMS; da mesma forma as situações jurídicas que legitimem a circulação econômica, como por exemplo, a situação do industrial e do comerciante que promovem as remessas de mercadorias de um para outro de seus estabelecimentos, bem como o auto-consumo da mercadoria sem a sua circulação física para fora do estabelecimento, posto que para o ICMS é indiferente que haja, ou não, a transferência de domínio. [grifo do autor] Contudo, diante do estudo empreendido, restou claro que a posição acima transcrita encontra-se nas bases do pensamento minoritário, já que a maioria dos doutrinadores afirma que circulação é alteração de posse ou propriedade dos bens, objeto de atividade UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 mercantil em operações alicerçadas em negócios jurídicos, destinados ao consumidor final. Cabe agora analisar o conceito de mercadoria, o qual complementa o termo circulação, para fins de incidência do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. Segundo Silva (1997, p. 181), mercadoria é: Derivado do latim merx, de que se formou mercari, exprime propriamente a coisa que serve de objeto à operação comercial. Ou seja, a coisa que constitui objeto de uma venda. É especialmente empregado para designar as coisas móveis, postas em mercado. Não se refere aos imóveis, embora estes sejam também objeto de uma venda. A rigor, pois, mercadoria é designação genérica dada a toda coisa móvel, apropriável, que possa ser objeto de comércio. As coisas fora de comércio não se entendem mercadorias e não são suscetíveis de venda. A mercadoria é a que está no comércio, pode ser vendida pelo comerciante ou mercador. A coisa que não está para venda não é mercadoria. Diante do que foi exposto, fica demonstrado que um bem, para ser classificado como mercadoria, além de vários outros requisitos, deve levar em consideração o aspecto subjetivo de sua destinação. Assim, nada é mercadoria pela sua própria natureza, só a será aquele bem que está destinado à atividade de mercancia. É o que ensina, por exemplo, Carraza (2005, p. 41) ao afirmar que “não é qualquer bem móvel que é mercadoria, mas tão-só aquele que se submete à mercancia”. Pode-se, pois, dizer que toda mercadoria é bem móvel, mas nem todo bem móvel é mercadoria. Só o bem móvel que se destina à prática de operações mercantis é que assume a qualidade de mercadoria. Continuando seus ensinamentos sobre mercadorias, o autor afirma que a Constituição Federal, ao aludir o tema, encampou o conceito que já era proveniente de lei comercial. Logo, para fins de incidência do ICMS, mercadoria é aquilo que a lei comercial considera, e, portanto, que lei dos Estados e Distrito Federal não pode alterar o conceito uma vez que o Direito Comercial está sob reserva de lei nacional, só podendo ser modificável por lei ordinária proveniente do UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Congresso Nacional. Também acerca do assunto se faz necessário transcrever a posição de Machado (2010, p. 369): Mercadorias são coisas móveis. São coisas porque bens corpóreos, que valem por si e não pelo que representam. Coisas, portanto, em sentido restrito, no qual não se incluem os bens tais como os créditos, as ações, o dinheiro, entre outros. E coisas móveis porque em nosso sistema jurídico os imóveis recebem disciplinamento legal diverso, o que os exclui do conceito de mercadorias. A própria Constituição Federal, na partilha das competências impositivas, já determina sejam tratados diferentemente os bens imóveis, que não podem receber do legislador, complementar ou ordinário, o tratamento jurídico-tributário dispensado às mercadorias. [grifos do autor] Mercadorias são, portanto, segundo se infere do posicionamento acima, coisas móveis, corpóreas e que se destinam ao comércio, sendo que, coisas adquiridas pelos empresários para uso ou consumo próprio, não poderão figurar entre a classificação comentada. Na mesma linha, segue Emerenciano (2003, p. 149-50): Assim, exercitando a análise dos 36 artigos da Lei Complementar nº 87, que como norma complementar contribuiu inegavelmente na interpretação constitucional, pode-se afirmar que o termo “mercadoria” traz em suas múltiplas aparições e de forma consistente o seguinte núcleo de significação: i) coisa móvel; [...] ii) corpórea; iii) indiferente à circunstância de estar industrializada ou não; iv) objeto de um negócio jurídico que lhe determine a transferência de titularidade; v) negócio este cuja habitualidade ou volume revele intuito comercial; vi) que tenha como destino ser revendida; (EMERENCIANO, 2003, p. 149-50) De tudo exposto, se vê que não há divergências entre a UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 doutrina no que tange ser mercadoria, para fins de ICMS, coisa móvel e destinada aos atos de comércio, ou seja, venda e revenda habitual, para obtenção de lucro, com movimentação jurídica (transferência de titularidade). No entanto, a discussão começa quando se analisa a questão da tangibilidade do bem. Para Machado e Emerenciano, os dois autores anteriormente citados, para ser mercadoria deve ser bem corpóreo, ou seja, tangível. Tal posicionamento não é compartilhado, por exemplo, por Paulsen. Efetivamente o conceito secular de mercadoria tem como justificativa um bem corpóreo. Entretanto, na era atual, na qual é possível transformar uma mercadoria em dados digitalizados e transmiti-los entre dois computadores, o conceito tradicional deve ser flexibilizado. Ora, para que seja considerada uma mercadoria, basta que o bem tenha valor econômico e caráter circulatório. O requisito de ser corpóreo é plenamente dispensável. (PAULSEN, 2009, p. 342) Esta também é a linha de raciocínio empreendida por Cezaroti (2005, p. 82) quando afirma que não há necessidade da mercadoria ter uma manifestação material, no sentido de ter uma forma, mas que o importante é o modo como o bem é percebido. O certo é que, diante da falta de um conceito de mercadoria determinado pela legislação em vigor, bem como que por ser a determinação constitucional um tanto vaga, é que surgem discussões a respeito do tema, que, por essa lacuna, pode sofrer alargamentos para se adequar à nova realidade. Importante para este trabalho se faz considerar o ICMS nas operações interestaduais e o pólo arrecadador do citado imposto. Nas operações efetuadas por contribuintes que se encontram em Estados diversos, a questão é a quem caberia o produto da arrecadação, se aos Estados produtores ou aos Estados consumidores. A resposta para o questionamento se encontra no artigo 155, §2º, incisos VII e VIII, da Constituição Federal (VADE MECUM SARAIVA, 2012, p. 55), in verbis: § 2º O imposto previsto no inciso II [ICMS] atenderá ao seguinte: [...] VII - em relação às operações e prestações que destinem UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á: a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto; b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele; VIII - na hipótese da alínea "a" do inciso anterior, caberá ao Estado da localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual; [...]. No estudo em voga se deve atentar, principalmente, para a alínea b, do inciso VII, do artigo 155, da Constituição Federal, a qual demonstra que o imposto será recolhido pelo Estado produtor com base em sua alíquota interna. Quem melhor explica o procedimento é Alexandre (2009, p. 575). Para uma perfeita compreensão das regras será utilizado um exemplo, dividido em três situações hipotéticas, todas envolvendo a venda de uma mercadoria por uma empresa domiciliada em São Paulo a um adquirente domiciliado em Pernambuco. Para a análise dos casos, suponham-se as seguintes alíquotas como aplicáveis à mercadoria objeto da operação: Alíquota Interestadual (SP-PE) = 8% Alíquota interna de São Paulo = 18 % Alíquota interna de Pernambuco = 17%. E prossegue em seu raciocínio: Três situações são possíveis quanto à operação. No primeiro caso, o destinatário em Pernambuco não é contribuinte do ICMS (não é comerciante) e adquire a mercadoria como consumidor final. É o caso, por exemplo, da pessoa física que adquire uma mercadoria por meio de pedido via internet ou por ligação telefônica para comerciante domiciliado em outro Estado. Perceba-se que não há motivo de fato ou de direito para se aplicar a alíquota interestadual (8%) ao caso. Não há diferença relevante entre a operação relatada e aquela em que o adquirente, de passagem por São Paulo. Adquire a mercadoria no balcão da empresa comerciante. Em ambos os casos, será aplicável a alíquota interna de São Paulo (18%). (ALEXANDRE, 2009, p. 576) UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Assim, diante do exposto, se confirma a tese de que em sede de comércio eletrônico, que envolva destinatário não contribuinte de ICMS, ou seja, não comerciante, que adquire a mercadoria como destinatário final, o Estado produtor será o agraciado com o produto da arrecadação tributária. Aliás, entendimento este ratificado recentemente pelo STF na ADI nº 4705 (BRASIL, 2012) onde o ministro Joaquim Barbosa suspendeu, com efeitos retroativos, a aplicação da Lei nº 9582, de 12 de dezembro de 2011, do Estado da Paraíba. Tal norma estabelecia a exigência de parcela do ICMS nas operações interestaduais que destinem mercadorias ou bens a consumidor final, quando a aquisição ocorrer de forma não presencial, ou seja, por meio de internet. Importante, no entanto, comentar sobre a Proposta de Emenda Constitucional 103/2011 (BRASIL, 2012b), de autoria do Senador Delcídio do Amaral e outros senadores, que se encontra para ser votada na Câmara dos Deputados, já tendo sido aprovada, em segundo turno, em 4 de julho de 2012, no Senado Federal. Essa PEC acrescenta o inciso VIII-A ao § 2º, do artigo 155, da Constituição Federal, para modificar a sistemática de cobrança do ICMS incidente sobre as operações e prestações realizadas de maneira eletrônica e que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado. Assim, de acordo com o texto, caberá ao Estado do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual. Quando o destinatário for contribuinte do ICMS, geralmente no caso de empresas, a diferença será calculada entre as duas alíquotas. Já no caso de não contribuinte, ou pessoa física, aplica-se a diferença entre a alíquota interna do estado remetente e a alíquota interestadual. 4 TRIBUTAÇÃO NO COMÉRCIO ELETRÔNICO DE BENS INTANGÍVEIS Em sentido oposto ao que se discorreu anteriormente, bens intangíveis ou incorpóreos, diferente daqueles que apresentam tangibilidade, são os que não possuem um aparato físico para lhes caracterizar. Como ensina Diniz (2008, p. 327), “os bens incorpóreos não tem existência tangível”, ou seja, não são palpáveis, não possuem UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 existência física. No que consente ao comércio eletrônico, vários são os bens intangíveis que podem ser comercializados por via da grande rede. Desde músicas, filmes, fotografias, jogos, etc., até livros e softwares. E grandes questões surgem então: Se a compra de um produto em uma loja física exige o recolhimento de um determinado imposto, em uma loja virtual dever-se-ia aplicar o mesmo? Os bens digitais intangíveis são considerados mercadorias para fins de incidência do ICMS? E os softwares, são igualmente objetos de tributação? Qual imposto incidiria sobre eles? Se o conceito adotado para se definir mercadoria for aquele enunciado por Hugo de Brito Machado, Adelmo da Silva Emerenciano, Bernardo Ribeiro de Moraes, Alcides Jorge Costa, Roque Antônio Carrazza e outros doutrinadores clássicos do ramo tributário, as operações eletrônicas mercantis de bens intangíveis não poderiam ser fatos geradores para incidência de ICMS, uma vez que, para tais pensadores, no termo “mercadorias” tributáveis pelo citado imposto só caberiam aquelas dotadas de tangibilidade, ou seja, de existência física e palpável, sendo que inexiste essa característica para os bens digitais transacionados via comércio eletrônico direto. Essa é a conclusão que também chega Lanari (2005, p. 201): Nessa linha de raciocínio, só se pode concluir que as normas constitucionais e infraconstitucionais vigente não permitem a tributação das operações envolvendo os fornecimentos de intangíveis via Internet. Essa circunstância [...] constitui flagrante agressão aos mais elementares princípios de justiça fiscal – especialmente ao princípio da isonomia. A autora continua justificando sua afirmação pela não incidência do ICMS na comercialização, via internet, dos bens intangíveis, com base na literalidade do artigo 191 do Código Comercial Brasileiro e na sua enumeração exaustiva dos bens considerados mercadorias. Para Lanari, diante destas circunstâncias, é fato que o legislador quis restringir o universo da compra e venda mercantil no campo dos bens incorpóreos, para eleger como mercadoria aquele bem objeto de comércio do produtor ou comerciante, que tenha destinação mercantil, seja móvel ou semovente e corpóreo, sendo que, assim, o vocábulo mercadoria, para fins UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 jurídicos, possui uma acepção técnica, não devendo ser considerada qualquer interpretação vulgar. Continua, ainda, salientando que o artigo 110 do Código Tributário Nacional não permite que este conceito de mercadoria, já delimitado para bens corpóreos, seja ampliado, bem como que, superando discussões provenientes acerca de ser ou não mercadoria, outro fator que impediria a tributação por ICMS seria a impossibilidade de se caracterizar efetiva circulação jurídica nos negócios envolvendo fornecimentos eletrônicos. Outro grande nome atuante na área do direito digital e que prega pela não incidência do imposto é Pinheiro (2010, p. 267): Toda a doutrina é enfática ao dizer que, para fins de tributação, mercadoria é bem corpóreo (constituído por átomos) móvel e destinado ao comércio. Bens imateriais não podem a princípio ser objeto de tributação pelo ICMS (por exemplo, quem compra legalmente um software, na verdade não está adquirindo a propriedade deste, mas está recebendo uma licença do autor para usar o programa). Algumas mercadorias virtuais são de fato verdadeiras prestações serviços, outras constituem-se em direitos como o de autor. Independentemente da classificação, só podem ser tais bens objeto de incidência tributária se o legislador os previr e sobre eles dispuser, visto que até o momento estão imunes à tributação. No entanto, em uma toada inversa e mais condizente com a realidade digital vivida pela sociedade globalizada, se encontra tantos outros posicionamentos favoráveis pela incidência do ICMS no comércio eletrônico de bens intangíveis. É o que se passa a expor. Para Cezaroti (2005, p. 81-2) é importante, na distinção entre bens corpóreos e incorpóreos, o destaque quanto à percepção que se tem destes ou daqueles. Assim, segundo o autor, bens corpóreos ou materiais são os perceptíveis pelos sentidos humanos direta ou indiretamente por meio de instrumentos materiais, sendo que, bens imateriais ou incorpóreos são as coisas imperceptíveis pelos cinco sentidos humanos. Ou seja, qualquer coisa que seja constatada por qualquer dos sentidos humanos, será material. Desta forma, se justifica a incidência do ICMS no comércio eletrônico de bens intangíveis. Por mais que se fique preso ao conceito UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 de mercadoria como algo material, os bens intangíveis que podem ser comercializados via internet não perdem tal característica, visto que ainda são perceptíveis por algum sentido humano, sendo assim, incluídos entre os fatos geradores do comentado imposto. Como Cezaroti (2005, p. 82) comenta, a falta de suporte físico não implica que o bem seja imaterial, já que os bens comercializados eletronicamente são empiricamente constatados pelos seus consumidores: Essa percepção empírica ocorre no momento em que utilizamos um computador, máquina com aptidão para transformar os impulsos elétricos denominados bytes em sinais sensíveis à visão humana. Mas não é só, também quando utilizamos equipamentos controlados por meio de computador temos a percepção de que existe um comando (ainda que não voluntário e previamente programado por um ser humano) para a máquina. Não Há necessidade que a mercadoria tenha uma manifestação material, no sentido de ter uma determinada forma; o importante é a percepção do bem. Essa percepção pode ocorrer por meio de qualquer um dos sentidos humanos. [...] É preciso ficar claro que o tato não é a única forma de percebermos a presença de uma mercadoria; os seres humanos podem utilizar os outros sentidos (audição, olfato, paladar e tato) para apreendê-las. Prosseguindo, o autor destaca um ponto de grande importância para se postular pela tributação por ICMS das operações mercantis eletrônicas de bens imateriais: o aspecto subjetivo na definição do fato gerador do ICMS. Ou seja, assim como já foi exposto neste trabalho, a materialidade não é a única forma de se caracterizar um bem como mercadoria, ainda existe um segundo traço, onde, pelo aspecto intrínseco, subjetivo, mercadoria é tudo aquilo que envolva especulação comercial, tudo que o adquirente, no momento da compra, tenha a intenção de revender, que demonstre uma operação de circulação, com transferência de titularidade e faça movimentar recurso financeiro. É o que conclui Cezaroti (2005, p. 92): Deste modo, podemos dizer que a qualificação de um bem como mercadoria depende do aspecto subjetivo do empresário que realiza a venda. Esse aspecto econômico foi escolhido pelo legislador como o critério objetivo para a definição do que é ou não mercadoria. Com isso, concluímos que o aspecto subjetivo escolhido pelo legislador para ser um UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 critério objetivo na qualificação do que vem a ser mercadoria é o ponto de vista do vendedor do bem numa relação jurídica de compra e venda. Somando os dois lados apontados até agora, quais sejam mercadoria é aquilo que pode ser percebido pelo ser humano por qualquer de seus sentidos e mercadoria é aquilo que se destina à especulação econômica, que faz movimentar recursos financeiros e que está destinado à revenda, se pode afirmar, com certeza, que os bens digitais intangíveis são mercadorias, já que se encontram entre os pontos levantados (são perceptíveis pelos sentidos humanos, são destinados à revenda e movimentam lastros de recursos) e, portanto, passíveis de tributação via ICMS quando comercializados eletronicamente. É o que prega, também, Braghetta (2003, p. 164) ao defender a incidência de ICMS no comércio eletrônico de bens intangíveis, dando importância ao aspecto subjetivo da “operação de circulação”: Buscando um amadurecimento das questões oriundas do comércio eletrônico, entendemos que os procedimentos realizados por meio de digitalização, englobando-se aqui tanto mercadorias como serviços, podem ser objeto de comercialização por meios eletrônicos, permanecendo resguardado, saliente-se, o enunciado principiológico que estabelece o valor da segurança jurídica. Conclui-se, assim, ter havido a operação de circulação da mercadoria, ação necessária para que se reconheça a presença do ato comercial. Não há comprometimento da forma de tributação, pois há que se adequar à nova realidade o conceito de mercadoria, tributando-se da mesma forma, pelo ICMS, já que se encontram presentes os requisito de “realizar” “operação” de “circulação” de “mercadorias”. [grifos da autora] Continuando, a autora afirma que, “assim, o que se tributa são as operações; circulação e mercadorias são termos com o papel de qualificar a operação tributada” (BRAGHETTA, 2003, p. 166). Ou seja, diante do raciocínio empreendido, o importante para se defender a incidência de ICMS na compra e venda de bens intangíveis via rede mundial de computadores é o fato de que eles, além de poderem ser entendidos sim como mercadorias diante de uma nova interpretação do termo, mais condizente com a realidade virtual UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 vivida, ainda são alvo de circulação jurídica e econômica, como prega o arquétipo do fato gerador do comentado tributo e, mais ainda, são demonstradores de capacidade contributiva passíveis de submissão tributária. Aliás, Paulsen (2009, p. 342) levanta um grande ponto acerca do tema, para superar a questão no que tange à importância do aspecto subjetivo da operação de circulação: Ora, para que seja considerada uma mercadoria, basta que o bem tenha valor econômico e caráter circulatório. O requisito de ser corpóreo é plenamente dispensável. Devemos, sim, entender como bens, sejam estes imateriais ou não, todos aqueles responsáveis por manifestação de capacidade contributiva, ou seja, que gerem o interesse do Estado em regulá-los e tributá-los, sendo e gerando riquezas para a sociedade, restando insuficiente a noção tradicional de ‘mercadoria’, já que esta se encontra atrelada ao dogma “bem x materialidade”. Sem a referida interpretação, estaríamos inadvertidamente desconsiderando inúmeras e importantíssimas manifestações de capacidade econômica suscetíveis de submissão tributária [...]. Por conseguinte, a mercadoria não necessita ser um bem corpóreo. Basta que seja negociada com habitualidade e que o negócio objetive lucro [...]. Prosseguindo, o autor discute outro lado de grande importância na defesa da incidência tributária no que diz respeito a uma nova interpretação jurídica. Não se defende a ideia de ampliar indiscriminadamente o conceito secular de mercadoria, mas tão-somente adaptá-lo à realidade atual. A ampliação deve valer somente para os bens que tenha caráter comercial, mas que não se enquadram atualmente no ultrapassado conceito, tais como filmes, músicas e software digitalizados, circuláveis através de download [...]. A interpretação extensiva que se dá ao vocábulo ‘mercadoria’ deve abranger bens que seguramente tenham características para serem classificados como tal [...]. Isso porque nada impede que a Lei Maior altere o conceito de direito privado para fins tributários [...], ou então que venha a equiparar a transmissão de dados digitalizados à circulação de mercadorias, assim como a pessoa física que poder ser equiparada à pessoa jurídica (art. 149, §3º, da CF/88). Logo, percebe-se que a Carta Magna, por óbvio, tem autonomia sobre a regra do art. 11 do Código Tributário Nacional. (PAULSEN, 2009, p. 343) UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Portanto, diante de todo o exposto, se postula pela incidência do ICMS no comércio eletrônico de bens intangíveis. Até porque estes podem sim ser incluídos no conceito de mercadoria para fins da comentada tributação, tendo em vista que tal conceito não possui um significado determinado pela legislação em vigor, como afirma Cezaroti (2005, p. 97-8): A legislação em vigor não determina que as mercadorias precisem ser bens tangíveis, basta que sejam suscetíveis de individualização e de transporte de uma parte a outra, independentemente do meio adotado. Gases podem ser acondicionados em tanques e vendidos como mercadorias. A referência à legislação comercial ou civil não impede que o conceito de mercadoria varie ao longo do tempo, porque a evolução humana demonstra que novos tipos de bens suscetíveis de apropriação e comercialização surgem ao longo do tempo. Assim, diante de um termo que não se encontra expressamente definido pela legislação, sendo apenas uma construção doutrinária, podendo, portanto, ser alvo de uma interpretação mais realista e adequada aos novos tempos. E mais, diante do fato de que não se pode aplicar uma tributação diferenciada entre bens que sendo físicos serão tributados e passando para versão digitalizada não deveriam sofrer tal ônus, é que se defende a imposição do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação (ICMS) na compra e venda de bens incorpóreos, demonstrativos de circulação econômica, que fazem girar recursos financeiros e que, integram o rol de mercadorias. Interessante a forma de argumentação empreendida por Castro (2000, p. 10) para também defender a tributação por ICMS dos bens intangíveis comercializados eletronicamente: [...] como já afirmamos, a modernidade e seus inusitados componentes impõe a adequação ou atualização dos conceitos jurídicos, mesmo aqueles determinados e fechados, sob pena de que manifestações de capacidade contributiva, identificadas com bases econômicas juridicamente tributadas, deixem de ser atingidas e colaborem para o financiamento das atividades de interesse público realizadas pelo Estado. Ademais, no caso do conceito de “mercadoria”, sua referênUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 cia mais remota no campo do direito privado, encontrada no art. 191 do Código Comercial editado no século passado, já contemplava elementos não tangíveis, buscando abarcar todos os objetos do comércio independentemente da forma. Este, inclusive, é o sentido mais coerente e adequado para a idéia de mercadoria: “aquilo que é objeto de compra ou venda” ou “aquilo que se comprou e que se expõe à venda”. Portanto, em face a todos os motivos elencados, é fácil concluir que a mercadoria virtual, ente não palpável, pode ser aceita como objeto do chamado comércio eletrônico para efeitos de tributação. O fato é que, o mundo globalizado passa por muitas transformações e vários conceitos precisam ser reavaliados, cabendo ao operador do direito não deixar de considerar essa evolução nem ficar esperando que o legislador modifique o texto. Como diz Machado (2010, p. 292), “o melhor caminho, sem dúvida, para que o Direito cumpra o seu papel na sociedade, é a interpretação evolutiva”. Ainda mais no que diz respeito ao território novo da internet e sua agilidade. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo teve como finalidade analisar a incidência do ICMS nas operações de circulação de mercadorias ocorridas via Internet, partindo de premissas que buscaram examinar, diante dos enunciados constitucionais, os reflexos causados pela cobrança deste tributo no mundo virtual. Para tanto, a motivação do presente trabalho teve origem no desejo de compreender como o direito tributário pode ser aplicado nesta nova realidade digital, tendo em vista que muito de seus conceitos e aspectos foram enunciados ainda quando não se existia a rede mundial de computadores. No disposto pela Constituição Federal, o ICMS é o imposto capaz de atingir as transações de bens que, dada a realidade existente quando de sua criação, seriam tangíveis, físicos e capazes de alteração de propriedade. No entanto, com a revolução empreendida pelos fatores eletrônicos, o entendimento vem se alargando e o conceito de fato gerador do comentado tributo deve ser reavaliado nas bases de UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 uma interpretação mais atual. Dadas as considerações, optou-se fazer uma análise crítica do sistema tributário nacional em conjunto com a nova modalidade de operações mercantis, qual seja o e-commerce. Para tanto, abordou-se alguns conceitos constitucionais, bem como aqueles presentes no Código Tributário Nacional, para se explicar a tributabilidade do comércio eletrônico. De tudo o que foi analisado e debatido na presente investigação, acredita-se ser possível uma abordagem crítica que prega pela aplicação do campo tributário também no mundo virtual, concluindo-se que o comércio eletrônico é passível de incidência tributária, uma vez que, diante dos conceitos sopesados, que integram o sistema brasileiro, a mercantilização eletrônica em nada destoa dos enunciados que geram a obrigação de recolher impostos ao Estado. Fatos geradores, hipóteses de incidência, sujeitos ativos e passivos continuam a existir, também, no mundo digital, sendo, portanto, um grande erro se pregar a isenção tributária do e-commerce. A partir do analisado, concluiu-se que, para fins de circulação de mercadorias via internet, sejam elas tangíveis ou intangíveis, o tributo incidente é o ICMS, dado seu fato gerador e sua hipótese de incidência. Portanto, diante de tudo que foi lido, estudado, analisado e aprendido durante a realização do presente trabalho, a grande conclusão que se chega, em soma com tantas outras, é que a sociedade passou por mudanças extremamente significativas desde o surgimento da internet. O Direito, ciência dinâmica e em sintonia com o comportamento humano, não deixaria de ser atingido pelas transformações empreendidas. O caminho para uma convivência harmoniosa, que traga benefícios tanto para o Estado quanto para aqueles que o formam, é a adaptação de institutos e valores, uma interpretação mais condizente com a novel realidade, em prol do bem comum. REFERÊNCIAS ALBERTIN, Luiz Albertin. Comércio eletrônico: modelo, aspecto e conUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 tribuições de sua aplicação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2010. ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado. 3. ed. São Paulo: Método, 2009. BARROS, Rosa Maria Abreu. Tributação do comércio eletrônico. 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CFOAB e Governador e Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. 15 dez. 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoIni cial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=ICMS&processo=4705>. Acesso em: 16 ago. 2012b. CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. CASTRO, Aldemario Araújo. Os meios eletrônicos e a tributação. Disponível em: <http://www.professorsabbag.com.br/arquivos/downloads/ 1274567776.pdf>. Acesso em: 16 ago. 2012. CEZAROTI, Guilherme. ICMS no comércio eletrônico. São Paulo: MP, 2005. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 3. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 EMERENCIANO, Adelmo da Silva. Tributação no comércio eletrônico. São Paulo: IOB, 2003. (Coleção de Estudos Tributários) FERREIRA, Antônio Sérgio Seco. 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Tal possibilidade decorre do julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, oportunidade na qual o Supremo Tribunal Federal equiparou as relações homoafetivas às heteroafetivas, mediante interpretação conforme do artigo 1.723 do Código Civil. Contudo, uma vez que o julgado silencia sobre as consequências jurídicas dessa equiparação e que a legislação nada dispõe a respeito das uniões homoafetivas, não resta claro em que medida eles poderiam exercer os direitos dos pares heterossexuais. Analisando os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, igualdade e liberdade, este trabalho conclui que, a partir deste novo paradigma, a interpretação mais razoável é aquela que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. De outra parte, também se refuta os argumentos comumente utilizados pela doutrina para distinguir as uniões homoafetivas, demonstrando-se que o ordenamento jurídico brasileiro não as proíbe. Palavras-chave: Direito homoafetivo. Uniões homoafetivas. Casamento civil. Conversão de união estável. RESUMEN El presente trabajo trata de la posibilidad del matrimonio civil por parejas homoafectivas, sea su conversión desde la unión estable, sea por la vía directa. Esa posibilidad ha sido abierta por el juzgamiento de la * Bacharel em Direito (Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Acción Directa de Inconstitucionalidad 4277 y de la Alegación de Incumplimiento de Precepto Fundamental 132, oportunidad en que el Supremo Tribunal Federal igualó las relaciones homoafectivas a las heteroafectivas, mediante la interpretación según la Constitución del artículo 1.723 del Código Civil. No obstante, una vez que el juzgado omitió opinar sobre las consecuencias jurídicas de esa equiparación y que la legislación nada dispone con relación a las uniones homoafectivas, no se puso claro en cual medida esas parejas podrán ejercer los mismos derechos de los heterosexuales. Analizando los principios constitucionales de la dignidad de la persona humana, igualdad y libertad, el trabajo concluye, a partir del nuevo paradigma, que la interpretación más razonable es aquella que permite el matrimonio civil entre personas del mismo sexo. Por otra parte, también se rechazan los argumentos comúnmente utilizados por la doctrina para diferenciar las uniones homoafectivas, demostrándose que el ordenamiento jurídico brasileño no las prohíbe. Palabras-clave: Derecho homoafectivo. Uniones homoafectivas. Matrimonio civil. Conversión desde unión estable. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DA JURISPRUDÊNCIA Marlon Franco Maciel 1 INTRODUÇÃO Após o histórico julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 pelo Supremo Tribunal Federal em maio de 2011, restou incontroverso o caráter familiar das uniões homoafetivas, desde que preenchidos os requisitos também exigidos para uniões heteroafetivas – exceto, por óbvio, a diversidade de sexos. No dizer da própria Corte: ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de ‘interpretação conforme a Constituição’ [...] para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (BRASIL, 2011, p. 614-5) Nesta senda, em que pese o Supremo Tribunal Federal não ter expressamente esclarecido sobre a possibilidade de conversão da união homoafetiva em casamento civil, entende-se, neste trabalho, que sua possibilidade jurídica não só advém da força vinculante da interpretação conferida ao artigo 1.723 do Código Civil – considerando que a lei civil deve facilitar a conversão da união estável em casamento –, como também da melhor exegese dos princípios constitucionais, em especial a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a liberdade, ora comentados. Portanto, a despeito do silêncio do ordenamento positivo acerca desta realidade social, a pesquisa UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 pretende justificar a extensão do casamento civil aos homossexuais com base nos comandos supracitados, cujo conteúdo não somente demonstra a ausência de qualquer vedação expressa ao casamento homoafetivo, mas também fundamenta sua celebração. 2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTADORES DA POSSIBILIDADE DE CASAMENTO Na esteira da observação de Aimberê Francisco Torres (TORRES, 2008, p. 50), não se pode perder de mira o fato de que a Constituição Federal de 1988 trouxe o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, o que significa imposição direta da incidência de princípios constitucionais nas relações de Direito Privado, especialmente no tocante ao Direito de Família. Destarte, o tratamento das entidades familiares foi amplamente oxigenado pelo advento da nova sistemática constitucional. Tendo em vista, também, o fato de que a Constituição de 1988 erigiu a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito, partir-se-á desse fundamento da República para fundamentar a possibilidade do casamento civil homoafetivo. Além desse princípio, escolheram-se outros que lhe são umbilicalmente ligados – a liberdade e a igualdade –, por se entender que são valores que incidem de modo mais imediato sobre a questão, tendo sido considerados pelo Supremo Tribunal Federal quando da equiparação das uniões homoafetivas às heteroafetivas. Assim, como se demonstrará a seguir, a aplicação do regime de união estável do Código Civil às uniões homoafetivas, quando complementada pela interpretação dos princípios constitucionais escolhidos, não deixa dúvida sobre a possibilidade de conversão da união estável em casamento civil, bem como de habilitação para o casamento direto. 2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana Apesar da posição central de que goza a dignidade da pessoa humana na sistemática constitucional atual, seu prestígio nas Constituições brasileiras é fenômeno recente. A Carta de 1988 foi a primeira a positivá-la como fundamento do nosso Estado Democrático de Direito, no seu artigo 1º, inciso III. Além disso, previu um capítulo próprio destinado aos princípios fundamentais, UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 situado na parte inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes dos direitos fundamentais, em manifesta homenagem ao especial significado e função de tais princípios (SARLET, 2007, p. 63-4). Na verdade, como recorda Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 64), ressalvada uma ou outra exceção, tão somente a partir da Segunda Guerra Mundial, a dignidade da pessoa humana passou a ser reconhecida expressamente nas Constituições, notadamente após ter sido consagrada pela Declaração Universal da ONU de 1948. Fábio Konder Comparato (2006, p. 37) apresenta uma explicação para tal fenômeno: a compreensão da dignidade suprema da pessoa humana e de seus direitos, no curso da História, tem sido, em grande parte, o fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus olhos; e o remorso pelas torturas, pelas mutilações em massa, pelos massacres coletivos e pelas explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de uma vida mais digna para todos. Do mesmo teor é o entendimento de Rizzatto Nunes (2002, p. 48): [...] se torna necessário identificar a dignidade da pessoa humana como uma conquista da razão ético-jurídica, fruto da reação à história de atrocidades que, infelizmente, marca a experiência humana. Não é à toa que a Constituição Federal da Alemanha Ocidental do pós-guerra traz, também, estampada no seu artigo de abertura que ‘a dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público’. Foi, claramente, a experiência nazista que gerou a consciência de que se devia preservar, a qualquer custo, a dignidade da pessoa humana. Nessa ordem de ideias, a preocupação da Carta de 1988 em destacar e assegurar os direitos fundamentais parece advir do fato de ter sucedido à ditadura militar (1964-1985), período de violação sistemática dos direitos humanos por parte do próprio Estado. Buscando um ponto de partida para se chegar ao conceito de dignidade da pessoa humana, Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 62) a qualifica como UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 [...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres que assegurem a pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e coresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. Dada sua importância, é inafastável a conclusão de que a dignidade da pessoa humana é o valor supremo do ordenamento jurídico pátrio. Uadi Lammêgo Bulos (2009, p. 393) se refere à dignidade como um sobreprincípio, pois dele emanam todos os outros princípios constitucionais, como a legalidade e a liberdade de profissão, servindo, ainda, de vetor interpretativo para todas, do qual o hermeneuta não pode se afastar, dada a força centrípeta que a dignidade humana possui; é, portanto, o carro-chefe dos direitos fundamentais na Constituição de 1988. Nessa esteira, é preciso ressaltar a íntima ligação entre família e dignidade humana, reforçada na mudança de paradigma pela qual vem passando o núcleo familiar. A família patriarcal, sacralizada e patrimonializada, tal como concebida no Código Civil de 1916, não existe mais. A relação matrimonial não se presta mais para identificar um agrupamento de pessoas como grupo familiar. Hodiernamente, o que permite distinguir uma família não é mais o casamento – outrora único meio de constitui-la –, mas sim a afetividade entre seus membros. Por via dessa mudança paradigmática, acentuada, sobretudo, pelo advento da Carta de 1988, cristalizou-se a noção de que a família não é um fim em si mesmo, mas sim um instrumento para implementar a realização espiritual e afetiva daqueles que a compõem, tutelada na exata medida em que constitua um núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade dos filhos e de promoção da dignidade de seus integrantes (TEPEDINO, 2004, p. 398). Em outras palavras, significa dizer que as pessoas constituem famílias para serem felizes, e que esse núcleo familiar perdura na medida em que permite a seus integrantes a troca de afeto, a solidariedade, o companheirismo, o carinho, instituindo verdadeira comunhão de vida entre eles. Quando a afetividade entre os familiares desaparece, o próprio núcleo perde sua razão de ser, já que não mais proporciona a realização de seus UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 membros. Assim, para a família contemporânea importa muito mais o conteúdo das relações pessoais que lá se desenvolvem – se pautados pela afetividade ou não –, do que o status de seus componentes – se casados ou conviventes, se o parentesco é consanguíneo ou civil, etc. Em outras palavras, importa, como elemento essencial, “o amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses”, como refere Paulo Roberto Iotti Vecchiatti (2008, p. 218). Pois bem: considerando que tanto homossexuais como heterossexuais possuem exatamente a mesma dignidade – e, consequentemente, o mesmo direito de determinar suas próprias vidas – e que os núcleos familiares assumem, atualmente, a função de promoção da dignidade da pessoa humana, o Estado não deve, nem pode, criar óbices para a constituição de famílias, tanto por parte de heterossexuais quanto por homossexuais. Afinal, a supressão do casamento homoafetivo acarreta evidente restrição da liberdade sexual dos indivíduos homossexuais, em sério prejuízo à sua personalidade, como constata Érika Harumi Fugie (2003, p. 75-6): As relações sexuais se albergam entre os direitos de personalidade, sob o teto da liberdade de expressão, precipuamente no que diz respeito à identidade pessoal e à integridade física e psíquica. [...] O direito à liberdade permite ao indivíduo reclamar acima de tudo os bens de viver e de viver incólume, imprimindo às suas energias o caminho que prefere, dentro dos limites prescritos. [...] De modo que a liberdade de expressão sexual, como direito de personalidade, é direito subjetivo que tem como objeto a própria pessoa. Assim, é dotado de uma especificidade e se insere no minimum necessário e imprescindível ao conteúdo do indivíduo. De maneira que o aniquilamento de um direito de personalidade ofusca a pessoa como tal. [grifo nosso] Significa que todos devem ter a possibilidade de estruturar suas relações afetivas como bem entenderem. Não reconhecer a um indivíduo a possibilidade de viver sua orientação sexual em todos os seus desdobramentos é privá-lo de uma das dimensões que dão sentido à sua existência; é, na opinião de Luís Roberto Barroso (2007, p. 19), fazer com que os homossexuais sejam menos livres para viver suas escolhas. A relação entre dignidade da pessoa humana e a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo também tem repercussões psicológicas e sociais sobre homossexuais. Assim, observa Paulo Roberto Iotti Vecchiatti (2008, p. 348): UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 ao não se admitir a realização do casamento civil [...] está quem o faz a afirmar que a união homoafetiva não possuiria o mesmo valor de dignidade que a heteroafetiva. Afinal, é inegável que o casamento civil sempre foi colocado ao longo dos séculos como a consagração máxima da união amorosa entre duas pessoas, no sentido de dar uma condição de legitimidade a essa união afetiva. [...] Há um verdadeiro arquétipo social construído em torno da consagração da união amorosa pelo casamento civil, pois desde pequenos ouvimos direta e subliminarmente que só seremos felizes quando nos casarmos com a pessoa que amamos. [Grifo do autor] De fato, não há como negar a existência desse mencionado “arquétipo social”. Infelizmente, ainda está muito incutida no imaginário popular a ideia de que só é possível ser feliz por meio de uma relação amorosa, preferencialmente matrimonializada, havendo, inclusive, um “apiedamento” em relação àqueles que não se encaixam nesse padrão. Muito embora essa percepção seja falsa, é fato que a vedação do matrimônio entre pessoas de mesmo sexo traria nefastas consequências à autoestima – e, logo, à dignidade – da população homossexual. Primeiro, porque os homossexuais, mais uma vez alijados desse “modelo de felicidade”, fatalmente alimentariam um sentimento de “menos valia” em relação a si mesmos, quando comparados aos heterossexuais. Afinal, se as relações homoafetivas e heteroafetivas são essencialmente pautadas pelo amor familiar, e se apenas estas puderem ser convertidas em casamento, será evidente a mensagem emitida pelo Estado de que as relações entre pessoas do mesmo sexo são menos importantes e menos dignas do que as relações entre pessoas de sexo oposto. Segundo, porque, como bem observado por Luís Roberto Barroso (2007, p. 21), “[...] o reconhecimento do outro exerce importante papel na constituição da própria identidade (do self3) e no desenvolvimento de auto-estima”. Assim, a contrario sensu, o não reconhecimento se converte em desconforto, levando muitos indivíduos a negarem sua própria identidade à custa de grande sofrimento pessoal, pelo que a não atribuição de igual respeito às relações homoafetivas apenas vem perpetuar a dramática exclusão e estigmatização a que os homossexuais têm sido submetidos, numa patente violação à dignidade da pessoa humana (BARROSO, 2007, p. 21). 3 TAYLOR, Charles. A Política do Reconhecimento. In: ______. Argumentos filosóficos. Tradução de Adail U. Sobral. São Paulo: Loyola, 2000. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Portanto, em face dos argumentos elencados, pode-se defender que a vedação da conversão em casamento das uniões formadas entre pessoas do mesmo sexo é inconstitucional, por, primeiramente, colidir com a dignidade da população homossexual e bissexual, e, também, com outros princípios emanados da Lei Maior, conforme será demonstrado nos tópicos subsequentes. 2.2 O princípio da igualdade Não há como falar do princípio da igualdade sem remeter à clássica distinção entre igualdade formal e igualdade material. A primeira, surgida do ideário da Revolução Francesa, preconiza que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Destarte, impõe-se a aplicação do direito vigente a todos os indivíduos, sem consideração das características pessoais específicas dos cidadãos sujeitos à legislação a ser aplicada (VECHIATTI, 2008, p. 113). Em que pese o inegável avanço dos direitos individuais trazido por esta concepção formal de igualdade, este viés acabou se revelando insuficiente para efetivamente equiparar os indivíduos, porque o fato de estar desconectada de suas condições econômicas e sociais oportunizava que dois iguais fossem tratados de forma desigual, e vice-versa. Nesta ordem de ideias, analisando o critério formal, Roger Raupp Rios (2002, p. 36) constata que se admitiu uma “[...] definição do conteúdo dos direitos fundamentais pelo legislador”, e que “o esvaziamento material deste conteúdo [do princípio da igualdade], cujos contornos ficam à mercê da legislação, acabou por tolerar a adoção de medidas flagrantemente contrárias à dignidade humana”. Desta forma, a insuficiência da compreensão meramente formal do preceito isonômico demandou uma consideração de igualdade também material, proibitiva de tratamento desigual de situações idênticas ou análogas, mesmo que tal diferenciação arbitrária fosse instituída por lei (VECHIATTI, 2008, p. 115). Assim, a igualdade em seu aspecto material, baseada nas formulações de Aristóteles, preconiza o mesmo tratamento para os indivíduos que se encontrem em igual situação, ao passo que, aos que se encontram em situação diversa, deve ser dado um tratamento jurídico diverso (VECHIATTI, 2008, p. 116). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p. 21-2) tenta estabelecer critérios para saber se determinada discriminação colide ou não com o princípio da igualdade e, assim, leciona que: tem-se investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. Assim, com fundamento nos parâmetros acima propostos, e sabendo que a Constituição de 1988 adotou a igualdade em ambos os aspectos e, delineados os contornos gerais desse princípio, impende verificar se a diferenciação entre pares formados por pessoas do mesmo sexo e aqueles constituídos por pessoas de sexos opostos, com o fim de excluir aqueles do regime matrimonial, é ou não constitucional. Primeiramente, impõe-se saber quais os fins e os valores visados pelas normas jurídicas que tratam do casamento para, a partir daí, aferir se a adoção da orientação sexual como fator desigualador é legítima e, portanto, válida. Ora, como explanado neste trabalho, é latente que a tutela jurídica da família contemporânea toma por objeto a afetividade e a realização de seus componentes, de modo que, hodiernamente, as entidades familiares merecem proteção na medida em que buscam a troca de afeto e o objetivo de comunhão de vida em sua constituição. Considerando que tanto homossexuais e bissexuais como heterossexuais são iguais, tendo a mesma capacidade de constituir famílias embasadas pelo amor familiar – que é o “amor que vise a uma comunhão plena de vida e interesses de forma pública, contínua e duradoura” (VECHIATTI, 2008, p. 196) –, tendo esta capacidade sido reconhecida até pelo Supremo Tribunal Federal, não há razão para negar àqueles e possibilitar a estes a conversão de suas uniões estáveis em casamento, pois são exatamente iguais no que diz respeito à finalidade almejada pela norma, qual seja a proteção do amor familiar. Logo, inconcebível discriminá-los pelo critério de sua orientação sexual, vez que totalmente desconectados do objeto tutelado pelas normas constitucionais relativas ao casamento, qual seja, a afetividade. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Na verdade, mesmo que por si só tal fator constituísse razão suficiente para ensejar tratamento discriminatório aos homossexuais e bissexuais, sua admissibilidade não sobreviveria ao exame do nosso direito constitucional positivo, tendo em vista a proibição da discriminação em razão de sexo, insculpida no artigo 3º, IV, da Lei Maior. Em tese, poder-se-ia argumentar que a discriminação em relação a pares homoafetivos tem como critério a orientação sexual dos conviventes, e não seu gênero em si, de modo que tal descrímen não teria sido albergado pela proibição expressa no texto constitucional, e, portanto, seria válido. Todavia, como pontua Roger Raupp Rios (2002, p. 133), é impossível a definição da orientação sexual sem a consideração do sexo dos envolvidos na relação verificada; ao contrário, é essencial para a caracterização de uma ou de outra orientação sexual levar-se em conta o sexo. Isto porque a homossexualidade não apresenta sinais identificadores externos, só podendo ser identificada pela definição do sexo para quem o indivíduo se volta amorosamente. Assim, no exemplo do mencionado autor: Pedro sofrerá ou não discriminação por orientação sexual precisamente em virtude do sexo da pessoa para quem dirigir seu desejo ou sua conduta sexual. Se orientar-se para Paulo, experimentará a discriminação; todavia, se dirigir-se para Maria, não suportará tal diferenciação. Os diferentes tratamentos, neste contexto, tem sua razão de ser no sexo de Paulo (igual ao de Pedro) ou de Maria (oposto ao de Pedro). Este exemplo ilustra com clareza como a discriminação por orientação sexual retrata uma hipótese de discriminação por motivo de sexo. (RIOS, 2002, p. 133) Deste modo, o raciocínio aqui construído permite concluir que a Constituição veda a discriminação em razão de orientação sexual, pela proibição do preconceito de gênero. E mesmo que não vedasse, entende-se que ela estaria albergada pela expressão “quaisquer outras formas de discriminação”, do artigo 3º, IV, da Carta Magna. Aliás, tendo em vista que o tratamento igualitário é a regra e que as diferenciações é que devem ser justificadas, não se pode deixar de mencionar que o correto seria que os defensores da vedação do matrimônio aos pares de mesmo sexo justificassem o porquê de estes não merecerem iguais direitos. É de se lamentar que os estigmas ainda hoje carregados pela UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 homossexualidade e bissexualidade obriguem essa minoria a explicar e fundamentar a sua própria igualdade em relação aos heterossexuais, quando, em verdade, o correto seria a justificação do preconceito e da exclusão sofrido por eles. 2.3 O princípio da liberdade O princípio da liberdade, aqui encarado no prisma da liberdade de orientação sexual, guarda íntima conexão com o princípio da dignidade da pessoa humana. Isto porque, entendendo-se esta também como o direito de propiciar e promover a participação ativa e corresponsável no destino da própria existência (SARLET, 2007, p. 87), inafastável a conclusão de que extinguir o direito de liberdade fatalmente conduz à supressão da dignidade. Afinal, quando falta a prerrogativa de determinar a própria vida, o ser humano se veria reduzido a mero objeto. Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 87), ao relacionar a liberdade com a dignidade humana, comenta: Em primeiro lugar, relembrando que a noção de dignidade humana repousa – ainda que não de forma exclusiva [...] na autonomia pessoal, isto é, na liberdade [...] que o ser humano possui de, ao menos potencialmente, formatar a sua própria existência e ser, portanto, sujeito de direitos, já não mais se questiona que a liberdade e os direitos fundamentais inerentes à sua proteção constituem simultaneamente pressuposto e concretização direta da dignidade da pessoa, de tal sorte que nos parece difícil [...] questionar o entendimento de acordo com o qual sem liberdade (negativa e positiva) não haverá dignidade, ou, pelo menos, esta não estará sendo reconhecida e assegurada. No que toca especificamente à esfera da sexualidade, vale mencionar a lição de Érika Harumi Fugie (2003, p. 75), para quem “[...] as relações sexuais se albergam entre os direitos de personalidade, sob o teto da liberdade de expressão, precipuamente no que diz respeito à identidade pessoal e à integridade física e psíquica”. Nesta senda, afirma Maria Berenice Dias (2011, p. 89): O princípio da liberdade está consubstanciado numa perspectiva de privacidade e intimidade, podendo o ser humano realizar suas próprias escolhas, isto é, o seu próprio projeto UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 de vida. No campo específico da homoafetividade, o princípio da liberdade se faz presente no sentido de que toda e qualquer pessoa possui a prerrogativa de escolher o seu par, independentemente do sexo, assim como o tipo de entidade familiar que desejar constituir. [Grifo nosso] Assim, reportando-nos expressamente à conexão entre dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade, é possível falar, segundo o pensamento de Ingo Sarlet (2007, p. 108), na existência de um direito à livre orientação sexual, consequência lógica e inseparável do princípio da liberdade. Pois bem. Se é verdade que, como bem afirmou o eminente Ministro Carlos Ayres Britto (BRASIL, 2011, p. 638), da mesma forma que os heterossexuais se realizam heterossexualmente, os homossexuais só podem se realizar homossexualmente, então também é certo que não se pode vedar o matrimônio para pares de mesmo sexo. Do contrário, “como não desejam contrair matrimônio com uma pessoa de sexo distinto, não lhes [seria] assegurado o direito de constituir família” (DIAS, 2011, p. 90). Aliás, ao se permitir apenas o casamento de heterossexuais, a mensagem emanada pelo ordenamento é a de que só é válido exercitar o direito de liberdade se for para constituir união amorosa com pessoa de sexo diferente. Ora, tal regulamentação não confere liberdade alguma; ao contrário, impõe um modelo pré-ordenado de conduta, qual seja a heterossexualidade. Sobretudo agora que a liberdade de constituir uniões homossexuais foi finalmente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, urge permitir a sua conversão em casamento. Afinal, se a liberdade é concretização da dignidade humana, e se homossexuais e heterossexuais são rigorosamente iguais em dignidade, é imperioso reconhecer a ambos a possibilidade de se casar, já que o casamento é, indubitavelmente, expressivo meio de exercício da liberdade individual. 3 INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO ÀS UNIÕES HOMOAFETIVAS E AO CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO Embora esta pesquisa dirija-se para o entendimento de que a interpretação mais razoável dos princípios fundamentais já é suficiente para autorizar a possibilidade de conversão da união de pessoas do mesmo sexo em casamento, é necessário comentar alguns dos UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 argumentos comumente utilizados por aqueles que têm posição contrária. Ressalte-se que alguns destes fundamentos já restaram superados com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a admissibilidade da união homoafetiva como entidade familiar. Contudo, a título de argumentação, o presente trabalho pretende demonstrar que o ordenamento brasileiro não veda, ao menos de modo expresso, a união e o casamento entre pessoas do mesmo sexo; o que se tem, ao contrário, é uma lacuna legal, a ser suprida pela interpretação dos princípios constitucionais já relatados. Um argumento comum para a objeção do casamento homoafetivo, a “teoria do silêncio eloquente” preconizava que o fato de o legislador citar apenas o modelo heteroafetivo nos dispositivos relativos à união estável e ao casamento – por meio da célebre fórmula “homem e mulher” – estaria a vedar sua constituição por pares de mesmo sexo. Isso porque, como explica Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, tal teoria fundava-se na ideia de que “[...] determinadas lacunas do texto da Constituição Federal teriam sido intencionais, no sentido de que o Constituinte Originário teria decidido não regulamentar a matéria, impondo-lhe o vazio normativo” (VECCHIATTI, 2008, p. 436). No caso das relações homoafetivas, a lacuna do legislador seria, então, a forma que este teria encontrado para negar efeitos jurídicos. Em outras palavras, significa que se o legislador quisesse validá-las, as teria previsto de modo expresso, tal como fez com as uniões heterossexuais. Entretanto, não se pode acolher tal entendimento. Em primeiro lugar, não há dispositivo constitucional que afirme que o suposto silêncio deliberado do legislador ensejaria uma proibição à situação não regulamentada (VECCHIATTI, 2008, p. 436). Nesse ponto, é preciso considerar o raciocínio do Ministro Ayres Britto (BRASIL, 2012, p. 641): cuida-se, em rigor, de um salto normativo da proibição de preconceito para a proclamação do próprio direito a uma concreta liberdade do mais largo espectro, decorrendo tal liberdade de um intencional mutismo da Constituição em tema de empírico emprego da sexualidade humana. É que a total ausência de previsão normativo-constitucional sobre UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 esse concreto desfrute da preferência sexual das pessoas faz entrar em ignição, primeiramente, a regra universalmente válida de que “tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. (Grifo do autor) Ademais, é praticamente impossível determinar uma vontade una do Poder Legislativo, tendo em vista o elevado número de seus componentes e o próprio procedimento legiferante, no qual o projeto de lei pode sofrer inúmeras modificações, por vezes mutiladoras do seu espírito original. Assim, a interpretação conforme deve, na verdade, obedecer à vontade da lei, quando não for possível chegar à finalidade de seu criador. Não há, então, como concluir por um silêncio eloquente do legislador constituinte – tampouco do legislador infraconstitucional –, seja pela plena falta de embasamento desta interpretação, seja por contrariar a regra insculpida pelo artigo 5º, II, da Constituição Federal, ou pela simples impossibilidade de determinar se sua intenção foi mesmo excluir as uniões formadas por pessoas de mesmo sexo, de modo a ser mais razoável supor o mero esquecimento destas, não sua proibição. Em todo caso, evidente que tal teoria restou esvaziada após a decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo as uniões homoafetivas, já que a exegese da Corte estendeu a estas a proteção do artigo 226, § 3º da Constituição Federal, afastando-se, portanto, qualquer interpretação excludente do citado dispositivo constitucional. Ainda que não tivesse sido superada, haveria que se considerar o ensinamento de Luís Roberto Barroso (2007, p. 27): É certo, por outro lado, que a referência a homem e mulher não traduz uma vedação da extensão do mesmo regime às relações homoafetivas. Nem o teor do preceito nem o sistema constitucional como um todo contêm indicação nessa direção. Extrair desse preceito tal consequência seria desvirtuar a sua natureza: a de uma norma de inclusão. De fato, ela foi introduzida na Constituição para superar a discriminação que, historicamente, incidira sobre as relações entre homem e mulher que não decorressem do casamento. Não se deve interpretar uma regra constitucional contrariando os princípios constitucionais e os fins que a justificaram. [Grifo nosso] No mesmo sentido, a opinião de Maria Berenice Dias (2011, p. 137): UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 quando se assegura à família especial proteção, não se identifica a sua formatação. [...] Como é assegurada a proteção não só ao casamento e à união estável, mas também à família monoparental, resta evidente que não é a prática sexual ou a capacidade procriativa o elemento identificador da entidade familiar. Deste modo, descabido negar direitos a vínculos afetivos que não têm a diferença de sexo como pressuposto. Como observa a citada autora, a norma do artigo 226 da Constituição apenas poderia ser excepcionada se existisse outra de eliminação explícita de tutela de tais uniões (DIAS, 2011, p. 145). Poderia o legislador ter utilizado expressão restritiva, impedindo de modo expresso a união entre pessoas de idêntico sexo, mas não o fez (DIAS, 2011, p. 144). E se não o fez, foi porque provavelmente não quis negar seu caráter familiar. Nessa ordem de ideias, destacam-se as palavras de Luís Alberto Barroso (2007, p. 29): não tem pertinência a invocação do argumento de que o emprego da expressão “união estável entre o homem e a mulher” importa, a contrario sensu, em proibição à extensão do mesmo regime a uma outra hipótese. Tal norma foi o ponto culminante de uma longa evolução que levou à equiparação entre companheira e esposa. Nela não se pode vislumbrar uma restrição – e uma restrição preconceituosa – de direito. Seria como condenar alguém com base na lei de anistia. Em suma, a interpretação do artigo 226 da Constituição Federal exige sua consideração como norma inclusiva; destarte, não se pode invocá-la para afastar comunhões de vida estabelecidas pelo afeto – como é a união homoafetiva – da proteção estatal que a Carta Maior desejou estabelecer a todas as entidades familiares. Caso esta desejasse proteger determinados modelos familiares em detrimento de outros, teria consignado essa preferência textualmente. Na ausência de uma “exclusão expressa”, há que se levar em conta o sistema constitucional sustentado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, albergando-se as relações homoafetivas no âmbito da proteção do Direito de Família. Da mesma forma, também não há que se vedar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo sob o argumento de a igualdade de gênero constituir impedimento UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 matrimonial. Na lição da civilista gaúcha: Entre os impedimentos matrimoniais, não está prevista a identidade de sexo dos nubentes. Limita-se a lei a estabelecer requisitos para a sua celebração, elencar os direitos e os deveres dos cônjuges e disciplinar os regimes de bens. Sequer ao apontar as causas de nulidade ou anulação do casamento, é feita referência à identidade sexual dos cônjuges. (DIAS, 2011, p. 138) Em verdade, o argumento que vinha sendo – e ainda é – utilizado para repelir o matrimônio homossexual é o de que este seria um ato inexistente (conhecida como a “teoria do ato inexistente”), sob o fundamento de que a diversidade de sexos seria um pressuposto fático tão evidente do casamento, que sequer necessitaria de menção legislativa (VECCHIATTI, 2008, p. 417). Adotando essa posição, escreve Maria Helena Diniz (2010, p. 54): O casamento tem como pilar o pressuposto fático da diversidade de sexo dos nubentes (CC, arts. 1.514, 1.517, 1.565; CF, art. 226, § 5º). Se duas pessoas do mesmo sexo, como aconteceu com Nero e Sporus, convolarem núpcias, ter-se-á casamento inexistente, uma farsa. Absurdo seria admitir que o matrimônio de duas mulheres ou de dois homens tivesse qualquer efeito jurídico, devendo ser invalidado por sentença judicial. Se, porventura, o magistrado deparar com caso desta espécie, deverá tão somente pronunciar sua inexistência. Maria Berenice Dias (2011, p. 264) explica as razões da elaboração dessa teoria: Eis a justificativa: como a lei não elenca algumas causas de nulidade do casamento (ausência de celebração, ausência de manifestação de vontade e diversidade de sexo dos nubentes), ficava o juiz desarmado, não havendo possibilidade de invalidar casamentos portadores de defeitos insanáveis por não encontrar texto expresso para fundar a ação anulatória. Assim, a afronta a tais pressupostos passou a ser considerada como ausência de elemento essencial à própria existência do casamento. A categoria da inexistência vem em socorro do intérprete em situações de extrema perplexidade, quando o sistema de nulidades não se amolda perfeitamente ao caso. Aí está a origem do casamento inexistente. [Grifo do autor] UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Perceba-se, então, que o casamento entre pessoas do mesmo sexo era uma possibilidade tão absurda que, tendo o legislador “se esquecido” de proibi-lo, foi preciso construir essa tese, para barrar o negócio jurídico já no plano de sua existência. Em todo caso, é preciso afastar a aplicação da tese do ato inexistente. Primeiro, porque se mostra demasiadamente arbitrária e subjetiva: cria uma proibição sem texto, o que, como já mencionado, é vedado pelo teor do artigo 5º, II, da Lei Maior; além disso, possibilita ao intérprete que conceba um matrimônio como inexistente de acordo com os seus próprios critérios do que seria “absurdo” – da mesma forma que, para muitos, ainda é absurda a ideia de um casamento entre dois homens ou mulheres, o que, para outros, já é um acontecimento perfeitamente aceitável. Assim, ao tentar “resguardar” a instituição matrimonial contra hipóteses “inconcebíveis”, a teoria do ato inexistente acaba abrindo as portas para a insegurança jurídica. Não fosse o bastante, ainda incorre no erro de visualizar o casamento como uma instituição estanque, com requisitos inerentes a si, sem qualquer interação com o ordenamento jurídico vigente. Como esclarece Paulo Roberto Iotti Vecchiatti (2008, p. 273), a partir do momento em que uma “instituição” é inserida em um ordenamento jurídico, deve ela respeitar obrigatoriamente os princípios que regem a ordem jurídica em questão. Não importa a origem desta, se religiosa, cultural ou qualquer outra: deve ela obrigatoriamente obedecer aos ditames legais que regem o Direito eu o consagra, mesmo que isso venha eventualmente a alterar parte de seu conteúdo histórico “pré-jurídico”. E, com efeito, a partir do momento em que integra o arcabouço jurídico pátrio, mormente por sua dialética com os princípios constitucionais, a melhor interpretação parece ser aquela que defere aos pares homoafetivos o acesso ao casamento. Em todo caso, fato é que a tese do casamento inexistente padece de uma grande incongruência: não se sustenta em nenhuma proibição positivada no ordenamento positivo, mas, ao mesmo tempo, pretende estabelecer uma vedação, contrariando o artigo 5º, II, da Constituição Federal, por força do qual se exige que as proibições sejam expressas. Ainda assim, por mais que os argumentos expendidos ao longo deste trabalho não tivessem força para legitimar a UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 possibilidade do casamento civil homoafetivo, haveria que se reconhecer, todavia, a eficácia vinculante de que goza a equiparação das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Em outras palavras, significa dizer que, por mais que o Supremo Tribunal Federal não estivesse correto em sua decisão de conferir às uniões homoafetivas o mesmo regime jurídico das uniões heterossexuais, fato é que, por ter ocorrido em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, ela é dotada de eficácia erga omnes e efeito vinculante, conforme o artigo 284 da Lei nº 9.868/99. O paradigma jurídico das uniões homoafetivas é inescusavelmente o mesmo das heteroafetivas: desta forma, se estas podem ser convertidas em casamento, aquelas também o podem, até porque seguramente a intenção dos eminentes ministros não foi incluir “pela metade” os pares homoafetivos. Se tanto heterossexuais como homossexuais podem constituir entidades familiares com seus respectivos parceiros na mesma medida, e se estas se concretizam tanto pela união estável quanto pelo casamento, seria ilógico aplicar aos pares homoafetivos apenas o regime das uniões estáveis. Portanto, uma vez que o direito homoafetivo teve seus paradigmas revolucionados com a reinterpretação efetuada pelo STF, tornou-se irrelevante discutir a existência ou não do caráter familiar nas uniões homoafetivas. Agora, importa repensá-las a partir da determinação do Supremo – isto é, apreciando-as segundo o mesmo complexo de direitos e obrigações das relações heteroafetivas –, o que fatalmente redunda no reconhecimento do direito ao casamento – por meio da conversão de união estável ou pela via direta. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista todos os argumentos apresentados, impende reconhecer aos pares homoafetivos o direito ao casamento civil. Isso porque a negativa do matrimônio igualitário viola os princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade e liberdade, já que não há como dissociar o livre exercício da própria orientação sexual dos 4 Art. 28. [...] Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, tem eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 outros aspectos que compõem uma pessoa: obstar ou dificultar sua realização afetiva é, portanto, frustrar seus projetos de felicidade, abalando sua autoestima. Além disso, permitir o casamento civil somente entre heterossexuais significa que o Estado valora o relacionamento homossexual como “menos correto” que o modelo heteroafetivo, numa discriminação proibida pelo artigo 3º, IV, da Constituição de 1988 e que, inevitavelmente, incute em todos aqueles impedidos de se casar, um sentimento de “menos-valia”. Também se procurou demonstrar que as normas constitucionais de tutela da família visam a proteger não um modelo familiar pré-estabelecido, mas sim a afetividade entre seus membros. Nessa ordem de ideias, defendeu-se que só é válida a discriminação que tenha pertinência com o fim cominado pela norma, o que não é o caso, pois orientação sexual nada tem a ver com amor familiar. De outra parte, o ordenamento positivo em nada proíbe as uniões homoafetivas; aliás, sequer as menciona. Diante de tal silêncio, é preciso homenagear a sistemática constitucional atual e os princípios citados, incluindo-as nos mesmos regimes jurídicos aplicáveis às relações entre pessoas de sexo diferente. Não é possível, como pretendem alguns, ver neste silêncio uma intenção de exclusão. Primeiro, porque as normas que tutelam a família são normas de proteção e inclusão; assim, interpretá-las para negar direitos aos homoafetivos desvirtuaria totalmente sua finalidade. Depois, porque prevalece o artigo 5º, II, da Constituição: na ausência de proibição, o comportamento deve ser permitido. Assim, os argumentos expendidos mostram que é possível uma interpretação razoável no sentido de se deferir direito ao casamento aos pares homoafetivos. É preciso aproveitar as portas que foram abertas pelo Supremo Tribunal Federal para sepultar o velho Direito de Família, patrimonializado e patriarcal, “reabilitando” perante a sociedade um grupo há muito estigmatizado e valorizando o elemento mais importante para uma entidade familiar: o afeto. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, n. 16, mai.-ago. 2007. Disponível em: <http://www.direi topublico.com.br/pdf_seguro/diferentes_iguais_lrbarroso.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2013. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 Distrito Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Perda parcial de objeto. Recebimento, na parte remanescente, como ação direta de inconstitucionalidade. União homoafetiva e seu reconhecimento como instituto jurídico. Relator Ministro Carlos Ayres Britto. 4 maio 2011. Disponível em: <http://www.direitoho moafetivo.com.br/anexos/juris/2011.05.05__stf_-_adi_4.277.pdf>. Acesso em: 6 abr. 2013. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva: o preconceito & a justiça. 5. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. ______. Manual de direito das famílias. 7. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. 25. ed. 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UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 SOBRE GURIS E PIVETES: AS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Marilu Martens Oliveira* Vívian Martens Oliveira Banks dos Santos** RESUMO Este trabalho tem como centro de interesse as canções da música popular brasileira (MPB) “Meu guri” e “Pivete”, do cantautor Chico Buarque de Hollanda, que versam sobre o jovem infrator, e que, após mais de trinta anos, infelizmente, continuam não datadas, justificandose, portanto, a pesquisa sobre o tema. Serão, também, realizadas reflexões sobre as medidas protetivas e socioeducativas estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e sobre a sociedade brasileira hodierna. Palavras-chave: Chico Buarque; Meu Guri; Pivete, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); Medidas protetivas e socioeducativas. * * Doutora em Letras (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São Paulo); Mestra em Letras (Universidade Estadual de Londrina - UEL); graduada em Letras Franco-Portuguesas (FAFICOP), em Direito (UEL) e em Pedagogia (Faculdade de Educação Ciências e Letras Dom Domênico, Guarujá, SP); especialista em Língua Portuguesa: Descrição e Ensino (Faculdade Estadual de Filosofia Ciências Letras de C. Procópio - FAFICOP, atual UENP); possui curso de aperfeiçoamento em Formação Empreendedora na Educação Profissional (Universidade Federal de Santa Catarina); professora aposentada da UENP e efetiva da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Cornélio Procópio). * Mestra em Direito Processual e Cidadania (Universidade Paranaense-Umuarama, 2012); graduada em Direito (Universidade Estadual do Oeste do Paraná, 2008); pós-graduada em Direito de Família (Fundação Escola do Ministério Público, Curitiba, 2010) e em Direito Contemporâneo (Curso Prof. Luiz Carlos, Curitiba, 2010); Técnica Judiciária e professora no curso de Direito da Faculdade de Ensino Superior (Marechal Cândido Rondon, PR); associada ao Instituto Brasileiro de Direito de Família; tem experiência em Direito Civil (Família), Bioética, Infância e Juventude. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 ABSTRACT The center of interest of this work is the Brazilian popular music (MPB) songs "Meu Guri" and "Pivete", authored by songwriter and singer Chico Buarque de Hollanda. They deal with the young offender and are, after more than 30 years, unfortunately, still undated, justifying the research on the topic. Reflections will be held on protective and social-educational measures established by the Statute of Child and Adolescent (ECA) and today's Brazilian society. Key words: Chico Buarque. Meu Guri. Pivete. Statute of Child and Adolescent (ECA). Social-educational measures. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 SOBRE GURIS E PIVETES: AS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Marilu Martens Oliveira Vívian Martens Oliveira Banks dos Santos 1 INTRODUÇÃO – REBENTOS BRASILEIROS Hoje, “seu moço”, a conversa é sobre rebentos, sobre crianças e jovens brasileiros que vivem na chamada “situação de risco”, segundo operadores jurídicos, instituições tutelares, técnicos sociais, mídia e senso comum: são provenientes de lares desfeitos (há a falta de um dos genitores, ou a de ambos, assim moram com avós, tios, padrinhos); pouco vão à escola e nela permanecem (é muito alto o índice de evasão); a formação deficiente não lhes permite bons empregos; sentem-se discriminados em relação às ações policiais (apreensões arbitrárias, muitas vezes); a situação financeira da família é precária e vivem de benefícios sociais; além do que a sedução do consumo, “marqueteada”, é imensa, acompanhada pela sedução da droga, onírica e produtora de “grana” fácil; a vizinhança é violenta; há falta de afeto (o relacionamento familiar não é dos melhores), de lazer, de condições de higiene, enfim, de uma vida saudável. E, sabe-se, é muito importante que o jovem sinta-se querido e protegido. O vínculo familiar é um aspecto tão fundamental na condição humana, e particularmente essencial ao desenvolvimento, que os direitos da criança o levam em consideração na categoria convivência, estar junto. O que está em jogo não é uma questão moral, religiosa ou cultural, mas sim vital. (VICENTE5 apud QUINTAS, 2009, p. 6) Nossas reflexões, portanto, inicialmente serão sobre algumas questões sociais que assolam o Brasil há muitos anos e, para tanto, precisamos primeiro definir quem é a nossa criança e quem é o nosso 5 VICENTE, C. M. O direito à convivência familiar e comunitária: uma política de manutenção do vínculo In: KALOUSTIAN, S. M. (Org.). Família brasileira: a base de tudo. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1998. p. 51. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 jovem. A adolescência compreende um período etário e um processo psicossomático transitório entre as fases infantil e adulta, estando, por isso, sujeita às circunstâncias sociais e históricas para a formação do indivíduo. O “ser adolescente”, por conseguinte, é muito complexo, pois além das alterações biológicas e psicológicas que sofrem os jovens neste período, eles têm ainda que passar por vários outros dilemas, encargos e responsabilidades, que, muitas vezes, são verdadeiros fardos para a idade, podendo provocar revolta, transgressão e desafio à autoridade de qualquer tipo. Ressalte-se que tanto os filhos como os pais, muitas vezes, pouco sabem lidar com os conflitos que se apresentam nessa fase da puberdade, conhecida como período de “tempestade e stress”, em famosa expressão de Stanley Hall. Juridicamente, adolescente seria o jovem entre 12 e 18 anos de idade. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, no seu artigo 1º, dispõe sobre a proteção integral ao adolescente e à criança (ROSSATO; LEPORE; CUNHA, 2012, p. 51). O legislador nele instituiu os termos “criança” e “adolescente”, buscando, dessa forma, não permitir a marginalização, o estigma e o trauma (LIBERATI, 2006, p. 17). Ele assim dispõe: Art. 2º. Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquele entre doze e dezoito anos de idade. Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. (ISHIDA, 2006, p. 2) Empregamos aqui, por conseguinte, o vocábulo “jovem”, visto que a terminologia “menor” deixou de ser usada, tendo em vista seu caráter pejorativo e discriminatório. Na concepção técnico-jurídica, “menor” designa aquela pessoa que não atingiu ainda a maioridade, ou seja, 18 anos. A ele não se atribui a imputabilidade penal, nos termos do art. 104 do ECA c/c art. 27 do CP. Se isto não bastasse, a palavra “menor”, com o sentindo dado pelo antigo Código de Menores, era sinônimo de carente, abandonado, delinquente, infrator, egresso da FEBEM, trombadinha, pivete. (LIBERATI, 2006, p. 17) UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Nosso tema é instigante e polemiza-se bastante nas rodas, jurídicas ou não, quando se fala de jovem infrator e do ECA. Discutem-se estereótipos cristalizados no vocábulo “menor”, que aparecem em letras de canções populares, filmes, romances, reportagens jornalísticas e mídias sociais. É comum, inclusive em programas policiais “mundo-cão”, da televisão, aparecer jovens envolvidos em delitos, que, para se safarem, dizem assim que são detidos: “sou de menor” [sic]. Causou grande controvérsia, na época de seu lançamento, 1981, o filme Pixote – a lei do mais fraco, dirigido por Hector Babenco, e calcado no romance-reportagem de José Louzeiro, A infância dos mortos. Ele mostra a vida de um garoto, com aproximadamente 10 anos de idade, que, devido às circunstâncias, usa e vende drogas, torna-se cafetão e assassino. E, o que é pior, faz pós-graduação no crime nas instituições para os chamados menores infratores da época, nas quais esteve internado. Foi tamanho o sucesso da obra cinematográfica que houve uma sequência dela, em 1996 – Quem matou Pixote?, dirigida por José Joffily (na vida real, o ator de Pixote, Fernando Ramos, havia sido assassinado, após cometer diversos delitos). São inúmeros os filmes que tratam da temática do jovem (da periferia, em especial, ou da classe média e da classe média alta) envolvido com drogas, do desajuste familiar, da violência e da criminalidade. Entre eles estão Bicho de sete cabeças, Ônibus 174, Ódiquê?, Anjos do Sol, Paraísos artificiais, Querô, Os doze trabalhos, Meu nome não é Johnny, Última parada 174, Juízo, Território e violência, Bróder, Capitães de areia. Destacam-se ainda documentários, como o recente Território e violência, 2008, de Patrícia S. Riviero e Ruth Imanashi Rodrigues, complementando a pesquisa "Indicadores de Proteção e Risco para a instrumentação de Políticas Públicas em Favelas no Rio de Janeiro", realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), sobre vítimas de homicídios. São analisadas, via depoimentos de urbanistas, especialistas em segurança pública e moradores, as causas prováveis das favelas serem o local de moradia da maioria das citadas vítimas. Apontam-se as políticas que produziram tais fatos e também quais as que “poderiam mudar o quadro de segregação social urbana através da violência” (OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2013). E o UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 polêmico documentário de João Moreira Salles e Kátia Lund, Notícias de uma guerra particular, lançado, em 1999, que assinala nossas mazelas sociais, tais como a negligência, o comodismo, a injustiça, a banalização da violência, que aumentava nos morros do Rio de Janeiro, no caso, a favela Santa Marta. O cenário em que pisam jovens traficantes, moradores e polícia é o de uma guerra, uma guerra particular, na qual não há vencedores (OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2013). O maior sucesso de público e de crítica, porém foi o premiado Cidade de Deus, 2002, filme de Fernando Meirelles, inspirado no livro homônimo de Paulo Lins, que denuncia a escalada da violência e do crime na sociedade brasileira, com intensa participação de crianças e adolescentes. Passa-se da “era da maconha” para a “era da cocaína” e, depois, para a “era do crack”. Porém, mais que os filmes e livros, são as canções (e clipes) que melhor retratam e influenciam a sociedade, por serem um recurso midiático barato e de fácil acesso. “Meu guri”, de 1981, composta por Chico Buarque de Hollanda, é o canto da mãe, humilde e ingênua, moradora do morro, que não se dá conta da marginalização do filho. Do mesmo autor, em parceria com Francis Hime, é “Pivete”, de 1978, que mostra as peripécias de um pequeno Garrincha, flanelinha de pernas tortas, que “descola uma bereta” (para praticar as infrações), “batalha na sarjeta”, e para comover o transeunte fala de sua fome numa linguagem macarrônica, mesclando francês, inglês e italiano, com a malandragem carioca eivada de certa sofisticação globalizada: “Monsieur have money per mangiare”. Na cartografia do crime, “pivete” é o menor que age por conta própria e se dá bem, é o “esperto”, “o bandidinho”, “o malandro” que atravessa o mundo do “otário”, do “trouxa”, que é aquele que trabalha muito e ganha pouco. Observamos, na canção, a reprodução dos estereótipos sobre o jovem da periferia: talvez more no morro do Borel, no Rio de Janeiro (ou, pelo menos, lá é seu esconderijo), provavelmente joga futebol, é negro (“Pelé”), anda armado (canivete, bereta), usa droga e fica “doidão”, pratica infrações (rouba transeuntes, – ameaçando-os com canivete – e furta carros, fazendo “ligação direta”, saindo em alta velocidade como seus ídolos, pilotos campeões da Fórmula I: Emerson Fittipaldi e Airton Senna). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Pivete (Francis Hime e Chico Buarque)6 Monsieur have money per mangiare No sinal fechado Ele vende chiclete Capricha na flanela E se chama Pelé Pinta na janela Batalha algum trocado Aponta um canivete E até Dobra a Carioca, olerê Desce a Frei Caneca, olará Se manda pra Tijuca Sobe o Borel Meio se maloca Agita numa boca Descola uma mutuca E um papel Sonha aquela mina, olerê Prancha, parafina, olará Dorme gente fina Acorda pinel Zanza na sarjeta Fatura uma besteira E tem as pernas tortas E se chama Mané Arromba uma porta Faz ligação direta Engata uma primeira E até Dobra a Carioca, olerê Desce a Frei Caneca, olará Se manda pra Tijuca Na contramão Dança para-lama Já era para-choque Agora ele se chama Emersão (Airtão) Sobe no passeio, olerê Pega no Recreio, olará Não se liga em freio Nem direção 6 Em versão posterior (CD “Paratodos”, 1993), Chico, depois de ver moleques de rua pedindo esmola em várias línguas, alterou a letra original de "Pivete" (1978) e aproveitou para colocar Ayrton Senna, destaque na época, no lugar de Emerson Fittipaldi. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 No sinal fechado Ele transa chiclete E se chama pivete E pinta na janela Capricha na flanela Descola uma bereta Batalha na sarjeta E tem as pernas tortas (BUARQUE, 2013a) Chico Buarque, considerado por Meneses (1982, p. 17) o “artesão da palavra”, em suas canções coloca em destaque os “desvalidos”, apropriando-nos de uma expressão de Anazildo Vasconcellos, que são os menores abandonados, as prostitutas, os travestis, os lúmpens, ressaltando a condição de marginalização dos mesmos em relação ao status quo, o que ocorre na canção supracitada. Nela a melodia tem um ritmo ágil, assim como a vida acelerada do pivete, no que é acompanhada pela letra, marcada por verbos de ação: “pinta” (aparece, chega), “capricha”, “descola”, “batalha”, “vende”, “aponta”, “dobra”, “desce”, “se manda”, “sobe”, “descola”, “agita”... O vocabulário coloquial, permeado por gírias (“Pinta na janela”, “se maloca”, “se manda pra Tijuca”, “Sonha aquela mina, olerê”), retrata o discurso da malandragem da época da composição, denotando certa ingenuidade até, perto do que ouvimos mais recentemente, em certos raps e funks, com letras chulas, que fazem bastante sucesso e incitam ao sexo, ao uso de drogas e à violência, rebaixando a figura feminina, em associações com imagens de animais. Nessas canções que retratam muitas vezes a violência urbana, quase sempre ela é explícita, mas o que seria a violência? Lato sensu seria o ato que atinge fisicamente o corpo da pessoa. Para Chesnais (1981, p. 32), ela é exterior, brutal e dolorosa. Juridicamente corresponde ao crime contra a pessoa. Vale notar outros tipos de violência, a moral e a psicológica, que não serão aqui estudadas. Distinto aspecto a ser lembrado é que, para a sociedade, o adolescente infrator possui duas faces: a de vítima e a de delinquente juvenil, o marginal. Sob o primeiro ângulo, observa-se a realidade de diversos jovens como a de alguém vitimizado, vivendo à margem do Estado de Direito, em um país, no qual, todos os dias pipocam escândalos (ligações entre polícia e criminosos; políticos corruptos; UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 pessoas assassinadas por marginais ou por balas perdidas, de armas “sem donos”). É visto como o morador da periferia com inúmeros problemas já citados, acrescentando-se dificuldades relacionadas à saúde (descaso estatal) e à violência de ordem sexual, que dele independem. Por outro lado, olha-se para um jovem sem limites, violento, que abusa de tóxicos, geralmente tatuado (o que para a sociedade é marca de transgressão), irresponsável, marginalizado, e que, provavelmente, irá trilhar sua vida por uma via diversa daquela considerada correta pela sociedade. Desse modo, pergunta-se: será o adolescente infrator o real problema na existência em sociedade? Não será esta própria a causadora de dificuldades, inclusive, as existentes na vida de tal adolescente? Pesquisa realizada em Marechal Cândido Rondon, cidade do oeste paranaense com aproximadamente 50.000 habitantes, detectou o grande número de reincidentes entre os jovens infratores cujos processos foram examinados e que haviam sido submetidos às medidas socioeducativas (SANTOS, 2008, p. 70). Também Cezar Bueno de Lima (2009, p. 20) analisa as medidas tomadas em relação ao jovem infrator, em função de pesquisa que realizou em Londrina, Paraná, cidade de aproximadamente 515.000 moradores, sobre adolescentes assassinados entre 2000 e 2003, que passaram pelo Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Infrator (CIAADI/SAS), pela Vara da Infância e da Juventude, além de cumprirem algum tipo de medida socioeducativa. Aponta o mesmo pesquisador que Michel Foucault foi o primeiro teórico a mostrar que a sociedade disciplinar e de controle tem seu poder legitimado pelo discurso científico (LIMA, 2009, p. 21) e, dessa forma, Lima procurou acompanhar todo o processo relacionado com o jovem eliminado, “o itinerário trilhado pelos técnicos sociais e jurídicos”, investigando “o tipo de ato infracional praticado, internamento provisório, laudo social, sentença judicial e acompanhamento da medida socioeducativa aplicada” (LIMA, 2009, p. 13). Dos jovens assassinados, 452 eram atendidos pelo Projeto Murialdo, instituição que acompanha, desde o ano 2000, as medidas socioeducativas de “Prestação de Serviço à Comunidade e de Liberdade Assistida na cidade de Londrina” (LIMA, 2009, p.14). Foi constatado que a maioria dos jovens mortos era de infratores reincidentes, UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 o que se aproxima dos resultados da outra pesquisa, ainda que os contextos geográfico e social sejam bem diferentes. Uma cidade está localizada no norte; a outra, no oeste do Estado. Uma é bem pequena (não tem cinema nem teatro, poucas são as bibliotecas e instituições de ensino superior); a outra é um grande centro urbano e regional, com destacado relevo na cultura nacional (Festivais internacionais de música e de teatro, vários cinemas e bibliotecas, inúmeras universidades). Numa, a colonização foi feita por gaúchos e catarinenses, descendentes de alemães e italianos, a partir de 1950, após a compra de grande gleba pela Companhia Madeireira e Colonizadora Rio Paraná S.A. (Maripá), em 1946 (VITECK, 2010). Na outra, paulistas e mineiros predominaram na sua formação inicial, além da influência da Companhia de Terras Norte do Paraná, subsidiária da firma inglesa Paraná Plantations Ltd., que, a partir de 1924, muito impulsionou o processo de desenvolvimento na região (LONDRINA, 2013). Logo, situações diversas, mas resultado igual quanto aos jovens infratores: não houve recuperação, não houve o prometido caráter pedagógico previsto pelo ECA. Onde está a falha? Para Lima (2009, p. 222), As propostas visando à contenção da violência permanecem valorizando as instâncias burocráticas que produzem decisões descentralizadas e que acionam a polícia, os promotores, os magistrados, os peritos policiais e os agentes comunitários. No interior dessas engrenagens do poder-saber, as decisões proferidas não representam o produto consensual que envolve “vítima e infrator”, segundo o caso, e seja decidido na “localidade onde ocorreu o ato infracional”. De acordo com o pesquisador, os “atos indesejáveis e não os definidos como infrações devem constituir o ponto de partida para a solução dos conflitos” (LIMA, 2009, p. 222). Portanto, o adolescente ser transformado em alguém “infantil”, segundo ele, e a vítima em “testemunha”, na esfera judicial, com o cumprimento das medidas preconizadas, apenas ampliam e produzem novos problemas. Cita, para corroborar seus argumentos, que normalmente o tipo de solução adotada não [...] guarda relações de proximidade e não sela compromissos de dependência com o poder jurídico-político monoinstitucional, sustentado por leis uniformes, interesses corporaUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 tivos e pesquisadores remunerados para pensar e sugerir reformas, visando à manutenção da máquina estatal penalizadora. (LIMA, 2009, p. 223) Aponta, ainda, ser perigosa a relação entre os meios acadêmicos e “os poderes punitivos do Estado”, visto que aqueles devem ter sua utilidade pautada de acordo com o desejado pelos especialistas do sistema penal, o que, “conforme as circunstâncias políticas históricas, se apresentam com nomenclaturas diferentes (Código de Menores, ECA). Por isso, não basta trocar de contrato” (LIMA, 2009, p. 223). Implícita está à crítica ao ECA e aos seus instrumentos de ressocialização, de recuperação do jovem, assim como aos que seriam os operadores auxiliares de tal fato. Para Lima (2009, p. 10), o ECA , assim como as instituições juvenis de controle, apega-se “à ontologia do crime e à inevitabilidade da criação de políticas penais de prevenção geral que combinam distintas formas de vigilância e controle”. A respeito desse controle, sob o qual deve ser mantida determinada parcela da população, uma autoridade de segurança pública do Rio de Janeiro, no documentário de João Moreira Salles, afirma: “[...] a polícia precisa ser corrupta e violenta, nós fazemos a segurança do Estado, [...] temos que manter os excluídos sob controle. Vivemos numa sociedade injusta e a polícia garante essa sociedade injusta [...]” (OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2013). É conveniente também lembrar entrevista concedida à Revista Isto É, em abril de 2013, por Agnelo Queirós (2013, p. 10), governador do Distrito Federal, que, discorrendo sobre “as máfias” que enfrentou em seu governo, coloca: “Outro feudo que existia era no setor da ressocialização de jovens [grifo nosso]. Esse sim envolvendo o crime organizado. Mas vamos desativar o Caje e construir sete unidades com capacidade para 90 internos com o objetivo de recuperar jovens”. E é sobre estes jovens a canção enfocada na próxima seção. 2 FAMÍLIAS E SEUS REBENTOS Meu guri, canção de Chico Buarque, foi composta em 1981, durante o governo militar (implantado por um golpe de estado), que aconteceu de 1964 e a 1985, e se percebe que pouca coisa mudou, na UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 prática, em relação à vida de muitos jovens, apesar do ordenamento jurídico protetivo, o ECA, que adota a doutrina de “proteção integral”, segundo a qual todos os direitos da criança e do adolescente devem ser reconhecidos, conforme a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), no final de 1989. Bem, algo está diferente: usam-se alguns eufemismos. Quem vive na favela ou na periferia hoje é conhecido como o “morador da comunidade” e o menor (abandonado, delinquente...) é o “jovem infrator”. E são justamente os moradores do morro, mãe e filho, os protagonistas buarqueanos. O Meu Guri (Chico Buarque) Quando, seu moço, nasceu meu rebento Não era o momento dele rebentar Já foi nascendo com cara de fome E eu não tinha nem nome pra lhe dar Como fui levando, não sei lhe explicar Fui assim levando ele a me levar E na sua meninice ele um dia me disse Que chegava lá Olha aí Olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri E ele chega Chega suado e veloz do batente E traz sempre um presente pra me encabular Tanta corrente de ouro, seu moço Que haja pescoço pra enfiar Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro Chave, caderneta, terço e patuá Um lenço e uma penca de documentos Pra finalmente eu me identificar, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri E ele chega Chega no morro com o carregamento Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador Rezo até ele chegar cá no alto Essa onda de assaltos tá um horror Eu consolo ele, ele me consola UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Boto ele no colo pra ele me ninar De repente acordo, olho pro lado E o danado já foi trabalhar, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri E ele chega Chega estampado, manchete, retrato Com venda nos olhos, legenda e as iniciais Eu não entendo essa gente, seu moço Fazendo alvoroço demais O guri no mato, acho que tá rindo Acho que tá lindo de papo pro ar Desde o começo, eu não disse, seu moço Ele disse que chegava lá Olha aí, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri (BUARQUE, 2013b) Ao ler o texto poético em sua integralidade, percebemos que se trata de um poema narrativo, com dois personagens – a mãe e o guri, seu filho –, além do interlocutor dela, que é o “seu moço”. A situação de penúria é revelada pela genitora quando afirma que o garoto nasceu “com cara de fome”, o que, provavelmente, ocorreu em função da miséria em que ela vivia e da falta de cuidados pré-natais, reveladores das deficiências das políticas de atendimento à saúde, que se estendem por governos e governos, por mais que medidas paliativas tenham sido tomadas nos últimos anos para melhorar o atendimento à população. Prematura a criança (“não era o momento dele rebentar” – destaque ao jogo linguístico feito com as palavras “rebento”, substantivo, e “rebentar”, verbo, assim como aos sentidos de levar: “Como fui levando não sei lhe explicar / Fui assim levando ele a me levar”), a mãe não tinha ainda um nome “pra lhe dar”: o nome, aqui, também pode ser pensado, além do prenome, como o nome de família do pai, que não assumiu o rebento, pois ela o cria sozinha. Logo, inexiste a base familiar, essencial para a formação do filho, para o desenvolvimento do guri. A Constituição Federal (CF), entretanto, dentro dos chamados direitos fundamentais, e também o Estatuto da Criança e do Adolescente garantem-lhe o direito à convivência familiar, o direito a ser criado e educado no seio de sua família natural. Acrescentamos que, para Quintas (2009, p. 7), a família deve ser compreendida em sentido amplo: não somente a que se baseia no UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 casamento, mas também a que se insere em situações que denomina de análogas, tais como a união estável, a família adotiva e a família monoparental. Diante de tanta diversidade, encontra destaque a família formada por vínculos de afeto, a qual passou a ser reconhecida pela doutrina e jurisprudência brasileira. Esse novo conceito de família, a de natureza socioafetiva, da qual derivam duas espécies, biológica e não biológica, caracteriza-se pelos laços afetivos, de amor, carinho e solidariedade, independendo de vínculo jurídico ou biológico, diferentemente do que se afirmava sobre a sua constituição e origem: “casamento é a união de duas pessoas de sexos diferentes [grifo nosso], realizando uma integração psíquico-físico permanente” (PEREIRA, 2011, p. 33). Na canção, porém, o que se coloca é uma situação de solidão, de família aparentemente constituída só por mãe biológica e filho, portanto, monoparental. Aliás, uma mãe fragilizada, que tem sua condição – a de pessoa que protege – invertida com o filho, talvez por ser muita nova, se pensarmos no grande número de adolescentes grávidas: “Eu consolo ele, ele me consola / Boto ele no colo prá ele me ninar...” [grifo nosso]. E também a de alguém que parece sentir orgulho do seu rebento e chama a atenção para ele que chega, após o que ela pensa ter sido um dia de extenuante trabalho, no alto do morro onde moram: “Rezo até ele chegar cá no alto”, “Chega suado e veloz do batente!” (será que não fugia da polícia?). Olha aí Olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri E ele chega Chega suado e veloz do batente E traz sempre um presente pra me encabular Tanta corrente de ouro, seu moço Que haja pescoço pra enfiar Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro Chave, caderneta, terço e patuá Um lenço e uma penca de documentos Pra finalmente eu me identificar, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri E ele chega (BUARQUE, 2013b) UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Fica evidente a ingenuidade da progenitora, quando considera como presentes o que é fruto de roubo ou furto ou, pior ainda, talvez de latrocínio. Para ela, o filho é atencioso e carinhoso, dando-lhe, inclusive, documentos que ela não tem (índices de sua pobreza e falta de conhecimento, e que não a registram como cidadã). O “finalmente” é um índice do seu desejo e da sua espera para documentar-se. Faz, então, orações para que nada de ruim aconteça ao seu guri, visto que a vida está extremamente violenta, com muitos assaltos acontecendo, fatos que continuam presentes na nossa vida. O “terço” ao lado do “patuá” são símbolos do sincretismo que permeia a religiosidade do brasileiro, da sua fé que lhe dá forças para viver, conforme entrevistas e depoimentos divulgados pela mídia. [...] com o carregamento Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador Rezo até ele chegar cá no alto Essa onda de assaltos tá um horror Eu consolo ele, ele me consola Boto ele no colo pra ele me ninar De repente acordo, olho pro lado E o danado já foi trabalhar, olha aí (BUARQUE, 2013b) A labuta do guri é grande, pensa a mãe, pois ele sai até quando ela ainda dorme e, como havia prometido a ela, ele chega lá, faz sucesso, com direito à fotografia no jornal, ainda que com tarja preta nos olhos e somente as iniciais do nome, sinalizando sua pouca idade. Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri E ele chega Chega estampado, manchete, retrato Com venda nos olhos, legenda e as iniciais (BUARQUE, 2013b) A inocência da mãe é tamanha que não percebe que o filho foi encontrado morto, e que a publicação do fato colocou a vizinhança em polvorosa. Eu não entendo essa gente, seu moço Fazendo alvoroço demais O guri no mato, acho que tá rindo Acho que tá lindo de papo pro ar Desde o começo, eu não disse, seu moço Ele disse que chegava lá UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Olha aí, olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri (3x) (BUARQUE, 2013b) 3 A LEI E OS GURIS Para o ECA, é ato infracional aquele praticado por adolescentes que, se cometido por adulto, corresponderia a um crime ou a uma contravenção penal. Logo, toda infração prevista no Código Penal, na Lei de Contravenção Penal e em Leis Penais esparsas (como a Lei de Tóxico, a Lei de Porte de Arma, entre outras), quando praticada por criança ou adolescente corresponde a um ato infracional. E, para caracterizar tal ato, deve-se observar o princípio da legalidade, verificando-se se a conduta é típica, antijurídica e culpável. Na doutrina, há divergência quanto ao fato da criança e do adolescente praticarem cometerem ou não crime: para a teoria clássica, o menor de idade não pratica comete crime, recaindo o dolo e a culpa no conceito de culpabilidade e consequente para a finalista da ação, que situa dolo e culpa como tipo penal, o menor comete crime, visto que este é um fato típico e antijurídico. E o ECA somou as duas correntes para conceituar o ato infracional, decidindo-se a aplicar a finalista ao adolescente e a clássica à criança. Assim sendo, à criança são aplicadas apenas as medidas protetivas, ao passo que ao adolescente infrator cabe a aplicação tanto das medidas protetivas como as socioeducativas previstas no ECA. As medidas contidas no ECA, como resposta estatal às necessidades do adolescente, tem caráter impositivo e cunho sancionatório (LIBERATI, 2006, p. 102), objetivando inibir reincidências, portanto, presente a visão pedagógica, instrutiva. Medidas socioeducativas aparecem no seu artigo 112, e são elas: a advertência, a obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, o regime de semiliberdade (estudam ou trabalham a céu aberto e, à noite, recolhem-se em uma entidade especializada), a internação em estabelecimento educacional (só ocorre em casos graves) e, por fim, medidas de proteção previstas no art. 101, inciso I. A medida socioeducativa será precedida por uma audiência UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 admonitória, quando o jovem será orientado sobre como proceder para cumprir o que foi disposto pelo juiz. Ele será fiscalizado por uma instituição responsável, que enviará relatório mensal ao Juízo. Após o cumprimento da medida, haverá nova audiência, sendo essa de encerramento. Caso o jovem não cumpra o que foi estabelecido, poderá ser aplicada a ele a conversão em medida mais grave (período mais longo de prestação de serviço e até mesmo sua internação). Pode ainda acontecer a remissão, ou seja, o perdão do ato infracional praticado, espécie de acordo feito com a autoridade judiciária, que poderá ocasionar a exclusão, a suspensão ou a extinção do processo. Medida bastante polêmica, há quem afirme se tratar de uma transação, um negócio jurídico entre o Ministério Público e o adolescente, acompanhado por seus pais: o jovem não é processado, desde que aceite voluntariamente as medidas socioeducativas, que são encaradas por ele e sua família como verdadeiras “penas”, enquanto que a sociedade as vê como medidas brandas, aplicadas a jovens considerados delinquentes, perigosos marginais. 4 ÚLTIMOS ACORDES DE UMA DORIDA CANÇÃO Várias críticas foram feitas à aplicação e ineficácia dessas medidas. Percebe-se, que, para muitos juristas, a simples aplicação de medidas socioeducativas como forma de reeducação não irá converter um adolescente infrator em um jovem sem problemas, inserido na sociedade, haja vista que tais medidas não costumam atingir os problemas sociais de sua vida, ainda que aparentassem ser a solução das suas dificuldades. Elas mostraram-se, na maioria dos casos, ineficientes. Há que se reconhecer que houve uma boa caminhada no que tange aos aspectos protetivos legais em relação à criança e ao adolescente. A legislação foi aperfeiçoada, mas o que aí está não é o suficiente, pois nossos guris, nossos pivetes continuam morrendo e matando, sendo espoliados e furtando, roubando, traficando. Deve ser outro o diapasão, pois por ser inimputável, e ainda relativamente incapaz, o adolescente que pratica ato infracional terá um tratamento diferenciado, como previsto no ECA. E as medidas socioeducativas (art. 112), que mesclam o caráter pedagógico ao punitivo precisam ser reavaliadas. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Hodiernamente, muito se discute sobre a redução da maioridade penal, contudo esta não nos parece ser a melhor solução para os guris brasileiros. É necessária a adequação das medidas previstas no ECA e a imposição do regime de semiliberdade e internamento de forma mais eficaz, mesmo em casos que não haja violência contra a pessoa, como o tráfico de drogas. Importante também a efetivação de políticas públicas, e que o governo lance um olhar mais atento aos jovens infratores e à sua condição social, pois muitos se encontram afastados dos bancos escolares e possuem pouco ou nenhum contato com a família. Falhas existem, no seio familiar, na escola, no aparato estatal, e a reincidência quanto aos atos infracionais praticados apresenta-se em número expressivo. Marginais ou marginalizados? É preciso que se discuta o problema, que não haja mais a banalização da violência e do crime. É culpado o jovem que transgride as regras, mas também é culpada a sociedade que deixa de auxiliá-lo a não pular o muro da violência. REFERÊNCIAS BUARQUE, Chico. Pivete. In: Chico Buarque: Obra. Disponível em: <http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg= pivete_78.htm>. Acesso em: 10 jan. 2013a. BUARQUE, Chico. O Meu Guri. In: Chico Buarque: Obra. Disponível em: <http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre. asp?pg=omeuguri_81.htm>. Acesso em: 10 jan. 2013b. CHESNAIS, J. C. Histoire de la violence. Paris: Pluriel, 1981. ISHIDA, V. K. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2006. LIBERATI, W. D. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. LIMA, C. B. de. Jovens em conflito com a lei: liberdade assistida e vidas interrompidas. Londrina: EDUEL, 2009. LONDRINA. Prefeitura Municipal. 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UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO UNIVERSO MACHADIANO: MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS NA LITERATURA E NO CINEMA Rondinele Aparecido Ribeiro* RESUMO Considerado pela crítica como o maior escritor brasileiro, Machado de Assis problematizou aspectos comportamentais do ser humano em suas obras. Seu romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881, inaugurou a estética realista no Brasil, além de ser considerado um “divisor de águas” na carreira do escritor. Com ele, Machado inova a literatura brasileira ao criar um defunto-autor, que narra de forma inusitada e irônica os episódios de sua vida. Para o crítico Ivan Teixeira, as Memórias compõem uma antinarrativa, sendo excêntricas pela tamanha inovação experimentada por Machado de Assis. Pelo modo como carnavalizou a literatura, o autor é extremamente estudado. O presente artigo, longe de esgotar a fecunda obra machadiana, irá tecer considerações acerca do romance e da adaptação cinematográfica da obra de Machado, recorrentemente transcodificada para a linguagem cinematográfica. Palavras-chave: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Carnavalização. Realismo. Inovação literária. Linguagem cinematográfica. ABSTRACT Considered by critics as the greatest Brazilian writer, Machado de Assis questioned behavioral aspects of the human being in his works. His novel, The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, published in 1881, started the realist aesthetic in Brazil, besides being considered a "wa* Professor de Língua Portuguesa e Literatura; especialista em Cultura, Literatura Brasileira e Língua Portuguesa; graduado em Letras: Literatura (UENP, 2011); atua na Educação Básica, em cursinhos pré-vestibulares e no Ensino Superior (FANORPI/UNIESP). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 tershed" in the writer's career. With it, Machado innovates in Brazilian literature when he creates a deceased writer, who narrates in a bizarre and ironic way episodes of his life. For the critic Ivan Teixeira, Memoirs makes up an eccentric anti-narrative by such innovations experimented by Machado de Assis. For the way he desecrated the literature, the author is extremely studied. This article, far from exhausting the fruitful work of Machado, makes considerations about the novel and the film adaptation of his work, recurrently transcoded to film language. Key words: The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Desecration. Realism. Literary innovation. Film language. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO UNIVERSO MACHADIANO: MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS NA LITERATURA E NO CINEMA Rondinele Aparecido Ribeiro 1 A IMPORTÂNCIA DE MACHADO PARA A LITERATURA BRASILEIRA Nome recorrente e fecundo, Machado de Assis ocupa papel de destaque no panorama da literatura brasileira. Nascido no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839. O autor, conhecido como Bruxo do Cosme Velho, viveu em um momento de profunda transição, o que lhe permitiu presenciar alguns dos mais importantes aspectos políticos da nação brasileira. Os biógrafos relatam que ficou órfão de mãe muito cedo, tendo também perdido a irmã mais nova. Estreou na literatura em 1855 com a publicação do poema “Ela” na revista Marmota Fluminense. De origem humilde, Machado havia iniciado nessa época sua carreira como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Oficial, que tinha como diretor Manuel Antônio de Almeida, que o influenciou no trabalho como escritor. O nome do autor é recorrentemente associado tanto à modalidade romance quanto à modalidade conto. “E além das narrativas literárias a que ele se dedicou, é importante destacar sua contribuição para a crítica literária do período” (OLIVEIRA, 2008, p.85). Nesse sentido, é lícito o ponto de vista de Campedelli (2004, p. 145): A posição de Machado de Assis no panorama da Literatura Brasileira é a de um renovador, não apenas porque realmente revolucionou a narrativa brasileira, imprimindo a ela um tom mais verossimilhante e menos supérfluo, mas também porque foi além de seu tempo imprimindo-lhe um senso psicológico notável. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 O universo machadiano está dividido em duas fases justamente divididas pelo conjunto temático de sua obra. Costumam ser denominados de primeira fase os romances como Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). Tais obras, embora sejam marcadas por contornos românticos, deixam transparecer a preocupação do autor com temas polêmicos, como a questão da ascensão social. Os enredos dos livros dessa fase giram em torno do dinheiro, da família e do casamento por interesse. Tais obras podem ser consideradas como sendo de transição, uma vez que se observam os elementos essenciais da narrativa folhetinesca: narrativas de gosto burguês com o objetivo de provocar surpresas e emoções no leitor. São obras com intenção de moralizar e divertir. Já as obras da segunda fase revelam um machado mais maduro e preocupado em problematizar os aspectos humanos. Nesse sentido, o conjunto dessa fase concentra-se em temas como a falsidade da vida, o adultério, as relações sociais, os comportamentos humanos. Situamse nessa fase as obras Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). Modernamente, os teóricos adotam a expressão “convencional” e não romântica para designar a primeira fase machadiana, uma vez que muito do Machado de Assis Realista, já se apresentava em suas primeiras obras. Isso é posto porque sobressai em tais obras a observação psicológica das personagens, o interesse como movedor das relações e o estilo conciso do autor em detrimento do excesso de adjetivações dos românticos. Aclamado pela crítica como grande mestre da literatura nacional, Machado apresenta características que lhe são peculiares. Em suas obras, o autor propõe um olhar sobre a realidade psicológica de suas personagens de modo inédito nas narrativas nacionais. Para Martins7 (1966), essa característica é denominada de Realismo Psicológico, uma vez que a ação extrema de suas obras está subordinada a uma avaliação interna ora é feita pela personagem narrador, ora pela voz nar7 MARTINS, José Endoença. Enquanto isso em Dom Camurro. Florianópolis: Paralelo 27,1993. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 rativa em terceira pessoa. (OLIVEIRA, 2008, p. 73) Para Silvana Oliveira (2008), o conjunto de obras de Machado dialoga com a alta literatura moderna e universal, passando pelos ingleses – marcadamente Shakespeare – e chegando aos russos – Dostoievski. Para a autora: “a produção ficcional de Machado de Assis conduziu a literatura brasileira para o cenário da literatura mundial já no século XIX” (OLIVEIRA, 2008, p. 74). Ainda de acordo com postulações da autora: A consciência revelada pela obra de Machado de Assis se dá na medida em que ele aproveita a tradição do romance universal desde Dom Quixote, de Miguel de Cervantes até as manifestações locais do romance brasileiro de sua época. A ironia, o humor e a crítica que encontramos na obra de Machado a tornam única na história da literatura brasileira, desde os seus primeiros romances românticos. Veremos, então, que o seu enfoque do Realismo não passa pela aceitação dos preceitos da objetividade e experimentação. Nenhum de seus romances da fase realista se baseia no princípio da objetividade. (OLIVEIRA, 2008, p.76) 2 MACHADO: ESCRITOR REALISTA A Estética Realista-Naturalista inicia-se no Brasil em 1881 com a publicação de duas obras: Memórias Póstumas de Brás Cubas e O Mulato. Estende-se até 1902, ano em que Graça Aranha publica a obra Canaã. No Brasil, a instauração da estética esteve ligada a Tobias Barreto, que divulgou as ideias estéticas e científicas e filosóficas do Realismo Europeu. O teórico em questão influenciou teóricos como Sílvio Romero Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha e Graça Aranha. Definir o termo Realismo não é uma tarefa fácil, ainda mais que se constata que a objetividade de arte não foi uma inovação desse período. Por outro lado, a definição do termo ganha contornos mais palpáveis quando se associa que a estética Realista, na verdade, volta sua observação para a realidade enfocando situações cotidianas e representativas. Dessa forma, uma definição plausível para o termo pode ser a seguinte: “o Realismo é uma arte engajada, que tem como compromisso o momento presente e com a observação objetiva e UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 exata do mundo” (CAMPEDELLI, 1999, p. 155). Pode-se falar que essa maneira de observar a realidade foi uma continuidade dos padrões formais românticos. Para Oliveira (2008, p.27): A partir do Romantismo, o século XIX, trouxe uma mudança radical na percepção que o ser humano tem do mundo. O Romantismo expandiu o horizonte da arte, trazendo para dentro dela a representação do mundo comum, das identidades humanas distantes dos heróis aristocráticos e elitizados do mundo clássico. Para a autora, “o Realismo marcou a metade do século XIX e, na instância formal, reafirmou as conquistas do Romantismo”. Por sua vez, do ponto de vista conteudístico e temático, observam-se profundas preocupações em se estabelecer vínculos com o ideário cientificista que marca esse século. Dessa forma, Biologia, Sociologia e Filosofia são submetidas a um crivo cientificista. Na estética Realista, é lícito afirmar, opera a desconstrução dos mitos românticos, tais como a natureza-mãe, o amor fatal, a idealização da mulher, e do herói nacional íntegro, bem como da nação redentora. Vê-se, então, que o realista se notabiliza por enfrentar-se e de se colocar de maneira racional e mais objetiva. A esse respeito, a estudiosa Silvana Oliveira pontua: “O Realismo em conformidade com os avanços das ciências e do pensamento filosófico, buscou tornar essa percepção de mundo mais precisa, mais objetiva” (OLIVEIRA, 2008, p.27). 3 MEMÓRIAS PÓSTUMAS E A INOVAÇÃO LITERÁRIA Com a publicação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881, Machado renova a literatura brasileira. Esse romance, vale acrescentar, é importante pelo fato de inaugurar a estética Realista no país e também pelo fato de marcar a produção matura de Machado de Assis amplamente marcada pela ironia e pela sutileza no tratamento das relações pessoais. Para o país, é inegável sua importância. Basta lembrar, por exemplo, que o romance em questão foi a primeira obra realista brasileira. Com ela, Machado inova a técnica da narrativa literária ao criar um narrador-defunto, que conta a história de sua vida. Para UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Abdalla e Campedelli (2004, p. 138): “A prosa de ficção, propriamente realista, foi marcada pelo destaque do elemento psicológico no registro psicossocial típico do final do Império”. Como se observa pela afirmação dos estudiosos, podemos perceber que o estilo machadiano é bastante diferente das técnicas de outros escritores. Suas obras mostram uma dimensão psicológica bastante grande, uma vez que retrata comportamentos humanos. Sem sombra de dúvidas, Machado é um grande gênio da Literatura Universal. Nas palavras de Campedelli (1999, p. 164): Preocupado com o significado da existência (ou com a sua falta de significado), cria as personagens objetivamente, dando-lhes uma vida interior intensa. Assim, a temática de seus romances realistas (que varia da tentativa de compreender o ser humano à completa descrença nele) constitui o ponto alto da literatura brasileira no Realismo. O romance machadiano Memórias Póstumas de Brás Cubas, como já pontuado, foge da técnica narrativa até então tradicional: a sequência início, meio e fim. Machado emprega um narrador-defunto que narra sua história de vida. Nesse sentido, o livro começa pelo fim. O narrador conta sua existência de uma forma desafiadora, inusitada. Sua retrospectiva da existência é bastante fria, distanciada e completa. Na dedicatória, já temos uma ampla noção de como se portará esse narrador: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas” (ASSIS, 2008, p. 11). A contar por essa atitude a obra é bastante inovadora. Chocante ou irônica, pouco importa, a dedicatória certamente não é das mais comuns. Fugindo ao senso comum, Brás Cubas dedica suas memórias aos vermes, como se não houvesse alguém digno de lembrança, deixando claro o pessimismo da obra. O prólogo do romance parece fazer o mesmo, pois o narrador não espera ter mais que cinco leitores: Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. (ASSIS, 2008, p. 13) UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Para o estudioso Ivan Teixeira, essa técnica permite incluir as Memórias como sendo excêntricas, uma vez que não se pode escrever depois de morto. O autor sustenta a tese de que a grande originalidade do livro não se deve ao enredo, mas sim à condição do narrador. Nas palavras do teórico: Brás Cubas preserva, apesar de defunto, suas qualidades de milionário excêntrico, inteligente e culto. Passou por quase todas as experiências da vida, inclusive a da morte. Daí o encanto de seu relato. (TEIXEIRA, 1988, p. 87) Ainda de acordo com postulações do autor: Com as Memórias Póstumas Brás de Cubas, Machado de Assis não escreveu um romance: inventou um defunto empenhado em recompor seus dias mediante um livro de memórias. Em vez de romance, o que existe é uma cabeça agitada por lembranças e pensamentos. Brás Cubas é um homem muito pouco sistemático para compor uma estória segundo as regras do gênero. Além disso, acha-se em estado de euforia pela experiência da morte, o que lhe tira o equilíbrio para uma reconstituição ordenada da vida. (TEIXEIRA, 1998, p. 87) O romance começa pelos funerais de Brás Cubas, narrados por ele próprio. Conta, depois, sua morte, o nascimento, a infância e o primeiro amor – aos 17 anos, com a prostituta Marcela. Segue depois para Coimbra, onde se forma em Direito. Retorna por ocasião da morte da mãe. Namora Eugênia, filha de dona Eusébia, amiga pobre de sua família, mas o pai quer casá-lo com Virgília, filha do conselheiro Dutra. Essa, no entanto, casa-se com Lobo Neves. O pai falece. Instala-se litígio por herança entre Brás Cubas e sua irmã Sabina, casada com Cotrim. Virgília e Brás Cubas tornam-se amantes e passam a encontrar-se numa casa cuja direção é dada a dona Plácida. Brás Cubas reencontra Quincas Borba, seu amigo de infância, que lhe apresenta a doutrina do humanitismo. Brás Cubas torna-se deputado. Lobo Neves é nomeado presidente de província e parte com Virgília para o Norte. Termina a aventura dos amantes. Brás Cubas namora, então, Nhã-loló, sobrinha de seu cunhado Cotrim, a qual morre aos 19 anos. O solteirão tenta ser ministro de Estado e não consegue. Funda um jornal de oposição. Começa a loucura de Quincas Borba. Virgília, já velha, solicita a Brás Cubas amparo à indigência de dona Plácida, UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 que morre em seguida. Morrem, também, Lobo Neves, Marcela e Quincas Borba. Eugênia é encontrada num cortiço. Brás Cubas adoece, quando pensava em inventar um emplasto. Virgília, acompanhada do filho, visita o ex-amante. Após longo delírio, Brás Cubas morre aos 64 anos e, depois de morto, começa a contar, de trás para frente, a história de sua vida. O romance apresenta um narrador em primeira pessoa. Um narrador bastante irônico e indiferente às situações. O trecho a seguir exemplifica: Algum tempo hesitei se deveria abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco. (ASSIS, 2008, p. 14) O caráter digressivo do narrador não passa de um esclarecimento quanto ao método adotado para a narrativa: uma vez que é inovador começar um romance pela morte de seu protagonista, o nascimento ficará para depois. Mais: a sepultura foi, para Brás Cubas, um novo berço. A objetividade e a clareza do texto e do método são interrompidas por um comentário ímpar: a diferença entre as Memórias e o Pentateuco – os cinco primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio – é que aquelas começam na morte de seu narrador e este, no nascimento. A comparação consterna por insinuar que as obras da Bíblia Sagrada são, no mínimo, menos originais que a narrativa de Cubas. Se nem Moisés pode resistir à galhofa do narrador, espera-se o mesmo quando se trata de outras personagens. O último capítulo também é bastante revelador, uma vez que mostra um narrador bastante amargurado e movido por um negativismo: Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor de meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque, ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria. (ASSIS, 2008, p. 210) O estudioso da obra machadiana, Roberto Schwarz, aponta a crítica social presente no romance já no aspecto formal. Para o crítico: A novidade está no narrador, humorística e agressivamente arbitrário, funcionando como um princípio formal, que sujeita as personagens, a convenção literária e o próprio leitor, sem falar na autoridade da função narrativa, a desplantes periódicos. As intrusões vão da impertinência à agressão desabrida. Muito deliberadas, as infrações não desconhecem nem cancelam as normas que afrontam, as quais, entretanto, são escarnecidas e designadas como inoperantes, relegadas a um estatuto de meia-vigência, que capta admiravelmente a posição da cultura em países periféricos. (SCHWARZ, 2004, p. 5) Percebe-se, dessa forma, que a postura de machado é a de um crítico de seu tempo, uma vez que ao subverter as regras da literatura convencional e criar um narrador não confiável, pertencente à elite que goza de grandes privilégios, Machado de Assis tece uma grande crítica social de modo indireto. Nesse sentido, é lícito afirmar que a atitude machadiana é responsável pela formação de um novo modelo de leitor, sendo marcado pela criticidade e pela consciência acerca dos processos de elaboração do texto ficcional. A esse respeito, escreve Schwarz: A ousadia machadiana começou tímida, limitada ao âmbito da vida familiar, na qual analisava as perspectivas e iniquidades do paternalismo à brasileira, apoiado na escravidão e vexado pelas ideias liberais. Sem falar ao respeito, colocava em exame o desvalimento inaceitável dos dependentes e o seu outro polo, as arbitrariedades dos proprietários, igualmente inaceitáveis, embora sob capa civilizada. Quanto ao gênero, tratava-se de um realismo bem pensante, destinado às famíUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 lias. Quanto à matéria, Machado fixava e esquadrinhava com perspicácia um complexo de relações característico, devido ao reaproveitamento das desigualdades coloniais na órbita da nação independente, comprometida com a liberdade e o progresso. (SCHWARZ, 2004, p.4) Para o crítico, a obra de Machado e responsável pela introdução da literatura brasileira em uma tradição mais ampla. Dessa forma, “a ênfase de Schwarz será na consciência de Machade de Assis sobre as diferenças de classes existentes no Brasil e de como isso define as relações em sociedade” (OLIVEIRA, 2008, p. 107). Já para Ivan Teixeira (1998), as memórias dessolenizam a observação social e renovam o romance de intenções críticas. Para o autor: [...] a crítica desse livro vai muito além do social. E essa superação decorre da condição do “autor defunto”, cujo cinismo o transforma num verdadeiro monstro de indiferença. Brás Cubas desdenha de tudo, e tanto, que não hesita confessar em si as maiores baixezas: leviandade, covardia, preguiça, sadismo, ganância, inveja e maldade gratuita. Tais confissões formam, no conjunto, uma implacável análise da existência, para cuja força concorre o microrrealismo psicológico, que é o estudo do todo pela decomposição de parcelas mínimas da intimidade. (TEIXEIRA, 1988, p. 89) Quanto às personagens, Machado emprega, sobretudo, personagens femininas representativas extremamente de personalidades fortes. Como assevera Campedelli (1999, p. 164), as mulheres são personagens mais fortes de Machados de Assis, tanto em seus romances como nos contos, e os temas com que trabalhou são psicológicos, versão em miniatura de seu modo de interpretar a sociedade. No romance, por exemplo, não faltam personagens femininas representativas. Brás Cubas, por exemplo, amou Marcela, personagem extremamente densa e ambígua. Consegue dominar Brás Cubas, tirando dele tudo o que quer. Ficou célebre, por exemplo, a máxima proferida pelo narrador: “Marcela amou-me durante 15 meses e 11 contos de reis” (ASSIS, 2008, p. 47), mostrando o quão interesseira a personagem era. Virgília é outra personagem feminina bastante representativa na obra. Seu casamento com ela, arquitetado pelo pai de Brás, era o mesmo que uma porta de entrada para a política: a noiva e o parlamento são a mesma coisa. Não é à toa que, recém-chegado do bizarro encontro com Marcela, Brás Cubas tenha UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 uma alucinação e veja Virgília, talvez a mais atrevida criatura da nossa raça e, com certeza, a mais voluntariosa, tomada pelas bexigas: as duas são objetos de conquista, cada uma a sua maneira. No entanto, para sua infelicidade, surge Lobo Neves e arrebata o coração da amada. Brás Cubas, narra esse episódio: [...] um homem que não era mais esbelto que eu, nem mais elegante nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura, dentro de poucas semanas, com um ímpeto devidamente cesariano. Não precedeu nenhum despeito; não houve a menor violência de família. Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes influências. Tal foi o começo da minha derrota. (ASSIS, 2008, p. 84) Esse narrador também se lembra dos seus encontros com Quincas Borba, um filósofo excêntrico, criador da teoria do Humanitismo. Os fatos ligados às personagens e à vida de Brás Cubas são intercalados a lembranças de episódios aparentemente sem importância, relacionados a seu temperamento cismado e hipocondríaco. Dessa forma, a digressão assume função principal, deixando a estrutura da obra bastante híbrida e descontínua, produzindo a linearidade do enredo. 4 MACHADO NO CINEMA Roger Silverstone (2002, p. 12) postula que é impossível escapar à presença, à representação da mídia. Para o teórico, o homem criou uma profunda dependência desse formato e já se torna quase impossível viver sem elas. O autor defende a tese de que passamos, na atualidade, a um estágio de dependência da mídia para fins de entretenimento e informação. Dessa forma, surge nos veículos de comunicação, tais como cinema e televisão, uma profunda simbiose. Essa relação, aliás, como assevera Ana Maria Gottardi (2008), constitui-se em uma das temáticas mais discutidas pelos estudos que enfocam a sétima arte. Em linhas gerais, pode-se afirmar que essa relação entre narrativa audiovisual e literatura foi bastante conturbada, uma vez que num primeiro momento a preocupação da crítica recaiu na fidelidade UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 entre as duas obras. Outra preocupação decorrente surgiu do enfoque estrutural em que se preconizou uma preocupação em como o código fílmico transformou o código linguístico. Como se percebe, essa relação foi, durante muito tempo, bastante conturbada. A Literatura, por exemplo, ganhou, no início, status de vítima. Enquanto o filme ganhou status de parasita, à medida que alimentou a indústria capitalista ávida por recursos financeiros. Vale, portanto, o posicionamento de Milton José de Almeida (1993, p.137): O cinema e a televisão são indústrias grandes, com divisão e hierarquização de trabalho, poder e interesses de mercado e de política social, que produzem para o consumo geral, como muitas outras. Sua produção complexa e cara torna-se inacessível para qualquer um. Você pode pagar cinema, ver cinema, gostar, desgostar, porém dificilmente poderá produzi-lo. Pode contar para outra pessoa o que viu no cinema, escrever um texto sobre isto, contar de novo história, somente em palavras. Como a maioria das pessoas, você está do lado do consumo. Nas produções iniciais, operava-se uma relação que fazia com que o crítico analisasse até que ponto a obra cinematográfica era fiel ao livro. Nesse momento, o conhecimento que o espectador tinha da obra levava ao interesse pelo filme. Já na contemporaneidade, essa situação se inverteu: primeiro porque o romance pode surgir de um roteiro original; Segundo, porque a obra cinematográfica pode levar ao interesse pelo livro. Como já afirmado, nossa sociedade contemporânea é essencialmente visual, todavia não perde gosto pela fabulação, aliás, é ávida por essa faculdade. Pode ser alheia à Literatura e à poesia escritas, às histórias escritas, mas não é alheia a mitos e a uma boa história. Dessa forma, valem as postulações de Eco (1995 apud AGUIAR, 2003, p. 122): Narrativa literária e filme cinematográfico são artes de ação, eis seu ponto em comum. Partem de um processo imaginário de fabulação que, como produto humano, lhes é terreno de operação ou alicerce. A diferença entre um e outro está na articulação temporal de suas sequências para o receptor [...] cinema e literatura [...] são criadores de mitos, no sentido aristotélico da palavra, isto é, de fabulações que engendram a possibilidade do reconhecimento da situação presente dos destinatários em relação aos parâmetros da cultura de que UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 fazem parte. Pode-se afirmar que o ponto comum entre as duas artes é este: partem de um processo imaginário de fabulação que, como produto humano, lhes é terreno de operação ou alicerce. A adaptação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para o cinema já contou com três versões. A primeira, rodada em tom completamente experimental, em 1967, chamava-se Viagem ao Fim do Mundo, sendo dirigida por Fernando Cony Campos. A segunda versão, datada de 1985, foi filmada por Julio Bressane, com Luiz Fernando Guimarães no papel de Brás Cubas. Em 2001, Machado teve mais uma adaptação. Dirigida por André Klotzel, contou com Reginaldo Faria e Petrônio Gontijo se revezando no papel central. A obra conseguiu recriar o universo machadiano. O único tema que escapou ao filme foi justamente a briga entre Brás Cubas e a irmã Sabina no que se refere à herança. Por fim, vale citar as palavras de Milton José de Almeida (1993, p. 137): O cinema não é só matéria para fruição e a inteligência das emoções; ele é também matéria para a inteligência do conhecimento e para a educação, não como recurso para a explicitação, demonstração e afirmações de ideias, ou negações destas, mas como produto de cultura que pode ser visto, interpretado em seus múltiplos significados, criticado, diferente de muitos outros objetos culturais, igual a qualquer produto no mercado da cultura massiva. Poucos de boa qualidade estética e técnica para poucos consumidores especiais, e muitos de baixa qualidade para muitos consumidores desarmados culturalmente [...]. A adaptação feita por Klotzel, além de ser fiel à obra, é também elogiada por seus recursos, recursos esses capazes de passarem ao espectador toda a crítica e importância que a obra possui. No filme, é possível perceber que Brás Cubas é oposto a Machado, enquanto que um é aproveitador, dominador de escravo, “filho de papai”, como mostra o trecho em que Brás Cubas se aproveita de seu escravo Prudêncio, fazendo desse seu cavalinho. Já o outro condena a escravidão, é trabalhador, e conquistou seu espaço e objetivos. Se Klotzel tivesse colocado o autor Machado para apresentar o narrador-personagem Brás Cubas, traria a obra uma crítica mais clara, revelaria a distinção entre o autor e o narrador-personagem e ainda UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 mostraria, de maneira mais objetiva, o diálogo existente na obra entre escritor-narrador-leitor, onde há lacunas a serem preenchidas, bem como no filme, onde o espectador se torna uma personagem. Machado ainda se elogia por ser o primeiro a escrever uma obra com um defunto autor, sendo esse superior, pois Brás Cubas ao narrar sua história por estar morto se torna indiferente ao fato que está narrando, como se o fato de estar morto o elevasse a outro nível físico, psicológico e mental. Assim, Machado se torna excelente por quebrar a barreira que separa o escritor do leitor e Klotzel consegue passar isso para o cinema. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Longe de esgotar as possibilidades de abordagem seja do código literário ou do código fílmico, este artigo se propôs a tecer breves considerações acerca do universo machadiano e de sua aplicabilidade no romance mais inovador da literatura brasileira, Memórias Póstumas de Brás Cubas. O conjunto de obras do autor também tem alimentado um vasto conjunto de releituras nos mais diversos códigos. Com o romance ora cotejado não é diferente. A importância da obra não reside apenas no fato de ter inaugurado o Realismo no Brasil, mas sim pela profunda inovação empregada por Machado para possibilitar a excentricidade da obra, tal como assevera Ivan Teixeira (1988). Para o referido teórico, com essa obra Machado abandona o romance de enredo e acaba instaurando o romance poético no país. As Memórias Póstumas abandonam a técnica tradicional e introduz uma revolucionária, que busca a novidade na maneira de dizer e não na centralização daquilo que se diz. O teórico Ivan Teixeira ainda postula que a técnica empregada por Machado, na verdade, deve ser chamada de um antimétodo. Nas palavras do autor: Memórias póstumas possuem uma estrutura multiforme, sem padrões preestabelecidos ou normas fixas, em que entra, principalmente através da paródia, um pouco de tudo: crônica, história, contos, necrológios, crítica literária e de costumes, filosofia, tragédia, humor, realismo cru, fantasmagorias, etc. E tudo isso é amarrado por uma implacável lógica de construção, a qual, se contraria a superfície ordenada das coisas pelo excesso de paradoxo, retrata com fidelidade a desidentificação essencial do homem consigo mesmo, dos UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 homens entre si e destes com a natureza. (TEIXEIRA, 1988, p. 96) Por esse conjunto estrutural, pode-se falar que Machado “carnavalizou” a literatura brasileira, uma vez que libertou a imagem e incorporou à estrutura do romance a diversidade do indivíduo e da sociedade. Dessa forma, “as Memórias Póstumas inventam o nosso romance dialético ou problematizador, pois foi o primeiro a promover, de fato, a interação fenomenológica entre a vida cultural e forma literária” (TEIXEIRA, 1988, p. 96). Já quanto à transcodificação, a obra de André Klotzel, focaliza muito mais o que a personagem Brás Cubas diz. Nesse sentido, Klotzel em sua obra, trata do percurso de uma vida movido muito mais que um tom de anedota do que uma forma típica de viver. De fato, a adaptação cinematográfica possibilita um fecundo diálogo com o romance machadiano. REFERÊNCIAS ABDALLA JUNIOR, Benjamin; CAMPEDELLI, Samira Youssef. Tempos de Literatura Brasileira. 6. ed. São Paulo: Ática, 2004. AGUIAR, Flávio. Literatura, cinema e televisão. PELLEGRINE, Tânia et al. Literatura, Cinema e Televisão. São Paulo: Senac/Inst. Cultural Itaú, 2003. p. 115-144. ALMEIDA, Milton José de. Cinema e televisão: histórias em imagens e som na moderna sociedade oral. 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Ainda, objetiva fornecer subsídios a outros pesquisadores que possam se interessar pelo tema e encontrar material disponível para novos estudos. Seu caráter é descritivo, com predominância de abordagem qualitativa, permite concluir que são significativas as contribuições do ensino superior ao processo de construção de cenário com políticas educacionais voltadas à formação do cidadão crítico. Elege, como prioridade, sua preparação para atuar na, para e pela sociedade. Dá ênfase à produção e transmissão do conhecimento para a construção coletiva da universidade cada vez mais forte e verdadeiramente inserta na sociedade. Seu fim, primeiro e último, será o de eleger como fundamentais conexão entre educação e desenvolvimento, buscando responder à indagação-título sobre os nobres e elevados objetivos da universidade. Palavras-chave: Educação. Ensino Superior. Contribuições. Consciência crítica. Retorno social. * Mestre em Educação (Universidade Estadual de Londrina), professora de Língua Portuguesa da Rede Pública Estadual de Ensino, membro da Equipe de Educação Básica do Núcleo Regional da Educação de Cornélio Procópio, professora de Língua Portuguesa e de Metodologia da Pesquisa Científica da Faculdade de Ensino Superior Dom Bosco, de Cornélio Procópio. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 ABSTRACT This article is based on the premise that one great challenge of the twenty-first century is to promote education at all levels, and that college education has to establish the basis of a commitment to society, oriented to new directions so that it may exercise its role and fulfill historical demands. Therefore, a study was carried out based on the following question: what are the likely contributions of this level of education to society? It also aims to provide support to other researchers who may be interested in the topic and find materials available for further studies. His character is descriptive, with a predominantly qualitative approach, allowing to conclude that the contributions of higher education are significant to the process of building a scenario with educational policies aimed at the formation of the critical citizen. It chooses, as a priority, the preparation to act in and for the society. It emphasizes the production and transmission of knowledge for the collective construction of a university increasingly strong and truly embedded in society. Its first and ultimate purpose will be to elect as fundamental connections between education and development, seeking to answer the question of the title on the high and noble goals of the university. Key words: Education. College education. Contributions. Critical consciousness. Social return. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 ENSINO SUPERIOR PARA QUÊ Maria Suely Fernandes da Silva Neste trabalho, são apresentados fundamentos teóricometodológicos embasadores do estudo bibliográfico a respeito do ensino superior e sua função social . Dalarosa (2000, p. 101) assinala que a pesquisa científica busca explicar as implicações econômicas, culturais, educacionais, as relações de trabalho, as diferentes possibilidades de produzir e não produzir, enfim, busca uma explicação sistemática, analítica e contextualizada que dê conta de esclarecer as leis, as causas que provocam um fenômeno [...]. Essa constatação é, de fato, fundamental, uma vez que a pesquisa sempre permite o resgate histórico dos fatos para ampliar horizontes voltados à consciência do papel que cada indivíduo deve desempenhar no meio em que vive. Exige, constantemente, do pesquisador uma retomada de percurso – e não raras vezes uma expressiva correção de rota – porque a história, por ser dinâmica, compõe-se de agentes transformadores, participantes contínuos do processo. Demo (1995) adverte que é necessário desmistificar a pesquisa considerando-a atividade cotidiana. E na sua discussão e prática na universidade, ela deverá estar articulada com o ensino, entre outros, para analisá-lo e aperfeiçoá-lo. É dessa forma que se apresenta a pesquisa: buscam-se, nas reflexões do pesquisador e nos materiais e recursos disponíveis, informações, explicações, esclarecimentos para o desencadeamento de seu trabalho. É o momento de gestação durante o qual se recolhem dados, abre-se espaço para leituras e reflexões, avaliam-se vivências já experimentadas, fazendo-se, releituras, observações, discussões, anotações e registros. A esse processo que conduz a uma educação mais substantiva, sendo única como a arte, exclusiva como cada música, particular como cada tela, chama-se UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 pesquisa: “[...] maravilhosa utopia de quem crê que a vida, como a educação, pode-se fazer como arte-construtora de um amanhã mais pleno, mais realizado, mais feliz” (FAZENDA, 1989, p. 14). Ainda, no mesmo tom, Severino (2002, p. 70) afirma que A ciência como modalidade de conhecimento, só se processa como resultado de articulação do lógico com o real, do teórico com o empírico. Não se reduz a um mero levantamento e exposições de fatos ou a uma coleção de dados. Esses precisam ser articulados mediante uma leitura teórica. Só a teoria pode caracterizar como científicos. É por tal motivo que a realização de pesquisa científica está implícita no investimento acadêmico: desenvolver pesquisa significa entrelaçamento de teoria e empirismo, comunhão de fatos e dados, o tête-à-tête entre sujeito e objeto, a fim de que seja caracterizado o ato de criação do conhecimento. Oliveira (1999, p. 15) reforça: “Além disso, no contexto universitário a caracterização desse conhecimento permite a hierarquização de prioridades com a definição de novas diretrizes para o ensino”. A produção científica espelha, pois, a realidade do momento atual, indica a fase de desenvolvimento na qual se encontra certa área do conhecimento; no caso, o estudo sobre a função social do ensino superior. Portanto, segue a historicização do ensino superior brasileiro, suas mazelas, seus benefícios, suas chagas, suas conquistas. No Renascimento e na Idade Moderna, a chamada Revolução Científica, resultante do modelo copernicano do heliocentrismo para a astronomia e da nova física constituída por Galileu, mais tarde enriquecida por Newton, aponta a superação do modelo da ciência aristotélica prevalecente desde a Antiguidade e durante a Idade Média. Uma autêntica revolução que configura ruptura metodológica desencadeada pelo projeto epistemológico de Descartes e Bacon, no século XVII e, ao final, se reafirma no reconhecimento da objetividade fundada no mecanicismo. Sob a égide do pensamento científico, a crença na razão e na elaboração do conhecimento com o domínio do homem sobre a natureza e a consolidação do capitalismo como projeto civilizatório (trouxe) traz novos trajetos para a humanidade (CARDOSO, 1997). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Fulcrada na Razão, a Modernidade incita nova ordem das relações sociais com aceitação da importância do conhecimento à sociedade, sua construção, sobretudo voltado ao pragmatismo das exigências cotidianas. Um dos aspectos da educação no Ocidente é de transmissora de herança cultural da humanidade, em que sua parcela de contribuição social é decisiva. Essa visão de educação prevalece como um dos vetores da racionalidade capitalista, aparece na organização burocrático-racional do Estado, da organização do mundo do trabalho e da produção e difusão do conhecimento. Segundo Schwartzman (1997), a partir da década de 50, a educação torna-se tema de caráter técnico-administrativo, fazendo que as grandes discussões sobre ela sejam deslocadas para o domínio de especialistas, diretamente envolvidos com a problemática, como professores, secretarias, ministério da educação e até editores. É um período em que a educação passa a ser encarada como variável de grande importância no projeto desenvolvimentista latino-americano; assim, os chamados países periféricos, paralelo aos projetos de implantação da infra-estrutura industrial, desencadeiam processos de modernização na área educacional. Nessa perspectiva, este artigo visa a delinear possíveis respostas para algumas indagações acerca das contribuições do ensino superior à sociedade, tendo em vista que se vive época de valorização desse nível de ensino, com significativas repercussões gregárias, mudanças pessoais, concentração em profissões de cunho humanitário, dentre outras. No Brasil, a Reforma Capanema 1942-1946, a criação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA); na década seguinte, a criação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), atualmente, denominada Coordenação de Pessoal de Nível Superior; e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) reforçam as teses de que um sistema de ensino superior e geração de ciência e tecnologia são indispensáveis para fazer decolar projetos desenvolvimentistas, sempre tendo o Estado como seu grande responsável. A respeito da junção política de cunho industrial e educacional, Durham (1998, p. 93) observa: [...] é a convicção de que as universidades são um instrumento fundamental para a modernização da sociedade. É isso que justifica, até mesmo, o seu controle pelo Estado (o UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 qual é a instância que deve promover a modernização), bem como o seu financiamento pelo poder público. Esta concepção, que permanece até hoje, tem fornecido o quadro de referência no qual se negociaram os recursos, a autonomia e a organização das atividades acadêmicas e tem sido fonte importante de legitimação e projeção política das instituições de ensino superior. Assim, nas sociedades latino-americanas, o sistema de ensino superior cumpre suas funções tradicionais de formação das elites, de preparo profissional para carreiras liberais, de agentes técnicos para as burocracias e também (participou) participa de forma intensa das tentativas de criar uma América Latina, industrialmente autônoma. Depois do período da ditadura militar, no Brasil, até à redemocratização, ainda que de forma restrita, o ensino superior se amplia de acordo com novas demandas de tarefas pela e para a sociedade. O debate atual em torno do ensino superior, no Brasil, está polarizado entre uma abordagem neoliberal da universidade pública tida como desperdiçadora de recursos, anacrônica, a serviço das classes médias e que dificulta as reformas de que a sociedade necessita para se integrar de forma plena ao processo de globalização da economia, e, por um outro enfoque que avalia o modelo neoliberal como privatizante e destruidor da universidade como instituição social (Chauí, 2002). Ainda, em visão geral do ensino superior privado com crescimento desenfreado, mas com potencial e dinamismo arrebatados. Hoje em dia, além de o compartilhamento das informações acontecer com extrema rapidez, a maior parte de todo o conhecimento atual tende a ser produzido por técnicos altamente especializados trabalhando em grandes centros universitários ou institutos de pesquisas financiados em sua totalidade ou em grande parte pelo capital privado. Vale ressaltar, entretanto que, nas instituições públicas e privadas de ensino superior, ou mais precisa e intensamente, nas universidades públicas, essa atividade é desenvolvida. A vinculação entre uma política de ensino superior fortemente atrelada às diretrizes internacionais é analisada por Catani e Oliveira (2000, p. 45) que observam UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 o perfil da atual educação superior, as temáticas, as críticas, as tendências e as políticas e estratégias mais significativas revelam o alto grau de subordinação dos países em relação às orientações dos organismos internacionais. Resta esperar que os sistemas universitários não se restrinjam a condicionalidades do desenvolvimento econômico que a poucos beneficia. Até o início do século XIX, mais precisamente 1808, o Brasil Colônia não conta com ensino superior em seu território. Nas colônias espanholas da América, a primeira universidade, embora de curta duração, surge em 1538, na ilha de Santo Domingo, território da atual República Dominicana. Entre 1549 e 1759, o ensino formal brasileiro é dirigido pela Companhia de Jesus, responsável pela cristianização dos índios, pela formação do clero em Seminários de Teologia e pela educação dos estudantes da elite colonial portuguesa, nascidos aqui, onde recebem educação medieval-latina associada à grega. Deslocamse até à metrópole a fim de frequentar e se graduar nas universidades portuguesas cujo objetivo é, dentre outros, a unificação cultural do império de Portugal, desenvolver nos estudantes uma homogeneidade intelectual capaz de fazê-los compreender a fé católica inquestionável, bem como sua superioridade sobre a Colônia: mais de 2.500 jovens nascidos no Brasil graduaram-se em Teologia, Direito Canônico, Direito Civil, Medicina e Filosofia, durante os três primeiros séculos de nossa história. No Brasil Colônia, dada sua condição de território a serviço da exploração metropolitana, não há justificativa para que a população nativa possa se preocupar com estudos e os filhos dos nobres portugueses frequentam universidades europeias. Cunha (1980, p. 12) observou que é argumento comum afirmar que “Portugal bloqueava o desenvolvimento do ensino superior no Brasil, de modo a manter a colônia incapaz de cultivar e ensinar as ciências, as letras e as artes”. Com a chegada da família real portuguesa, por volta de 1808, no (ao) Brasil, (foram surgindo) surgem as primeiras escolas superiores: Academia Real de Marinha, o curso de Cirurgia, Anatomia e Obstetrícia e a Academia Real Militar, com a característica predominante de cursos isolados, basicamente profissionalizantes, divorciados da investigação científica. Sobre o tema, Borges (2006, p. 22) informa UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Registre-se que, até o ano de 1808 (vinda da família real portuguesa para o Brasil), em solo nacional não existia um só curso superior. Os que tinham recursos enviavam seus filhos para Europa (Lisboa e Coimbra, em Portugal, Oxford, na Inglaterra, Heildelberg, na Alemanha, Salamanca, na Espanha, Gênova, na Itália e para a Universidade de Paris, na França) a fim de que fizessem um curso superior. Com a vinda de D. João VI (fugindo da fúria napoleônica na Península Ibérica) o ensino superior começou a se estruturar no Brasil. Em menos de três décadas foram criadas a Fundação da Academia da Marinha, a Academia Militar, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, as Faculdades de Medicina, Economia, Desenho Técnico e Agricultura, entre as principais, com grande desenvolvimento no campo literário, sociológico e matemático. O ensino superior, até então destina-se à qualificação da elite, à aristocratização e ao exercício do poder com estreita concepção de ciência dirigida às atividades imediatas e não à produção do conhecimento. Apesar da existência desse tipo de ensino, até o início do século XX, não se cria qualquer universidade em território brasileiro. Cunha (1980, p. 12) registra os seguintes fatores favoráveis a essa realidade: 1) Contrariamente ao colonizador espanhol, o português não encontrou nas terras do Brasil, povos indígenas com culturas complexas, contra os quais fosse necessário travar uma luta no campo próprio da ideologia, para conquistar a ambiciosa hegemonia. Os missionários religiosos, em especial os jesuítas realizaram a tarefa de ‘conversão dos índios’, sem prescindir, como no caso hispano-americano do apoio das armas. 2) Portugal dispunha de um pequeno quadro universitário, integrado pela Universidade de Coimbra e, mais tarde, pelo Colégio de Évora e pelo de Lisboa. A criação de universidade no Brasil empobreceria perigosamente a metrópole. 3) O envio de maior número de estudantes de nível superior a Portugal, socializando-os na submissão à metrópole foi sempre um expediente do qual os governantes portugueses nunca esconderam seus propósitos. A escassa demanda e pouca importância atribuída, até então, ao ensino superior para o desenvolvimento da sociedade brasileira na UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 criação, até a República, de apenas 12 a 15 cursos e faculdades superiores. Inscreve-se aí, o que se torna tradição na história educacional brasileira: a atribuição de distintivo social ao recebimento de diploma. Miguel Lemos (apud CUNHA, 1980, p. 89) afirma: [...] já existe, no Brasil, um número de instituições mais do que suficiente para a formação de profissionais e a fundação de uma universidade só traria, como resultado, a ampliação das deploráveis pretensões pedantocráticas da nossa burguesia, cujos filhos abandonam as demais profissões, igualmente úteis e honrosas para só preocupar-se com a aquisição de um diploma qualquer. Melhor seria utilizar os recursos demandados pela universidade pretendida para a instituição popular, mais urgente e necessária do que qualquer outra, destinada a um pequeno número de privilegiados. Ainda pelo ângulo histórico, pode-se verificar que desde a criação das primeiras faculdades no Brasil, o ensino superior está, na maioria do tempo despregado da realidade social, dirigido, de ordinário, aos grupos dominantes e, portanto, caracteristicamente conservador, elitista, clássico, decorativo, como mero distintivo social, ligado a interesses governamentais e à manutenção do poder hegemônico. Ao fim do século XIX, significativos acontecimentos ocorrem no Brasil: troca de regime político, introdução da mão-de-obra livre consequente da abolição da escravatura, primeiro surto industrial, intensificação da influência positivista, fortalecimento dos setores médios com militares aliados à burguesia cafeeira os quais deram origem a uma postura descentralizada presente também no ensino superior com a criação de instituições superiores nos Estados (ROMANELLI, 2005). A estrutura de ensino dos níveis primário e secundário existente segue a orientação do Ato Adicional de 1834, não se organiza à base de um sistema nacional: há (havia) sistemas estaduais, sem articulação com o central, as reformas havidas se limitam ao Distrito Federal, que as mostra como modelo sem obrigatoriedade de adoção (RIBEIRO, 1982). Ainda que o ensino superior tenha sido criado durante a permanência da família real portuguesa no Brasil (1808-1821), é no período da Primeira República (1889-1920) que a história educacional registra acanhados momentos de expansão nesse nível de ensino: UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 criação da primeira Universidade organizada conforme determinação do Governo Federal em 1920, no Rio de Janeiro com a anexação da Faculdade de Direito à Faculdade de Medicina e à Escola Politécnica, e, na esteira, é fundada a Universidade de Minas Gerais, em 1927. As décadas de 20 e 30 registram momentos ricos em termos de mobilização nacional em prol da educação. Condensa-se, nesse período republicano, grande parte das reivindicações dos movimentos educacionais que (nasceram) nascem em fins do século XIX e início do XX. A partir de 1930, a educação superior tem um novo impulso: dentre as primeiras medidas educacionais do Governo Vargas, a reforma Francisco Campos (1931), considerada grande por ter dado estrutura orgânica a várias modalidades de ensino, incluindo o superior, por atingir em profundidade o arcabouço organizacional do ensino, e por ser, pela primeira vez, imposta a todo o país cujo ponto de partida é a junção de cursos superiores; na prática, porém, mantêmse isolados uns dos outros. A reforma Campos é o grande momento em que o ensino superior brasileiro ) é centralizado pelo governo federal, ao instituir o Estatuto das Universidades Brasileiras (EUB), estabelecendo em seu artigo 1°: O ensino universitário tem como finalidade elevar o nível da cultura geral; estimular a investigação científica em quaisquer domínios dos conhecimentos humanos; habilitar ao exercício de atividades que requerem preparo técnico e científico superior; concorrer, enfim, pela educação do indivíduo e da coletividade, pela harmonia de objetivos entre professores, estudantes e pelo aproveitamento de todas as atividades universitárias, para a grandeza da Nação e para o aperfeiçoamento da Humanidade. (ROMANELLI, 2005, p. 133) Caracterizado fica, pois, o tipo de liderança do governo ao estabelecer amplos objetivos educacionais sem levar em conta a realidade educacional brasileira à época. (Continuação do mesmo pensamento). Segundo concepção de Mendonça (2000, p. 140) [...] a Reforma Campos teria armado o Estado para exercer sua tutela sobre o ensino e [...] especificamente sobre o ensino superior. Com isso, a autonomia do campo cultural tornar-se-ia letra morta, sendo esse campo invadido primeiro pelo autoritarismo e depois pelo paternalismo do Estado. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 O EUB, em seu art 5º, estipulou “[...] a obrigatoriedade de pelo menos três dos seguintes cursos para a constituição de uma Universidade: Direito, Medicina, Engenharia e Educação, Ciências e Letras” (ROMANELLI, 2005, p. 133). A mencionada reforma (reiterou) reitera, pois, uma educação humanista e elitizante que reflete uma época; entretanto, inegável seu mérito ao abrir perspectivas para as universidades. Outro momento importante: a publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação, em 1932, sintetizando partes dos ideais de seus proponentes. No campo da educação superior, o documento recomenda a criação de universidades capazes de integrar atividades de ensino e pesquisa. A primeira Universidade, criada nos moldes das normas previstas no EUB, (foi) é a de São Paulo (USP), em 1934, uma agregação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, à Escola Politécnica, à Faculdade Direito e à Faculdade de Medicina. A partir de 1935, cria-se a Universidade do Distrito Federal, a de Porto Alegre, de tal sorte que as públicas e privadas ascenderam a 46 (ROMANELLI, 2005). A partir dessa mesma década, já existe no Brasil, considerável número de instituições, em sua maioria, de iniciativa privada confessional católica; gradativamente, se implantam as primeiras universidades institucionalizadas do país, entendidas agora como espinha dorsal do sistema de ensino nacional, cujos objetivos priorizam formação de professores para atuação no ensino secundário, realização de elevados estudos desinteressados e pesquisa. Essa reestruturação do campo educacional serve, sobretudo, como possibilidade de ascensão social, principalmente, para as classes médias que adentram nas burocracias públicas e privadas, constituindo-se os diplomas escolares em verdadeiros instrumentos para a ascensão social. À sombra do Estado interventor e planejador, o ano de 1951 marca a institucionalização da pesquisa no país. Conforme mencionado, além do CNPq, com o objetivo de responder pelas atividades em áreas estratégicas de ciência e tecnologia e promover a capacitação científica e tecnológica nacional, graças à convergência de interesses entre militares, técnicos do governo e a comunidade científica nacional), cria-se, a CAPES. Esses dois órgãos são referências do início da valorização efetiva do ensino superior, em UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 especial, a universidade, como meio e instrumento de capacitação de profissionais e de produção científica aplicada e aplicável. No período pós-guerra, muitas daquelas universidades criadas a partir do EUB federalizam-se, reforçando a tese de que a presença do Estado planejador é fundamental ao ensino superior (CUNHA, 2000). Em 1961, estabelece-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) que não altera disposições até então vigentes, como hierarquização docente, restringindo-se a determinar a fixação dos currículos mínimos, delegando às universidades a normalização sobre concursos. Regulamenta distribuição de docentes de acordo com disciplinas e cursos atendidos, por entender que os estatutos da universidade deveriam desenvolver o assunto com fidelidade aos padrões nacionais e internacionais do ensino universitário. Nesse mesmo ano, Anísio Teixeira apresenta proposta inovadora, quando da fundação da Universidade de Brasília, tendo como objetivo para essa instrução o de ”[...] formar cidadãos empenhados na busca de soluções democráticas para os problemas com que se defronta o povo brasileiro na luta por seu desenvolvimento econômico e social” (Cunha, 1983, p. 171). O período de 1945-1964 destaca-se por uma política educacional superior como uma fase de construção do próximo tempo instaurado com a reforma universitária de 1968. (Continuação do mesmo pensamento). O paradigma existente para o curso superior, entretanto, pela adequação às necessidades do desenvolvimento econômico e social do país: de um lado, atender o (ao?) capital monopolista; de outro, satisfazer anseios de mobilidade social das camadas médias. Na exposição de motivos da lei 5.540/68 responsável pela fixação de normas para organização e funcionamento do ensino superior, gestada a partir dos acordos entre o Ministério da Educação e Cultura e United States Agency for International Development (MEC/USAID) para assistência técnica e cooperação financeira e do polêmico Relatório Atcon, (assessor norte-americano a serviço do Ministério da Educação), além de estar indicada a necessidade de disciplinar a vida acadêmica, coibindo o protesto, reforçando a hierarquia e a autoridade, é enfatizada a importância de racionalizar a UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 universidade para dar-lhe maior eficiência e produtividade. Ali se identificavam atividades empresariais, concepção vinculada à mentalidade tecnocrática, hegemônica à época. Germano (1994, p. 123) informou que Na esteira dos acordos MEC/USAID foi constituída a Equipe de Assessoria ao Planejamento do Ensino Superior (EAPES), grupo de trabalho que produziu documento, concluído em 1968, que continha análises sobre a educação brasileira e proposições acerca da reforma universitária. O pressuposto principal desse documento é sobre a essencialidade da educação, essencial ao desenvolvimento da sociedade e parte de medidas como as de organização departamental; adoção de sistema de créditos; ciclos básico e profissionalizante; combate ao desperdício; defesa da racionalização; aumento de produtividade, que se fizessem necessárias. Mais uma vez, a presença majoritária do Estado na elaboração de políticas se consubstancia: ao expandir a economia, gera a necessidade de também criar infra-estrutura de comunicações, transporte e energia a fim de originar fonte de empregos que exijam os mais diversos níveis de habilitação. As normatizações refletem o contexto sócio-econômico-político brasileiro no qual o desenvolvimento caracteriza o processo de modernização da sociedade com base na industrialização e na expansão internacional da economia. Mendonça (2000, p. 143) esclarece que Vários foram os grupos que se envolveram com esse debate e que assumiram iniciativas bastante diversificadas: o Estado – e, no interior do aparelho do Estado, grupos distintos assumiram a liderança de iniciativas algumas vezes até contraditórias entre si – e dois novos atores coletivos que imprimiram a sua marca na orientação que será dada a esse debate como a posteriores encaminhamentos da questão: a comunidade científica organizada e o movimento estudantil. Apesar da participação efetiva de dois novos atores, e de algumas pretensões geradas pelo clima efervescente dos anos 60, o conteúdo técnico, de âmbito organizacional e administrativo predomina em vez do político na reforma universitária de 68: ampliação das funções para o ensino e pesquisa; criação de organização departamental; extinção do sistema de cátedras; responsabilidade da comunidade acadêmica na seleção de professores; UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 reestruturação da carreira docente, sendo condição para ingresso estar cursando a pós-graduação; adoção do sistema de créditos; imposição de uma gestão inspirada na tecno-burocracia, visando a uma racionalidade eficientista; criação do regime de trabalho de dedicação exclusiva, ênfase na pós-graduação, dentre outros (Germano, 1994). Essa modernização vem acompanhada pela expansão desordenada do ensino superior privado com a implantação de faculdades isoladas que proliferaram no país. Não raras vezes apresentam oferta de cursos de graduação muitas vezes sem organização e experiência acadêmicas devidas e indispensáveis. O caráter utilitarista da educação, prevalecente no período, expresso na relação direta entre mercado de trabalho e produção clarifica-se sobremaneira, porque o sistema educacional deve preparar a força de trabalho para um processo produtivo: planejamento na educação compatível com as demandas de mercado. São visíveis e constantes os efeitos que as alterações no campo político provocam na área educacional, passando a enfatizar a teoria do capital humano e o binômio desenvolvimento e segurança. Dessa forma, a qualificação profissional passa a ser prioridade e investimento para o desenvolvimento da nação. A reforma da universidade, portanto, procura atender a demanda do mercado de trabalho. Germano (1994, p. 104) assinala que [...] a política educacional faz parte desse contexto, em que o Estado assume um cunho ditatorial, a economia apresenta um forte crescimento em alguns períodos, e os interesses do capital prevalecem enormemente sobre as necessidades de trabalho. No período da Nova República, pós-ditadura, surgem movimentos para institucionalizar mecanismos democráticos nas universidades públicas, em grande parte, canalizados para a Constituinte e, posteriormente, inseridos na Constituição de 1988 (Cunha, 2000). Em 1996, promulga-se a LDBEN 9394/96 e outras medidas complementares com diversos formatos que se estendem desde as orientações para uma organização eficiente, sustentável, empreendedora até a constituição de um sistema universitário diversificado objetivando atender interesses de caráter econômicos. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Além do mais, assiste-se a processo de internacionalização das instituições de ensino superior. Se no período colonial, é praxe a formação das elites brasileiras em Portugal ou na França, na atualidade, há forte tendência de preparo intelectual das elites empresariais nos Estados Unidos da América (país no qual se aplicam, de forma radical, as concepções e políticas neoliberais). Stallivieri (2002, p. 36) estabeleceu que Os inúmeros desafios, que estão surgindo no momento em que chega o novo século, impulsionam as universidades a buscarem um grau de internacionalização muito mais elevado. A globalização da economia e das telecomunicações criou um cenário interconectado. A globalização da cultura, da ciência, das tecnologias exige de nossos estudantes universitários um nível de competência e de formação muito mais sólido e competitivo. Torna-se mister, então, que as instituições estejam preparadas para oferecer soluções a esses novos desafios. Trata-se, portanto, de imperativo de sobrevivência, é preciso até certa medida, acompanhar o movimento acadêmico internacional, uma vez que o sistema universitário brasileiro reflete as desigualdades regionais que o caracteriza como federação. Por outro lado, não se pode negar o distanciamento intelectual em termos de qualidade e quantidade de pesquisas existente entre as universidades brasileiras e suas congêneres internacionais. Nesse passo, indispensável refletir sobre caminhos para conviver ou diminuir essas distâncias, possibilitando intercâmbios acadêmicos em vários níveis (recursos humanos, conhecimentos, tecnologias e outros). Com o deslocamento dos eixos de poder do mundo, as relações entre os países modificaram-se e, em decorrência, também o papel das instituições de diferentes regiões e países, apresentando em sua constituição comunidades internacionais que se reuniam em busca de um objetivo comum: o conhecimento (STALLIVIERI, 2002, p. 36-37). Para isso, pressupõe-se cooperação: científica, tecnológica, acadêmica em seus diferentes níveis, de forma horizontal e vertical, bilateral e multilateral voltada para o âmbito interinstitucional. Porque o deslocamento dos eixos de poder do mundo modifica as relações entre países, também o papel da universidade se altera. Governo, instituições, empresas e responsáveis pela educação conscientizam-se UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 do inarredável conhecimento do grande referencial para planejamento do futuro. Logo, amplia-se a missão da universidade que deve produzir e socializar o conhecimento científico, vetor de expansão, de qualificação e de manutenção de sua atividade fundamental primeira. Para tanto, Stallivieri (2002, p. 55) reafirma: Tendo isso presente, a cooperação internacional deve ser perseguida, pois através dela as instituições de ensino superior podem buscar uma efetiva integração de nações, não somente com vistas à defesa de seus interesses econômicos e sociais comuns, mas também, e acima de tudo, para buscar uma realidade mais justa e equilibrada para as populações. A interligação entre os centros de pesquisa e de ensino superior de todos os cantos do mundo extrema-se em importância por oportunizar troca de informações com possibilidade de se dar origem a verdadeiras redes de saber universal. O período compreendido entre 1994-2002 marca-se por avanços na educação brasileira, principalmente quanto à continuidade das políticas favoráveis à proliferação de faculdades privadas criadas ou transformadas em Centros Universitários e Universidades. Os efeitos das políticas educacionais desse tempo ainda estão surtindo resultados no início do século XXI, com mudanças no perfil do alunado atendido e definição de sua inserção no mercado – compromisso social do governo. Encetam-se políticas públicas afirmativas concretas como o Programa Universidade para Todos (PROUNI), reconhecidamente articuladas para o acesso ao ensino superior. O Jornal de Políticas Educacionais n. 4 de jul 2008, p. 53-63 informa que, até o início do novo milênio, o governo federal responsabiliza-se pela inclusão de cerca de 200 mil estudantes no mundo universitário. Não basta simplesmente aplaudir iniciativas governamentais em se tratando de avanços significativos no ensino superior, mas de reconhecer limitações de recursos do setor público bem como, que notável estrato social, hoje, faz parte do mundo universitário. Ainda que se considerem os avanços acentuadamente marcados, não se pode perder de vista o sucateamento das instalações físicas, o baixo salário dos professores, a apuração elitista dos exames de seleção para ingresso nas universidades públicas brasileiras. Por outro lado, as UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 instituições privadas padecem da mercantilização, da falta de incentivo para formação docente, não conseguem oferecer retorno social e cultural (de alguns cursos) à população e, ainda, as perspectivas profissionais oferecidas aos estudantes é ínfima. O ensino superior caminha a passos longos, porém lentos. Urge retomada de rota para que o retorno social venha a galope para o bem estar da população. Acima de tudo, é fundamental que o discurso deixe o leito estéril panfletário das reiteradas promessas e, efetivamente, passe de vez para a prática tão prometida, em busca de melhores dias no plano educacional, sempre com os olhos fixos na dignidade humana. É o mínimo a esperar. REFERÊNCIAS BORGES, N. Manual didático das obrigações: contratos e revisão contratual. Curitiba: Juruá, 2006. CARDOSO, C.F. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CATANI, A. M.; OLIVEIRA J. F. de. A reestruturação da educação superior no debate internacional: a padronização das políticas de diversificação e diferenciação. Revista Portuguesa de Educação, p. 29-51, 2000. CHAUÍ, M. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Abramo, 2002. CUNHA, L. A. A universidade temporã. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. ______. 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Princípios constitucionais tributários. Educação fiscal. ABSTRACT This paper presents a range of understandings of the concept of tax fairness – with the aid of ideas developed by prominent names in the science of law – to better adequate in the application within the social state of law. Before entering the subject, it was necessary to establish parallels between tax fairness and distributive justice, and to establish, as one of its major foundations, the tributary constitutional principles. Thus, it became possible to elaborate, by practices that lead to the achievement of fair taxation, a concrete idea of the ways that the government has to make true the dignity of the human being. Key words: Fair taxation. Distributive justice. Tributary constitutional * Advogada; bacharel em Direito (UENP). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 principles. Education for taxes. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 JUSTIÇA FISCAL COMO FONTE DE PROMOÇÃO DA DIGNIDADE NO ESTADO CONSTITUCIONAL Bruna Geovana Fagá Tiesse 1 INTRODUÇÃO Pela leitura de pensadores do direito como Kant, Habermas, Rawls bem como Hans Kelsen, pode-se perceber que a conceituação do termo justiça sempre passou longe de obter uma conceituação que delineasse os liames do consenso. Para uns, a justiça seria a liberdade, para outros a justiça não passa de uma bela utopia e há, ainda, quem defenda ser a justiça a maior expressão da equidade. No entanto, é necessário ressaltar a importância desses primados para a aplicação da justiça, que se faz por meio da justiça distributiva, bem como da justiça fiscal, separando, desta forma, o justo do direito. Com base nisto, entende-se que a justiça distributiva consiste em analisar toda a sociedade de um modo geral, para conceder a cada um de seus membros aquilo que lhe é devido, zelando pelo princípio da equidade. Neste diapasão, é perfeitamente possível compreender a necessidade de se estabelecer um paralelo entre a justiça distributiva e justiça fiscal, uma vez que, o Estado que aplica o princípio da distributividade à sua forma de governar, também o fara na sua forma de arrecadar tributos. Nasce, portanto, a justiça social, oportunamente denominada de justiça fiscal, que tem por escopo a promoção do bemestar coletivo. Não obstante, consubstanciados na própria Constituição Federal de 1988, encontram-se os princípios constitucionais tributários, verdadeiros guardiões da justiça fiscal, que, por sua vez, são fundamentais uma vez que zelam pela dignidade de cada cidadão. Para tanto, busca-se ainda com fulcro na mesma Constituição, meios de obtenção e efetivação da justiça fiscal. Neste sentido, a tributação voltada à propriedade e ao consumo, há que ser analisados bem como há que ser observados ainda, os princípios da progressividade e da UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 seletividade, tudo levando em consideração o melhorando na arrecadação e distribuição fiscal. 2 JUSTIÇA NA ACEPÇÃO DE PENSADORES DO DIREITO O termo justiça pode ser concebido sob a égide de diversos enfoques. Importante tema, sobretudo para a ciência do direito, inspirou diversos autores, dentre eles, Del Vecchio (1960, p. 4), que a bem definiu como sendo “a pedra angular de todo o edifício jurídico”. 2.1 A justiça na acepção de Hans Kelsen De acordo com Nader (2001, p. 125), Kelsen entendia que a justiça era apenas um sonho, algo totalmente utópico, que jamais alcançaria uma verdade absoluta, pois acreditada que ela era concebida de maneira subjetiva, de acordo com cada grupo, e de pessoa para pessoa. Neste sentido, para o autor austríaco a própria razão humana só é capaz de produzir valores relativos. Partindo do pressuposto de que Kelsen somente considera a existência de uma justiça relativa, ele nega que as leis sejam injustas, e somente acredita que haverá injustiça quando a norma jurídica não for aplicada ao caso concreto (MENESCAL, 2007, p. 24). Tendo o exposto por base, Montoro (2000, p. 143) explica muito bem que: [...] mesmo que seja possível decidir-se objetivamente sobre o que é justo e o que é injusto, como é possível determinar o que é um ácido e o que é uma base, justiça e lei devem ser consideradas como dois conceitos diferentes. Se a ideia de justiça possui alguma função, é a de ser um modelo para leitura da boa lei e um critério para a distinção entre uma lei boa e uma lei má. Maria Helena Diniz (2009, p. 131) complementa afirmando que, desta forma, Kelsen tentou preservar a pureza do sistema normativo partindo de sua análise estrutural, desvinculando-o totalmente e de maneira sistemática de qualquer fato empírico, impossibilitando assim, o desfrute de uma noção concreta e significativa de justiça. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 2.2 A justiça para John Rawls A teoria da justiça proposta por Rawls consiste basicamente no princípio da liberdade e no princípio da equidade, este, também denominado princípio da diferença. Com relação ao princípio da liberdade há elevado apreço pelo tratamento igualitário aos indivíduos de uma sociedade. Já o princípio da igualdade é visto tendo por base a igualdade de oportunidades, de tal sorte que as diferenças sociais sejam levadas em consideração no oferecimento de benefícios aos menos favorecidos (RAWLS, 2002, p. 20-38). Esses princípios somente são válidos perante os indivíduos de um grupo social quando são aplicados sob o fulcro do “véu da ignorância”: Trata-se de um artifício, ou de uma apresentação, para usar o seu termo, pelo qual se remete a uma situação hipotética na qual as pessoas, ignorando sua posição e a posição dos demais na sociedade, bem como seus talentos e habilidades respectivos (o “véu da ignorância”), escolhem aqueles princípios mais equitativos, pelos quais, na pior das hipóteses, não seriam prejudicados ou não sairiam perdendo. (ROUNET, 2010, p. 27) Com base nessa assertiva, afirma-se que a teoria partiu de um pressuposto contratualista, em que o indivíduo é analisado a partir de seu estado natural, ou ainda, partindo da sua posição original. Não obstante a teoria ter sido desenvolvida tendo por base uma sociedade bem ordenada, em que os conceitos de democracia estão definidos, ela poderá ser aplicada a outros tipos de sociedade. Rawls (apud ROUNET, 2010, p. 64) classifica as sociedades em: [...] democráticas liberais bem-ordenadas, sociedades hierárquicas decentes, sociedades imperfeitamente ordenadas e sociedades fora da lei. Em Uma teoria da justiça, Rawls estudava primeiro as condições para uma sociedade bemordenada. Caso fosse bem-sucedido, estenderia então sua análise para outros tipos de sociedade. Em seu penúltimo livro, Justiça como equidade – uma reformulação, Rawls tem a preocupação de mostrar que essa teoria serve para estudar as desigualdades da sociedade [...]. Fica claro o caráter social incutido no conceito de justiça, que UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 tanto tratou de priorizar o coletivo quanto o individual, preocupandose ainda em atender tanto aos reclames sociais quanto aos interesses e ideais políticos. Desse modo entende-se que a melhor forma de aplicar essa teoria é primeiramente compreender suas fases: [...] A teoria se distingue em duas fases: uma, a posição original, na qual os agentes, situados por trás de um “véu da ignorância”, escolhem os princípios pelos quais vão governar a sociedade; vimos que esses princípios são o da liberdade igual para todos e o da diferença; a segunda fase é a da deliberação, quando os agentes – ou a sociedade reunida – decidem como por em prática esses princípios. Assim, cabe a cada sociedade criar as condições para a implementação dos dois princípios acima mencionados, ou outros, caso lhe ocorram, a situação resultante sendo considerada, por definição, justa. (ROUNET, 2010, p. 64) Tendo por base a teoria da justiça desenvolvida por Rawls, para ter uma sociedade justa é preciso que cada indivíduo tenha dignidade, além disso, é preciso existir e, para existir, o mesmo indivíduo tem que ser enxergado pelo Estado que o governa. 2.3 A Justiça como liberdade para Imannuel Kant Kant (apud ROUNET, 2010, p. 64), ao dizer que o direito “é o conjunto das condições, por meio das quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de outro, segundo uma lei universal da igualdade”, acabou delimitando o campo do justo do campo do injusto. Sendo assim, Kant8 (apud ROUNET, 2010, p. 64) deu ensejo à ideia de que “uma ação é justa, quando, por meio dela, ou segundo sua máxima, a liberdade do arbítrio de um pode continuar com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal”. Resultado disso foi um dos fundamentos para o estado liberal. A justiça é a liberdade. Com base nesta concepção, o fim último do direito é a liberdade (e entenda-se liberdade externa). A razão última pela qual os homens se reúnem em sociedade e construíram o Estado, é a de garantir a expressão 8 Emmanuel Kant. Doutrina do Direito. 2. ed. Trad. de Edson Bini. São Paulo: Icone, 1993. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 máxima da própria personalidade, que não seria possível se um conjunto de normas coercitivas não garantisse para cada um uma esfera de liberdade, impedindo a violação por parte dos outros. O ordenamento justo é somente aquele que consegue fazer com que todos os consociados possam usufruir de uma esfera de liberdade tal que lhes seja consentido desenvolver a própria personalidade segundo o talento peculiar de cada um. Aqui o direito é concebido como conjunto de limites às liberdades individuais, de maneira que cada um tenha a segurança de não ser lesado na própria esfera da leicedade até o momento em que também não lese a esfera da leicedade dos outros. (BOBBIO, 1984, p. 71) Pela teoria Kantiana o direito funciona como uma lei universal que rege a atuação dos indivíduos, a qual não poderá invadir a esfera de liberdade de cada indivíduo, pois é ela, direito único e originário. 2.4 Jungen Habermas Habermas ao falar a respeito da justiça deixou claro que a mesma deve ser moral e deverá partir de três premissas, sendo elas a cultura, a personalidade e a sociedade. A cultura dirige cada pessoa a interpretar o ambiente em que o cerca para que possa conviver em sociedade. A personalidade é o próprio conjunto dessas interpretações e, por sua vez, é a forma como irão correlacionar essas atitudes dentro da comunidade. (MENESCAL, 2007, p. 28) Para Habermas essa convivência se exterioriza sob a forma da comunicação, isso justifica ele ter proposto a teoria da ação comunicativa e ainda, a substituição do conceito de individualismo, para o conceito de grupo: No mundo contemporâneo, as cosmovisões metafísicas ou religiosas são incapazes de providenciar tal legitimidade. A irrupção do individualismo, exacerbado pela Reforma Protestante, pelo capitalismo e o racionalismo trazido pela Revolução Científica e pelo humanismo, fundaram uma sociedade de cosmovisões heterogêneas, com concepções dispares do que seja uma “vida digna”, tanto no plano individual quanto no coletivo. (CRUZ, 2006, p. 129) Isto leva ao pensamento da justiça como algo utópico, pois UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 partindo do princípio de que o homem tornou-se um ser individualista em sua essência, por conta do contexto histórico e social ao qual está inserido, se torna inviável a promoção do justo. 3 JUSTIÇA NA ACEPÇÃO CONTEMPORÂNEA A justiça pode ser entendida como virtude, como hábito ou ainda como força de vontade. Para Aristóteles, em seu livro, Ética a Nicômaco, a justiça é uma virtude da ação de um indivíduo. Entretanto: [...] Esta diversidade não significa que exista uma oposição entre o sentido subjetivo e objetivo da justiça. Estamos na presença de dois aspectos de uma mesma realidade. Justiça, no sentido subjetivo, é a virtude pela qual damos a cada um o que lhe é devido. No sentido objetivo, justiça aplica-se à ordem social que garante a cada um o que lhe é devido. Trata-se de um caso de analogia. O que se disser da justiça como virtude aplicar-se-á, também, analogicamente, à ordem social e às demais acepções do vocábulo. (MONTORO, 2009, p. 164) A justiça ainda poderá ser associada a um sentido lato e a um sentido estrito. No sentido lato, ou seja, em um sentido menos amplo, justiça significa o “conjunto das virtudes sociais ou virtudes de relação e convivência humana” (MONTORO, 2009, p. 165). Já em sentido estrito, justiça “designa uma virtude como objeto especial” (MONTORO, 2009, p. 164); significa dizer que “onde se pratica justiça, respeita-se a vida, a liberdade, a igualdade de oportunidade. Praticar justiça é praticar o bem nas relações sociais” (NADER, 2011, p. 106). A justiça funciona basicamente indicando um norte para as condutas humanas de modo que: A presença, pois, da justiça como uma espécie de código de ordem superior, cujo desrespeito ou violação produz resistência e cuja ausência conduz à desorientação e ao semsentido das regras de convivência, pode-nos levar a admiti-la como um princípio doador de sentido para o universo jurídico. (FERRAZ JÚNIOR, 2010, p. 328) Dessa forma, não há como falar em justiça sem elencar sua importância para a efetivação do direito. Nesse sentido: UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 A ideia de justiça faz parte da essência do Direito. Para que ordem legítima seja legítima, é indisponível que seja a expressão da justiça. O Direito Positivo deve ser entendido como um instrumento apto a proporcionar o devido equilíbrio nas relações sociais. A justiça se torna viva no Direito quando deixa de ser apenas ideia e se incorpora às leis, dando-lhes sentido, e passa a ser efetivamente exercida na vida social e praticada pelos tribunais. (NADER, 2011, p. 107) Pode-se subtrair desses dizeres que a justiça não é algo que deva ficar restrito ao direito, mas a todos os fatores da vida em sociedade, de modo que a não existência da justiça tornaria essa convivência impossível. Para que a justiça saia do plano da utopia, também há a necessidade de se analisar o comportamento de cada um para com o todo, e do todo para com cada um. Segundo Reale (2002, p. 125): Diante de certos casos, mister é que a justiça se ajuste à vida. Este ajustar-se à vida, como momento do dinamismo da justiça, é que se chama de equidade, cujo conceito os romanos inseriram na noção de Direito, dizendo: jus est arsaequiet boni. É o principio da igualdade ajustada à especificidade do caso que legitima as normas de equidade. [Grifo do autor] Sendo assim, a equidade atua em um campo de flexibilidade, mediando situações práticas da vida e garantindo a fidelidade para com o princípio da igualdade. A partir disso não haverá igualdades absolutas, mas haverá sim, uma relativização desse conceito. Por isso, se a justiça, em seu aspecto formal, exige igualmente proporcional e exclui a desigualdade desproporcional como princípio estrutural sem o qual não há sentido no jogo jurídico, em seu aspecto material denuncia-se um campo de probabilidade que tornam a justiça o problema que dá também sentido ao jogo. Em suma, a justiça é ao mesmo tempo o princípio racional do sentido do jogo jurídico e seu problema significativo permanente. Ao criar normas, interpretá-las, fazê-las cumprir, a justiça (em seu aspecto material) é o problema que deve ser enfrentado, como num jogo de futebol, em que o objetivo é atingir o gol. Como, porém, no futebol só há jogo se houver onze jogadores de cada lado, um campo conforme certas medidas de certo tamanho, assim também a produção, a aplicação e a observância do direito estão delimitadas pelo princípio formal da igualdade proporcional a partir do qual o jogo se identifica como jurídico: a justiça UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 formal não pertence ao jogo, mas é o limite do jogo. [Grifo do autor] (FERRAZ JÚNIOR, 2010, p. 332) Não é tarefa das mais fáceis conceituar justiça, tampouco promovê-la, mas é certo que, de tudo há que se fazer para que a mesma seja alcançada e, ninguém melhor do que o próprio Estado sob o crivo do poder legislativo, para começar o cumprimento desta importante e essencial tarefa. 4 JUSTIÇA SOB A FORMA DISTRIBUTIVA Inicialmente cabe esclarecer que a justiça distributiva se difere da justiça comutativa uma vez que nesta, há uma priorização do particular em detrimento do coletivo e, naquela, ocorre justamente o contrário, há participação da coletividade tanto nos benefícios quanto nas onerações advindas do Estado. Ao falamos em ações sociais bem como em promoção do bem-estar social e uma atuação estatal voltada à coletividade, a justiça distributiva encontra um campo bastante vasto, pois é responsável por “regular a aplicação dos recursos da coletividade às diversas regiões ou setores da vida social, disciplinar a fixação dos impostos e sua progressividade” (MONTORO, 2009, p. 216), dentre outras responsabilidades, como fomentar a implementação de reformas nos setores agrário, tributário, educacional, etc. A distributividade consiste em analisar toda a sociedade de um modo geral para conceder a cada um de seus membros aquilo que lhe é devido, zelando pelo princípio da equidade que, nesse caso deverá ser relativizado. Vale lembrar que para o estudo da justiça distributiva, pressupõem-se uma alteridade, ou seja, certo número de pessoas que estejam vivendo numa determinada sociedade. Dessa forma: [...] essas pessoas são o todo e a parte, a comunidade e os particulares. A sociedade deve dar a cada um de seus membros aquilo que lhe é devido. A sociedade como termo a quo ou devedora (sujeito passivo) e os particulares como termo ad quem ou credores (sujeito ativo). (MONTORO, 2009, p. 216) UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Além da alteridade, há também outro ponto que fundamenta a justiça distributiva, qual seja, o “devido”. Pelo devido, entende-se o bem-comum compartilhável com todas as pessoas de uma coletividade. Sendo assim: Realmente, é da própria essência do bem comum que dele participem os membros da comunidade, pois trata-se de um “bem-comum” e não “próprio”. E esse é o dever fundamental da autoridade: distribuí-lo com justiça. Dever rigoroso, que confere aos particulares o direito de recorrer contra os excessos ou abusos que lhes prejudiquem. (MONTORO, 2009, p. 226) É certo que a justiça distributiva deverá observar e zelar pela promoção da justa distribuição do bem-comum à coletividade, mas nesse caso, surge uma grande dúvida na doutrina no que diz respeito à distribuição dos encargos. A corrente minoritária acredita que a distribuição na justiça distributiva deverá se dar apenas com relação aos benefícios. O fundamento para tal assertiva diz que: Sua razão, em síntese, é a seguinte: como justiça particular, a distributiva tem por objeto o bem dos particulares, e no conceito de bem não se podem incluir os ônus e encargos. Consequentemente, cabe à justiça distributiva reger apenas a repartição dos benefícios. (MONTORO, 2009, p. 230) Já a corrente majoritária afirma que assim como os benefícios, os ônus também deverão ser repartidos entre a coletividade e para isso, levam em conta o objeto que está em discussão. Sendo assim: A justiça distributiva tem por objeto, diretamente, a repartição dos bens sociais. E, só indiretamente, a dos encargos. Ela distribui os encargos, enquanto essa repartição é, de certa forma, um bem para os membros da comunidade. Os encargos podem representar um bem para o particular, duplamente. Primeiro, porque, beneficiando a sociedade, de que ele é parte, também o beneficia indiretamente. Segundo, porque é um bem para o individuo que os encargos sejam distribuídos “proporcionalmente” a suas possibilidades. (MONTORO, 2009, p. 231) Insta salientar ainda que complementarmente à alteridade e ao dever, há também um terceiro requisito que, segundo Montoro (2009, p. 232), é indispensável à promoção da justiça distributiva, que é a UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 própria igualdade. Portanto, a igualdade deverá ser relativizada e deverá preservar a ideia de tratar aos desiguais segundo sua desigualdade. Fruto do contexto histórico-social, a proporcionalidade na igualdade vai ser aplicada de acordo com cada tipo de sociedade. Ainda com base nos ensinamentos de Montoro (2009, p. 235), o Estado tem um papel importantíssimo na efetivação da Justiça distributiva, pois ele está presente na realização das funções jurídica, social administrativa e, ainda, fiscal. Tendo estudado primeiramente acerca da justiça distributiva, nota-se a possibilidade de estabelecer um paralelo a fim de associá-la à justiça fiscal, pois se entendeu que o Estado, o qual aplica a distributividade à sua forma de governar, irá fazê-la também no âmbito da tributação, atentando dessa forma para a efetivação da justiça fiscal. 5 A JUSTIÇA FISCAL Trata-se no presente tópico da ideia de justiça tributária como forma de efetivação da justiça em sentido amplo. Pouco se teorizou acerca do assunto, visto que a ciência do Direito Tributário somente se desenvolveu após a Segunda Guerra Mundial, tendo sido estudada mais por economistas do que por juristas. Como consequência: A consagração da justiça fiscal como uma espécie autônoma, tomando-a em sentido estrito, se justifica pela ênfase que se pretende dar aos aspectos ligados ao relacionamento entre indivíduo e Estado arrecadador, e vice-versa. Contudo, há que se considerar que, ainda que se reconheça que certas normas ou certos princípios de justiça fiscal dizem respeito especialmente às relações bilaterais entre o individuo e o Estado, toda forma de justiça é, precipuamente, justiça social, na medida em que se aplica à vida em sociedade. (MENESCAL, 2007, p. 38) No que tange à justiça fiscal e social, Klaus Tipke e Douglas Yamashita foram dos primeiros estudiosos a dar enfoque à temática. Segundo eles, o sistema tributário apresenta bastantes desigualdades de modo que a “justiça em sua essência exige que os ricos contribuam proporcionalmente mais que os pobres. O princípio da liberdade UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 impõe limites à oneração fiscal do contribuinte” (TIPKE; YAMASHITA9, apud MENESCAL, 2007, p. 28): [Portanto] [...] cobrar impostos é atividade fundamental para manter a sobrevivência do Estado, mas acreditamos ser possível tributar mais quem pode mais do que quem pode menos. “estados de direito são obrigados a criar um Direito Tributário justo. Se, segundo suas próprias Constituições, tanto o Brasil como a Alemanha são igualmente Estados Sociais de Direito, cada qual não pode ser diferentemente justo.” Dessa tributação idealizada, se extrai a possibilidade de chegar à almejada justiça social, a qual foi tão bem delineada por Aristóteles. Nesse viés, Montoro (2009, p. 280) ainda segue dizendo: Uma civilização material e intelectual adiantada será incapaz de assegurar a “grata existência”, se não houver também ensinado os homens a equilibrarem os interesses individuais com autolimitações impostas pelo bem dos outros, a respeitarem a dignidade dos seus semelhantes e a traçarem regras adequadas de coexistência e cooperação nos vários planos da vida [...]. Ocorre que o desequilíbrio vivido na atual sociedade proveniente do Estado de direito advém de um desiquilíbrio préexistente que tem como precedente uma economia de mercado. Não que necessariamente os indivíduos que tenham elevado poder aquisitivo tenham que pagar maior número de impostos, mas que aos impostos já existentes, sejam aplicadas alíquotas diferenciadas, ou seja, progressivas, e não regressivas como ocorre atualmente no Brasil, e que acabam por onerar sobremaneira as classes menos abastadas. 6 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS COMO BASILARES DA JUSTIÇA FISCAL Conforme analisamos no presente trabalho, os princípios constitucionais são de suma importância para o ordenamento jurídico e, principalmente para o direito tributário, tanto para efetivar a segurança nas relações tributárias quanto para promover, juntamente 9 TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 11. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 desta, a justiça fiscal. No que tange a isso, explicam Tipke e Yamashita (2002, p. 20): Direito justo pressupõe princípios (regras, critérios, padrões). Tais princípios são especialmente necessários quando direitos e obrigações, cargas e reivindicações devem ser repartidos entre membros de uma comunidade. Repartição sem princípios é repartição arbitrária. Isso é pacífico, tanto na filosofia moral como na filosofia do Direito [...]. Portanto, acredita-se que para casos semelhantes deverá haver medidas semelhantes, significa dizer que o princípio deverá ser imparcial e deverá auxiliar o legislador desobrigando-o da impossível missão de regular todos os casos concretos possíveis. Sendo assim, podemos dizer que no caso do Direito Tributário, também haverá justiça quando forem aplicados princípios que atentam para a capacidade de contribuir sendo que, além disso, a distribuição do produto dessa arrecadação deverá atender à população mais necessitada e carente de serviços públicos. Tipke e Yamashita (2002, p. 22) seguem dizendo que: Na busca do princípio adequado à matéria deve ser também questionado, considerando a finalidade do ramo do Direito, qual dos diversos princípios possivelmente pertinentes melhor corresponde aos direitos fundamentais da Constituição, qual é amplamente aceito, quais consequências favoráveis e desfavoráveis tem um princípio, se este pode ser realizado de modo isonômico na prática. Também pode ser útil examinar as consequências da transformação do princípio em seu oposto. Se, por exemplo, fosse concedida a mais alta subvenção àquele que dela menos necessita (inversão do principio da necessidade), o resultado seria absurdo. Se assim se procede não se pode dizer que o resultado se baseia em critérios subjetivos. Afirma-se então, que um dos maiores fundamentos da justiça fiscal é o respeito aos direitos dos contribuintes que por sua vez, são representados pelos princípios constitucionais tributários. Por fim, cabe ressaltar que a principiologia constitucionaltributária é apenas uma forma de zelar pela promoção da justiça fiscal. Os princípios deverão ser utilizados como uma forma de guiar a atuação do Estado e de informar os contribuintes através de uma UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 linguagem clara, quais são os seus direitos frente ao polo ativo da relação fiscal. Embora exista uma grande gama de princípios, tanto dispostos pela Constituição como pelo próprio Código Tributário Nacional, não se reputa uma reavaliação dos mesmos, visto que o grande problema, tendo por base sua análise, é verdadeiramente efetivá-los. 7 PRÁTICAS CONDUCENTES À JUSTIÇA FISCAL Conforme acabamos de analisar, a atuação fiscal voltada ao respeito e observação dos princípios constitucionais tributários são um meio dentre tantos de promover a justiça fiscal. Neste tópico, se examina alguns programas, ações e práticas que conduzem o Estado a uma atuação que vise à concretização dessa Justiça. 7.1 Educação e transparência fiscal Cabe salientar que o tributo é instrumento importantíssimo na promoção do sustento do Estado e, por conseguinte, de melhorias nas condições de vida da população. Por meio dele, o Estado ainda obtém e promove o controle econômico e a diminuição das desigualdades sociais. Nesse sentido afirma-se que o cidadão consciente da função social do tributo como forma de redistribuição da Renda Nacional e elemento de justiça social, é capaz de participar do processo de arrecadação, aplicação e fiscalização do dinheiro público. (BRASIL, 2012a) Ainda no que tange a isto, a educação fiscal constrói uma consciência crítica voltada para o exercício da cidadania, pois tem como objetivo “propiciar a participação do cidadão no funcionamento e aperfeiçoamento dos instrumentos de controle social e fiscal do Estado” (BRASIL, 2012a). Para dar efetividade a essa ideia, a Secretaria da Receita Federal do Brasil começou no início dos anos 70 a realizar ações de educação fiscal. Dentre elas, implementou o programa “Contribuinte do UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Futuro”, a partir do qual se objetivou conscientizar a população da importância do exercício da cidadania e do conhecimento da atuação fiscal do Estado. Atualmente, a Receita Federal participa do Programa Nacional de Educação Fiscal que visa a contribuir para a formação do cidadão participativo e tem por fundamento conscientizar os cidadãos dos seus direitos e deveres. (BRASIL, 2012b) Esse programa tem como objetivo: sensibilizar o cidadão para a função social-econômica do tributo; levar conhecimento aos mesmos acerca da administração pública; incentivar o acompanhamento pela sociedade da aplicação dos recursos públicos; criar condições para uma relação harmoniosa entre o Estado e o cidadão. Ele abrange os Ministérios da Educação, a Receita Federal do Brasil, o Secretariado do Tesouro Nacional, a Escola Superior de Administração Fazendária, e Secretarias de Fazenda e Educação estaduais. De acordo com a portaria nº 413, de 31 de dezembro de 2002, ficaram definidas as competências dos órgãos responsáveis pela implementação do Programa Nacional de Educação Fiscal (PNEF). O PNEF atua sobre três áreas específicas. No âmbito educacional engloba a educação formal e a educação informal voltada para a sociedade em geral. A área fiscal e tributária tem como objeto imediato o sistema tributário nacional envolvendo as instituições e servidores que atuam na arrecadação, tributação e fiscalização, assim como, quanto ao gasto público, servidores, entidades e instituições que atuam na gestão de recursos públicos. No que diz respeito à esfera social, estimula a participação popular, o controle democrático, o acompanhamento e intervenção do cidadão na elaboração e execução das políticas públicas. Já as instituições gestoras do Programa atuam na gestão dos processos relacionados à implementação do PNEF. (BRASIL, 2012c) Além da instauração desse programa, que é uma ação extremamente significativa no âmbito do controle fiscal, existem outras práticas que, igualmente, são conducentes à justiça fiscal, como se vai demonstrar na próxima seção. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 7.2 Aplicação da seletividade e progressividade ao ICMS Como ressaltado, os princípios constitucionais que versam acerca da tributação bem como o incentivo à educação fiscal são meios que conduzem à Justiça Fiscal. Juntamente a eles, elenca-se outro meio igualmente eficaz. Assim sendo, insta salientar que o ICMS é um imposto cobrado sobre a circulação de mercadorias ou de serviços. Ao levarmos em consideração o fator necessidade que circunda determinadas mercadorias e serviços, observa-se que alguns deles são perfeitamente dispensáveis, justamente porque assumem o caráter de supérfluos ou secundários. Nesse sentido, por meio do princípio da seletividade, que vem demonstrado no artigo 155, §2º, inciso III, da Constituição Federal, afirma-se que o ICMS poderá ser graduado de acordo com a essencialidade dessas mercadorias e serviços. O objetivo da seletividade é tributar indiretamente aquilo que exceder aos gastos dos consumidores, ou seja, tributar aquilo que exceder ou ultrapassar o entendido como consumo básico indispensável. Com base nisso, os encargos do ICMS recairiam sobre os consumidores finais destes produtos considerados supérfluos. Nesse sentido: Pode-se exemplificar o uso da seletividade como instrumento de intervenção do governo na economia, com as alíquotas de 25% sobre o valor da operação, para os produtos supérfluos, e outras de 17%, 12% ou 9%, para os produtos essenciais. No ICMS, o princípio da seletividade visa atingir aos contribuintes finais ou contribuintes de fato, que, como visto anteriormente, são os que suportam a carga econômica do ICMS. Por esta razão, infere-se que quem adquire um bem ou um serviço luxuoso possui grande capacidade econômica, devendo, pelo princípio da capacidade contributiva, ser proporcionalmente mais tributado por meio do imposto sobre o consumo, do que quem adquire um bem essencial ou imprescindível. (MENESCAL, 2007, p. 145) Também podemos elencar como meio de promoção da justiça fiscal a aplicação da progressividade, que aumenta a carga tributária conforme é aumentada a alíquota da base de cálculo. Aplica-se ao IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), ao IPVA (Imposto UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Sobre a Propriedade de Veículos Automotores), ao IR (Imposto de Renda) e, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, também poderá ser aplicada a progressividade sobre as taxas. É importante ressaltar que toda política que vise à promoção da justiça social entenda-se fiscal deverá respeitar os direitos dos contribuintes, os limites estabelecidos ao Estado quando da sua atividade tributária bem como os impactos que a carga tributária exerce sobre a economia brasileira, tanto no âmbito arrecadatório quando no âmbito da promoção da redistribuição de riquezas. Vale lembrar que, embora tímido, o judiciário também tem apresentado atuação em prol da justiça fiscal, ainda assim, a sua função deve se restringir apenas à fiscalização e não promoção da mesma, pois, este, é dever do Estado, e por assim ser, espera-se que as medidas à promoção de referida justiça sejam as mais claras, transparentes e efetivas possíveis. 7.3 Reforma tributária a partir de ajustes nos tributos incidentes sobre a propriedade e o consumo Como sobejamente sabido, o Brasil é um dos países onde mais se pagam impostos e, por mais contraditório que possa parecer, é também um dos países que mais carecem de incentivos nas áreas sociais. Atualmente, a carga tributária no Brasil representa 34% do PIB nacional. Significa dizer que 34% de toda a riqueza produzida no Brasil vão para os cofres públicos. Segundo a Federação Nacional do Fisco (FENAFISCO, 2012, p. 6), existem cinco maneiras pelas quais o Estado pode exercer a atividade da tributação, sendo feitas através da cobrança de tributos sobre o consumo, sobre a propriedade, sobre a renda, sobre a mão-deobra além da cobrança de taxas diversas sobre serviços. Por sua vez, os tributos que têm por base as relações de consumo são cobrados através de produtos consumidos pelas pessoas. Essa tributação é feita de forma indireta, pois os valores referentes a eles estão embutidos nos preços dos produtos, ou seja, todo aquele indivíduo que consumir algo estará sendo tributado, o que representa 50% da carga tributária arrecadada pelo Fisco (FENAFISCO, 2012, p. 8). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Grande é a oneração que sofre o consumidor final dos produtos, pois “quanto mais o produto comprado tiver valores agregados, isto é, por quanto mais fases, ou intermediários, passar até ficar pronto para o consumo, maior será o valor dos tributos pagos pelo comprador” (FENAFISCO, 2012, p. 9). Já com relação à cobrança de tributos sobre a propriedade, estes incidem sobre o patrimônio de um indivíduo. Diante de tantos impostos instituídos sobre a propriedade tem-se a falsa impressão de que são muitos, contudo a tributação sobre a propriedade corresponde a um total de apenas 4% dos tributos arrecadados no Brasil (FENAFISCO, 2012, p. 13). Partindo de uma breve análise, poderia recair sobre o ITR uma verdadeira reforma, pois o mesmo representa apenas 16% do PIB do país, o que é relativamente ínfimo se levado em consideração a grande concentração de terras existentes no país. Por sua vez, tendo por base o IPTU, o mesmo representa 1,5% do total de tributos arrecadados, sendo que o número de propriedades urbanas é exorbitantemente maior do que o número de propriedades rurais. Isso deixa transparecer uma ideia de desproporcionalidade e discrepância da tributação. Já com base no IPVA, e de acordo com a cartilha da reforma tributária da FENAFISCO, os veículos automotores comuns ou populares são excessivamente tributados e praticamente nada se tributa dos veículos de luxo, como por exemplo, iates, helicópteros, jatinhos. Significa dizer que uma frota equivalente há aproximadamente 15 milhões de veículos, consegue arrecadar um total maior de dinheiro do que a própria cobrança de IPTU. Levando em consideração que a maior parte dessa frota corresponde a carros populares, percebemos o quão é excessiva a tributação sobre essa propriedade. No tocante ao ITBI (Imposto Sobre Transmissão de Bens Imóveis), tributo cobrado sobre a transmissão de bens imóveis é, 10 vezes menor do que a tributação que incide sobre alimentos, o que é absurdo levando em conta que quem realiza tais transmissões geralmente possuem elevado poder aquisitivo e exprimem concretamente o poder aquisitivo. Desta forma deveria ser calculado com observâncias à progressividade, ou seja, quanto mais valioso fosse UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 o bem imóvel, maior o valor a ser cobrado, contrário do que é hoje, com percentual além de baixo, único (FENAFISCO, 2012, p. 16). O mesmo ocorre com relação ao ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação), pois sendo tributo referente a heranças, doações, etc., deveria possuir progressividade mais acentuada. Ocorre que novamente as alíquotas são baixas e fixas, favorecendo sobremaneira a concentração de renda. Para concluir esta breve análise, inevitável aludir os impostos sobre as grandes fortunas, famoso IGF, que, embora previsto na Constituição Federal, nunca foi cobrado. Dessa forma, diante do entendido, conclui-se que o grande problema da carga tributária no Brasil não é necessariamente seu volume, mas a sua arrecadação e distribuição, que, por hora favorece ricos em detrimento de pobres e por sua vez, onera demasiadamente a estes. Como encerramento, afirma-se que aludida carga tributária nacional deverá ser do tamanho do respectivo gasto nacional, cuja elevada proporção se deve à dimensão colossal do país, mas necessário se faz e com premente urgência que o ajuste da balança seja feito, sob o risco do total descarte e afronta ao resguardado ao indivíduo como ser-humano dotado de dignidade. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como sabido, o Estado, no anseio de lhe custear os gastos, transfere aos cidadãos aos quais governa o ônus de arcar com parte deles. Essa tarefa ocorre por meio da tributação que se dá tanto no âmbito federal, quanto estadual e ainda municipal. Tendo em vista os estudos elaborados com base no presente trabalho, conclui-se que a tributação, em especial no Brasil, se dá de forma indiscriminada, tendo por base a arrecadação dos tributos voltados à propriedade e ao consumo, recaindo desta forma, sobre a parcela da sociedade que menos tem condições para arcar com tais custos estatais. Constatou-se ainda que a tributação utiliza-se da forma regressiva, somando a isso o fato de as alíquotas dos tributos serem UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 fixas, o que acaba aumentando sobremaneira o valor dos tributos. Isto posto, acredita-se que a melhor maneira de desenvolver a tributação, levando em consideração que ela tem que existir, principalmente face à relevante dimensão do país, é cobrá-la com vistas à promoção da redistribuição de renda e, com isso, atentando sempre para a efetivação da dignidade da pessoa humana. REFERÊNCIAS BRASIL. Receita Federal. Educação Fiscal. Disponível em: <http:// www.receita.fazenda.gov.br/educafiscal/default.htm>. Acesso em: 18 out. 2012a. BRASIL. Receita Federal. Educação Fiscal na Secretaria da Receita Federal do Brasil. Disponível em: <http://www.receita.fazenda. gov.br/educafiscal/naRFB.htm>. Acesso em: 18 out. 2012b. BRASIL. Ministério da Fazenda; Ministério da Educação. Escola de Administração Fazendária. Programa Nacional de Educação Fiscal - PNEF: Plano Estratégico 2004/2007. Brasília: Escola de Administração Fazendária - ESAF, 2004. 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UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 A IMPOSSIBILIDADE DO REEXAME NECESSÁRIO DE SENTENÇAS ILÍQUIDAS EM JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS E A SÚMULA 490 DO STJ Tiago Tondinelli* RESUMO O art. 575 do Código de Processo Civil trata do Reexame Necessário de sentenças de primeiro grau pelo tribunal, quando proferidas contra a Fazenda Pública e, além disso, que sejam líquidas e com valor inferior a 60 salários mínimos. Há, no entanto, sentenças ilíquidas proferidas em Juizados Especiais Federais que, em vista da renúncia do excedente pelo autor, nunca poderão ir além dos 60 salários mínimos. Lendo o artigo supracitado de forma literal, juízes de segundo grau de jurisdição veem utilizando o reexame necessário para tais sentenças que, virtualmente e por necessidade legal, estão abaixo dos 60 salários mínimos. De fato, isto é uma eiva de inconstitucionalidade, principalmente diante da redação da Súmula 490 do STJ. Palavras-chave: Reexame necessário. Justiça Especial. Sentenças. ABSTRACT There is an institute in Procedural Law called “reexame necessário” whose principal goal is creating a possibility for reviewing the sentences from the judge by the Tribunals. However, only sentences concerning 60 salaries can be connected with these imperatives. In the Special Federal Judiciary, this situation has been occurring a lot, but even the sentences limited by the legal order of the Special Court – simply for the absent of a specific value – have been determined by this institute. In fact, this is a serious attack against the constitutional * Advogado; Doutor em Filosofia Medieval, Mestre em Letras e professor de Filosofia e de Processo Civil; coordenador do curso de pós-graduação da Faculdade de Ensino Superior Dom Bosco, de Cornélio Procópio. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 principles, principally because of the Precedent 490 written by STJ. Key words: Necessary reexamination. Special Federal Judiciary. Sentences. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 A IMPOSSIBILIDADE DO REEXAME NECESSÁRIO DE SENTENÇAS ILÍQUIDAS EM JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS E A SÚMULA 490 DO STJ Tiago Tondinelli As ações contrárias à Fazenda Pública e, em especial, contra suas Autarquias, são regidas por alguns princípios especiais que, malgrado a natureza de discussão jurídica que lhes convêm, recebem tratamento diferenciado pelo legislador pátrio. É por isso que há a recomendação de um reexame necessário para sentenças vinculadas a ações contra a Fazenda Pública, um “grau de jurisdição revisional obrigatório”, em virtude do relevante papel que o ente público tem na órbita constitucional e autárquico-federalista. Insta destacar que esta revisão imperativa afasta-se de um deslinde processual em que o ente público tenha, no ardor da disputatio jurídica, perdido a demanda sentencial; evitar uma injustiça, frenando um malefício ao interesse público, é o núcleo essencial do proposto no artigo 475, inciso II, do Código Processual Civil, pátrio. É neste trecho normativo que se pode encontrar a necessidade de uma confirmação do tribunal para que uma sentença contrária ao ente público prevaleça, gerando os efeitos justos aos autores das exordiais10. No entanto, exclusive o embasamento legal na defesa do ente público prevalecer no dispositivo processual, não se pode olvidar que o Processo Civil eleva-se aos ditames constitucionais e, em especial, ao princípio da dignidade da pessoa humana; corroborando-se no universo previdenciário em pró do beneficiário-dependente, gerandolhe preferência, e presumindo sua necessidade veraz sob o paradigma latino do in dubio pro misero. É neste aspecto que o artigo 475, inciso II, 10 Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença: I. proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público (Redação dada pela Lei nº 10.352, de 26/12/2001). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 sofre ao frenar, cunhando uma excepcionalidade em seu parágrafo segundo, quando comenta que, se o valor discutido sentencialmente, mesmo gerador de obrigação fazendária, não superar 60 saláriosmínimos, o reexame não será obrigatório nem necessário. Por este artigo, presumir-se-á uma situação normal de vitória sentencial com materialidade recursal totalmente determinada à parte e com força de coisa julgada provisória. Em outras palavras, havendo a sentença judicial contrária à autarquia-ré, o reexame necessário será passível de obrigatoriedade pelo tribunal se, e somente se, o valor certo não ultrapassar o mínimo legalmente auferido. Cabe, neste ponto, frisar que o valor mínimo leva em conta a concretização do princípio constitucional do in dubio pro misero, no sentido de que, sendo o Direito a ciência do verossímil, pairando na busca pelo mais provável, cabe às autarquias estatais arcar, como partes perdedoras, com as ações cujo valor máximo não acarrete quaisquer danos maiores aos seus instrumentos monetário-institucionais. Assim, se o valor de 60 salários mínimos é uma eventual perda irrisória para as autarquias estatais, doutra monta, pode ser de grã prejuízo para um eventual autor, mero necessitado, e portador de uma vantagem axiológica legalmente sofisticada, em face da supremacia fazendária. A sentença, espaço do mais provável, no nível inferior aos 60 salários mínimos, volta-se para o beneficiário, negando a necessariedade de reexame meritocráticosubstancial, in malam partem. O valor máximo, quando não ultrapassa os 60 salários mínimos, impede o reexame de cunho material pelo tribunal, pois a função do magistrado de segunda instância passará meramente a ser um garantidor potencial dos direitos do mais desfavorecido que, aliás, já adentrara na sua esfera de discussão, com vitória garantida por sentença anterior. Uma escusa a este frenamento poder-se-ia fundar no brocardo “líquido”, qualificação essencial para o impedimento da revisão meritocrático-substancial pelo tribunal, quando não haveria possibilidade de reexame necessário somente em face de sentença líquida menor que 60 salários mínimos: Art. 475 § 2º. Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos [...]. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 A interpretação deste trecho pode ser feita de duas formas: de maneira restritiva ou contextual-ampliativa. Pela primeira espécie (restritiva), restringe-se a exceção de reexame necessário apenas quando há sentença líquida ou valor certo propriamente dito, um valor fixado pela sentença e que se encontre em patamar inferior aos 60 salários mínimos. Pelo segundo tipo (ampliativa), amplia-se a noção de “valor certo” para as situações em que a iliquidez presente represente uma concreção virtual futura máxima, necessariamente inferior ao mínimo legal estipulado. Havendo uma sentença, no presente, ilíquida, mas que, quando líquida11, ficará inferior ao máximo legal permitido, então, pelo respeito à celeridade processual e ao direito do beneficiário, deve se submeter à impossibilidade de releitura meritocrática pelo Tribunal, como se líquida já o fosse. Este benefício, portanto, é direito adquirido pela parte; representa, ademais, a segurança da coisa julgada material que não fora posta em xeque por qualquer recurso da autarquia-ré, e cuja rescisão posterior em outro grau de jurisdição fere o comungado constitucionalmente pelo artigo 5º, inciso XXXVI da Carta Magna. Se a coisa julgada é resguardada, diante da força normativa, muito menos o deve ser diante de decisões de trato jurisdicional que a transijam. Então, apesar de existirem sentenças proferidas e concretamente ilíquidas, havendo hipoteticamente sua reforma integral, conforme o pedido na apelação, o valor final ainda seria claramente inferior aos sessenta salários mínimos, descabendo, portanto, o uso do reexame necessário. A iliquidez de uma sentença proferida em Juizados Especiais 11 Este é o entendimento de vários julgadores no presente status quaestionis: “Acórdão: o TRF da 4ª Região não conheceu da remessa oficial, pois ‘o valor da condenação, considerando as parcelas vencidas até a data da prolação da sentença, ficaria abaixo de sessenta salários mínimos’, e negou provimento ao recurso de apelação interposto pelo embargante, nos termos da seguinte ementa (fls. 168/171): PREVIDENCIÁRIO. CONCESSÃO DE APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. INCAPACIDADE LABORATIVA DEMONSTRADA. CONDIÇÕES PESSOAIS. SENTENÇA MANTIDA. 1. De manter-se a sentença que concedeu aposentadoria por invalidez à autora, eis que amparada no conjunto probatório dos autos, em especial na prova pericial produzida. 2. Hipótese em que a prova pericial produzida diagnosticou limitação para o exercício de esforços excessivos que em conjunto com suas condições pessoais, tais como a idade avançada, o fato de ser analfabeta, bem como o de sempre ter desempenhado suas atividades no meio rural, levam a concluir que qualquer tentativa de reabilitação para outra atividade restaria frustrada [...].” UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Federais está restrita aos sessenta salários mínimos, quando oriunda de expressa renúncia pela parte12. Cabe ao legislador, em conformidade com a situação concreta e com espírito da lei, acatar a interpretação mais conveniente que, incidenter tantum, respeite o projeto constitucional referente à teleologia previdenciária propriamente dita. Isto, de fato, representa uma liquidez virtual que a exporta para o espaço da exceção de reexame necessário de trato meritocrático, coroando a celeridade e o princípio in dubio pro misero. Contrariando, entretanto, essa leitura lógica apresentada, o Superior Tribunal de Justiça criou a famigerada Súmula 490: “A dispensa de reexame necessário, quando o valor da condenação ou do direito controvertido for inferior a 60 salários mínimos, não se aplica a sentenças ilíquidas”. Conforme o que será abaixo demonstrado com mais empenho, tal escrito do STJ é contrário ao bom senso jurídico, bem como ao sistema lógico de análise do processo, em face da segurança jurídica da coisa julgada. Não cabendo, portanto, um reexame material pela hipótese contemplada do artigo 475 do Código de Processo Civil, uma tentativa de discutir a materialidade sentencial aduzida só poderia ser feita com a utilização do chamado efeito translativo sentencial. Cabe, então, um breve relato deste instituto, presente, ademais, em outras legislações alienígenas e que tem sua presença no ambiente contextual pátrio convalidado pela lei e pela respectiva jurisprudência. A Teoria dos Recursos constitui um dos capítulos de maior importância e influência no âmbito do Processo Civil pátrio porque é ela que tolhe um coágulo processual na busca pelo justo, dando potencialidade para a reordenação plena de sentenças ou para a suplementação reformatória. Havendo uma sentença, há coisa julgada gerando efeitos, fatos jurídico-processuais que podem ter respaldos concretos ou não entre as partes. O recurso é uma espécie de impugnação do que fora decidido, sendo ornamento do justo, limitado por um instrumento volitivo 12 Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal: Art. 3º Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças. [...] § 2º Quando a pretensão versar sobre obrigações vincendas, para fins de competência do Juizado Especial, a soma de doze parcelas não poderá exceder o valor referido no art. 3º, caput. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 (discute-se o que fora devidamente impugnado) e pelo garantismo constitucional da unilateralidade in bonam partem. O instrumento volitivo é a qualidade do recurso, olvidado pelo princípio de que cabe ao juízo que recebera a discussão decidir especificamente apenas acerca do que nele fora suscitado, sendo-lhe incoerente e legalmente indevida uma discussão extensiva: o que não fora impugnado pela parte, em regra, não pode ser mais discutido, dando-se, então, a preclusão, a consideração de coisa julgada e a força completa entre as partes, conforme o imperativo resolvido sentencialmente. O garantismo constitucional da unilateralidade in bonam partem é uma variação da máxima latina processual conhecida como non reformatio in peius. Por esta, o juízo recursal não pode gerar sentença que piore a situação já decida anteriormente se apenas houver, nas raias do recurso, a manifestação de uma das partes13. Na monta previdenciária, por exemplo, este princípio é mais vigente e claro, quando a autarquia não se manifesta acerca do pedido revisional, simplesmente aceitando o que já fora decidido e dando ganho de causa para o autor. Se houve recurso do autor em relação à parte da sentença que não lhe parecia correta, não se dando manifestação contrária do réu, é certo que o dever do juízo recursal é somente o de discutir o que fora tratado pelo autor, sendo-lhe descabida e melindrável qualquer mutabilidade acerca do já decidido, e não impugnado, e que, pelo teor do art. 473 do Código de Processo Civil, qualifica-se como coisa julgada. Este é o caráter “horizontal” das sentenças, mas que, como regra geral, detém, é certo, exceções mitigáveis pelo espírito constitucional. Não obstante esta impossibilidade discursiva em face da preclusão material, há duas exceções processuais que permitem uma intervenção de mérito do Tribunal, mesmo inexistindo um suscitar claro e direto pelo autor do recurso. Estas exceções enquadram-se no chamado “efeito translativo” sentencial que, de ordem vertical, pelo invólucro hierárquico de resguardo da Ordem Constitucional, dão possibilidade para a ação do Tribunal, quando ocorrerem eivas de ordem pública ou questões suscitadas, e não decididas desde que relacionadas ao capítulo impugnado no recurso. Quanto à Ordem Pública, o dispositivo processual refere-se 13 Art. 474. Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 aos elementos necessários para a formação do processo como as condições da ação e do processo, bem como quaisquer elementos da órbita constitucional que envolvam o devido processo legal. As questões não suscitadas na sentença, mas impugnadas no recurso, são objeto de decisão translativa, na medida em que cabe ao tribunal assegurar uma situação mais justa para as partes. Sobre esta segunda situação, vale uma análise acurada do artigo 515 em seu parágrafo primeiro: Art. 515. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada. § 1º Serão, porém, objeto de apreciação e julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo ainda que a sentença não as tenha julgado por inteiro. Pela leitura deste dispositivo, fica claro que pode haver análise do Tribunal para a matéria impugnada no recurso, bem como para as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que a sentença não as tenha julgado. Contudo, esta possibilidade não exonera a parte de, para haver o reexame no Tribunal, propô-las no recurso. Em outras palavras, as questões do processo podem não ter sido julgadas na sentença, mas, para serem discutidas pelo tribunal, devem ser propostas no recurso. Mutatis mutandis, o tribunal não pode reanalisar uma questão já discutida em sentença, mas não suscitada no recurso. Modificar o que fora decidido sentencialmente em nível meritocrático, e que não fora suscitado no recurso, é justamente se opor aos dois princípios retro transcritos: primeiro, modifica-se a sentença meritocrática para pior e, in simultaneus, discute-se algo que não fora suscitado por qualquer das partes, sendo-lhes, então, coisa julgada com matéria preclusa. Se o juiz de segunda instância julgar matéria já preclusa, seus argumentos serão eivados pela inconstitucionalidade formal e, assim procedendo, estará o magistrado agindo como se fosse o réu, e não o julgador. Isto ocorre porque ele deixou de simplesmente apreciar a lide suscitada, passando a contestar com argumentos de ordem material, em momento inoportuno, imaginando um recurso que nunca fora suscitado. A Carta Magna, em seu artigo 5º, nos notáveis incisos LIV e LV, coroa a defesa dos pressupostos fundamentais do processo, a UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 saber: o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa com seus recursos e meios inerentes. O processo legal é devido na medida em que as ações dos envolvidos, das partes e do julgador seguem o caminho instrumental dado pelas corretas regras procedimentais, direcionando as ações, sob o véu da segurança e dos dispositivos com precaução prévia. Quando as costas são viradas para o correto procedimento processual ele é abandonado, tomando seu lugar um processo minguado, refratário da insipidez e da justiça concreta que lhe cabe. O processo desdobra-se em várias subespécies que se estabelecem nos procedimentos concatenados do organismo processual constitucional; dois destes princípios são intercomplementares, a saber: duplo grau de jurisdição e o princípio da non reformatio in peius. Pelo primeiro, o devido processo legal reserva à parte a possibilidade de ter reexaminada a sentença que lhe imputou determinado dever; pelo segundo, há a garantia de que afirmativa sentencial não suscitada em recurso por quaisquer partes não pode sofrer modificação. Em suma, ele se consubstancia na garantia da parte de ver o que lhe fora positivo e não impugnado em recurso, como precluso e, in simultaneus, de poder rediscutir o que não lhe convinha do imperativo sentencial por outro órgão ad quem. O Processo Civil contemporâneo não pode ser mais entendido, como outrora o fora, como se correspondesse a um mero instrumento concretizador dos ditames do direito material; ao contrário, a capa adjetiva do processo fora trocada pela função constitucional direta que lhe convém. Este ventilar neoconstitucional ou “neoprocessual” dá ao Processo Civil a função matizadora da Constituição Federal, no deslinde das lides e, acima de tudo, influencia todos os seus principais institutos direta ou reflexamente. De certo, a questão do reexame necessário é um dos institutos processuais que mais sofre influência da Carta Magna, devendo, na sua práxis, ser interpretado conforme os objetivos maiores da constituição pátria: o respeito ao devido processo legal e à dignidade da pessoa humana. Formalmente, há, como exposto no imperativo do Processo Civil, um limite quantitativo para a utilização do reexame necessário, nas causas em que a Fazenda Pública vem a reboque, quando lhe cabe UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 uma derrota, durante uma determinada discussão, finalizada por sentença em primeiro grau de jurisdição e em Juizados Especiais Federais. O limite matemático (valor mínimo para a propositura do reexame) funda-se no interesse material da Fazenda Pública de recorrer, sendo lhe mais vantajoso o engajamento final – e pagamento do proposto em sentença monocrática – do que a morosidade de uma continuidade posterior no discurso jurídico. Mas este valor deve ser exato, concreto e certo – adjetivos, aliás, que se unificam no conceito jurídico de “sentença líquida”. Neste lema, sendo a sentença líquida e menor do que 60 salários-mínimos, o interesse de recorrer da Fazenda, ainda que eventualmente existente, não pode ser substituído pelo reexame necessário, porque o juiz de segundo grau não está obrigado a reanalisar o já decidido em sentença de tão pouca monta diante do gigante leviatã fazendário. Por este raciocínio, é óbvio que inexiste ameaça de quaisquer malefícios irreversíveis a este último. A noção de “valor exato, concreto e certo” não pode ser reduzida à sentença “simplesmente” líquida. Uma decisão que, inobstante ilíquida, se ‘líquida o fosse” permaneceria com valor inferior (necessariamente) ao mínimo próprio do reexame necessário, deve ser peia a este instituto, dando prazo necessário para eventual apelação Fazendária – por meio do recurso inominado – sob a pena de uma vantagem indevida e imoral. Como visto, tal problema ocorre nos Juizados Especiais Federais em que há a possibilidade da parte autora renunciar a valor excedente, ficando, necessariamente, presa a uma sentença posterior aquém do limite de aplicação obrigatória do reexame necessário. Esta “certeza” de um máximo necessário gerador de um valor (ainda que, no presente, virtual) aquém do estipulado para o reexame necessário mostra o espírito constitucional derramado sobre o Processo Civil, interpretando o artigo 475. Há a situação de que, apesar do artigo em xeque se referir ao valor de 60 salários mínimos confirmados em “sentença líquida”, é certo que esta “liquidez” não é somente o simplesmente líquido, mas, também, o virtualmente líquido. A Constituição “tem força normativa” sobre o artigo, obrigando a extensão de seu sentido, tanto para sentenças que são concretas e presentemente inferiores ao valor estipulado (simplesmente líquidas), quanto para outras que, se líquidas fossem, ficariam abaixo do valor apresentado (virtualmente líquidas). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Uma leitura reducionista que interprete o vocábulo “líquida” somente como “contrário à ilíquida” - é de uma feroz rusticidade, própria de uma hermenêutica jurídica capenga e cega. Sentenças que, desde o momento em que são proferidas, detenham valor objetivo e certo são simplesmente líquidas, e se opõem a outras que não apresentam quaisquer índices quantitativos (sentenças ilíquidas como as de dano moral, por exemplo, em que cabe totalmente ao juiz o sopeso final do seu valor). No entanto, outras sentenças são presentemente ilíquidas, mas virtualmente líquidas, pois, ao serem incluídas em um processo no qual houve a renúncia expressa do valor máximo para adequação de competência, nunca poderão ir além do máximo legalmente imposto. O magistrado, em sede de reexame necessário, não pode fechar os olhos para esta distinção lógica e cabal, regendo as relações jurídicas. Certamente, o texto da Súmula 490 corresponde a um atentado a estudos concretos e justos acerca da noção de coisa julgada, bem como da própria segurança e boa-fé processuais. Esta súmula coroa a tétrica realidade de que os tribunais superiores pátrios atuam como “tribunais legislativos”, na medida em que, sob a escusa de tratar de interpretações das leis vigentes, criam, de fato, exigências normativas como se legislativos fossem. REFERÊNCIAS SANTOS, Mario Ferreira dos. Lógica e Dialética. São Paulo: Logos, 1965. 3 v. DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Juspodium, 2011. v. 2. MARINONI, L. Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 O DIREITO À EDUCAÇÃO EM CONSONÂNCIA COM O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA Tânia Maria Zanetti* RESUMO Este artigo tem como escopo analisar o direito que toda pessoa tem à educação como um dos princípios norteadores de garantias fundamentais das condições dignas de existência do ser humano. A dignidade da pessoa em si é um atributo de todo ser humano. Dessa forma, o direito à educação, como direito fundamental do homem, deve ser analisado em harmonia com o princípio da dignidade da pessoa. Por via da Educação, absorvendo conhecimentos, o homem pode viver plenamente todos os direitos essenciais e fundamentais, conseguindo, por meio da consolidação básica de uma infraestrutura obtida, evoluir, melhorando, assim, sua qualidade de vida e preservando, em um todo, sua dignidade. Palavras-chave: Direito à educação. Dignidade humana. Desenvolvimento do ser humano. ABSTRACT This article aims to analyze the right that each person has to education as one of the guiding principles of the fundamental guarantees of decent human existence. The dignity of a person in itself is an attribute of every human being. Thus, the right to education as one of the fundamental rights of man must be analyzed in accordance with the principle of human dignity. Through Education, absorbing knowledge, man can live fully all the essential and fundamental rights, achieving, by consolidating the basic infrastructure obtained, evolve, thus improving his quality of life and preserving his dignity as a complete * Graduanda do curso de Direito (Faculdade do Norte Pioneiro – FANORPI/UNIESP). UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 whole. Key words: Right to education. Human dignity. Human development. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 O DIREITO À EDUCAÇÃO EM CONSONÂNCIA COM O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA Tânia Maria Zanetti SUMARIO: 1 Introdução. 2 A relação entre o direito à educação e o princípio da dignidade. 2.1 O entendimento internacional do direito à educação. 3 O direito à educação, um bem necessário. 4 A responsabilidade do Estado. 5 Considerações finais. 1 INTRODUÇÃO A educação é o embasamento indispensável na formação do ser humano. É um dever da família e do Estado inspirada nos princípios de liberdade, dignidade e nos ideais de solidariedade humana, tendo por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, o seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Na concepção de Paulo Freire (1996, p. 22), “[...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou sua construção”. O acesso à Educação deve ser visto como condição para a realização dos outros direitos, o que evidencia que deve a educação capacitar o ser humano a cumprir um papel favorável numa sociedade livre, gerar compreensão, tolerância e amizade entre todos os seres humanos, bem como constituição e conservação dos outros direitos econômicos, sociais e culturais. Assim, para que cada ser humano seja considerado e respeitado como tal, é fundamental que possua uma vida digna, sendo imprescindível a aplicação do princípio da dignidade da pessoa no âmbito educacional para que o ser humano não seja transformado em mero objeto do Estado, pois o Estado existe em função do homem e não o homem em função do Estado. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 2 A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO À EDUCAÇÃO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos mais importantes do Estado Democrático de Direito, até porque é dele que decorrerem todos os outros direitos. Para que o ser humano possa desenvolver suas potencialidades em igualdade e dignidade, ele precisa de saúde adequada, alimentação, educação, moradia. Esse conjunto de necessidades e aptidões nada mais é que o conteúdo dos direitos humanos, como princípios e direitos fundamentais na Constituição Brasileira. A educação está intensamente ligada ao princípio da dignidade humana, pois pelo conhecimento adquirido via educação, o ser humano, possuirá as condições mínimas de sustento físico próprio, bem como condições para que possa participar da vida social de seu Estado, relacionando-se com pessoas que estão ao seu redor e que fazem parte da sociedade na qual vive. Essas condições mínimas são essenciais para que o ser humano possa viver dignamente. Assim, Celso de Mello Filho (1986, p. 326) destaca: “O acesso à educação é uma das formas de realização concreta do ideal democrático”. Desse modo, para conquistar a dignidade, o cidadão precisa participar, estar incluso na sociedade, dentro dos padrões fundamentais para suprir suas necessidades, ter cidadania, ter seus direitos preservados. Nesse sentido, a professora Maria Victoria Benevides (2013) expõe que: A Educação em Direitos Humanos é essencialmente a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Portanto, a formação desta cultura significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais citados – os quais devem se transformar em práticas. Nas palavras de Maria Del Mar Rubio Horta (2003, p. 128): “O sentido de uma educação em valores deve ser a instauração de uma nova cultura, cujo centro seja o ser humano e sua dignidade”. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 Nesses contextos, ratifica-se que o direito à educação se faz indispensável como instrumento de afirmação da dignidade da pessoa humana, pois educar implica na evolução e transformação da própria pessoa. O processo educacional possibilita contínuo aperfeiçoamento do indivíduo e da sociedade a que pertence. Por isso, atualmente, aconselha-se a continuação da educação ao longo de toda a vida. 2.1 O entendimento internacional do direito à educação Nos tempos atuais, a Educação é entendida como um direito humano internacionalmente reconhecido e, assegurado em vários instrumentos jurídicos, sendo apontado tanto em princípios universais como no ordenamento nacional e também na ordem internacional. Nesse entendimento, o artigo 13 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ORGANIZATION OF AMERICAN STATES, 2013) afirma que: Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda em que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. Os Estados Partes, nesse Pacto, reconhecem e valorizam o direito de toda pessoa à educação, concordam que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido da sua dignidade, reforçando o respeito pelos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Está exposto na Declaração de direitos Humanos (UNIC RIO DE JANEIRO, 2013) da ONU, no Artigo 26º: 1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnicoprofissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 esta baseada no mérito. 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. Assim sendo, é obrigação do estado oferecer ao cidadão, o estudo de forma gratuita. A educação deve ser de qualidade para melhor aproveitamento e absorvimento de conhecimentos para que o educando possa se promover no preparo do exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. É nesse sentido que se pode observar a importância do conhecimento e da educação para o desenvolvimento do ser humano com dignidade. Para que ocorra a evolução da pessoa, é necessário existir a oportunidade de usufruir uma vida mais harmoniosa em sociedade, participando do trabalho, sustento familiar e lazer, entre outros, tendo acesso a todos os direitos sociais e fundamentais, conformados, sempre, ao princípio da dignidade. De tudo deverá advir o reconhecimento humano e social e, principalmente, a consciência de saber que realmente se tem direitos e deveres em sociedade. Explicou Augusto de Oliveira Santos (2011, p. 29): A dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distinta reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante ou desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. Segundo Marcelo Novelino Camargo (2007, p. 135): A dignidade da pessoa humana, em si não é um direito fundamental, mas sim um atributo a todo ser humano. Dessa forma, o direito à educação, em quanto direito fundamental UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 do homem deve ser analisado em consonância com o principio da dignidade da pessoa humana. Nesse contexto, o que se pode notar é que a ausência da educação impossibilita ao ser humano evoluir suas próprias potencialidades, ficando como um projeto descontínuo, em razão da falta dos meios indispensáveis à sua realização, ou seja, o conhecimento adquirido pela educação. Fica assim compreendido que, quando o ser humano não consegue exercer o mínimo necessário para sua sobrevivência com decência, isso fere sua dignidade, pois a pessoa não é um projeto qualquer, mas um ser humano deve ser tratado e respeitado como tal, na sua vida profissional e social. Hobbes (1993, p. 281-2) considerava a educação como elemento essencial na formação do homem para a vida em sociedade. A educação ocupa papel fundamental no âmbito dos direitos humanos, uma vez que é imprescindível ao desenvolvimento e ao exercício dos demais direitos, como discutido. É instrumento fundamental, por meio do qual adultos e crianças marginalizados econômica e socialmente podem emancipar-se da pobreza e obter recursos necessários à sua plena participação no meio social. 3 O DIREITO À EDUCAÇÃO, UM BEM NECESSÁRIO O direito à Educação identifica-se como direito fundamental necessário a todos os cidadãos brasileiros amparados pela Constituição Federal. É um direito humano que ocupa lugar de destaque no rol das prerrogativas fundamentais, sendo indispensável para o exercício da cidadania de todos os brasileiros. Entre todos os direitos humanos, o direito à educação é imprescindível ao cidadão, pois educação é processo consecutivo de informação e desenvolvimento físico e psíquico, não só para vivência, mas também para coexistência. O conceito de educação, conforme Celso Mello Filho (1986, p. 533) ensina: É mais compreensivo e abrangente que o da mera instrução. A educação objetiva propiciar a formação necessária ao desenvolvimento das aptidões, das potencialidades e da personalidade do educando. O processo educacional tem por meta: (a) qualificar o educando para o trabalho; e (b) prepará-lo para o exercício consciente da cidadania. O acesso à educaUNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 ção é uma das formas de realização concreta do ideal democrático Percebe-se que, dentre os méritos da educação, destaca-se a formação do sujeito autônomo, pois somente ela é capaz de abrir-lhe os olhos para dimensões da realidade, inacessível por outros meios. A Constituição Federal, em seu art. 6º, consagra a educação como um direito social, tendo por desígnio criar condições para que o ser humano se desenvolva, adquirindo, assim, o mínimo necessário para viver em sociedade. Veja-se: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (VADE MECUM SARAIVA, 2011, p. 13) A educação compõe direito fundamental a todos, independente de raça, cor, religião, sendo dever do Estado garantir o acesso a ela, pois esta é de suma importância na vida do ser humano. Representa o início da busca para uma melhor qualidade de vida, garantindo a dignidade da pessoa num futuro melhor, fator que possibilita a formação da sociedade. A Constituição Federal, em seu artigo 205 expõe: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (VADE MECUM SARAIVA, 2011, p. 74) O artigo mencionado enfatiza os objetivos da educação, dando destaque à formação e desenvolvimento da pessoa, à sua preparação para o trabalho e à sua essencial formação como cidadão. Contudo, um dos principais objetivos da educação é formar pessoas para a liberdade, que vem pelo conhecimento, pela possibilidade de escolhas, de formar para a cidadania, para a plenitude dos direitos e, acima de tudo, para a dignidade da pessoa, princípio essencial do Estado brasileiro, conforme estabelece o art.1º da Constituição. Importante ressaltar que somente o procedimento educacional pode possibilitar o mais amplo desempenho das faculdades físicas e UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 psíquicas de cada indivíduo, sendo capaz de trazer-lhe o autoconhecimento, bem como a noção do entorno em que vive e das demais pessoas com quem convive. Contudo, a ausência da educação impossibilita o ser humano de evoluir desenvolvendo suas próprias potencialidades, permanecendo como projeto interrompido prematuramente, consequente à falta de meios necessários à sua realização. Isso é profundamente lamentável e vergonhoso para a sociedade, porque não se trata de um projeto qualquer, mas de um projeto de vida do ser humano, cuja dignidade resta profundamente ferida quando se nega à pessoa a possibilidade de desenvolver-se como tal, por meio da educação. A Constituição Federal, em seu artigo 6º, consagra a Educação como um direito social. Sendo um direito social, tem por objetivo criar condições para que a pessoa se desenvolva, para que o ser humano adquira o mínimo necessário para viver em sociedade, destinado, sobretudo, às pessoas mais carentes e necessitadas. Para Paulo Freire (1996, p. 131-7), basta o trabalho educacional e teremos o que queremos uma Educação verdadeira que dê conta da mudança da realidade. Dessa forma a Educação, não é uma doação ou imposição, mas uma restituição dos conteúdos coletados na própria coletividade, que depois de sistematizados e organizados, são devolvidos aos indivíduos na busca de uma construção de consciências críticas frente ao mundo, assim sendo, o homem, um ser inacabado, toma consciência do seu inacabamento e busca, através da Educação, realizar mais plenamente sua pessoalidade. A Lei de Diretrizes e Bases, em seu art. 1º, apresenta: A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. (BRASIL, 2013) Assim, o exposto no artigo 227 da Constituição Federal: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar às crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (VADE MECUM SARAIVA, 2011, p. 79) E, ainda, o artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação: A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios da liberdade e nos ideais da solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 2013) Fica evidente que, hoje, esses direitos são assegurados em vários instrumentos jurídicos e conclamados em princípios universais tanto no ordenamento nacional como na ordem internacional. 4 A RESPONSABILIDADE DE ESTADO Educação é prerrogativa que todas as pessoas possuem de exigir do Estado. Como direito de todos, a educação traduz muito da exigência que todo cidadão pode exercitar em seu favor. Assim expõe Zulmar Fachin (2011, p. 610): “O ensino é dever do estado e da sociedade e, ao mesmo tempo. direito público subjetivo, titularizado por toda pessoa. O poder público tem o dever de oferecê-lo em condições adequadas”. O Estado é o principal responsável pela educação dos cidadãos, por duas razões: porque as famílias, sobretudo, as mais pobres, não têm os recursos necessários para criar todas as possibilidades de satisfação do direito à educação, porque o Estado é o órgão do Bem Comum, formulado nas normas fundamentais de cada comunidade nacional e da Comunidade Internacional, que reconhecem os direitos básicos do ser humano. Fachin (2011, p. 611) complementa que, na omissão do Estado, o indivíduo tem direito de ingressar judicialmente, exigindo o direito a educação, in verbis: “O direito fundamental social de acesso à educação pode ser exigido e efetivado judicialmente, quando não tiver sido atendido pelos órgãos administrativos e legislativos”. O art. 5º, caput, da Constituição especifica cinco direitos fundamentais básicos: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, que constituem o fundamento de todos os UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 demais direitos consagrados, quer pelos seus incisos, quer pelos dispositivos sequenciais, do mesmo Título II, bem como de toda a Constituição – dado que órgãos, bens, direitos, deveres, instituições refluem, todos, para um destinatário único e especial: o ser humano. (GARCIA, 2002, p. 122) O que se pode dizer é que além do ensinamento escolar, o educando adquire conhecimentos, competências e habilidades, fazendo-se indispensável à formação de valores fundamentais para a vida e para a convivência, isto é, as bases para uma educação plena, que integra cidadãos em uma coletividade plural e democrática. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O direito à Educação é, como visto, um direito fundamental, com previsão no artigo 6º, da Constituição Federal, e na Carta das Nações Unidas (ONU). Esses direitos também são assegurados em vários instrumentos jurídicos e conclamados em princípios universais, tanto no ordenamento nacional como na ordem internacional. Porém, o amplo respaldo documental não impede, infelizmente, constantes violações dos direitos humanos em todo o mundo. O direito à educação, declarado em nível constitucional, tem sido, do ponto de vista jurídico, aperfeiçoado no Brasil. Contudo, os mecanismos declarados e garantidores ainda encontram obstáculos para sua efetivação, o que acaba restringindo a inclusão da nação na cidadania. É imprescindível ter consciência de que toda luta por uma educação de qualidade representa uma garantia de igualdade, em nível superior. Na hipótese de omissão ou lacuna da Administração no cumprimento do seu encargo assistencial, a pessoa lesada terá acesso ao Poder Judiciário, valendo-se do instrumento jurídico competente para compelir o agente público à prestação necessária, sem que tal signifique indébita intromissão entre os poderes do Estado. Destarte, compreende-se, a Educação como caminho imprescindível para a inserção de práticas de respeito aos direitos humanos e construção da cidadania na vida diária de cada pessoa, permitindo a transformação do status quo. É necessário, pois, apropriar-se do processo educativo como meio de formação de uma cultura de consideração à dignidade da vida humana. O que é UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 indispensável é que deve ser lembrado, tanto pelo governo como pela sociedade, que a educação traz o conhecimento e isso significa evolução e conquistas do ser humano. Esse conhecimento se faz necessário para que o ser humano possa ser um educando com dignidade de direito e, principalmente, direito com dignidade. REFERÊNCIAS BENEVIDES, M. V. Educação em Direitos Humanos: de que se trata? Convenit Internacional, São Paulo, n. 6, s. d. Disponível em: <http://www.hottopos.com/convenit6/victoria.htm>. Acesso em: 22 mar. 2013. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Presidência da República, Casa Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l9394.htm>. Acesso em: 27 mar. 2013. CAMARGO, M. N. O conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana. In: ______ (Org.). 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UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 NORMAS PARA PUBLICAÇÃO UNIVERSITAS, revista de divulgação científica da FANORPI/UNIESP, objetiva publicação de artigos e comunicações de cunho científico, resenhas, revisões bibliográficas, resumos de teses e dissertações. As contribuições serão de autores da comunidade da FANORPI, de outras instituições de ensino ou pesquisa, nacionais ou estrangeiras, e de convidados. Os trabalhos deverão ser inéditos. As contribuições deverão ter caráter científico e autenticidade e ser enviadas para apreciação do Conselho Editorial, que se reserva o direito de aceitá-las ou não e, eventualmente, sugerir modificações aos autores para adequar os textos à publicação. Trabalhos recusados serão oficialmente comunicados ao autor pelo presidente do Conselho Editorial. A revista não se responsabiliza, individual ou solidariamente, por opiniões, ideias e conceitos emitidos nos textos, de total responsabilidade dos autores. Ao enviar artigo para análise, implicitamente seu autor concorda com todos os termos das normas de publicação e decisões de Conselho Editorial, abrindo mão de qualquer ação que às regras da revista se relacione. Trabalho publicado na revista terá direito a dois exemplares. 1 APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS As contribuições deverão ser enviadas por e-mail ao Conselho Editorial da revista, nas seguintes normas (baseadas na ABNT): formato de arquivo: doc ou docx (editor de texto MS Word); tamanho do papel: A4, orientação vertical; margens: a) esquerdo e superior: 3,0cm; b) direita e inferior: 2,0cm. fonte: Times New Roman a) estilo: normal; b) tamanho: 12pts.; UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 c) espaçamento entre caracteres: 100% e normal. parágrafo: a) alinhamento: justificado, sem hifenização; b) recuo esquerdo e direito: 0; c) primeira linha: 1,25cm; d) espaçamento antes e depois: 0; f) espaçamento entre linhas: 1,5cm; g) tabulação: 0,5cm (padrão do MS Word). Citação longa (mais de três linhas): a) fonte em tamanho 10pts; b) alinhamento: justificado, sem hifenização; c) recuo esquerdo: 4cm; direito: 0; d) primeira linha: sem afastamento; e) espaçamento antes e depois: 0; f) espaçamento entre linhas: simples. 2 CATEGORIA DOS TRABALHOS a) artigos científicos: máximo de 20 (vinte) laudas (±650 linhas); b) comunicações científicas e divulgações: máximo de 6 (seis) laudas (±192 linhas); c) artigos de revisão: máximo 16 (dezesseis) laudas (±512 linhas); d) resenha de livros: máximo de 3 (três) laudas (±96 linhas); e) resumos de teses e dissertações: máximo de 1,5 (uma e meia) laudas (48 linhas). 3 LÍNGUAS Serão aceitos, preferencialmente, trabalhos redigidos em língua portuguesa. Contribuições em outros idiomas poderão ser aceitas mediante aprovação do Conselho Editorial. 4 ARTIGOS CIENTÍFICOS (NBR 6022 – INFORMAÇÃO E DOCUMENTAÇÃO - ARTIGO EM PUBLICAÇÃO PERIÓDICA CIENTÍFICA IMPRESSA - APRESENTAÇÃO) São identificados como artigos científicos: estudos teóricos ou UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 práticos referentes à pesquisa e desenvolvimento que atingiram resultados conclusivos significativos. Os originais relacionados com pesquisas experimentais devem conter todas as informações necessárias que permitam ao leitor repetir as experiências descritas e avaliar as conclusões do autor. Publicações de caráter científico deverão conter os seguintes tópicos: titulo e subtítulo (se houver); nome do autor; resumo; palavras-chave; abstract; key words; texto (com divisão em itens e subitens) e referências. 5 Comunicações científicas e divulgações São textos mais curtos, denominados de comunicações curtas ou cartas ao editor, nos quais são apresentados resultados preliminares, julgados novos ou especialmente relevantes, de uma pesquisa em curso. Apresentam as mesmas características dos artigos, mas são redigidos de maneira menos detalhada. Deverão conter as mesmas exigências do item 4, com exceção das divisões em itens e subitens. 6 Artigo de revisão Consiste em breve resumo de trabalho existente, seguido de avaliação de novas ideias, métodos, resultados e conclusões, e bibliografia relacionando as publicações significativas sobre o tema. O autor da revisão de literatura deve ser um especialista. Os tópicos obrigatórios são: título; nome do autor; resumo; palavras-chave; abstract; key words; introdução; UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 desenvolvimento; conclusão; referências. 7 Resenha de livro É trabalho de síntese, publicado após edição de uma obra, tendo por objetivo servir de veículo de crítica e avaliação. Nela, o autor, um especialista, deve comparar, avaliar e criticar a obra, sob seu ponto de vista pessoal, em relação a outras produções e, em especial, ao estado da arte, equivalente ao nível mais alto de desenvolvimento de aparelho, de técnica ou de área científica, alcançado em tempo definido. A resenha deve, sempre, ser precedida da Referência. 8 Resumo Apresentação concisa e seletiva de texto, destacando de forma clara e sintética a natureza do trabalho, seus resultados e conclusões mais importantes, valor e originalidade. Deve ser redigido de acordo com a NBR 6028 Informação e documentação – Resumo - Apresentação, da ABNT. Conterá, obrigatoriamente, os seguintes tópicos: título; comissão examinadora; resumo; palavras-chave; abstract; key words. 9 Itens obrigatórios na apresentação de trabalhos título: conciso, somente com inicial maiúscula, alinhado à esquerda, sem ponto final; títulos internos e sub-títulos (seções): alinhados à esquerda, conforme determina a NBR 6024 Informação e documentação – Numeração progressiva das seções de um documento escrito – Apresentação; nome do autor: alinhamento à esquerda, sem ponto final, devendo ser escrito por extenso, com especificação do currículo e endereço para correspondência completo, com inclusão de e-mail; UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 resumo e abstract (NBR 6028 Informação e documentação – Resumo – Apresentação): máximo de 250 palavras, redigido em parágrafo único, sem deslocamento inicial, e com alinhamento justificado. palavras-chave e key words: mínimo de três e máximo de seis termos. citações bibliográficas (NBR 10520 Informação e documentação – Citações em documentos – Apresentação): na apresentação de citações em documentos, diretas ou indiretas, poderão ser usados os sistemas autor-data ou numérico. Qualquer que seja o sistema adotado, deve ser seguido consistentemente ao longo de todo o trabalho, permitindo sua correlação na lista de referências ou em notas de rodapé. Ex.: Sistema autor-data: Lucács (1908, p. 15) afirma que “a presença de concreções de bauxita no... ...verdadeiro guia de leitura.” (FÁVERO; KOCK, 1994, p. 50) ...deterioração e morte de plântulas. (HENNING et al., 1991b) Sistema numérico: No texto: No Brasil, Aguiar Dias³: “Os conceitos de evento imprevisível e extraordinário são coincidentes, como coincidentes são os de previsível e ordinário.” Na nota de rodapé: ³ DIAS, José de Aguiar. A equidade é poder do juiz. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 164, n. 633, p. 47-52, 1956, p. 48. Nas referências (em ambos os sistemas): DIAS, José de Aguiar. A equidade é poder do juiz. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 164, n. 633, p. 47-52, out.-dez. 1953. referências (NBR 6023 Informação e documentação Referências – Elaboração): devem conter todos os dados necessários à identificação das obras dispostas em ordem alfabética. Para distinguir trabalhos diferentes da mesma autoria, será levada em conta a ordem cronológica, segundo o ano de publicação. Se num mesmo ano houver mais de um trabalho do mesmo autor, acrescentar uma letra ao ano. Ex.: ...contra fungos do solo (HENNING et al., 1991ª) UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 ...deterioração e morte de plântulas (HENNING et al., 1991b) 10 Complementos do texto: Imagens (figuras, tabelas e quadros), com as respectivas legendas, deverão ser apresentados em folhas separadas e, preferencialmente, em CDs, com extensões tif, jpg ou bmp. Figuras: são desenhos, gráficos e fotos. A palavra FIGURA (em caixa alta) e seu texto explicativo deverão ser escritos abaixo e receber numeração consecutiva em algarismos arábicos. As fotos, se não estiverem digitalizadas, devem ser preto e branco, reveladas em papel brilhante e de alto contraste, devendo ser identificadas no verso com o nome do autor, orientação da borda superior e número das legendas correspondentes. Os desenhos também serão aceitos em impressão a laser. Ex.: Figura 2 (Fonte: Best, 1997, p. 378 – adaptado) Tabelas e quadros: as palavras TABELA e QUADRO (em caixa alta) e seu texto explicativo deverão ser escritas acima e receber numeração consecutiva em algarismos arábicos. Ex.: TABELA 1 – Relação estatura x peso em crianças; QUADRO 1 – Balanço patrimonial do cliente. Obs.: Quadro é a representação tipo tabular que não emprega dados estatísticos. 11 Notas de rodapé As notas de rodapé deve ser reduzidas ao mínimo. Devem ser indicadas com asterisco quando se tratar de informações referentes à qualificação, títulos ou credenciais do autor, e, em algarismo arábico, quando se tratar de informações referentes ao corpo do trabalho. 12 Responsabilidade As opiniões e conceitos contidos nos trabalhos são de exclusiva responsabilidade do autor. 13 Agradecimentos As menções de auxílio de fundações, conselhos e outras UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013 instituições poderão ser feitas inserindo o item Agradecimentos, após as conclusões. 14 Ofício O ofício de encaminhamento dos artigos deverá conter a assinatura de todos os autores, indicação da categoria do trabalho e área de publicação da UNIVERSITAS – Revista FANORPI de Divulgação Científica. Obs. Os trabalhos enviados para publicação não serão devolvidos ao autor. 15 Remessa Os textos deverão ser enviados por e-mail para Conselho Editorial da UNIVERSITAS – Revista FANORPI de Divulgação Científica, no endereço [email protected], aos cuidados do professor Nelson Borges. UNIVERSITAS – FANORPI/UNIESP, SANTO ANTÔNIO DA PLATINA, N. 2, 2013