Reversibilidade, Entropia e Energia Livre de Gibbs
Existe uma ligação direta entre os conceitos de reversibilidade e irreversibilidade
termodinâmicos, entropia e energia livre de Gibbs.
Usaremos um exemplo simples, de expansão e contração isotérmica de gás ideal
para explicitar tal ligação.
Imaginemos um sistema fechado, composto por 01 mol de gás ideal, que sofre
mudanças de volume devido a variações da pressão, sempre em contato térmico
com o ambiente, de modo a manter a temperatura constante.
Vamos considerar três caminhos diferentes. Todos levam o sistema do mesmo estado
inicial para o mesmo estado final. Os três caminhos são diferentes apenas porque o
sistema assume estados intermediários diferentes entre os pontos de partida e
chegada, dependendo do caminho que segue.
Durante a transform aç ão
sistema fora do EQUILÍBRIO
A
Pressão = 1 atm
Volume = 24,4 L
Temperatura = 298 K
número de mols = 1
no equilíbrio
Pressão = 0.5 atm
Volume = 48.8 L
Temperatura = 298 K
número de mols = 1
0.5
atm
0.5
atm
0.5
atm
no equilíbrio
Gás Ideal
Gás Ideal
Pressão = 0.85 atm
Volume = 28.75 L
Temperatura = 298 K
número de mols = 1
0.5
atm
0.35
atm
no equilíbrio
B1
Durante a transform aç ão
sistema fora do EQUILÍBRIO
Gás Ideal
B2
Durante a transform aç ão
sistema fora do EQUILÍBRIO
Pelo caminho A, a pressão externa é diminuída de 1 para 0,5 atm de uma vez só. Por
esse caminho o sistema só volta ao equilíbrio no estado final, quando a pressão interna
atinge 0,5 atm e o volume se estabiliza. Durante todos os estados intermediários o
sistema fica fora do equilíbrio.
Pelo caminho B, existe um (apenas um!) estado intermediário no equilíbrio. A pressão
externa é diminuída primeiro de 1 para 0,85 atm e o sistema se expande até sua
pressão chegar a 0,85 atm. Ali um novo equilíbrio é encontrado. A pressão externa é
então novamente diminuída, agora para 0,5 atm e o sistema se expande de novo até
o volume 48,8 L, onde a pressão interna se iguala à externa, de 0,5 atm. O caminho B
fica então dividido em duas etapas, B1 e B2, que unidas realizam a mesma
transformação no sistema que o caminho A.
O caminho REV é radicalmente diferente dos caminhos A e B porque por ele o sistema
nunca sai do equilíbrio. Supõe-se que a pressão externa diminui pelo caminho REV em
quantidades diminutas, extremamente pequenas, infinitesimais, como se retirassem de
cima do êmbolo, um por vez, grãozinhos de areia de tamanho desprezível, tão
pequenos que é com se não existissem; resultam disso mudanças tão pequenas, que
são necessárias infinitas delas para diminuírem a pressão de 1 para 0,5 atm; tão
pequenas que o sistema nunca sai do equilíbrio. Esse tipo de modo de transformação
é chamado de REVERSÍVEL, usando o significado termodinâmico do termo. Os modos A
e B são IRREVERSÍVEIS, porque o sistema assume estados fora do equilíbrio entre os
estados inicial e final.
Apenas uma observação: podemos dizer que o caminho B é MENOS irreversível que o
caminho A, já que o B tem pelo menos 1 estado intermediário no equilíbrio.
Pressão = 1 atm
Volume = 24,4 L
Temperatura = 298 K
número de mols = 1
Pressão = 0.5 atm
Volume = 48.8 L
Temperatura = 298 K
número de mols = 1
Gás Ideal
{
REV
no equilíbrio
no equilíbrio
Gás Ideal
Durante a transformação
sistema sempre no EQUILÍBRIO
A distinção entre processos reversível e irreversível tem consequências fundamentais
para os conceitos de entropia e energia livre de Gibbs. Antes, no entanto, vamos
considerar um pouco mais cálculos de calor e trabalho.
Cálculos de calor e trabalho
Para calcular o trabalho e o calor associados a cada modo de transformação deve-se
perceber primeiro que por se tratar de um sistema fechado composto por gás ideal, a
energia só depende da temperatura. Se ela não muda a energia interna não muda.
Portanto
E
0
Como
dE
0
q w para pequenas mudanças, ou
Q W e daí Q
E
Q W para mudanças grandes.
W para sistemas em transformações isotérmicas, como os
que estamos analisando.
Para os modos irreversíveis calculamos o trabalho como
WIR
Pop * V
e daí
QIR
Pop * V
para modos reversíveis o trabalho é
WR
n * R * T * ln
Chegamos aos seguintes valores:
V2
V1
e
QR
n * R * T * ln
V2
V1
Calculando W e Q para os caminhos das transformações A, B1, B2 e REV (e para os caminhos inversos Avolta, B1volta, B2volta e REVvolta)
temos:
estado INICIAL
Transformação
n
T
P
estado FINAL
V
n
T
P
V
Q
W
tipo
fórmula
A
1
298
1
24.4
1
298
0.5
48.8
+1236
-1236 Irreversível
Q=Pop* V
B1
1
298
1
24.4
1
298
0.85
28.75
+374.6
-374.6 Irreversível
Q=Pop* V
B2
1
298
0.85
28.75
1
298
0.5
48.8
+1015.8
-1015.8 Irreversível
Q=Pop* V
REV
1
298
1
24.4
1
298
0.5
48.8
+1717.3
-1717.3
Avolta
1
298
0.5
48.8
1
298
1
24.4
-2472
+2472 Irreversível
Q=Pop* V
B1volta
1
298
0.85
28.75
1
298
1
24.4
-440.8
+440.8 Irreversível
Q=Pop* V
B2volta
1
298
0.5
48.8
1
298
0.85
28.75
-1727
+1727 Irreversível
Q=Pop* V
REVvolta
1
298
0.5
48.8
1
298
1
24.4
-1717.3
+1717.3
Reversível Q=n*R*T*ln(Vf/Vi)
Reversível Q=n*R*T*ln(Vf/Vi)
Percebe-se que os valores de Q e W são diferentes para os caminhos A, B (soma de B1 e B2) e REV,
apesar de todos os três tirarem o sistema do mesmo lugar e levá-lo ao mesmo outro lugar. Isso mostra
apenas que Q e W não são propriedades do sistema, não dependem apenas dos estados final e inicial do
sistema como dependem todas as variações de propriedades do sistema. Por isso nunca escrevemos “ Q”
ou “ W”, pois há infinitos valores possíveis de Q e W, como há infinitos caminhos, para transformações
com os mesmos estados 1 e 2.
Mais importante que isso: quando consideramos a “ida” e a “volta”, supondo o sistema indo pelo caminho
A e voltando pelo caminho Avolta, nada muda no sistema, já que o estado final acabou sendo exatamente
o mesmo estado inicial. Mas somando os valores de Q e os valores W de A com Avolta temos Q(A +
Avolta)=-1236J e W(A+Avolta)=+1236J. Para as transformações B e Bvolta (ou seja B1 + B2 e B1volta +
B2volta), Q(B + Bvolta)=-777.4J e W(B+Bvolta)=+777.4,4J. Tais valores mostram que apesar de para o sistema
tudo ter voltado ao que era antes, já que ele voltou ao mesmo ponto inicial do qual havia saído, parece
que algo mudou no ambiente, pois é como se o sistema tivesse recebido (sinal positivo, indicando que
entrou no sistema) 1236 J de trabalho pelo caminho A + Avolta e devolvido (sinal negativo, indicando
que saiu do sistema) ao ambiente 1236 J de calor. Pelo caminho B + Bvolta acontece coisa semelhante,
apenas os valores são menores: 777,4 J de trabalho recebido do ambiente, e devolvido ao ambiente a
mesma quantidade em forma de calor.
Para o caso da transformação REV algo diferente ocorre: somando-se os valores de Q e W para a ida pelo
caminho REV e a volta pelo caminho REVvolta chegamos a ZERO. Pelo caminho de ida e volta
reversíveis nada muda NEM no sistema NEM no ambiente.
Se houvesse (e há!) no ambiente um estoque de energia na forma de trabalho que pode ser transformado
em energia na forma de calor, isso ocorreria toda vez que um sistema se transformasse de modo
irreversível. O estoque de energia na forma de trabalho seria preservado toda vez que o sistema se
transformasse de modo reversível.
Para tentar se avançar nesse conceito de “estoque de energia na forma de trabalho” foi definida uma nova
propriedade do sistema: a entropia (símbolo S).
Definição de entropia: dS
qrev
ou, na forma integrada para processos isotérmicos
T
S
Qrev
T
onde Qrev é o calor associado a processos reversíveis.
Podemos calcular com essa definição de modo imediato a variação de entropia do sistema que passa pelo
caminho REV pois o calor associado é exatamente o calor reversível. Para as outras tranformações que
são irreversíveis, NÃO podemos usar o valor do calor pois ele é resultado de um processo irreversível.
No entanto, como a entropia é uma propriedade do sistema ela depende apenas dos estados final e inicial.
Podemos calcular a variação de entropia do sistema para qualquer transformação SE pudermos imaginar
um caminho REVERSÍVEL que leve o sistema do mesmo estado inicial ao mesmo estado final da
transformação irreversível que de fato ocorreu. A variação de entropia do sistema para a transformação A
será a mesma variação de entropia do sistema para a transformação REV pois as duas têm estados finais e
iniciais iguais. O mesmo acontece para as transformações REVvolta e Avolta. Para as transformações
B1, B2, B1volta e B2volta, precisamos imaginar um caminho reversível, o que, em última análise, levará
apenas à troca da fórmula utilizada para o cálculo de trabalho.
Se as transformações B1, B2, B1volta e B2volta tivessem ocorrido de modo reversível o calor associado
seria chamado de calor reversível, e poderia ser determinado por
QR
n * R * T * ln
V2
.
V1
Daí o cálculo da variação de entropia do sistema para as transformações B1, B2, B1volta e B2volta é
direto.
Mas como podemos fazer isso, imaginar um caminho reversível, determinar o calor, dividir por T, e dizer
que aquela variação de entropia do sistema é a correta, se o sistema de fato se modificou de modo
IRREVERSÍVEL?
Podemos porque entropia é uma propriedade do sistema e só depende dos estado final e inicial. Ao
supormos um caminho reversível para as transformações B1, B2, B1volta e B2volta, apenas mudamos o
caminho, e mantivemos os estados final e inicial que de fato foram assumidos.
Cálculos de variação de entropia do ambiente e do universo: a energia
livre de Gibbs.
Mas o que dizer da variação de entropia do ambiente? Como podemos calculá-la?
O ponto essencial aqui é relembrar um modo de expressarmos o conceito de reversibilidade: uma
mudança feita em etapas tão pequenas que é como se não existissem. Quando consideramos o ambiente
como o resto do universo, menos o sistema, estamos na verdade considerando o ambiente como infinito.
Já que o universo é infinito, tirando qualquer quantidade finita (o sistema, por maior que ele seja) o que
sobra (ambiente) ainda é infinito. Daí, e esse é o ponto fundamental, qualquer quantidade de calor que o
sistema troque com o ambiente, essa quantidade será diminuta para o ambiente, tão diminuta que é como
se não existisse para o ambiente. Concluímos que mesmo quando o sistema sofre transformações
irreversíveis, o calor trocado com o ambiente é para o ambiente, um calor reversível e pode portanto ser
usado para se calcular a variação de entropia do ambiente.
Chegamos à conclusão que a variação de entropia do ambiente depende do caminho do sistema! Se o
sistema percorre um caminho mais próximo ou mais distante da reversibilidade, a variação de entropia do
sistema é a mesma, mas a do ambiente varia. Podemos dizer que a entropia não é uma propriedade do
ambiente.
Mas por que calcular a variação de entropia do ambiente? Porque nela se baseia toda a argumentação da
Terceira Lei da Termodinâmica, que diz que
a entropia de um sistema isolado sempre aumenta à medida que o sistema sofre transformações
reais.
S universo 0
A variação de entropia do universo pode ser expressa por
S universo
S ambiente
S sistema
e a segunda lei diz que será sempre maior que zero em
transformações reais.
Veja se isso se aplica às transformações discutidas acima.
Transformação
Qrev
Ssistema
QIrrev
A
+1717.3
+5.763
+1236
-4.148
1.615
B1
+406.45
+1.364
+374.6
-1.257
0.107
B2
+1310.9
+4.399 +1015.8
-3.409
0.99
Rev
+1717.3
+5.763 +1717.3
-5.763
0
A volta
-1717.3
-5.763
-2472
8.295
2.532
B1 volta
-406.45
-1.364
-440.8
1.479
0.115
B2 volta
-1310.9
-4.399
-1727
5.795
1.396
Rev volta
-1717.3
-5.763
-1717.3
5.763
0
Sambiente
Suniverso= Sambiente+ Ssistema
Apenas as transformações reversíveis resultam numa variação de entropia do universo igual a zero. Mas,
lembremos, as transformações reversíveis são ideais, não existem no mundo real. Um ponto que merece
atenção é que mesmo em processos irreversíveis não-cíclicos a variação de entropia do universo é sempre
positiva. Nos processos irreversíveis cíclicos a variação de entropia do sistema é zero, mas a do ambiente
é maior que zero e responde por toda a variação de entropia do universo.
Agora nos distanciamos da situação geral e nos aproximamos de um tipo específico de transformação real
que ocorre a temperatura e pressão constantes. Esses são os tipos que nos interessam pois aplicamos,
muito justificadamente, a aproximação de temperatura e pressão constantes às transformações do
organismo vivo. Nesses tipos de transformação o calor trocado com o ambiente pode ser chamado de Qp
e é equivalente ao H. Esse valor não pode ser utilizado para o cálculo de entropia do sistema que se
transforma, pois é um calor real irreversível. No entanto esse calor é para o ambiente um calor reversível
e pode ser usado para calcular a variação de entropia do ambiente; basta dividirmos por T . O H do
sistema é igual a H do ambiente com o sinal trocado, já que o calor perdido pelo sistema é ganho pelo
ambiente ( Hsistema<0 e Hambiente>0), ou o calor ganho pelo sistema é perdido pelo ambiente ( Hsistema>0
e Hambiente<0). Daí
H sistema
T
S ambiente
e a fórmula
S universo
S ambiente
S universo
H sistema
T
S sistema
pode ser alterada para
S sistema
Multiplicando por ( –T ) temos
T * S universo
H sistema T * S sistema
Chamamos o termo –T* Suniverso de Variação de Energia Livre de Gibbs do sistema e chegamos à
fórmula
Gsistema
H sistema T * S sistema
Quando dizemos que todos os processos reais, espontâneos, irreversíveis (todos são sinônimos!) a T e P
constantes, levam o sistema a uma diminuição da energia livre de Gibbs ( Gsistema<0), estamos no fundo
dizendo que em todos eles a entropia do universo aumenta.
Mais que isso: a variação da energia livre de Gibbs é uma medida de quão irreversível é o processo.
Quanto mais irreversível, maior a queda da energia livre de Gibbs, maior a elevação da entropia do
universo. Podemos dizer também que a variação de energia livre de Gibbs do sistema mede a distância
que o sistema está do equilíbrio.
Vemos portanto como estão intimamente ligados os conceitos de reversibilidade/irreversibilidade
termodinâmicos, entropia e energia livre de Gibbs.
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