A CURIOSIDADE EPISTEMOLÓGICA E O DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADES EDUCACIONAIS NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR E PESQUISADOR EM ENSINO DE FÍSICA. MAIA, Dayane Rejane Andrade - UEPG/PPGE – [email protected] MION, Rejane Aurora - UEPG/DEMET/PPGE – [email protected] EIXO: Formação de Professores / no 10. Agência financiadora: CAPES RESUMO: Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla que tem como objetivo analisar possibilidades e limites do desenvolvimento e incorporação da curiosidade epistemológica a partir do processo de ensino-aprendizagem na formação inicial de professores de Física, e que vem sendo desenvolvida no mestrado em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Para este trabalho objetivamos discutir e analisar uma atividade educacional em Física elaborada e desenvolvida nesse processo. A pesquisa é de natureza qualitativa, sendo o estudo de caso a abordagem metodológica adotada. Os resultados nos indicam que a utilização dos objetos técnicos viabiliza o ensino e aprendizagem tanto da Física Clássica como da Física Moderna e Contemporânea, bem como das implicações da relação CTSA; o desenvolvimento dos momentos do ato educativo na realização da atividade mostrou a importância de incorporar uma concepção rigorosa de trabalho à prática educativa. Palavras-chave: formação do professor e pesquisador em Ensino de Física; atividades educacionais; ensino-aprendizagem; curiosidade epistemológica; investigação-ação educacional. 1. INTRODUÇÃO Neste trabalho apresentaremos e analisaremos uma atividade educacional em Física desenvolvida na disciplina de Estágio Curricular Supervisionado em Ensino de Física da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Objetivamos evidenciar a importância dessa atividade no processo ensino-aprendizagem da formação inicial e continuada do professor e pesquisador em Ensino de Física a partir da análise dos pressupostos da curiosidade epistemológica (FREIRE, 2003a). A disciplina de Estágio Curricular Supervisionado em Ensino de Física está inserida no contexto de um programa de investigação-ação educacional de vertente emancipatória, construído, desenvolvido e analisado como proposta educacional na 2 formação inicial de professores de Física. Além disso, ela foi reestruturada devido à reformulação do currículo das licenciaturas, tendo uma carga horária de 408 horas, a qual é dividida em 204 horas, ou seja, nos 3º e 4º anos do curso. Nessa nova estrutura curricular, o tempo destinado a fase de ação nas escolas é de um ano. Assim, os aprendizes de professor e pesquisador1 ficam durante todo o ano letivo, realizando as ações em uma turma e escola escolhida. O objetivo desse programa é levar os aprendizes a problematizarem conceitos e práticas, viabilizando o planejar, o agir, o observar e o refletir sobre as próprias práticas educacionais em Física. Isso se torna possível, pois a formação inicial de professores de Física, nesse caso, é entendida como um programa de pesquisa, onde o estágio é desenvolvido como um programa de iniciação científica. Este trabalho tem a intenção de colaborar para o desenvolvimento e fortalecimento desse programa de formação do professor e pesquisador em Física. Entendemos que é por meio da vivência de um processo de pesquisa, na qual o professor investiga e reflete sobre e em torno de sua própria prática, que o exercício da curiosidade epistemológica pode se tornar parte integrante da prática educativa. Cabe ressaltarmos, que esse trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla que objetiva analisar o processo ensino-aprendizagem construído e desenvolvido na disciplina. Assim, o problema que permeia esse trabalho é: Como ocorre o desenvolvimento e incorporação a curiosidade epistemológica no processo ensino-aprendizagem da formação inicial dos professores de Física? Para realizarmos as discussões e análises o processo ensino-aprendizagem no interior desse programa de investigação-ação educacional de vertente emancipatória, optamos por realizar uma pesquisa qualitativa, tendo como abordagem metodológica o estudo de caso (LÜDKE & ANDRÉ, 1986 e BODGAN & BICKLEN, 1994). Como procedimento de coleta de dados, utilizamos observações diretas: por escritos registrando os dados (as informações) em um “diário de campo”, orientadas por um roteiro e por meio de gravações eletrônicas em áudio e vídeo. A análise dos dados foi realizada a partir da sistematização desses dados coletados: organização de todos os dados coletados; realização de leitura e estudo exaustivo dos dados; problematização 1 Utilizamos essa denominação, pois os licenciandos são formados tanto para exercer a função social do professor de Física quanto do pesquisador em Ensino de Física. Ou seja, eles estão inseridos em um Programa de investigação-ação educacional onde o processo de pesquisa é entendida como um processo formativo e educativo. 3 das informações coletadas; identificação das regularidades; eleição das premissas de apreciação e então a escrita do texto, resultado dessa análise crítica. O procedimento adotado para a identificação das falas dos participantes nas transcrições citadas, de forma a garantir o anonimato, ao longo das análises, foram: PP – professora e pesquisadora da disciplina; P1 – autora (aprendiz de professora e pesquisadora); A (por ordem alfabética, A1, A2,...) – aprendizes de professor e pesquisador. Ao longo do texto procuramos, inicialmente, apresentar brevemente os pressupostos da curiosidade epistemológica. A seguir descreveremos e analisaremos a elaboração e desenvolvimento de uma atividade educacional em Física pelos participantes, dando ênfase a análise de um exemplar dessa atividade. 2. DELINEANDO OS PRESSUPOSTOS DA CURIOSIDADE EPISTEMOLÓGICA. O conceito de curiosidade epistemológica foi criado e desenvolvido por Freire ao longo de suas obras. Por não ser um conceito diretamente esclarecido pelo autor, realizamos estudos e análise de suas obras com o objetivo de extrair alguns pressupostos. Assim sistematicamente os pressupostos caracterizados como: da uma curiosidade atitude; epistemológica um caminho foram para a conscientização; uma concepção de trabalho; e um desafio à construção do conhecimento científico. Ao considerarmos como uma atitude, ela permite ao sujeito um significativo avanço em relação ao conhecimento, pois possibilita a passagem da ingenuidade para a criticidade frente ao mundo e as situações enfrentadas nele. Essa atitude é a mesma que Chauí (2000) chama de atitude filosófica ou científica, na qual o sujeito desconfia das certezas a priori e se dispõe à busca rigorosa de novos conhecimentos. Essa disposição é a tomada de atitude, é a curiosidade tornando-se epistemológica. Devido a essa rigorosidade metódica no conhecimento do objeto é que entendemos que a curiosidade epistemológica seja um desafio à construção de conhecimento científico, pois implica a “tomada de distancia do objeto, de observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-lo, de “cercar” o objeto ou fazer aproximações metódicas, sua capacidade de comparar, de perguntar” (FREIRE, 1996, p. 85). Assim, o 4 desenvolvimento da curiosidade epistemológica pode estar relacionado à construção e incorporação do “espírito científico” (BACHELARD, 1996). Entendemos, também, que o desenvolvimento da curiosidade epistemológica seja um caminho para a conscientização, pois possibilita que os educandos se aprofundem na tomada de consciência de sua situação, eles se apropriam dela como realidade histórica, e assim, tornam-se capazes de transformá-la. Ao transformar a sua realidade, já estarão envolvidos por sua consciência crítica. Freire (1991), considera que a conscientização não pode ocorrer numa prática sobre a qual falte seriedade, indispensável a quem quer conhecer rigorosamente e também à qual falte a curiosidade epistemológica e a reflexão crítica. Em adição, é preciso lembrar que não nascemos epistemologicamente curiosos, mas que podemos aprender a ser na escola. No que se refere à concepção de trabalho identificamos que na maioria das obras de Freire, ele se utiliza da curiosidade epistemológica como um momento importante em seu trabalho, tanto no momento da escrita de seus textos como na organização de suas palestras ou outras atividades. Essa atitude frente aos objetos de conhecimento parece estar presente na realização de todos os seus trabalhos. Como exemplo temos o desenvolvimento de seu método de conscientização com jovens e adultos, que não permite que o processo de alfabetização ocorra sem o despertar da curiosidade crítica dos envolvidos. Por esse motivo é que acreditamos que o despertar da curiosidade epistemológica seja um processo indispensável para a realização de seus trabalhos. Tendo como base esses pressupostos, descreveremos e analisaremos criticamente uma atividade educacional em Física elaborada e desenvolvida pelos participantes do programa de investigação-ação educacional. 3. A ELABORAÇÃO DA ATIVIDADE EDUCACIONAL EM FÍSICA. Com o intuito de desenvolver o tema “Problematização de conceitos e práticas” proposto na ementa da disciplina de Estágio Curricular Supervisionado em Ensino de Física, realizamos uma atividade educacional em Física que visava envolver o ensino e a aprendizagem de todos os momentos do “ato educativo” (MION, 2004) e dos momentos metodológicos da investigação-ação educacional, a partir da elaboração e desenvolvimento de aulas de Física para a própria turma na Universidade. 5 Além de objetivar o trabalho direcionado às práticas educativas por meio da vivência dos momentos do ato educativo, a atividade também teve como finalidade propor aos aprendizes o desenvolvimento de uma aula de Física nos moldes e exigências de um processo de seleção de professores concursados – prova didática, ou até mesmo teste didático exigido em algumas instituições particulares de Ensino Fundamental e Médio. Esses testes são recorrentes na vida profissional de professores, por isso a necessidade de proporcionar essa situação como parte do processo ensinoaprendizagem da formação inicial e continuada dos envolvidos, de modo a desenvolver na prática os conhecimentos científico-educacionais estudados no primeiro semestre da disciplina. Nesse sentido, essa atividade educacional teve a intenção de realizar a interlocução entre teoria e prática, possibilitando o entendimento dos fundamentos teórico-práticos estudados durante o curso de licenciatura em Física, bem como na disciplina. Foram sorteados 10 temas de Física entre todos os participantes. Os temas sorteados foram: Difração e Interferência; Propriedades eletromagnéticas da matéria; Dualidade onda-partícula; Introdução à Relatividade Restrita; Equações de Maxwel; Radiação de corpo negro; Estabilidade e pequenas oscilações, Forças centrais, Leis da Termodinâmica e o Átomo de hidrogênio. Iniciamos a atividade com o desenvolvimento do primeiro momento do ato educativo o “planejamento”. Durante quase um mês ficamos envolvidos com revisões bibliográficas, com a organização dos materiais didáticos como: slides com animações e figuras, objetos técnicos. Para o segundo momento, a “ação” foi solicitada a utilização dos três momentos pedagógicos (DELIZOICOV e ANGOTTI, 1992), incluindo também discussões da relação das implicações Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA), com duração das aulas de 50 minutos para cada tema. No terceiro momento o de “observação”, toda a turma participou. Essas observações foram guiadas por um roteiro proposto por Mion (2002) e também por um instrumento de avaliação específico de concurso público da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Os tópicos avaliados nesse instrumento foram: plano de aula; desenvolvimento da aula e argüição. No quarto momento – a reflexão - foram realizadas as “reflexões”, no qual foram feitas as análises interpretativas e críticas do planejamento proposto e da aula propriamente dita. 6 Assim todos os momentos do ato educativo foram desenvolvidos a partir da realização desta atividade “modelo”, que viabilizasse a compreensão dessa prática que foi construída e desenvolvida durante todo o próximo ano letivo, por meio da interface entre Universidade e Escolas públicas da região dos Campos Gerais (Paraná). Devido à relevância dessa atividade educacional no processo ensinoaprendizagem da formação inicial do professor e pesquisador em Ensino de Física, apresentaremos algumas especificidades, bem como a análise crítica de um exemplar de aula. Essa aula foi elaborada e desenvolvida pela autora (aprendiz de professora e pesquisadora) em co-laboração com a professora e pesquisadora responsável pela turma. Entre os 10 temas, essa foi a primeira aula desenvolvida. O tema abordado foi “Interferência e Difração”. Por ser um tema abrangente, que geralmente pode envolver em torno de duas a três aulas para ser desenvolvido, necessitamos fazer um recorte. Optamos em realizar uma aula expositiva, que contemplasse uma visão geral do tema, de forma a realizar uma aula com todas as exigências e especificidades de uma prova didática de concurso público para professor. Sabemos que nessas provas didáticas a banca examinadora não interage com o candidato, apenas observa e analisa a aula elaborada e desenvolvida. Mesmo sendo uma aula expositiva, não deixamos de utilizar atividade prática e atividade teóricoexperimental2, bem como multimeios e objetos técnicos. Escolhemos o CD-ROM como objeto técnico. Nossos objetivos ao escolher esse objeto técnico estavam em explicar os fenômenos de Interferência e Difração a partir da fabricação e funcionamento do CD-ROM, bem como em verificar que o CD-ROM pode funcionar como uma rede de difração. Para alcançar esses objetivos utilizamos, também, como materiais didáticos: um computador; um projetor de multimídia; um prisma; uma ponteira a laser; uma lanterna; um retroprojetor e transparências. Como já foi explicitado, a aula foi elaborada e desenvolvida seguindo os três momentos pedagógicos, apresentados a seguir: Problematização inicial: 1) Vocês conhecem esse objeto? 2) Para que utilizamos esse objeto? 2 Segundo Mion et al (1995) a atividade prática é desenvolvida inicialmente sem o conhecimento prévio da teoria física, utilizando como referencial o conhecimento do senso comum. Já a atividade teóricoexperimental exige conhecimento da teoria física, o que acarreta numa análise científica do fenômeno. Geralmente a atividade prática é realizada para problematizar o conteúdo que será trabalhado e a atividade teórico-experiemental para explicar ou mesmo sistematizar o conteúdo. 7 3) No prisma sabemos que essa decomposição ocorre devido aos fenômenos de reflexão e refração da luz. E no CD ocorre o mesmo fenômeno físico? - Demonstrar a decomposição da luz no prisma e no CD utilizando um retroprojetor. Organização do conhecimento: 1) Explicar os fenômenos de difração e interferência. 2) Explicar a diferença entre interferência construtiva e interferência destrutiva, bem como suas respectivas equações. Aplicação do conhecimento: Voltando ao CD-ROM ... 1) Demonstrar que o CD-ROM é um exemplo de rede de difração. 2) Fazer uma atividade teórico-experiemental demonstrando e explicando a figura de difração quando incidimos um feixe de laser em um CD-ROM. 1) Para essa atividade é preciso parcialmente escurecer o ambiente (sala de aula). 2) Localizar o CD-ROM em uma distancia de aproximadamente dois metros da parede. 3) Incidir a luz do laser (luz monocromática) no CD-ROM, procurando manter o feixe de luz perpendicular ao CD-ROM. 4) Discutir sobre a figura de difração e interferência que será projetada na parede, realizando uma sistematização do conteúdo trabalhado. 3) Discutir sobre algumas implicações da relação CTSA a partir da utilização dos fenômenos de Difração e Interferência. De acordo com os momentos exposto acima, a aula foi planejada para ser desenvolvida por meio de problematização, exposição verbal do conteúdo, de demonstrações de atividades práticas e atividades teórico-experimentais e da utilização do objeto técnico (CD-ROM). A seguir teceremos analises em torno desse exemplar de aula, de maneira a verificar se os fundamentos epistemológicos, metodológicos e teóricos estudados durante a disciplina despertaram nos participantes a passagem de uma curiosidade ingênua para a curiosidade epistemológica. 4. O POTENCIAL DE ATIVIDADES EDUCACIONAIS EM FÍSICA PARA O DESENVOLVIMENTO DA CURIOSIDADE EPISTEMOLÓGICA. Consideramos como elemento fundamental para análise, a vivência dos momentos do “ato educativo”. Seguimos, então, todas as orientações metodológicas para análise dos dados coletados e estabelecemos que para análise e interpretação sejam considerados os pressupostos da curiosidade epistemológica: atitude crítica (perante o objeto de conhecimento), concepção de trabalho (rigorosidade metódica na elaboração e desenvolvimento dos momentos pedagógicos), desafio à construção de conhecimento 8 (momentos de observação e reflexão para re-planejamento e conhecimentos sobre a própria prática educacional) e caminho para a conscientização (mudanças na prática a partir do diálogo). Na elaboração do planejamento fez-se necessário realizar uma revisão bibliográfica de modo a estudar e reestudar o objeto de conhecimento “Interferência e Difração” de forma a desvelá-lo, analisá-lo e compreendê-lo em sua essência. O exercício de reestudar os conhecimentos sobre o tema e principalmente em desvelá-lo para ensiná-lo, tendo em vista uma concepção problematizadora de Educação, foi um desafio à minha própria curiosidade epistemológica. Percebemos, também, que essa foi uma tarefa desafiante para todos os participantes, pois estávamos todos engajados em aprender Física para então ensiná-la de uma forma diferenciada e prazerosa, exigindo uma busca rigorosa de conhecimentos sobre o tema em estudo. Essa atitude crítica diante do objeto de conhecimento e análise favoreceu para a organização da ação no que se refere aos três momentos pedagógicos. Entendemos que um professor de Física, ou de qualquer subárea da educação, precisa tanto do conhecimento especifico da área quanto conduzir e orientar o processo ensinoaprendizagem de forma educacional. Nessa atividade podemos analisar esses critérios, sempre entendendo que se trata de um curso de formação inicial, a partir do estudo de cada momento pedagógico. No que se refere à problematização inicial – primeiro momento pedagógico uma regularidade que percebemos diz respeito à dificuldade em desenvolver a problematização, de colocar uma pergunta como problema. Segundo Delizoicov e Angotti (1992) a problematização deve ser um momento em que o professor propõe questões e/ou situações para discussão e essas devem se configurar, para os alunos, como um problema para ser resolvido. No exemplar que estamos analisando, a problematização inicial tinha como objetivo instigar os participantes a compreenderem os fenômenos de difração e interferência a partir do objeto técnico (CD-ROM) que supomos serem de conhecimentos de todos. A inquietação estava em problematizar a decomposição da luz por um CD-ROM, perguntando se o fenômeno que possibilita a decomposição da luz em um prisma é o mesmo que ocorre na decomposição da luz por CD-ROM. Essa situação tem as características de uma codificação. Na mediada em que representam situações existenciais, as codificações devem ser simples na sua complexidade e oferecer possibilidades plurais de 9 análise na sua descodificação, o que evita o dirigismo massificador da condição propagandística. As codificações não são slogans, são objetos cognoscíveis, desafios sobre que deve incidir a reflexão crítica dos sujeitos descodificadores (FREIRE, 1987, p. 109). Para que o momento da problematização inicial seja contemplado satisfatoriamente é importante que a atitude do professor se volte para questionar e lançar dúvidas sobre o assunto, abrindo possibilidades para a descodificação. No que se refere à atividade educacional, percebemos que na aula em discussão, as questões e/ou situações colocadas foram interessantes, mas a forma como foram feita e/ou desenvolvida foi problemático. Um trecho do diário de campo da autora (aprendiz de professora e pesquisadora) nos demonstra tal fato observado na aula de Física em discussão: “Faltou ser mais enfática na problematização. Fiz as perguntas propostas no planejamento, mas não oportunizei aos ouvintes tempo para codificarem para depois decodificarem” (DIÁRIO DE CAMPO, AULA DO DIA 30/08/2006). Após a problematização inicial tem-se o momento da organização do conhecimento, no qual “os conhecimentos de Física necessários para a compreensão do tema central e da problematização inicial serão sistematicamente estudados” (DELIZOICOV e ANGOTTI, 1992, p. 29). Nesse momento identificamos dificuldades em organizar e sintetizar o conteúdo a ser ensinado. Isso não se refere à falta de domínio e estudo do conteúdo, mas que ocorreram dificuldades em ensiná-los, de realizar o que Freire (1996) diz em possibilitar aos alunos acompanhar as idas e vindas do pensamento do professor. No trecho a seguir demonstraremos a fala de um aprendiz sugerindo modificações para facilitar o entendimento do conteúdo: A1: Tenho uma observação. Você iniciou a organização do conhecimento mostrando o que acontece quando você manda uma frente de onda numa fenda de largura proporcional ao comprimento de onda. Eu acho que uma abordagem possível e interessante seria mostrar o que seria esperado para luz, com relação ao comportamento da luz como partícula para então construir o que acontece nela como onda. Porque se você coloca direto o resultado você perde a importância histórica do experimento [...]. (TRANSCRIÇÃO, AULA DO DIA: 30/08/2006). Essas sugestões foram realizadas durante o desenvolvimento da atividade, nos momentos de planejamento e principalmente de reflexão, proporcionando o diálogo entre o grupo, de forma a aprendermos coletiva e colaborativamente. Para Freire (1987) uma das características da ação dialógica é a co-laboração, que ocorre entre os sujeitos e só pode ocorrer na comunicação. Foi a partir do diálogo que conseguimos analisar e refletir sobre as aulas e por isso que entendemos que ele seja uma exigência 10 epistemológica, pois diálogo possibilita apreender a essência do objeto de conhecimento, em conhecê-lo. A utilização de multimeios, de simulações e de objetos técnicos para explicar os conteúdos foi um dos aspectos interessantes nessa atividade. Percebemos durante as aulas o esforço e dedicação dos participantes em realizar aulas de Física dentro de uma concepção dialógico-problematizadora de Educação. Em todas as aulas foram utilizados materiais didáticos para codificar e/ou recodificar o conteúdo. No exemplar em questão, o conteúdo foi explicado por meio de animações em slides que demonstram as ondas incidindo em fendas e logo após se sobrepondo formando figuras de difração e interferência. Esse foi um aspecto que instigou a curiosidade dos participantes, pois auxiliou no entendimento de questões que até então não tinham entendido. A seguir temos a fala de um dos aprendizes: A5: Uma das coisas que eu achei interessante foi na hora que ela colocou a figura do experimento mesmo. Acho que ficou claro, porque quando a gente fez aqui na Universidade a gente teve dificuldades em entender as figuras de difração, e agora eu entendi (TRANSCRIÇÃO, AULA DO DIA: 30/08/2006). O manuseio reflexivo de objetos técnicos e a utilização dos multimeios tecnológicos para Ensinar Física evidenciam uma concepção de ensino que tem como estratégias metodológicas a interface entre o Ensino de Física e as implicações da relação CTSA por meio da transformação de objetos técnicos em equipamentos geradores3. No entanto não foi possível nessa atividade a transformação do objeto técnico CD-ROM em equipamento gerador, por tratarmos de uma aula apenas. Assim, além de reestudarmos os conteúdos da Física tivemos a possibilidade de aprender e ensinar Física por meio da tecnologia e do desvelamento de objetos técnicos presentes em nosso dia-a-dia. Esses aspectos são fundantes no processo de formação inicial e continuada de professores, pois esse é um dos espaços que deve permitir que seja incorporada a compreensão prática e conceitual dos conteúdos, “superando a conceituação atrasada do enciclopedismo acadêmico conservador que impõe ao ensino básico conteúdos e seqüências arcaicos” (MENEZES, 1998, p. 79). 3 “Equipamentos geradores, segundo De Bastos (1995), são aqueles artefatos tecnológicos e/ou objetos do cotidiano dos envolvidos que oferecem possibilidades e condições de gerar um plano de aula ou um programa educacional em torno das leis, teorias e princípios envolvidos em sua fabricação e funcionamento” (MION, 2001, p. 91). 11 Na aplicação do conhecimento – terceiro momento pedagógico - pretende-se que “o aluno perceba que o conhecimento, além de ser uma construção historicamente determinada desde que aprendido, é acessível a qualquer cidadão, que ele pode fazer uso” (DELIZOICOV e ANGOTTI, 1992, p. 31). Para isso, nesse momento, nos dedicamos a realizar tanto o retorno às questões inicial de forma a respondê-las a partir do conhecimento aprendido na organização do conhecimento, utilizando o objeto técnico escolhido ou simulações, quanto em lançar questões sobre as implicações da relação CTSA, relacionadas ao objeto técnico escolhido, bem como sobre outros objetos e situações do cotidiano. Com relação à atividade educacional em Física (aula de Física) em discussão, o objeto técnico escolhido foi o CD-ROM. Na aplicação do conhecimento o objetivo era voltar ao CD-ROM e explicar seu funcionamento e fabricação, sua camadas, mostrando que devido a suas ranhuras que se comportam como pequenas fendas, esse objeto pode ser utilizado e/ou comparado a uma rede de difração. No entanto, esse foi um dos pontos discutidos da aula. A observação de um aprendiz de professo e pesquisador demonstra essas discussões: A8: O que eu achei é que faltou uma coisa na aula. Eu não vi o CD como CD e sim como uma rede de difração, simplesmente. Talvez você poderia ter abordado, porque que ele precisa ter essa rede de difração. Para que serve essa rede de difração no CD? (TRANSCRIÇÃO, AULA DO DIA: 30/08/2006). Podemos então perceber que não adianta apresentarmos o objeto técnico no momento de codificação se não for ensinado e aprendido às leis, princípios ou fenômenos Físico a partir do desvelamento desse objeto, ou seja, sua fabricação e funcionamento. Trabalhar nessa perspectiva requer do professor e pesquisador aprofundamento sobre outras questões. Nesse caso exigia melhor compreensão e explicação sobre a fabricação e funcionamento do CD-ROM para que ocorresse de fato a sistematização e recodificação. Outra questão que foi discutida é que no planejamento era proposta uma atividade teórico-experimental, mas por esquecimento não foi realizada. A ausência dessa atividade comprometeu o tempo da aula, que foi de 39 minutos, e principalmente a sistematização do conteúdo trabalhado. Durante toda a ação os participantes foram orientados a observarem pontos referentes à prática educativa no tocante ao domínio do conteúdo e a aspectos didático- 12 pedagógicos. Nas primeiras aulas alguns dos participantes, por não compreenderem o objetivo da atividade, não realizavam os registros das observações. A professora e pesquisadora da disciplina teve que intervir para pedir a co-laboração de todos para o desenvolvimento da atividade: “Eu tenho várias observações, mas uma delas é com relação aos registros feitos. Não basta apenas fazer perguntas, tem que ser feito observação. Algumas foram feitas. Eu gostaria que vocês fizessem registros mais contundentes” (TRANSCRIÇAO, AULA DO DIA: 30/08/2006). A professora e pesquisadora estava tentando mostrar e ensinar a importância do trabalho colaborativo, do diálogo no processo de reflexão sobre a própria prática educacional. Com passar do tempo, percebemos, que: “todos estavam participando na realização das observações e registros dessas observações” (DIÁRIO DE CAMPO, AULA DO DIA: 13/09/2006). Além de participarem da atividade, também estavam aprimorando o exercício de fazer registros, “já se percebe, nesta aula, que todos os participantes estão observando criticamente as situações de cada aula” (DIÁRIO DE CAMPO, AULA DO DIA: 19/09/2006). Os participantes foram percebendo o objetivo da atividade, realizando o registro das observações, tanto para ajudar os colegas a enxergar pontos interessantes e pontos que precisam ser modificado na aula, quanto para refletir sobre a sua própria prática educacional. No entanto, mesmo com esse esforço não percebemos a conscientização de todos os participantes, pois a conscientização requer mudança, transformação. O que percebemos foi que alguns participantes tinham consciência da necessidade de registrar as observações e de refletir sobre elas, mas no momento da realização de suas aulas não eram feitas as modificações que eles mesmos tinham observados nas aulas anteriores de seus colegas. Como vimos a conscientização é um dos pontos fundamentais para desenvolver a curiosidade epistemológica. É importante percebermos o que antes não percebíamos para então realizarem as mudanças necessárias. “Essas aulas vão servir para nós nos olharmos. Vocês vão se enxergar. Vocês serão os autores principais desse filmes” (TRANSCRIÇÃO, AULA DO DIA: 30/08/2006). Ao desenvolvermos os momentos do ato educativo, nos colocamos a disposição de mirar nosso objeto de estudo que, nesse momento de observação e reflexão, são as próprias práticas educacionais para posteriormente ad-mirá-la. Esse processo implica a tomada de distância epistemológica do objeto de conhecimento, para poder se apropriar de sua essência, e assim perceber o que antes não era percebido. Essa percepção pode 13 ocorrer no momento de reflexão, no qual é realizada a auto-reflexão e com a colaboração de todos os participantes na reflexão. Assim, os momentos do “ato educativo”, na formação do professor e pesquisador em Ensino de Física, permitem que o futuro professor integre o discurso dos textos e artigos com a prática educacional, de pensar o seu trabalho de forma rigorosa e sistemática, possibilitando a ruptura com o senso comum. Essa ruptura está relacionada à superação dos obstáculos epistemológicos (BACHELARD, 1996). Entre os obstáculos epistemológicos, o que se destacou nessa atividade foi a “experiência primeira”, que são as opiniões, as incertezas, e a insegurança. Esse obstáculo esteve presente no momento de realizar as discussões sobre as implicações da relação CTSA. Sobre os conhecimentos relacionados à CTSA não foi citados ou então foi superficializado. Faltou entendimento dos participantes do que seriam essas implicações, de sua relevância no Ensino de Física. Percebemos que foram dedicados esforços para a compreensão do conteúdo a ser ensinado e aprendido, em dominar os conteúdos de Física, não entendendo que os aspectos sociais, tecnológicos e ambientais envolvidos são também conteúdos no ensino de Física e que precisam ser estudados com a mesma rigorosidade. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A realização dessa atividade educacional viabilizou a vivência de um processo metodicamente rigoroso por meio de observações seguindo um roteiro para registro, bem como auto-reflexões e reflexões por meio do diálogo entre o grupo sobre o trabalho realizado, possibilitando aos participantes incorporar conhecimentos relativos à Física, aos procedimentos didáticos, e principalmente de sua própria prática educacional. O desenvolvimento dessa atividade despertou a passagem da curiosidade ingênua para uma curiosidade epistemológica, pois mostrou aos participantes modificações necessárias para o re-planejamento e para uma próxima ação, para que persistam na busca da ruptura com o senso comum, com aspectos de uma concepção tradicional de educação que caracteriza a Ciência como um conhecimento acabado bastando apenas reproduzi-lo em sala de aula. Ao desenvolvermos os momentos do ato educativo no processo ensinoaprendizagem da formação inicial do professor e pesquisador em Ensino de Física, 14 estamos nos aproximando de uma prática educacional problematizadora na qual a pesquisa é considerada como princípios educativos e formativos. Além desses aspectos epistemológicos que caracterizam o senso comum, temos que considerar os aspectos metodológicos. Percebemos que essa atividade envolveu um universo de procedimentos metodológicos na elaboração e desenvolvimento das aulas, que possibilitaram aos participantes conhecer e utilizar vários tipos de recursos. Essa visão ampla dos procedimentos metodológicos pode auxiliar na superação das insuficiências do livro didático (DELIZOICOV et.al, 2002). Outro ponto que destacamos é a utilização de objetos técnicos para Ensinar Física. Os objetos técnicos possibilitam entendermos os conhecimentos da Física Clássica, bem como para o ensino e aprendizagem da Física Moderna e Contemporânea, pois aproxima o conhecimento científico da realidade dos alunos. No entanto trabalhar nessa perspectiva é difícil, pois demanda estudo rigoroso do funcionamento e fabricação desses objetos tendo em vista também as implicações da relação CTSA. Esse, portanto é um desafio no processo de ruptura com o senso comum pedagógico, bem como na formação cultural dos participantes. A rigorosidade vivida nessa atividade possibilitou aos participantes perceber a necessidade de incorporar à prática docente uma concepção de trabalho que se caracteriza como: momentos de estudo, pois o professor está sempre aprendendo; momentos de planejamento, no qual o professor sintetiza e organiza o que estudou; momentos de observação, o qual realiza a coleta de informações sobre a sua aula e; momentos de reflexão, no qual é problematizada a própria prática educacional a partir das observações realizadas. REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A Formação do Espírito Científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. BLOOMFIELD, Louis A. How Things Works: The Physics of Everyday Life. New York: Wiley, 1997. DELIZOICOV, D; ANGOTTI, J.P.A. Metodologia do Ensino de Ciências. São Paulo: Cortez, 1994. DELIZOICOV, D; ANGOTTI, J.P.A. Física. 2ª edição. São Paulo: Cortez, 1992. 15 DELIZOICOV, D. et. al. Ensino de Ciências: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2002. FREIRE, Paulo. 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