40 | setembro-outubro 2014 | VIDA JUDICIÁRIA doutrina e jurisprudência O regime das entradas em espécie a perfeita e plena compreensão do regime da realização da entrada, por parte de um sócio, com créditos impõe, desde logo, que se façam algumas observações preliminares sobre o regime da obrigação de entrada. É o que faremos de seguida. João côrte-Real Advogado da RSA LP – Rede de Serviços de Advocacia de Língua Portuguesa A obrigação de entrada Importa, antes do mais, ter presente que o nosso ordenamento jurídico dispensa à obrigação de entrada uma enorme importância1 e cujo incumprimento pode inclusivamente acarretar a exclusão do sócio remisso do grémio social2. A relevância atribuída à obrigação de entrada resulta fundamentalmente de duas ordens de razões: (i) porque a obrigação de entrada se constitui (a par com o dever de participar nas perdas) como a principal obrigação dos sócios (cfr. artigo 980º do Código Civil) e é o que resulta também, no que às sociedades comerciais diz respeito, do artigo 20º do Código das Sociedades Comerciais3, que estabelece de forma imperativa como obrigações essenciais dos sócios a obrigação de entrada (com bens susceptíveis de penhora, ou, nos tipos de sociedade em que tal seja permitido, com entradas de indústria) e a obrigação de quinhoar nas perdas. Ou seja, o contrato de sociedade é, por força da lei, um contrato oneroso, pelo que só pode ser atribuída uma participação social, e consequentemente a qualidade de sócio, a uma pessoa que contribua com bens (ou serviços, nas sociedades em que este tipo de entrada seja admitido) para a sociedade. A obrigação de entrada assume, pois, um papel fundamental em direito societário, na medida em que se trata de uma obrigação originária, fundacional e até funcional (no sentido, respetivamente, de que está na origem da atribuição da qualidade de sócio, sem ela não é possível a constituição de uma sociedade, e, porquanto, por via de regra, os direitos e deveres dos sócios se medem em função da entrada que cada um realiza); (ii) a importância concedida à obrigação de entrada prende-se, de igual modo, com a especial tutela que, em direito societário, é conferida aos credores sociais, maxime das sociedades de capitais (v.g., SA e SQ), nas quais, em princípio, apenas o património social responde perante os credores sociais (artigos 197º, nº 3, e 271º, ambos do CSC). Ora, sendo o património social originariamente constituído pelas entradas, justifica-se, relativamente a elas, especiais cautelas, nomeadamente quanto à sua consistência e ao valor que lhes é atribuído. Conceito de entrada (inclui o ágio ou prémio de emissão) Importa, por outro lado, determinar e delimitar o conceito de entrada. É que, se a entrada consiste - nos termos da lei – na contribuição do sócio com bens ou serviços para a sociedade, resulta evidente que nem todas as suas contribuições para sociedade são entradas em termos técnico-jurídicos. Pense-se, na hipótese de um sócio que empresta determinada quantia à sociedade; nesta hipótese, a quantia que deu entrada na sociedade, posto que entregue por um sócio, não é entrada em sentido técnico-jurídico. Torna-se por isso necessário – até para a perfeita compreensão do regime – fixar, com rigor, o respectivo significado. Ora, sem grandes divagações, que aqui se tornam desnecessárias, deve entender-se por entrada, em sentido técnico-jurídico, toda a contribuição patrimonial 1 - Cfr. Segunda Directiva sobre Sociedades - Directiva do Conselho nº 77/91/CEE, de 13 de Dezembro de 1976, publicada no JO nº L 26/1 de 31 de Janeiro de 1977 (alterada pela Directiva do Conselho nº 92/101/CEE, de 23 de Novembro de 1992, publicada no JO nº L 347, de 28 de Novembro de 1992, que abrange, no direito português, exclusivamente as SA). 2 - Cfr., entre nós, artigos 203° e 204° CSC para as SQ e artigos 285° e 286° CSC para as SA. 3 - Todas as referências a normas legais devem ser entendidas como feitas ao Código das Sociedades Comerciais (CSC), salvo indicação expressa em contrário. doutrina e jurisprudência do sócio para a sociedade que se destina ao pagamento das participações sociais que adquire; isto é, a contribuição patrimonial que o sócio se obriga a realizar e a entregar à sociedade como contraprestação das participações sociais que subscreve. Com este sentido, a entrada abrange não apenas os bens entregues pelo sócio cujo valor corresponde ao valor nominal das participações sociais que subscreve, mas também o valor excedente que o sócio tem de desembolsar para as adquirir, ou seja, a entrada – e o regime que lhe é aplicável – compreende e abrange também o ágio ou prémio de emissão (vide artigo 295º, nº 3, al. a) do CSC4). O que significa que a entrada realizada com créditos - independentemente de o respectivo valor ser imputado a capital social ou a prémio de emissão -, ficará toda ela sujeita ao respectivo regime. Tipos de entrada: entradas em indústria e entradas em bens (em dinheiro e em espécie) Finalmente, deverá ter-se presente que a nossa lei apenas admite, expressamente, dois tipos de entradas: (i) as entradas em indústria (entradas com trabalho ou serviços por parte dos sócios), as quais não são admissíveis nas chamadas sociedades de capitais: SQ (cfr. artigo 202º, nº 1, CSC) e SA (cfr. artigo 277º, nº 1, CSC); e, (ii) as entradas em bens (capital). Estas entradas em bens, por sua vez, podem agora repartir-se em duas subcategorias: entradas em dinheiro e entradas em espécie (em bens diferentes de dinheiro)5. Ora, as entradas com créditos, desde já o antecipamos, são in- VIDA JUDICIÁRIA | setembro-outubro 2014 | 41 questionavelmente entradas em espécie (uma vez que manifestamente não são entradas em indústria, tal como não são entradas em dinheiro). Importa, por isso, para a nossa exposição subsequente, analisar o regime das entradas em espécie, uma vez que nesta subcategoria se têm de incluir as entradas com créditos, que ficam, assim, sujeitas ao respectivo regime. As entradas em espécie As entradas em espécie6 estão sujeitas, no CSC, a um regime específico e particularmente rigoroso que resulta em grande medida da Segunda Directiva7. O CSC exige, desde logo, que estas entradas em espécie (em “bens diferentes de dinheiro”) sejam integralmente liberadas, no momento da outorga do contrato constitutivo da sociedade ou da deliberação de aumento do capital social (cfr. artigos 26º e 89º, nº 1, do CSC), não sendo, portanto, possível – como o é para as entradas em dinheiro – o diferimento da sua realização. Por outro lado, estas entradas em espécie devem ser objecto de uma avaliação por parte de um revisor oficial de contas sem interesses na sociedade (cfr. artigo 28º, nº 1 do CSC)8. O regime do artigo 28° do CSC traduz-se na elaboração de um relatório por um perito independente, que deve ter o conteúdo mínimo previsto no nº 3 do artigo 28º do CSC e ser elaborado com uma antecedência não superior a 90 dias relativamente à data da formalização do contrato, devendo ainda ser previamente apresentado aos sócios “pelo menos quinze dias antes da celebração do contrato”, e ficando sujeito às formalidades de publicidade prescritas na lei (cfr. artigo 28.º, nºs 3 a 6 do CSC) – o que determina que o pedido de registo constituição da sociedade ou do aumento do capital social mediante entradas em espécie deva ser instruído com aquele relatório. A exigência da intervenção de um perito independente e sem interesses na sociedade visa assegurar que o valor atribuído à participação social corresponda ao valor real (venal) do bem que constitui a entrada9. a nossa lei apenas admite, expressamente, dois tipos de entradas: as entradas em indústria e as entradas em bens (capital) De todo o modo, importa salientar que, caso se verifique posteriormente a existência de erro naquela avaliação e, consequentemente, que o valor estimado do bem não corresponde ao seu valor real (e que, por isso, o valor da participação social é superior ao valor da entrada), o sócio será responsável pela diferença porventura existente que resulte da avaliação correcta do bem e o valor nominal da sua participação social, diferença essa que deverá repor (cfr. artigo 25º, nº 3, do CSC). 4 - O ágio ou prémio de emissão consiste, pois, na diferença entre o valor nominal da participação social e o valor por ela pago. 5 - Cfr. respectivamente artigo 28º do CSC. 6 - As entradas em espécie– a que se refere a epígrafe do artigo 28º CSC – são as entradas em bens diferentes de dinheiro (cfr. artigo 28º, nº 1, CSC). Excluem-se, portanto, desta categoria as entradas em indústria, uma vez que o legislador quis diferenciar estes dois tipos de entradas, consagrando regimes diversos. Neste sentido, vide Menezes Cordeiro, Manual de direito das sociedades, I, p. 523. 7 - Cfr. artigo 10º da Segunda Directiva. 8 - Os interesses em causa e o propósito desta norma são precisamente os de assegurar a realização do chamado princípio da exacta formação do capital social. 9 - Vide artigo 28º, nºs 1 e 2, do CSC e artigo 23º da oitava Directiva sobre sociedades: Directiva 84/253/CEE do Conselho, de 10 de Abril de 1984, que visou harmonizar o regime jurídico das pessoas encarregadas da fiscalização legal dos documentos contabilísticos. 42 | setembro-outubro 2014 | VIDA JUDICIÁRIA estas entradas em espécie devem ser objecto de uma avaliação por parte de um revisor oficial de contas sem interesses na sociedade O caso particular das entradas com créditos Na realização da entrada do sócio, no momento da constituição da sociedade ou aquando de um aumento de capital social, com créditos de que este seja titular, importa distinguir claramente duas situações: uma, a realização da entrada através de créditos sobre a própria sociedade (v.g., mediante compensação) – questão que se colocará, sobretudo, no caso de aumento de capital; a outra, a realização da entrada através de créditos sobre terceiros (mediante cessão de créditos). A realização da entrada mediante cessão de créditos sobre terceiros é, em geral, admitida. Estar-se-á, neste caso, inequivocamente, perante uma entrada em espécie (uma vez que não se trata de uma entrada em dinheiro e o CSC apenas admite, para as sociedades de capitais, estes dois tipos de entradas: em dinheiro e em espécie). A cessão de créditos terá necessariamente de ser objeto de uma avaliação por parte do ROC, pois que o respetivo valor nominal não equivale necessariamente ao seu valor económico, o qual varia em função da solvabilidade do devedor, do prazo de pagamento, das garantias associadas ao crédito, etc. Tratando-se de uma entrada em espécie, a mesma ficará, con- sequentemente, sujeita ao respetivo regime, aplicando-se o supra exposto quanto à responsabilidade do sócio pela diferença. Menos pacífica se apresenta a realização de entradas por compensação de créditos do sócio sobre a sociedade. No entanto e em face do atual direito positivo, a regra é a da proibição de toda e qualquer extinção da obrigação de entrada por compensação10 (cfr. artigo 27º, nº 5 CSC11). Se for feita a compensação, a realização daquela entrada (por compensação de créditos) será nula, por violação de norma legal imperativa, tendo o sócio de realizar em dinheiro o valor da sua entrada. É este o entendimento que resulta do artigo 25º, nº 4, do CSC, quando dispõe que o sócio “deve realizar em dinheiro a sua participação”, nomeadamente quando “for ineficaz a estipulação relativa a uma entrada em espécie, nos termos previstos no artigo 9º, nº 2”. Contudo e observando a tutela dos credores sociais, entendemos que nada obsta a que um sócio possa converter um crédito seu de natureza pecuniária em capital social, passando a ser titular de uma (nova) participação social, de valor nominal idêntico ao seu crédito extinto, designadamente, mediante deliberação de aumento de capital por novas entradas em espécie. Assim sendo, o sócio não sairá beneficiado, uma vez que o valor da sua participação corresponderá efectivamente ao valor que realizou e, por outro lado, os terceiros credores não ficam prejudicados, na medida em que o sócio já não pode executar a sociedade por aquele crédito (que converteu em capital). Conclusão O CSC exige, desde logo, que as 10 - Com exceção do caso da compensação com os lucros da sociedade, prevista no artigo 27º, nº 4 CSC. 11 - Norma igualmente aplicável aos aumentos de capital social - cfr. artigo 89º, nº 1 CSC. doutrina e jurisprudência entradas em espécie (em “bens diferentes de dinheiro”) sejam integralmente liberadas, no momento da outorga da escritura de constituição da sociedade ou de aumento do capital social (cfr. artigos 26.º e 89.º, nº 1, do CSC), não sendo, pois, possível – como é, para as entradas em dinheiro – o diferimento da sua realização. Por outro lado, O CSC veda toda e qualquer extinção da obrigação de entrada por compensação (cfr. artigo 27.º, n. º 5 do CSC), com exceção do especialmente disposto no n.º 4, do artigo 27.º. Nada obsta, porém, à realização de entradas em espécie mediante a conversão de créditos em capital, sejam estes créditos de sócios sobre a sociedade ou sobre entidades terceiras. Para o indicado efeito, impõe-se a elaboração de um relatório de avaliação por um perito independente (sem interesses na sociedade), que deve ter o conteúdo mínimo previsto no nº 3 do artigo 28º do CSC e ser elaborado com uma antecedência não superior a 90 dias relativamente à data da formalização do contrato, devendo ainda ser previamente apresentado aos sócios “pelo menos quinze dias antes da celebração do contrato”, e ficando sujeito às formalidades de publicidade prescritas na lei (cfr. artigo 28.º, nºs 3 a 6 do CSC). Por último e em complemento, na medida em que se venha a verificar a existência de erro na avaliação dos bens (v.g. créditos, na medida em que não consubstanciam realização em numerário), conforme efetuada pelo ROC, não correspondendo o valor estimado do bem ao seu valor real, o sócio será responsável pela diferença existente que resultar da avaliação correta e o valor nominal da sua participação social, diferença essa que deverá repor.