Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde Rio de Janeiro, v.1, n.1, jan.-jun. 2007 http://www.reciis.cict.fiocruz.br ISSN 1981-6278 Rio de Janeiro, v.1, n.1, jan.-jun. de 2007 ISSN 1981-6278 Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT) Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Ministério da Saúde Av. Brasil 4.365 – Pavilhão Haity Moussatché – Manguinhos – Rio de Janeiro – CEP: 21.040-900 www.reciis.cict.fiocruz.br Editor Científico Carlos Saldanha (ICICT/FIOCRUZ) Editores de Seção Artigos originais Álvaro Matida (ABRASCO) Bianca Cortes (COC/FIOCRUZ) Carlos Freitas (ENSP/FIOCRUZ) Carlos Saldanha (ICICT/FIOCRUZ) Francisco Bastos (ICICT/FIOCRUZ) Márcia Teixeira (EPSJV/FIOCRUZ) Pesquisas em Andamento Álvaro Matida (ABRASCO) Bianca Cortes (COC/FIOCRUZ) Brani Rozemberg (ENSP/FIOCRUZ) Christovam Barcellos (ICICT/FIOCRUZ) Katia Lerner (ICICT/FIOCRUZ) Avanços Tecnológicos Carlos Saldanha (ICICT/FIOCRUZ) Claudia Chamas (IOC/FIOCRUZ) Frederico Freitas (CIn/UFPE) Laura Viana (VPPDT/FIOCRUZ) Maria da Costa (DPCT/IG/UNICAMP) Olga Nabuco (DGE/CENPRA) Artigos de Revisão Brani Rozemberg (ENSP/FIOCRUZ) Carlos Saldanha (ICICT/FIOCRUZ) Christovam Barcellos (ICICT/FIOCRUZ) Katia Lerner (ICICT/FIOCRUZ) Márcia Teixeira (EPSJV/FIOCRUZ) Maria da Costa (DPCT/IG/UNICAMP) Resenhas Carlos Saldanha (ICICT/FIOCRUZ) Cartas Luiza Rosângela (ICICT/FIOCRUZ) Ensaios Carlos Saldanha (ICICT/FIOCRUZ) Conselho Editorial Alan Radley Loughborough University, Loughborough; Hiroko Yamane National Graduate Institute for Policy Maurice Cassier Centre National de la Recherche Editor chefe do Journal Health: An Interdisciplinary Journal for the Social Study of Health, Illness and Medicine – Reino Unido Studies, Tóquio – Japão Scientifique, Institut National de la Santé et de la Recherche Medicale, Paris – França Inesita de Araújo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro – Brasil Nelly Oudshoorn University of Twente, Twente - Hol- Andre Parente Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro - Brasil Joan Fujimura University of Wisconsin-Madison, Mad- Paulo Elias Universidade de São Paulo, São Paulo Antonio Fausto Neto Universidade do Vale do Rio dos Sinos – São Leopoldo, Rio Grande do Sul – Brasil ison, Wisconsin – Estados Unidos – Brasil Joanna Chataway The Open University, Walton Hall, Arie Rip University of Twente, Twente – Holanda Milton Keynes – Reino Unido Benoît Godin University of Québec, Québec – Canadá João Arriscado Universidade de Coimbra, Coimbra Peter Ganea Munich Intellectual Property Law Center; Max Planck Institute for Intellectual Property, Competition and Tax Law, Munique – Alemanha Blaise Cronin Indiana University; Editor of Annual Re- – Portugal anda Pierre Tambourin Institut National de la Santé et de la Recherche Medicale; Genopole, Paris – França view of Information Science and Technology, Bloomington, Indiana – Estados Unidos Jorge Veiga Instituto de Salud Carlos III, Madri – Es- Carlos Morel Centro de Desenvolvimento Tecnológico José Bassani Universidade Estadual de Campinas, em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro – Brasil Kanikaram Satyanarayana Indian Council of Medical Christer Hogstedt National Institute of Public Health, Research, Nova Delhi – Índia Stockholm – Suécia Kathy Charmaz Sonoma State University, Rohnert Domique Pestre Centre Alexandre Koyré, Muséum Park, Califórnia – Estados Unidos National d’Histoire Naturelle; Centre National de la Recherche Scientifique, Paris – França Léa Velho Universidade Estadual de Campinas, Campi- Milwaukee, Wisconsin – Estados Unidos nas, São Paulo – Brasil Eduardo Albuquerque Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais – Brasil Sandra Harding University of California, Los Angeles, Lita Nelsen Massachusetts Institute of Technology, Califórnia – Estados Unidos Boston, Massachusetts – Estados Unidos Sarita Albagli Instituto Brasileiro de Informação em Emily Martin New York University, New York – Estados Loet Leydesdorf University of Amsterdam, Amsterdã Ciência e Tecnologia, Rio de Janeiro – Brasil – Holanda Sérgio Pena Universidade Federal de Minas Gerais; Luigi Palombi The Australian National University, Camberra – Austrália Laboratório GENE - Núcleo de Genética Médica de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais – Brasil Madel Luz Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Soraya Cortes Universidade Federal do Rio Grande do Unidos Emir Suaiden Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia; Universidade de Brasília, Brasília – Brasil Everardo Nunes Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo – Brasil Francisco Bastos Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro – Brasil Geoffrey Bowker Santa Clara University, Califórnia – Estados Unidos panha Campinas, São Paulo – Brasil Pierre Lévy Royal Society of Canada; University of Ottawa, Ottawa – Canadá Reinaldo Guimarães Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde, Brasília – Brasil Rita Barata Santa Casa de São Paulo, São Paulo – Brasil Sandra Braman University of Wisconsin-Milwaukee, Rio de Janeiro – Brasil Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul – Brasil Maged Kamel Boulos University of Plymouth; Editor- Terry Shinn Centre National de la Recherche Scientifi- in – Chief of International Journal of Health Geographics, Plymouth – Reino Unido Timothy Lenoir Duke University, Durham, Carolina do Manuel Limonta Institute of Hematology and Immunology, Havana – Cuba Walter Zin Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio que, Paris - França Norte – Estados Unidos Márcia Teixeira Escola Politécnica de Saúde Joaquim de Janeiro – Brasil Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro – Brasil Walter Colli Universidade de São Paulo, São Paulo Carlos Vogt Presidente da Fundação de Amparo à Pes- João Aprígio Coordenador do Banco de Leite / Institu- quisa do Estado de São Paulo, São Paulo, Brasil to Fernando Figueira / Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil Paulo Gadelha Vice-Presidente de Desenvolvimento Institucional e Gestão do Trabalho da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil Hector Abreu Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro – Brasil – Brasil Conselho Consultivo Local Cecília Minayo Coordenadora Científica do Centro Latino-Americano de Estudos da Violência e Saúde Jorge Careli / Escola Nacional de Saúde Pública / Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil Cícera da Silva Coordenadora Adjunta do Curso de Especialização do ICICT / Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil José Carvalheiro Vice-Presidente de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil Moyses Goldbaum Professor do Departamento Medicina Preventiva / Faculdade de Medicina / Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Ricardo Ceccim Professor de Educação em Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil Tânia de Araújo Jorge Diretora do Instituto Oswaldo Cruz / Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil Produção Editorial Secretaria Executiva Jacqueline Thompson (ICICT/FIOCRUZ) Luiza Silva (ICICT/FIOCRUZ) Rodrigo Ferrari (ICICT/FIOCRUZ) Revisão (Inglês) Andrew L. Smith Editoração Eletrônica Rodrigo Murtinho (ICICT/FIOCRUZ) Assistentes do Editor Ana Filipecki (EPSJV/FIOCRUZ) Helena Klein (ICICT/FIOCRUZ) Preparação dos originais Helena Klein (ICICT/FIOCRUZ) Jacqueline Thompson (ICICT/FIOCRUZ) Tradução e Versão (Português-Inglês) Positive Idiomas Concepção do Layout da Home Page Carlos Saldanha (ICICT/FIOCRUZ) Jacqueline Thompson (ICICT/FIOCRUZ) Mauro Campello (ICICT/FIOCRUZ) Assistentes de Editores de Seção Ana Filipecki (EPSJV/FIOCRUZ) Helena Klein (ICICT/FIOCRUZ) Jacqueline Thompson (ICICT/FIOCRUZ) Josué Laguardia (ICICT/FIOCRUZ) Rejane Machado (ICICT/FIOCRUZ) Rodrigo Murtinho (ICICT/FIOCRUZ) Normalização Rejane Machado (ICICT/FIOCRUZ) Revisão (Português) Carlos Saldanha (ICICT/FIOCRUZ) Helena Klein (ICICT/FIOCRUZ) Jacqueline Thompson (ICICT/FIOCRUZ) Gestão Administrativa Maria da Conceição Rodrigues de Carvalho (ICICT/FIOCRUZ) Diagramação Letra e Imagem Editora Ltda Capa Luiza Silva (ICICT/FIOCRUZ) Mauro Campello (ICICT/FIOCRUZ) Realização do Layout da Home Page Mauro Campello (ICICT/FIOCRUZ) Desenvolvedor Web e Suporte Técnico Marcus Vinicius Lobato Lessa (ICICT/ FIOCRUZ) Sumário Editorial A arena da saúde na dinâmica do tempo presente ......................................................................... 5 Carlos José Saldanha Machado Artigo original Avaliação do Sistema de Pesquisa em Saúde do Brasil: algumas características dos pesquisadores e produção científica .................................................. 9 José Noronha, Telma Ruth da Silva, Fernando Szklo, Rita Barradas Barata A iniciativa Open Access no acesso à informação técnico-científica nas ciências da saúde ......... 19 Javier Sanz Valero, Jorge Veiga de Cabo e Luis D. Castiel A cultura colaborativa e a criatividade destrutiva da Web 2.0: aplicativos para o ensino da medicina ............................................................................................ 27 Steve Wheller e Maged N. Kamel Boulos A complexa dinâmica da divulgação científica. O caso da Revista Ciência & Saúde Coletiva ............ 35 Maria Cecília de Souza Minayo A cultura na organização hospitalar e as políticas culturais de coordenação de comunicação e aprendizagem ........................................................................ 45 Elói Martins Senhoras Pesquisa clínica no Japão: caminhos para aliviar cargas regulatórias desnecessárias .................. 57 Koji Kawakami e Hiroko Yamane Registro de ensaios clínicos: a discussão internacional e os posicionamentos possíveis para o Brasil .................................................................................. 63 José da Rocha Carvalheiro e Cristiane Quental TRIPS, bilateralismo e patentes: o desapontamento dos mundos desenvolvido e em desenvolvimento e o que fazer ........................................................................ 71 Luigi Palombi Propriedade intelectual e saúde pública: a cópia de medicamentos contra HIV/Aids realizada por laboratórios farmacêuticos brasileiros públicos e privados ................................... 83 Maurice Cassier e Marilene Correa Metodologia de pesquisa-ação na área de gestão de problemas ambientais .............................. 93 Michel Thiollent e Generosa de Oliveira Silva Rede e subjetividade na filosofia francesa contemporânea .......................................................... 101 André Parente Pesquisas em andamento As organizações de pacientes como atores emergentes no espaço da saúde: o caso de Portugal ..................................................................................... 107 João Nunes Arriscado, Marisa Matias e Ângela Marques Filipe O luto na agenda das equipes multiprofissionais de oncologia e cuidados paliativos: apresentação de um Programa de Assistência a Familiares na Universidade Federal de São Paulo ..................................................................... 111 João Paulo Consentino Solano, Marcela Alice Bianca e Renata Moraes Ferreira Integração de ontologias: o domínio da bioinformática e a problemática da compatibilização terminológica ................................................................. 117 Maria Luiza de Almeida Campos Cooperação internacional e bioprospecção no Brasil e no Peru ................................................. 123 Camila Carneiro Dias e Maria Conceição da Costa Avanços tecnológicos Abrir o espaço semântico em prol da inteligência coletiva .......................................................... 129 Pierre Lévy Ontologias e tecnologias da informação e comunicação: sistemas especialistas, Web semântica e gestão integrada de compras governamentais eletrônicas ........................... 141 Laura Viana, Olga Nabuco e Carlos Saldanha Artigos de revisão Inovação e sistemas de inovação: relevância para a área de saúde ............................................ 153 Helena M. M. Lastres e José Eduardo Cassiolato Ensaios Gênero, democracia e filosofia da ciência ..................................................................................... 163 Sandra Harding Resenhas The Challenge of Scientometrics, Loet Leydesdorff .................................................................... 169 Por Lea Velho The Knowledge-based Economy: modeled, measured, simulated , Loet Leydesdorff ..................... 173 Por Lia Hasenclever e Evaldo H. Silva [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Editorial A arena da saúde na dinâmica do tempo presente Carlos José Saldanha Machado Editor Científico da RECIIS [email protected] Caros leitores, sejam bem-vindos à RECIIS, um espaço acadêmico virtual de debates, reflexões, conexões e interconexões de idéias entre profissionais oriundos de instituições diversas e singulares. A RECIIS é uma revista eletrônica de acesso livre voltada para o compartilhamento e divulgação da produção científica que aborda as várias dimensões da dinâmica da arena da saúde, dimensões relacionadas às questões da comunicação, da informação e da inovação científica e tecnológica, numa perspectiva multidisciplinar e transnacional. As várias dimensões da saúde a serem comentadas a seguir serão desenvolvidas ao longo de cinco seções que estruturam a RECIIS: Artigos Originais, Artigos de Revisão, Pesquisas em Andamento, Avanços Tecnológicos e Ensaios. As outras três seções são Editorial, Cartas e Resenhas. Ao longo das últimas décadas, a evolução do conceito de saúde tem sido uma decorrência de avanços científicos e tecnológicos, estudos empíricos, reflexões teóricas, embates políticos e vivências que foram pouco a pouco sendo apropriadas pelo conjunto das sociedades ocidentais, englobando questões referentes ao ambiente, ao grau de desenvolvimento sócio-cultural, à possibilidade de renda e trabalho, à redução da violência, à organização dos transportes urbanos, entre outros, superando o conceito originário de saúde que desencadeou as ações tradicionais da saúde pública1 (MEADE and EARINCKSON, 2000; SACHS, 2001; WHO, 2004). Hoje, o nível de saúde das pessoas reflete a maneira como vivem, numa interação dinâmica entre potencialidades individuais e condições de vida. Não se pode compreender ou transformar a situação de uma pessoa ou de uma coletividade sem levar em conta que ela é produzida nas relações com o meio físico, social e cultural. Falar de saúde implica, portanto, levar em conta, por exemplo, a qualidade do ar que se respira e da água que se bebe, o consumismo desenfreado e a miséria, a degradação social e ambiental, a desnutrição e a hipernutrição, as formas de inserção das diferentes parcelas da população no mundo do trabalho, os sistemas de classificação que organizam a realidade, os estilos de vida pessoal, o acesso às inovações de processos, produtos e serviços, os regimes de produção e de regulação dos conhecimentos científicos e tecnológicos, as questões de gênero e ciência e a onipresença da mudança nas sociedades contemporâneas. Mas, ao mesmo tempo, saúde é uma palavra que designa um espaço de ações, práticas e atividades públicas e privadas desenvolvidas por atores heterogêneos organizados em redes com extensão e topologia variada, uma arena de disputas ideológicas, utópicas, políticas, econômicas e técnico-científicas expressas em inúmeros conceitos inter-relacionados, com maior ou menor grau de aceitação, tais como, “atenção primária em saúde”, “promoção da saúde”, “educação em saúde”, “saúde ambiental”, “saneamento ambiental”, “sistemas de saúde”, “avaliação tecnológica em saúde”, “sistemas de inovação em saúde”.... A complexidade desta arena, que varia RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.5-7, jan.-jun., 2007 5 no espaço geográfico e no tempo histórico, inclui hoje do capitalismo industrial às populações nativas, sejam indígenas, camponesas ou extrativistas, passando por movimentos sociais urbanos e rurais, por comunidades acadêmicas, igrejas, sindicatos, associações, organizações não-governamentais, fundações públicas e privadas, agências de cooperação e agências multilaterais como o Banco Mundial, a Organização Mundial de Saúde, o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Na arena da saúde, a comunicação e informação desempenham um papel central, uma função estratégica como insumo essencial para a tomada de decisões diversas e o exercício da cidadania. Face à complexidade cada vez maior dos problemas enfrentados pelas ciências, pelas tecnologias, pela gestão dos serviços do Estado e pelo seu controle social, surgem novos modos de produzir conhecimentos, de tratá-los e de divulgá-los, como a Internet, por exemplo, impondo às instituições, sobretudo públicas, a constante atualização de formas de gestão da informação e da comunicação e do uso das tecnologias associadas (BRAMAN, 2007; SILVA e MELO, 2001; THE ROYAL SOCIETY, 2006). Como decorrência da insofismável dimensão antropológica da comunicação e da informação, isto é, a visão de mundo incorporada nos processos comunicacionais e informacionais, não há lugar na arena da saúde para uma concepção redutora da comunicação e da informação às suas tecnologias. Com nos lembra WOLTON (1997), a comunicação é provavelmente uma das atividades humanas em relação à qual o homem menos se distancia, uma vez que é diretamente constitutiva da sua relação com o mundo. Comunicação nesta arena, mas não exclusivamente nela, envolve grandes fluxos de informação e discursos que concorrem para a construção e a transformação de sentidos sociais a partir dos processos de divulgação científica e do uso de sistemas tecnológicos como a imprensa escrita, o rádio, a televisão e a Internet para informar sobre saúde, ciência, tecnologia e inovação, mas não se reduz a nenhum deles. Uma vez que não há democracia sem comunicação, a comunicação transcende o esquema funcionalista do emissor/receptor, em direção a dimensões da interlocução, da busca do diálogo articulado com outros processos sociais, como o da educação e da popularização da ciência, compartilhados e mediados pelos meios de comunicação, mas não determinados apenas por eles. Informação e comunicação são, portanto, inseparáveis porque, ainda segundo WOLTON (1997), se a primeira tem como objetivo dar forma ao mundo, dar conta dos acontecimentos, dos fatos e contribuir diretamente para o funcionamento de sociedades complexas, a segunda se constitui como o meio de difundir essas informações e de construir as representações. No cenário mundial, as políticas e estratégias setoriais de comunicação e informação encontram-se no eixo central das possibilidades de geração de novos processos e produtos, e de mudanças nos modelos institucionais de gestão e nas relações internacionais (MODY, 2003; MOWLANA, 1997). Mais do que nunca é nos processos de comunicação e informação que tem início e desdobramento a maioria das ações na saúde pública, 6 nas ciências da vida (BAKER and CHEUNG, 2007) e no desenvolvimento tecnológico para a saúde (HACHE, 2005; THE ROYAL SOCIETY, 2006). Como os sistemas tecnológicos se tornam mais integrados, mais atualizados e maiores, o desenvolvimento tecnológico se torna mais complexo, dependente da pesquisa em inúmeras áreas, de tal forma que o processo de desenvolvimento não se dá em seqüência, nem obviamente, a partir de um conjunto claro de projetos de pesquisa. O desenvolvimento de um determinado produto ou tecnologia depende da pesquisa em muitas disciplinas, e a pesquisa em disciplinas como, por exemplo, a bioinformática, a genômica, a proteômica e a vacinologia, além de tantas outras, alimenta inúmeros desenvolvimentos tecnológicos. A progressão da idéia à pesquisa até à aplicação tecnológica não é mais linear apenas, também ocorre muito mais rápida do que há apenas vinte anos atrás. Sob estas novas circunstâncias, a tradicional distinção entre pesquisa pura e pesquisa aplicada fica desprovida de fundamentação empírica quando se olha a tradução para os campos biotecnológicos e biomédicos e os avanços científicos exponenciais nas ciências da vida. Por exemplo, as biotecnologias se constituem num conjunto de técnicas, métodos e procedimentos utilizando sistemas biológicos para desenvolver novos produtos, procedimentos e/ou serviços através de colaborações entre pesquisadores de diferentes disciplinas com a biologia, a física, a matemática e a informática, localizados em instituições e países diversos. Recentemente, tornou-se lugar comum dizer que as ciências, as tecnologias e as inovações terão uma importância crescente no bem-estar de todas as pessoas, sobretudo porque assumiram o lugar do motor da história e da economia. Ninguém pode negar a incrível penetração que as tecnologias da informação e da comunicação, os novos materiais e as biotecnologias (diagnóstico molecular, terapia gênica, terapia celular, vacinas recombinantes, regeneração de órgãos pelas células-tronco etc.) passaram a ter em nossas vidas. Embora a conversão das ciências e das tecnologias em produtos comerciais que atendem às necessidades das sociedades seja dominada amplamente pelo setor privado, o setor público tem seu papel a desempenhar, sobretudo quando se constata a coexistência entre grandes avanços tecnológicos e ampliação e diversificação das desigualdades sociais entre nações e, no interior de cada uma, entre regiões, classes e grupos sociais (GOBAL FORUM FOR HEALTH RESEARCH, 2002; MEADE et al., 2000; SACHS, 2001; UN MILLENNIUM PROJECT, 2005; WHO, 2004). É com alegria, satisfação, esperança e otimismo que termino a apresentação deste número inaugural da RECIIS, dando ênfase em três idéias-chave que poderiam ser aqui enunciadas da epistemologia subjacente a esse novo espaço editorial, financiado inteiramente pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz2: primeiro, a multiplicidade do real, inesgotável, impede a unidade de um saber totalizante; segundo, a complexidade do objeto saúde a ser conhecido é irredutível a uma decomposição em elementos simples e, finalmente, o objeto saúde a ser RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.5-7, jan.-jun., 2007 conhecido é uma realidade dinâmica irredutível a uma estrutura estática. de recursos humanos, prestação de serviços, produção e gestão para solucionar os problemas nacionais de saúde pública (FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ, 2007). Muito obrigado a todos(as) aqueles(as) que se escondem por detrás desse nome de Editor por tornarem possível o nascimento da RECIIS em apenas cinco meses de trabalho. Aguardamos agora as respostas dos nossos leitores e esperamos que se sintam encorajados a submeterem seus trabalhos aos futuros números da RECIIS. Referências bibliográficas Notas FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Relatório de Atividades. Rio de Janeiro: FIOCRUZ. 2007. 1. No Brasil, essa “nova complexidade” é anunciada na Constituição da República de 1988, em seus artigos 196 e 198 Artigo 196 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação; Artigo 198 - As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da comunidade. 2. Vinculada ao Ministério da Saúde, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) tem como missão gerar, absorver e difundir conhecimentos científicos e tecnológicos em saúde, por meio do desenvolvimento integrado de pesquisa, ensino, informação, serviços e produção de bens. Seu objetivo é proporcionar apoio estratégico ao Sistema Único de Saúde (SUS) e contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população e para o exercício pleno da cidadania. Criada pelo poder público em 1900, a Fiocruz fundamenta-se na primazia da atividade experimental. A instituição une ciência, tecnologia, formação BRAMAN, S. Change of State: Information, Policy, and Power. Cambridge, MA: The MIT Press, 2007. GLOBAL FORUM FOR HEALTH RESEARCH. 10/90 Report on Health Research 2001-2002. Geneva: Global Forum on Health Research, 2002. MEADE, M. S.; EARICKSON, R. J. Medical geography. 2nd ed. New York: The Guilford Press, 2000. MODY, B. (Ed.). International and Development Communication: A 21st-Century Perspective. London: Sage, 2003. MOWLANA, H. Global Information and World Communication: New Frontiers in International Relations. London: Sage, 1997. SACHS, J. D. Macroeconomics and Health: Investing in Health for Economic Development. Geneva: World Health Organization, 2001. UN Millennium Project. Innovation: Applying Knowledge in Development. Task force on Science, Tecnology and Innovation, 2005. WHO. World Report on Knowledge for a Better Health: Strengthening Health Systems. Geneva: World Health Organization, 2004. WOLTON, D. Penser la communication. Paris: Flammarions, 1997. Sobre o editor Carlos José Saldanha Machado Doutor em Antropologia Social pela Université Paris V – Sciences Humaines Sorbonne, mestre em Ciências da Engenharia de Produção (área de Política de Ciência e Tecnologia) pela Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, (1) na Fundação Oswaldo Cruz, é Pesquisador em Ciência e Tecnologia e Chefe do Laboratório de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde; (2) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é professor do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente (Doutorado) responsável pela disciplina “Política Ambiental Brasileira”; (3) no Ministério da Educação, é Avaliador Institucional e de Cursos do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior. Atua na área de sociologia e antropologia, com ênfase: nos estudos sociais da ciência, da tecnologia e da inovação em saúde; na gestão da pesquisa em saúde; nas políticas públicas de meio ambiente e saúde. Publicou, ao longo dos últimos 5 anos 4 livros e inúmeros artigos no Brasil. Seus novos projetos incluem pesquisas sobre: o novo regime de produção e de regulação do conhecimento científico e tecnológico em biomedicina; as mudanças recentes na configuração da biociência, especialmente nas infra-estruturas de produção do conhecimento; a transposição local de modelos internacionais de organização da pesquisa em biomedicina; a política de ciência, tecnologia e inovação em saúde da Fundação Oswaldo Cruz. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.5-7, jan.-jun., 2007 7 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Artigos originais Avaliação do sistema de pesquisa em saúde do Brasil: algumas características dos pesquisadores e produção científica1 Telma Ruth da Silva Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, Brasil [email protected] Fernando Szklo Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, São Paulo, Brasil Rita Barradas Barata Departamento de Medicina Social, Faculdade de Ciências Médicas, Santa Casa, São Paulo, Brasil [email protected] José Carvalho de Noronha Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde/FIOCRUZ, Rio de Janeiro, Brasil [email protected] Resumo O artigo descreve algumas características de pesquisadores e a produção científica no campo da saúde. Os dados foram obtidos através de inquérito realizado com amostras de 180 pesquisadores sorteados dentre os líderes de grupos de pesquisas cadastrados no diretório de pesquisa do CNPq. Os entrevistados, em comparação ao total de pesquisadores dos diretórios de pesquisa do CNPq, apresentaram mediana de idade mais alta, distribuição por sexo semelhante e formação acadêmica semelhante. Foram observadas diferenças salariais segundo a área de atuação. A produção científica restringe-se praticamente aos ambientes acadêmicos e vem crescendo acentuadamente. A formação e titulação acadêmica vêm ocorrendo no país, atuando como elemento-chave no crescimento e aprimoramento da pesquisa em saúde. Palavras-chave Política científica, pesquisadores, produção científica, sistema de pesquisa em saúde, política de pesquisa em saúde RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.9-18, jan.-jun., 2007 9 Introdução Uma série de documentos elaborados por agências internacionais de cooperação têm destacado a importância do sistema de ciência e tecnologia em saúde para a obtenção dos objetivos dos sistemas nacionais de saúde. Segundo a perspectiva vigente, o conhecimento científico e tecnológico deve ser visto como insumo para as ações da política nacional de Saúde (GLOBAL FORUM FOR HEALTH RESEARCH, 2004; PANG et al., 2004). Além disso, é necessário considerar o impacto que os resultados de pesquisa e desenvolvimento tecnológico podem ter sobre as políticas assistenciais em saúde. A pesquisa em saúde pode interferir diretamente nos custos seja pela introdução de novos métodos de prevenção que reduzam o número de pessoas afetadas, seja pelo aumento do custo unitário do tratamento pela incorporação de novas tecnologias (BUXTON et al., 2004). Segundo Guimarães, levantamento realizado pelo Global Forum for Health Research mostrou que em 2001 foram gastos quase 106 milhões de dólares com pesquisa e desenvolvimento em saúde em todo o mundo. No Brasil, em 2004, as atividades de pesquisa em saúde representavam um terço de toda a atividade de pesquisa no país, sem considerar o desenvolvimento feito pelas empresas (GUIMARÃES, 2006). A Organização Mundial de Saúde (OMS), como uma das estratégias para o fortalecimento da capacidade de pesquisa em saúde nos países membros, com especial ênfase nos países em desenvolvimento, propôs a realização de Análise dos Sistemas de Pesquisa em Saúde (HRSA), como instrumento para geração de informações e para avaliação do status da pesquisa em saúde nos países. A iniciativa de HRSA compreende duas atividades principais: projetos de pesquisa voltados para questões contemporâneas e estudos nos países, sendo que nesta última se insere o presente inquérito. Os países que participaram da fase-piloto foram: Tanzânia, Senegal, Paquistão, Irã, Cazaquistão, Brasil, Costa Rica, Indonésia, Tailândia, Malásia, Laos, Chile, Camarões, Tunísia, Federação Russa, França e Austrália. O principal objetivo do estudo-piloto foi testar um conjunto de instrumentos para o diagnóstico e acompanhamento do sistema de pesquisa em saúde nos países. Os argumentos fundamentais da OMS para adotar o inquérito, como forma privilegiada de obtenção de informações, foram: a necessidade de conhecer a percepção dos distintos atores – formuladores de políticas científicas, pesquisadores e usuários dos resultados da pesquisa em saúde – e o enfoque de toda a pesquisa com aplicação no setor saúde, e não apenas a pesquisa biomédica como tradicionalmente se dá nas avaliações cientométricas. Este artigo apresenta algumas das informações obtidas no inquérito realizado com uma amostra de pesquisadores, formuladores de política científica e usuários de resultados de pesquisa da área da saúde. O inquérito abrangeu quatro tópicos: características dos entrevistados, avaliação do ambiente de pesquisa no país, avaliação do sistema de pesquisa em saúde e produção e utilização de pesquisa. 10 Neste artigo serão apresentados os resultados referentes a algumas características dos pesquisadores entrevistados e à produção da pesquisa, pois dada à quantidade de informações disponíveis não é possível apresentar em um único artigo todos os tópicos da avaliação. Metodologia A pesquisa foi realizada através de um inquérito utilizando amostra probabilística de pesquisadores e intencional de formuladores da política científica e usuários de conhecimentos científicos. Os dados foram obtidos por entrevista com os indivíduos e a análise é exploratória de tipo descritivo. Neste artigo os dados se referem apenas à amostra probabilística de pesquisadores. Amostra Tendo em vista limitações de tempo e recursos financeiros, a equipe optou por concentrar as entrevistas em seis unidades da federação que concentram a atividade de pesquisa em saúde no país: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Brasília e Bahia (GUIMARÃES, 2006; CNPQ, 2003). Além dos municípios das capitais foram incluídas as cidades de Campinas, Ribeirão Preto, Niterói e Pelotas por sediarem importantes campi universitários. A proposta, definida pela OMS, era entrevistar 200 pesquisadores, 50 formuladores da política científica e 50 usuários de conhecimentos científicos. Estes números foram arbitrados para a etapa da pesquisa-piloto. Neste primeiro momento não havia a preocupação com amostras suficientes para garantir poder de teste, uma vez que o intuito era apenas descrever a situação em cada país através da percepção dos distintos atores do sistema de pesquisa em saúde. Como base para a seleção da amostra de pesquisadores, foram identificados no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq os líderes dos grupos com atuação na área de saúde, ciências biológicas e nas demais áreas do conhecimento, desde que o setor de aplicação dos conhecimentos produzidos fosse a saúde. Foram sorteados 180 líderes, correspondendo a cerca de 2% do universo de líderes de grupos do setor saúde e a 5% dos líderes de grupos dos estados selecionados para a pesquisa. Dos 180 pesquisadores sorteados apenas 145 foram efetivamente incluídos e, destes, 128 completaram todos os questionários. As perdas foram decorrentes do tempo excessivo da entrevista, o que levou vários entrevistados a solicitar a interrupção e ao fato do questionário ser considerado “aborrecido” e repetitivo pela maioria dos entrevistados. As recusas em agendar a entrevista (19%) foram justificadas pela falta de tempo para receber os entrevistadores, visto que a duração média estimada era de 1 hora e 50 minutos. Instrumento O questionário, desenvolvido pela equipe da OMS, foi traduzido para o português e após isso, a Coordenação do Projeto realizou várias reuniões com consultores RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.9-18, jan.-jun., 2007 selecionados para analisar as questões visando homogeneizar conceitos e categorias. Ele era composto por cinco módulos, sendo o primeiro destinado às características sociodemográficas dos entrevistados, o segundo referente à avaliação do ambiente de pesquisa, o terceiro para a avaliação do sistema de pesquisa em saúde, o quarto para a caracterização da produção e utilização dos conhecimentos científicos e o quinto voltado para avaliação dos instrumentos utilizados na entrevista. A equipe da OMS encarregou-se das análises de validade e confiabilidade (53 questionários foram reaplicados pelos coordenadores) e desenho final dos instrumentos, incorporando em parte as sugestões oriundas dos países. Como ocorre habitualmente nas pesquisas mundiais coordenadas pela OMS, o ajuste dos instrumentos à realidade de cada país é sempre problemático. Os coordenadores no âmbito da OMS desconhecem as capacidades existentes nos países membros e partem do princípio de que elas não existem. Assim, o desenho da pesquisa e dos instrumentos acaba sendo inadequado para a maioria das situações. Com a preocupação de garantir comparabilidade e, principalmente, a aplicabilidade mesmo em países com poucos recursos, praticamente não há flexibilidade para ajustes. mensais e 25% com renda superior a R$ 8.000,00 (US $ 2.740,00) mensais. A amostra de pesquisadores apresentou características distintas do conjunto. Entre os pesquisadores a distribuição por sexo foi equilibrada, havendo 52,4% (IC:44,0-60,8) de mulheres e 47,6% de homens (IC:39,256,0). A distribuição é semelhante àquela observada para os líderes de grupos de pesquisa da área de ciências da saúde nos estados selecionados e do país como um todo, segundo dados do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq (diferenças não significantes). As mulheres eram em média mais jovens do que os homens, apresentando média de idade de 47,9 e 50,6 anos, respectivamente. O Gráfico 1 apresenta a distribuição etária para homens e mulheres. A menor média de idade das mulheres pode ser atribuída a um efeito de coorte de geração, ou seja, consentânea ao aumento de escolaridade das mulheres observada nos últimos 25 anos. Gráfico 1 – Distribuição dos pesquisadores por idade e sexo, Brasil, 2003 Apesar dessas dificuldades a equipe nacional considerou que os resultados do estudo-piloto deveriam ser divulgados, pois contêm algumas informações não disponíveis sobre o sistema de pesquisa em saúde no país. Para este artigo foram utilizados os dados dos módulos 1, 4 e 5. Processamento de dados Os dados foram duplamente digitados em banco de dados construído no aplicativo Epi-Info para possibilitar a checagem eletrônica da digitação. Além do procedimento automatizado de verificação da digitação, realizou-se análise de consistência para cada uma das questões contidas nos cinco questionários aplicados a cada entrevistado. O processamento foi realizado no aplicativo SPSS, consistindo, principalmente, em procedimentos de descrição, visto que o tamanho da amostra não foi suficiente para realizar comparações internas consistentes, além da amostra ter sido intencionalmente dirigida apenas para os líderes de grupos de pesquisa das regiões do país com maior produção científica. Os resultados, portanto, refletem as características desses líderes, não podendo ser generalizados para o universo dos pesquisadores brasileiros. Resultados Os entrevistados eram predominantemente do sexo masculino, correspondendo a 60,7% (IC95%:54,0-67,1) da amostra e a mediana de idade foi 50 a 59 anos. A renda média mensal variou entre R$ 1.880,00 (US$ 644,00) e R$ 50.000,00 (US$ 17.123,00) com média de R$ 7.872,02 (US$ 2.696,00) e mediana de R$ 5.500,00 (US$ 1.884,00) com 25% dos entrevistados apresentando renda mensal inferior a R$ 4.800,00 (US$ 1.644,00) Grupo etário Feminino Masculino A renda média dos pesquisadores foi de R$ 7.872,00 (US$ 2.696,00) com mediana de R$ 5.500,00 (US$ 1.884,00). A renda média mensal variou de R$ 1.880,00 (US$ 644,00) a R$ 50.000,00 (US$ 1.7123,00). A Tabela 1 apresenta os percentis da distribuição de renda dos pesquisadores. Não foram observadas diferenças significantes na renda média entre homens e mulheres, entre pesquisadores do setor público, privado ou filantrópico, nem entre os pesquisadores dos diferentes grupos etários. A renda média mensal foi maior para os pesquisadores da área básica, clínica ou saúde pública em comparação à renda média mensal dos pesquisadores que trabalham com desenvolvimento tecnológico. O número de dependentes por pesquisador variou de 0 a 15. A média foi igual a 2,64. O número mediano de dependentes foi igual a 2, havendo 25% dos entrevistados com menos de dois dependentes e 25% com mais de 3. Quanto ao setor de atividade, 85,5% dos pesquisadores trabalham no setor público estatal e 11,7% no RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.9-18, jan.-jun., 2007 11 Tabela 1 – Percentis de renda mensal média para os pesquisadores, Brasil, 2003 setor privado sem fins lucrativos. Apenas um pesquisador trabalha no setor privado lucrativo. Dos pesquisadores entrevistados, 94% são docentes universitários. Os demais ocupam cargos de pesquisadores em institutos de pesquisa. da língua escrita ou falada chegou a 12% e 16%, respectivamente. Entre os entrevistados 99,5% (IC95%:96,4-99,9) exerciam trabalho remunerado e 86,8% em tempo integral. Entre os demais, 10,7% recebiam remuneração por mais de 50% de seu tempo de trabalho e 2% por menos de 50% de seu tempo de trabalho. Entre os pesquisadores estrangeiros que vieram para o Brasil, apenas 28% referiram motivos profissionais para a migração. O tempo de experiência profissional variou de menos de um ano a mais de 50. O tempo médio de experiência profissional foi de 24,8 anos com mediana de 24 anos. Cerca de 5% dos pesquisadores atuam na área de política científica, comunicação, informação e editoração. Dos demais, 42% atuam em pesquisa básica, 20% em pesquisa clínica, 9,3% em saúde pública e 5% em pesquisa e desenvolvimento. Apenas 1,4% dos entrevistados (IC95%: 0,2 - 4,9) tem somente formação escolar de nível universitário, sem cursos de pós-graduação. Cerca de 6% (IC95%:2,9-11,5) têm mestrado e os 92,6% (IC95%:88,3 - 96,9) restantes têm doutorado. Estes dados também são semelhantes à distribuição observada para os líderes de grupos de pesquisa da área de saúde dos estados selecionados e do país como um todo, segundo dados do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq (diferenças não significantes). As áreas de obtenção dos mestrados e doutorados foram principalmente: as ciências da saúde (32,7%), as ciências biológicas (20,9%) e as ciências humanas e sociais (17,2%). Cerca de 35% dos entrevistados têm também pós-doutorado. Ainda com relação à formação, em torno de 1/3 dos entrevistados relata cursos de especialização ou capacitação relacionados com a atividade de pesquisa ou com atividades da política de saúde. O domínio da língua inglesa para leitura, escrita e fala foi investigado. Apenas 2% dos entrevistados referiram pouco ou nenhum domínio de leitura na língua inglesa. A proporção dos que relataram pouco domínio 12 Dos pesquisadores entrevistados 12 referiram mudança de cidadania. Destes, seis adquiriram cidadania brasileira, três portuguesa, dois italiana e um espanhola. A Tabela 2 apresenta as atividades desempenhadas pelos pesquisadores nos últimos 12 meses. Mais de 75% dos entrevistados desenvolveram atividades diretamente relacionadas à produção e divulgação de resultados de pesquisa além de formação de novos pesquisadores. Entre 50 e 75% dos pesquisadores desenvolveram atividades relacionadas com a seleção de prioridades, avaliação de projetos, síntese de resultados de pesquisa e divulgação para leigos. Entre 25 e 50% dos pesquisadores mencionaram atividades mais relacionadas com a política científica, tais como monitoramento de indicadores de produção, avaliação da estrutura para pesquisa, revisão de aspectos éticos de projetos. Menos de 25% dos pesquisadores envolveram-se com atividades mais diretamente relacionadas à política de saúde. A produção científica e intelectual nos últimos cinco anos foi avaliada através do número de artigos indexados internacionais, artigos nacionais com revisão por pares, apresentações em congressos nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros, relatórios de pesquisa, documentos técnicos, informes para a mídia, artigos para jornais, apresentações em rádio e televisão e número de patentes nacionais (Tabela 3). A diferença na produção média por pesquisador e por pesquisador produtivo dá uma idéia da proporção de pesquisadores produtivos na amostra. A cada ano, uma parcela considerável de pesquisadores não apresenta produção para cada um dos produtos considerados (Tabela 4). Para todos os produtos considerados observou-se tendência de aumento na produção ao longo dos últimos cinco anos. A média anual de artigos produzidos nos últimos cinco anos foi de 0,57 para os publicados em periódicos RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.9-18, jan.-jun., 2007 Tabela 2 – Atividades desenvolvidas nos últimos 12 meses pelos pesquisadores, Brasil, 2003 Tabela 3 – Produção científica e intelectual nos últimos cinco anos, Brasil,1998-2002 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.9-18, jan.-jun., 2007 13 Tabela 4 – Proporção de pesquisadores não produtivos em relação a cada produto analisado, Brasil,1998-2002 com indexação internacional e de 0,96 para os publicados em periódicos nacionais com revisão por pares. A média de apresentações em congressos foi de 1,86 para os internacionais e 3,86 para os nacionais. A publicação de livros ou capítulos de livros foi de 0,85. O desenvolvimento de produto com patente nacional foi de 0,002. Considerando apenas os pesquisadores produtivos, esses valores são mais expressivos: 1,98 artigos internacionais; 2,63 artigos nacionais; 2,56 livros ou capítulos de livros; 3,61 apresentações em congressos internacionais; 5,66 apresentações em congressos nacionais e 0,20 patentes nacionais por pesquisador/ano. A produção dos pesquisadores da grande área de ciências da saúde para os estados selecionados é bastante semelhante em relação aos artigos publicados em periódicos. Foram registrados, em 2004, 4,5 artigos nacionais e internacionais. A produção de livros ou capítulos de livros e as apresentações em congresso foram menores no conjunto dos pesquisadores, bem como outros produtos. Para os líderes de grupos do país como um todo, a produção intelectual é ligeiramente menor do que a encontrada na amostra. Além das informações anteriores foi investigado o acesso dos entrevistados a periódicos científicos nacionais e internacionais e a possibilidade de acesso à internet e download de pesquisas pelo menos uma vez por mês. Quase 100% dos entrevistados referiram acesso a, pelo menos, cinco periódicos internacionais (94,9%) e cinco periódicos nacionais (93,9%), computador conectado à internet (94,4%) e possibilidade de download (96%). Os entrevistados foram questionados ainda sobre qual a porcentagem de tempo mínimo que deveria ser dedicado às atividades de pesquisa (tempo ideal) e o tempo efetivamente dedicado à pesquisa em saúde. Para as duas distribuições a média e a mediana ficaram em torno de 50% do tempo. Para 23% dos entrevistados, o tempo mencionado como ideal coincide com o tempo realmente dedicado à pesquisa. Cerca de 40% dos 14 pesquisadores dedicam à pesquisa mais tempo do que consideram ideal, enquanto 34% dedicam menos tempo do que consideram ideal. Discussão As características dos entrevistados refletem fundamentalmente os vieses decorrentes do processo de seleção da amostra. A seleção intencional de lideranças no campo científico e da saúde, tendo em vista os objetivos do inquérito, acabou gerando uma amostra com características bastante particulares. A comparação com os dados disponíveis no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq permite concluir que a amostra estudada pode ser considerada representativa dos líderes de grupos dos estados selecionados e do país como um todo. Características sociodemográficas A distribuição por sexo dos entrevistados reflete o fato de predominarem pesquisadores do sexo masculino em posições de liderança, seja na amostra de formuladores de política, seja na amostra de usuários e produtores de pesquisa. O conjunto dos pesquisadores brasileiros cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq apresentou essa distribuição de dois homens para cada mulher em 1995. No último censo realizado em 2004, a distribuição encontrada foi de 53% de pesquisadores do sexo masculino para 47% de pesquisadoras do sexo feminino (CNPq, 2003). Entretanto, na grande área de ciências da saúde, há 49,1% de pesquisadores e 50,6% de pesquisadoras (CNPq, 2004). Estudo realizado entre professores plenos e associados das escolas médicas suíças mostra concentrações maiores de homens, correspondendo a 93,1% das posições (BUDDEBERG-FISHER et al., 2003:319). Para a escola de medicina da Jonhs Hopkins, a proporção de homens variou entre 71%, na faculdade como um todo, a 82% entre os pesquisadores da área clínica (THOMAS et RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.9-18, jan.-jun., 2007 al., 2004). Embora os dados não sejam comparáveis, uma vez que na grande área da saúde a maior concentração de mulheres ocorre em outras áreas que não a medicina, os dados sugerem uma concentração maior de homens em posições de liderança ou no topo da carreira acadêmica do que aquela observada no Brasil. Para a área de Saúde Coletiva, por exemplo, dados do CNPq para os diretórios de pesquisa em 2002 mostravam que 41% dos doutores eram homens e 59% eram mulheres. A mesma proporção era observada entre os bolsistas de produtividade, sugerindo a não discriminação por gênero na concessão das bolsas; entretanto, quando se considerava a classificação dos bolsistas a distribuição era invertida, com predomínio marcado de mulheres nas classes iniciais (2B e 2C) e de homens no topo da distribuição (1A e 1B) (BARATA et al., 2003. A distribuição etária dos entrevistados também é distinta da distribuição observada tanto para os pesquisadores em geral quanto para os líderes dos grupos de pesquisa. O grupo entrevistado é em média dez anos mais velho do que a população de referência. A mediana de idade foi semelhante à observada entre os professores plenos e associados das escolas médicas suíças e mais alta do que a observada entre os pesquisadores e docentes da faculdade de medicina da Universidade Johns Hopkins (BUDDEBERG-FISHER et al., 2003; THOMAS et al., 2004). Em relação à renda média não há informações que permitam a comparação com o conjunto de pesquisadores. Os valores observados são compatíveis com os salários pagos no país para profissionais de nível universitário com pós-graduação. A ausência de diferenças de rendimento em relação às áreas de atuação tanto pode ser devida à inexistência de condições diferenciadas de ganhos para os pesquisadores da área da saúde, qualquer que seja seu campo de atuação, quanto decorrente do tamanho insuficiente da amostra. Os pesquisadores da área básica responderam por 40% da amostra, permitindo que as estimativas para este grupo fossem mais precisas. Caso houvesse na amostra número semelhante de indivíduos em cada um dos grupos, talvez as diferenças de rendimentos fossem significativas. conjunto relativamente complexo de processos sociais relacionados ao modelo de ensino superior existente no país, do pouco investimento das empresas do setor produtivo no desenvolvimento tecnológico, tendo em vista que a industrialização nacional fez-se fundamentalmente por substituição de importações sem investimentos significativos em inovação, da precariedade das instituições privadas de ensino superior e da escassez relativa de institutos de pesquisa ligados diretamente a agências do governo, como ocorre em outros países. O tempo médio de experiência profissional, em torno de 24 anos, sugere que os indivíduos selecionados para a amostra possuem conhecimento sobre os diferentes aspectos da atividade científica, estando habilitados a participar de modo consciente da avaliação proposta. A titulação dos entrevistados também diferiu da observada para o conjunto de pesquisadores segundo dados do censo 2004. No conjunto de pesquisadores existem 65% com doutorado, e no conjunto dos líderes são 88,3%, enquanto na amostra há 93% de doutores, refletindo mais uma vez os critérios utilizados na seleção dos entrevistados (CNPq, 2003). Os indivíduos da amostra obtiveram sua titulação, predominantemente, em ciências da saúde, ciências biológicas ou ciências humanas (71,4%). A freqüência expressiva de cursos em temas especificamente relacionados com a atividade científica relatada pelos entrevistados sugere, por um lado, a preocupação com a capacitação para o exercício das diferentes funções e, por outro, a ampla oferta de treinamento e formação para pesquisa existente no país. O uso de línguas estrangeiras na atividade de trabalho é coerente com as influências presentes no ambiente acadêmico brasileiro. O predomínio do inglês como “língua de ciência”, no campo das ciências da saúde, reflete a tendência universal de hegemonia da ciência norte-americana em todas as áreas do conhecimento. A proporção menor, porém significativa, de uso do espanhol pode estar refletindo os compromissos brasileiros no Mercosul e a ampliação das relações com outros países do continente e da península ibérica. Finalmente, o uso do francês reflete a influência da ciência francesa, principalmente no campo das ciências humanas que esteve presente na criação das universidades brasileiras e ainda exerce grande influência neste campo. O fato da maioria dos entrevistados exercer funções docentes ou de direção de instituições acadêmicas decorre da característica da ciência brasileira ser predominantemente acadêmica com pequena inserção fora das universidades e institutos de pesquisa. A concentração das atividades em instituições públicas também é marcante no cenário científico nacional, concentrando a quase totalidade da capacidade de pesquisa nacional nas universidades estaduais e federais e nos institutos de pesquisa do governo federal e de alguns governos estaduais (LANDI, 2005; LETA et al., 2006). A predominância da pesquisa em universidades públicas caracteriza o assim chamado perfil de tipo ocidental observado também na Bélgica, Finlândia, Irlanda e Portugal (LETA et al., 2006). Produção científica Esta concentração das atividades de pesquisa em instituições públicas e universitárias resulta de um O número elevado de entrevistados que declarou não ter produção científica regular, no período analisado, O domínio da língua inglesa escrita é um dos determinantes importantes para o crescimento do número de publicações indexadas em bases bibliográficas internacionais. Man e colaboradores (2004) demonstram a forte correlação entre notas obtidas no exame de proficiência em inglês (TOFEL) e o número de artigos publicados nos cinco principais periódicos científicos da área médica: The New England Journal of Medicine, JAMA, The Annals of Internal Medicine, BMJ e The Lancet (MAN et al., 2004). RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.9-18, jan.-jun., 2007 15 em parte decorre da própria seleção que privilegiou indivíduos em posições de liderança e direção de instituições, portanto, com menor disponibilidade para a produção de pesquisa. A exclusão desses indivíduos, sem produção no período, do cálculo da produção média mostrou um grupo bastante produtivo correspondendo aos critérios de seleção de pesquisadores líderes de grupos de pesquisa. A comparação desses valores com aqueles obtidos no censo dos grupos de pesquisa é francamente favorável à amostra estudada, ainda que os critérios adotados para a classificação dos produtos não sejam os mesmos. No diretório a classificação dos artigos em nacionais e internacionais é baseada na língua utilizada, enquanto na pesquisa utilizou-se o critério de classificação dos periódicos adotado pela Capes, considerando como internacionais os periódicos indexados em bases como o ISI e o Medline. Os resultados encontrados, de maior produtividade para os pesquisadores da amostra em comparação com a totalidade de pesquisadores dos estados selecionados e para os pesquisadores do país, são coerentes com o fato da amostra incluir apenas os líderes de grupos de pesquisa. Os dados de produção científica disponíveis no censo de grupos de pesquisa não permitem separar a produção dos líderes. Assim, observa-se que os líderes apresentam maior produção, seguindo-se a dos pesquisadores dos estados selecionados e dos pesquisadores do país como um todo. A produção científica de artigos brasileiros apresentou crescimento expressivo na última década, colocando o país, em 2002, entre os 20 países com maior número de artigos indexados na Thomson Scientific databases (ISI). Embora 72% dos artigos nessa base sejam oriundos dos sete países do G7, o Brasil aparece na 19ª posição com 0,73% da produção (PARAJE et al., 2005). Em 2004, a produção brasileira passou a responder por 1,7% da produção mundial, e o país passou a ocupar a 17ª posição (FAPESP, 2005). Durante a década de 1990, a produção brasileira cresceu cerca de 8 a 9% ao ano, aumentando sua participação na produção mundial em 150% (GLÄNZEL et al., 2006). É importante destacar que essas avaliações captam apenas uma parte da produção nacional, visto que poucas revistas brasileiras encontramse indexadas nessa base. Meneguini e colaboradores (MENEGUINI et al., 2006) demonstram que das 144 revistas indexadas na coleção SciELO Brasil, em 2006, apenas 19 estão indexadas pelo ISI/JCR. Dentre os periódicos mais escolhidos para publicação pelos cientistas brasileiros em 2003, a maioria eram periódicos nacionais ou latinoamericanos, com publicações em inglês e português. Esta publicação estratégica pode ser observada principalmente nas ciências da vida (GLÄNZEL et al., 2006) O impacto da ciência brasileira medido pela razão relativa de citações, uma comparação entre as citações recebidas por artigo e as citações esperadas com base na taxa média de citações dos periódicos no quais os artigos foram publicados, é maior para as áreas de física, ciências agrícolas e biologia (índices acima de 1,5) e menor para as 16 ciências médicas (índices inferiores a 1). Ainda na área de ciências da saúde, a pesquisa biomédica apresenta índice igual a 1, estando assim, dentro do esperado (GLÄNZEL et al., 2006). Não é possível conhecer o impacto da saúde coletiva, pois as classificações adotadas nas pesquisas européias não permitem individualizar esse campo. Quando o índice é calculado excluindo-se as autocitações, todas as áreas apresentam valores inferiores a 1, sendo que as ciências médicas são as que sofrem a menor alteração, demonstrando que o uso de autocitação é relativamente raro nessa área (GLÄNZEL et al., 2006). Todas as modalidades de produtos analisadas mostram produção expressiva e crescente entre 1998 e 2002. A grande exceção fica por conta do número de patentes obtidas, refletindo a insipiência da P&D no país. A estagnação do crescimento econômico no período de 2000 a 2003 fez com que a inovação tecnológica avançasse pouco no país. Entretanto, a Pesquisa Industrial de Inovação Tecnológica (PINTEC 2003), feita pelo IBGE, mostrou crescimento de 30% no número de indústrias que investiram no desenvolvimento de novos produtos e processos. Apenas 2,3% do faturamento das indústrias foi gasto com inovação. Em torno de 19% das indústrias receberam apoio financeiro do governo para programas de inovação, através de linhas de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. Além das linhas de crédito há programas da Fapesp, CNPq e Finep para inovação industrial e para projetos de parceria empresa-universidade com recursos dos fundos setoriais (FAPESP, 2005). O acesso à informação científica também é alto nas diferentes modalidades pesquisadas, confirmando várias das afirmações feitas pelos entrevistados na avaliação desse componente do sistema. Ospina e colaboradores estudaram o acesso de pesquisadores latino-americanos, exceto brasileiros, das áreas biomédicas às bases bibliográficas, encontrando valores semelhantes de utilização. Diferentemente do Brasil, onde o Portal Capes provê acesso para parte significativa dos pesquisadores a um conjunto muito amplo de periódicos, um dos problemas mais importantes dos investigadores dos outros países latino-americanos é a dificuldade para aceder aos textos completos das publicações. No inquérito realizado por Ospina e colaboradores, apenas 1,2% informou obter os textos por acesso on line (OSPINA et al., 2005). Finalmente, o tempo mínimo considerado necessário para o desenvolvimento das atividades de pesquisa e o tempo real dedicado a essas atividades, embora tenham apresentado a mesma média e a mesma mediana, mostraram algumas discrepâncias. Apenas para 23% dos entrevistados houve concordância entre o tempo ideal e o tempo real dedicado à pesquisa. Cerca de 1/3 considera que sua dedicação é menor do que seria ideal, sugerindo que as atividades docentes e administrativas consomem parte do tempo que poderia ser dedicado à pesquisa. Entretanto, 40% dos pesquisadores considera que sua dedicação é maior do que aquela que seria ideal, sugerindo que talvez esses pesquisadores preferissem diversificar suas atividades. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.9-18, jan.-jun., 2007 Conclusões A composição demográfica e social dos entrevistados diferenciou-se do conjunto de pesquisadores em atividade no país em decorrência dos procedimentos amostrais utilizados e não pode ser considerada representativa do universo. Entretanto, como o objetivo principal do estudo era avaliar o sistema de pesquisa em saúde no país, considerou-se legítimo privilegiar indivíduos em posições de liderança. A comparação dos dados da amostra com os dados do conjunto de líderes demonstra que a amostra é representativa desse segmento. Os principais achados apontam para características que poderiam ser consideradas naturais, tais como a mediana de idade mais alta nesse grupo. Outro aspecto bastante conhecido do sistema de pesquisa em geral no Brasil também se reproduz no campo das ciências da saúde e da pesquisa com aplicação em saúde em geral: a presença quase que exclusiva da produção científica nos ambientes acadêmicos. Em relação à produção científica, de modo geral ela é satisfatória e vem crescendo, havendo inúmeras oportunidades para participação em eventos científicos nacionais e internacionais, acesso à informação científica e possibilidades para publicação. A formação e titulação acadêmica de um número crescente de pesquisadores vêm ocorrendo de maneira geral no país, não estando restrita às posições de liderança aqui analisadas, atuando como elemento-chave no crescimento e aprimoramento da pesquisa em saúde. O acesso livre à informação científica, seja pela existência de iniciativas como o SciELO que propiciam o acesso gratuito a textos completos em todo o país, seja através de iniciativas governamentais como o Portal Capes que financiam o acesso dos pesquisadores das universidades públicas a periódicos publicados por editoras comerciais, sem dúvida é um diferencial importante na condição de produção da ciência brasileira quando comparada a outros países do continente. Nota 1. Este artigo apresenta resultados parciais do projeto “Análise do Sistema de Pesquisa em Saúde” (Health Research System Analysis), iniciativa coordenada pela OMS em 12 países com início em 2002 e término em 2006. No Brasil, o projeto-piloto foi coordenado pela Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – Abrasco e pelo Departamento de Ciência e Tecnologia – Decit do Ministério da Saúde. Referências bibliográficas BARATA, R.B.; GOLDBAUM, M. 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Foi diretora-executiva do Projeto Ciência Hoje, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC; Assessora Técnica da Coordenadoria-Geral de Unidades Hospitalares Próprias/RJ do Ministério da Saúde; Gerente de Projetos da Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde. Atualmente é consultora de vários Projetos, dentre os quais: “Estudo de Viabilidade para Instalação da Fábrica de Anti-retrovirais e outros Medicamentos em Moçambique”, conduzido pela Fiocruz em parceria com o Ministério das Relações Exteriores, 2006; “Expansão e Consolidação do Saúde da Família – PROESF”, conduzido pela Cesgranrio, sob patrocínio do Ministério da Saúde, 2005 – 2006; “Projeto de Organização de uma Rede de Observatórios de Gestão Participativa no Sistema Único de Saúde”, conduzido pela Abrasco e patrocinado pelo Ministério da Saúde, 2005; “Health Research System”, conduzido pela Organização Mundial de Saúde, no Brasil, 2003 – 2004; “Desafios para a Equidade em Saúde na Região Metropolitana de São Paulo”, realizado pelo Instituto de Saúde, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, com apoio do International Development Research Centre, Canadá, 2003 – 2004 e publicado pela Editora Hucitec, SP, 2005; “O Financiamento do Sistema de Saúde no Brasil e a Busca da Eqüidade”, realizado pelo Instituto de Saúde, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, com apoio do International Development Research Centre, Canadá, 1999 – 2002. Fernando Szklo Médico formado pela Faculdade de Ciências Médicas da UEG (hoje Uerj) com especialização em medicina do trabalho pela mesma instituição. Foi médico da Fundação Hospitalar do Distrito Federal; do Ministério da Saúde; e da empresa Jornal do Brasil Ltda. Foi diretor do departamento de desenvolvimento social e agro-pecuária e chefe do departamento de operações especiais da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), envolvendo atividades gerenciais relacionadas com o apoio a empreendimentos de base tecnológica, apoio aos institutos tecnológicos, assistência técnica a micro e pequenas empresas, operações através de bancos, entre outras. Além disso, foi técnico em programas e projetos, do Ministério de Ciência e Tecnologia e da Finep. É diretor executivo e membro do conselho diretor do Projeto Ciência Hoje da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, desde 1998 e superintendente de projetos estratégicos do Instituto Ciência Hoje desde 2001, desenvolvendo projetos estratégicos, de divulgação, entre os quais os livros “Crônicas de Sucesso da Ciência e Tecnologia Nacionais” e “Amigos da Escola-Saúde”, em parceria com a Rede Globo. 18 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.9-18, jan.-jun., 2007 [www.recis.icict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Artigos originais A iniciativa Open Access no acesso à informação técnico-científica nas Ciências da Saúde Javier Sanz Valero Jorge Veiga de Cabo Universidad de Alicante, Departamento de Enfermagem Comunitária, Medicina Preventiva e Saúde Pública e História da Ciência, Alicante, Espanha [email protected] Escuela Nacional de Medicina del Trabajo, Instituto de Salud Carlos III, Madrid, Espanha [email protected] Luis David Castiel Fundação Oswaldo Cruz, Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Rio de Janeiro, Brasil [email protected] Resumo A iniciativa Open Access (OAI) trata de documentos publicados eletronicamente, permitindo acesso livre, direto, permanente e gratuito ao texto completo da literatura científica e de pesquisa pela internet. Isto pressupõe o livre aproveitamento da informação científica, sempre que seja considerado o reconhecimento da autoria. As três principais manifestações sobre OAI estão contidas nas declarações de Budapeste (2002), de Bethesda (2003) e de Berlim (2003). O Open Access é compatível com o copyright, o copyleft, a revisão por pares, a impressão, a preservação e outras características associadas à literatura acadêmica convencional. A diferença de maior relevância consiste no fato de que o acesso à informação não é pago pelos leitores e, portanto, não existem barreiras à pesquisa. Mesmo assim, o êxito da OAI não depende somente da disponibilidade dos documentos, mas no apoio da comunidade científica. Palavras-chave Acesso aberto, acesso à informação, armazenamento e recuperação da informação, internet, documentação Introdução O acesso aberto à literatura científica, Open Access Iniciative (OAI), tem cada vez mais seguidores. Para isto acontecer, contribuíram as facilidades técnicas atuais. De fato, muitos teóricos denominam a época atual como a sociedade da informação ou sociedade digital. A razão para denominá-las assim reside na influência do paradig- ma tecnológico dominante, que ocasionou mudanças nas relações humanas e nas formas de viver. Outros, de forma mais pragmática, a denominaram “era pós-Gutenberg” (HARNARD, 1991). Portanto, não é de se estranhar, dado o atual crescimento da internet, que se utilizem esses recursos para ajudar as instituições acadêmicas e os pesquisadores RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.19-26, jan.-jun., 2007 19 particulares na difusão da comunicação científica (VASCONCELLOS-SILVA et al., 2003), promovendo os intercâmbios e a visibilidade de sua produção científica, favorecendo assim a construção e o desenvolvimento do conhecimento (LIMA-LEITE, 2006; SANS-VALERO, 2006). Mas, deve-se prestar atenção aos efeitos colaterais que podem limitar as oportunidades de acesso (PERINE, 2007), e levar em conta que, cada vez mais, é necessária a vigilância da qualidade da informação obtida na internet, assim como a proteção do usuário, o direito à informação e a proteção dos dados. Apesar do consenso sobre as vantagens do OAI entre os acadêmicos e a concordância de que este seria o modo ótimo para a distribuição dos resultados das pesquisas com financiamentos públicos, ainda constitui um fenômeno minoritário no mundo da edição, ainda que, felizmente, seus partidários estejam em números cada vez maiores. As possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias para as publicações científicas se vêem restringidas pelas barreiras, sobretudo econômicas, que são impostas pelas grandes empresas editoriais. Os principais problemas são: o abusivo aumento dos preços das assinaturas e a imposição de contratos “por pacotes” (big deals) (MELERO, 2005; CANCELA-RODRÍGUEZ, 2003). Ainda que, convenhamos, esse encarecimento tenha gerado um apoio maior à OAI. O objetivo e a finalidade do presente trabalho é proporcionar uma visão abrangente sobre a situação atual da iniciativa Open Access, analisando alguns aspectos relacionados ao copyright e ao copyleft, e informando acerca dos principais acessos à literatura científica através dos portais que assumiram essa iniciativa. Open Access: uma iniciativa de divulgação do conhecimento Um passo importante na visualização de documentos é o surgimento do formato PDF (Portable Document Format) como padrão de fato na distribuição de documentos eletrônicos em todo o mundo. O formato PDF consiste em um arquivo universal que preserva todas as fontes, a aparência, as cores e os gráficos de qualquer documento-fonte, sem que importe nem a aplicação nem a plataforma usadas em sua criação. Os arquivos PDF são compactos e podem ser compartilhados, visualizados, navegados e impressos exatamente como pretenda e queira seu gerador. O Open Access em revistas de acesso aberto trata de publicações que passaram por mecanismos de avaliação e que se encontram publicadas eletronicamente. Isto permite um acesso livre, direto, permanente e gratuito ao texto completo da literatura científica e de pesquisas através da internet, ainda que a maioria delas não tenha deixado de ser cópia em fac-símile de seu produto em papel. Pode também se tratar de outros recursos documentais diferentes em relação a revistas, como livros, teses, manuais de prática clínica ou e-prints (JAEN CASQUERA, 2004). Os e-prints, segundo a Budapest Open Access Initiative (BOAI), organismo pioneiro no acesso livre, 20 são documentos digitais cuja intenção é a publicação, mas que podem ou não ter passado por uma revisão por pares. Quando o documento não passou pela revisão por pares, se denomina preprint, e quando houve tal revisão e está pronto para sua publicação, chama-se postprint. Os preprints e os postprints compõem os eprints (EPRINTS ORG., 2007). É claro que, na opinião de alguns autores, é mais importante a qualidade da revista que o acesso aberto na hora de se escolher onde publicar os trabalhos (SCHROTER, 2005), mas também é fonte de preocupação sobre quem vai controlar, e como, a qualidade do que se publica. Os autores desejam que seus trabalhos sejam publicados com a maior rapidez possível em locais de evidente qualidade e que apresentem alta visibilidade. No que se refere à entrega de manuscritos, os editores da grande maioria das revistas, para não dizer a totalidade, aceitam a submissão dos originais por via eletrônica (CANEDO ANDALIA, 2002). Inclusive, desde o ponto de vista da maior evidência científica, o fato de se facilitar o conhecimento dessa documentação não deveria gerar discussão. Os patrocinadores e as agências financiadoras não desejam esbanjar recursos levando a cabo pesquisas já realizadas. Ao mesmo tempo, pesquisadores que estão desenvolvendo meta-análises ou revisões sistemáticas necessitam poder identificar tudo o que foi realizado sobre esse tema concreto, com a finalidade de se evitar o viés de publicação (HORTON, 1999). As três principais manifestações sobre o acesso aberto estão contidas nas declarações de Budapest, (fevereiro/2002, www.soros.org/openaccess/read.shtml), de Bethesda (junho/2003, www.wsis-si.org/mdpi-bethesda. pdf) e de Berlim (outubro/2003, www.zim.mpg.de/openaccess-berlin/berlindeclaration.html). Partia-se da convergência entre a vontade dos cientistas de publicar e difundir os resultados de seus trabalhos e a disponibilidade cada vez maior de publicações científicas na rede. O compromisso para o estabelecimento do acesso aberto como um recurso plausível deve satisfazer duas condições (SOCIEDAD MAX PLANCK, 2003) (Declaração de Berlim sobre acesso aberto): 1. O(s) autor(es) e o depositário da propriedade intelectual devem garantir o direito irrevogável e mundial de acessar um trabalho erudito, o mesmo que licencia para copiá-lo, usá-lo, distribuí-lo, transmiti-lo e exibi-lo publicamente, e para fazer e distribuir trabalhos derivativos, em qualquer meio digital para qualquer propósito responsável, tudo sujeito ao reconhecimento apropriado de autoria (os padrões da comunidade continuarão provendo os mecanismos para que sejam satisfeitos o reconhecimento apropriado e uso responsável das obras publicadas, como agora se faz), o mesmo que o direito de fazer cópias impressas em pequeno número para seu uso pessoal. 2. Uma versão completa do trabalho e de todos os seus materiais complementares (que inclui uma cópia da permissão mencionada no item anterior) sob um con- RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.19-26, jan.-jun., 2007 veniente formato eletrônico padrão deve ser depositada (e assim é publicada) em pelo menos um repositório online que utilize padrões técnicos aceitáveis (tais como as definições do Acesso Aberto), que seja apoiado e mantido por uma instituição acadêmica, sociedade erudita, agência governamental ou uma organização bem estabelecida que procure implementar o acesso aberto, distribuição irrestrita, interoperabilidade e capacidade de arquivamento no longo prazo. O Open Access é compatível com o copyright, o copyleft, a revisão por pares, a impressão, a preservação e outras características associadas à literatura acadêmica convencional. A diferença substancial consiste no fato de que o acesso à informação não é pago pelos leitores e, portanto, não existem barreiras à pesquisa. As principais vantagens do Open Access seriam (OPEN ACCESS CHARTER, 2007: REASONS TO PUBLISH, 2007): • Acesso à leitura e à pesquisa de forma gratuita. • Na maioria das vezes, não é necessário transferir o direito de cópia. • Rápida revisão pelos pares. • Publicação imediata. • O envio do documento de forma eletrônica. • Maior visibilidade e promoção do trabalho. • Informação mais atualizada. O êxito da iniciativa Open Access não se localiza apenas na disponibilidade e no acesso aos documentos científicos, mas no progressivo apoio da comunidade científica e de suas instituições. Dando importância à recomendação da Dra. Melero, para aprofundar o entendimento da iniciativa Open Access, seria recomendável a leitura dos trabalhos publicados por ela mesma (MELERO, 2005), aqueles elaborados periodicamente por Peter Súber, Timeline of the free online scholarship movement (SUBER, 2007), e a monografia escrita pelo Prof. Bailey, Open access bibliography (BAILEY, 2005), onde se recolheram cerca de 1.300 referências classificadas por temas e publicadas no período entre 1999 a 2004. Para que as revistas científicas cumpram a missão de comunicar o conhecimento científico que nelas se publica, devem ter a mais ampla difusão possível. A difusão direta é aquela que se obtém em função do número de exemplares que são editados, que, por sua vez, está condicionada pela quantidade de assinaturas contratadas. Mas é preciso levar em consideração que nem todas as assinaturas têm o mesmo valor. Para efeitos da difusão do conteúdo de uma revista, não é a mesma coisa uma subscrição pessoal em relação a de um departamento de pesquisa de uma universidade, ou a de uma biblioteca acadêmica. A difusão indireta é o que alcançam as publicações através da inclusão dos resumos ou de seus artigos em bases de dados e outras fontes de referência que são utilizadas para a pesquisa de informação. As revistas incluídas nas mais importantes bases de dados temáticas obtêm uma difusão e visibilidade internacional muito maior do que as que não estão recolhidas nessas fontes secundárias de recuperação de informação (VÁZQUEZ VALERO, 2003). É evidente que a Internet ajuda na divulgação de conhecimentos em escala mundial. Isto quer dizer que a presença de uma revista na Internet facilita a sua difusão planetária, uma vez que pode ser examinada por uma enorme população de potenciais usuários. Por esta razão, para uma revista, a possibilidade de estar presente na Internet é um modo seguro de tornar-se visível para grande parte da comunidade científica, visibilidade que aumenta caso seja publicada em inglês (VEIGA DE CABO, 2001). Esta visibilidade será ainda maior se a informação colocada na rede for completa e armazenada em revistas de qualidade. A exigência de avaliação prévia do trabalho antes de sua inclusão na rede será também conclusiva para calibrar a qualidade. As vantagens que a Internet oferece têm sido determinantes no momento em que o papel deixe de ser imprescindível como suporte da transmissão do conhecimento. Essas qualidades fazem com que surjam, dentro da mesma comunidade científica, correntes dirigidas a facilitar o livre acesso à literatura especializada. Duas das principais alternativas são: o auto-arquivamento (self-archiving) e as revistas com acesso aberto (open access) (VEIGA DE CABO, 2001). No auto-arquivamento, são os autores que armazenam seus trabalhos, seja situando-os em coleções temáticas (exemplo: o E-LIS, comentado mais adiante), seja situando-os em coleções institucionais, algo cada vez mais promovido pelas universidades. O auto-arquivamento já é um movimento internacional com rápido desenvolvimento, que virá a se concretizar em locais de armazenamento para receber a produção científica. Podem ser considerados uma espécie de biblioteca virtual, mas devido à multiplicidade da produção e, portanto, à dificuldade de encontrá-los, o surgimento de coleções temáticas será bem-vindo, e, como se mencionou, o ELIS é um magnífico exemplo. Quanto às revistas com acesso aberto, podemos distinguir: a) revistas editadas somente em formato eletrônico. Como exemplo, podemos citar aquelas contidas na BioMed Central ou na PLoS Medicine; b) revistas editadas em ambos os formatos, papel e eletrônico. Entre elas estariam aquelas colecionadas em SciELO ou em DOAJ; c) revistas em ambos os formatos que permitem o acesso à edição online depois de um período de tempo. Neste grupo estariam aquelas incluídas na PubMed Central e outras que são acolhidas a esta modalidade, como New England Journal of Medicine ou Lancet. No caso de aceitarmos que a literatura científica seja acessível através da internet sem custos para os leitores, não devemos esquecer que a produção, armazenamento e difusão sem custos não são possíveis. Hoje em dia, um número cada vez maior de revistas permite o acesso aberto ao artigo, mas cobra uma taxa a seu autor. Ou seja, os custos de manutenção, revisão e edição recaem sobre os autores ou sobre as instituições RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.19-26, jan.-jun., 2007 21 às quais pertençam. O modelo de publicação baseado no fato de que ou o autor ou a instituição venha a manter os gastos editoriais apresenta algumas dúvidas, preocupação e desconfiança sobre sua sustentabilidade (MUÑOZ TINOCO, 2005). Portanto, existem duas estratégias para favorecer a publicação em acesso aberto: 1. publicar em uma revista de acesso aberto. Denomina-se Gold Open Access; 2. publicar em qualquer tipo de revista de acesso restrito e, posteriormente, depositar o trabalho em uma coleção institucional. Denomina-se Green Open Access. Impacto versus Visibilidade A visibilidade de um trabalho é um fator determinante no processo de citação. Um trabalho que não se encontra visível, acessível e disponível não pode ser considerado, avaliado ou utilizado na realização de outros trabalhos. Neste sentido, uma variável importante é a possibilidade de ter-se acesso livremente ao texto completo da contribuição. Mais ainda: constitui-se um fator decisivo. Até pouco tempo atrás, o principal indicador para medir a trilha que uma publicação deixava dentro do coletivo científico era, e infelizmente continua sendo, o índice de impacto (contabilidade das citações sobre uma publicação de acordo com os critérios emanados do Institute for Scientific Information). Na verdade, o fator de impacto de uma revista não é estatisticamente representativo do índice de citação de seus artigos. O aparecimento da iniciativa Open Access, juntamente com as possibilidades telemáticas, permite novas modalidades de se conhecer a visibilidade ou o interesse que suscita cada documento em si mesmo. Entre estes diferentes indicadores temos: • Hits: número de vezes em que se acessa ao documento. • Downloads: número de vezes que se baixa o documento. • Visibilidade: inclusão a partir do lugar de onde se localiza o documento, com vínculo (link) a outra página da Web. Em geral, a publicação disponível na rede aumenta a sua consulta. Assim, os estudos bibliométricos demonstram um incremento na referência dos documentos de livre acesso depositados na rede em relação aos que não estão ou são de acesso restrito (HARNARD, 2007; ANTELMAN, 2004), apresentando diferenças significativas a favor das revistas de acesso aberto quando se estudava o índice de imediatismo (documentos com uma idade igual ou inferior a 1 ano). Ou seja, maior rapidez na difusão da documentação científica (estudo realizado em 2004 pelo Institute for Scientific Information (ISI) com os dados do Journal Citation Report de 2003) (THONSOM CORPORATION, 2004). Ainda não existe um modelo de análise totalmente aceito e que consiga suprir as características do modelo do ISI, ainda que coexistam algumas propostas como as 22 anteriormente assinaladas no entorno da edição eletrônica. Da mesma forma, podemos assinalar os trabalhos realizados pelo Open Citation Project (OPCIT, 2007), cujo fim é o de estudar e de construir ferramentas para a análise de citações nas publicações eletrônicas de acesso aberto. Entre elas, podemos apontar a CITEBASE (www. citebase.org). Quando se deposita um documento científico em um repositório, a difusão e o uso eficiente do mesmo precisam estar claramente identificados e quantificados, e devem ser, obrigatoriamente, mensuráveis. Além disto, a declaração de Bethesda recolhe o compromisso das instituições signatárias para respaldar e fomentar entre os pesquisadores o uso de revistas que contemplem esse conceito. Ainda assim, se comprometem a desenvolver novos métodos de avaliação e de reconhecimento dos méritos acadêmicos dos cientistas que publiquem sob a chancela dessa iniciativa. A Propriedade Intelectual: Open Access Movement As facilidades que a telemática oferece para a difusão e para a acessibilidade à comunicação e à documentação científica contrastam com as barreiras econômicas e dos direitos de reprodução (copyright) impostas pelas grandes empresas editoriais que controlam a maioria do mercado das publicações científicas. Como resposta a essa situação, surge a reação dos pesquisadores e dos gestores da informação acadêmica, dando origem ao que se denominou “movimento para o livre acesso (open access movement) às publicações científicas” (MELERO, 2004). A Universidade de Harvard publicou, inclusive, em seu periódico, os aspectos orçamentários correspondentes à suposta garantia de acesso à literatura científica de todos os usuários de suas bibliotecas (LIBRARIES, 2004). O conceito open access não tem relação apenas com a acessibilidade à documentação científica, mas com a idéia de eliminar a obrigatoriedade de cessão do copyright dos artigos publicados, o que facilita ao autor seu depósito em arquivos e repositórios institucionais ou temáticos. O copyright é um conjunto de direitos atribuídos automaticamente ao autor (autores) pela legislação da maioria dos países. É uma combinação de direitos éticos e direitos de exploração. Os éticos costumam estar bem presentes no mundo acadêmico e não costumam ser questionados e nem entram em debate (permitam-nos esta licença), coisa bem distinta se falamos dos direitos de exploração. Hoorn e van der Graaf elaboraram um bom trabalho sobre as atitudes dos autores do Reino Unido e dos Países Baixos ante os direitos de autoria cuja leitura é aconselhável (HOORN, 2006). Na questão entre o acesso aberto e o restrito, estamos lidando com algo que não deixa de ser uma discussão em torno ao desenvolvimento e da defesa da propriedade intelectual e, por extensão, do direito dos autores exercerem o controle e a vigilância sobre suas obras. A propriedade intelectual de uma obra literária, artística ou científica pertence ao autor pelo simples fato de sua criação. Neste sentido, é melhor não supor que os autores RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.19-26, jan.-jun., 2007 têm a obrigação de comunicar seus trabalhos de forma gratuita. Seria presumir que os direitos de exploração da obra são do autor, enquanto não existe um contrato devidamente formalizado por ele que diga o contrário (VIVEZ GRÁCIA, 2005). Portanto, toda cessão de direitos deverá formalizar-se por escrito. Não obstante, atualmente, a maioria das revistas permita aos autores o auto-arquivamento de uma cópia de seu trabalho, não do artigo publicado. Ou seja, a versão auto-arquivada pelo autor não é o substituto da versão oficial do editor da revista onde o artigo foi publicado. (Para consultar as normas da maioria das principais revistas científicas acessar a página da SHERPA - www.sherpa.ac.uk - da Universidade de Nottingham). Em 2004, algumas instituições, como, por exemplo, o US National Institute of Health ou a fundação Wellcome Trust, decidiram que as publicações derivadas de projetos financiados com seus recursos deveriam ser armazenadas em bases de dados ou repositórios de livre acesso. Estas políticas institucionais a favor do acesso aberto desencadearam uma discussão sobre o patrocínio de estratégias sobre o armazenamento da produção científica criadas com fundos públicos. Neste sentido, existe uma corrente denominada “arquivangelista”, cujo máximo representante é o professor da Universidade de Southampton (UK), Stevan Harnard, que defende que a única maneira de se conseguir um grande apoio à iniciativa open access é obrigando os autores a guardarem uma cópia de seu trabalho nos arquivos de sua instituição. Então, deve ficar patente que o armazenamento de um trabalho em formato aberto não implica a renúncia do autor a seus direitos. Este pode explorá-lo da maneira que lhe pareça a mais conveniente (ANDERSON, 2004). Pôr à disposição uma obra em acesso aberto não significa, em nenhum dos casos, a abdicação, por parte do autor, de seus direitos. Neste sentido, seria interessante destacar o crescente apoio ao movimento copyleft, entendendo como tal o fato de se promover um maior controle dos criadores sobre suas obras, pesquisas e projetos, e uma remuneração compensatória mais razoável por seu trabalho. Permite também aos usuários finais melhor acesso e proveito dos bens desses tipos de licenças não restritivas. Isto é, o autor detém o poder de decidir como e em que condições vai reproduzir e distribuir sua obra. Geralmente são permitidas três circunstâncias: cópia e distribuição não comercial (o mínimo exigível para que uma obra seja considerada copyleft), obras derivadas e distribuição comercial; tudo isto sem a necessidade de novas permissões do autor. Por outro lado, deve-se levar em conta que todos os princípios éticos recolhidos sobre a publicação científica são aplicáveis à edição Open Access, e que talvez sobre este tema tenhamos que abrir um amplo debate. Portais vinculados ao Open Access Entre as plataformas Open Access já plenamente consolidadas na Internet, que contam com um reconhecido prestígio e facilitam o acesso livre e gratuito e permanente de texto completo, poderiam ser citadas: • Access to Global Online Research in Agriculture - AGORA (www.aginternetwork.org/es): desenvolvido pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) junto a patrocinadores privados, dá acesso de modo destacado a coleções bibliográficas digitais nos campos da alimentação, agricultura, ciências do meio ambiente e ciências sociais. Dá acesso a 918 publicações para instituições em 107 países em vias de desenvolvimento. • Bioline International (www.bioline.org.br): serviço de acesso aberto a publicações científicas, revisadas por pares, produzidas em países em vias de desenvolvimento cujo objetivo é facilitar um acesso sustentável e promover o aumento da qualidade. Os principais responsáveis são o Centro de Referência em Informação Ambiental (CRIA), Open Society Institute e a Universidade de Toronto. • BioMed Central (www.biomedcentral.com): casa editorial independente, do Reino Unido, orientada para proporcionar o acesso livre e imediato à pesquisa biomédica de qualidade e revisada por pares. Permite o acesso a mais de 140 revistas sobre ciências da saúde. • Directory of Open Access Journals - DOAJ (www.doaj. org): concebido pela Lund University Libraries da Suécia. Diretório de revistas de livre acesso, dispõe de textos completos que cobrem publicações de âmbito científico e acadêmico, controlando a qualidade do que é publicado. Atualmente contém 2.009 revistas. • Documents in Information Science - DoIS (wotan. liu.edu/dois): serviço para localizar e baixar documentos de pesquisa sobre o campo das ciências da informação. É uma base de dados de artigos e conferências publicadas em formato eletrônico na área da biblioteca e da informação. Consiste em um esforço voluntário, com a finalidade de dispor de um recurso bibliográfico de acesso livre aos textos científicos especializados em ciências da informação. • Eprints in Library and Information Science - E-LIS (//eprints.rclis.org): depósito de documentos especializados em biblioteconomia e ciências da informação. Promovido pelo Ministério Espanhol da Cultura e hospedado nos servidores do Consorzio Interuniversitario Lombardo per Elaborazione Automatica (CILEA). É o primeiro e-servidor temático internacional sobre documentação científica. • Health InterNetwork Access to Research Initiative - HINARI (www.who.int/hinari/es): estabelecido pela OMS junto com as maiores casas editoriais, facilita o acesso a uma das mais extensas coleções de literatura biomédica e de saúde aos países em desenvolvimento. Mais de 3.070 revistas estão disponíveis para instituições de saúde em 113 países. • Latindex (www.latindex.org): sistema regional de informação on line para revistas científicas da América Latina, Caribe, Espanha e Portugal. Conta com mais de 3.000 revistas da área das ciências médicas. É produto da cooperação de uma rede de instituições que funcionam de maneira coordenada para reunir e disseminar informação bibliográfica sobre as publicações científicas seriadas produzidas na região. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.19-26, jan.-jun., 2007 23 • Los Alamos Preprint Archive - arXiv (arxiv.org): serviço de livre acesso e consulta nos seguintes campos: física, matemática, informática e biologia quantitativa. O conteúdo do arXiv está de acordo com os padrões acadêmicos da Universidade de Cornell, de Nova York. Propriedade, manutenção e financiamento por parte desta Universidade e co-financiado pela National Science Foundation. • Online Access to Research in the Environment – OARE (www.oaresciences.org/es/): é uma aliança público-privada sob os auspícios do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), da Universidade de Yale e destacadas casas editoriais científicas e tecnológicas, que permite aos países em desenvolvimento acessarem, de forma gratuita, uma das coleções mais vastas de literatura sobre ciências ambientais do mundo. • Open Access Repositories - OpenDOAR (www.opendoar.org/index.html): diretório de armazenamento acadêmico com acesso aberto. Cada depósito do OpenDOAR foi visitado pelo pessoal do projeto para comprovar a informação que se registra. É desenvolvido e mantido pela Universidade de Nottingham. • Public Library of Science - PloS (www.plos.org/): organização não lucrativa composta por cientistas e médicos comprometidos em fazer da literatura científica e médica um recurso público. Recebeu ajuda financeira da Fundação de Gordon e de Betty Moore, da Fundación Sandler, da Fundação de Irving A. Hansen Memorial, do Open Society Institute (OSI) e do Joint Information Systems Committee (JISC). Também recebe doações e patrocínios de cidadãos particulares, de universidades e de outras organizações. PloS Medicine baseia seu sistema editorial na cobrança ao autor ou à instituição ao qual pertence. • PubMed Central (www.pubmedcentral.nih.gov/): projeto desenvolvido e mantido pelo Centro Nacional para a Informação de Biotecnología (NCBI) da National Library of Medicine de Bethesda, nos Estados Unidos, que facilita o acesso livre e irrestrito ao material científico armazenado nessa plataforma digital. Proporciona acesso livre a mais de 227 revistas. • Research Papers in Economics - RePEc (repec.org): ferramenta que resulta da colaboração de centenas de voluntários em 59 países, com a finalidade de realizar a difusão da pesquisa na economia. O fundamento do projeto é constituído por uma base de dados descentralizada dos trabalhos originais, artigos de revistas e de componentes informáticos (software). Todo o material da RePEc está livremente disponível de forma permanente e gratuita. Não contém artigos de texto completo, apenas proporciona vínculos (links) aos documentos acessíveis na rede por parte de outras instituições e de particulares. • Scientific Electronic Library Online - SciELO (www. scielo.org/index.php?lang=es): obra do Centro Latinoamericano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde, da Organização Pan-americana de Saúde, Organização Mundial da Saúde (BIREME/OPS/OMS). O principal objetivo é o de contribuir para o desenvolvimento da pesquisa, aumentando a difusão da produção 24 científica nacional, melhorando e ampliando os meios de publicação e avaliação de seus resultados. • SciELO España (scielo.isciii.es/scielo.php/lng_es): desenvolvido pela Biblioteca Nacional de Ciências da Saúde do Instituto de Saúde Carlos III de Madri. O SciELO Espanha é uma biblioteca virtual formada por uma coleção de revistas científicas espanholas de ciências da saúde, selecionadas de acordo com certos critérios de qualidade preestabelecidos. • The Scholarly Publishing and Academic Resources Coalition - SPARC (www.arl.org/sparc): aliança entre universidades, bibliotecas, pesquisa e organizações acadêmicas. A coalizão é uma iniciativa da Associação das Bibliotecas de Pesquisa Norte-americanas (Association of Research Libraries in North America - ARL). Foi criada em 1997 para ser uma resposta construtiva às disfunções do mercado no sistema de comunicação do âmbito acadêmico. • SPARC Europe (www.sparceurope.org): cópia da Scholarly Publishing and Academic Resources Coalition (SPARC) no âmbito europeu. As universidades espanholas presentes são: Universidade de Las Palmas, da Grã Canária, e Universitat Politécnica de Catalunya. Reflexão final Vivemos em um mundo complexo, global e tecnicizado, no qual a informação ocupa um lugar fundamental para a tomada de decisões e para o desenvolvimento da ação no cotidiano. Portanto, existe o risco de que ocorra uma fratura entre setores, zonas, regiões e países quanto à capacidade de usar a informação. Fala-se da ameaça da exclusão digital daqueles que não podem utilizar a revolução tecnológica. A iniciativa open access, o livre acesso à informação, deve exercer uma ação fundamental como veículo de suporte àqueles privados das vantagens do acesso à literatura científica. A falta de igualdade de acesso à produção científica mundial permite uma reflexão final: enquanto uma parte do mundo pode aproximar-se da insanidade pelas várias formas de excessos nas práticas da pesquisa, a outra parte tratará de buscar formas de superação nem sempre satisfatórias para resolver essa brecha de informação, que, por sua vez, gera maior descompasso digital. Se é possível afirmar que as novas tecnologias nos aproximam da informação, superando barreiras geográficas, também é certo admitir que geram novas necessidades. Hoje em dia, um pesquisador mal documentado e desconhecedor das vias pelas quais circulam os novos conhecimentos se converte em alguém “indocumentado”, que seria sinônimo de pessoa não qualificada, despreparada para exercer seu trabalho, para atuar no mundo. Portanto, esta iniqüidade no acesso à literatura científica, que o movimento Open Access deve evitar, pode gerar uma nova forma de analfabetismo, se é que já não a concebeu!(SANZ-VALERO, 2006). À guisa de conclusão, temos certeza de que o êxito da iniciativa Open Access se localiza no progressivo apoio da comunidade científica e de suas instituições. Almejamos que assim seja. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.19-26, jan.-jun., 2007 Referências bibliográficas ANDERSON, R. Author disincentives and open access. Serials Review, v.30, n.4, p.288-291, 2004. ANTELMAN K. Do open access articles have a greater research impact? College & Research Libraries, v.65, n.5, p.372-82, 2004. BAILEY, C.W., Jr. Open access bibliography. Liberating Scholarly Literature with E-Prints and Open Access Journals. Washington: Association of Research Libraries; 2005. Disponível em: http://www.escholarlypub.com/oab/ oab.pdf. Acesso em: 23 feb 2007. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v.11, n.1, p.82-94, 2006. MELERO, R. Acceso abierto a las publicaciones científicas: definición, recursos, copyright e impacto. 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Sobre os autores Javier Sanz-Valero Doutor em Saúde Pública pela Universidad de Alicante (Espanha), Mestre em Saúde Pública e Gestão Sanitária pela Universidad de Valencia (Espanha), com diploma em Estudos Avançados de Documentação Científica e em Metodologia de Investigação em Ciências da Saúde. É pesquisador da linha de Comunicação e Documentação da Área de Nutrição do Centro Superior de Investigación en Salud Pública (CSISP), de Valência na Espanha. Também é professor assistente e pesquisador da linha de documentação científica da História da Ciência da Universidad de Alicante. Além disso, é membro dos grupos: Red de Malnutrición en Iberoamericana (Red MeI – CYTED); Comunicação e Documentação Científica aplicada à Nutrição da Sociedad Española de Nutrición Parenteral y Enteral (CDC-Nut SENPE); da junta diretiva da Sociedad Valenciana para el Estudio de la Calidad (SoVEC); do Comitê Científico da Revista Medicina y Seguridad del Trabajo e, assessor do Comitê Editorial da Revista Nutrición Hospitalaria. Jorge Veiga Graduado em Medicina pela Universidad de Salamanca na Espanha (1983), diplomado em Sanidad e mestrado em Pesquisa Clínica pela Escuela Nacional de Sanidad de Madrid (Espanha). Foi diretor da Biblioteca Nacional de Ciencias de la Salud da Espanha onde desenvolveu o Índice Bibliográfico Espanhol de Ciência e da Saúde e o Catálogo Coletico de Publicações Periódicas das Bibliotecas de Ciencias de la Salud Españolas, Biblioteca Virtual en Salud e Scientific Electronic Library Online (SciELO) Espanha, sendo os últimos em colaboração com a BIREME (OPS/OMS), instituição que continua a colaborar na qualidade de consultor. Atualmente é chefe do Serviço de Divulgação Científica da Escuela Nacional de Medicina del Trabajo, sendo responsável pelo Programa de Editorial e redator chefe da Revista de Medicina y Seguridad del Trabajo. É membro do grupo de Comunicação e Documentação Científica aplicada da Sociedad Española de Nutrición Parenteral (CDC-Nut SENPE) e do Centro Superior de Investigación en Salud Pública de Valencia. É também colaborador do projeto de terminologia Médica da Real Academia Española. 26 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.19-26, jan.-jun., 2007 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Artigos originais A cultura colaborativa e a criatividade destrutiva da web 2.0: aplicativos para o ensino da medicina Maged Kamel Boulos Steven Wheeler Faculty of Education, University of Plymouth, Plymouth, Reino Unido S.Wheeler@plymouth. ac.uk Faculty of Health & Social Work, University of Plymouth, Plymouth, Reino Unido maged.kamelboulos@ plymouth.ac.uk Resumo Examinamos o recente crescimento do software1 interativo (Web 2.0), seu primeiro impacto no ensino, e apresentamos uma análise de algumas pesquisas, conduzidas nos últimos tempos, que avaliam suas aplicações pedagógicas. Salientamos a tendência dos estudantes a serem criativos e destrutivos ao utilizarem softwares interativos, particularmente wikis2, web logs (blogs3) e outros ambientes de rede baseados em textos. As atividades dos estudantes nesses ambientes de softwares interativos podem causar tensão e conflito, e as reações variam mas, em geral, os resultados têm sido positivos. Alguns exemplos do ensino da medicina são analisados, oferecendo ao leitor exemplos da utilização de softwares interativos que têm sido usados em contextos do ensino de medicina clínica. Palavras-chave Software interativo, Web 2.0, conteúdo colaborativo, espaços wiki, blogs Introdução O surgimento do software interativo (ou da chamada ‘Web 2.0’) propicia novas e estimulantes oportunidades para professores criarem meios de ensino colaborativos e comunicativos para seus estudantes. Essa personificação da World Wide Web [rede de alcance mundial, conhecida pela abreviatura www] mantém potenciais de transformação semelhantes para professores e estudantes (RICHARDSON, 2006). Mashups [combinações de aplicativos], misturas e justaposições de ferramentas digitais formam a base para um ambiente dinâmico e criativo no qual os estudantes podem aprender através de trabalhos colaborativos e coletivos baseados em pesquisas. Softwares de alimentação de novos conteúdos possibilitam que os usuários recebam avisos de atualizações de páginas da Web diretamente em seus computadores de mesa ou em aparelhos portáteis. A popularidade desses aplicativos está crescendo rapidamente, uma vez que os estudantes vêem as oportunidades de ganhar tempo e espaço de modo que o aprendizado possa ser organizado em estilos de vida de negócios. No entanto, surgiu um dilema. Embora, por sua própria natureza, o software interativo atraia atividades que, em seu cerne, envolvem democracia e são livres de influências institucionais (RICHARDSON, 2006), essa liberdade pode ter o efeito de abrir a porta para o abuso ou para a má utilização de tecnologias. Aparentemente, elementos destrutivos podem emergir onde o direito de RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.27-34, jan.-jun., 2007 27 participar é explorado. Regras institucionais podem ser infringidas, causando um efeito prejudicial sobre a organização tradicional por meio da subversão de práticas previamente aceitas. Neste artigo, exploramos a natureza criativa e destrutiva da participação na Web 2.0 e suas conseqüências para a educação. Aprendizado autônomo Os estudantes que usam wikis e blogs geralmente trabalham, de maneira autônoma e independente, longe do alcance de qualquer autoridade reconhecida, de modo que é discutível em que medida as instituições educacionais podem e devem tentar “gerenciar” essa tecnologia de aprendizado. Acontece que algumas universidades vêem necessidade de controlar o uso desse tipo de software em contextos de aprendizados formais, mas não usam o poder de vigilância necessário para viabilizá-lo. Principalmente os estudantes mais jovens com freqüência começam a usar o software interativo para compartilhar sites favoritos, imagens e vídeos, e outros meios de comunicação fora dos auspícios ou do controle de sua instituição. Sites populares incluem Bebo, FaceBook, YouTube e MySpace, todos usados por milhões de inscritos diariamente. A regulação dessas atividades, mesmo que desejável, seria impraticável para a maioria das organizações. Wikis Obviamente, existe uma atração por essas páginas da rede disponíveis livremente, mas a questão é se as autoridades educacionais devem tentar controlar o poder desses aplicativos ou deixá-los expandir de uma maneira descontrolada e “viral”. A noção de seleção natural – “Darwikianismo” é o termo empregado para o ciclo vital de wikis – pode ser usada como um padrão para testar a longevidade e a utilidade dos softwares interativos. Wikis rapidamente se transformam em reservatórios de conhecimento compartilhado uma vez que o público em geral agrega suas contribuições o tempo todo (GODWIN-JONES, 2003) e a “sabedoria das massas” pode ser utilizada para a criação das “ferramentas de conhecimento”. A rede interativa propicia um ambiente estimulante e criativo, em que os leitores se tornam escritores e os consumidores contribuintes (BOULOS et al., 2006). É realmente a rede em que “ler/escrever” podem ser inseparáveis. Ambientes de aprendizado “não-controlados” Apesar de uma orientação natural para a independência não-controlada, tutores que cuidam do ensino à distância podem ser colocados unicamente para fazer uso da capacidade e do potencial do software interativo. Os professores podem tentar criar, por exemplo, atividades que, centradas nos estudantes, envolvam e desafiem por meio da plataforma do software interativo. Essas atividades podem precisar ser ligeiramente controladas mantendo a natureza autônoma dos espaços interativos. 28 Tem havido um longo e incessante debate sobre a eficácia da mídia e da tecnologia no aprendizado (KOZMA, 1994; CLARK, 1994), mas a escolha da tecnologia de transmissão é crucial para o sucesso de um programa. A Web 2.0 vai além abordagem de um “ambiente de aprendizado controlado” ou MLE [na sigla em inglês], de certa maneira formal e linear, estabelecida por toda parte na maioria do ensino superior e suplementar, proporcionando uma arquitetura de participação que estimula os estudantes a entrarem em comunidades de aprendizado não-hierárquicas. Talvez a nova expressão “ambiente de aprendizado não-controlado” seja apropriada ao uso da Web 2.0 para o ensino à distância. Sem dúvida, parece que os dias de ambiente de aprendizado controlado estão contados. Mais usual, a expressão “ambientes de aprendizado personalizado” ou PLE [na sigla em inglês] foi cunhada para descrever sistemas de arquitetura aberta nos quais os usuários criam, mesclam e editam seu próprio conteúdo. Este pode ser “tagged” [“rotulado” ou “classificado”] usando palavras-chave, de modo que outros usuários, de dentro e de fora do grupo de usuários, possam encontrar as páginas e, se permitido, participarem também da edição. Um site popular organizado com “tags”4 – Del.icio.us – possibilita que esses processos sejam conduzidos por indivíduos e grupos de uma maneira altamente visível e acessível. Independentemente da maneira como esse software aberto para edição é visto, fica evidente que o papel específico do professor/instrutor está sendo radicalmente reformulado, os professores tornam-se suportes enquanto os estudantes desempenham um papel mais ativo na criação e expressão do conhecimento. Presença interativa Estimular estudantes a mergulharem em ambientes de aprendizado altamente colaborativos nos quais eles são capazes de criar, misturar, modificar e ampliar suas próprias ferramentas de conhecimento usando softwares interativos como “instrumentos cognitivos” não é apenas desejável (JONASSEN et al., 1999). Deveria ser também um objetivo claro para todos aqueles que desejam criar uma presença interativa no ensino à distância. Indivíduos socialmente isolados, em geral, podem ser menos saudáveis do que aqueles ligados a um ambiente amplamente interativo. Putnam (2000) sugere que o capital social possibilita aos indivíduos aumentarem sua consciência das maneiras como seu destino está ligado à comunidade. “As redes que constituem capital social também servem como canais para o fluxo de informações úteis que facilitam atingir nossos objetivos.” (PUTNAM, 2000). Se usado corretamente, o software interativo proporciona um ambiente de rede como esse, fornecendo aos estudantes ferramentas de comunicação e contato virtual que simula uma co-presença. Há uma “frieza” perceptível relatada por muitos estudantes cujo aprendizado é, em grande medida, mediado pela tecnologia (WALLACE, 1999; RICE, 1993). A noção de que alguém não está simplesmente interagindo com a tecnologia, mas que o calor do contato humano RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.27-34, jan.-jun., 2007 existe na “outra extremidade” é vital para o sucesso da maioria dos aprendizes remotos (WALLACE, 1999). A presença interativa reflete a percepção do estudante de que ela/ele está se comunicando com as pessoas através da tecnologia (SHORT et al., 1976). Alcançar um efeito de presença interativa é, portanto, importante no ensino à distância pois, sem ela, os estudantes podem se sentir isolados. Com um sentido de presença interativa, por meio da intervenção tutorial direta, os estudantes sentem que não estão sozinhos em sua jornada de longa distância e freqüentemente elevam seu desempenho (BELAWATI, 2005); observam-se reações semelhantes no aprendizado das crianças (TUNG et al., 2006). A comunicação pessoal, rapidez de respostas do tutor e do grupo de colegas, e um sentimento de objetivo comum em uma comunidade de aprendizado são características que contribuem significativamente para sentimentos mais fortes de presença interativa (WHEELER, 2006). A web interativa tem a possibilidade de oferecer essas características. Divisão de trabalho Uma das características de wikis e de outras comunidades baseadas em softwares de edição coletiva, como o Google Textos e Planilhas, é que todos os membros de uma comunidade ou grupo de usários podem modificar, ampliar ou apagar as anotações anteriores com rapidez (RICHARDSON, 2006). Essas atividades, embora aparentemente destrutivas, tendem a proporcionar maior clareza do pensamento, correção cuidadosa de erros, e elaboração mais compreensível das idéias e do conteúdo atualizados anteriormente. A divisão de trabalho requerida para engajar um grupo inteiro de estudantes na produção de conteúdo pode ser explicada com base na estrutura da teoria da atividade (ENGESTRÖM, 1993). A divisão de trabalho, nesse contexto, diz respeito à relação horizontal entre membros de uma comunidade de aprendizado como resultado de suas ações mútuas e interações. Wikis podem subverter valores tradicionais como os de autoria individual e de propriedade intelectual (RICHARDSON, 2006), enquanto a autoria do conteúdo da comunidade se torna um fator de equalização. Uma divisão vertical de “poder e status” que representa esse diferencial também pode estar presente (THORNE, 2000). Se uma divisão como essa não for resolvida na comunidade de aprendizes, surgem conflitos. Por isso editores e organizadores de espaços de elaboração abertos regulam cuidadosamente a produção de conteúdo, exercendo o poder de remover a inserção de conteúdo ofensivo ou inapropriado. Isto é conseguido simplesmente “voltando” para uma versão anterior mais aceitável da página wiki por meio do recurso “histórico da página” wiki. Em um contexto de ensino, o desenvolvimento da página wiki é prudentemente deixado como esfera de atuação do grupo de estudantes. Qualquer diferencial de poder vertical ou divisão de status podem ser atenuados por intermédio do professor, que adota o papel de observador no processo criativo/destrutivo. Propriedade e pacto Quase não há dúvida de que os limites entre os profissionais e o público em geral estão sendo aos poucos erodidos pela proliferação e adoção ampliada de softwares interativos. Uma análise detalhada de sites de wikis sobre temas médicos ou legais confirmam isso. Em novas parcerias que estão sendo abertas, leigos e profissionais reúnem suas idéias, relações e negociações para criar locais de armazenamento de conhecimentos que transcendem os recursos tradicionais previamente disponíveis. Há uma espécie de “mentalidade coletiva” que emerge dessas interações virtuais, provavelmente revelada pela primeira vez por RHEINGOLD (1998) e outros. Os softwares coletivos, como wikis, folksonomias5 e aplicativos compartilhados são simplesmente ferramentas que estão facilitando essa revolução social. Ultimamente, os profissionais estão começando a perceber que não são mais os árbitros de todo o conhecimento, mas que através do uso de tecnologias de informações e comunicações, todos podem contribuir dentro da “arquitetura de participação” (O’REILLY, 2004). Alguns estudantes expressaram inquietação com o recurso que permite apagar ou modificar o “trabalho duro” anterior em vez da aceitação. Às vezes, eles mantêm a crença de que as idéias são “suas” que, de fato, em muitos casos, são mesmo. Elas o são até clicarem em “enviar”; a partir de então, o conteúdo torna-se “propriedade pública” e está sujeito a qualquer destruição. Já indicamos que o conflito pode ocorrer e observamos divergências entre nossos próprios estudantes durante a edição e elaboração de conteúdo de uma página wiki. Nesse contexto, a noção de propriedade intelectual tornase problemática, e a não ser que os membros do grupo de páginas wiki concordem com o conteúdo, uma série infindável de “guerras de modificações” pode se dar. Em geral, usuários de wikis percebem que o espaço de edição está aberto e livre para todos usarem e contribuírem e que o processo criativo/destrutivo continua sempre. Blogs e textos criativos Como muitos estudantes estão percebendo, escrever para a web nem sempre é o mais fácil. Webs logs, ou blogs, ganharam a forma de diários reflexivos online e são páginas encontradas na web, produzidas predominantemente por indivíduos, embora grupos e corporações também possam nelas estar envolvidos. Há também um recurso para leitores, freqüentemente os próprios blogueiros, que permite dialogar com quem escreveu o texto e gerar uma discussão durante um período de tempo. Muitos blogueiros registram que escrever com regularidade no blog possibilita-lhes descobrirem um lado mais criativo de si próprios (NÜCKLES et al., 2004). Alguns declaram que escrever blog fez deles melhores escritores e, finalmente, melhores comunicadores (WILLIAMS et al., 2004). Escrever blog tem também um aspecto curiosamente viciante, principalmente se o blogueiro sabe que tem leitores. Os estudantes geralmente escrevem blogs sobre o que os afeta durante seus estudos, e ficam contentes com a oportunidade de compartilhar seus pensamentos com outros. Eles se alegram ao receberem comentários RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.27-34, jan.-jun., 2007 29 feitos pelos leitores, indicando assim que as anotações ali inseridas estão sendo lidas e valorizadas. Estar integrado a um sistema de busca interativo tagging [organizado com tags], como o Del.icio.us ou o Technorati, pode também aumentar o tráfego para um blog e, quando outros blogueiros entram por meio de links em seus sites, as listas dos blogs sobem nos rankings de “popularidade”. Alguns blogueiros famosos já desfrutam de milhares de leitores constantes (WILLIAM et al., 2004; BOULOS et al., 2006). Estimular os estudantes a criarem um blog de grupo, em que cada membro tem a responsabilidade de contribuir fazendo atualizações com regularidade, é um meio válido para engajar estudantes mais tímidos e um bom equalizador na tentativa de engajar todos os estudantes no aprendizado ativo e opinativo. As pesquisas indicam que diários escritos sobre o aprendizado podem alimentar um envolvimento cognitivo mais profundo com o conteúdo do curso (NÜCKLES et al., 2004) e estimular uma reflexão crítica (KUHN, 1991). Além disso, se mantido no contexto do aprendizado, o diálogo entre os blogueiros pode gerar envolvimentos ricos e significativos com o material do curso, com as experiências e as novas idéias (WILLIAMS et al., 2004). Mundo virtual e second lives Um mundo virtual é um ambiente multimídia simulado, hospedado no computador, usualmente desenvolvido em toda a Web, e destinado, assim, aos usuários que podem “habitá-lo” e interagir via suas auto-representações gráficas conhecidas como avatares. O site da Virtual Worls Review http://www.virtualworldsreview.com fornece uma lista útil de mundos virtuais com duas dimensões (2D) e tridimensionais (3D) que enfatizam a interação social e continuam online. Destes, Second Life <http://secondlife.com/ - Imagem 1> talvez seja o mais popular hoje e, em meados de fevereiro de 2007, registrou mais de 3,5 milhões de cidadãos virtuais ou “Lifers”6, todos com seus próprios avatares de alta resolução totalmente texturizados que podem ser adaptados com requinte conforme o gosto ou a necessidade do usuário. <http://www. virtualworldsreview.com/secondlife>. Imagem 1 – Tela extraída do mundo virtual educacional ‘Heart Murmur Sim - Cardiac Auscultation Training Concept’ [Simulação de som anormal do coração - Imagem de Treinamento de Ausculta Cardíaca] criado no Second Life, que permite aos visitantes (estudantes de medicina) dar uma volta em uma clínica virtual e testar suas habilidades de identificar diferentes tipos de sons anormais do coração, com base nos arquivos de som do estetoscópio virtual da Universidade McGill <http://sprojects.mmi.mcgill.ca/mvs/mvsteth.htm>. 30 Mundos virtuais, como o Second Life, não são meros jogos 3D para vários jogadores. A experiência de imersão que esses ambientes oferecem combina muitas características da Web 2.0, como mensagens instantâneas, perfis, avaliações sobre os usuários e rede interativa, com uma única forma de interação online, que envolve compartilhar vários objetos e colaborações criativas na construção e funcionamento de lugares e serviços no mundo virtual (conteúdo gerado pelo usuário). Slurl <http://slurl.com>, um serviço na Web, que permite vincular sites externos ou remetê-los para lugares do Second Life (escolhidos pelos usuários como favoritos) também estão se expandindo. Alguns especialistas financeiros vêem até oportunidades únicas de negócios e de publicidade no Second Life (por exemplo: <http://money.cnn. com/2006/11/09/technology/fastforward_secondlife.fortune/index.htm> e artigos do Financial Times: http://www. ft.com/cms/s/cf9b81c2-753a-11db-aea1-0000779e2340. html e http://www.ft.com/cms/s/3e21a6ca-7a37-11db8838-0000779e2340.html. O potencial de uma rica experiência como essa no ensino também só pode ser grande. Em um mundo virtual, educadores podem criar comunidades em que os estudantes possam se registrar e interagir online. Dentro desses mundos virtuais educacionais, os estudantes usarão seu avatar para aprender novas tarefas e desenvolver estudos detalhados visíveis no mundo virtual <http://en.wikipedia.org/wiki/Virtual_world#In_the_classroom>. Na verdade, o Second Life inclui uma seção ou comunidade orientada para o ensino, e várias instituições educacionais nos Estados Unidos já o utilizam (ver “Top 20 Educational Locations in Second Life” (com links que remetem para ele usando o Slurl):<http:// www.simteach.com/wiki/index.php?title=Main_Page>. Educause tem páginas dedicadas ao Second Life (por exemplo, http://connect.educause.edu/taxonomy/ term/2174/0), que também foi foco de muitas atualizações de blogs educacionais recentes (por exemplo: http://stevewheeler.blogspot.com/search/label/Second%20Life). ANTONACCI et al. (2005) exploraram a natureza do Second Life em um texto online e apresentações de vídeo. Mais recentemente, YELLOWLEES et al. (2006) avaliaram o Second Life como uma ferramenta para o ensino de medicina destinado ao aprendizado sobre alucinações psicóticas, e concluíram que “o uso de ambiente gráficos conectados à internet possibilita o ensino público sobre doenças mentais”. Os resultados de uma pesquisa recente com duas mil pessoas (parte de um estudo de seis anos sobre atitudes na Web), realizada pelo “Center for the Digital Future” [Centro para o Futuro Digital], localizado nos Estados Unidos, constatou que muitos membros das comunidades online acreditam que as comunidades virtuais são tão importantes quanto suas contrapartidas do mundo real (BBC NEWS ONLINE, 2006). Portanto, os mundos virtuais 3D parecem oferecer muitas vantagens criativas adicionais para o ensino enquanto espaços interativos para aprendizado mas, como acontece com todos os aplicativos, é preciso tomar cuidado. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.27-34, jan.-jun., 2007 Principais desvantagens Apesar de o Second Life ter dois mundos ou duas grades separadas, uma para adolescentes e outra para adultos, e um conteúdo de grande utilidade gerado pelo usuário (por exemplo, http://orthodoxwiki.org/Virtual_Chapel), elementos indesejáveis, como jogos de azar/vício na internet, pornografia e exploração sexual de crianças (e adultos) online continuam a ser grandes problemas no Second Life. A mesma coisa acontece em muitos outros serviços da rede interativa Web 2.0 como no MySpace. Mesmo depois que um “lifer” desativa “Show/Search Mature Places and Events” no Second Life, ainda há uma grande possibilidade de encontrar um conteúdo ofensivo não-solicitado (TERDIMAN, 2006; REUTERS, 2007). tilhem e mapeem geograficamente informações com tags (SCHUTZBERG, 2006). A alimentação sobre a gripe aviária pela Daden para o Google Maps é um exemplo prático de uma “geoalimentação” relacionada à saúde: <http:www.daden.co.uk/pages/000208.html>. Outro exemplo, o HEALTHmap (http://healthmap.org), um sistema de mapa de alerta da doença global, também se baseia no Google Maps e em notícias (Imagem 2). Outro defeito, menos importante, é a necessidade de uma conexão de internet banda-larga veloz e de um computador e uma placa de vídeo mais sofisticados para possibilitar que o software do Second Life que, deve ser instalado na máquina do usuário, funcione de maneira estável e se comunique em tempo real com os servidores do Second Life e outros lifers online no mundo virtual. Mashups e outros dispositivos A quantidade de softwares cada vez mais sofisticados que se tornou disponível para a comunidade conectada traz com eles a capacidade de destruir e recriar trabalhos de criação digitais previamente gerados. Conhecidos como “mashups”, grande parte das imagens, dos sons e dos textos modificados, encontrados na Web 2.0, mantêm pouca ou nenhuma semelhança com suas formas iniciais. Esse replanejamento é uma característica comum crescente na Web 2.0. Um mashup extraordinário é uma combinação de recursos de mapas. Serviços de mapas online, como o Google Maps (http://maps.google.com), permitem que os usuários naveguem pela maior parte do globo (mesmo à noite, no site http://moon.google.com/) por meio de uma interface da Web interativa, cuja visualização tem níveis variados de resolução, através de mapas, imagens de satélites ou de uma combinação dos dois. Mashups de mapas podem ser alimentados por dados de outras fontes daqueles mapas online, resultando em novos mapas interativos, gerados pelo usuário, que podem ter marcadores clicáveis para mostrar pontos de interesses específicos. Mashups de mapas podem até mostrar links para informações adicionais encontradas na Web sobre aqueles pontos (definição adaptada de: Educause. 7 things you should know about... Mapping Mashups [Sete coisas que você precisa saber sobre... Mashups de Mapas] em http://www.educause. edu/ir/library/pdf/ELI7016.pdf). Uma vez que o RSS (Really Simple Syndication/Rich Site Summary) [Distribuição Realmente Simples/Sumário de Sites Interessantes] está se tornando cada vez mais usual como meio de publicação e compartilhamento de informações online, tem-se tornado crescentemente importante ampliá-lo para permitir que os lugares sejam descritos de uma maneira interoperável. Essa medida possibilita que os usuários solicitem, agreguem, compar- Imagem 2 – Tela extraída do HEALTHmap (http://healthmap.org), um serviço mashup de mapas, combinados com novos links, relacionados à saúde, de diversas fontes de mapas derivadas do Google Maps, usando a API (Application Programming Interface) [Interface de Programação de Aplicativos] que o Google Maps fornece com esse propósito. (http://www.google.com/apis/maps). Além disso, com a cortesia de softwares grátis ou baratos como o GooPs (http://sites.onlinenw.com/goops/ goops.php) e o GpsGate (http://franson.com/gpsgate/), os usuários podem assinalar sua própria posição nos mesmos mapas e também ver a posição de seus amigos em tempo real na Web, se tiverem um simples GPS (um dispositivo baseado no Sistema de Posicionamento Global para identificar uma posição) como um receptor USB GPS ligado ao seu laptop ou PC. Os que se entusiasmam com fotografias podem usar câmeras com GPSs embutidos para possibilitá-los colocar coordenadas do lugar exato na terra em cada fotografia foi tirada. No entanto, mesmo sem esses dispositivos as pessoas estão aptas a “geotag” suas fotos e a utilizar os serviços existentes na Web 2.0 como o Flickr (http://www. flickr.com/groups/mappr), o Mappr (http://www.mappr. com), e o Google Earth (http://earth.google.com) de muitas maneiras originais e entusiasmantes (TORRONEM, 2005). Exemplos mais recentes de mashups de mapas incluem o Jotle, um Maps-Flickr do Google (fotos) com um Mashup do YouTube (vídeos): <http://www.jotle.com> e o “Google Books and Maps” (para um exemplo da geografia médica do último, ver a seção “Places mentioned in this book” [Lugares mencionados neste livro] em: <http://books. google.com/books?vid=ISBN159385160X>. Mashups de mapas são, assim, um excelente exemplo de informações (compartilhadas, reutilizadas e reconcebidas) remixadas na Web 2.0 para produzir conteúdo RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.27-34, jan.-jun., 2007 31 de valor-agregado. A distribuição global de ferramentas geoespaciais, imagens e mapas “grátis” pelo Google e outros provedores deve ser aplaudida como um passo significativo em direção à “wikificação” final de mapas e GIS ou Geographic Information Systems [Sistemas de Informações Geográficas] (BOULOS, 2005). SYM-SMITH (2007) descreve como os conceitos de Web 2.0 e de computação interativa – em que a tecnologia põe o poder nas mãos das usuários e não das instituições – estão reescrevendo as regras na área de navegação pela terra. Educause publicou dois interessantes textos de duas páginas sobre o uso dos mashups de mapas (Educause. 7 things you should know about... Mapping Mashups [Sete coisas que você precisa saber sobre... Mashups de Mapas]: <http://www.educause.edu/ir/library/pdf/ELI7016.pdf>) e Google Earth (Educause. 7 things you should know about... Google Earth [Sete coisas que você precisa saber sobre... Google Earth]: <http://www.educause.edu/ir/library/pdf/ ELI7019.pdf>) em educação e suas conseqüências para o ensino e o aprendizado. Mashups de mapas certamente têm um grande potencial para o ensino e alguns educadores já o utilizam (ver as páginas do Educause citadas acima). Mashups de mapas oferecem muitas possibilidades para educadores criativos, mas essas possibilidades necessitarão ser identificadas, exploradas em vários contextos/ cenários, e cuidadosamente pesquisadas e avaliadas para documentar as melhores práticas antes de poderem ser usadas com segurança nas atividades diárias de ensino e aprendizado. Conclusão 2. Wikis são sites colaborativos que podem ser editados pelos que os acessam. Um dos mais conhecidos é o da Wikipedia <www.wikipedia.org>, enciclopédia mundial online, redigida em diversas línguas, constantemente atualizada por seus usuários colaboradores. (N.T.) 3. Ver a seção Blogs e textos criativos. (N.T.) 4. Tag, neste contexto, é uma palavra-chave utilizada pelo usuário da internet para identificar seus sites favoritos ou um tema relacionado ao conteúdo publicado e que ele deixa disponível para outros usuários. (N.T.) 5. Folksonomia é uma classificação gerada pelo usuário com palavras-chave (“tags”) para facilitar a recuperação de informações encontradas na web e que pode ser visualizada por outros usuários que, por sua vez, podem criar sua própria classificação. (N.T.) 6. Apelido preferido dos cidadãos do Second Life. A palavra foi mantida em inglês porque o autor se refere ao Second Life norte-americano. No entanto, no Second Life Brasil, que surgiu no país há um mês, eles são chamados “residentes”. (N.T.) Referências bibliográficas Neste curto artigo, mostramos que existem muitas oportunidades para os estudantes se engajarem em uma interação e em um aprendizado colaborativos por meio de softwares possibilitados pela Web 2.0. Compartilhar, combinar e misturar objetos digitais pode ser tanto criativo quanto destrutivo, mas geralmente levam a resultados mais positivos e acurados. Enfim, wikis, blogs, mashups, mundos virtuais 3D e outros aplicativos interativos podem criar para os estudantes um ambiente informal vibrante, dinâmico e desafiador onde aprender. Esses ambientes vão além dos limites tradicionais dos estabelecimentos de ensino, e atravessam áreas que ainda devem ser inteiramente exploradas, levantando questões interessantes a serem trabalhadas pelos professores. Uma coisa é certa – a popularidade dos softwares interativos na internet continuará a crescer, uma vez que mais usuários começam a explorar o potencial para gerarem suas próprias concepções e construir suas próprias experiências de aprendizado personalizadas. Notas 1. Neste artigo, muitas palavras serão mantidas em inglês por terem sido assim consagradas e, portanto, mais conhecidas como tais pelos usuários da internet. Ao longo do texto, algumas são explicadas pelo autor. Quando isso não se der, um esclarecimento será feito entre colchetes ou em nota de rodapé. No caso da Web 32 2.0, embora não haja consenso, entre os estudiosos e críticos da área, sobre o que realmente a diferencia da rede anterior para ser tratada como segunda geração, é considerada uma plataforma em que softwares deixam de ser apenas programas instalados nos computadores e passam a se integrar na rede mundial, permitindo a troca de informações e a colaboração entre os usuários nas próprias páginas da internet. (N.T.) ANTONACCI, D. M.; MODARESS, N. Second Life: The Educational Possibilities of a Massively Multiplayer Virtual World (MMVW), 2005. Disponível em: http:// www2.kumc.edu/netlearning/SLEDUCAUSESW2005/ SLPresentationOutline.htm. Acesso em: 21 Jan, 2007. BBC NEWS ONLINE. Virtual pals ‘soar in importance’. 30 Nov. 2006. Disponível em: http://news.bbc. co.uk/1/hi/technology/6158935.stm. Acesso em: 24 Jan. 2007. BELAWATI, T. The impact of online tutorials on course completion rates and student achievement. Learning, Media and Technology, v.30, n.1, p.15-25, 2005. BOULOS, M. N. Web GIS in practice III: creating a simple interactive map of England’s Strategic Health Authorities using Google Maps API, Google Earth KML, and MSN Virtual Earth Map Control. International Journal of Health Geographics, v.22, 2005. Disponível em: http://www.pubmedcentral.nih.gov/articlerender. fcgi?artid=1242244. Acesso em: 15 Feb. 2007. BOULOS, M. N.; MARAMBA, I.; WHEELER, S. 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Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.27-34, jan.-jun., 2007 33 Sobre os autores Steve Wheeler Professor em Educação e ICT na Faculdade de Educação da University of Plymouth. Desde 1976 trabalhou com mídia educacional e tecnologia além de ter sido consultor em diversos projetos inovadores de e-learning, incluindo o projeto RATIO no Reino Unido e, a rede de banda larga ampla do estado de Dakota do Sul nos Estados Unidos. Ele é professor visitante de várias universidades nos Estados Unidos e na República Tcheca e é regularmente convidado como palestrante em diversas conferências internacionais. Seus interesses de pesquisa incluem percepção de aprendizado e e-learning. Além disso, é membro do conselho editorial de seis revistas acadêmicas, incluindo ALT-J, Interactive Learning Environments e IRRODL. Sua publicação mais recente é o ‘Transforming Primary ICT’, ainda sem tradução para o português. Maged N. Kamel Boulos Professor em Informática da Saúde na University of Plymouth na cidade de Devon no Reino Unido. Antes exerceu o mesmo cargo na University of Bath no Reino Unido, e na City University em Londres, ambas também no Reino Unido. Além de sua graduação em medicina e mestrado em dermatologia, ainda tem um mestrado em “Medical Informatics” do King’s College, University of London, Reino Unido, e doutorado em “Measurement and Information in Medicine” na City University, em Londres. Já publicou muitos livros sobre Web 2.0/software social, a Web Semântica (Semantic Web) e o sistema de informação geográfica, incluindo Internet/Web GIS, em saúde e cuidado à saúde. Também é Editor Chefe do Open Access International Journal of Health Geographics http://www.ij-healthgeographics.com, e um dos principais pesquisadores do projeto de e-saúde CAALYX EU FP6 http://caalyx.eu. 34 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.27-34, jan.-jun., 2007 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Artigos originais A complexa dinâmica da divulgação científica O caso da Revista Ciência & Saúde Coletiva1 Maria Cecília de Souza Minayo Revista Ciência & Saúde Coletiva e Centro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde / Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz , Rio de Janeiro, Brasil cecí[email protected]. Resumo Neste artigo busco descrever, analisar e problematizar o processo de comunicação, de disseminação e de divulgação científica. Utilizo como base reflexiva o desempenho da Revista Ciência & Saúde Coletiva nos seus onze anos de existência e busco articular a reflexão deste caso com o “campo de interesses” que constitui o processo de comunicação, indexação e conseqüentemente, valorização do veículo, dos editores e dos autores no cenário internacional. Metodologicamente, os dados publicados e ilustrados fazem farte do arquivo da Revista citada, tendo sido categorizado e analisado por mim, com a colaboração da editoria executiva da revista. Nas análises e conclusões, procuro mostrar que no campo da ciência e da tecnologia, o “ouro do século XXI” não há lugar para ingenuidades. No entanto, existe espaço sim, para cooperação nacional e internacional e para dar uma razão social à produção acadêmica: ciência para a sociedade. Palavras-chave Ciência & tecnologia em saúde, comunicação científica em saúde, divulgação científica em saúde, campo da saúde coletiva Introdução Este artigo tem a finalidade de problematizar a questão da comunicação, da disseminação e da divulgação científica. Para isso na sua primeira parte, descrevo o processo de construção da Revista Ciência & Saúde Coletiva, da qual sou editora científica, em seus onze anos de existência. Na segunda parte, discuto o esforço individual e coletivo que vimos empreendendo para conseguir disseminar corretamente as informações sobre os autores e seus artigos e todos os percalços, dificuldades, interesses e problemas presentes nessa última etapa do processo de produção científica. Ao tratar da história de um periódico científico específico, minha hipótese é de que estarei pautando questões que transcendem a idiossincrasia de uma revista e poderiam ser generalizados (com os devidos cuidados) no que se refere à disseminação e à divulgação científica. Neste texto, gostaria de chamar atenção dos colaboradores para uma reflexão mais profunda e ampliada, abrindo os horizontes de quem, cada um por si, está preocupado com sua produção, com seu artigo, com o lugar que a revista ocupa no concerto das publicações científicas visando unicamente seus créditos pessoais na carreira. Faço isso, no pressuposto de que repartir problemas e RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.35-44, jan.-jun., 2007 35 responsabilidades significa também o fortalecimento de todos os atores e o aumento das possibilidades de superação dos desafios, por vezes gigantescos, com que nós, os editores científicos, nos deparamos. Material e método Todos os dados quantitativos apresentados neste artigo foram organizados a partir dos arquivos de informação da Revista Ciência & Saúde Coletiva armazenados até 2005 em papel e nos relatórios técnicos anuais enviados ao CNPq cujas cópias estão arquivadas. A partir de 2006, as informações estão armazenadas em planilhas eletrônicas. Junto com a editoria executiva elaboramos categorias de análise da produção e resumimos os dados no quadro síntese aqui publicado. Esses dados foram então transformados em vários gráficos. Neste estudo, por padronização exigida do periódico, apresentamos apenas quatro ilustrações. A segunda parte do artigo, consistiu num diálogo com a história da Revista e com autores que analisam criticamente o campo da comunicação científica. pesquisa, embora de forma padronizada e normalizada pela revista ou por outros meio de disseminação ou de divulgação que ele escolher. A etapa da comunicação tem por finalidade incluir a pesquisa e o pesquisador na cena e no debate nacional e internacional sobre o assunto específico que investiga. Já a disseminação eu a defino, neste texto, como o processo orientado para fazer chegar a um público especializado a comunicação da informação científica e tecnológica, transcrito em códigos e veículos peculiares à área de conhecimento. Essa atividade é realizada, geralmente por editores científicos de livros, revistas e outros meios, inclusive os eletrônicos. Disseminar os resultados das pesquisas e do debate acadêmico de determinada área constitui um processo de trabalho específico e cada vez mais especializado mobilizando, sobretudo, a crítica interpares. A forma contemporânea predominante de comunicação e de disseminação científica são os artigos, tendo como meio as revistas acadêmicas que, por sua vez, compõem bases de dados nacionais, regionais e internacionais. Toda atividade científica começa pela elaboração de um projeto ou protocolo, que, variando muito pouco, empreende os seguintes passos: revisão de literatura, aprimoramento dos instrumentos observação ou de coleta de dados, atividades de observação ou de investigação de campo e construção das várias etapas de análise (ordenação, classificação, articulação entre dados e teorias e síntese dos resultados). Geralmente o produto final de uma pesquisa é um relatório que inclui todas as etapas de produção do trabalho e é o celeiro das descobertas e achados a serem comunicados nos veículos especializados, ao final e durante a elaboração da investigação. Quando observamos o cenário acadêmico brasileiro, constatamos que a disseminação de artigos vem crescendo em progressão geométrica. Nosso país ocupa hoje o 18º lugar no mundo, quanto ao número artigos publicados em veículos indexados em bases internacionais, o que significa, comparativamente, uma boa performance (GUIMARÃES, 2004). Esse processo de desenvolvimento acompanha o incremento do número de Programas de Pós-graduação stricto sensu e a recorrente exigência desses cursos para que mestrandos e doutorados publiquem os resultados de suas pesquisas. Acrescendo a isso, existem critérios classificatórios cada vez mais rigorosos dos pesquisadores e das instituições, estabelecidos pelas Agências de Fomento e Avaliação, com base no número e na qualidade da produção científica, quando se trata de conceder financiamento de cursos e de projetos de investigação. Há três expressões geralmente utilizadas para referência das atividades retóricas e dos meios utilizados pelos cientistas para interagirem com o público: comunicação, disseminação e divulgação. Tentarei defini-las. No entanto, ressalvo que lendo a literatura sobre o assunto, essas três expressões são bastante imprecisas e intercambiáveis e não existe um rigor conceitual na designação dos processos em questão. Com a finalidade deste texto tentarei diferenciá-las. Defino comunicação científica como a troca de informações entre os membros da comunidade acadêmica. GARVEY (1979) inclui no conceito de comunicação as atividades de disseminação e uso da informação, desde o momento em que o cientista concebe uma idéia e constrói seu projeto. Geralmente esse processo ocorre informalmente, diz ele, (reuniões nos horários de almoço, por e-mail, nos corredores e bastidores de encontros e congressos). E formalmente por meio de artigos, livros, seminários, apresentação em congressos e outros. Portanto, a comunicação é uma fase do processo científico de responsabilidade do investigador, que se formaliza em comum acordo com as editorias científicas, pois ao autor cabe apresentar sua A pergunta básica que nos ocorre fazer é sobre o porquê de tanta ênfase e valorização da comunicação científica nos currículos individuais e institucionais, quando há outros meios de aferição de produtividade como é o caso das orientações de estudantes, da quantidade de aulas ministradas, de assessorias e de produção técnica. Essa resposta em si é simples, porém oculta uma série de interrogantes e de problemas. Creio que a maior valorização das publicações se deve, primeiro, ao fato de que a pesquisa é a alma do avanço científico e tecnológico. Segundo, porque disseminar as investigações é dar-lhes existência social. Existe hoje um consenso irretocável na comunidade científica sobre a necessidade de compartilhar a ciência que é construída nos laboratórios e em grupos de pesquisa, levando a uma conclusão radical de que ciência não-comunicada e não devidamente divulgada é ciência que não existe: ninguém pode adivinhar o que se passa na sala de um pesquisador se sua atividade investigativa não vem a público por meio de um formato consagrado internacionalmente (VESSURI, 2003). Autores como LAFUENTE et al., por exemplo, invertendo a tese cartesiana segundo a qual “penso, logo existo” escrevem Conceito de comunicação, de disseminação e de divulgação científica 36 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.35-44, jan.-jun., 2007 que no mundo científico: “existo porque sou pensado e não porque penso” (LAFUENTE et al., 1998). No entanto, não é apenas a comunicação visando aos pares e sua disseminação em veículos científicos especializados que importam no mundo da Ciência e Tecnologia. Sem querer aplicar uma lógica utilitarista ao campo intelectual, é também consenso no mundo inteiro que, além de promover a socialização dos achados e, assim, o avanço do pensamento e das práticas, da avaliação e da crítica no seu próprio meio, os cientistas precisam divulgar os conhecimentos para o público em geral, utilizando linguagem accessível aos leigos. Por isso, freqüentemente autores como (ALBAGLI, 1996) utilizam a expressão divulgação científica como sinônimo de popularização da ciência. A comunicação científica, portanto, além de permitir o diálogo interpares que ocorre por meio da sua disseminação em livros, artigos e meios eletrônicos, tem o importante papel de realizar uma espécie de alfabetização do público para a ciência. Isso ocorre cada vez mais, exigindo métodos e técnicas especializadas de linguagem comunicativa de massa em revistas, artigos e seções na grande imprensa e em jornais eletrônicos abertos ou institucionais. Essa atividade, no mínimo, tem duas conseqüências importantes: projeta o sentido e a utilidade pública das atividades científicas e cria, na sociedade, uma consciência sobre a importância do investimento nesse setor. Em sua reconhecida obra KNORR-CERTINA (1981) ressalta que a comunicação infiltra a investigação científica e é responsável pela sua projeção. Portanto, é um nonsense falar em “ciência privada” ou numa ciência sem comunicação e sem disseminação. Neste artigo, apesar de conceitualmente ter aberto o leque do conceito de comunicação, disseminação e de divulgação do conhecimento, falarei apenas da comunicação e da disseminação que são feitas pela revista científica e, por conseqüência, da práxis da publicação de artigos. Ciência & Saúde Coletiva para a Sociedade O título desta parte é o slogan da revista aqui descrita e que o leitor pode facilmente acessar na página www. cienciaesaudecoletiva.com.br. Ciência & Saúde Coletiva é um periódico bimensal da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). O termo “Saúde Coletiva”, que está presente tanto no nome da Revista como da Associação merece uma explicação. Simplificadamente “Saúde Coletiva” é sinônimo de “Saúde Pública” e todas as vezes que traduzimos o termo para o inglês ou para qualquer outra língua estrangeira remetemos a essa similaridade pois apenas no Brasil se usa a expressão “saúde coletiva” de forma institucionalizada. Como todo conceito que surge e se consagra historicamente, “saúde coletiva” remete aos processos de luta política da chamada “Reforma Sanitária” iniciada durante o período de ditadura militar no Brasil (1964-1979) visando à universalização do direito à saúde a toda a população brasileira (TEIXEIRA, 1987; ESCOREL, 1999). A noção tomou corpo e criou sua própria identidade por meio da crítica ao conceito de “saúde pública” (TEIXEIRA, 1987) termo cujo sentido histórico sempre se vinculou às intervenções do estado para superar enfermidades que dizimam ou que afetam grupos populacionais específicos. O termo “coletivo”, objeto da politização considerada necessária para o avanço da “consciência sanitária” (BERLINGUER, 1978), na visão do movimento da reforma reunia não apenas o estado enquanto interventor sobre a sociedade vítima de epidemias e endemias, mas, principalmente, os movimentos e grupos que se organizam para defender e conquistar seu direito à saúde e para definir os parâmetros daquilo que consideram uma vida saudável. Em resumo, o termo “saúde coletiva” foi uma das consignas das lutas sociais pela Reforma Sanitária Brasileira e que se consagrou na chamada Constituição Cidadã de 1988. A expressão se perpetuou no nome da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) e passou a ser institucionalizado também nas Instituições de avaliação científica e de fomento como Capes, CNPq e Finep. Nada mais justo que conservar a mesma expressão no nome da Revista – Ciência & Saúde Coletiva – na medida em que esta é o órgão oficial de disseminação científica da Associação. A expressão “para a sociedade” colocada à frente do nome da Revista, faz jus a essa instituição que, no decorrer de sua história iniciada em 1979, sempre teve como uma de suas mais importantes atividades, a socialização de conhecimentos na área de saúde coletiva, divulgando-os em congressos, seminários, livros, encontros e reuniões e visando à melhoria das práticas de atenção, de gestão e as políticas de saúde. No entanto, a discussão sobre a criação de um periódico impresso da própria associação só aconteceu no decorrer dos anos 1990. Esse desejo veio junto com o início do período de desenvolvimento da Pós-Graduação stricto sensu na área que se consolidou a partir da década referida. Tendo em vista que, no caso brasileiro, falar da Pós-graduação stricto sensu é falar igualmente do avanço da ciência e da tecnologia em todas as áreas do conhecimento, a decisão de criar a Revista Ciência & Saúde Coletiva correspondeu ao estágio de desenvolvimento do pensamento científico nesse campo. O desejo de promover essa iniciativa também teve respaldo na experiência da maioria das áreas científicas do país que, mesmo tendo outras revistas competindo com a divulgação de investigações e debates das disciplinas que representam, criaram seus próprios veículos de comunicação e de divulgação. A decisão de fundar uma revista, finalmente, foi tomada no segundo semestre de 1996. Essa criatura pensada, debatida e sonhada acaba de completar onze anos: de 1996 até 2001 foram editados dois números/ano. Nos anos subseqüentes, quatro números/ano. E a Revista iniciou o ano de 2007 publicando seis números anuais, correspondendo à crescente demanda do campo de conhecimento e evidenciando o aumento consistente da demanda por publicação nesse veículo. Ciência & Saúde Coletiva configura-se como um espaço científico para publicação de debates, apresentação de pesquisas, exposição de novas idéias e de controvérsias RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.35-44, jan.-jun., 2007 37 sobre a área. Em 2006, 108 artigos foram publicados (quatro números temáticos e um suplemento) assinados por 304 investigadores e profissionais da área. Houve um crescimento visível de participação de colaboradores quando se comparam, por exemplo, dados de 2002 (primeiro ano em que a revista passou a ser trimestral) no qual foram publicados 67 artigos com 162 autores. Em cada número há também participação de pesquisadores de países de língua inglesa, francesa e espanhola. Atualmente, o montante anual de artigos recebidos pela secretaria executiva está por volta de 500/ano tendendo a aumentar, pois em 2006 foram recebidos 545. Desde sua origem, a revista cumpre fielmente requisitos de periodicidade e de normalização seguindo a orientação da Convenção de Vancouver que geralmente é utilizada pelas revistas da área médica (C&SC, 2006). Para cada número temático são convidados um ou mais editores, reconhecidos pesquisadores no tema em questão. Esses editores inicialmente produzem um termo de referência, estabelecendo o objetivo, o sentido e a importância do assunto em pauta, escolhendo os articulistas e debatedores. O termo de referência é preparado em comum acordo com a editoria científica (editor científico e editores associados) que o lê, o critica, opina sobre possíveis modificações. Uma vez aprovado, o termo de referência é divulgado dentro do cronograma anual da revista e os editores convidados passam a ser co-responsáveis pela produção do número em questão. Todos os pesquisadores convidados para escrever artigos temáticos, sabem que seus textos também passam por pareceristas e são conscientes dessa condição. No decorrer de 1998, a revista definiu sua personalidade (por isso consideramos os anos de 1996 e 1997 como uma espécie de pré-história) por meio de duas decisões editoriais importantes: (1) mudança no formato e na padronização. Além de uma nova organização de conteúdo e de espaço que permanecem até hoje, foi criada uma nova capa que lhe deu identidade, desde então, por meio de uma imagem da população brasileira (sintetizando a idéia de ciência e saúde coletiva) estilizada em meio eletrônico. (2) Houve também uma opção editorial de torná-la uma revista temática. Tal decisão teve por base a proposta da Abrasco de assumir, cientificamente, a discussão do estado do conhecimento sobre assuntos relevantes para o campo da Saúde Pública, investindo na divulgação de pesquisas e discussões públicas. Por isso, cada número inicia-se com um debate que reúne, em torno de um texto de referência, opiniões de cerca de seis especialistas. A finalidade desse debate é evidenciar temas controversos no campo da saúde e contribuir para seu esclarecimento. A seguir, vêm cerca de 10 até 15 artigos sobre um assunto tomado como foco; depois, temas livres (também artigos de pesquisa e revisão) de saúde coletiva; uma ou duas opiniões sobre pesquisas em andamento, informação sobre resultados de reuniões científicas ou uma a duas entrevistas. Ao final há resenhas de livros, sempre que possível, condizendo com o tema em foco. Cada número abrange no mínimo 25 artigos. A escolha dos temas sobre os quais versam os números da Revista vem de várias inspirações. Alguns, por exemplo constituem demandas detectadas pelos editores frente a problemas que estão ocorrendo e necessitam de aprofundamento. É hora, então, de colocar a proposta para os mais importantes pesquisadores sobre o assunto. Esse foi o caso de números sobre (1) avaliação da PósGraduação em Saúde Coletiva; (2) análise da articulação entre saúde e ambiente no processo de desenvolvimento; (3) debate sobre prevenção da violência; (4) conceito de saúde como qualidade de vida; (5) análise das Políticas de Saúde pós-Constituinte. Fizemos outros números importantes também por demanda dos editores, por exemplo, (1) o que comemorou 100 anos de Saúde Pública no Brasil; (2) o que discutiu o impacto das novas descobertas da Genética para a Saúde Coletiva; (3) o que discutiu o SUS na prática; (4) o que aprofundou o debate sobre o coletivo e a a subjetividade na práxis da saúde; (5) dois que fizeram uma análise profunda dos dados das Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio) 1998 e 2003; (6) o que se dedicou à Saúde do Homem e (7) às doenças não-transmissíveis. Do ponto de vista científico, a revista segue todos os trâmites reconhecidos internacionalmente. Possui (a) uma editoria científica e uma equipe de editoria executiva; (b) um corpo de editores associados que responde pelas áreas principais de desenvolvimento da saúde coletiva/pública no Brasil – epidemiologia, planejamento e gestão de saúde, ciências sociais e saúde, ciência e tecnologia e saúde e ambiente; (c) um Conselho Editorial composto por 72 pesquisadores-doutores das instituições nacionais de saúde de todo o território nacional e alguns representantes internacionais dos seguintes países (Argentina, Peru, Venezuela, Colômbia, México, Chile, Canadá, Estados Unidos da América, França, Inglaterra e Austrália); (d) e um corpo diversificado de consultores ad-hoc. É obrigatória a avaliação por pares de todos os textos. 38 Outros números são organizados por demanda de pesquisadores ou de gestores de saúde como foi o caso dos que tratam de (1) Pesquisa em saúde; (2) Saúde e Trabalho no Brasil; (3) Avaliação como estratégia de mudança na atenção básica e outros. A tabela, a seguir, oferece uma síntese do comportamento interno da revista, mostrando a dinâmica de seleção do que vai ser publicado e como isso ocorre. Ou seja, como pode ser visto, a produção de uma revista constitui uma pequena empresa com complexas atividades e envolvimento de atores. E para cada artigo que é publicado - com sua personalidade e história própria – mais da metade retorna a seus atores porque não tiveram mérito ou não correspondem ao escopo do veículo. Uma boa porção, porém, é devolvida para aprimoramento de conteúdo e de forma. É importante ressaltar que esse movimento relacional tem uma função pedagógica insubstituível, apesar de todos os problemas de viés e de competição de pessoas e grupos freqüentemente assinalados pelos que têm seus textos questionados por avaliadores e editores científicos. Não existe perfeição. A seguir, apresento uma síntese da dinâmica editorial. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.35-44, jan.-jun., 2007 Tabela 1 - Síntese da dinâmica da revista RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.35-44, jan.-jun., 2007 39 O gráfico 1 mostra uma tipologia dos textos publicados. Ressalto que a maioria deles corresponde à comunicação de pesquisas e, em segundo lugar, a revisões sistemáticas e debates. Essa seleção evidencia o dinamismo das atividades de pesquisa na área de Saúde Coletiva e o lugar especial que a divulgação das investigações crescentemente passou a ocupar. Gráfico 1 - Tipologia do conteúdo da Revista namizar a questão da divulgação e o amplo acesso social aos conhecimentos científicos, principalmente, os que são gerados com verbas públicas. As páginas web sem dúvida representam um avanço importante e são um sucesso. Por exemplo, a página www.cienciaesaudecoletiva.com. br completou um ano com mais de 40 mil consultas. A situação da divulgação de Ciência & Saúde Coletiva impressa é mais problemática, pois detectamos que há uma fatia muito importante de leitores que deveria ser focalizada e privilegiada e não o é: caso dos estudantes de graduação em todas as áreas das ciências da saúde. Cada artigo recebido passa pelo seguinte fluxo: (a) é, em primeiro lugar, julgado por um crivo editorial quanto a sua pertinência ao escopo da Revista; (b) se pertinente, é protocolado, processado e enviado, sem nome e sem vinculação dos autores, a dois pareceristas que têm 20 dias para ser pronunciarem sobre seu mérito e qualidade. Atualmente os autores e colaboradores utilizam a página www.cienciaesaudecoletiva.com.br para os procedimentos de envio de artigo e avaliação. No que se refere ao perfil dos leitores, ao longo dos anos a revista foi se “elitizando”, o que é bastante compreensível por se tratar de um periódico científico especialmente procurado por doutores, mestres e estudantes de pós-graduação stricto sensu. Essa análise do perfil mostra presença quase nula dos leitores dos cursos de graduação, o que tem merecido reflexão e projeto de investimento do Conselho Editorial. Fazer chegar a revista às mãos de quem a Associação gostaria que a lesse é um ponto crucial da política editorial e, possivelmente seja ainda o ponto mais fraco de Ciência & Saúde Coletiva. No Brasil há pouca tradição de investimento na divulgação científica para a sociedade, pois isso demandaria um direcionamento específico de marketing social, ainda pouco desenvolvido. É bem verdade que os meios eletrônicos vieram enfatizar, problematizar e di- O fluxo entre a submissão de um artigo e sua divulgação leva uma média de oito meses. Porém, combinando o processo escrito e o eletrônico e seguindo o exemplo de várias revistas internacionais, passamos a divulgar on-line, no prazo de 24 horas, os artigos aprovados. A padronização do formato e das normas de citação permite aos autores os citarem e receberem créditos imediatamente. Quando o artigo é publicado em papel e entra na base SciElo é, então, retirado da página da revista on-line. O gráfico 2 apresenta o perfil do conteúdo publicado. Fiz um agrupamento dos temas privilegiando algumas categorias e tendências. Apesar dessa intervenção subjetiva, fica patente que os textos divulgados correspondem ao campo da Saúde Coletiva, onde, persistentemente se encontram problemas de delimitação de fronteiras. Neste periódico esse problema também ocorre, exigindo uma arbitragem delicada e cuidadosa em tais casos. No entanto, sempre que possível, privilegiamos a interface de disciplinas e áreas afins. Gráfico 2 - Temas tratados na Revista de 1996 a 2006 10 40 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.35-44, jan.-jun., 2007 O gráfico apresentado deixa à mostra a variedade de assuntos publicados. No entanto, alguns concentram as principais colaborações recebidas e aprovadas: saúde, ambiente e trabalho; promoção da saúde e qualidade de vida; políticas de saúde e controle social; avaliação em saúde; ciência e tecnologia em saúde; sociologia e antropologia da saúde. O gráfico 3 ilustra a inserção de nossos leitores no mundo profissional e científico. Como pode ser observado, há um crescimento consistente do número de leitores. E a maioria deles corresponde exatamente ao perfil da revista e da área: sanitaristas e estudiosos de medicina preventiva e de saúde coletiva, profissionais de gestão, formuladores de políticas, professores e coordenadores de pós-graduação, médicos, cientistas sociais, bioestatísticos e, em menor escala, biólogos, odontólogos e enfermeiros. A classificação profissional é atribuída a si mesmo pelo próprio assinante. Um dos pontos problemáticos da revista é a sua divulgação para a sociedade em geral. Esse ponto tem sido objeto de discussão do Corpo Editorial sobretudo em relação aos estudantes de graduação no que tange à versão impressa. Pois estamos seguros de que nosso limite são os pesquisa- dores e profissionais citados e às bibliotecas universitárias distribuídas pelo país e algumas do exterior. A versão eletrônica, no entanto está à disposição da população em geral e o “fale conosco” interage com leitores dos mais diversos estratos sociais e interesses. No entanto, consideramos que a socialização que deveria ser conseguida pela popularização de Ciência & Saúde Coletiva é um ponto a ser aprofundado e melhorado na política editorial. Geralmente, um dos grandes problemas de uma revista científica é o seu financiamento. Ciência & Saúde Coletiva é financiada, em parte, pela Abrasco que a mantém através de assinaturas nacionais e internacionais, institucionais e individuais. Mais duas instituições, em toda a história do periódico, têm sido fundamentais para garantir seu sucesso, pontualidade na entrega e qualidade editorial: a Fundação Oswaldo Cruz que sedia sua secretaria executiva e a apóia institucionalmente e o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) que, desde o seu início vem colaborando com parte dos financiamentos e avaliação, o que constitui, para nós, um selo de qualidade. Além dessas duas entidades, o Ministério da Saúde freqüentemente colabora com o financiamento de números que lhe atendem a interesses específicos. Gráfico 3 - Inserção profissional dos leitores e assinantes A tiragem do periódico impresso é hoje de 3.000 exemplares, o que pode ser considerado um sucesso, pelo menos na América Latina. Além dos sócios da Abrasco, há cerca de 400 assinaturas institucionais e individuais e um elevado número de assinatura ou compras avulsas por parte de não-sócios. Um pequeno montante é destinado a permuta e a distribuição para bibliotecas nacionais e estrangeiras. Quando existe interesse de alguma instituição por números específicos, ocorre um aumento ocasional da tiragem. É o caso, por exemplo, do número que tratou de “Saúde do Trabalhador: velhos e novos problemas”, editado com o patrocínio do Ministério da Saúde e que demandou 2.000 exemplares extras, para serem distribuídos a todos os delegados da III Conferência Nacional de Saúde dos Trabalhadores em 2005. Esse fato não é uma exceção, ao contrário. Ocorreu recentemente também com um número específico sobre Pesquisa em Saúde, em que o Ministério pediu mais 1.000 exemplares para serem distribuídos na Segunda Conferência Nacional de Ciência & Tecnologia em Saúde. Ciência & Saúde Coletiva está indexada na base SciElo desde 2002 e em várias outras bases, como: Lilacs (Biblioteca Latino Americana de Ciências da Saúde), Latindex (Sistema Regional de Información em línea para Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, Portugal e España), Red ALCyC (Rede de Periódicos Científicos América Latina y el Caribe, Portugal y España), Red ALyC (Red Latino Americana e Caribenha de Periódicos Científicos), CSA (Sociological Abstract), CAB International/Global Health Abstracts (Commonwealth RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.35-44, jan.-jun., 2007 41 Agricultural and Apllied Sciences database & Global Health International Public Health database), Repdisca (Sanitary Engineering and Environmental Sciences documentation collection) e Doarj (Diretory of Open Access Journals); Sumário de Revistas Brasileiras e Free Medical Journal (Livre Acesso a Periódicos Médicos). Para Ciência & Saúde Coletiva temos uma visão de futuro, pois toda “pequena empresa” tem que apostar no amanhã. Possuímos um plano de progressiva internacionalização, de aumento de parcerias e de ampliação e aprofundamento de sua divulgação. O respeito e o carinho dos autores e leitores, as sábias orientações do seu corpo de editores e conselheiros, a dedicação incomensurável de seu grupo executivo, o apoio das sucessivas diretorias da Abrasco já a tornaram imprescindível no mercado das idéias em saúde coletiva no Brasil, e em menor proporção na América Latina e no mundo. O formato temático da revista, captando os assuntos de profundo e indiscutível interesse para o debate e para conhecimento em saúde coletiva faz a diferença e lhe reserva um nicho privilegiado no fervilhar das idéias e das pesquisas em saúde. A complexa tarefa da divulgação científica A descrição da segunda parte deste artigo introduziu o leitor a um “que fazer” técnico-político que requer intenso investimento cotidiano e no médio e longo prazo. Infelizmente, o processo não finda, ou melhor, mal começa quando lançamos uma nova revista científica no mercado. É história comum à comunidade dos editores científicos a crônica da elevada “mortalidade infantil” dos veículos de divulgação científica. Para se estabelecer nesse mercado muitos verbos que indicam ação precisam ser conjugados (a) conquistar credibilidade; (b) atrair colaboradores reconhecidos previamente; (c) chegar perto dos leitores e transformá-los em colaboradores; (d) disputar caminhos nas bases de indexação que possuem elevado reconhecimento; (e) no caso do Brasil, conseguir um bom conceito na base Qualis das instituições de avaliação e fomento; e o mais difícil (f) conseguir internacionalizar a revista e sua presença em bases de dados internacionais, tradicionalmente respeitadas e que contam nas avaliações acadêmicas. Cada um dos ítens apontados e cada verbo conjugado significam a síntese de um esforço ingente para qualquer editor. Mas isso constitui responsabilidade e peso adicional para um editor de país em desenvolvimento (ou subdesenvolvido?), pois, como toda construção humana, a divulgação científica é permeada por mitos, por cantos da sereia e pelos mesmos processos de dominação (cultural, de área, de espaço geopolítico, dentre outros) de preconceitos e de desvantagens. Um dos mitos mais comuns nesse competitivo mercado é a idéia de que há superioridade de per si de periódicos publicados em língua inglesa, o que leva o colaborador a preferir o periódico “estrangeiro”. O que há de verdade nisso é que o “inglês” é a língua da ciência como o é do mercado de bens e de capitais, situação que, não necessariamente significa selo 42 de qualidade. Ora, o mito de que o que vem de fora ou é publicado no exterior é melhor torna muito mais difícil que um periódico brasileiro consiga ser indexado em alguma base de dados estrangeira de reconhecimento universal. Por exemplo, para se indexar no Medline não basta que uma revista brasileira cumpra todos os requisitos internacionalmente consagrados que salvaguardam e universalizam a comunicação científica. Ela vai competir com critérios internos dos gestores americanos (uma vez que essa é uma base de dados americana, criada pela e para a comunidade científica médica americana). O ato de estender o acesso a essa base para as revistas de ciências da saúde em âmbito mundial é um gesto importante, mas passa por arbítrio e por políticas editoriais formuladas por gestores daquele país (com razão). Outro exemplo, é o privilegiamento do ISI (Institute for Scientific Information) como fonte de distinção e classificação competitiva dos periódicos e dos pesquisadores brasileiros. O ISI é uma empresa privada de base de dados científicos muito importante, sendo a que goza de mais prestígio no mundo, atualmente. No entanto, seus critérios de “impacto” são freqüentemente questionados por editores e pesquisadores da área de cientometria e de políticas de ciência e tecnologia, por causa da rigidez de seus critérios e pelo círculo vicioso de seus procedimentos. Isso é evidenciado, por exemplo, por GUIMARÃES (2007), num brilhante artigo analítico publicado em modesto veículo de popularização da ciência: “O uso continuado do ISI como fonte de análises quantitativas tem provocado um duplo problema. Em primeiro lugar, o mérito e/ou a relevância das contribuições científicas e tecnológicas é remetida a uma categoria difusa denominada “impacto”. Em segundo lugar, o tal “impacto”é indicado pelo número de vezes que um artigo é citado por outras pessoas em periódicos que são indexados na base de dados que desenvolveu a categoria “impacto”. (...) “Muito mais do que a imaginação, a originalidade, a invenção, a quebra de conceitos estabelecidos, o “impacto” como indicador de mérito ou relevância dessas pesquisas [Guimarães se refere a pesquisas brasileiras consideradas de maior impacto pelo ISI e que por ele são questionadas no mérito] decorre da maneira pela qual ela é realizada.” (GUIMARÃES, 2007). Como mostra HABERMAS (1982) em sua obra sobre o assunto, todo o conhecimento científico enquadra-se na esfera dos interesses. E uma vez que não existe conhecimento desinteressado, o interesse permanece como fenômeno controlador e orientador do campo em que se manifesta. No caso de Ciência & Saúde Coletiva o motivo imediato que mobiliza os autores é sobretudo a necessidade de somar pontos a seus currículos, a seus históricos de pós-graduação e aos programas de mestrado e doutorado de que fazem parte. Por isso mesmo, todos os colaboradores pressionam direta ou indiretamente aos editores a constantemente aperfeiçoarem e ampliarem as bases de indexação de seus veículos. No entanto, como lembra HABERMAS, no mundo da ciência e da tecnologia, os atores têm que dar resposta técnicas comunicativas e emancipatórias a seus problemas. E seus interesses podem ser emancipatórios quando suficientemente ar- RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.35-44, jan.-jun., 2007 gumentativos, justificadores e alcançam o maior número possível de parceiros. Também para outros estudiosos da sociologia da ciência como BOURDIEU (1983) KNORR-CETINA (1981) e LATOUR et al. (1997), a ciência e a tecnologia configuram um campo de interesses e de poder. E esse poder é tão mais forte quanto mais a sociedade vai transformando Ciência e Tecnologia nos principais fatores de produção da sociedade pós-industrial (MINAYO, 2002). Ciência & Tecnologia é o “ouro” do século XXI. Os jogadores desse campo, portanto, competem por reconhecimento, prestígio e verbas. As formas de divulgação científica e a geopolítica da distribuição do poder científico repercutem também no status das revistas acadêmicas, mesmo quando esse processo de aparência “naturalizada” pela cultura se apresenta apenas como questão de mérito. Em resumo, Ciência & Saúde Coletiva se coloca no interior do debate, da busca de aperfeiçoamento e da competição por verbas, por reconhecimento nacional e internacional e por aprimoramento de sua qualidade. Por nenhum instante, porém, nós, seus editores, desistimos de desenvolver seu papel social de contribuir para uma Ciência e Tecnologia em Saúde a favor da Sociedade Brasileira. Conclusões Encerro este artigo que apenas anuncia uma pequena parte dos problemas da comunicação, disseminação e divulgação científica chamando atenção para alguns pontos: (1) cuidar de uma revista é um trabalho de “formiguinha” que fascina pelos desafios que encerra sob qualquer ângulo de análise. Quando digo trabalho “de formiguinha” sustento que um periódico científico exige dedicação cotidiana que vai do aprimoramento dos procedimentos até a visão de estratégias para evitar a “mortalidade infantil” e garantir um lugar entre as melhores; (2) não basta o trabalho interno, entretanto. O emprendedorismo nesse campo significa ultrapassar a sala da editoria e ganhar os fóruns da política de Ciência & Tecnologia. O editor científico tem que estar engajado, ao mesmo tempo, na busca do reconhecimento nacional e no processo de internacionalização de seu periódico. Internamente, porque a ciência tem que dar resposta a questões nacionais. Externamente porque a ciência assim como o capital (parafraseando Marx) não tem pátria. Sua linguagem universal e seus procedimentos padronizados e regulados universalmente unem os quatro cantos do mundo. Nossas revistas estão aí para incrementar essa união; (3) no entanto, não nos iludamos. Ciência é também um campo de interesses. Muito embora, o mundo da ciência e da tecnologia tem a missão de dar resposta técnicas comunicativas e emancipatórias à humanidade (HABERMAS, 1982). Mas seu papel só pode ser emancipatório quando é suficientemente argumentativo, justificador e reúne com justeza o maior número possível de interesses na sua práxis. Portanto, a divulgação científica não é livre mesmo quando estamos cada vez mais criando um território de acesso universal. É longo e íngreme o caminho que os editores trilham para conseguir dar um lugar ao sol a seus periódicos científicos. Faz parte dos escolhos do caminho desfazer mitos arraigados que têm levado muitos cientistas que formam opinião a menosprezar periódicos nacionais de grande mérito classificando-os com baixos escores e afastando deles nossos melhores pesquisadores. E faz parte da política científica voltada para o maior número de interesses, valorizar bases de dados sérias e confiáveis como o SciElo, visando aos passos necessários para que a Ciência construída no país seja concomitantemente divulgada, exposta, criticada e assim avance em benefício da sociedade brasileira. Nota 1. Agradeço a Raimunda Mangas do Nascimento Mangas, a Telma Freitas da Silva Pereira, a Danúzia da Rocha de Paula e ao Thiago de Oliveira Pires, que contribuíram com a organização dos dados apresentados a respeito da Revista Ciência & Saúde Coletiva. Referências bibliográficas ALBAGLI, S. Divulgação Científica: informação científica para a cidadania? Ciência da Informação, v.25, n.3, p. 396-404, set-dez, 1996. BERLINGUER, G. 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Sobre a autora Maria Cecilia de Souza Minayo Possui graduação em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1978) e pela State University of New York (1979), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985) e doutorado em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ). É pesquisadora titular da FIOCRUZ e professora na área de Saúde Coletiva com ênfase em Saúde Pública, nas seguintes áreas temáticas: Metodologia Científica, Antropologia da Saúde e Violência e Saúde. Além disso, é orientadora de mestrado e doutorado em Saúde Pública da ENSP e em Saúde da Mulher e da Criança do Instituto Fernandes Figueira (IFF/FIOCRUZ) e do mestrado em Epidemiologia e Gestão de Saúde da Universidade Nacional de Lanus na Argentina. Possui vasta produção científica de artigos, livros, capítulos de livro e organização de coletâneas. Seus principais temas de atuação são: Pesquisa social, pesquisa qualitativa em saúde, metodologia científica, saúde e sociedade, avaliação de programas sociais e de saúde, impacto da violência sobre a saúde. Atualmente é coordenadora científica do Centro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde (CLAVES), da FIOCRUZ e Editora Científica da Revista Ciência & Saúde Coletiva. Também é consultora da Organização Panamericana de Saúde (OPAS/OMS), do IDRC/Canadá, do CNPq e dos Ministérios da Saúde, da Justiça e da Educação. E ainda é membro do Conselho Editorial dos seguintes periódicos: International Journal of Multiple Methods Research; Medicc Review; Salud Colectiva; Revista de Saúde Pública; Interface; Trabalho Educação e Saúde, e das seguintes Editoras Hucitec e Fiocruz. 44 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.35-44, jan.-jun., 2007 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Artigos originais A cultura na organização hospitalar e as políticas culturais de coordenação de comunicação e aprendizagem Elói Martins Senhoras Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, Brasil [email protected] Resumo A importância da cultura por sua característica estratégica dual, enquanto processo e produto de interações, é estudada no presente artigo a partir de uma ótica de gerenciamento e planejamento das organizações hospitalares. As mudanças culturais dentro de um hospital são analisadas, por meio de uma revisão de estudos sobre teorias e práticas nas organizações de saúde, como relações intermediadas por atores em um sistema cultural, que diante da introdução de mecanismos de envolvimento e comunicação reagem mediante mecanismos de aprendizagem. Com essa discussão, argumentos são fornecidos para a garantia de pluralidade e o aprofundamento do debate sobre os caminhos administrativos de coordenação para a eficiência institucional, ao sugerir a criação de mecanismos de comunicação para a construção de incentivos na aprendizagem organizacional e a instrumentalização de critérios simples de análise e desvendamento das culturas de uma organização hospitalar. Palavras-chave Administração hospitalar, cultura, hospital Introdução “A era do empirismo na gestão hospitalar está com seus dias contados. As ferramentas administrativas e financeiras são cada vez mais necessárias.” (R. R. Baumgartner) O exame da realidade de um hospital revela uma das estruturas mais complexas dentre as que participam da sociedade moderna. Esse argumento é recorrente na área de saúde, levando à percepção de que há especificidades incontornáveis do setor. A razão desse fato é que o hospital, ao longo da história, foi conduzido ao desempenho de diferentes funções, cada vez mais complexas: recuperar, manter e incrementar os padrões de saúde de seres humanos. Essas funções demandam um conjunto altamente divergente e complexo de atividades, tais como a realização de atendimentos, exames, diagnósticos e tratamentos, o planejamento e execução de internações, intervenções cirúrgicas e outros procedimentos. Para responder às suas diferentes funções, um hospital estrutura-se, por um lado, através de políticas direcionadas, com sentido de cima para baixo, de formação de setores encarregados de atividades bem caracterizadas e, por outro lado, pelo desenvolvimento relacional de uma cultura própria. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.45-55, jan.-jun., 2007 45 A resultante é a constituição de uma estrutura de marcante complexidade e conflitos, que tem por objetivo o trabalho integrado de seu corpo organizacional na prestação dos serviços de saúde, mas é marcada por uma cultura relacionada à pulverização do poder e à disputa de espaços. Como alguns dos setores desenvolvem tarefas tão características, que fora do hospital têm freqüentemente vida autônoma, a organização hospitalar torna-se o somatório de hotel, lavanderia, farmácia, escola, centro comunitário, além de centro de atendimento curativo e preventivo. Diante da dialética organizacional entre a ideal integração para a prestação dos serviços de saúde e a real fragmentação hierarquizada do poder, os hospitais são clássicos exemplos do que MINTZBERG (1994) chama de organizações profissionais, cuja análise demanda motivações, incentivos e cuidados especiais, que são mecanismos de orientação e coordenação que subsidiam as estratégias de decisões gerenciais e administrativas, e se mostram como espaços culturais consideráveis de ajustamentos mútuos de motivações e de compatibilização de interesses. A caracterização funcional de uma organização hospitalar faz com que ela seja considerada um sistema social aberto, onde estão atuando outros subsistemas técnicos representados pelas especializações dos conhecimentos e habilidades de profissionais como médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas entre outros. Em conseqüência, nenhuma pessoa ou grupo é responsável completamente pelo sucesso ou pela qualidade da experiência completa do paciente, uma vez que os profissionais são responsáveis por parte do processo, não havendo uma prestação de contas de todo o ciclo. Segundo MARINHO (2001), os hospitais são organizações profissionais, que, para tudo funcionar, dependem da capacitação e do conhecimento de seus executores; portanto, os seus resultados não podem ser facilmente medidos ou padronizados, uma vez que dependem fortemente da relação profissional/usuário. Os hospitais são típicas organizações prestadoras de serviços, de grande utilidade e importância para a comunidade em geral. Além de algumas pessoas terem como trabalho o cotidiano hospitalar, é lá que muitas pessoas buscam ajuda nos momentos fundamentais – e também os mais difíceis – de suas vidas. Nessas organizações, o trabalho é marcadamente complexo, compreendendo grupos profissionais de diferentes capacitação e formação, mas que estão organizados, predominantemente, em torno de uma base hierárquica composta de especialidades e por especialistas em setores de operação médica, técnica e administrativa. O trabalho nos hospitais constitui uma prática concreta, em que as mais variadas relações se estabelecem sob diferentes ângulos, por um lado através das relações médico-paciente que focam o tratamento, a prevenção e o atendimento à saúde, e, por outro lado, através das relações de trabalho que permeiam as hierarquias e os ethos de trabalho, sob a ótica humanista, e os modos de organização da produção e consumo da saúde dentro do hospital sob a ótica gerencial. 46 As estruturas hospitalares tradicionais geralmente se caracterizam como pró-cíclicas, pois funcionam muito bem quando as variações do ambiente externo não produzem impacto significante sobre as rotinas organizacionais, embora em um ambiente mutável e que geralmente exige constantes adaptações esse estilo de estrutura não se mostre eficiente, já que centraliza ações e não estimula a cooperação nem o aprendizado (ABDALA et al., 2006). Questões técnicas e práticas de gerência administrativa têm sido um dos pontos mais criticados nas organizações hospitalares devido ao fato de serem consideradas organizações complexas, que envolvem uma série de processos e atividades paralelas à atividade-fim do hospital, que é o cuidado ao paciente (LIMA-GONÇALVES, 2002). As diferenças entre as organizações hospitalares e os outros tipos de organizações são também um ponto importante para a compreensão dessas organizações e dos fenômenos que nelas ocorrem. Os fatores que mais distinguem as organizações hospitalares de outros ramos de negócio são: a) a dificuldade de definir e mensurar o produto hospitalar; b) a freqüente existência de dupla autoridade gerando conflitos; c) a preocupação dos médicos com a profissão e não com a organização, d) a alta variabilidade e complexidade do trabalho, extremamente especializado e dependente de diferentes grupos profissionais; e) dado o acentuado dinamismo tecnológico, o setor é essencialmente de trabalho intensivo; e) muitas das inovações tecnológicas implicam não mudanças no método de prestação de um dado serviço, mas a introdução de um novo serviço que se soma aos anteriores e exige pessoal adicional para sua prestação; g) a produtividade do trabalho depende, sobretudo, de uma combinação adequada entre os vários tipos de profissionais; h) ao pessoal de nível superior, e, principalmente, aos médicos, são atribuídas as funções mais complexas, envolvendo a gerência administrativa e o comando técnico do trabalho dos auxiliares, além de sua normalização e supervisão; i) as funções mais simples ficam com o pessoal auxiliar, que as executam em cumprimento das normas de trabalho; j) em algumas áreas, as forças produtivas da ciência e da tecnologia atuam no sentido de elevar a produtividade do processo de trabalho, mas limitados a uns poucos procedimentos terapêuticos e diagnósticos (RODRIGUES FILHO, 1990). Somente as organizações de saúde possuem todas estas características ao mesmo tempo, derivando deste fato o desafio de integrar o todo organizacional diante da divisão e especialização do trabalho que produz vasta segmentação interna. A cultura inserida no novo paradigma da administração hospitalar A noção de cultura organizacional é um importante conceito a ser usado na administração hospitalar, pois permite à organização de saúde encontrar a sua identidade coletiva, possibilitando a criação de mecanismos eficientes de comunicação para fornecer a seus membros RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.45-55, jan.-jun., 2007 as significações que eles precisam para contribuir com a performance organizacional. A discussão sobre a cultura hospitalar pode ajudar as instituições de saúde, como elemento estratégico, a pensarem sobre a sua administração, pois a preocupação com a cultura nasce associada tanto às necessidades de aperfeiçoar o desenvolvimento dos processos em um hospital, quanto das relações de poder e o confronto de interesses dentro dessa organização. A formação cultural é uma preocupação contemporânea, bem viva nos tempos atuais, pois busca entender os muitos caminhos que conduzem os grupos humanos às suas relações presentes no desenvolvimento das organizações, que estão marcadas por contratos e conflitos entre os modos diferentes de organizar a vida social, de se apropriar dos recursos e transformá-los. “O processo de formação da cultura organizacional é idêntico à formação de grupos, que compartilham das crenças, pensamentos, sentimentos e valores, que resultam de experiências e do aprendizado coletivo. Isto significa que, sem a formação de grupos, não haverá cultura e que estes grupos, para justificarem suas existências, tornam-se focos de formação de subculturas.” (MACEDO, 1996) Qualquer agrupamento humano, submetido a um certo grau de isolamento e sob ação de determinadas influências, desenvolve, ao longo do tempo, algumas características comportamentais, em termos de hierarquização de valores e modos de expressão que o diferenciarão de outros grupos, estabelecendo-se assim uma espécie de identidade coletiva, chamada cultura. (Quadro 1) Quadro 1 - Origens da formação da cultura organizacional Única e via consenso Múltipla e via Conflitos A cultura é resultado dos atributos e de ações de consenso e de harmonia entre os indivíduos. Nem todos os membros participam da formação, pois a cultura pode ser legitimada pela imposição e aceitação. Todos os membros de uma organização participam da criação da sua cultura, e ela é o resultado da sedimentação de uma história de conflitos e de uma variedade de subculturas. Fonte: Elaboração própria A emergência de uma nova cultura em um ambiente hospitalar pode ser entendida duplamente como produto e processo que se difunde por meio de uma institucionalização formal e informal. A temática da cultura toma importância nas organizações de saúde quando mudanças e novas capabilities de comunicação são exigidas na estrutura e no conjunto de funcionários devido à identificação de padrões culturais deletérios à eficiência organizacional. Verifica-se que muitas vezes na prática hospitalar, entretanto, as mudanças culturais e as novas capacitações de comunicação e aprendizagem não são, necessariamen- te, pontos de consenso ou aceitação, pois representam uma ameaça aos valores e práticas profissionais dos funcionários e aos próprios padrões culturais estabelecidos no trabalho. Para se protegerem dessa ameaça, em muitos casos, os médicos e enfermeiros desenvolvem resistências às mudanças em razão do medo do que é desconhecido, preferindo, assim, continuar com seus próprios canais de comunicação e padrões de conduta, a fim de realizarem suas atividades como sempre fizeram (MAGALHÃES et al., 2006). “As mudanças geram incertezas, transformam as relações de poder, mudam a estrutura das forças que sustentam o status quo e obrigam a procurar novas formas para a resolução dos conflitos que advêm com a nova era. Há de se perguntar se realmente a alta administração está disposta a enfrentar a mudança indo à raiz dos problemas, pois isso implica, muitas vezes, em perda de poder ou em redistribuição do mesmo.” (MACHADO et al., 2004) No intuito de incrementar a eficiência das organizações hospitalares, os gestores devem lançar mão de estratégias e mecanismos que permitam a identificação de subculturas existentes, e, através de mecanismos de comunicação, incentivar a participação e integração dos atores na busca de uma nova cultura e de um novo aprendizado. (Quadro 2) Quadro 2 - Óticas de análise das culturas nas organizações Linha de trabalho Conceito de cultura Cultura corporativa A cultura funciona como um mecanismo regulatório adaptativo. Ela permite a articulação dos indivíduos na organização. Cognição organizacional A cultura é um sistema de cognições partilhadas. A mente humana gera a cultura através de um número limitado de regras. Simbolismo organizacional A cultura é um sistema de símbolos e significados partilhados. A ação simbólica necessita ser interpretada, lida ou decifrada a fim de ser entendida. Processos inconscientes e organização A cultura é uma projeção da infraestrutura universal e inconsciente da mente. Fonte: Elaboração própria. Adaptação baseada em Paiva e Sampaio (2003). Cada realidade cultural tem sua lógica interna, a qual se deve procurar conhecer para que façam sentido as suas práticas, costumes, concepções e as transformações pelas quais passam. É preciso relacionar a variedade de procedimentos culturais com os contextos em que são produzidos e os impactos que eles causam. Nota-se, porém, que o convite a que se considere cada cultura em particular não pode ser dissociado da necessidade de se considerar as relações entre as culturas. Na verdade, se a compreensão da cultura exige que RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.45-55, jan.-jun., 2007 47 se pense na diversidade de funcionários do hospital, é porque eles estão em interação. Mais importante ainda é observar que o destino de cada agrupamento é marcado pelas maneiras de organizar e transformar a vida em sociedade e de superar os conflitos de interesse e as tensões geradas na vida social. É importante considerar a diversidade cultural interna à sociedade hospitalar; isso é de fato essencial para compreendermos melhor a instituição, mesmo porque essa diversidade não é feita só de idéias; ela está também relacionada com as maneiras de atuar na vida social e o impacto financeiro causado por determinadas alocações. Apesar dessa variabilidade nas formas de organização social, são notórias algumas tendências dominantes em um hospital, como a formação de poderosos núcleos com instituições políticas centralizadas. A formação desses núcleos duros, ou core sets, tem origem nos processos de sedimentação de políticas administrativas direcionadas desde a fundação da organização de saúde, o que tende a conferir uma especificidade na construção do policy making administrativo em um hospital por meio de uma “burocracia” hierarquizada de experts, que se institucionaliza ao longo do tempo por caminhos culturais relacionais que reafirmam e legitimam a própria assimetria de poder na estrutura diária de trabalho. Os esforços para colocar todas as culturas de uma instituição de saúde num único e rígido esquema de etapas não são, entretanto, eficientes, embora se manifeste presente uma hierarquia nítida de interesses, por onde prevalece o direcionamento da formação das culturas. Nesse sentido, os critérios culturais existentes no interior da organização hospitalar acabam por justificar o entendimento de que os hospitais são organizações profissionais estratificadas por relações de dominação, onde o exercício tradicional do poder se manifesta pela posição técnica de cada funcionário. A investigação sobre as características e traços das culturas em um hospital revela que estas não são algo acabado, fechado ou estagnado, mas antes, são dinâmicas e moldadas pelas relações de poder. De fato, a principal vantagem de estudá-las é por contribuírem para o entendimento do policy making administrativo e dos processos de comunicação e aprendizagem por que passa um hospital. A correlação entre cultura organizacional hospitalar e o seu desempenho Entre os fatores que explicam o baixo desempenho das organizações de saúde são tradicionalmente identificados duas ordens de problemas: em primeiro lugar, em nível institucional, está relacionado às questões de financiamento, de desenho institucional e o sistema de prestação de contas dos profissionais de saúde; e em segundo, em nível sistêmico, estão ligados aos argumentos de crise dos modelos assistenciais em saúde no mundo. A hipótese sugerida pelo artigo é que as variáveis culturais institucionalizadas têm peso significativo na 48 determinação da baixa eficiência hospitalar, não desprezadas as influências anteriores de ordem institucional e sistêmica, que contribuem na definição relacional da cultura organizacional. Tradicionalmente, a estrutura física e tecnológica e a estrutura econômico-política de financiamento têm sido os componentes considerados mais importantes para a performance das organizações hospitalares; entretanto, os processos simbólicos ligados à pratica institucional dentro de um hospital, ou seja, à cultura organizacional, podem ter um papel significante. Diz BARLEY (1986) que a estrutura cultural de uma organização influencia o desempenho dos profissionais e estes influenciam também a estrutura. Dentro desse enfoque, sabe-se que é necessário resgatar o saber dos profissionais que desempenham suas funções no setor de serviços de saúde e possibilitar que disponham de uma estrutura de trabalho adequada, flexível, para atender às suas necessidades. Existe, ainda, a necessidade de encontrar as causas das falhas dos processos de produção hospitalares, buscando mecanismos de comunicação para a prevenção das mesmas e para melhorar a alocação de recursos para esses serviços e, conseqüentemente, reduzir custos (Figura 1). Figura 1 – Mapa de problemas em um ambiente hospitalar Fonte: LIMA-GONÇALVES (2002). Segundo LANZER et al. (1995), os processos organizacionais são afetados por vários fatores, e cada fator é ainda influenciado por outros tantos. O mesmo acontece no ambiente interno da organização, há influência de uma multiplicidade de fatores sobre os processos produtivos, o que torna os processos variáveis. Essa variabilidade merece monitoração e identificação de pontos de controle ou gargalos, uma vez que existe uma iminente possibilidade de fatores culturais estarem atuando. No setor saúde esse aspecto merece uma atenção especial, pois, como sugere SANTOS (1995), talvez em nenhuma outra área da atividade humana a conceituação da qualidade e sua aplicação seja tão importante, uma vez que a falha de procedimentos traz conseqüências sérias, expondo ao risco o usuário. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.45-55, jan.-jun., 2007 O primeiro problema cultural a ser discutido são as barreiras de comunicação nas organizações de saúde, que têm tornado difícil aos recursos humanos se debruçarem sobre seus resultados para avaliá-los e posteriormente discuti-los, pois partem da premissa de que sempre fazem o melhor que pode ser feito. Este problema cultural tem a ver com algum grau de autoritarismo e com aspectos de corporativismo, pois assume a assimetria na relação equipe/paciente, ou, mais freqüentemente, médico/paciente (CARAPINHEIRO, 1993). A expressão “máfia de branco” não é nova e esconde falhas, onde se espera dos profissionais que se protejam ou pelo menos não denunciem; e, por outro lado, justifica que se tomem decisões em nome dos pacientes, que se privilegiem algumas categorias profissionais em detrimento de outras e que se assuma os hospitais (pelo menos alguns deles) como organizações médicas, em detrimento do conceito mais amplo, de organizações de saúde. Isto de alguma maneira explica que há hospitais em que se consegue modificar a cultura de todas as áreas com maior ou menor facilidade, por vezes sendo necessário um refluxo das iniciativas (PICCHIAI, 1998). Esta mesma cultura do corporativismo faz com que se justifiquem algumas dificuldades presentes na gestão em saúde, uma vez que a autonomia na liderança do grupo profissional nuclear e a presença ativa dos profissionais de base operacional, em uma situação de problemas de comunicação, podem criar uma série de atritos que dificultam as ações de coordenação. De fato, observa-se que pelo menos duas áreas dos hospitais usualmente desenham seus próprios modelos de gestão e de avaliação, não se curvando aos ditames da organização (a enfermagem e o corpo médico), o que conseqüentemente causa ineficiências na alocação de recursos, ampliando um gap financeiro ou de custos entre planejado e efetivo. As instâncias superiores da hierarquia representam estruturas administrativas nas quais os profissionais influenciam, por força da organização descentralizada e motivados pelo interesse de adquirir controle coletivo, as decisões administrativas que os afetam. Ademais, existem nessas organizações recursos comuns significativos, incluindo atividades de apoio, que justificam o movimento da base para o topo da hierarquia, razão por que a organização profissional hospitalar já teria sido denominada pirâmide invertida. A cultura da verticalização nas relações profissionais manifesta-se pela existência de diferenças na valorização social oferecida aos trabalhadores e pela centralização das decisões que interferem no processo organizativo, representação de práxis autoritária. A falta de metodologias de avaliação hospitalar dificulta o desenvolvimento do perfil de cada hospital, principalmente a visualização de todas as suas deficiências e os danos que decorrem destas aos pacientes e profissionais. O problema está, na verdade, na ineficiência do próprio processo de avaliação hospitalar, pela falta de instrumentos e normas, e na cultura que se sedimenta na organização, permitindo comportamentos que tradicio- nalmente são conhecidos na literatura econômica como oportunistas e conspiram contra a eficiência do sistema. Todos esses problemas culturais impactam de uma maneira ou de outra segundo uma correlação com o desempenho institucional e financeiro das instituições de saúde, seja devido à má alocação de recursos, seja por ineficiências oriundas da assimetria de informações ou de comportamentos oportunistas, que dificultam as ações de coordenação, correspondendo a maiores gastos. A identificação dos incentivos culturais de modelagem das organizações hospitalares e do comportamento dos profissionais é um insumo-chave para a formulação de políticas internas de mudança cultural e promoção de novas instituições que se ponham em prática. Isso é importante aos funcionários diretamente ligados à administração hospitalar e aos diretores de hospital, não só porque existe uma percepção generalizada de que determinadas configurações de cultura organizacional estão afetando sensivelmente o desempenho hospitalar, mas porque também se relacionam de maneira sinérgica com outras variáveis institucionais e financeiras. Políticas culturais de gestão e planejamento As organizações de saúde, identificadas na tipologia de MINTZBERG (1982) como organizações profissionais, ainda são em grande número gerenciadas por profissionais da área da saúde, com pouco ou nenhum conhecimento administrativo. Este fato tem acarretado grandes dificuldades à sobrevivência dessas instituições. No dia-a-dia, a imprensa tem divulgado as condições dos hospitais públicos e privados nas diferentes regiões brasileiras: falta de leitos, superlotação, desperdício, sucateamento dos equipamentos, falta de recursos humanos qualificados, descontentamento da clientela interna e externa, entre tantos outros. Para que uma organização hospitalar cumpra com efetividade sua missão, é imprescindível que suas ações decorram de um planejamento organizado e permanente, baseado nas políticas e diretrizes às quais a organização se vincula, no conhecimento das expectativas dos funcionários e levando em conta as condições e os meios de que dispõe. É preciso abandonar a cultura do planejamento ocasional, para adotar o planejamento como um exercício permanente e sistemático. Os exercícios de planejamento de ocasião podem até produzir bons resultados, mas, inexistindo uma consciência sobre a importância de se estabelecerem rumos precisos para a instituição, os projetos acabam por definhar, sem nunca resultarem em ações de melhoria em relação ao futuro desejado para a organização. Um planejamento que confira consistência à atuação da instituição deve iniciar com as definições culturais da organização hospitalar e fechar o seu ciclo com a definição de metas claras e específicas que traduzam o conjunto cultural de aspirações institucionais em ações práticas, que lhe permitirão caminhar, de fato, na direção RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.45-55, jan.-jun., 2007 49 desejada. A partir de um primeiro ciclo de definições de valores, crenças, ritos, tabus, mitos, normas, sistemas de comunicação formal e informal e produtos ou artefatos visíveis é preciso rever periodicamente o ambiente, as ameaças e as oportunidades que se apresentam, de forma a poder prever situações que possam vir a interferir no que foi planejado, o que possibilitará a revisão tanto de estratégias, quanto de ações (Quadro 3). Quadro 3 - Elementos de composição da cultura em organizações hospitalares Valores Correspondem a tudo aquilo que a organização considera importante para preservar, realizar e manter a imagem e o nível do sucesso desejado, como por exemplo, a importância da satisfação dos pacientes. Crenças Podem ser sentidas através do comportamento das pessoas e estão ligadas à busca de eficiência. Os ritos são as formas como são praticadas e perseguidas as crenças e metas planejadas no dia-a-dia. Tabus Referem-se às proibições impostas aos membros da organização e às orientações e fatos tidos como inquestionáveis. O fato de que os médicos devem receber salário superior ao dos subrodinados constitui um exemplo. Mitos organizacionais São gerados pela cultura existente e correspondem a expressões conscientes da mesma. Guardam relações com as crenças e valores professados, pois são cristalizações dos mesmos ao longo do tempo. Normas São regras escritas ou não que direcionam a forma como as pessoas devem proceder para que a organização alcance os seus objetivos, sendo aceitas ou não, dependendo da coerência em relação às expectativas e aspirações. Comunicação formal É a comunicação sistemática entre a organização e o ambiente externo e interno, feita através de comunicados, entrevistas, memorandos, ofícios, textos etc. Comunicação informal É a comunicação assistemática que não está sujeita a normas ou controles, ocorrendo por meio de relações interpessoais de forma subjetiva e sem controles externos. Produtos ou artefatos visíveis Referem-se ao ambiente construído da organização hospitalar, aos comportamentos e resultados visíveis do staff de trabalho, documentos públicos, que, embora sejam visíveis, são de difícil interpretação Fonte: Elaboração própria. Baseada em TAVARES (1996). As organizações hospitalares e seus gerentes sofrem o impacto das transformações. A gerência desloca-se da prática de simples técnicas administrativas de controle para a incorporação de novas habilidades e atitudes na 50 participação descentralizada. Estratégia, capacidade criativa e de inovação, habilidade de comunicação, de relacionamento e de negociação passam a ser atributos desses profissionais (CHERUBIN, 1997). A importância dessa alta direção na definição do funcionamento, da missão e dos objetivos em um hospital continua a fazer parte inerente dos processos de gestão e planejamento organizacional, o que descaracteriza um possível ponto de paradoxo entre a definição estratégica vertical de políticas administrativas e o compartilhamento horizontal de informações e de espaços de participação, uma vez que o gerenciamento e o planejamento hospitalar têm que incorporar simultaneamente as horizontalidades e verticalidades relacionais do dia-a-dia do trabalho e, portanto, a administração de relações de cultura, poder e participação. Para TODESCATI (1996), a capacidade inerente da organização de aprender continuamente sobre seu próprio ambiente, a fim de produzir reações apropriadas e mobilizar recursos para competir, acenam com a necessidade de se administrar uma cultura organizacional global. Isto é, uma visão multidimensional, que implica mudanças na participação e na comunicação, pois organizações flexíveis e pessoas abertas são fatores primordiais para o sucesso da implantação dessas mudanças. Entende-se, então, que as instituições que buscam aperfeiçoamento não devem estar restritas ao processo/produto e à satisfação do cliente externo, mas contemplar também a qualidade da gerência, a qualidade de vida da sua força de trabalho, na comunidade onde se instala, sem perder de vista os ideais do bem comum. Para que as ações resultantes de um planejamento se realizem, concretizando a implementação de uma “gestão cultural”, é imprescindível que cada servidor tenha plena consciência da missão institucional e pleno conhecimento dos resultados globais desejados, de forma a poder identificar qual é o espaço de sua contribuição individual para que esses resultados sejam alcançados. Simultaneamente à comunicação e ao planejamento interno, existe um processo de conscientização, diálogo e negociações obrigatório com os canais de poder ou influência que estão propriamente fora dos hospitais, os Conselhos Profissionais, que impactam diretamente as ações diárias em uma organização de saúde por meio dos interesses de classe e de padrões profissionais de conduta individuais a cada profissão, o que pode acabar pulverizando uma possível missão coletiva de um hospital devido aos diferentes objetivos que atravessam a missão da organização, por vezes a não considerá-la como algo do coletivo. Dois fatores críticos para garantir o sucesso e a continuidade de uma efetivação cultural em uma instituição de saúde são a valorização dos funcionários e a comunicação, que devem ser garantidas não só pela remuneração, mas, sobretudo, pelo compartilhamento das informações, por investimento permanente em capacitação e pela disponibilidade de um espaço de participação, integrando-os ao processo de planejamento, no que diz respeito à elaboração de metas, definição de indicadores e concepção dos planos operacionais. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.45-55, jan.-jun., 2007 A centralidade da alta administração se faz não mais pela exclusividade na definição de variáveis para o funcionamento de um hospital, mas, antes, pela sua capacidade de coordenar a aprendizagem cultural da organização por meio de espaços de participação e comunicação dos funcionários de base, uma vez que a liderança nessas áreas promove um aproveitamento mais eficiente do gerenciamento no contexto hospitalar. Em primeiro lugar, um indivíduo compromete-se com aquilo que conhece, e o comprometimento será tão intenso quanto maior for sua participação na definição e no planejamento do que se pretende atingir. Assim, uma vez definidas pela alta administração da instituição as questões estratégicas, como missão, visão de futuro e objetivos de desempenho financeiro, por meio de seu aprendizado horizontal junto aos funcionários, é sua responsabilidade compartilhar essas informações com funcionários, para que todos tenham plena consciência do rumo a ser seguido e o seu papel nessa definição estratégica. Ademais, os objetivos institucionais precisam ser traduzidos em metas para cada unidade administrativa da organização hospitalar, de forma a que toda a instituição participe da construção dos resultados desejados. Em segundo lugar, ao ser evidenciado que o sucesso das organizações hospitalares depende em grande parte dos recursos humanos, torna-se necessária uma política de construção de um ambiente com fácil comunicação, que encoraje e torne possível às pessoas se comportarem de maneira a contribuir para um eficiente desempenho individual. E também da organização, uma vez que a fragilidade dos sistemas de informação (médico e administrativo) é muito mais um problema cultural institucionalizado que uma especificidade qualquer nos hospitais, pois constata-se que os produtores dos fatos de onde se retiram os dados que se tornam informações estão muito distantes, nas estruturas organizacional, física e hierárquica, daqueles que trabalham os dados e os transformam em informações. Nesses dois contextos, a demanda por soluções eficazes a custos aceitáveis exige das organizações cada vez mais criatividade, manipulação e integração de conhecimentos multidisciplinares. SENGE (1992) afirma que o aumento da complexidade e da dinâmica dos trabalhos induz à necessidade de associar o trabalho à aprendizagem. Em outras palavras, a adoção da aprendizagem nas organizações tem condições de adaptá-las a um ambiente complexo, turbulento e competitivo. É primordial ressaltar que o sucesso da organização de aprendizagem é dependente da integração sistêmica das pessoas por meio da criação de canais confiáveis de comunicação. Possivelmente tal empreendimento pode se basear em uma cultura organizacional adaptativa e norteada pela busca de ajuste ao ambiente. Segundo KOTTER et al. (1994), culturas adaptativas têm, como um de seus valores essenciais, a profunda consideração pelos clientes e empregados, o que possibilita que tendências sejam apreendidas, e iniciativas sejam tomadas na promoção de mudanças necessárias, ainda que implicando assumir algum risco. “A literatura trata separadamente as dimensões cultura e aprendizagem, ao contrário do que ocorre na organização. Estas componentes presentes no ambiente organizacional têm a propriedade de permear e compartilhar o mesmo espaço, oferecendo entre si informações que podem modificar as práticas em uso na organização, assim, a cultura organizacional referencia a construção de um conjunto de valores, crenças, símbolo e fatos sociais, consoantes na evolução histórica da organização. A aprendizagem organizacional por sua vez se apresenta como uma clara referência à disseminação de conhecimentos na organização.” (PIVETA, 2004). É fundamental lembrar a importância de ações concretas para a criação de um clima organizacional favorável à cultura adaptativa por meio de canais de comunicação para a aprendizagem, uma vez que esta permite o desenvolvimento de aprendizagem organizacional permeada pelo trabalho em equipes, sendo compatível com as necessidades da organização hospitalar para enfrentar um ambiente mais dinâmico. Os 3 Cs: Cultura, Comunicação e Coordenação Quando se fala em cultura, se fala em premissas, em crenças existentes nos níveis consciente e inconsciente que direcionam a atitude das pessoas, pois, como a organização é um sistema de atividades ou forças em coordenação consciente, de duas ou mais pessoas, a cultura em uma organização é o conjunto de valores e premissas segundo as quais seus membros tendem a pensar, agir e se relacionar. Na medida em que as decisões organizacionais práticas e sensatas forem provenientes de um conjunto de ideais coerentes e integradas às culturas hospitalares, elas têm maior probabilidade de obter êxito a longo prazo, pois há consistência no compartilhamento de comunicação e de valores. A cultura bem planejada dá mais liberdade ao indivíduo, uma vez que não é preciso dizer a ele o que é ou não importante, haja vista que o funcionário leva como bagagem intrínseca o conjunto de valores aprendidos que deve nortear sua ação. A comunicação, portanto, é uma pilastra de aprendizagem para a coordenação cultural, de onde decorre a funcionalidade maior ou menor para a diminuição de custos de transação dentro da organização hospitalar. Quanto mais eficientes os canais de comunicação em um hospital, maior a capacidade de aprendizagem das culturas internas e, portanto, maior é o potencial de amplitude de controle e coordenação sobre a organização, com mais subordinados por chefe e, conseqüentemente, um número menor de níveis hierárquicos. Um elemento crítico em um hospital é o modelo de comunicação adotado, pois as escolhas adotadas pelo núcleo duro administrativo desempenham um papel importante ou não para a integração interfuncional das atividades realizadas pelos funcionários de base. O emponderamento dos canais de comunicação representa uma importante experiência de abertura de RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.45-55, jan.-jun., 2007 51 espaços para o diálogo e para o maior comprometimento dos funcionários com as necessidades do paciente e da própria organização hospitalar, pois consiste em uma estratégia de aprendizagem contínua, fundamental para implementar as mudanças necessárias na administração hospitalar. “Sabendo que a ausência de comunicação ou de troca de informações não gera comprometimento, a comunicação assume, nesse contexto, um importante papel. Ao proporcionar a reunião das partes distintas da organização, ela se faz presente na constituição de relações de responsabilidade, confiança e credibilidade e, principalmente, no planejamento de ações que vislumbram o alinhamento do pensamento do empregado ao do empregador.” (SOUZA et al., 2006) Como muitas vezes a administração tradicional dos hospitais não tem canais bilaterais de comunicação entre o núcleo duro da gestão e planejamento e os funcionários de base, é recorrente o entendimento de que esta forma de gerenciar contribui para o não atendimento das necessidades reais do paciente, por estar muito focado nas necessidades financeiras da organização, gerando conflitos e insatisfações nas equipes médicas e de enfermagem, e em muitas poucas vezes gerando reais situações de redução de custos. Segundo TREVIZAN et al. (1998), no âmago da nova liderança gerencial está a capacidade de comunicar, o que torna a comunicação fundamental para o exercício da aprendizagem, para a coordenação das atividades grupais e, portanto, para a própria efetivação do processo de gestão e planejamento nos hospitais. Por um lado, a comunicação é um recurso que permite à liderança do core set administrativo aproximar-se dos funcionários de base com o intuito de compreender as atividades de cada um, compartilhar idéias e visões, apreender as variáveis que funcionam bem e as que não funcionam, bem como criar interdependências para o corte das ineficiências, para a gestão de melhorias contínuas e para o desenvolvimento do trabalho através de equipes. Por outro lado, o aumento da comunicação no “chão do hospital” tem importância para o aumento da eficiência operacional diante das situações de aprendizagem na relação profissional-paciente, quando há um processo de troca de informações entre os pacientes e os médicos e enfermeiros. O aprendizado a partir da comunicação seria muito mais uma habilidade instrumental adquirida no processo diário dos profissionais de saúde do que propriamente uma proposta explícita na maioria dos cursos de formação vivenciados por eles (ROSSI et al., 2006). Partindo-se do entendimento de que a comunicação é uma habilidade que tem espaço de ampliação no processo de gestão hospitalar, torna-se importante na formação profissional haver propostas mais explícitas de aprendizagem de comunicação em nível horizontal (relações entre profissionais de base e pacientes) e em nível vertical (relações entre profissionais de base e gerência). A comunicação em um ambiente integrado por determinada cultura fica extremamente facilitada diante 52 de interlocutores que compartilham valores, idéias e até um jargão particular, tribal. Também na comunicação com o exterior da estrutura deverá ser percebida certa coerência entre as atitudes de diferentes membros da mesma organização. Em um estudo sobre as formas hierárquicas, as redes de comunicação e as percepções da cultura organizacional, NELSON (2003) identificou que nos hospitais as redes de comunicação têm um impacto mais eficiente no aproveitamento das subculturas a políticas hierárquicas unidirecionais de comando, pois estas últimas, muitas vezes, limitam o impacto da aprendizagem das redes de comunicação e, portanto, a própria transformação cultural em um hospital. As realidades organizacionais contemporâneas têm procurado cada vez mais liberar a criatividade comunicacional e a inovação através da adoção de medidas que visam o desenvolvimento do potencial e da capacidade das pessoas, ou seja, de seu capital humano. Neste sentido, a cultura da organização hospitalar é capaz de exprimir uma visão que inspire e fortaleça todos na instituição. É preciso mudar culturas que impactam negativamente no desempenho institucional e financeiro e, para isto, é necessário administrar recursos humanos de forma ampla, com um planejamento adequado ao longo de todo o tempo em que o funcionário fizer parte da organização. É preciso considerar, sobretudo, que estes recursos tão importantes das instituições de saúde sejam não apenas o pessoal que nelas trabalha, mas sim a própria organização. “A estratégia de mudança cultural exige dos agentes mobilizadores deste processo, em especial dos gestores, que atentem para a rapidez do processo, a duração e a extensão das mudanças. Há necessidade de pessoas que saibam como conduzir em situações de crises e de conflitos, saibam se comunicar e que tenham conhecimento técnico. Deve ser lembrado que no processo de implantação da reforma, deve-se gerir os paradoxos: a estabilidade e a mudança.” (MACEDO, 1996) Diante da constatação de que pouco se pode fazer ou influenciar sobre questões como a limitação de recursos, volume de atividades manuais, pouca previsibilidade e alta taxa de mudança dos procedimentos médicos, a questão da cooperação e, por conseqüência, da coordenação tomam importância crescente para o aumento da produtividade através dos recursos existentes. Atuar sobre a cultura significa atuar sobre o componente humano da organização - o principal fator no esforço da melhoria da qualidade dos processos. A constância de propósito na coordenação de um esforço contínuo de melhoria só é possível se a preocupação com a qualidade for um dado cultural da organização. Uma cultura moderna, menos hierárquica, mais horizontal, permite a propagação da “voz do cliente” interno (funcionários) e externo (pacientes), isto é, de suas necessidades e aspirações de maneira mais adequada. BORBA et al. (1998) apontam que os sistemas hospitalares possuem duas alternativas para se adaptarem aos anseios de seus clientes: aumentar a capacidade RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.45-55, jan.-jun., 2007 disponível ou aumentar a produtividade do sistema existente. Mas quais são os mecanismos e ferramentas para atuar na cultura organizacional? É um ponto extremamente controverso. Atuar sobre valores e crenças das pessoas é difícil e pode dar resultados opostos aos esperados. Não obstante, é questão de competência gerencial direcionar o perfil cultural no sentido de municiá-lo de características que levem ao alcance dos mais altos objetivos do sistema. Quadro 4 - Metodologia propositiva de estudo da cultura hospitalar Histórico das Organizações À guisa de últimas considerações Existem características culturais favoráveis à sobrevivência e ao desenvolvimento das instituições de saúde e características desfavoráveis; independendo do caso, o desenvolvimento espontâneo de uma cultura própria afeta o comportamento dos indivíduos e, portanto, o resultado alcançado pelo sistema. A importância da comunicação em uma organização de saúde reside na sua capacidade de direcionar o aprendizado organizacional dentro do sistema hospitalar, ao corroborar para a mudança de forma na cultura, uma vez que todo grupo humano submetido a influências específicas e a certo grau de isolamento tende a desenvolver uma série de características comportamentais e de hierarquização de valores que o caracterizará. “A mudança de cultura organizacional é um processo difícil e lento, mas as modificações radicais, como as decorrentes do processo de reforma, facilitam o nascimento de uma nova cultura. [...] Assim, a cultura pode ser modificada através a avaliação de normas, de comportamentos, nos momentos de crise e de conflitos e o gestor, pelo seu poder dentro da organização, é um agente que pode influenciar o surgimento de uma nova cultura. A cultura organizacional pode então ser gerenciada e modificada através do aprendizado da organização, dependendo, no entanto, a sua velocidade e cristalização, das circunstâncias e momentos e, principalmente, da definição clara da vontade da organização em definir sua filosofia, sem que isto signifique mecanismo de dominação.” (MACEDO, 1996) Processo de socialização dos novos membros Recuperar o momento de criação da organização e sua inserção no contexto político e econômico: identificar o papel do fundador, presidente ou diretores que imprimiram a sua visão à organização; e investigar os incidentes críticos pelos quais passou a organização. Tais investigações permitem o levantamento das condições do ambiente em que a organização está inserida. O momento de socialização é crucial para a reprodução do universo simbólico, pois os valores e comportamentos vão sendo transmitidos e incorporados pelos novos membros através de treinamentos e integração do indivíduo à organização. Políticas de Recursos Humanos As políticas de captação e desenvolvimento de recursos humanos, em seus processos de recrutamento, seleção, treinamento e desenvolvimento, bem como as políticas de remuneração e carreira desempenham um papel fundamental no sentido de decifrar os padrões culturais da organização. Processos de comunicação e de decisão É preciso identificar tanto os meios formais orais e escritos como os meios informais. Tal exercício permite desvendar as relações entre categorias, grupos e áreas da organização. Organização do processo de trabalho É necessário investigar, no plano concreto de trabalho, como se efetivam as relações entre os agentes, não bastando uma análise superficial do organograma hierárquico. A análise de como se organiza o processo de trabalho permite a identificação das categorias presentes na relação de trabalho, subsidiando ainda o mapeamento das relações de poder existentes na organização. Fonte: Elaboração própria. Adaptação Diante da escassez de mecanismos que permitam às organizações hospitalares sistematizar e praticar suas ações de gerencialmente cultural, é sugerida a instrumentalização de critérios simples de análise e prática no caminho de desvendamento das culturas de uma organização. Dentro dessas premissas, um instrumento adequado às exigências de facilidade é a proposta de FLEURY (1996), que é baseada em cinco fases de encadeamento lógico e está totalmente centrada em critérios de entendimento da cultura que se articulam sob uma base sistêmica e contínua (Quadro 4). Após o mapeamento cultural da organização, a implantação de um plano de gerenciamento ou de mudança da cultura organizacional de um hospital precisa ser entendida como o resultado da soma de vários esforços coletivos, apesar de engrendrado por uma gerência, o que reafirma a necessidade de comunicação para que haja a busca pelo aprendizado e o aprimoramento contínuo na prática de novos padrões de conduta. baseada em FLEURY (1996). Os esforços de ajustar a cultura organizacional aos objetivos de um melhor desempenho na organização fazse mister nas organizações hospitalares, porém deve-se ter claro que nem todas as políticas que tenham esse fim melhorarão a eficiência do ambiente. As práticas culturais institucionalizadas nas condutas dos agentes podem ser a maneira em que os profissionais ajustam-se em presença de distorções introduzidas por restrições institucionais, cuja modificação pode estar fora do alcance dos gerentes e diretores de hospitais. Algumas destas distorções podem encontra-se no desenho do sistema, nas normas relacionadas ao manejo dos recursos humanos e no grau de centralização das decisões. É importante não perder de vista os efeitos sobre a eficiência, eficácia e eqüidade na hora de desenhar as políticas de gerenciamento e ajustamento da cultura organizacional, pois eliminar “desvios culturais” não é RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.45-55, jan.-jun., 2007 53 um fim em si mesmo, senão um meio através do qual se busca incrementar a produtividade e a qualidade dos serviços oferecidos pelas instituições de saúde, de forma que se possa alcançar melhores impactos no desempenho financeiro. Referências bibliográficas ABDALA, E. C.; SOUZA, D. A.; CASTRO, J. S.; et al.. A gestão orientada por processos: um estudo de caso em uma organização hospitalar brasileira. In: SIMPÓSIO DE EXCELÊNCIA EM GESTÃO E TECNOLOGIA, 3., 2006, Resende. Anais... Resende: AEDB, 2006. BARLEY, S. R. 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Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.45-55, jan.-jun., 2007 55 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Artigos originais Pesquisa clínica no Japão: caminhos para aliviar cargas regulatórias desnecessárias Koji Kawakami Hiroko Yamane Departamento de Farmacoepidemiologia, Graduate School of Medicine and Public Health, Kyoto University, Quioto, Japão [email protected] Graduate Institute for Policy Studies, Tóquio, Japão [email protected] Resumo Para a descoberta e desenvolvimento de medicamentos hoje, a sinergia entre ciência pura, pesquisa clínica e planejamento de testes clínicos é essencial. No Japão, a resposta a essa necessidade foi adiada. Este artigo identifica um dos gargalos no processo regulatório japonês. A pesquisa clínica sob responsabilidade dos pesquisadores da universidade e dos médicos não está integrada aos procedimentos de aprovação dos medicamentos japoneses. Portanto, seus esforços e dados de pesquisas são dissipados na longa e dispendiosa pesquisa biomédica, de natureza inerentemente imprevisível. Esforços colaborativos entre empresas e médicos/pesquisadores deveriam ser estimulados por meio de incentivos institucionais, integrando a universidade e a pesquisa clínica ab initio ao processo regulatório. Para conseguir isso, seria necessário promover o intercâmbio comercial de informações de bancos de dados e, a curto prazo, o emprego de pesquisadores nos projetos que levam à aprovação regulatória. Palavras-chave Biotecnologia, biológicos, desenvolvimento de medicamentos, ciência regulatória, teste clínico Introdução Em todo o mundo, o advento de genômicos, genéticos e proteômicos colocou um desafio maciço para os pesquisadores das universidades, as empresas farmacêuticas e igualmente para as agências reguladoras. No que se refere à descoberta e ao desenvolvimento de medicamentos, a mudança de paradigma no final da década de 1990 foi radical. Uma série ampla de novas tecnologias e técnicas in-vitro para animais e seres humanos substituiu a tradicional manipulação química, exigindo não só investimentos mais sofisticados, mas também mais estudos científicos, pesquisa básica e biotecnologia. Para as empresas, um crescimento maciço de exigências regulatórias, tanto nos períodos pré-lançamento como pós dos produtos, resultou em mudanças significativas nos riscos e benefícios. Para as agências reguladoras, a necessidade de garantir medicamentos não-tóxicos, seguros e eficazes levou a adiamentos significativos do desenvolvimento de novos critérios para julgar se as invenções medicinais submetidas a análises eram de fato seguras e eficazes. Concomitantemente a essas dificuldades, os riscos de super-regulação inadequada às necessidades reais aumentaram. Desde que essa mudança de paradigma ocorreu, o desenvolvimento dos medicamentos tornou-se estreitamente ligado com, e dependente do, avanço da ciência RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.57-61, jan.-jun., 2007 57 e da pesquisa básica. A nova área de pesquisa que surgiu desse processo de descobertas pode ser chamada “biofarmacêutica” e inclui medicamentos da medicina molecular contra doenças genéticas. Assim, os pesquisadores e as empresas foram induzidos a trabalhar em terrenos mais ou menos comuns. Avaliação e Pesquisa de Biológicos] da U.S. Food and Drug Administration (FDA)1, biológicos são materiais derivados das “fontes vivas”, tais como células/tecidos e genes de seres humanos, animais e/ou microorganismos. A maioria dos biológicos é produzida usando biotecnologia, inclusive a manipulação de genes. Este artigo procura identificar gargalos na regulação japonesa e propõe caminhos para eliminar o que parecem ser sobreposições arcaicas. Ao fazer isso, tentamos explorar questões complexas, envolvidas no estímulo às invenções na área da pesquisa médica, enfrentadas pelas autoridades regulatórias, particularmente em países onde as universidades e as empresas comerciais tinham pouco em comum antes da introdução da área biofarmacêutica. Eles podem oferecer meios eficazes de tratar uma variedade de doenças e problemas de saúde que atualmente não têm outros tratamentos disponíveis. Exemplos desses tratamentos são terapia celular e genética, vacinas, dispositivos alergênicos como kits de testes de HIV, e xenotransplante. No Japão, comparativamente aos Estados Unidos e ao Reino Unido, pesquisas básicas nesses campos da terapia celular e do tecido, dos substitutos de sangue, e da terapia genética tiveram relativo êxito, ao passo que o desenvolvimento de classes terapêuticas que utilizam as tecnologias mais estreitamente relacionadas à genética é deficiente, como mostra o Quadro 1. Campos comuns: biológicos De acordo com a definição dada pelo Center for Biologics Evaluation and Research (CBER) [Centro de Quadro 1 – Comparação dos Biológicos em Desenvolvimento Japão e Estados Unidos (e Reino Unido) Biológicos Japão Anges MG Estados Unidos (e Reino Unido) Introgen Doença vascular HGF (angiogênese) {P2 nos Estados Unidos, P3 no Japão} Terapia genética Oncolys BioPharma Telomelysin® (hTERTp-Ad5, para vários tumores sólidos {P1 nos Estados Unidos} Adenovírus–p53 (câncer de cabeça e pescoço) {P3} Vical, Inc GreenPeptide Vacinas contra câncer Vacina Peptide – “Taillomade” {P1 no Japão} Terapia celular & do tecido Vacina de DNA contra melanoma malígno (HLA-B7) {P2} Cell Genesys GM-CSF(GVAX) para o câncer da próstata {P3} BCS, Inc Intercytex (Reino Unido) Regeneração da pele por meio de auto-enxerto {pré-clinico} Produto para tratar lesões tópicas crônicas persistentes {P3} Oxygenix, Co., Ltd. Substitutos do sangue Eritrócitos artificiais (OXY-0301) {pré-clínico} Alnylam Pharmaceuticals Direct RNAiTM, ALN-RSV01 (vírus sincicial respiratório) {P1} RNAi1 Sirna Therapeutics, Inc. Sima-027 (siRNA1 para AMD2) {P2} (adquirido pela Merck em outubro de 2006) 58 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.57-61, jan.-jun., 2007 As trilhas regulatórias japonesas, altamente complicadas em todas as áreas farmacêuticas, são ainda mais complicadas no que diz respeito aos produtos da biotecnologia derivados de células, genes e tecidos, que são muito rigorosamente regulados. Por exemplo, antes de submeter uma requisição de teste clínico a uma agência regulatória, o interessado deve primeiro solicitar à mesma agência uma análise relativa à química, à fabricação e ao controle (CMC)2 do produto. Assim, a terapêutica da biotecnologia deve passar por múltiplos processos de análise antes de entrar no estágio de teste clínico. A esperança que as indústrias japonesas depositaram no futuro da biotecnologia japonesa foi, durante um certo tempo, preponderante. Aproximadamente um bilhão de dólares foi investido na área, em 2004, para criar uma “mini-bolha”. No entanto, as expectativas caíram dramaticamente porque não se conseguiu eficácia com o investimento. Parece que essa decepção veio da impressão de que mecanismos regulatórios e estrutura institucional não estão funcionando de maneira a favorecer o uso racional de recursos. Trilhas regulatórias no Japão O processo de descoberta, desenvolvimento, e obtenção de aprovações regulatórias para uma invenção medicinal envolve estágios “pré-clínicos” e “clínicos”. O estágio pré-clínico consiste em pesquisa exploratória, com a perspectiva de identificar “candidatos” a medicamentos. Esses “candidatos” são, então, testados e desenvolvidos até que sejam obtidas informações suficientes através de estudos in-vitro e com animais. O estágio clínico requer uma série de estudos clínicos com seres humanos. O processo pode levar à aprovação regulatória, que se tornou cada vez mais rara. No contexto do estágio préclínico, pode ser difícil distinguir pesquisa exploratória e desenvolvimento, por um lado, e a realização de testes para obter aprovação regulatória, por outro. Nesse processo em que ciência, medicina e indústria se misturam, uma das difíceis questões é quem conduz o processo de requisição de testes clínicos para se obter a aprovação dos medicamentos. Nos Estados Unidos, empresas, instituições acadêmicas, e companhias de capital de risco que investem em biotecnologia nas universidades são denominadas “patrocinadores”, e todas elas podem submeter uma Investigational New Drug Application (IND) [Requisição de análise de novos medicamentos] à FDA. Sem exceção, estão sujeitas ao controle da FDA. Isso faz com que diferentes interessados, como pesquisadores, médicos e empresas farmacêuticas, tenham flexibilidade para desenvolver medicamentos. No Japão, ao contrário, com a Pharmaceutical Affairs Law [Lei para Assuntos Farmacêuticos], os testes clínicos (em japonês, denominados “Shiken”3) somente podem ser “patrocinados” pelas empresas farmacêuticas. Esses testes, que devem ser realizados por médicos e pesquisadores, constituem uma categoria separada denominada “pesquisa clínica” de produtos terapêuticos não-aprovados, que é regulada também pela Medical Affairs Law [Lei para Assuntos Médicos]. Geralmente, a expressão “pesquisa clínica” é compreendida como “pesquisa orientada para o paciente”, constituindo parte do tratamento médico. No entanto, no Japão, ela inclui fazer testes clínicos não só de medicamentos aprovados, com o objetivo de expandir seu uso, mas também de medicamentos não-aprovados, realizados apenas por médicos e somente em hospitais. A pesquisa clínica tem dado cada vez mais importância ao desenvolvimento de medicamentos biológicos e terapêuticos, de modo a melhorar a eficácia dos medicamentos existentes e ampliar seu campo terapêutico. Isto acontece, em parte, porque os recentes medicamentos biológicos e tratamentos à base destes têm como alvo, mais do que os sintomas, as genéticas individuais ou outras particularidades que causam as doenças em questão. Diagrama 1 – o papel da academia e das empresas farmacêuticas * Companhia de capital de risco que investe em biotecnologia (N.T.) RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.57-61, jan.-jun., 2007 59 de medicamentos que constituem a Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PMDA) [Agência de Normas Farmacêuticas e Médicas]. A pesquisa clínica pode ser integrada ao processo “Shiken” conduzido pela indústria farmacêutica, mas isso requer que os pesquisadores e médicos decidam antecipadamente qual é o objetivo de suas pesquisas. Além disso, os dados clínicos obtidos com a pesquisa clínica inicial não podem ser usados na elaboração do protocolo “Shiken” para a aprovação de medicamentos. Esse sistema de pesquisa clínica inteiramente separada do processo de aprovação de medicamentos apresenta dois tipos de ineficiência. Se a pesquisa clínica produzir resultados promissores para o desenvolvimento de medicamentos, depois de anos de trabalho, a equipe tem de voltar ao estágio inicial de testes clínicos para passar pelo processo “Shiken”, como mostra o Diagrama 2. Em segundo lugar, os dois sistemas separados não têm um banco de dados com informações comuns para compartilharem. Que rumo deveria seguir a reforma regulatória? Antes de mais nada, sistemas de aprovação regulatória deveriam ser concebidos com base em um princípio que desse aos pesquisadores e médicos a opção de Diagrama 2 – trilhas dos testes clínicos no Japão * Ministry of Health, Labour and Welfare (Ministério da Saúde, do Trabalho e do Bem-Estar Social). (N.T.) utilizar seus dados clínicos com propósitos de aprovação regulatória quando achassem apropriado, levando em conta a natureza longa e dispendiosa inerentemente imprevisível da pesquisa biomédica. Isso significa que qualquer rigidez relativa à admissão deve ser evitada. Em segundo lugar, esforços de colaboração entre empresas e pesquisadores/médicos devem ser estimulados por meio de incentivos institucionais. Exemplos desses incentivos incluem mecanismos para estimular o intercâmbio comercial de informações de bancos de dados e, a curto prazo, o envolvimento ou o emprego de pesquisadores em projetos que levem à aprovação regulatória. Mais importante ainda é que as autoridades regulatórias devem estabelecer um critério uniforme e claro de aprovação. Esse último elemento é deficiente no Japão, causando uma dissipação significativa de informações, tempo e qualificações profissionais. Os que desenvolvem medicamentos japoneses (isto é, as empresas farmacêuticas) constantemente frustram-se, com toda razão, porque as normas de procedimento não são claras e explícitas o suficiente para explicarem o que é requerido. Além disso, não há nenhuma política sem restrições na agência regulatória para qualquer questão. 60 Adendo Todo país tem diferentes tradições administrativas para estimular a ciência, a tecnologia e a pesquisa médica. Hoje, uma sinergia entre investigação científica pura, pesquisa clínica e organização de testes clínicos é essencial para a descoberta e o desenvolvimento de medicamentos. Interesses estabelecidos de cada instituição (e de cada pessoa) na estrutura administrativa anterior, assim como a luta política no terreno ideológico, tendem a ter impactos negativos enormes no avanço da ciência e da tecnologia. Todo país deve avaliar a eficácia de seus próprios sistemas administrativos e regulatórios relativa ao desenvolvimento de medicamentos de maneira colaborativa e objetiva. O principal objetivo das agências regulatórias de medicamentos é garantir não só a segurança e a eficácia de medicamentos e tratamentos terapêuticos, mas também que os dados pré-clinicos e clínicos cientificamente válidos possam ser aceitos por todas as agências regulatórias mundiais após a aprovação de testes clínicos multinacionais. Isto significa que pacotes de dados de “tamanho único” para segurança e eficácia devem ser padronizados no mais alto nível para qualquer estratégia séria de desenvolvimento de medicamentos. A ineficiência de regulações nacionais RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.57-61, jan.-jun., 2007 não baseadas na ciência ou na razão deve ser reconsiderada como obstáculo para um desenvolvimento sólido de medicamentos e tratamentos terapêuticos. Nihongo Noryoku Shiken; no contexto deste artigo, trata-se do processo de requisição de testes clínicos, às autoridades regulatórias, para se obter a aprovação dos medicamentos. (N.T.) Notas 1. Órgão governamental dos Estados Unidos responsável pela regulação dos alimentos, medicamentos, cosméticos, biológicos, produtos derivados do sangue etc. (N.T.) 2. ARN interferente. (N.T.) 3. Small interfering RNA (pequena interferência com o ARN). (N.T.) 4. Age-related macular degeneration (degeneração da mácula relacionada à idade). (N.T.) 5. Chemistry, Manufacturing and Control – Química, Produção e Controle. (N.T.) 6. Shiken significa prova, teste, exame; por exemplo, o exame de proficiência em língua japonesa denomina-se Referências bibliográficas SPRINGHAM, D. 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Depois de sua residência em cirurgia de cabeça e pescoço no Japão, juntou-se ao Center of Biologics Evaluation and Research (CBER) do United States Food and Drug Administration (FDA) e conduziu diversos projetos de pesquisa em imunobiologia citocina, terapia de genes e terapia de câncer localizado. Além disso, é avaliador de regulação de produtos especializado em vacinas contra tumores e terapia genética no tratamento do câncer na FDA, e revisor das submissões de estudos de novos medicamentos feitas por indústrias e institutos acadêmicos americanos. Atualmente, está conduzindo projetos de pesquisa focado em políticas de medicamento de saúde, farmacoepidemiologia e terapias de câncer localizado. Hiroko Yamane Professora de Direito no National Graduate Institute for Policy Studies (GRIPS) em Tóquio no Japão. O governo japonês criou a GRIPS em 1997, com o objetivo de treinar oficiais do governo tanto de for a quanto do Japão, através de programas de mestrado e doutorado em Economia e Políticas Públicas (http://www.grips.ac.jp). Especializada em Competição, Direitos de Propriedade Intelectual e Direito do Comércio, suas áreas de estudo incluem competição e regularização, licenciamento e também vários assuntos relacionados o Tratado Sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionado ao Comércio Internacional (TRIPS), tais como pesquisa e desenvolvimento, saúde pública, e diversidade biológica. Entre 2004 e 2006, foi membro da Comissão Internacional de Propriedade Intelectual, Inovação e Saúde Pública da Organização Mundial de Saúde. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.57-61, jan.-jun., 2007 61 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Artigos originais Registro de ensaios clínicos: a discussão internacional e os posicionamentos possíveis para o Brasil José da Rocha Carvalheiro Cristiane Quental Vice-Presidente de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz , Rio de Janeiro, Brasil [email protected] [email protected] Resumo O objetivo deste texto é apresentar as discussões relativas ao registro de ensaios clínicos em pauta no mundo atualmente e discutir as perspectivas de inserção internacional abertas para o Brasil. Os ensaios clínicos são uma das mais valiosas fontes de evidências sobre a eficácia e a segurança de intervenções em saúde. Estas evidências, entretanto, são divulgadas basicamente através de revistas científicas e sujeitas ao chamado viés de publicação: artigos que apresentem resultados estatisticamente significativos, obtidos a partir de grandes estudos, de boa qualidade, favoráveis à industria, têm maior probabilidade de serem publicados. O registro dos protocolos dos ensaios clínicos em bases de dados públicas, quando do seu início, tem sido apresentado como alternativa de minimizar o problema. O registro de ensaios clínicos tem sido defendido por inúmeras outras razões – éticas, sanitárias, científicas e econômicas. Entretanto, nem os princípios que devem reger estes registros nem sua operacionalização são consensuais, em função dos interesses divergentes de pesquisadores, indústria farmacêutica, governo e sociedade. Palavras-chave Pesquisa clínica, ensaios clínicos, intervenções em saúde, registro, bases de dados Introdução Um ensaio clínico é uma investigação prospectiva, que avalia o efeito de qualquer intervenção deliberada, dirigida a seres humanos, sobre seus parâmetros clínicos (KRLEZA-JÉRIC et al., 2005). Nesse sentido, os ensaios clínicos são uma das mais valiosas fontes de evidências sobre a eficácia e a segurança de intervenções em saúde (SIM, 2006). Estas evidências, entretanto, são divulgadas basicamente através de revistas científicas – o que acarreta o chamado viés de publicação nas análises que se queira fazer sobre os resultados disponíveis. Os periódicos, por razões óbvias, não podem publicar todos os ensaios realizados no mundo. Precisam optar por apresentar artigos que chamem a atenção e interessem aos seus leitores. Privilegiam, assim, artigos que apresentem resultados estatisticamente significativos, obtidos a partir de grandes estudos, de boa qualidade. Por outro lado, precisam ter artigos do interesse da indústria, que encomendam milhares de exemplares para distribuir aos médicos. Assim, ao submeter um artigo para publicação, RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.63-69, jan.-jun., 2007 63 o pesquisador também seleciona os resultados que vai apresentar, dentre os vários que colheu, num processo de divulgação seletiva (REVEIZ et al., 2006). ção são consensuais, em função dos interesses divergentes de pesquisadores, indústria farmacêutica, governo e sociedade. No caso do Brasil – e dos demais países latinoamericanos –, a questão da língua de publicação e o fato da maioria de seus periódicos não estarem entre os indexados pelas maiores bases indexadoras, como MEDLINE, reduz ainda mais o acesso internacional aos ensaios aqui realizados (REVEIZ et al., 2006), de grande importância para países em situação equivalente. O texto apresenta o debate em pauta no mundo atualmente e discute as perspectivas de inserção internacional abertas para o Brasil. O registro dos protocolos dos ensaios clínicos em bases de dados públicas, quando do seu início, tem sido apresentado como alternativa de minimizar o problema. O registro de ensaios clínicos tem sido defendido por inúmeras outras razões: éticas, sanitárias, científicas, tecnológicas e econômicas. O registro seria uma obrigação ética para com quem participou do ensaio, que espera contribuir para o conhecimento científico. Seria também a forma de garantir a pacientes e médicos acesso à informação sobre ensaios que estejam recrutando pacientes. E a pacientes, médicos, investigadores, comitês de ética e patrocinadores acesso a informações sobre ensaios que ocorreram no passado e estão ocorrendo agora: evitando os riscos de exposição desnecessária a intervenções já estudadas, evitando a duplicação de esforços, impulsionando o avanço do conhecimento e a cooperação entre grupos de pesquisa (KRLEZA-JERIC et al., 2005). CUERVO et al. (2006) destacam, ainda, a importância do registro dos ensaios clínicos para o planejamento da pesquisa, permitindo identificar as lacunas no conhecimento existentes em diferentes áreas, observar tendências no campo dos estudos, além de permitir identificar os especialistas nas diversas áreas. Vale ressaltar que, sendo as atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico a base da inovação nas indústrias da saúde, estas informações são valiosas tanto para as empresas quanto para os formuladores de políticas de promoção da inovação. Apesar dos benefícios do registro dos ensaios serem considerados há anos, foi a partir de 2004 que a questão ganhou maior atenção, quando foi movida uma ação pública contra a empresa farmacêutica GlaxoSmithKline pelo Procurador-Geral de Nova York por ocultação de evidências negativas envolvendo seu antidepressivo paroxetina, comercializado como Paxil, nos EUA, e Seroxat, na Grã-Bretanha (KRLEZA-JERIC, 2005). Ainda, segundo DYER (2004), o Procurador dispunha de memorando interno da companhia datado de 1998, dizendo que seria “comercialmente inaceitável admitir que a paroxetina não havia funcionado em crianças e que a companhia deveria gerenciar a disseminação desses dados para minimizar quaisquer impactos negativos”. O caso intensificou o debate sobre a necessidade de implantação de uma base que pudesse registrar todos os ensaios clínicos desde seu início. Mas, embora tenham sido observadas inúmeras iniciativas no sentido de criação de registros e de incentivo ao registro público dos ensaios clínicos ao redor do mundo, nem os princípios que devem reger esses registros nem sua operacionaliza64 Principais iniciativas no sentido de promover o registro dos ensaios clínicos Uma das iniciativas pioneiras partiu do Canadian Institutes of Health Research, que, logo após o episódio com a Glaxo SmithKline, passou a exigir o registro de todos os ensaios por eles financiados (CUERVO et al., 2006) e convocou uma reunião aberta em Ottawa, para a qual convidou os interessados em contribuir na elaboração de um plano para o registro global de ensaios clínicos. A questão foi debatida e se criou o Grupo de Ottawa para levar a discussão adiante, internacionalmente (OTTAWA GROUP, 2007). A Declaração de Ottawa - parte I (KRLEZA-JERIC et al., 2005) foi publicada em vários periódicos, defende o registro de todos os ensaios clínicos aprovados por comitês de ética e autoridades sanitárias, e que estes ganhem um número único de identificação, global. O registro deve ocorrer antes do início do recrutamento dos participantes do estudo, colocando à disposição do público informação sobre o protocolo, sendo esta informação atualizada sempre que forem verificadas mudanças. Defende também o registro dos resultados alcançados, tão logo disponíveis, assim como dos efeitos adversos. Sua divulgação para o público, entretanto, pode esperar a publicação dos resultados, que deve estar relacionada na base. (A parte II da Declaração de Ottawa, que versa sobre os princípios de operacionalização do registro dos ensaios, está aberta no site do grupo (www.ottawagroup.ohri.ca), para consulta pública. A parte III, que trata da abertura dos resultados, está sendo desenvolvida.) O Grupo defende que o registro deve ser uma exigência legal, mas exorta editores de periódicos a exigirem o número de registro único para a publicação de artigos relacionados a ensaios e os comitês de ética a incentivarem o procedimento. Essa proposta teve o importante respaldo do International Comittee of Medical Journal Editors (ICMJE), que anunciou, em setembro de 2004, que os periódicos afiliados passariam a aceitar para publicação apenas ensaios registrados em bases públicas que seguissem determinados critérios: acesso do público sem ônus, gerenciadas por organização sem fins lucrativos, dispondo de mecanismo de validação dos dados registrados, e que permitissem buscas eletrônicas. Cada registro deveria incluir um número único de identificação, a intervenção em questão, as comparações estabelecidas, a hipótese em estudo, a definição das variáveis de resultados primárias e secundárias, os critérios de inclusão, o cronograma, o número de sujeitos, as fontes de financiamento, as informações para contato com o investigador principal (DE ANGELIS et al., 2004). Este foi o fator decisivo para RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.63-69, jan.-jun., 2007 que os ensaios passassem a ser mais sistematicamente registrados (ZARIN et al., 2005). Essa determinação foi seguida por muitos outros periódicos, inclusive pelos afiliados a Bireme – Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde, da Organização Pan-americana da Saúde - OPAS, através da indexação nas bases LILACS e SciELO, que anunciou que também exigirá, a partir de agosto de 2007, o registro prévio para publicação de artigos sobre ensaios clínicos (BIREME, 2006). Ainda em 2004, em novembro, realizou-se, na Cidade do México, uma Cúpula Ministerial voltada para a pesquisa em saúde. A Declaração do México, assinada por Ministros da Saúde e outros participantes de 52 países, reconhece que os resultados de pesquisas de boa qualidade devem ser acessíveis, para informar efetivamente a política de saúde e a tomada de decisão na assistência. Reconhece, ainda, que os resultados de pesquisa devem ser publicados, documentados em registros e arquivos acessíveis internacionalmente, e sintetizados através de revisões sistemáticas da totalidade dos resultados de pesquisa disponíveis, para embasar uma abordagem de saúde baseada em evidências. Insta a Organização Mundial da Saúde - OMS - a facilitar a integração de uma rede internacional de registros de ensaios clínicos, assegurando um único portal de acesso e a identificação dos ensaios sem ambigüidades (MINISTERIAL SUMMIT, 2004). A OMS aceita a missão, entendendo que, por seu caráter global e neutro, inspira maior confiança do público. Seu papel de autoridade mundial na área da saúde, tendo como função essencial a coordenação e a normatização, a credencia para coordenar a tarefa (SIM, 2006). Na verdade, a OMS já vinha discutindo a questão e, após ampla consulta internacional, lançou, em maio de 2005, a proposta de criação de uma Plataforma Internacional de Registro de Ensaios Clínicos (International Clinical Trials Registry Platform – ICTRP), apresentada a seguir. Quadro 1 – Conjunto de dados para registro no ICTRP 01. Primary register trial number / Número único de identificação 02. Trial registration date / Data de registro do ensaio 03. Secondary IDs / Identidades secundárias 04. Sources of monetary or material support / Fontes de financiamento e suporte material 05. Primary sponsor /Principal patrocinador 06. Secondary sponsor(s) / Outros patrocinadores 07. Contact for public queries / Contato para dúvidas do público 08. Contact for scientific queries / Contato para dúvidas científicas 09. Public title of the study / Título público do estudo 10. Scientific title / Título científico 11. Countries of recruitment / Países de recrutamento 12. Health condition or problems studied / Problemas de saúde estudados 13. ntervention(s) / Intervenções 14. Key inclusion and exclusion criteria / Critérios de inclusão e exclusão 15. Study type / Tipo de estudo 16. Date of the first enrollment / Data de recrutamento do primeiro voluntário 17. Target sample size / Tamanho da amostra pretendido 18. Recruitment status / Status de recrutamento 19. Primary outcomes / Medidas de resultado primárias 20. Key secondary outcomes / Medidas de resultado secundárias Fonte: WHO, 2007 Figura 1 - Estrutura da Plataforma ICTRP proposta pela OMS A proposta da OMS A OMS defende que todos os ensaios sejam registrados. Sua proposta é de liderar o processo de normatização dos registros de ensaios clínicos em nível internacional, para tornar possível a cooperação entre eles, no sentido de formar uma rede, acessível de um único portal, onde cada ensaio receba um número único de identificação que permita acompanhá-lo inequivocamente ao longo de sua existência. Uma das pedras angulares da proposta é, assim, um conjunto mínimo de informações, que devem ser registradas sobre cada ensaio, enumeradas no Quadro I. Fonte: SIM, 2006. Segundo SIM (2006), existem centenas de bases de registro de ensaios no mundo, que variam em escopo - sendo voltadas para determinada doença, país ou financiador - e finalidades – para acompanhamento administrativo, recrutamento de pacientes, análise científica etc. A OMS reconhece que cada uma tem sua aplicação, não sendo realístico pensar em uma única base que atendesse a todos. Assim, propõe uma estrutura hierárquica de ligação entre elas, descrita na Figura 1. Nesta hierarquia, Registros Associados enviariam suas informações para Registros Primários, que ficariam responsáveis pelo trabalho de “desduplicação” de registros (identificação de ensaios registrados em mais de uma base) e de tradução para o inglês, quando fosse o caso, já que toda informação tem que ser disponibilizada em inglês. A ICTRP seria um meta-registro articulando a informação registrada nesses Registros Primários. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.63-69, jan.-jun., 2007 65 Questões em discussão São diferentes as opiniões no que tange à natureza e ao alcance que deve ter o registro de ensaios clínicos. A primeira questão polêmica que surge é com relação à própria delimitação de quais ensaios devem ser registrados. Enquanto a proposta do Grupo de Ottawa e a da OMS é de que todos os ensaios devem ser registrados, a indústria pede que os ensaios de caráter exploratório, realizados nas fases iniciais da pesquisa, sejam dispensados do registro, uma vez que visam meramente gerar hipóteses de trabalho. Afetariam diretamente sua competitividade sem contribuir efetivamente como evidência médica, não sendo relevantes para informar a prática clínica (KRLEZA-JERIC, 2005). O ICMJE seguiu essa segunda racionalidade, definido o ensaio a ser registrado como um projeto de pesquisa que, prospectivamente, sujeita pessoas a intervenções médicas para estudar relações de causa e efeito com relação a resultados de saúde. “Estudos desenhados para outros propósitos, como para estudar farmacocinética ou toxicidade (como ensaios de fase I) estão dispensados” (DE ANGELIS et al., 2004). A esses argumentos contrapõem-se, entretanto, os recentes eventos que levaram à morte de uma pessoa em um ensaio de fase I, em Londres, como ilustrando a necessidade de registro de todos os ensaios (HEALTH CANADA, 2006). A indústria pede também que cinco dos 20 itens integrantes do conjunto básico de informações proposto pela OMS tenham sua divulgação retardada: título científico oficial do estudo, intervenções, resultados primários, principais resultados secundários e tamanho da amostra – itens mais sensíveis para a competição. O Grupo de Ottawa é veemente contra essa proposta, enfatizando que a proposta da OMS já deixa de fora itens considerados pela Declaração de Ottawa como cruciais, e que aqueles já estariam todos na base de dados do ClinicalTrials.gov, ao qual a indústria já estaria acostumada (KRLEZAJERIC, 2005). Argumenta que, considerando-se que um dos campos é relativo ao número único e nove são administrativos, sobraria apenas um conjunto mínimo de dez variáveis que descrevem o ensaio e que sem as cinco principais, a descrição ficaria absolutamente genérica e sem utilidade. Se ainda poderia servir para incluir pacientes em estudos, um tal registro não serviria aos objetivos éticos e científicos (KRLEZA-JERIC, 2005). A proposta da OMS é de só dar o número único de registro para aqueles que preencherem os 20 itens (embora possa considerar a revelação de alguns deles em momento posterior). A experiência do ClinicalTrials.gov, o maior registro do mundo com cerca de 39 mil ensaios registrados (mantido pela National Library of Medicine – National Institutes of Health/EUA), descrita em ZARIN et al. (2005), mostra que a qualidade dessas informações pode ser bastante ruim, mesmo considerando-se que o ClinicalTrials.gov aceita as informações como são registradas: no período de maio a outubro de 2005, o campo relativo à principal variável de medida do ensaio foi preenchido em apenas 76% dos ensaios patrocinados pela indústria, e a qualidade dos dados deixa a desejar, como mostra o Quadro 2. 66 Quadro 2 – Medidas de resultado primárias no ClinicalTrials.gov (mai-out 2005) Em 76% dos ensaios patrocinados pela indústria este campo estava preenchido. Porém: • em 17% o campo estava preenchido de forma vaga; • em 19% foi apresentando o domínio, sem medida específica; • em 23% foi apresentada a medida, porém sem o horizonte de tempo; • em 10% foi apresentado o horizonte de tempo, porém sem a medida; • em 31% foram apresentados a medida específica e o horizonte de tempo. Fonte: Zarin et al. (2005) Mas há discordâncias também quanto ao modelo do sistema. A proposta da OMS é de uma estrutura hierárquica, onde o registro dos ensaios seria feito em registros secundários, nacionais ou regionais, que seriam consolidados por registros primários. O ClinicalTrials.gov propõe o inverso: que os ensaios sejam registrados primeiro nas bases primárias, que distribuiriam os registros de interesse para as secundárias. Acham que a consolidação é trabalhosa e não garantiria a qualidade dos dados. Por outro lado, o Current Controlled Trials (www.controlledtrials.com), o segundo maior registro do mundo, criado na Inglaterra por pesquisadores dedicados principalmente à revisão sistemática, organizados pela editora Current Science Group, com mais de 5 mil ensaios repertoriados, é um meta-registro, organizado em estrutura semelhante à proposta pela OMS. Agrega vários outros registros e possui um esquema de numeração única de ensaios, o International Standard Randomized Controlled Trial Number (ISRCTN). A adesão internacional à proposta é fundamental na ausência de mecanismos que obriguem o registro. Embora exista alguma legislação em vigor e inúmeros projetos tramitando no mundo nesse sentido, o maior incentivo ao registro ainda é a exigência dos periódicos para a publicação de artigos. O momento é de negociação e busca de apoios institucionais, pois o registro é voluntário. “It should be stressed, however, that any limitiation on the availability of information would result in a limitation on the efficiency of Clinical Trials Registers, and thus would represent a possible functional and ethical breach”. (BOISSEL et al, 1993) Movimentos nas Américas/Alternativas para a posição brasileira A proposta da OMS, defendida pela OPAS, tem obtido apoio nas Américas. Foi criado o LATINREC - The Latin American Ongoing Clinical Trial Register, desenvolvido pela braço colombiano da Colaboração Cochrane Iberoamericana – organização independente de informação em saúde que congrega 12 centros colaborativos em dez RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.63-69, jan.-jun., 2007 países latino-americanos (Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, Guatemala, México, Peru e Venezuela), coordenados pelo centro de Barcelona. Este registro está para iniciar suas operações, seguindo os requisitos da ICTRP. Ao lado do ClinicalTrials.gov, seriam dois os registros da rede nas Américas. O Canadá também aderiu à proposta, mas discute como melhor implementá-la: criar um registro nacional ou se associar a um registro que atenda às condições da ICTRP, como o ClinicalTrials.gov. Está tendendo a uma opção de associação customizada, onde, além das informações do registro, pede outras – no caso, o termo de consentimento do voluntário (HEALTH CANADA, 2006). A importância da participação brasileira no esforço global é clara, contribuindo para incentivar o registro no país, dar maior visibilidade aos ensaios aqui realizados e contribuir para uma maior qualidade dos dados disponibilizados. Reforça, também, o sistema de revisão ética e sanitária e os princípios que os regem, além de servir para subsidiar políticas de saúde, científicas e tecnológicas, nacionais ou institucionais. As discussões sobre a proposta da OMS, inicialmente restritas ao âmbito das autoridades responsáveis, como o Departamento de Ciência e Tecnologia – Decit, da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos – SCTIE, do Ministério da Saúde (que encampou a proposta), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa - e o Conselho Nacional de Ética em Pesquisa Conep, ganharam fóruns mais amplos no VIII Congresso Brasileiro em Saúde Coletiva e XI Congresso Internacional em Saúde Pública, realizado no Rio de Janeiro, em agosto de 2006. As atividades promovidas por OPAS, Decit e Fiocruz contaram com a presença de representantes do governo, de editores, da indústria e dos pacientes, de registros estrangeiros (Latinrec e registro da África do Sul) e nacionais (ICICT/Fiocruz), de pesquisadores, enfim, uma gama bastante ampla de interessados, que culminaram na decisão de criação de uma base nacional. Colocam-se para nós as mesmas questões que enfrentam os canadenses: como melhor implementar a proposta? Vale a pena criar um Registro Nacional? O Quadro 3 mostra algumas estatísticas relativas aos ensaios registrados no ClinicalTrails.gov em março de 2007. Segundo o Quadro, haveria 511 estudos registrados na base que listavam o Brasil como uma das localidades de realização – cerca de 1,5% dos ensaios da base. Entretanto, apenas 82 dentre estes listavam exclusivamente o Brasil. Seriam pelo menos esses os ensaios que estariam registrados em nossa base. Este número, entretanto, deve aumentar, uma vez que no último Congresso Internacional de Saúde Pública foi anunciada a decisão dos periódicos latino-americanos de, dentro de um ano, também só aceitar para publicação ensaios registrados, como mencionado anteriormente. Seria uma melhor opção – como acredita o Canadá – associar-se a um registro que atenda às condições da ICTRP? O interesse de um registro como o ClinicalTrials, Quadro 3 – Principais países em número de registros de ensaios das Américas País Total de ensaios Em um só país EUA Em vários países 23187 19995 3192 Canadá 3299 1312 1987 Alemanha 2339 916 1423 França 2121 914 1207 Inglaterra 1867 632 1235 Brasil 511 82 429 México 458 46 412 Argentina 425 19 406 209 12 197 Chile Fonte: ClinicalTrials.gov, acessado em 08/03/2007. por exemplo, numa parceria com o Brasil, seria no incentivo ao registro e na validação de seus dados relativos aos ensaios realizados no território nacional e na divulgação em língua nacional. É esse, inclusive, o objetivo da OMS, ao propor uma estrutura descentralizada – a proximidade do registro dos ensaios realizados, facilita essas tarefas. Para o Brasil, o interesse estaria no estabelecimento de um registro a custo reduzido, pois não teria que financiar a infra-estrutura técnica necessária. Uma série de outras decisões precisa ser tomada para a implantação de um Registro Nacional, e uma delas é a política de registro do País. O registro pode ser considerado voluntário, ou ter alguma forma de obrigatoriedade. Esta obrigatoriedade não pode afugentar os estudos da indústria. Como um caminho intermediário pode novamente ser citada a discussão canadense (HEALTH CANADA, 2006), que sugere que o governo exija inicialmente apenas que os ensaios que financia sejam registrados, mas que faça gestões para que outras instituições canadenses sigam seu exemplo. Considerações finais Qualquer que seja a opção do Brasil, o importante é que os dados registrados sejam usados, principalmente, pelo Ministério da Saúde, que os financiará. O principal benefício será conhecer o que acontece no Brasil em termos de ensaios clínicos: Quais são os projetos desenvolvidos? Patrocinados por quem? Executados por quem? Sua utilização mais direta seria no subsídio à política científica e tecnológica e de inovação no complexo industrial da saúde, quer incentivando atividades de P&D, onde as necessidades de saúde pública não estejam sendo atendidas pela indústria, quer regulando o processo, incentivando a geração de conhecimentos para subsidiar a incorporação de novos produtos e novas tecnologias ao sistema de saúde. Mas os benefícios do registro dos ensaios clínicos ultrapassam a ação governamental no que diz respeito à inovação, contribuindo para a geração de novos produtos: acrescentando novos conhecimentos ao estoque do qual RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.63-69, jan.-jun., 2007 67 bebe a P&D farmacêutica e da maioria dos insumos para a saúde; sinalizando o que está sendo estudado e onde há lacunas, onde as chances para a inovação são mais favoráveis, pela menor competição a ser enfrentada. É, ao mesmo tempo, uma vitrine para pesquisadores/centros de pesquisa nacionais, propiciando maior interação e inserção internacional, além de facilitar o acesso das empresas aos recursos de que necessita; e uma vitrine para as empresas, atraindo parcerias e facilitando a busca de parcerias. Espera-se ter contribuído para divulgar a discussão e incentivar o debate a respeito do registro dos ensaios clínicos, não só para subsidiar os movimentos do governo, como para incentivar o registro dos ensaios realizados no Brasil. Referências bibliográficas BIREME. Clinical trials should be registered before publication in LILACS and SciELO journals. Newsletter Biblioteca Virtual em Saúde. Disponível em: www.who. int Acesso em 26 de setembro de 2006. BOISSEL, J.P. et al. International collaborative group on clinical trail registries: technical report. Clinical Trials and Meta-Analysis, n.28, p.255-266, 1993. CLINICALTRIALS.GOV. disponível em www.clinicaltrials.gov. Acesso em 08 mar. 2007. CUERVO, L.G.; VALDÉS, A.; CLARK, M.L. El registro internacional de ensayos clínicos. Editorial. Revista Panamericana de Salud Pública, ano 85, v.19, n.6, jun 2006. De ANGELIS, C.D. et al. Clinical trial registration: a satetment from the International Committee of Medical Journal Editors. Journal of the American Medical Association n.292, p.1363-1364, set. 2004. DYER, O. GlaxoSmithKline faces US lawsuit over concealment of trial results. BMJ, n.328, p.1395, jun 2004. 68 HEALTH CANADA – External working group on the registration and disclosure of clinical trial information. Final report: options for improving public access to information on clinical trials of heath products in Canada. Dec. 2006. Disponível em: http://hc-sc.gc.ca/dhpmps/prodpharma/activit/sci-consult/ewg-ct Acesso em: 02 abr. 2007. KRLEZA-JÉRIC, K. et al.. Principles for international registration of protocol information and results from human trials of health realted interventions: Ottawa statement (part I). 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É membro e atual Presidente da Associação Brasileira de Pós Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), Editor Científico da Revista Brasileira de epidemiologia , Membro do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Vigilância Sanitária. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Epidemiologia, atuando principalmente nos seguintes temas: epidemiologia; aids; ciência, tecnologia e inovação em saúde; políticas de desenvolvimento de vacinas e imunobiológicos. Recentemente foi nomeado Vice Presidente de Pesquisa e Desenvolvimento da Fundação Oswaldo Cruz. Cristiane Quental Economista, formada pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982), com mestrado e doutorado em Administração pelo Instituto de Pós-Graduação em Administração (COPPEAD) da mesma Universidade (1989 e 1995). Tem Pós-doutorado no Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (2006). É Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz, com interesse nos temas: Política e Gestão de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde; Sistema Nacional de Inovação em Saúde; Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde; Gestão de Instituições Públicas de Pesquisa e Complexo Industrial da Saúde. Coordena o Mestrado Profissional em Gestão de Ciência e Tecnologia em Saúde, oferecido pela ENSP a gestores de organizações federais de ciência e tecnologia em saúde e assessora o Projeto Inovação em Saúde, da Presidência da Fiocruz, instância que está participando do processo de implantação de um Registro de Ensaios Clínicos no Brasil. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.63-69, jan.-jun., 2007 69 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Artigos originais TRIPS, bilateralismo e patentes: o desapontamento dos mundos desenvolvido e em desenvolvimento e o que fazer Luigi Palombi Centre for Governance of Knowledge and Development, Regulatory Institutions Network, College of Asia and the Pacific, The Australian National University, Camberra, Austrália [email protected] Resumo A grande maioria dos recursos biológicos mundiais e do conhecimento tradicional está localizada no mundo em desenvolvimento, embora a grande maioria da propriedade intelectual do mundo sobre biotecnologia seja propriedade do mundo desenvolvido. Desde a formação da OMC, o mundo em desenvolvimento apóia as demandas do mundo desenvolvido relativas a uma maior proteção da propriedade intelectual. No entanto, como agora ele busca apoio do mundo desenvolvido para explorar esses recursos, descobre que o mundo desenvolvido somente respondeu com propostas de bilateralismo. Além disso, o aumento do investimento externo direto esperado não se concretizou, ainda que tenha continuado a fluir para a China, um país que é o maior produtor mundial de mercadorias falsificadas. Este artigo discute o TRIPS1 [Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio], o bilateralismo pós-TRIPS e as patentes no contexto dos recursos biológicos e do conhecimento tradicional e busca apresentar uma solução para o impasse atual da propriedade intelectual entre os países desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento. Palavras-chave TRIPS, conhecimento tradicional, patentes, sui generis, bilateralismo TRIPS No final do século XX e início do XXI, a colaboração entre duas das economias mais expressivas do mundo – a dos Estados Unidos (EU) e a da União Européia (UE), não poderia ser maior do que a que se refere à propriedade intelectual. Em primeiro lugar, com a Rodada Uruguai do GATT2 em Punta del Este, em setembro de 1986, a propriedade intelectual foi por eles priorizada supostamente “para garantir que medidas e procedimentos com o objetivo de fazer cumprir os direitos de propriedade intelectual não se tornem barreiras para o comércio justo”.3 Apesar dos protestos do Brasil, da Índia, Argentina, Tailândia e outros países em desenvolvimento, a questão da propriedade intelectual, que até então tinha sido considerada apenas no contexto da falsificação de mercadorias com marca registrada4, de repente foi ampliada para incluir todas as suas formas no contexto do GATT. Enquanto o impulso direcionado para esse movimento veio, primeiro, de uma colaboração difusa entre os países desenvolvidos, entre eles, Estados Unidos, Suíça, Japão, os da União Européia, Finlândia e Noruega, “a centelha que acendeu o trabalho rumo ao Acordo TRIPS” RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.71-82, jan.-jun., 2007 71 (GERVAIS, 2003) de fato veio da União Européia, em março de 1990, sob a forma do Draft Agreement on TradeRelated Aspects of Intellectual Property Rights [Esboço para Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio]. Em uma abordagem aparentemente insensível à furiosa controvérsia entre os países do Norte e do Sul sobre a adequação da propriedade intelectual às negociações comerciais, a União Européia deu seu passo decisivo inesperadamente, pegando os Estados Unidos praticamente de surpresa. Em dois meses, os Estados Unidos fizeram também seu próprio esboço5 para um acordo com uma linguagem tão semelhante, que Daniel Gervais conjecturou ser produto de “consultas transatlânticas” (GERVAIS, 2003). Ao produzir o que era quase uma imagem espelhada do esboço da União Européia, os Estados Unidos e a União Européia não só articularam eventos para permiti-los controlar a agenda, o debate, e o rascunho do que finalmente ficou conhecido como Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property [Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio] ou TRIPS6, mas também convenceram tanto países desenvolvidos7 quanto um número significativo de países em desenvolvimento8, entre os quais muitos tinham, apenas cinco anos antes, resistido fortemente à idéia de incorporar a propriedade intelectual às negociações de um comércio multilateral, a assinarem o TRIPS em 15 de abril de 1994. No dia 1º de janeiro de 1995, o TRIPS como um dos acordos-chave da OMC, organização internacional que atualmente tem cento e cinqüenta membros, entrou em vigor. Por que os Estados Unidos e a União Européia foram tão convincentes em um espaço de tempo tão curto deixou muitos observadores perplexos, principalmente, como observou Peter Drahos, porque “do ponto de vista do comércio imediato, a globalização da propriedade intelectual realmente só beneficiou os Estados Unidos e em menor medida a Comunidade Européia” (DRAHOS, 2003). No entanto, desde sua instituição, não só os membros da OMC cresceram significativamente9, como hoje ela inclui a China que, de acordo com as últimas estatísticas da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI10), desalojou a Suíça para se tornar o oitavo maior país em matéria de registro de patentes internacionais, com um aumento de 57% nos registros do Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (PCT11) entre 2005 e 2006 (WIPO, 2007). Na verdade, segundo a OMPI, durante o mesmo período, os pedidos de patentes internacionais feitos pelos países em desenvolvimento12 aumentaram quase 28%. O que essas estatísticas da OMPI sugerem é que a OMC (ou seja, GATT + TRIPS) tem sido eficaz na promoção do reconhecimento mútuo, da proteção e implementação da propriedade intelectual tanto nos países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento e, tem um papel importante ao estimular esses últimos a estabelecerem sua própria capacidade de criação de propriedade intelectual dos nativos, especialmente na forma de patentes. Esse crescimento de registros de patentes internacionais levaram o dr. Francis Gurry, vice72 diretor geral da OMPI, a anunciar que “novos centros de inovação, particularmente no nordeste da Ásia, estão surgindo e isso está transformando tanto a geografia do sistema de patentes como o futuro crescimento econômico global.” Bilateralismo pós-TRIPS Diante do crescimento de registros de patentes internacionais pelos países em desenvolvimento, desde a formação da OMC e do fórum de resolução multilateral de disputas comerciais que ela administra, seria possível pensar que o bilateralismo, estratégia que os Estados Unidos usaram com êxito para pressionar os países em desenvolvimento, como o Brasil e a Índia, a concordarem com suas exigências sobre a propriedade intelectual antes do TRIPS,13 teria sido erradicado. Mas, em vez disso, não só o bilateralismo continuou a crescer como se expandiu continuamente.14 Desde 2000, os Estados Unidos concluíram os Acordos de Livre Comércio (FTAs15) bilaterais com Jordânia, Chile, Singapura, Austrália, Bahrein, Marrocos, El Salvador, Nicarágua, Honduras, Omã e Coréia. A União Européia também concluiu ou mostrou interesse em começar as negociações dos FTAs bilaterais com Asean16 [Associação das Nações do Sudeste Asiático], Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Índia, Coréia, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. A Austrália, o Canadá, o Japão e a Nova Zelândia fizeram seus próprios FTAs com outros países. A pergunta óbvia é: por quê? E a resposta: em parte, porque fortalecer leis e mecanismos reguladores de propriedade intelectual favorece as indústrias farmacêuticas e de biotecnologia (CORREA, 2006). Como explica Carlos Correa: “Esses novos acordos de livre comércio, negociados fora da Organização Mundial do Comércio, requerem altos níveis de proteção à propriedade intelectual mais para os medicamentos do que aqueles decretados pelo Acordo TRIPS, e em alguns casos vão além do que é requerido nos países em desenvolvimento que os promovem.” (CORREA, 2006) Enquanto essa escalada da proteção à propriedade intelectual pode de alguma maneira explicar a busca contínua do bilateralismo em um mundo pós-TRIPS, pelos países desenvolvidos, especialmente por aqueles que têm indústrias farmacêuticas e biotecnológicas significativas, como os Estados Unidos e alguns da União Européia, isso não acontece com os países em desenvolvimento, especialmente quando, como aponta Correa, os mecanismos de proteção à propriedade intelectual mais forte requeridos por esses acordos bilaterais “reduz o acesso a medicamentos” (CORREA, 2006) e estão sujeitos à “opinião contrária de suas autoridades da saúde pública” (CORREA, 2006). Trata-se de um paradoxo o fato de, apesar dessas desvantagens, o mundo em desenvolvimento estar aceitando a agenda bilateral dos países desenvolvidos, e as estatísticas da OMPI sobre patentes parecem confirmar isso. É claro que esse paradoxo tem uma explicação, pois o RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.71-82, jan.-jun., 2007 mundo em desenvolvimento não é irracional nem indiferente ao impacto que proteções mais fortes à propriedade intelectual impõem sobre a saúde de suas populações. Se alguém procurar uma resposta, pode parecer que ela se encontra em suas expectativas, estimulados pelos países desenvolvidos, de que a longo prazo a aquiescência às suas exigências sobre a propriedade intelectual vão acelerar a transformação de suas economias em desenvolvimento para desenvolvidas, atraindo investimento externo direto (IDE), e que sua transformação não só proporcionará padrões de vida mais altos, mas também estimulará o desenvolvimento industrial. Basicamente, eles aceitam que o sofrimento imediato imposto às suas populações, no que se refere à redução do acesso aos medicamentos, será transitória, uma vez que finalmente o IDE aumentará sua capacidade de produzir medicamentos por meio de suas próprias indústrias farmacêuticas e de biotecnologia.17 No entanto, enquanto isso soa possível, nem todos aceitam que o aumento do IDE será a panacéia econômica que o mundo em desenvolvimento espera (HALLWARD-DRIMEIER, 2003). Na verdade, há quem argumente que, embora o IDE possa muito bem aumentar, a qualidade desse investimento, juntamente com as restrições que lhe são impostas pelos acordos bilaterais, podem realmente atrasar18, mais do que contribuir para, seu desenvolvimento econômico. Como indica Robert Wade, “As regras que estão sendo redigidas nos acordos multilaterais e bilaterais definitivamente impedem que os países em desenvolvimento busquem os tipos de políticas industriais e tecnológicas adotadas pelos países do Leste Asiático que se desenvolveram recentemente e pelos que se desenvolveram anteriormente quando estavam em desenvolvimento.”19 (WADE, 2003) A disfunção descrita por Wade é visível quando se comparam as entradas de IED com as saídas de royalties20 (FINK et al., 2005) e outros custos, na forma de preços mais altos para mercadorias como medicamentos,21 causados pela aplicação de mecanismos de propriedade intelectual compatível com o TRIPS e com os acordos de livre comércio bilaterais pós-TRIPS. Enquanto uns argumentam que o aumento dos custos dos medicamentos nos países em desenvolvimento proporcionará benefícios positivos por estimular pesquisas para tratamentos de doenças endêmicas nesses países, tais como a malária e a tuberculose, outros indicam que isso não será um consolo para os pobres que não têm recursos para pagar o preço desses novos tratamentos e medicamentos. O que esse debate sugere é que o fortalecimento das leis de propriedade intelectual pelos países em desenvolvimento não resulta necessariamente em melhorar o acesso de sua população a tratamentos ou medicamentos baratos e que, como Ganlandt, Maskus e Wong, em nome do Banco Mundial, explicam: “esses problemas apontam diretamente para a necessidade de um maior interesse público em incentivar novas drogas e em adquirir e distribuir medicamentos” (FINK et al., 2005). Com isso, eles querem um esquema publicamente financiado, subsidiado por países desenvolvidos que conceda às empresas farmacêuticas uma “garantia de longo prazo para inovações” (FINK et al., 2005), de modo a estimulá-las ao desenvolvimento, à produção e ao fornecimento de medicamentos, para determinados países em desenvolvimento, a preços acessíveis “mas com rígidos controles para impedir que os medicamentos de baixo custo saiam daquelas áreas” (FINK et al., 2005). Se essa proposta é viável, não é algo que este artigo seja capaz de avaliar, mas o fato de ela ter sido proposta indica que os autores acreditam que, mesmo que o investimento externo direto realmente cresça nos países em desenvolvimento na mesma proporção que sua implementação de leis de propriedade intelectual mais fortes, não há a menor garantia de que isso leve as empresas farmacêuticas e biotecnológicas a se dedicarem à pesquisa e desenvolvimento que produzam os tratamentos e medicamentos necessários para reduzir as doenças e infecções no mundo em desenvolvimento. Em suas palavras, “o sistema predominante [de direitos de propriedade intelectual] não dá conta de oferecer incentivos suficientes para desenvolver novos tratamentos e distribuí-los a baixo custo” (FINK et al., 2005). No entanto, além disso, o que o TRIPS e o bilateralismo pós-TRIPS impõe aos países em desenvolvimento, como Wade apontou, são regimes internacionais que efetivamente os priva de sua capacidade de adaptá-los a seus propósitos e implementam políticas concernentes ao reconhecimento e ao cumprimento da propriedade intelectual. É crítico, essas imposições não têm conseguido satisfazer o conjunto peculiar de circunstâncias econômicas que eles têm de enfocar, não só para alcançar as transformações econômicas que os tornariam um país desenvolvido, mas para alcançá-las de uma maneira que satisfaça também as necessidades sociais, éticas e morais de suas populações. O que é particularmente injusto, no que diz respeito tanto ao TRIPS quanto ao bilateralismo pós-TRIPS, é a não imposição de obrigações recíprocas ao países desenvolvidos, proprietários da grande maioria mundial da propriedade intelectual, para suprir os países em desenvolvimento de benefícios específicos, tangíveis e executáveis, de modo que eles possam confiar em seu caminho para se igualarem economicamente ao mundo desenvolvido. Precisamente, os benefícios aludidos nesse contexto vão além dos tipos de benefícios que fluiriam das reduções gerais de tarifas, taxas alfandegárias, cotas de importação para produtos agrícolas e subsídios para atividades agrícolas, como era o objetivo do GATT. Assim, parece que, em troca do GATT + TRIPS, o mundo desenvolvido não só estabeleceu um piso internacional para o reconhecimento mútuo e implementação da propriedade intelectual, como o fez sem que lhe fosse exigido estender o comércio tangível e os benefícios econômicos ao mundo em desenvolvimento além do que já era contemplado pelo GATT. Infelizmente, o bilateralismo pós-TRIPS somente agravou essa disparidade. A suposição que o mundo desenvolvido sempre fez, na busca do TRIPS e do bilateralismo pós-TRIPS é que, quanto mais fortes as proteções à propriedade intelectual dadas pelo mundo em desenvolvimento, maior a probabilidade de o investimento externo direto fluir proporcionalmente em sua direção. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.71-82, jan.-jun., 2007 73 O problema dessa suposição, como explicou Mary Hallward-Driemeier, é que há uma ínfima evidência para sustentá-la (HALLWARD-DRIEMEIER, 2003). Ao contrário, a experiência chinesa mostra que fluxos de investimento externo direto não dependem do TRIPS nem dos acordos de livre comércio bilaterais pós-TRIPS. Antes mesmo de ter se tornado um membro da OMC em dezembro de 2001, a China recebeu fluxos significativos de IED e, em 2000, foi o país em desenvolvimento líder e o segundo (em relação aos Estados Unidos) entre os países da APEC22 (em matéria de seus fundos de IED de cerca de trezentos bilhões de dólares (GRAHAM et al., 2001). Esses fluxos de investimentos ocorreram embora a China tivesse uma má reputação relativa ao cumprimento dos direitos de propriedade intelectual antes de sua entrada para a OMC; mas, mesmo a partir do momento que entrou, de acordo com o Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR), “destinando fracas proteção ao e implementação do IPR [direito de propriedade intelectual], a China continua a ser uma das principais prioridades da Administração” (USTR, 2005) e em seu ‘Relatório Especial 301’ explicou que os Estados Unidos eram “críticos [à China] no que se refere à falsificação desenfreada e aos problemas de pirataria que contaminam o mercado interno da China e ao fato de que a China se tornou a principal exportadora de mercadorias falsificadas e pirateadas para o mundo.” (USTR, 2005). Como resultado, a China foi o assunto de uma avaliação separada feita pelo USTR que, em seu relatório, declarou: “De modo geral, os índices de pirataria na China não declinaram de maneira significativa desde que se integrou à OMC e, em alguns setores, já cresceram para níveis extremamente altos. O relatório a ser submetido à avaliação em caráter extraordinário (OCR23) avaliou perdas dos E.U., devido à pirataria de materiais com copyright, que variam de 2,5 bilhões de dólares a 3,8 bilhões por ano.” (USTR, 2005) Apesar das graves advertências e condenações do USTR, de acordo com o Ministério do Comércio da China, nos primeiros seis meses de 2004, os investimentos externos diretos aumentaram 12%, chegando a 34 bilhões de dólares; em junho do mesmo ano, a General Motors confirmou que investiria três bilhões de dólares com o objetivo de dobrar sua capacidade de produção em 2007, e a Volkswagen AG anunciou que investiria quase um bilhão de dólares em duas fábricas de motores e uma de carros (CHINA DELAY, 2004). Portanto, se a suposição de que maiores fluxos de investimento externo direto, que os países em desenvolvimento foram estimulados a esperar, em troca de se imporem e às suas populações exigências mais rigorosas de propriedade intelectual, é falsa ou exagerada, como então os países em desenvolvimento vão se transformar em desenvolvidos? Uma opção é ignorar a falácia proposta dessa suposição e abraçar totalmente a agenda da propriedade intelectual estabelecida com o TRIPS e acelerada com o bilateralismo pós-TRIPS. Parece que as últimas estatísticas da OMC sobre os registros de patentes confirmam 74 que isso é, de fato, o que fez o mundo em desenvolvimento. Certamente, um aumento de 27% nos registros de patentes internacionais, entre 2005 e 2006, dos sete principais (em matéria desse tipo de registro) países em desenvolvimento parece dar suporte à declaração da OMPI segundo a qual os regimes de propriedade intelectual pós-TRIPS estão de fato “transformando tanto a geografia do sistema de patentes como o futuro crescimento econômico global”. Assim, se uma medida de desenvolvimento e de maior crescimento econômico é o número de pedidos de patentes internacionais registrado, há então algum espaço para o otimismo, e as estatísticas da China e da Coréia são positivas em relação a isso. No entanto, o problema é que se esses dois países ficarem do lado de fora da equação, emerge uma imagem bem diferente. Em vez de um crescimento de 27%, há uma regressão de 6%. O crescimento econômico mundial dos países em desenvolvimento foi, portanto, afetado pelo Leste Asiático, que no caso da China pode ser atribuído em grau significativo aos níveis excepcionalmente altos do investimento externo direto que ela recebeu quando era a maior produtora mundial de mercadorias falsificadas e, no caso da Coréia, pode ser atribuído aos níveis de crescimento do investimento externo direto após 1997, à sua proximidade geográfica e econômica com a China, e à exportação de seus semicondutores para os Estados Unidos (MIN, 2006). O fato de nos últimos dez anos a economia chinesa ter crescido em níveis excepcionais assim como a demanda de semicondutores, por parte dos Estados Unidos, ter sido muito grande constitui uma explicação mais convincente para o crescimento econômico da Coréia e sua recuperação da crise econômica asiática de 1997 do que os regimes de propriedade intelectual pós-TRIPS. Para que, então, o resto do mundo em desenvolvimento, os outros 104 países dos 136 assinaram o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes? Esta é uma questão importante e não pode ser mascarada pelo exagero sobre a contribuição que as fortes leis de propriedade intelectual dão ao seu desenvolvimento econômico, como é freqüentemente proclamado com efusividade pelas agências do mundo desenvolvido, tais como a OMPI, o Escritório Europeu de Patentes (EPO24), o Escritório de Patentes e Marcas Registradas dos Estados Unidos (USPTO25) e o Escritório Japonês de Patentes (JPO26). Isso é verdade principalmente se aceitarmos que as opções de desenvolvimento econômico para o mundo em desenvolvimento foram restringidas, não fortalecidas, pelo TRIPS27 e pelo bilateralismo pós-TRIPS.28 O debate sobre as patentes relacionadas aos recursos biológicos e ao conhecimento tradicional: países desenvolvidos versus em desenvolvimento É interessante que, apesar das tentativas do Brasil, Paquistão, Peru, da Índia, Tailândia e Tanzânia de usarem o fórum multilateral da OMC para obterem reconhecimento internacional do papel que seus vastos recursos RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.71-82, jan.-jun., 2007 biológicos naturais e seu conhecimento tradicional desempenha, na pesquisa e desenvolvimento de novos tratamentos e medicamentos, não tenham tido o menor êxito. Seguindo seu caminho, a partir do exemplo dado tanto pelos Estados Unidos como pela União Européia desde antes de 1990, esses países em desenvolvimento tentaram, durante a Rodada de Doha da OMC, fazer uma emenda no TRIPS que proporcionaria que “quando o assunto envolver o pedido de uma patente derivada de, ou desenvolvida com recursos biológicos e/ou associada ao conhecimento tradicional, os membros devem requerer aos solicitantes que revelem o país que fornece os recursos e/ou o conhecimento tradicional associado ...”.29 A diferença entre as duas situações é que, ao contrário dos Estados Unidos e da União Européia, que tiveram o apoio do mundo desenvolvido em 1990, o Brasil, Paquistão, Peru, a Índia, Tailândia e Tanzânia não o tiveram em 2006. Em um caso clássico de uma lei para os desenvolvidos e outra para os países em desenvolvimento, os desenvolvidos tumultuaram o debate na OMC e tentaram quebrar a determinação dos países em desenvolvimento, usando o bilateralismo como alavanca.30 No entanto, os EU, a UE, o Japão e a maioria do mundo desenvolvido não expressou oposição direta à idéia, mas ao processo de chegar a um consenso. Sua posição foi firme; primeiro precisava haver princípios e objetivos estabelecidos que levassem a definições precisas de propriedade dos recursos biológicos e do conhecimento tradicional (NEW, 2006). Obviamente, há mais em relação ao argumento do que isso. A causa essencial do desentendimento entre o Norte e o Sul a respeito da questão dos recursos biológicos e do conhecimento tradicional é se o sistema de patentes é o veículo apropriado para levar à frente a discussão. Os países em desenvolvimento estão confiantes no sistema de patentes no qual baseiam sua reivindicação de proteção da propriedade intelectual para esses recursos. Por outro lado, os países desenvolvidos acreditam que “requerimentos para revelação de novas patentes não são uma solução apropriada para satisfazer as preocupações levantadas” (WTO, 2006) e que no que diz respeito à apropriação desses recursos “uma solução mais adequada ... seria fortalecer os regimes nacionais fora dos sistemas de patentes” (WTO, 2006). De acordo com o mundo desenvolvido, deixando o sistema de patentes intato, ao mesmo tempo o mundo em desenvolvimento deveria usar controles de leis ad hoc e de regulação fragmentados para fortalecer o acesso à exploração de seus vastos recursos biológicos. A idéia é que, através desses controles, o mundo em desenvolvimento ficará melhor capacitado para negociar os termos em que as indústrias farmacêuticas e biotecnológicas do mundo desenvolvido poderão explorar as florestas tropicais enquanto buscam identificar materiais biológicos úteis farmacologicamente, mas encontrados na natureza. A preocupação básica dos países desenvolvidos é o impacto que a modificação do sistema de patentes teria sobre suas empresas farmacêuticas e biotecnológicas, muitas das quais obtêm patentes nos compostos derivados de materiais biológicos encontrados na natureza. Em nenhum outro lugar essa preocupação é mais evidente do que nos Estados Unidos, que publicam patentes sobre materiais biológicos isolados que, por outro lado, são idênticos aos materiais biológicos encontrados na natureza. As questões sobre o que é a ‘invenção’ e o que levou à ‘invenção’, na jurisprudência convencional sobre patentes norte-americana, não se estendem àqueles que indicaram o caminho, e para os EU, não há nenhum bom motivo comercial para acreditar naquele caminho. Na verdade, a idéia de dividir uma parte dos bilhões de dólares equivalentes à renda gerada por medicamentos desenvolvidos a partir de recursos biológicos naturais com o país de origem daquele material, ou com os donos do conhecimento tradicional que levou à descoberta das substâncias farmacológicas, é um anátema. Os Estados Unidos sustentam veementemente que o trabalho que leva à ‘invenção’ com o objetivo de obter uma patente não pode incluir o simples fato de que os materiais biológicos dos quais o composto relevante foi isolado ou derivou teve origem em um país em desenvolvimento ou se tornou possível graças ao conhecimento tradicional de nativos do local (WTO, 2006). Compatível com a jurisprudência norte-americana sobre patentes, há uma diferença significativa entre o composto natural in situ e a ‘invenção’ de um medicamento ou tratamento derivado daquele composto, e os Estados Unidos explicaram que essa distinção “visualiza os esforços dispendiosos reais e freqüentes empreendidos para transformar um recurso biológico em um produto bem-sucedido comercialmente, e os riscos envolvidos na realização de uma pesquisa e desenvolvimento como essa” (WTO, 2006). A resolução do impasse relativo ao patenteamento Os países desenvolvidos e os em desenvolvimento estão diante de um impasse.31 A menos que este seja resolvido, a OMC, como fórum, terá decepcionado o mundo em desenvolvimento que, por um lado, aceitou as demandas dos países desenvolvidos de proteções mais severas à propriedade intelectual e, por outro, está buscando a cooperação dos países desenvolvidos com o objetivo de usar exatamente as mesmas proteções de propriedade intelectual para explorar legitimamente seus valiosos e vastos recursos biológicos e de conhecimento tradicional. O problema é que enquanto os dois lados estão certos, também estão errados! Do ponto de vista de se chegar a uma proposta alternativa que seja mutuamente aceitável, as hipóteses de que ambos façam algo para resolver o problema do sistema de patentes e de sua aceitabilidade, oferecendo proteções à propriedade intelectual dos materiais biológicos farmacologicamente úteis encontrados na natureza, precisam ser testadas. Na verdade, enquanto o mundo desenvolvido está certo de apontar que é necessária uma pesquisa significativa para transformar um material biológico encontrado na natureza em um tratamento ou medicamento eficazes, freqüentemente o ponto de partida dessa pesquisa não é algo ‘inventado’, mas sobretudo simplesmente um derivado isolado do material biológico encontrado na RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.71-82, jan.-jun., 2007 75 natureza. O mundo desenvolvido usa essa distinção como uma espada contra o mundo em desenvolvimento. O ponto de partida para esse exercício remonta a 1988, quando foram levantadas questões sobre a patenteabilidade de materiais biológicos isolados como produtos. Naquela época, o USPTO, EPO e JPO publicaram conjuntamente um comunicado que determinava em termos absolutos que materiais biológicos isolados não são excluídos da patenteabilidade porque não são produtos da natureza, mas ‘invenções’.32 Finalmente, em 2000, os Estados Unidos aprovaram a Diretriz de Biotecnologia para esclarecer essa questão de acordo com a lei de patentes européia33 e, obviamente, no início de 1980, foi atribuída ao caso de Diamond v Chakrabarty34 na Suprema Corte norte-americana a carta branca dada à indústria biotecnológica para patentear qualquer coisa feita pelo homem, inclusive organismos vivos geneticamente modificados. Entretanto, a proposta básica de que materiais biológicos são patenteáveis não tinha sido adequadamente respondida e há um preocupação muito real se são de fato ‘invenções’.35 Nesse sentido, é preciso observar que, no caso da Kirin-Amgen, Inc v Hoechst Marion Roussel Ltd, a Câmara dos Lordes inglesa sustentou que as demandas de patentes para o hormônio humano eritropoietina, mesmo numa forma isolada e produzida por meios técnicos, não eram válidas porque o hormônio, mesmo em uma forma isolada e purificada, não era novo. Mais recentemente, a Suprema Corte americana questionou exatamente como uma lei de patentes remota pode invadir legitimamente as áreas do que deveria ser de domínio público. No caso do Laboratory Corporation v Metabolite Laboratories,36 o magistrado Breyer explicou que o princípio da lei que exclui fenômenos naturais da patenteabilidade “encontra suas raízes tanto na lei inglesa como na americana” e que “a razão para a exclusão é que, às vezes, muitas proteções a patentes podem impedir mais do que ‘estimular o progresso da ciência’ ... [aspas dele] porque as patentes “podem desestimular a pesquisa por impedirem a livre troca de informações, por exemplo, obrigando os pesquisadores a evitar o uso de idéias possivelmente patenteadas, levando-os a conduzir pesquisas caras e que consomem muito tempo de patentes existentes ou pendentes, exigindo preparações para licenciamento complexas, e aumentando os custos para o uso de informações patenteadas, às vezes de forma proibitiva”. O xis do problema da lei de patentes é o simples fato de que muito do valor comercial da propriedade intelectual reside na produção dos materiais biológicos isolados, que simplesmente duplicam a função ou o desempenho daqueles encontrados na natureza. A identidade do in vivo é que é valiosa, mas é isso que afeta a proibição do patenteamento de “leis da natureza, fenômenos físicos, e idéias abstratas”37 que está implícita na lei de patentes. No entanto, esse aspecto não foi aceito pelas indústrias farmacêuticas e biotecnológicas, particularmente nos Estados Unidos, na União Européia e no Japão. Ou melhor, por interesse comercial e com o objetivo de manter suas patentes protegidas, elas cuidadosamente evitaram levan76 tar essa questão diante das cortes. Conseqüentemente, para elas, o Santo Graal está em garantir a proteção das patentes dos produtos isolados derivados dos materiais biológicos naturais. Obviamente, o mundo em desenvolvimento quer uma fatia da realização. O problema, como explicou Stephen Crespi, é que “a palavra ‘inventado’ soa artificial quando aplicada a algo já existente” (CRESPI, 1995). É claro que ele está certo porque é impossível inventar algo que já existe, mesmo que sua existência não seja conhecida. Para sugerir, como ele faz, que “a palavra ‘descoberta’ ... subestima o trabalho meticuloso que deve ser feito pelo cientista antes de conseguir ver a substância pura no tubo de ensaio” (CRESPI, 1995), e que, portanto, o ‘isolamento’ é um mecanismo legítimo para transformar um produto da natureza (isto é, uma ‘descoberta’) em um produto do homem (isto é, algo capaz de ser uma ‘invenção’), ignora o fato de que o limiar para a ‘invenção’, no sistema de patentes, não é o “trabalho meticuloso”, mas a própria ‘invenção’. Se não fosse assim, então literalmente qualquer coisa “feita pelo homem” poderia ser considerada uma ‘invenção’ e isso, como a Suprema Corte deixou totalmente claro no caso Diamond versus Chakrabarty, não é suficiente. Admitindo a intenção do Congresso, por muitos compartilhada, de aprovar o patenteamento de uma série de tecnologias, adotando as palavras “qualquer coisa feita pelo homem”, a Suprema Corte norte-americana não quis dizer que o trabalho trivial rotineiro ou mesmo o meticuloso daria ao homem o direito de reivindicar, como seu, um organismo vivo. Ou melhor, é necessário que o trabalho que leva à sua criação não só seja substancial38, mas que o próprio organismo revele características não encontradas na natureza.39 Como freqüentemente acontece, a maioria das patentes sobre materiais biológicos isolados demanda o direito de propriedade de materiais biológicos substancialmente idênticos aos encontrados na natureza, que são geneticamente e biologicamente semelhantes, além de terem a mesma eficácia e, queira ou não queira, o ‘trabalho meticuloso’ envolvido em sua identificação e isolamento não os torna aptos à proteção da patente. Infelizmente, isso não dá atenção ao fato de que a capacidade de produzir em massa materiais biológicos isolados é comercialmente, medicamente e cientificamente vantajosa, que o isolamento dos materiais biológicos contribuiu amplamente para a melhora da saúde humana no mundo inteiro e que esse trabalho é meticuloso, caro, arriscado e consome tempo. Nessas circunstâncias, não só é justo, mas também apropriado, que o trabalho que facilitou o isolamento de materiais biológicos, incluindo sua identificação, seja recompensado? Essa é a pergunta que Stephen Crespi, as indústrias farmacêuticas e biotecnológicas e o mundo desenvolvido fizeram inúmeras vezes. No entanto, seu problema tem sido obstinadamente contar com o sistema de patentes, mais do que defender um direito sui generis de propriedade intelectual. O que eles não aceitaram é que o sistema de patentes tem seus limites – que o mapa da estrada está ultrapassado. Infelizmente, ao se juntar à caravana do mundo desenvolvido, os países em RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.71-82, jan.-jun., 2007 desenvolvimento estão fazendo a mesma viagem usando o mesmo ultrapassado mapa da estrada, tendo de suportar durante todo o tempo as tentativas do mundo desenvolvido de se afastar da diligência do mundo em desenvolvimento. A ironia é que, ao mesmo tempo que eles duelam e discutem, estão na mesma estrada que está prestes a ser excluída do mapa. Se tanto o mundo desenvolvido quanto o em desenvolvimento acreditam que é conveniente estimular a pesquisa de novos tratamentos e medicamentos e que, muito provavelmente, estes serão extraídos dos vastos e variados recursos biológicos das florestas tropicais do mundo em desenvolvimento, não é a solução a ser encontrada na criação de um sistema de propriedade intelectual sui generis que torna possível atingir esse objetivo? Este artigo sustenta que sim e propõe a criação do Direito da Seqüência Genética (GSR) como um sistema sui generis de propriedade intelectual. O direito da seqüência genética: um sistema sui generis de propriedade intelectual De acordo com essa proposta, o GSR seria gerenciado usando o sistema administrativo existente utilizado pelo sistema de patentes ‘internacional’ de modo a minimizar os custos de instituí-lo e a facilitar sua adoção. Um GSR seria concedido para a primeira pessoa a registrar e revelar uma seqüência genética definindo um material biológico de qualquer origem e explicando sua função e utilidade. Um GSR deveria estar sujeito a um pedido escrito registrado no escritório de patentes do país em que for pedido, de maneira semelhante a um pedido de uma patente para o PCT. O GSR deveria se tornar parte de um banco de dados eletrônico internacional ao qual qualquer pessoa teria livre acesso. É importante que, se a seqüência genética tiver sido identificada por intermédio do fornecimento de conhecimento ou informações tradicionais, tribais ou locais, uma parte da remuneração devida para o detentor do GSR seria paga às pessoas que são donas daquele conhecimento ou informações. O direito delas seria proporcional à contribuição dada na identificação da seqüência genética e seria determinado pela autoridade central administrativa, que também fiscalizaria a distribuição da receita da remuneração do GSR para os respectivos países e populações locais. Isso certamente proporcionaria benefícios econômicos não só para os países em desenvolvimento, mas também para seus povos nativos. Uma vez registrado, o detentor do GSR teria o direito a uma remuneração pelo uso do GSR (remuneração do GSR). A remuneração do GSR variaria conforme a natureza do uso. Para instituições públicas, tais como universidades, o uso experimental não estaria sujeito a uma remuneração do GSR, mas para entidades comerciais, a remuneração do GSR seria cobrada proporcionalmente à natureza do uso. Por exemplo, poderia haver uma escala para entidades comerciais tendo como piso o uso experimental que avançaria até a comercialização completa. Imagina-se que haveria um grande número de variações entre esses extremos. A quantia da remuneração de GSR seria estabelecida por uma escala de domínio público, determinada por um órgão mundial centralizado responsável pela administração global do GSR, por exemplo, a OMPI. O referido órgão recolheria e distribuiria a receita da remuneração do GSR e poderia receber rendimentos pelo recolhimento do pedido e remunerações de administração anuais, assim como deter uma pequena porcentagem da receita da remuneração do GSR coletada. Concessões específicas poderiam também ser feitas aos detentores do GSR que solicitassem remunerações do GSR acima da escala de domínio público, se conseguissem estabelecer que, devido a fatores relacionados à natureza do GSR ou a acontecimentos imprevistos (por exemplo, guerra), o montante das remunerações do GSR seriam insuficientes para recuperar, de maneira satisfatória, o investimento na pesquisa e desenvolvimento que levaram ao GSR. Aos usuários do GSR seria exigido registrar seu uso com a autoridade administrativa local e esse uso seria registrado no banco de dados eletrônico do GSR. Isso proporcionaria um registro público do uso. A vida do GSR seria de dez anos a partir da data de registro. Violação dos GSRs poderia ser tratada pelos tribunais nacionais pertinentes. Conseqüentemente, o detentor teria o direito de tentar injunções, declarações ou indenizações. Disposições criminais também a considerariam um crime de violação dos direitos do detentor do GSR. Portanto, o GSR propiciaria um sistema pelo qual os países em desenvolvimento, que são a fonte dos materiais biológicos, assim como investidores em pesquisa genética poderiam ser remunerados sem que os detentores do GSR tenham o poder de controlar que uso pode ser feito daquele GSR. Assim, o GSR facilitaria a publicação de informações sobre seqüências genéticas e estimularia o uso de informações de seqüências genéticas, a produção de materiais biológicos correspondentes e seu uso no desenvolvimento de novos tratamentos e medicamentos. No entanto, removendo o elemento de controle absoluto, o GSR evitaria que os detentores de GSR controlassem outras pesquisas down-stream40 ou outros usos.41 Este é um aspecto importante do GSR para os países em desenvolvimento e seu acesso a medicamentos baratos, porque ao mesmo tempo que receberiam rendimentos pela exploração de seus recursos biológicos por parte do mundo desenvolvido, poderiam usar os próprios materiais biológicos para realizar pesquisa e desenvolvimento de modo a desenvolver e produzir seus próprios tratamentos e medicamentos. Assim, eles não precisariam depender das indústrias farmacêuticas e biotecnológicas do mundo desenvolvido, e poderiam desenvolver as suas próprias. Esta é uma vantagem significativa sobre o atual sistema de patentes que os impede dessa capacidade por conferir o controle absoluto do material biológico isolado aos proprietários de patentes que, em sua maioria, são do mundo desenvolvido. O detentor do GSR não precisaria satisfazer qualquer critério de ‘invenção’ ou de ‘passo inventivo’. A novidade da seqüência genética poderia ser estabelecida por uma RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.71-82, jan.-jun., 2007 77 pesquisa no banco de dados de GSRs ou em outros bancos de dados de seqüências genéticas. Poderia ser estabelecida também pela função e utilidade, de modo que mesmo se a seqüência genética já fosse conhecida ou fosse assunto de um GSR existente, se estabelecida uma diferente função e utilidade desconhecida anteriormente, poderia dar origem a um novo GSR. No entanto, uma ampla descrição do GSR relativa à função e utilidade não seria permitida, a menos que comprovada do início ao fim da descrição. Conseqüentemente, o GSR incorporaria uma descrição da função e utilidade da seqüência genética. O GSR abordaria também as diversas preocupações que rodeiam o uso experimental. Uma questão problemática com as isenções para uso experimental para violações de patentes no contexto da biotecnologia, é que foram concedidas muitas patentes sobre ‘instrumentos de pesquisa’ que são úteis na pesquisa de novos medicamentos. No contexto de cada um desses pedidos, os materiais biológicos patenteados foram usados por instituições de pesquisas, como universidades, e a questão levantada é se esse uso é ou deveria ser isentado da violação de patentes. Com o GSR, o uso por uma instituição de ensino ou pesquisa teria custo zero de acordo com as determinações da remuneração do GSR. No entanto, o uso de um GSR por uma entidade comercial, seja direta ou indiretamente por meio de uma universidade, envolveria uma remuneração do GSR proporcional a esse uso. A obrigação de pagar a remuneração do GSR permaneceria com a entidade comercial. Portanto, se qualquer entidade comercial fizesse um acordo com uma universidade para conduzir uma pesquisa em nome dela ou como parte de um empreendimento conjunto ou colaboração, a obrigação de pagar a remuneração do GSR continuaria. Isso acabaria com a discussão sobre quando, e se, universidades que realizam pesquisas financiadas comercialmente devem ficar isentas no caso de uso experimental.42 A proposta do GSR reconhece que o uso de seqüências genéticas ou de materiais biológicos (idênticos às seqüências e materiais encontrados na natureza), qualquer que seja o objetivo, não deve ser controlado nem ficar sob a propriedade e o controle de qualquer organização ou indivíduo. Sua proposta é estimular o uso por terceiros. Ela reconhece que independente de uma seqüência genética ser uma ‘invenção’ ou não, a elucidação de uma seqüência genética e a identificação de sua função é um trabalho importante que deve ser incentivado. Portanto, permite que universidades recebam financiamentos para seus projetos de pesquisa tornando-se detentoras do GSR sem qualquer obrigação de pagar remunerações do GSR. Propicia um sistema para registrar GSRs e ter acesso a que usos eles se aplicam. O fato de que as universidades estejam na área de negócios relativos à educação ou que, hoje, se vejam como parte de um mundo comercial mais amplo torna-se irrelevante. Ao contrário do sistema de patentes, que cria propriedade na invenção patenteada e dá ao proprietário da patente o direito de negociar aquela propriedade como ele ou ela considerar apropriado, o GSR não o faz. Ou melhor, o detentor do GSR é reconhecido como o primeiro a auto78 rizar a publicação sobre novos materiais biológicos e sua função e, de acordo com o quid pro quo por sua divulgação, tem o direito de receber uma receita da remuneração do GSR. Conseqüentemente, quanto mais uso tiver aquele GSR, maior a receita potencial da remuneração do GSR; ao passo que, com o sistema de patentes, o preço da invenção patenteada pode estar sujeito à manipulação por meio da capacidade do patenteador de controlar o uso por terceiros. É essa capacidade de controlar e restringir o uso que justifica a isenção no caso de uso experimental numa tentativa de equilibrar as necessidades do patenteador e as da sociedade. No entanto, com o GSR, nenhum equilíbrio adicional ou sintonia fina são requeridos, porque todo o sistema se destina a estimular igualmente o uso comercial e não-comercial. Conclusão O GATT, produto das negociações de Bretton Woods, em 1944, foi o ápice do trabalho de Cordell Hull.43 Hull acreditava que “a liberdade no comércio está intimamente ligada à paz” (HULL, 1981), e desde que ele escreveu essas palavras, em 1948, contribuiu para grande parte da retórica sobre o livre comércio que se espalhou por intermédio do USTR. No entanto, para o mundo em desenvolvimento que, desde a Segunda Guerra Mundial, busca independência, desenvolvimento e uma parte legítima da riqueza do mundo desenvolvido para si e suas populações, certamente elas devem soar vazias. Hull responsabilizou o bilateralismo e as “altas tarifas, barreira comerciais e concorrência econômica injusta” (HULL, 1981), por ele produzidas, por muitos dos problemas econômicos mundiais. Este texto argumentou que a OMC, filha do GATT + TRIPS, fez pouco para preencher a lacuna entre o mundo desenvolvido e o em desenvolvimento mas, em alguma medida, propiciou uma distorção menor dos objetivos do GATT ao incorporar a propriedade intelectual à equação do livre comércio mundial. Com isso, e com o apoio do mundo em desenvolvimento, o mundo desenvolvido abandonou o fórum multilateral em favor do bilateralismo. Ao fazer isso, foi motivado por suas necessidades a proteger a propriedade intelectual, mais do que o TRIPS já havia feito. Atualmente, os países em desenvolvimento buscam criar suas próprias formas de propriedade intelectual, baseadas no valor de seus próprios recursos biológicos e no conhecimento tradicional acumulado de suas populações. Não só é justo que o mundo desenvolvido os ajude nessa ambição, mas essencial que faça com que isso aconteça de modo que “os padrões de vida de todos os países possam crescer” (HULL, 1981). A proposta do GSR é simplesmente uma tentativa de resolver uma das questões que criou um impasse para os países desenvolvidos e os em desenvolvimento durante a Rodada de Doha da OMC e espera-se que ele possa levar a alguma discussão frutífera. Notas 1. Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights. (N.T.) RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.71-82, jan.-jun., 2007 2. General Agreement on Tariffs and Trade [Acordo Geral de Tarifas e Comércio]. (N.T.) 3. Lista de assuntos para negociações no texto da reunião ministerial do Gatt datado de 20 de setembro de 1986. 4. A questão da falsificação de mercadorias com marca registrada surgiu primeiro durante a Rodada Tóquio do GATT entre 1973 e 1979. Isso levou à circulação de um esboço para Agreement on Measures to Discourage the Importation of Counterfeit Goods [Acordo sobre medidas para desestimular a importação de mercadorias falsificadas] entre 1979 e 1984. Por sua vez, esse esboço levou à formação de The Group of Experts on Trade in Counterfeit Goods [Grupo de especialistas em comércio de mercadorias falsificadas] que se reuniu em setembro e outubro de 1985. Na verdade, mesmo no início da Rodada Uruguai, em setembro de 1986, o foco permaneceu nas mercadorias falsificadas como sugere o nome do grupo de negociações presidido pelo embaixador da Suécia, Lars Anell. Ele foi denominado Negotiating Group on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, Including Trade in Counterfeit Goods [Grupo de negociações sobre aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio, incluindo o comércio de mercadorias falsificadas]. 5. O esboço dos Estados Unidos do Acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio foi proposto em maio de 1990. 6 Gervais explica que “esta estrutura ‘comum’ foi finalmente adotada e, submetida a poucas mudanças, serviu como base para o Tratado que emergiu”. Ibid. 7. Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Coréia, Dinamarca, Eslováquia, Espanha, Estados Unidos, França, Grécia, Hong Kong, Hungria, Islândia, Irlanda, Itália, Japão, Luxemburgo, Malásia, Malta, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Portugal, Reino Unido, República Checa, República da Macedônia, Romênia, Singapura e Suécia. A Comunidade Européia é um membro separado. 8. África do Sul, Argentina, Bahrein, Bangladesh, Barbados, Belize, Brasil, Brunei, Chile, Costa Rica, Costa do Marfim, Dominica, Filipinas, Gabão, Gana, Grenada, Guiana, Honduras, Índia, Indonésia, Kuwait, Macau, Maurício, México, Marrocos, Mianmá, Nigéria, Paquistão, Paraguai, Peru, Quênia, Santa Lúcia, São Vincente & Granadinas, Senegal, Sri Lanka, Suriname, Suazilândia, Tanzânia, Tailândia, Uganda, Uruguai, Venezuela e Zâmbia. 9 De 77 membros em 1º de janeiro de 1995 para 150 membros em 11 de janeiro de 2007. 10 WIPO, na sigla em inglês para World Intellectual Property Organization. (N.T.) 11 Patent Cooperation Treaty. Cabe observar que o Instituto Nacional da Propriedade Intelectual, no Brasil, traduz o nome do tratado, mas conserva sua sigla em inglês. Quando o mesmo acontecer com outros tratados, associações, acordos etc., nesta ou em outra instituição governamental brasileira, a sigla aparecerá entre parênteses sem qualquer observação (N.T.) 12. Ibid. Esses países incluem a Coréia (5.935 pedidos ao PCT); China (3.910); Índia (627); Singapura (402), África do Sul (349); Brasil (265) e México (150). 13. “Cada acordo bilateral aproximava muito mais aquele país do TRIPS, de modo que aceitá-lo não era nada extraordinário”. Um negociador comercial norteamericano citado por P. Drahos, op. cit., nota de rodapé 11, p. 105. 14. “Durante 2006, mais de 100 países em desenvolvimento se engajaram em mais de 67 negociações comerciais bilaterais ou regionais, e assinaram mais de 60 tratados bilaterais de investimentos. Mais de 250 acordos comerciais regionais e bilaterais agora regulam mais de 30% do comércio mundial, enquanto uma média de dois tratados bilaterais de investimento por ano foram realizados nos últimos dez anos.” Oxfam Briefing Paper, Signing Away The Future, março de 2007, p. 5. 15. Free Trade Agreements. (N.T.) 16. Association of the SouthEast Asian Nations. (N.T.) 17. “Isto se dá, em certa medida, porque muitas atividades de pesquisa e desenvolvimento em que as empresas indianas participam são pequenas modificações de produtos farmacêuticos desenvolvidos no exterior (principalmente ocidentais), e porque muito pouco esforço tem sido feito para o desenvolvimento de qualquer novo medicamento. No entanto, provavelmente essa situação vai mudar logo, com o surgimento de grandes empresas de pesquisa e desenvolvimento indianas, tais como os laboratórios Ranbaxy e o Dr. Reddy”. Shamnad Basheer, Limiting The Patentability of Pharmaceuticals Inventions and Micro-Organisms: a TRIPS Compatibility Review, novembro de 2005. 18. “O TRIPS aumenta o preço do conhecimento patenteável para os consumidores e, assim, aumenta o fluxo de renda do Sul para o Norte. De acordo com estimativas do Banco Mundial, as empresas norte-americanas devem embolsar um adicional líquido de 19 bilhões por ano em royalties a partir da plena aplicação do TRIPS. Elas possuem muitas patentes em muitos países solicitados a estreitar a proteção à propriedade intelectual, enquanto o TRIPS não requer estreitamento da lei de patentes norte-americana.” Robert H. Wade. What Strategies Are Viable For Developing Countries Today? The WTO and the Shrinking of ‘Development Space’, Review of International Political Economy, 10:4, novembro de 2003: p. 621 – 644, p. 624. 19. Ibid., p. 622. Para uma história excelente e detalhada de como os Estados Unidos estabeleceram suas indústrias químicas e farmacêuticas. Em 1919, confiscando 5 mil patentes da Alemanha, ver Kathryn Steen, Patents, Patriotism, and “Skilled in the Art”, The History of Science Society, 2001, 92:91-121. 20. Carsten Fink and Keith Maskus (Ed). Intellectual Pro- RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.71-82, jan.-jun., 2007 79 perty And Development, World Bank and Oxford University Press, 2005, particularmente Keith Maskus, Capítulo 3, p. 41–73, na p. 44 Quadro 3.1, e na p. 46 Quadro 3.2. 21. “Em termos econômicos, de acordo com o sistema atual, os incentivos para atingir uma dinâmica eficiente e uma provisão fixa de medicamentos são extremamente inadequados diante da pobreza maciça. Dois programas foram desenvolvidos nos últimos anos para tentar resolver o problema; esses programas estão consideravelmente em conflito um com o outro. Por um lado, o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPS) dentro da Organização Mundial do Comércio (OMC) requer que os países membros concedam e implementem patentes para novos produtos farmacêuticos (Maskus, 2000a; Gorlin 1999). Mais precisamente, produtores de novos medicamentos desfrutaram dos direitos exclusivos de comercialização (EMRs) a todos os membros da OMC desde janeiro de 1995. Embora, até 2005, não se requeressem patentes dos produtos nos menores países desenvolvidos, os EMRs oferecem proteção similar. Vários estudos econômicos sugerem que esse novo regime poderia aumentar os preços dos novos medicamentos de maneira notável nos países em desenvolvimento (Fink, 2000; Lanjouw, 1998; Subramanian, 1995; Watal, 1999); no entanto, continua a existir uma incerteza substancial sobre essa questão. Assim, há alguma possibilidade de que patentes aumentem os incentivos para a pesquisa e o desenvolvimento relacionados a essas doenças negligenciadas (Lanjouw, 1998). Entretanto, essa mudança política nada faz diretamente para aumentar os rendimentos de pacientes que, se nada mudar, devem passar a ter menos condições de comprar novos medicamentos.” Ibid., Mattias Ganslandt, Keith Maskus and Eina Wong, capítulo 9, p. 207-223 na p. 208. 22. Asia-Pacific Economic Cooperation [Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico]. (N.T.) 23. Out-of-cycle review. (N.T.) 24. European Patent Office. (N.T.) 25. United States Patent and Trademark Office. (N.T.) 26. Japanese Patent Office. (N.T.) 27. Por exemplo, o art. 30 do TRIPS restringe a possibilidade de membros da OMC implementarem políticas que restrinjam os “direitos exclusivos conferidos por uma patente”. É bem documentado que, nas legislações de patentes que vigoraram em muitos países da Europa até cerca de 1980, patentes de produtos farmacêuticos e químicos não eram permitidas (a Itália é um exemplo). Além disso, entre 1907 e 1977, a legislação de patentes do Reino Unido dispôs especificamente contra uma patente de medicamentos que ali não deveria funcionar. Disposições semelhantes existiram nas leis de patentes da maioria dos países europeus, inclusive França e Alemanha. Essas restrições à propriedade intelectual estavam de acordo com políticas econômicas específicas destinadas a favorecer o desenvolvimento econômico em diversos países. 80 28. “O pior acordo priva os países em desenvolvimento da capacidade de governar efetivamente suas economias e proteger suas populações mais pobres. Além das disposições negociadas num nível multilateral, ele impõe regras devastadoras, difíceis de reverter, que sistematicamente desmantelam políticas nacionais destinadas a promover o desenvolvimento.” Oxfam Briefing Paper, Signing Away The Future, março de 2007, p. 2. 29. Communication from Brazil, India, Pakistan, Peru, Thailand and Tanzania to the General Council, Trade Negotiations Committee, WTO, WT/GC/W/564, 31 de maio de 2006, p. 2. Artigo sugerido 29 bis, intitulado “Disclosure of Origin of Biological Resources and/or Associated Traditional Knowledge”. 30. Em uma carta lateral assinada em abril de 2006 para o Acordo de Livre Comércio entre Estados Unidos e Peru foi combinado que “As partes reconhecem a importância do conhecimento tradicional e da biodiversidade, assim como a possível contribuição do conhecimento tradicional e da biodiversidade para o desenvolvimento cultural, econômico e social”. 31. No dia 4 de abril de 1007, o Comissário de Comércio dos Estados Unidos, Peter Mandelson, na véspera das discussões ministeriais a serem realizadas em Nova Délhi, disse que “essas conversas são oportunas e importantes [e que] se não tivermos êxito, as perspectivas de Doha para este ano serão perdidas”. 32. “Produtos naturais purificados não são considerados em qualquer dessas três leis como produtos da natureza ou dscobertas porque de fato eles não existem na natureza numa forma isolada. Ou melhor, eles são considerados, para os propósitos de patentes, como substências biologicamente ativas ou compostos químicos e aceitáveis para patenteamento na mesma base que outros compostos químicos.” A fonte desse texto encontra-se na nota de rodapé 9, Nuffield Council of Bioethics Discussion Paper, 2002, The Ethics of Patenting DNA, 26, para 3.14. 33. Artigo 3.2. “O material biológico que é isolado de seu ambiente natural ou produzido por meio de um processo técnico pode constituir uma invenção patenteável, mesmo que isso ocorresse previamente na natureza.” 34. Diamond, the Commissioner of Patents v Chakrabarty (1980) 447 U.S. 303 (Suprema Corte norte-americana). 35. Para uma explicação detalhada do argumento na jurisprudência, ver Luigi Palombi. The Patenting of Biological Materials In The Context of TRIPS. PhD Thesis, University of New South Wales, Sydney, Australia, setembro de 2004.<http://cgkd.anu.edu.au/menus/PDFs/ PhDThesisFinal.pdf.> 36. Laboratory Corporation v Metabolite Laboratories (2006) 126 S. Ct. 2921 at 2922-3. 37. Op. cit. 55, p. 309. 38. Neste caso, o trabalho foi a manipulação da bactéria natural e não simplesmente seu isolamento. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.71-82, jan.-jun., 2007 39. “... o patenteador produziu uma nova bactéria com características consideravelmente diferentes de qualquer uma encontrada na natureza e que tem o potencial para uma utilidade significativa.” Diamond, The Commissioner of Patents v Chakrabarty (1980) 447 U.S. 303 (Suprema Corte norte-americana) per Justice Berger, p. 305. 40. No contexto da genética, a palavra down-stream está relacionada ao processo de formação do ácido rinobucléico (ARN) a partir do ácido desoxirribonucléico (ADN ou, em inglês, DNA), à especificação da seqüência de aminoácidos pelo mensageiro ARN para a síntese de uma proteína. No que se refere à produção de medicamentos, a pesquisa down-stream tem sido amplamente utilizada na síntese ou elaboração de substâncias complexas como hormônios (por exemplo, a insulina), proteínas, vitaminas, antibióticos, vacinas, a partir da chamada “tecnologia do DNA recombinante”. A pesquisa down-stream é, portanto, uma fase em que a pesquisa encontra-se mais consolidada, seu campo de aplicação é mais definido, seus resultados podem ser utilizados para o desenvolvimento de novos medicamentos ou até mesmo em uma série de tratamentos dado seu alto potencial de industrialização. Assim, é possível compreender porque, no âmbito da propriedade intelectual, o autor propõe que os detentores dos resultados desse tipo de pesquisa não detenham o controle absoluto de sua patente de modo a permitir novas descobertas de utilidade pública. (N.T.) 41. Como ficou amplamente demonstrado pela experiência dos sistemas de saúde em todo o mundo, no início da década de 1990, com os diagnósticos do HCV [vírus da hepatite C], a recusa da Chiron de conceder a licença, desafiando simplesmente diagnósticos complementares do HCV, teve sérias conseqüências. Este nível de controle, ao mesmo tempo que é apropriado a tipos de invenções tradicionais mecânicas, de engenharia, elétricas ou até mesmo, em alguns casos, farmacêuticas, não é apropriado quando a área de demanda abrange exatamente o ingrediente do qual a saúde humana estava dependente. Ao mesmo tempo que não se pode subestimar o significativo benefício para a humanidade do trabalho científico que leva à clonagem e à determinação da seqüência do HCV, é preciso também reconhecer que uma grande parte do financiamento para aquele trabalho vem de recursos públicos. É preciso reconhecer também que, uma vez que as informações proporcionadas pela descoberta do HCV estavam tão fundamentalmente ligadas à saúde humana, foi obsceno tratá-las como qualquer outra mercadoria. 42. Ver a decisão de Madey v Duke University (2002) Case 01-1567 (CAFC) pronunciada em 3 de outubro de 2002. 43. Cordell Hull foi secretário do Estado dos Estados Unidos entre 1933 e 1944. 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Atuou como advogado na Austrália, especializando-se em direito de propriedade intelectual, com foco em leis de patente e biotecnologia. Foi parceiro da empresa de advocacia de patentes, Davies Collison Caves, e das empresas Michell Sillar, Palombi Hazan e Banki Palombi Haddock & Fiora. Além disso, liderou a equipe do processo de patente da Murex contra Chiron sobre a patente do vírus hepatitis C, quebrando o domínio que a Chiron tinha sobre o genoma HCV em agosto de 1996. Em 1997, deixou de advogar na Austrália para se tornar consultor e conselheiro internacional de muitas empresas particularmente a respeito de patentes de biotecnologia e gene. Em 2004 entregou sua tese de doutorado que foi premiada pela University of New South Wales no ano seguinte. Em 2005, foi consultor da Minter Ellison, a maior firma de advocacia em patentes de biotecnologia da Austrália. Ele liderou e aconselhou equipes em litígios envolvendo patentes conduzidos em Cortes em várias jurisdições e perante o European Patent Office. Atualmente é conselheiro de várias organizações ao redor do mundo sobre patentes de gene e biotecnologia. Desde 2006, está à frente do Projeto de Direito de Sequência Genética (Genetic Sequence Right Project) na Australian National University. 82 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.71-82, jan.-jun., 2007 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Artigos originais Propriedade intelectual e saúde pública: a cópia de medicamentos contra HIV/Aids realizada por laboratórios farmacêuticos brasileiros públicos e privados Maurice Cassier Marilena Correa Centre National de la Recherche Scientifique, Paris, França [email protected] Universidade Estadual do Rio de Janeiro - Uerj, Rio de Janeiro, Brasil [email protected] Resumo A experiência dos laboratórios brasileiros públicos e privados em copiar ARVs (anti-retrovirais), desde 1993, constitui um processo de aprendizado tecnológico que, em alguns casos, produziu inovações. Reproduzir medicamentos e sintetizar seus princípios ativos envolve a combinação de informações disponíveis em patentes e a redescoberta parcial de um certo know-how por meio de manipulações em laboratórios. Os químicos devem reconstituir os diversos “pulos-do-gato” existentes nas patentes e, ao fazê-lo, freqüentemente melhoram processos e fórmulas publicados. Os laboratórios de genéricos também estão aptos a utilizar essa base de conhecimento para criar novas fórmulas, combinações de moléculas existentes ou para descobrir novas moléculas. Desde 2000, os cinco laboratórios estudados registraram dez patentes de ARVs. Aos poucos, descobrimos esse processo de aprendizado tecnológico, por meio de entrevistas realizadas com químicos em laboratórios de genéricos, usando métodos da sociologia da ciência. Palavras-chave Patentes, engenharia reversa, aprendizado tecnológico, inovações farmacêuticas Introdução Em 2 de junho de 2005, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados brasileira aprovou, por unanimidade, um projeto de lei para colocar os medicamentos contra HIV/Aids fora da esfera das matérias patenteáveis1. Membro do parlamento, Roberto Gouveia, justificou essa alteração na lei de propriedade intelectual brasileira de 1996 nos seguintes termos: “As patentes que estiverem em conflito com os interesses da saúde pública devem ser suspensas.” Três semanas depois, no dia 23 de junho, o ministro da Saúde anunciou uma licença compulsória autorizando o laboratório estatal Far-Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, a iniciar a produção de uma combinação de duas moléculas anti-retrovirais sem autorização do dono da patente. Essas medidas de exclusão da patenteabilidade ou a suspensão de patentes concernentes especificamente aos medicamentos contra a RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.83-91, jan.-jun., 2007 83 Aids foram conseqüência do fracasso nas negociações do Ministério da Saúde com três laboratórios farmacêuticos internacionais (Abbott, Merck e Gilead). O Ministério tinha esperança de obter reduções dos preços de quatro anti-retrovirais patenteados, responsáveis por 4/5 dos gastos do programa brasileiro contra a Aids. Os laboratórios internacionais recusaram-se também a conceder licenças voluntárias para os laboratórios brasileiros que as tinham solicitado, especialmente o laboratório do governo federal Far-Manguinhos. Considerou-se que a concessão de uma licença compulsória e a conseqüente produção local desses medicamentos pelos laboratórios brasileiros tinha uma dupla vantagem – referente à saúde pública e à indústria - para o Brasil. Em relação à saúde pública, a expectativa era de que versões de genéricos custassem a metade do preço dos medicamentos de propriedade patenteada. Em relação à indústria, os laboratórios brasileiros públicos e privados poderiam, assim, usar sua capacidade de produção e pesquisa, desenvolvida desde meados da década de 1990, no campo dos ARVs para lutar contra a Aids. No entanto, poucas semanas depois, o Ministério da Saúde brasileiro desistiu de usar a licença compulsória e anunciou que chegara a um acordo satisfatório com o Abbott sobre o preço do medicamento em questão, o Kaletra. Líderes do programa contra a Aids, assim como ONGs, condenaram essa decisão, pois acreditavam que comprometeria a continuidade da produção local de genéricos e a viabilidade do programa de livre distribuição de triterapias no Brasil2. Esses conflitos sobre a propriedade intelectual dos anti-retrovirais são recorrentes no Brasil desde 1996, quando o país iniciou um programa de distribuição universal de medicamentos contra HIV/Aids e de produção local de genéricos3. Neste texto, consideramos as condições de surgimento dessa indústria de genéricos na intersecção entre a política de saúde pública, os direitos de propriedade intelectual e a política industrial nas áreas química e farmacêutica. A primeira seção mostra como a produção local de genéricos corresponde à política de acesso universal aos medicamentos contra HIV/Aids implementada pelo Ministério da Saúde desde 1996. A segunda seção apresenta a situação muito particular relativa à propriedade intelectual no Brasil, que prevaleceu até 1996, ou seja, a situação não-patenteável de medicamentos, que permitia a cópia lícita de ARVs. Na terceira seção, examinamos a prática de copiar medicamentos nos laboratórios farmacêuticos brasileiros e o aprendizado tecnológico que a acompanha. A quarta seção estuda os processos de inovação possíveis de serem gerados pelo ato de copiar: seja o maior desenvolvimento dos processos de produção farmacêutica ou das fórmulas dos medicamentos copiados, seja o início de novos projetos de pesquisa sobre novas gerações de ARVs que se beneficiam da base de conhecimentos adquiridos durante a fase de copiar. A quinta seção considera a situação criada pela nova lei de patentes de 1996 que, por um lado, proíbe a cópia de novas gerações de anti-retrovirais e, por outro, possibilita que laboratórios brasileiros protejam suas descobertas de novas moléculas e de novas fórmulas de medicamentos. 84 Finalmente, a conclusão retoma a situação excepcional relativa aos medicamentos contra HIV/Aids no Brasil, que, originalmente, podiam ser livremente copiados e que, a partir de 1997, passaram então a ser patenteáveis. Atualmente, esses medicamentos são objeto de controvérsia sobre a concessão de licenças compulsórias e sobre sua possível nova exclusão da lei de patentes4. Demonstramos, também, que as patentes desempenham um duplo papel nessa história: o de instrumentos de reserva de invenções e o de veículos de transferência de tecnologia. Além disso, essa experiência fornece material interessante para reflexão sobre o papel das assimetrias da propriedade intelectual, justificadas tanto pelas políticas de saúde pública como pelo desenvolvimento industrial5. Política de saúde pública e produção local de medicamentos genéricos Na experiência brasileira de combate à Aids, com sua abordagem baseada no acesso universal ao tratamento e na cópia de anti-retrovirais realizada por laboratórios famacêuticos brasileiros, a característica mais singular é o emaranhado entre as políticas de saúde pública e as de medicamentos industriais. Esta mistura distingue o Brasil da Índia, onde a indústria de genéricos desenvolveu-se na estrutura estrita dos incentivos de mercado6. Em novembro de 1996, o presidente do Brasil sancionou uma lei instituindo “a livre distribuição de medicamentos para os portadores de HIV/Aids”7. O decreto presidencial, que atribuiu um status excepcional à epidemia de Aids, colocou os medicamentos para combatê-la fora da esfera do mercado, uma vez que foram comprados e distribuídos livremente pelo Ministério da Saúde por intermédio do sistema de saúde pública. O decreto estipulou também a criação de uma comissão para definir a lista de medicamentos que podiam ser classificados como triterapias. Essa lista deveria ser revista anualmente de modo a “considerar o avanço do conhecimento científico e os novos medicamentos comercializados”. O fato mais original é que o governo brasileiro não ficou apenas nesse papel de distribuir mercadorias consideradas essenciais. Tornou-se também um “empreendedor da saúde” através do trabalho dos laboratórios farmacêuticos estatais, que deram início à produção local de anti-retrovirais. Esses laboratórios públicos constituem uma instituição altamente original no Brasil. São de propriedade do Ministério da Saúde, como é o caso do Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, conhecido como Far-Manguinhos, ou estaduais8. Em 1996, os diretores dos laboratórios estatais e o Ministério da Saúde fizeram um acordo para iniciar um programa para copiar ARVs, precisamente com o objetivo de reduzir o preço desses medicamentos, que absorviam uma enorme proporção do orçamento do Ministério. O desenvolvimento da produção de genéricos ou similares no Brasil objetivava reduzir o número de moléculas patenteadas compradas de laboratórios internacionais líderes no mercado e forçar a queda de preços9. O programa contra a Aids teve o efeito de revitalizar a RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.83-91, jan.-jun., 2007 produção em laboratórios farmacêuticos públicos. O laboratório estatal Far-Manguinhos, amplamente inativo no início da década de 1990, multiplicou sua produção por sete e sua renda por 20 no período de 1995 a 2002. Desenvolveu uma linha de produção especial para os ARVs, certificada pela agência brasileira de medicamentos, Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), em setembro de 2002. O Far-Manguinhos reinvestiu seus lucros em pesquisa, contratou químicos recrutados na indústria e na academia, e comprou equipamentos de pesquisa e outros. Hoje, esse laboratório é uma plataforma técnica que serve como referência para a indústria farmacêutica brasileira. A partir de 1993, vários laboratórios particulares também começaram a copiar e produzir ARVs para lutar contra o HIV/Aids. Naquele ano, um pequeno laboratório químico-farmacêutico, pequena empresa recém-criada por químicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, começou a copiar o AZT. Dois outros laboratórios, ligados à Universidade de Campinas e à Universidade de São Paulo, iniciaram seu programa para copiar o AZT e inibidores de protéases em 1994 e 1996. O último laboratório particular a entrar no campo dos ARVs o fez, em 2000, a pedido do Far-Manguinhos, que precisava de matéria-prima para sua produção de ARVs. Essa empresa de genéricos, localizada perto do Rio de Janeiro, criada na década de 1980 por químicos do laboratório federal, trabalha em intensa cooperação com o Far-Manguinhos. As duas organizações, uma pública e a outra privada, são ligadas por um contrato de cooperação tecnológica. Para os laboratórios do setor privado que trabalham nessa área, as compras do Ministério da Saúde significaram uma garantia de vendas, pelo menos até o sistema de compras públicas, baseado no menor preço, beneficiar laboratórios indianos e chineses em detrimento dos produtores nacionais. Às vezes, o Ministério da Saúde solicita diretamente aos laboratórios particulares que desenvolvam tecnologias de síntese de ARVs, principalmente quando o governo brasileiro quer pressionar os laboratórios internacionais a reduzirem seus preços. O governo pode depender também dos produtores particulares de genéricos para repor os produtos que um laboratório internacional retira do Brasil: “O Ganciclovir, quando a Roche parou de fornecer para o governo brasileiro, o governo nos perguntou se seríamos capazes de desenvolver esse medicamento no Brasil. Respondemos: Desenvolveremos a síntese, e ajudamos o governo a desenvolver a metodologia de liofilização.” (Diretor do Laboratório) Os laboratórios farmacêuticos do governo têm uma capacidade industrial limitada na produção de medicamentos. Eles são capazes de levar a cabo somente a fase de produção final, ou seja, a fórmula e a produção do medicamento, mas não a síntese de seus princípios ativos. Estes eles compram dos laboratórios do setor privado brasileiros, indianos e chineses. Assim, há uma complementariedade entre laboratórios públicos, especializados em fórmulas, e os laboratórios comerciais, que fornecem a matéria-prima. No caso de algumas moléculas antiretrovirais, laboratórios públicos e privados cooperam, trocam conhecimentos e transferência de tecnologia10. Em alguns casos, laboratórios dos dois setores competem quando formulam os mesmos medicamentos. O status não-patenteável de medicamentos no Brasil de 1945 a 1996: um regime de cópia lícita O engajamento de laboratórios brasileiros públicos e privados na cópia de medicamentos contra HIV/Aids foi possível devido ao status particular dos medicamentos como “bens públicos” no Brasil de 1945 a 1996. Em 1945, o presidente Getúlio Vargas decretou que os produtos farmacêuticos não seriam patenteáveis com o duplo objetivo de desenvolvimento da saúde pública e da indústria. A idéia era estimular a produção de medicamentos para as doenças mais sérias no país e incentivar a criação de uma indústria farmacêutica local para fabricar produtos que substituíssem os importados. Essa exclusão foi reforçada em 1971 durante o governo militar. A nova lei de propriedade industrial excluiu do patenteamento tanto os processos de produção como os produtos farmacêuticos, com o objetivo de promover a transferência de tecnologia e fortalecer um setor essencial para a população local11. A cópia de medicamentos patenteados no exterior era, portanto, perfeitamente legal. A política de copiar ARVs para HIV/Aids estava ligada aos experimentos em engenharia reversa nos anos 1970 e 1980. Durante a década de 1980, o Ministério da Saúde criou um sistema de incentivos tributários e vantagens financeiras para estimular a cópia de medicamentos e a produção de matérias-primas pela indústria farmacêutica e química. Os laboratórios trabalhavam correntemente no campo da Aids subsidiados por essa ajuda. O diretor técnico de um laboratório, criado em 1989, que produzia genéricos, explicou: “Nossos primeiros projetos da empresa foram financiados pelos projetos do Ministério da Saúde.” Essa situação legal favorável à cópia de invenções do exterior e a criação de uma indústria farmacêutica para substituir os medicamentos importados durou até 1996. Paradoxalmente, o Brasil alterou o status legal dos medicamentos em fevereiro de 1996, exatamente poucos meses antes da lei de livre acesso universal aos medicamentos contra HIV/Aids ser sancionada. Conseqüentemente, a produção legal de anti-retrovirais diz respeito somente à primeira geração de medicamentos, patenteados antes de 1996. A segunda geração de ARVs, protegidos por patentes, pode ser copiada somente por meio de uma licença compulsória. Cópias e aprendizado tecnológico A prática de copiar medicamentos, realizada por laboratórios brasileiros e indianos produtores de genéricos12, foi assunto de intensa controvérsia internacional. O Brasil foi acusado de “pirataria”, mesmo quando copiar era legal naquele país, uma vez que reproduzia medicamentos sem pagar os custos de R&D (sigla de Research and Development, ou seja, Pesquisa e Desenvolvimento) RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.83-91, jan.-jun., 2007 85 envolvidos em sua criação. A engenharia reversa também foi criticada como uma atividade redundante e fútil por reproduzir o que já foi inventado em outro lugar. Em novembro de 2002, a empresa GlaxoSmithKline resumiu copiar como um desperdício de recursos: “Os engenheiros que continuam na indústria farmacêutica na Índia gastaram seu tempo, pelo menos até recentemente, com a engenharia reversa para escapar das patentes de ‘processos’ existentes (isto é, reiventando a roda) mais do que com a inovação ... A história da Índia demonstra como um sistema de IP fraco pode, na melhor das hipóteses, levar à dissipação de esforço em R&D na reengenharia...”.13 Nossa pesquisa com químicos diretamente envolvidos nos projetos de cópia de ARVs em laboratórios públicos e privados brasileiros e com pessoas responsáveis pela propriedade intelectual e a transferência de tecnologia14 mostra, ao contrário, um processo de aprendizado tecnológico ou o fenômeno learning-by-doing (aprenderfazendo) que resulta de copiar. A prática de copiar ARVs envolve a criação e a aquisição de conhecimento por químicos brasileiros e resulta no desenvolvimento e aperfeiçoamento da capacidade de R&D desses laboratórios. Em determinados casos, essa nova base de conhecimento é usada para iniciar projetos de pesquisa sobre novas gerações de ARVs. Esse resultado inestimável para as políticas industriais farmacêuticas foi obtido por meio da metodologia da sociologia da ciência e da inovação que reconstrói as práticas de produção e circulação de conhecimento em laboratórios15. Consideremos o trabalho de químicos que começam a copiar um ARV. O processo se inicia com uma pesquisa bibliográfica, primeiro sobre patentes internacionais, e, em seguida, sobre artigos científicos ou artigos publicados em jornais profissionais. Nesse período, os pesquisadores exploram o valor de uso documentado de patentes, que varia de acordo com a molécula. O engajamento do laboratório federal Far-Manguinhos na produção de ARVs, por exemplo, começou com análises detalhadas das patentes relevantes. Esta pesquisa, conduzida por um químico experiente, revelou problemas em sínteses altamente específicas, assim como gargalos para a aquisição de determinados reagentes. Em um laboratório privado, um engenheiro químico dedicou-se inteiramente a ler e sintetizar patentes, assim como a identificar os passos que dificultariam sua reprodução. Ler patentes envolve um processo de interpretação e transposição. Portanto, é necessário adaptar o processo descrito na patente às condições de produção que não são estritamente equivalentes às descritas na invenção. As informações contidas na patente são fundamentalmente incompletas devido a restrições feitas pelo proprietário e, mais comumente, à ausência do know-how requerido para aplicar a tecnologia descrita. Portanto, os químicos que trabalham em laboratórios de genéricos, que não têm o know-how do proprietário da patente, devem se responsabilizar pela reconstituição paciente da tecnologia. Para isso, utilizam informações encontradas em publicações, conhecimentos obtidos com outros produtores de genéricos (os químicos do Far-Manguinhos visitaram, várias vezes, as fábricas de 86 seus fornecedores na Índia), e o know-how de químicos da universidade que lhes dão assessoria. Basicamente, eles têm de completar a patente por meio de pesquisa em laboratório para reconstituir alguns processos e analisar os medicamentos e a matéria-prima obtidos comercialmente. Aos poucos, os produtos têm como ser caracterizados e os processos sintéticos reproduzidos. A dificuldade dessa reconstituição, em meio a patentes, artigos científicos e engenharia reversa, varia conforme a complexidade das moléculas e o valor de uso das patentes documentado. Um fabricante de genéricos, do setor privado, levou dois anos para reproduzir a síntese do Ritonavir, um inibidor de protease. Foi preciso um ano para consegui-la na escala de laboratório e outro para uma escala maior. No processo, o laboratório naturalmente aprendeu muito sobre as mesmas gerações de moléculas. O gerente de R&D explicou: “No caso do Ritonavir, levamos dois anos para desenvolver a síntese; para o Lopinavir, seis meses, porque o Lopinavir e o Ritonavir têm estruturas, em parte, similares; tipos semelhantes de química e de know-how; hoje, é mais fácil desenvolver novas sínteses.” Produtores de genéricos tiveram de reconstituir também as referências ou os padrões das moléculas que copiaram. Uma vez que essas moléculas tinham sido patenteadas, suas referências químicas não eram divulgadas nas farmacopéias internacionais. Por exemplo, o laboratório Far-Manguinhos produziu referências dessas moléculas para seu próprio uso – controle de qualidade na fábrica – e para a farmacopéia brasileira. O serviço de qualidade de um produtor de genéricos do setor privado formula seus próprios métodos analíticos para controlar a produção e obter aprovação da Anvisa, a agência nacional de medicamentos. Assim, copiar produz relatórios, bancos de dados, métodos de testes e documentação abundante para uso público e interno. A produção de medicamentos genéricos contra a Aids estimulou a criação de laboratórios públicos e particulares e o aumento da capacidade de R&D de ambos. Consideremos o exemplo de Far-Manguinhos, que recrutou químicos na indústria e em universidades e adquiriu uma grande quantidade de equipamentos de pesquisa, financiados pelos lucros das vendas de ARVs. O resultado é uma plataforma técnica que serve como referência para a indústria farmacêutica brasileira. Uma vez que esse laboratório havia comprado matérias-primas para seus medicamentos de laboratórios comerciais indianos, chineses e brasileiros, ele primeiro se equipou com um grande departamento analítico para realizar testes de caracterização nas moléculas. Esses testes foram, então, usualmente utilizados para controlar a qualidade da matéria-prima adquirida. Embora não estivesse equipado para fazer sínteses em escala industrial, o Far-Manguinhos criou um laboratório para sínteses em que reproduziu passos de processos de sintetização com o objetivo de caracterizar moléculas ou desenvolver procedimentos de sínteses a serem transferidos para a indústria. Finalmente, o laboratório público criou uma equipe para produzir medicamentos a serem transferidos para outros laboratórios públicos brasileiros. Em poucos anos, entre 1996 e 2002, o Far-Manguinhos criou um laboratório de R&D para análises, sínteses e fórmulas, RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.83-91, jan.-jun., 2007 para o qual foram cerca de 30% do staff do laboratório (215 pesquisadores de um total de 739 funcionários). O programa de cópias de ARVs foi acompanhado da troca de conhecimentos e até mesmo de contratos de transferência de tecnologia entre laboratórios dos setores público e privado. Consideremos os dois exemplos que se seguem. No primeiro caso, o laboratório estatal realizou um estudo bibliográfico e desenvolveu a síntese completa de uma molécula que, em seguida, foi transferida para um laboratório industrial que se encarregou de aumentar a escala e a produção. No segundo, os dois laboratórios, o estatal e o industrial, fizeram acordos relativos a várias operações: o laboratório federal compraria matéria-prima do laboratório industrial, que lhe transferiria a tecnologia de produção do medicamento por ele detida. Os dois parceiros fizeram também um acordo de cooperação para um projeto de R&D sobre uma nova geração de antiprotéases identificadas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Assim, copiar leva à produção local de conhecimentos gerados pelo estudo de patentes e por manipulações de laboratórios. As patentes constituem um importante veículo de transferência de tecnologia, mesmo que sejam fundamentalmente incompletas. O conhecimento é comercializado entre produtores de genéricos que se especializam em diferentes fases da produção de medicamentos ou eles se tornam parceiros. Esse conhecimento criado pelas cópias provavelmente deve ser transferido para outros laboratórios. O laboratório estatal Far-Manguinhos transfere suas tecnologias para outros laboratórios brasileiros e o diretor ofereceu a tecnologia obtida pelos químicos brasileiros para laboratórios na África Oriental e Austral. Cópias e inovações farmacêuticas Observamos um certo grau de continuidade entre cópias farmacêuticas e inovação. Nos laboratórios estudados, copiar leva à inovação de várias maneiras. A primeira é a chamada inovação incremental, que deriva diretamente da atividade de copiar: produtores de genéricos melhoram as rotas de síntese ou fórmulas dos medicamentos que copiam. Essas modificações podem levar a patentes relacionadas a aperfeiçoamentos (fórmulas) ou são mantidas em segredo (novas rotas de síntese). A segunda é uma inovação mais radical, que pode levar ao desenvolvimento de novos medicamentos, seja por meio da combinação de várias moléculas existentes, seja por descobertas de novas propriedades nas moléculas polimorfas da molécula copiada, ou da identificação de novas famílias de medicamentos anti-retrovirais. Por exemplo, o laboratório de Far-Manguinhos analisa o polimorfismo de medicamentos anti-retrovirais existentes para descobrir novas propriedades terapêuticas. Está envolvido também nos projetos de pesquisa sobre novas família de medicamentos anti-retrovirais derivadas da pesquisa iniciada no próprio laboratório ou em laboratórios acadêmicos. No último caso, uma patente de um novo inibidor de protéase foi depositado juntamente com a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esses projetos de pesquisa de novas moléculas, que não dependem mais da cópia de invenções estrangeiras, beneficiam-se desse aprendizado tecnológico dos laboratórios durante a fase de imitação. A reprodução de moléculas existentes tem sido acompanhada da criação de equipes de R&D e da aquisição de conhecimentos aprofundados sobre moléculas anti-retrovirais, que podem ser usados em novos projetos de pesquisa. Acompanhamos essa dinâmica em um dos laboratórios de medicamentos genéricos industriais que estudamos, que começou copiando ARVs antes de desenvolver suas próprias moléculas em parceria com a Universidade de São Paulo. Essas novas moléculas descobertas por laboratórios de universidades ou as novas fórmulas inventadas por produtores de medicamentos são patenteadas. Por exemplo, uma nova família de inibidores de protéase, descoberta por um químico de uma universidade e desenvolvida pelo laboratório Far-Manguinhos, foi patenteada pela Universidade Federal do Rio e pelo laboratório do Ministério da Saúde. A patente abrange Europa, Estados Unidos, Japão, Chile, Índia e África do Sul. Essa patente deve possibilitar que a universidade e o laboratório estatal controlem a difusão e a industrialização do invento. Laboratórios privados de genéricos registraram patentes de novas fórmulas, dos processos de sua preparação – por exemplo, inibidores de protéase – e de novas moléculas por eles identificadas. Novas rotas de síntese baseadas no know-how muito específico de engenheiros químicos, que representam uma fonte de ganhos de produtividade para produtores de genéricos, são geralmente mantidas em segredo. Os aperfeiçoamentos tecnológicos ou novos modelos descobertos pelos produtores de genéricos brasileiros beneficiam-se da nova lei de propriedade intelectual no que diz respeito a que produtos e processos farmacêuticos podem ser patenteados. O laboratório federal Far-Manguinhos pretende usar suas patentes para controlar e regular o mercado de medicamentos. Na maioria dos casos, deixará que outros laboratórios ou empresas industrializem novos medicamentos e produzam matérias-primas, e utilizará suas patentes para transferir suas tecnologias para laboratórios brasileiros. De maneira mais geral, com ou sem patentes, Far-Manguinhos tem uma política sistemática de transferência de tecnologia para a indústria privada. Processos desenvolvidos em escala de laboratório – correspondente a um quilograma – são enviados simultaneamente para as empresas interessadas. Um químico do laboratório federal comentou: “Tínhamos três moléculas para as quais foram desenvolvidas reações em escala de laboratório; depois, elas foram transferidas para empresas clientes que queriam a tecnologia.” Universidades brasileiras também têm políticas de propriedade intelectual e, em alguns casos, uma pessoa específica fica responsável pela monitoração do registro de patentes e transferências de tecnologia16. Por exemplo, uma equipe de químicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro patenteou várias novas moléculas como parte de uma estratégia para valorizar a pesquisa acadêmica e para transferir e controlar tecnologia. Existe uma rede de universidades brasileiras para estimular a propriedade intelectual e difundir instrumentos de transferências. Ao RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.83-91, jan.-jun., 2007 87 longo de sua atividade de copiar genéricos, produtores brasileiros de medicamentos genéricos usam patentes relacionadas a aperfeiçoamentos ou patentes de novas moléculas quando desejam desenvolver pesquisa farmacêutica com o objetivo de inventar novos produtos, geralmente em cooperação com laboratórios de universidades. No entanto, esses projetos de inovação baseada em novas moléculas ainda estão em um estágio muito inicial. Conflito entre o Ministério da Saúde brasileiro e os laboratórios internacionais: negociações dos preços e licenças compulsórias Embora a lei de patentes de 1996 sirva para proteger invenções de novas moléculas, exclui a possibilidade de copiar novas gerações de anti-retrovirais. Acredita-se que a produção de genéricos brasileiros contra a Aids diminuirá logo que os “coquetéis” adotados pelo Ministério da Saúde para suas triterapias incluírem as novas moléculas patenteadas. À medida que o Ministério optar por tratamentos que incluam essas novas moléculas patenteadas, gradualmente o mercado de medicamentos copiados diminuirá. Em três ocasiões – agosto de 2001, setembro de 2003 e junho de 2005 – durante as negociações de preço com laboratórios internacionais, o governo brasileiro ameaçou usar uma licença compulsória para os ARVs patenteados. Os quatro ARVs de segunda geração comprados pelo Ministério da Saúde correspondiam a 80% do orçamento do programa contra Aids, e os detentores de patentes recusaram-se a conceder as reduções de preços demandadas. Em junho de 2005, por exemplo, o Ministério da Saúde ameaçou ter o genérico do Kaletra, do laboratório Abbott, produzido pelo Far-Manguinhos, por quase metade do preço do medicamento que detém a marca17. A ameaça era plausível, uma vez que o laboratório estatal tinha ampla experiência na área dos anti-retrovirais e havia preparado a engenharia reversa do medicamento por solicitação do Ministério da Saúde. Uma vez que a preparação de uma licença compulsória exige a capacidade de produzir a molécula licenciada, o Ministério da Saúde requer diretamente a laboratórios públicos e privados que preparem a síntese de moléculas específicas. Esse trabalho preparatório de aquisição de conhecimento é crucial para o governo brasileiro, pois ele só pode decidir usar uma licença compulsória se os químicos do país forem capazes de produzir a molécula genérica por um preço satisfatório. Finalmente, em julho de 2005, o Ministério da Saúde anunciou um acordo em relação aos preços do Kaletra e desistiu da opção por uma licença compulsória e da produção de versões genéricas. Um dos líderes do programa contra a Aids do Ministério criticou essa decisão, que reduziu a esfera da produção local de genéricos: “ARVs copiados aqui são cada vez menos usados com o aparecimento de novos tratamentos.” Na verdade, apesar de várias ameaças, o Brasil nunca efetivou esse tipo de licença compulsória. Paralela a essa batalha relacionada às licenças compulsórias, membros do parlamento, apoiados por ONGs, 88 propuseram uma outra solução mais radical: a emenda à lei de 1996 sobre propriedade intelectual, de modo que os ARVs fossem excluídos da patenteabilidade. Em 2 de junho de 2005, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados brasileira aprovou, por unanimidade, um projeto de lei para colocar os medicamentos contra HIV/Aids fora da esfera das matérias patenteáveis18. Esse artigo, que ratifica o status excepcional da Aids, foi explicitamente destinado a garantir a viabilidade do programa do Ministério da Saúde contra a Aids. O objetivo é não só reduzir os preços dos ARVs, mas também assegurar que sua produção local possa continuar. Essa exclusão de ARVs das patentes poderia, no entanto, impedir o patenteamento de novas moléculas que viriam a ser descobertas pelos pesquisadores brasileiros dos setores público e privado. Conclusões A experiência brasileira de copiar medicamentos contra HIV/Aids ilustra uma série de questões. Primeiro, enfatiza o status excepcional de medicamentos em relação à propriedade intelectual. Considerados bens públicos, os medicamentos podiam ser copiados livremente no Brasil até 1996. Embora tenham caído novamente sob a lei de patentes naquele ano, permaneceram “bens essenciais” em relação às normas da política de saúde pública. Em 1996, poucos meses depois da nova lei de propriedade intelectual ter sido sancionada, um decreto presidencial proclamou o acesso livre universal aos medicamentos para portadores de HIV/Aids. Para pôr em prática essa política, o governo mobilizou laboratórios farmacêuticos públicos para produzirem medicamentos genéricos. Esses objetivos de saúde pública entraram em conflito com o status patenteável de novas gerações de medicamentos anti-retrovirais quando os preços das novas moléculas pesaram muito no orçamento do Ministério da Saúde. Por isso os inúmeros conflitos com os laboratórios particulares e controvérsias sobre licenças compulsórias desde 2001. O limite aos direitos das patentes encontrase inscrito na nova lei de patentes e pode ser aplicado se o produto patenteado não for produzido localmente durante três anos. Em 1999, um decreto presidencial fortaleceu as possibilidades de licenças compulsórias “de interesse público” principalmente relacionadas à saúde pública. Em setembro de 2003, um novo decreto presidencial especificou as condições para a aplicação de uma licença compulsória por motivos emergenciais de interesse público nacional. A propriedade intelectual de ARVs teve de se adaptar às normas da saúde pública. Finalmente, os incentivos públicos do Ministério da Saúde relativos à Aids foram decisivos para revitalizar a produção de genéricos no Brasil. Em segundo lugar, essa experiência revela também as possibilidades abertas à saúde pública, à transferência e ao aprendizado tecnológico pela assimetria nos direitos de propriedade intelectual de diferentes países19. Nesse sentido, licenças compulsórias podem ser consideradas do ponto de vista não só das políticas de saúde pública, mas também da transferência de tecnologia. O acordo da OMC, em 30 de agosto de 2003, sobre a aplicação da RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.83-91, jan.-jun., 2007 Declaração de Doha, contém um artigo que “reconhece” e estimula a “transferência de tecnologia” entre os países importadores e exportadores de medicamentos genéricos20. O decreto do presidente do Brasil, de setembro de 2003, relativo às licenças compulsórias, objetivou compelir os detentores de patentes a transferirem seu know-how. A própria preparação de licenças compulsórias constitui uma fase da aquisição de conhecimentos e de aprendizado tecnológico, por meio da análise de documentos de patentes, engenharia reversa em laboratórios, trocas entre laboratórios públicos e privados, e visitas de químicos a produtores de genéricos indianos e chineses21. Em terceiro, a complexidade de patentes é revelada. Patentes são instrumentos para proteger invenções e proibir a cópia em detrimento de produtores de genéricos. São também veículos de transferência de tecnologia quando copiar é declarado legal, seja porque o medicamento é excluído da patenteabilidade ou porque as patentes em questão estão sujeitas a uma licença compulsória. Por último, patentes constituem uma faca de dois gumes para as empresas farmacêuticas no Brasil. Por um lado, se ratificada, a reforma da lei de propriedade intelectual aprovada pela Câmara dos Deputados em junho de 2005 excluirá os ARVs das patentes e estimulará a ampliação do mercado de cópias. Por outro, impedirá laboratórios públicos e privados de patentear aperfeiçoamentos ou novas moléculas. Um produtor de genéricos que produzir os princípios ativos de ARVs existentes e descobrir novos ARVs enfrentará esse dilema. Finalmente, a experiência brasileira apresenta uma solução original para a alternativa proposta por Paul Romer em um ensaio sobre o conhecimento e a economia do desenvolvimento, de usar idéias inventadas em outros lugares ou produzir as próprias idéias de alguém22. Romer compara dois modelos que se contrastam: o da ilha Maurício, que usa idéias estrangeira estimulando investimentos externos, e o de Taiwan, que incentiva a produção interna de conhecimento, aumentando seus investimentos em R&D. Os laboratórios brasileiros de genéricos ilustram um outro modelo, que consiste em usar invenções estrangeiras por meio de engenharia reversa e a produção local de inovações derivadas direta ou indiretamente de copiar: diretamente, quando a cópia de medicamentos é acompanhada por adições e aperfeiçoamentos possíveis de serem patenteados e, indiretamente, quando os laboratórios de genéricos reutilizam conhecimento adquirido durante a fase de cópia para iniciar novos projetos de pesquisa. Dois dos cinco laboratórios farmacêuticos que estudamos desenvolveram essa trajetória de copia para pesquisa de novos medicamentos. Além da produção de conhecimentos implícita na cópia, esta leva também à criação ou ampliação de laboratórios de R&D. Estes são fundamentalmente laboratórios analíticos – para caracterizar e controlar matérias-primas – e laboratórios de sínteses e fórmulas. Além disso, a produção de medicamentos genéricos para o programa contra a Aids revitalizou a reflexão e as iniciativas voltadas para a reformulação da indústria farmacoquímica no Brasil pelo governo, pela indústria privada e pelas universidades23. Notas 1. Esse projeto de lei altera o artigo 18 da lei de patentes brasileira sobre exclusões da patenteabilidade. O que se segue não é patenteável: “... o medicamento assim como seu respectivo processo de obtenção, específico para a prevenção e o tratamento da Aids”. Lei Nº 22/03, junho de 2005. 2. Entrevista com C. Possas, do Programa Brasileiro de Aids, em setembro de 2005. 3. Houve três crises relacionadas às licenças compulsórias para ARVs: em agosto de 2001, setembro de 2003 e junho de 2005. Nas três ocasiões, o Ministério da Saúde ameaçou usar uma licença compulsória, mas finalmente voltou atrás quando conseguiu um acordo sobre os preços dos ARVs comprados de laboratórios internacionais que lideram o mercado. 4. Essa exclusão foi discutida no projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados em junho de 2005. 5. Sobre essa questão, o leitor poderá encontrar mais informações no trabalho da British Commission on Intellectual Property Rights intitulado “Integrating Intellectual Property Rights and Development Policy”, Londres, setembro de 2002. 6. Cf. o trabalho, de Jane Lajouwe, sobre a indústria farmacêutica indiana intitulado “The introduction of pharmaceutical patents in India: Heartless Exploitation of the Poor and Suffering?”, NBER Working Paper Nº 6366, janeiro de 1998. 7. Decreto 9.313, de 13 de novembro de 1996. Lembremos que o acesso universal aos serviços de saúde é um direito constitucional no Brasil (Artigo 196 da Constituição de 1988). 8. O Brasil tem 18 laboratórios estatais. Seis estão envolvidos na produção de ARVs para o programa contra a Aids. 9. Entre 1996 e 2001, a produção de laboratórios públicos resultou em uma queda, em média, de 71% nos preços, em comparação aos preços de moléculas compradas de laboratórios internacionais. 10. Esse tipo de troca de tecnologia e cooperação no campo dos ARVs concretiza uma recomendação feita num relatório do Banco Mundial sobre o setor farmacêutico no Brasil intitulado “Public Policies in the Pharmaceutical Sector: A Case Study of Brazil”, Jillian Clare Cohen, janeiro de 2000, 25 páginas. 11. No entanto, os investimentos de laboratórios brasileiros privados eram insuficientes para atingir esse objetivo. Em 1988, laboratórios estrangeiros controlavam 2/3 do mercado. 12. Ambos são ligados pelo comércio, uma vez que os laboratórios indianos fornecem matérias-primas para os laboratórios brasileiros. 13. Relatório da Comissão sobre Direitos de Propriedade Intelectual intitulado “Integrando Direitos de Propriedade Intelectual e Política de Desenvolvimento”. GlaxoSmithKline, novembro de 2002, 15 páginas. 14. Realizamos 45 entrevistas em 2002, 2003 e 2004. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.83-91, jan.-jun., 2007 89 Visitamos os laboratórios de R&D e instalações industriais desses diferentes laboratórios farmacêuticos. Essa pesquisa foi financiada pela ANRS (Agence française de recherche sur le sida), a agência nacional francesa de pesquisa sobre Aids. 15. Cassier, M. e Correa, M. 2003. Patents, innovation and Public Health: Brazilian Public-Sector Laboratories’ Experience in Cpying AIDS Drugs. In Economics of Aids Aid and Access in Developing Countries. Ed. ANRS, p. 89-107; Cassier, M. e Correa, M. 2004. Patenting Drugs? An anthropological vision of property. 4S and EASST Conference, Public Proofs, Science, Technology and Democracy, agosto de 2004, Ecole des Mines, Paris; Cassier, M. e Correa, M. 2005. La copie des antiretroviraux dans les laboratories publics et privés brésiliens, Montreal, Congresso Internacional sobre Medicamentos, 30 de agosto a 2 de setembro. 16. O número de patentes registradas por universidades brasileiras aumentou sibstancialmente a partir de 1997. 17. O laboratório estatal teria produzido uma versão genérica do Kaletra por 68 centavos de dólar para substituir o Kaletra, do Abbott, cujo custo era de US$ 1,17. 18. O projeto de lei introduz uma emenda ao Artigo 18 da Lei de Patentes brasileira que trata das exclusões da patenteabilidade. Nos termos dessa lei, o que se segue não é patenteável: “... o medicamento assim como seu respectivo processo de obtenção, específico para a prevenção e o tratamento da Aids”. Lei Nº 22/03, junho de 2005. Em seguida, este projeto de lei ainda teve de ser aprovado pelo Senado e sancionado pelo presidente da República. 19. Essa situação tem uma longa história no campo farmacêutico. Por exemplo, no início do século, pesquisadores do laboratório francês Poulenc beneficiaram-se do status não-patenteável de medicamentos na França para copiarem sistematicamente patentes farmacêuticas alemãs. Cf. Cassier. 2004. Brevets pharmaceutiques et santé publique en France: opposition et dispositifs spécifiques d’appropriation des médicaments entre 1791 et 2004. Entreprises et Histoire nº 36. Ver também o exemplo da química e medicamentos na Suíça no século XIX e início do século XX. Macleod, C. The patent controversy in the 19th century. Congresso “History and Economics of Intellectual Property”, 3-4 de junho de 2005, Paris. 20. Implementation of the Doha Declaration on TRIPS and public health, 28 de agosto de 2003, Organização Mundial do Comércio. 21. O conflito sobre licenças compulsórias para o Efavirenz e o Nelfinavir, em setembro de 2003, foi precedido pela ida de uma delegação de químicos brasileiros à Índia e à China. 22. Romer, P. Two strategies for economic development: 90 using ideas and producing ideas. Seminários do Congresso Anual sobre Desenvolvimento Econômico organizado pelo do Banco Mundial, 1992. 23 Em 2003, diversos seminários foram realizados no Brasil sobre os assuntos “Projetos de inovação relacionados à saúde” (Fundação Oswaldo Cruz, 9-10 de junho de 2003) e “O complexo industrial da saúde” (BNDES, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, 5-7 de maio de 2003). Em 2005 e 2006, a Academia de Ciências organizou um ciclo de conferências sobre política farmacêutica e inovação. Ver também o relatório, de Antunes e Fortunak, intitulado A produção de ARVs no Brasil. 2006. Referências bibliográficas ANTUNES O.; FORTUNAK J.M.: Arvs production in Brazil: an evaluation. Report for the Brazilian Interdisciplinary Aids Association (ABIA) and MSF Brazil, 2006, 8 p. CASSIER, M.; CORREA, M. Patents, innovation and Public Health: Brazilian Public-Sector Laboratories Experience in Copying AIDS Drugs’. In: Economics of Aids Aid and Access in Developing Countries, Ed. ANRS, 2003, p.89-107. CASSIER, M. Brevets pharmaceutiques et santé publique en France entre 1791 et 2004: opposition et dispositions spécifiques d’appropriation des médicaments, revue Entreprises et Histoire, 2004, p.29-47. COHEN J.C, Public policies in the pharmaceutical sector: a case study of Brazil, January, World Bank, 2000, 25 p. COMMISSION ON INTELLECTUAL PROPERTY RIGHTS (CIPR), Integrating Property Rights and Development Policy, s.d. 178 p. GLAXOWELLCOME, Commission on Intellectual Property Rights Report on Integrating Intellectual Property Rights&Development Policy: comments from GlaxoSmithKline, November, 2002, 15 p. LANJOUWE, J, The introduction of Pharmaceutical Products Patents in India : Heartless exploitation of the poor and suffering ? s.l. Economic Growth Center, Yale University, 1997, 54 p. MACLEOD, “‘The patent controversy in the 19th century’”, conference on ‘History and Economics of Intellectual Property Rights’, 3-4 June 2005, Paris. ROMER P, Two strategies for Economic Development: Using Ideas and Producing Ideas, Proceedings of the World Bank Annual Conference on Development Economics. The World Bank, p. 63-91. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.83-91, jan.-jun., 2007 Sobre os autores Maurice Cassier Sociólogo e diretor de pesquisas do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica). O foco de seu trabalho é no conhecimento em propriedade intelectual, técnicas e produtos nos campos da ciência, formas de vida e saúde, nos séculos 19 e 20. Suas mais recentes publicações tratam da apropriação das vacinas de Louis Pasteur, contestação às patentes de genes do câncer de mama na Europa, e engenharia reversa nos laboratórios de genéricos brasileiros. Marilena Correa Psiquiatra especializada em saúde pública, mestre em Medicina Social e doutora em Ciências Sociais e da Saúde. Atualmente é pesquisadora convidada do Centre de Recherches Medecine, Sciences Santé et Societe - CNRS, L’École des hautes études en sciences sociales, e professora do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Seu atual campo de pesquisa é em inovação biomédica. Já publicou livros, capítulos de livros e artigos sobre reprodução humana e procriação medicamente assistida, biotecnologia, bioética e ética em pesquisa biomédica. Foi membro dos Comitês de Ética em Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (1999 até 2006) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro onde foi coordenadora. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.83-91, jan.-jun., 2007 91 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Artigos originais Metodologia de pesquisa-ação na área de gestão de problemas ambientais Michel Thiollent Generosa de Oliveira Silva Programa de Engenharia da COPPE/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil [email protected] Projeto Gestão Participativa da Sub-Bacia do Rio São Domingos (Convênio COPPE/UFRJ/LT&F – EMBRAPA-Solos), Rio de Janeiro, Brasil [email protected] Resumo O objetivo do artigo consiste em apresentar e discutir as possibilidades de aplicação da metodologia participativa e da pesquisa-ação em estudos da área sócio-ambiental, principalmente no contexto rural. Destacam-se problemas que ocorrem no relacionamento entre pesquisadores e comunidades e sugerem-se meios de construir uma visão compartilhada. Finalmente, são apresentados alguns resultados de um projeto participativo em comunidades de uma microbacia do Noroeste fluminense, em particular no que diz respeito aos problemas de saúde decorrentes do o uso de defensivos agrícolas. Ademais, são destacados os procedimentos utilizados para lidar com a organização das comunidades. Palavras-chave Metodologia, pesquisa-ação, agricultura, meio ambiente, comunidades Introdução Diante dos atuais desafios sociais e ambientais que o desenvolvimento agrícola encontra, é preciso pesquisar, conceber, avaliar novos modelos de gestão agroambiental. Novos enfoques teóricos e metodológicos são necessários para superar as visões econômicas predominantes que se revelaram restritivas em termos de apreensão de complexidade socioambiental e cultural e levaram ao agravamento de problemas de deterioração do meio ambiente e de exclusão social; o que direta e indiretamente acaba por se refletir nas condições de saúde. Com esse intuito, aqui serão apontadas algumas possibilidades teóricas e metodológicas associadas ao uso de metodologia participativa, em particular da me- todologia de pesquisa-ação. Será destacada a questão do relacionamento intercultural que se estabelece entre pesquisadores, produtores agrícolas e demais participantes. Finalmente, a descrição de um estudo de caso em microbacia hidrográfica exemplificará alguns aspectos da proposta metodológica. Enfoque metodológico Para o planejamento, a gestão e a avaliação de projetos agroambientais, cada vez mais, são tomados em consideração elementos de dinâmica biológica, ecológica ou socioambiental, princípios de sustentabilidade ambiental, econômica e social, e critérios de participação dos grupos sociais envolvidos. Às vezes, tais exigências RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.93-100, jan.-jun., 2007 93 ficam no plano da retórica, mas observa-se que, em várias instituições de pesquisa ou de fomento, internacionais e nacionais, os critérios de sustentabilidade e de participação tendem a adquirir um caráter obrigatório. No plano da metodologia, essas exigências se manifestam pela adoção de um marco referencial sistêmico e de métodos participativos, entre os quais faz parte a proposta de pesquisa-ação. Para uma ampla visão do leque de métodos participativos, veja-se (BROSE, 2001). A sustentabilidade das soluções técnicas resultantes de um projeto diz respeito à possibilidade de prever e assegurar as condições necessárias para sua continuidade, com reposição dos recursos naturais e viabilidade econômica e social de longo prazo, dentro do ecossistema considerado. Em termos concretos, isso leva a buscar a adequação das soluções produtivas em função das características do solo, dos recursos hídricos, das fontes de energia e do uso do trabalho humano, minimizando os efeitos prejudiciais em termos sociais, ambientais e de saúde. Contrária à lógica econômica imediatista, que se reduz às variáveis de custo e benefício de agentes econômicos, o novo enfoque requer séries de critérios de decisão e avaliação no plano socioambiental. Nessa perspectiva, os conhecimentos de tipo biológico e ambiental são articulados com os conhecimentos socioeconômicos. A ciência ambiental está intimamente inserida em um processo social (NORGAARD, 1991). Contra a razão econômica restrita ao cálculo dos ganhos de um agente egoísta (homo economicus), Enrique Leff propôs a construção de uma razão ambiental que se contrapõe à razão econômica e que é vista como processo complexo integrando novas formas de produção teórica, de desenvolvimento tecnológico, com mudanças institucionais e transformação social, e tomada de decisão participativa (LEFF, 1994; 2001a; 2001b). A perspectiva socioambiental requer uma abordagem sistêmica, não limitada à análise de variáveis isoladas, mas de um modo capaz de apreender o todo e as partes nas suas relações com o todo, enxergando a complexidade que resulta da interação entre as partes. Além disso, a idéia de sustentabilidade requer que seja levada em consideração uma visão de futuro. A abordagem sistêmica não se limita aos aspectos estruturais, processuais e funcionais da realidade observada no presente. É preciso levar em conta a dimensão histórica, com aspectos de evolução, retrato do passado e projeção do futuro que, evidentemente, é objeto de conflitos, mas a partir do qual se define o que é desejável ou não. Na mesma perspectiva socioambiental, a metodologia participativa encontrou nas últimas décadas um novo e profícuo campo de aplicação. Tal metodologia abrange um amplo conjunto de métodos e técnicas de pesquisa, ensino, extensão, avaliação, gestão, planejamento etc., cujo denominador comum é o princípio da participação, em diversos formas e graus de intensidade, de todos os atores envolvidos nos problemas que pretendem solucionar. Assim, a pesquisa é realizada dentro de um espaço de interlocução onde os atores implicados participam 94 na identificação e na resolução dos problemas, com conhecimentos diferenciados. A proposta de metodologia participativa não é meramente instrumental. Fundamenta-se na crítica da metodologia unilateral, na crítica social das práticas científicas convencionais e de seus aspectos de dominação, de desconhecimento, aproveitamento ou extorsão do saber popular ou nativo. A adequação desses métodos é pensada em termos práticos (adequação e efetividade das soluções encontradas), em termos teóricos (cotejo da teoria com a prática, com enriquecimento do conhecimento) e em termos éticos (aceitação, legitimidade das propostas e soluções de modo dialógico e negociado). Métodos participativos são aplicáveis em todas as áreas sociais, na educação, na saúde coletiva e cada vez mais nas atividades técnicas (organização, ergonomia, engenharia, arquitetura etc.) e particularmente adequados na pesquisa agropecuária. No Pronapa 2005 (Programa Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento da Agropecuária da EMBRAPA), o desenvolvimento da pesquisa participativa aparece como objetivo estratégico assim formulado: “Desenvolver e adaptar métodos de pesquisa participativos adequados às ações de pesquisa à realidade dos pequenos produtores, contribuindo para a solução de problemas sociais e econômicos nacionais minimizando desequilíbrios regionais.” (EMBRAPA, 2005) No âmbito das ciências agrárias, a metodologia de pesquisa-ação tem sido discutida de longa data e, por vezes, utilizada em particular em práticas de extensão rural, difusão de tecnologia (THIOLLENT, 1984) e criação de tecnologia apropriada. Tal metodologia tem sido adotada para elaborar projetos de associações ou cooperativas e de economia solidária (THIOLLENT, 2005b). Embora a relação entre a metodologia de pesquisa-ação e a problemática de tecnologia apropriada, ou, mais recentemente, de tecnologia social, nem sempre tenha sido explicitada, considera-se que existem semelhanças e aproximações no espírito, nos procedimentos e formas de relacionamentos com as comunidades rurais implicadas. A metodologia participativa e, em particular, a pesquisa-ação estão no centro dos debates em matéria de educação ambiental (ZART, 2001), de difusão de informação para fortalecer a participação e a sustentabilidade (FURNIVAL et al., 2005) e, sem dúvida, têm grandes contribuições a oferecer em estudos preparatórios para a gestão agroambiental. Em projetos em que as microbacias são consideradas como unidades de análise sistêmica de atividades agropecuárias, os métodos participativos são geralmente recomendados em especial no tocante à agricultura familiar e à organização de comunidades de pequenos produtores. Do ponto de vista epistemológico, os fundamentos da metodologia participativa e da pesquisa-ação encontram apoio em teorias críticas, em certas vertentes da fenomenologia e, mais recentemente, cada vez mais, em novas formas de construtivismo ou de construcionismo social (JIGGINS, 1997; GERGEN, 2001). RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.93-100, jan.-jun., 2007 Da interação prolongada entre pesquisadores e atores surgem novas construções de conhecimento voltadas para a prática. A partir de mapeamentos e sistematizações, tais construções tornam-se conhecimento apropriado pelos usuários e, ao mesmo tempo, validadas no plano científico pelos pesquisadores e profissionais. Entre os métodos participativos, a pesquisa-ação ocupa um lugar de destaque. Sua história já é longa (início na década de 1940) e está em constante renovação (MORIN, 2004). Sua fundamentação encontra apoio em várias concepções psicossociológicas, comunicacionais, educacionais, críticas etc. (EL ANDALOUSSI, 2004). Enquanto metodologia de pesquisa, a pesquisa-ação não deve ser confundida com outros métodos participativos cujas características e finalidades são diferentes, como no caso de técnicas de planejamento, monitoramento ou avaliação. É bom lembrar que a principal vocação da pesquisa-ação é principalmente investigativa, dentro de um processo de interação entre pesquisadores e população interessada, para gerar possíveis soluções aos problemas detectados. De acordo com (LIU, 1997), a pesquisa-ação não se limita à resolução dos problemas práticos dos usuários, não deve ser confundida com uma simples técnica de consultoria, já que a ambição que lhe é associada consiste também em fazer progredir os conhecimentos fundamentais. Todo esse processo ocorre em um “trabalho conjunto que é aprendizagem mútua entre pesquisadores e usuários” (a função educativa é muito desenvolvida em certos projetos ambientais) e dentro de um quadro “ético negociado e aceito por todos” (LIU, 1996). Os resultados da pesquisa-ação se verificam nos “modos de resolução de problemas concretos encontrados no decorrer da realização do projeto”. Os conhecimentos produzidos são “validados pela experimentação”. Há “formação de uma comunidade capacitada, com competências individuais e coletivas” e também “novos questionamentos para pesquisas e estudos posteriores.” (Idem) A dimensão “participação” é fundamental em pesquisa-ação e em todos os métodos componentes da metodologia participativa. Todavia, sempre existem controvérsias quanto ao escopo e à efetividade da participação. Como observaram Guivant e Jacobi, em texto sobre a gestão de bacias hidrográficas: “Na última década o termo “abordagem participativa” passou a fazer parte dos discursos governamentais, de ongs e de diferentes agências internacionais de desenvolvimento. Mas o conceito de participação pode implicar diversos significados, nem sempre explicitados. Os questionamentos em relação a um uso indiferenciado do conceito de abordagem participativa têm aumentado, sobretudo na bibliografia sobre desenvolvimento sustentável. Um dos pontos levantados é que geralmente os formuladores de políticas, planos de desenvolvimento ou legislações esquecem de explicitar de quem será a participação. Isto é, a participação comunitária nem sempre beneficia ou atinge a todos os membros de uma comunidade da mesma forma (...). Outro problema relaciona-se com uma tendência a pressupor que a boa vontade dos peritos/técnicos pode levar a diluir magica- mente as relações de poder que estabelecem com setores leigos. Estas relações de poder não desaparecem, mas sim devem ser trabalhadas e negociadas conjuntamente entre leigos e peritos.” (GUIVANT, 2003) Em cada projeto ou em cada caso, é necessária uma clara análise da participação dos atores e de seus efeitos diferenciados. As condições, as modalidades e a intensidade da participação, as relações entre especialistas e comunidades devem ser monitoradas. Em muitos projetos a participação dos interessados revela-se bastante limitada. Mas, de qualquer modo, a questão da participação não deve ser reduzida a uma dicotomia de tipo ‘tudo ou nada’. É preciso distinguir várias modalidades e graus de intensidade. Na clássica ótica de Henri Desroche, que teorizou de longa data essa questão, existe um leque de tipos de participação, da incipiente à integral, passando por graus intermediários, dependentes das ênfases na busca de explicação, na aplicação ou na implicação (DESROCHE, 2006). Em termos mais práticos, segundo (STRINGER, 1999), a participação é mais efetiva quando: (a) possibilita significativo nível e envolvimento; (b) capacita as pessoas na realização de tarefas; (c) dá apoio às pessoas para aprenderem a agir com autonomia; (d) fortalece planos e atividade que as pessoas são capazes de realizar sozinhas; (e) lida mais diretamente com as pessoas do que por intermédio de representantes ou agentes. Cada vez mais, os projetos são concebidos e realizados com grupos pluridisciplinares que estão em relação de parceria. Constrói-se então um arranjo entre vários atores para viabilizar e realizar o projeto. Nesse contexto, a pesquisa-ação precisa ser adaptada para manter uma interação entre os atores ou parceiros implicados que seja produtiva em termos de conhecimento (EL ANDALOUSSI, 2004). Do inter-relacionamento entre pesquisadores e atores no processo de pesquisa-ação, associado a um espaço de interlocução, resulta uma construção do conhecimento para a qual é necessário apreender a dimensão cultural, as diferenças de linguagens, posturas sociais, percepções e interpretações. Relacionamento entre pesquisadores e comunidades Nos projetos de pesquisa-ação, é freqüente que interajam grupos sociais ou culturalmente diferentes. Os atores, as comunidades ou seus representantes envolvidos no processo de pesquisa e, em particular, no momento da interpretação dos resultados e da definição das possibilidades de ação, podem encontrar mal-entendidos ou até manifestar atitudes de conflito. Na atividade presencial desses grupos, é importante observar os aspectos simbólicos da linguagem e dos comportamentos e, se possível, mapear os conhecimentos, verbalizar as percepções dos problemas sob investigação e outros aspectos cognitivos próprios aos atores. Além disso, no plano valorativo, também devem ser evidenciados critérios, normas e valores que aceitam, respeitam ou rejeitam os diferentes atores. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.93-100, jan.-jun., 2007 95 Mesmo nas pesquisas de natureza aparentemente operacional ou técnica, o problema das diferenças e do relacional existem. Basta lembrar as dificuldades encontradas por agrônomos em suas relações com os produtores, quando existem, ou entre qualquer engenheiro e usuários dos equipamentos ou técnicas que projeta. Para avançar na solução prática desse tipo de problema, uma proposta consiste em trabalhar preferencialmente com profissionais já sensibilizados aos aspectos culturais de seus ofícios. O técnico de mentalidade “quadrada”, querendo impor sua visão, a priori racional e supostamente superior à dos demais atores, será de pouca valia. Pior, boa parte do problema será agravada por esse tipo de atitude. Um outro aspecto da metodologia proposta consiste em fazer um tipo de mapeamento cognitivo dos problemas encontrados na situação sob investigação. Este mapeamento abrangeria tanto as representações dos não especialistas (membros da situação), como as dos especialistas e pesquisadores. É importante mostrar a todos como cada um dos grupos representa os problemas, por exemplo, quanto à adoção de uma determinada técnica de plantio em comunidades de produtores rurais. Entre os diferentes grupos, nem sempre há coincidência das representações. Alguns aspectos enfatizados por uns podem estar ausentes na representação dos outros. Mesmo se não houver possibilidade de completa identidade, deve-se procurar saber quais são, pelo menos, as zonas de possível entendimento. Paralelamente, devem ser evidenciadas as áreas de desentendimento, e sua subjacente lógica argumentativa. Com isso, sem a priori quanto à questão de saber quem está certo ou errado, são comparados os pontos de vista e as representações de cada grupo. Às vezes, o diálogo é difícil: um grupo não percebe ou não tem acesso ao conhecimento de certos aspectos levantados por um outro grupo. O objetivo é caminhar em direção ao consenso, ou, pelo menos, à constatação dos pontos de compatibilidade ou de incompatibilidade. As soluções imaginadas pelos não especialistas são muitas vezes mais apropriadas ao contexto que as soluções dos especialistas externos. Os profissionais têm de aceitar questionamentos e sugestões, o que exige de sua parte modéstia e capacidade reflexiva. Por outro lado, devem descobrir sem preconceito como o ator pode aceitar algum aspecto da representação, da explicação ou da solução proposta pelo profissional. Tal questão deve ser colocada e resolvida na prática. O ponto de partida apropriado está no reconhecimento dos dois universos (o dos especialistas e dos não especialistas), com base em mapeamento, e da elucidação dos encaminhamentos a serem dados pelos interlocutores de modo conjunto. Além da questão da participação, a percepção cultural do significado da mudança proposta constitui um problema às vezes delicado. Os pesquisadores não podem pressupor uma mudança sem o consentimento dos interessados. O ideal é quando a mudança é concebida e conscientemente praticada pelos grupos interessados. No plano ético, não é mais possível impor mudanças modernizadoras que não fazem sentido na cultura de determinados grupos sociais. Contrariamente ao que 96 se praticava comumente nos anos 1960/70, o moderno não deve ser imposto sem o consentimento dos grupos. A resistência ao moderno, em nome da tradição, revelase uma atitude cautelosa e corresponde, muitas vezes, à preservação da identidade cultural dos grupos. O projeto de pesquisa-ação não impõe uma ação transformadora aos grupos de modo predefinido. A ação ocorre somente se for do interesse dos grupos e concretamente elaborada e praticada por eles. O papel dos pesquisadores é modesto: apenas acompanhar, estimular certos aspectos da mudança decidida pelos grupos interessados. Se esses grupos não estiveram em condição de desencadear as ações, os pesquisadores não podem substituí-los; só procurarão entender por que tal situação ocorre. De modo geral, deve-se abandonar a idéia de mudar unilateralmente os comportamentos dos outros. São os próprios atores que decidem se querem ou não mudar. No plano ético, é permitido ao pesquisador-ator auxiliar ou facilitar uma mudança somente se houver consentimento dos atores diretamente implicados. Uma experiência de projeto participativo em uma microbacia do Noroeste fluminense Alguns aspectos da metodologia para projetos de gestão agroambiental são exemplificados a partir de uma experiência concreta: o Projeto Gestão Participativa da Sub-Bacia do Rio São Domingos – GEPAR-MBH, referente ao Edital CT-Hidro 02/2002 – FINEP, no qual participaram equipes de pesquisadores da EMBRAPASolos, da UERJ e Laboratório Trabalho & Formação da COPPE/UFRJ, no município de São José de Ubá, na região Noroeste fluminense, em 2003/2004. Paralelamente a uma pesquisa sobre o solo e os aspectos hidrográficos conduzida, foi concebida uma pesquisa sobre os aspectos socioeconômicos e as formas de organização comunitária dos produtores de tomate de São José de Ubá. O objetivo dessa pesquisa foi gerar informações que pudessem ser divulgadas e discutidas com os envolvidos, para, num segundo momento, formular propostas de soluções para os problemas socioambientais enfrentados pelas comunidades, dando início a um processo de gestão compartilhada da produção de conhecimento. A exemplo de muitos outros municípios da região, São José de Ubá tem aderido ao chamado “pacote tecnológico”, com ênfase na monocultura do tomate com uso intensivo de adubação química, sem considerar as especificidades climáticas da região, com chuvas fortes no verão e estiagem prolongada nas demais épocas do ano. Com isso, muitas áreas entraram em decadência, já que, no verão as chuvas provocam erosão e, na época da estiagem, a agricultura de entressafra, como o milho, não suporta o sol forte por um longo período. A adoção desse sistema de cultivo, mal adaptado às condições climáticas de solo e vegetação da região Noroeste provocou sérios efeitos prejudiciais ao meio ambiente e à saúde dos trabalhadores. Problemas ambientais e de saúde relacionados ao uso de pesticidas no cultivo do tomate RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.93-100, jan.-jun., 2007 são antigos e já foram objetos de estudos nos maiores centros de produção do estado do Rio de Janeiro, como São José de Ubá (CEZAR, 2004) e, também, Paty de Alferes (DELGADO, 2004). Nas comunidades de São José de Ubá, os pesquisadores de campo entrevistaram os produtores de tomate e ouviram depoimentos sobre o uso inadequado de defensivos químicos. Segundo COSTA et al. (2007): “os problemas de intoxicação mais relatados foram: dor de cabeça e tonteira, com 31%; diarréia e vômitos, com 19%; alergia, com 12%; anorexia e vômitos, com, 3%; perturbações neurológicas, também com 6,3%; e outros, totalizando 25%” (respostas múltiplas, com soma superior a 100%). Ademais, foi constatado que, freqüentemente, os defensivos são aplicados até os últimos dias anteriores à colheita, o que sugere uma possível contaminação dos produtos destinados aos consumidores. Por meio da metodologia participativa desenvolvida pelo Laboratório Trabalho & Formação, investiu-se num trabalho de pesquisa e Gestão Participativa e PesquisaAção, que resultou num movimento gradativo de cons- cientização ambiental visando à recuperação do rio São Domingos, através de experiência de gestão ambiental, com o surgimento de novos interlocutores locais (Grupo Gestor) e implantação de unidades experimentais. Todo esse trabalho foi desenvolvido com a participação e consulta aos agricultores e lideranças, que foram “formados” pela equipe para acompanhar, discutir o projeto e fazer gestão frente às ações do próprio projeto e do poder público. 4.1 Metodologia aplicada O esquema apresentado pelo professor Fabio Zamberlan (coordenador do LT&F) parte da compreensão dos problemas concretos da população local – nas dimensões técnica, econômica e social – visando criar novas formas de organização comunitária, pautadas em valores de crescimento técnico e de cidadania. Vale dizer, no caso em estudo, o favorecimento da solidariedade e o respeito à vida e ao meio ambiente. Busca-se, para esse fim, uma nova articulação entre atores sociais que seja autêntica e futuramente institucionalizada, e que tenha auto-organização (Figura 1). Figura 1 – Problemas, meios e finalidades Fonte: COSTA et al., 2007 Os meios utilizados para tal iniciativa foram: (a) estudos de viabilidade técnica, econômica e social da produção agrícola das comunidades; (b) conseqüente geração de oportunidades contextualizadas e, se possível, duradouras; e, por fim, (c) ação de formação como um processo contínuo de atuação voltada para a cidadania. Dada à baixa inserção dos atores locais em experiências comunitárias que tenham obtido êxito, optou-se por iniciar o Projeto, justamente, no atributo mais escasso da estrutura local: sua organização. As atividades propostas, visando à mobilização das comunidades locais interessadas, voltaram-se para a criação de uma estrutura organizacional mínima e desde sempre autônoma para, em seguida, conferindo autoria aos implicados, desenvolver ações efetivas de trabalho de campo e pesquisa circunstanciais. Assim, o Projeto teve início com um grande esforço na criação e consolidação do Grupo Gestor. O Grupo Gestor foi visto como um espaço onde os agricultores assumem lugar importante do processo de elaboração e implantação do trabalho a ser desenvolvido nas comunidades. A confiança do agricultor é simultaneamente um indicador da sua participação e apresenta-se como: (a) confiança em si próprio (autoconfiança), condição fundamental para a aquisição de autonomia e indicadora dessa autonomia; e (b) confiança nos outros, para formar cooperação e sinergias, é vista como um indicador de autonomia. Na prática, a “participação” se deu em níveis muito diferentes: consulta sobre proposta oferecendo informações adequadas e prevendo os meios que permitiram RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.93-100, jan.-jun., 2007 97 aos presentes dar sua opinião; envolvimento dos atores locais nas fases do processo, através da participação nas discussões e tomadas de decisões; atenção dada aos outros problemas levantados pelas comunidades que não estavam nos objetivos iniciais do projeto. Atividades desenvolvidas As atividades desenvolvidas para gestão social e organização local da equipe social e econômica foram: (a) mobilização da comunidade, culminando com a eleição de representantes comunitários para formação do Grupo Gestor e elaboração da sua logomarca; (b) realização de um censo socioeconômico ambiental por meio da aplicação de questionários aplicados pelos representantes do Grupo Gestor; (c) identificação dos sistemas de produção existentes na área de estudo; (d) realização de eventos (dias de campo e seminários técnicos) com a participação das instituições do projeto e dos produtores e atores locais e cursos de capacitação (manejo integrado de pragas; (e) identificação dos temas prioritários de intervenção do projeto: contaminação por agrotóxicos, transporte, saúde, estradas e vias de transporte, atendimento médico, comunicação, educação e lazer, ajustadas à necessidade de preservar o meio ambiente; (f) treinamento de técnicos da Prefeitura e da Universidade de Nova Iguaçu para coleta de sangue para exame de intoxicação por agrotóxicos via análise da alteração da colinesterase); (g) realização de reuniões ordinárias mensais com o Grupo Gestor; (h) finalmente, edição de quatro boletins informativos distribuídos na região de atuação do projeto. Para desenvolver essas atividades foi preciso compreender os problemas concretos da população local – nas dimensões técnica, econômica e social. Para tanto, foram realizadas visitas a todas as comunidades do município para conhecê-las e decidir quais apresentavam melhor adequação aos objetivos do projeto. Através da primeira investigação censitária feita pelos membros do Grupo Gestor, foi possível organizar as informações, ocorrendo a necessidade posterior de negociação com os mesmos para o aprofundamento da pesquisa. Para atingir esse objetivo, 17 agricultores foram capacitados e participaram da pesquisa e 118 famílias identificadas nas cinco comunidades. Através desses dados, foi possível levantar um conjunto de informações necessárias para o conhecimento da realidade local que serviriam de base para discutir com as comunidades propostas de soluções dos problemas locais. De acordo com a estratégia de pesquisa-ação, foi organizada uma devolutiva com as famílias entrevistadas, onde cada comunidade pôde discutir o resultado da pesquisa e priorizar os temas de seu interesse. Das 77 perguntas do questionário, as comunidades elegeram oito. Os seguintes itens foram avaliados como prioritários para serem trabalhados pelo Grupo Gestor: (a) uso de agrotóxicos; (b) uso da água; (c) saúde e meio ambiente; (d) comercialização; (e) formação profissional; e (f) conservação das estradas. A pesquisa sobre os acidentes por uso de agrotóxico indica que 30,5% dos entrevistados já tiveram acidentes 98 pessoais ou na família. Este percentual, em relação ao número de entrevistados, é considerado alto. Por isso, esse tema foi a principal prioridade escolhida pelas comunidades. Apesar de a água ser considerada pela maioria da população de boa qualidade (clara e boa para cozinhar), a pesquisa identificou problemas de salinidade, é considerada ruim por 6,8% e regular por 4,3% dos entrevistados. Isso deixa claro que o fato de a maioria das comunidades ser abastecida por água de nascente (88,9%), não é sinônimo de água de boa qualidade. Além dos problemas identificados pela pesquisa participativa, a equipe de hidrologia identificou outros, como: nascentes sem cobertura vegetal; nascentes secas; animais tratados abaixo do plantio de tomate; córregos sem mata ciliar e assoreado; construção de barragem ao longo do rio São Domingos; lançamento de esgoto direto no rio. Resultados e desdobramentos nas comunidades Entre as conseqüências ou desdobramentos do projeto na comunidade, observa-se que houve um efeito mobilizador com ganho de auto-estima e de capacitação coletiva. No início da intervenção, a maioria dos membros das comunidades não se sentia capaz de mudar a situação em vários aspectos das condições de vida social. Um exemplo era o caso da comunidade de Santo Antônio do Colosso, que estava há um ano com a escola fechada. As crianças tinham que levantar de madrugada, pegar uma Kombi, ficar cerca de duas horas dentro do veículo, até que todas as comunidades fossem percorridas, para chegar à cidade. Essas dificuldades explicavam, em parte, a evasão escolar. Como conseqüência das ações sociais e econômicas do projeto CT-Hidro, a comunidade de Santo Antônio do Colosso se reorganizou, reativando o colégio que estava fechado há mais de um ano. Por iniciativa própria, os agricultores passaram a realizar ações mais amplas, por exemplo, o fato de terem: (a) levado suas reivindicações aos técnicos envolvidos no Projeto; (b) formado a Associação dos Revendedores de Defensivos Agrícolas do Noroeste Fluminense do Estado do Rio de Janeiro – ARDANF, responsável pela construção do Galpão de Recebimentos de embalagens vazias de agrotóxicos no município; (c) realizado duas coletas de sangue para análise de colinesterase em 60 pessoas, sendo 50 produtores rurais de tomate e dez não produtores. Com os resultados positivos obtidos nas unidades demonstrativas, foi iniciada uma discussão da proposta de reengenharia de produção do tomate ecologicamente correta. No caso particular da vila de Barro Branco, foi reaberta a cozinha-escola para a produção do doce de tomate ecológico com os frutos descartados, ou seja, sem padrão comercial. Apesar de suas limitações, o projeto de São José de Ubá mostrou que é possível desenvolver uma pesquisa RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.93-100, jan.-jun., 2007 participativa, com interdisciplinaridade, com aspectos de mobilização próprios à pesquisa-ação, revelando-se capaz de desencadear uma série de conseqüências positivas em matéria de organização das comunidades de produtores. O procedimento utilizado permitiu evidenciar os problemas reais das comunidades que a equipe pôde equacionar e resolver de modo mais adequado que em procedimentos de pesquisa convencional. Em suma, a metodologia participativa e a pesquisaação oferecem promissoras possibilidades de pesquisa e de atuação na perspectiva da gestão agroambiental, Todavia, salienta-se que a elaboração e a adoção dessa metodologia ainda requerem desenvolvimento e sistematização para assegurar a efetividade de seus resultados. Também é preciso reforçar a ética da conduta dos projetos, avaliar as experiências participativas existentes e encontrar canais apropriados para uma maior divulgação. Conclusão A metodologia participativa e a pesquisa-ação possuem uma longa trajetória e seus campos de aplicação se multiplicam. Com a urgência de soluções para os problemas de saúde, sociais e ambientais decorrentes do modelo de desenvolvimento imposto, surgem novos enfoques de gestão agroambiental que requerem a participação dos interessados sob diversas formas e com vários graus de intensidade, que vão desde a participação direta do produto no experimento até o relacionamento mais complexo com grupos ambientalistas, sindicatos, movimentos sociais e outras entidades (públicas ou privadas), construindo parcerias. A metodologia participativa e de pesquisa-ação adquire nesse contexto as características de um método flexível para o projeto com equipes interdisciplinares em contato direto com grupos da população ou das comunidades interessadas na resolução dos problemas detectados. Tal metodologia é objeto de experimentação tanto no plano do conhecimento quanto no da prática social. Para evitar a imposição de modelos culturalmente inadequados às populações e eventuais manipulações no plano sociopolítico, os projetos orientados pela metodologia de pesquisa-ação devem ser objeto de um rigoroso controle ético (interno e externo) antes, durante e depois de sua realização (THIOLLENT, 2005a). A experiência do projeto em microbacia, em São José de Ubá, confirmou a viabilidade da aplicação da metodologia participativa e de princípios da pesquisa-ação dentro de um trabalho interdisciplinar, com elementos de hidrologia, de análise de solos e abordagem dos aspectos socioeconômicos da organização das comunidades rurais envolvidas. Com a participação efetiva de membros dessas comunidades, observou-se uma real implicação na identificação e priorização dos problemas e na busca de soluções mais adequadas ao contexto. A interlocução entre os atores direta ou indiretamente implicados foi organizada por meio de fórum e grupos de discussão. Por sua vez, a participação voltada à gestão coletiva e à tomada de decisão foi possibilitada pela construção de um grupo gestor localmente implantado. Isso seria o início de um processo de empoderamento, promovido pelo projeto participativo, pelo qual as comunidades se acostumam à idéia de assumirem a gestão de suas atividades produtivas, assegurando a sustentabilidade pela consideração e minimização dos riscos ambientais, pela viabilização técnico-econômica da produção e pelas transformações do meio circundante obtidas com a melhoria da educação e dos transportes. Referências bibliográficas BROSE, M. Metodologia participativa. Uma introdução a 29 instrumentos. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2001. 312 p. CEZAR, L. H. S. Horticultura do tomate. Questão ambiental e territorialidades em São José de Ubá, Noroeste Fluminense. Rede acadêmica de meio ambiente e desenvolvimento, 2004. Disponível em: www.ebape.fgv.br/radma/doc/SMA/SMA-012.pdf Acesso em: 29 mar. 2007. COSTA, J. R. P. F. et al. O desenvolvimento social e econômico sustentável: o caso de cinco comunidades do Município de São José de Ubá. 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Publicou, dentre outros, os seguintes livros: Metodologia da pesquisa-ação (15a. edição, São Paulo: Cortez, 2007); Pesquisa-ação nas organizações (São Paulo: Atlas, 1997) e organizou a coletânea Pesquisa-ação e projeto cooperativo na perspectiva de Henri Desroche (São Carlos: EdUFSCar, 2007). Generosa de O. Silva Formada em Ciências Sociais pela PUC-RIO, com formação complementar em Direito Social e Gestão Ambiental pela UERJ. Trabalhou na Incubadora Tecnológica de Cooperativas da COPPE/UFRJ, pelo Laboratório de Trabalho e Formação - LT&F COPPE/UFRJ e integrou a equipe de pesquisa do Projeto CT-Hidro em parceria com a Embrapa Solos em São Jose de Ubá, noroeste do Rio de Janeiro. Atualmente é Gerente Social do Projeto Agricultura Familiar em Faixa de Dutos - Instituto Terra/Transpetro/Petrobrás. 100 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.93-100, jan.-jun., 2007 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Artigos originais Rede e subjetividade na filosofia francesa contemporânea1 André Parente Departamento de Teoria da Comunicação - Escola de Comunicação - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil [email protected] Resumo O presente artigo apresenta três diferentes visões de rede na filosofia francesa contemporânea, em particular no pensamento de Paul Virilio, Michel Foucault e Bruno Latour. O que chamamos, junto com Bruno Latour, de redes de transformações são agenciamentos sociotécnicos que estão alterando as condições da experiência e produzindo novas formas de subjetividade. As redes são figuras empíricas da ontologia do presente, figuras que nos permitem pensar o campo da comunicação como problema estrutural da contemporaneidade. Palavras-chave Rede, novas tecnologias de comunicação, filosofia, ciberespaço Introdução As redes são por demais reais. Para verificar nossa dependência das redes basta imaginar uma viagem a um lugar remoto onde tudo o que compõe a galáxia emaranhada de redes e serviços que alimentam os nossos ecossistemas móveis e imóveis vai nos fazer falta: a água, a comida, a eletricidade, os meios de comunicação, os meios de transporte etc. Elas sempre tiveram o poder de produção de subjetividade e do pensamento. Mas era como se as redes fossem dominadas por uma hierarquização social que nos impedia de pensar de forma rizomática. Com o enfraquecimento da ordem de leitura (Chartier, 1994) do Estado contemporâneo face aos interesses do capital internacional, e com a emergência do indivíduo e dos dispositivos de comunicação, aparece aqui e ali uma reciprocidade entre as redes e as subjetividades, como se, ao se retirar, a hierarquização social deixasse ver não apenas uma pluralidade de pensamentos, mas o fato de que pensar é pensar em rede. As redes tornaram-se ao mesmo tempo uma espécie de paradigma e de personagem principal das mudanças em curso justo no momento em que as tecnologias de comunicação e de informação passaram a exercer um papel estruturante na nova ordem mundial. A sociedade, o capital, o mercado, o trabalho, a arte, a guerra são, hoje, definidos em termos de rede. Nada parece escapar às redes, nem mesmo o espaço, o tempo e a subjetividade. A filosofia francesa contemporânea vem dando uma enorme contribuição ao pensamento das redes, e não é à toa que, no livro Tramas da Rede (PARENTE, 2005), ela ocupa um lugar privilegiado. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.101-105, jan.-jun., 2007 101 Não se trata de explicar os conceitos dos grandes filósofos franceses contemporâneos, nem mesmo de evidenciar qualquer filiação entre eles, mas de mostrar que alguns de seus conceitos – rizoma (DELEUZE et al., 1995), estética da desaparição (BAUDRILLARD, 1991; VIRILIO), último veículo (VIRILIO), redes de transformação (LATOUR et al., 2004), heterotopia (FOUCAULT, 1994), pantopia (SERRES, 1998) – formam um campo conceitual que pode ser utilizado para fundar uma verdadeira teoria das novas tecnologias como rede de comunicação biopolítica. Um dia, os teóricos e historiadores da comunicação vão se dar conta de que pensar em rede não é apenas pensar na rede, que ainda remete à idéia de social ou à idéia de sistema, mas é, sobretudo, pensar a comunicação como lugar da inovação e do acontecimento, daquilo que escapa ao pensamento da representação. Neste dia, a comunicação terá se tornado, para além de suas tecnologias, fundamento. não haverá mais astronautas, mas telerrobôs: o espaço não se estenderá mais. O momento de inércia sucederá ao deslocamento contínuo no dia em que todos os deslocamentos se concentrarem em um só ponto fixo, em uma imobilidade que não é mais a do não-movimento, mas a da ubiqüidade potencial, a da mobilidade absoluta que anula seu próprio espaço à força de o tornar tão transparente. Virilio chegou mesmo, a exemplo do Flâneur, de Benjamin, a criar um personagem conceitual, o paralítico tecnologizado, atingido pela inércia polar dos veículos ciberespaciais. Na França, o interesse pela representação em rede surgiu nos anos 1960 na filosofia e nas ciências humanas, em trabalhos que estabeleciam uma relação complexa e variável com o estruturalismo. O pensamento reticular resultante estendia uma face para as matrizes ou estruturas gerais (mas que se impunham como uma forma a priori) e uma outra para um empirismo radical. A idéia de que o horizonte de nossos trajetos é o ciberespaço, o último veículo, ligado em rede e podendo ver e agir a distância, ponto de concentração de todo o espaço anulado pela ubiqüidade absoluta, é, no mínimo, uma utopia tecnológica e um contra-senso históricocultural. Utopia tecnológica que supõe que as diferentes técnicas e mídias possam se fundir em uma interface única cada vez mais transparente que representaria uma convergência de todas as interfaces. Além disso, é desconhecer a história da técnica, uma vez que toda a história da técnica – da invenção do fogo à invenção da roda, passando pela cadeira, automóvel, elevador e escada rolante – leva a uma sedentarização do corpo. Na verdade, muitos dos filósofos e teóricos franceses contemporâneos estão de acordo com o fato de que as máquinas infocomunicacionais estariam engendrando profundas transformações nos dispositivos de produção das subjetividades. O último veículo Virilio produziu uma série de ensaios sobre o espaço em sua relação com a velocidade dos veículos de transporte e os veículos audiovisuais. Os veículos móveis e audiovisuais transformam radicalmente as nossas relações com o espaço. Por um lado, o espaço estaria se transformando em função da aparição de novos meios de transporte e de comunicação. O espaço é outro se vamos a cavalo, de carro ou de avião, se utilizamos a escrita ou a telecomunicação. Tudo se passa como se o espaço do enclausuramento estivesse cedendo lugar ao ciberespaço, o qual, segundo Virilio, significa o fim do espaço, a sua anulação mesma: se o final do século XIX e o início do século XX assistiram ao advento dos veículos ferroviário, rodoviário e aéreo, o nosso fim de século tem assistido a grandes mudanças com o advento do veículo audiovisual e veículos de telepresença: a televisão, a videoconferência, as redes telemáticas, o ciberespaço. O espaço, os acontecimentos, as informações e as pessoas são condicionados, cada vez mais, pela telecomunicação, assim como a transparência do espaço de nossos percursos tende a ser substituída pelas articulações do veículo audiovisual, último horizonte de nossos trajetos, cujo modelo mais perfeito é o ciberespaço. Segundo Virilio, chegaremos ao tempo em que não haverá mais campo de tênis, mas um campo virtual; não haverá mais passeio de bicicleta, mas exercícios em um home-trainer; não haverá mais guerra, mas videogame; 102 Para nós, o ciberespaço é apenas o mais novo espaço de jogos da humanidade, que inaugura uma nova arquitetura, a arquitetura da informação. De acordo com Walter Benjamin, se cada sociedade tem seus tipos de máquinas, é porque elas são o correlato de expressões sociais capazes de fazê-las lhes fazer nascer e delas se servir como verdadeiros órgãos da realidade nascente. Contra-senso cultural que supõe que a cultura possa existir sem a natureza e sem a técnica. Que inteligência seria apenas a de nossos cérebros, sem ser também a de nossas línguas ou a da luminescência do universo? Onde estão a natureza, a cultura e a técnica aqui? Onde está o real, ou melhor, o virtual, quando se diz que o universo está escrito nessa língua que é a geometria? Onde está o virtual, ou melhor, o real, quando se diz que o nosso olho é produzido pela luz do sol? Como conciliar a geometria (o inteligível) e a cor (o sensível) nessa imagem que não pára de se algebrizar, ou melhor, de se temporalizar, desde a Tavoletta de Brunelleschi? Cabe aqui a pergunta: onde se encontram os fenômenos? Fora das redes, dirão os realistas. Dentro das redes e linguagens, dirão os idealistas. Como disse Latour em seu artigo: “Infelizmente os fenômenos circulam através do conjunto que compõe as redes, e é unicamente sua circulação que nos permite verificá-los, assegurá-los, validá-los”. Espaço: heterotopia e pantopia Claro que o ciberespaço ou o espaço da informação não significa a anulação do espaço, mas apenas a realização tecnológica do espaço topológico, o espaço da justaposição do próximo e do longínquo, do simultâneo. Ou seja, com o ciberespaço, viveremos cada vez mais o espaço como sendo espaço das relações de vizinhança, espaço de conexões, heterotópico e pantópico. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.101-105, jan.-jun., 2007 FOUCAULT (1994), em uma conferência intitulada “Espaços Outros”, fez uma breve história do espaço no Ocidente, para nela situar as questões relançadas pelo processo de dessacralização ocasionado pelo espaço contemporâneo, espaço da informação, das memórias estocásticas e das redes. Segundo ele, ao contrário do que possa parecer, a nossa época é obcecada pelo espaço: vivemos a época do simultâneo, da justaposição, do próximo e do longínquo. apenas a heterotopia que exprime a topologia das redes – sejam elas mais ou menos centradas, mais ou menos velozes, mais ou menos extensas – que os computadores e as redes telemáticas vão potencializar (a descentralização do computador não rompe com a lógica da heterotopia, pois é apenas um efeito da sua velocidade), mas a lógica dos algoritmos fractais, dimensões intermediárias ou híbridos entre as paisagens singulares e os modelos da ciência. FOUCAULT (1994) descreve três tipos de espaço. Na Idade Média, o espaço de localização era um conjunto de lugares hierarquizados. Este espaço entra em crise com Galileu e a ciência moderna. A descoberta mais importante de Galileu não foi a de que a terra girava em torno do sol, mas o fato de ter constituído um espaço infinitamente aberto. Ou seja, o lugar das coisas são apenas pontos em seu movimento. O espaço como extensão substitui a localização. Em nossos dias, o espaço torna-se topológico: passa a ser definido pelas relações de vizinhança entre os pontos e elementos, e forma séries, tramas, grafos, diagramas, redes. O trabalho de Latour e de Callon, mais ainda do que o de LÉVY (1993), leva-nos a perceber que as tecnologias de informação e comunicação podem ser entendidas como tecnologias da inteligência menos por projetar ou exteriorizar a riqueza e complexidade dos processos cognitivos do que por revelar o quanto sua complexidade deriva não apenas da riqueza de nossos sentidos e faculdades, mas também dos objetos, suportes, dispositivos e tecnologias que nos circundam e compõem uma rede sociotécnica de grande complexidade. O que está em jogo é menos a função protética da tecnologia – que, de fato, muitas vezes serve como uma extensão de habilidades cognitivas dadas (uma prótese que prolonga e potencializa nosso pensamento e seus processos de tratamento e de transmissão das informações) – do que um processo contínuo de delegação e distribuição das atividades cognitivas que formam uma rede com os diversos dispositivos não-humanos. Para SERRES (1998), a relação de mistura e conexão criada pela rede forma uma pantopia: todos os lugares em um só lugar e cada lugar em todos os lugares. O termo pantopia possui uma lógica muito próxima da do espaço heterotópico, o qual aponta para o desejo da reunião de todos os lugares em um só lugar, como em um museu de história natural, que dispõe lado a lado pássaros que pertencem a lugares e épocas distintas. É exatamente esse local de acumulação do mesmo enquanto outro, que nos leva a dizer, quando estamos na rede, que estamos aqui e lá ao mesmo tempo, e que caracteriza a heterotopia pósmoderna. A heterotopia está longe de ser ameaçada pelo espaço da hipermídia e da rede, cuja lógica é a mesma: co-presença topológica, tramas das redes. Se a experiência do ciberespaço está destinada a nos transformar verdadeiramente, não é porque ela vai substituir a realidade por uma realidade cibernética, uma realidade simulada, mas porque o ciberespaço coloca em prática e potencializa o processo de heterotopia descrito por FOUCAULT (1994). As redes de transformação Tomemos como exemplo a imagem de rede que nos fornece Latour: uma coleção de pássaros empalhados em uma estante de um museu de história natural produz uma heterotopia que permite ao pesquisador compará-los e analisá-los longe da confusão dos ecossistemas naturais em que se encontravam. A coleção é como o centro, o nó, o campo gravitacional que produz um novo arranjo entre o próximo e o longínquo: pássaros “locais” são justapostos a pássaros da mesma espécie trazidos do mundo inteiro. Comparada com a situação inicial, em que cada animal vivia em seu ecossistema singular, trata-se de uma perda e uma redução enorme, pois seria impossível reproduzir essa realidade. Mas, se comparada com a confusão de uma floresta tropical, de onde dificilmente se poderia deduzir um novo saber, que amplificação extraordinária! Na verdade, essa estante é, como veremos abaixo, não Por que transformar o mundo em informação? Porque a informação permite resolver de forma prática – por meio de operações de seleção, de extração, de redução e de inscrição – o problema da presença e da ausência em um lugar. A informação estabelece uma interação material entre o centro e a periferia, o que deve ser produzido para que a ação a distância sobre ela seja mais eficaz. Como disse Latour em seu artigo: “desde que uma informação goza das vantagens do inscrito do cálculo, da classificação, do superposto, disto que se pode inspecionar com o olhar, ela se torna comensurável com todas as outras inscrições pertencentes a realidades até então estranhas umas às outras. Compreendemos melhor, hoje, este fenômeno, porque utilizamos todos computadores e redes hipertextuais que nos permitem combinar, traduzir, integrar desenhos, textos, fotografias e gráficos, até então separados no espaço e no tempo.” (LATOUR, 2004) A rede é, portanto, a imobilidade necessária para recolher o que deve nela transitar. Consideremos a topologia especial dessas redes. Redes de transformação fazem chegar aos centros de cálculos, por uma série de deslocamentos, um número cada vez maior de informações. No início, o computador surgiu como uma ferramenta para ajudar o homem a processar o aumento exponencial de informações que deveriam ser tratadas. Imagine o trabalho que teríamos hoje se não dispuséssemos de computador para calcular os índices econômicos e socioculturais. As informações circulam, mobilizando toda a rede de intermediários que se estende do centro à periferia, e, ao fazê-lo, criam uma espécie de tensão que mantém a rede coesa. A tensão é um dos parâmetros da rede, ao RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.101-105, jan.-jun., 2007 103 lado do fluxo, da velocidade e da intensidade. É apenas quando seguimos os traços da circulação de informação, diz Latour em seu artigo, que atravessamos a distinção usual entre os signos e a realidade: “não navegamos apenas no mundo, mas também nas diversas matérias de expressão”. A ciência e a tecnologia são, para Latour, uma megarrede heterogênea que mobiliza homens e coisas e cria um campo de tensão e forças que os hibridiza. É impossível compreender qualquer rede sem conhecer as instituições, os veículos materiais e os atores que intermedeiam a relação entre periferia e centro das redes. O conjunto das redes de transformação e seus centros dotam aqueles que os dominam de uma vantagem enorme, na medida em que eles estão ao mesmo tempo afastados dos lugares e interligados aos fenômenos por uma série reversível de transformações. Os centros da rede nada mais são do que os espaços onde a intensidade heterotópica é maximizada e pode ser capitalizada como tantas ações potenciais sobre o mundo. Se quisermos compreender como certas visões de mundo se impõem e se tornam dominantes, como nos apegamos às coisas, aos procedimentos, a certos comportamentos, devemos analisar o processo de transformação do mundo em informação nas redes, sejam elas quais forem. A verdade sobre Deus, a verdade sobre a natureza e uma certa tendência na arte não existem fora das redes em que circulam, como se fossem fenômenos que falariam por si. A ciência não se aplica a partir das idéias de seus gênios. A ciência replica-se, como o social, mas para que isso ocorra é preciso investimentos enormes. É verdade que as tecnologias apenas tornam mais visível a infraestrutura da rede da ciência: “Quando medimos as informações em bits e bauds, quando somos assinantes de um banco de dados, quando, para agir e pensar, nos conectamos a uma rede de comunicação, é mais difícil continuar vendo o pensamento científico como um espírito flutuando sobre as águas. Hoje a razão, que nada tem de natural, se assemelha muito mais a uma rede de comunicação, uma rede de telemática do que às idéias platônicas”. (LATOUR, 2004) cotomias do inteligível e do sensível, do discursivo e do extradiscursivo, do sujeito e do objeto. O conceito de rizoma foi criado por Deleuze a partir da concepção que Barthes tinha do livro, e foi utilizado por LÉVY (1993) como um novo paradigma para entender as redes hipertextuais e as interfaces dinâmicas computacionais. A descrição que BARTHES (1992) faz do texto em S/Z é a descrição que contém todos os princípios fundamentais do hipertexto: a rede não tem unidade orgânica; nela abundam muitas redes que atuam sem que nenhuma delas se imponha às demais; ela é uma espécie de galáxia mutante, com diversas vias de acesso, sem que nenhuma delas possa ser qualificada como principal; os códigos que mobiliza se estendem até onde a vista alcança, são indetermináveis. Essas características das redes podem ser aplicadas aos organismos, às tecnologias, aos dispositivos, mas também à subjetividade. Somos uma rede de redes (multiplicidade), cada rede remetendo a outras redes de natureza diversa (heterogênese) em um processo autoreferente (autopoiesis). O sujeito é um sistema autopoiético e, como todo sistema autopoiético definido por Varela e Maturana, ele se organiza como uma rede auto-referente, que regenera, continuamente por suas interações e transformações, a rede que o produziu, e se constitui como sistema ou unidade concreta no espaço em que existe, especificando o domínio topológico no qual existe como rede. A subjetividade é, como a cognição, o advento, a emergência (enação) de um afeto e de um mundo a partir de suas ações no mundo. Pensar a subjetividade como autopoiesis nos leva a descrever o saber, a razão, a cognição, a inteligência, não como faculdades de um sujeito, uma vez que eles são dimensões que co-emergem com os universos sociais. Por outro lado, estas “capacidades” que co-emergem com o indivíduo em um processo de auto-engendramento não podem ser vinculadas apenas a seu cérebro, mas a seu corpo, que ultrapassa de longe o seu invólucro corporal e se estende até onde se estendem suas redes sociotécnicas, seus hábitos, seus apegos. Notas Do Rizoma à Autopoiesis: rede e subjetividade Como Virgínia Kastrup (KASTRUP, 2004) mostrou muito bem, as redes de transformações de Latour são uma versão empírica e atualizada do rizoma que serve para pensar a criação dos híbridos. Para Latour, de fato, os híbridos emergem da rede como intermediários entre os elementos heterogêneos objetivos e subjetivos, sociais e tecnológicos, saberes e coisas, inteligências e interesses, em que as matérias e as subjetividades são trabalhadas, forjadas, fundidas sem o controle dos métodos ditos objetivos da ciência. O conceito de rizoma criado por Deleuze e Guattari é um conceito fractal, que nos leva a pensar em uma dimensão intermediária que nos ajuda a superar as di104 1. O presente artigo é parte de uma pesquisa sobre conceito de dispositivo financiada pelo CNPq como bolsa de produtividade em pesquisa intitulado “Do dispositivo do cinema ao cinema do dispositivo”. Referências bibliográficas BARTHES, R. S/Z. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991. CHARTIER, R. A ordem dos livros. Brasília: UnB, 1994. DELEUZE, G. e Guattari, F. Mil platôs. v.1-5, São Paulo: Ed. 34, 1995. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.101-105, jan.-jun., 2007 DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: 34, 1992. FOUCAULT, M. Dits et écrits: 1954-1988. Paris: Gallimard, 1994. GUATTARI, F. Caosmose. Rio de Janeiro: 34, 1992. GUATTARI, F. Produção de Subjetividade. In: PARENTE, A. (org.) Imagem-máquina. 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Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.101-105, jan.-jun., 2007 105 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Pesquisas em andamento As organizações de pacientes como atores emergentes no espaço da saúde: o caso de Portugal Marisa Matias João Arriscado Nunes Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal [email protected] Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal [email protected] Ângela Marques Filipe Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal [email protected] Resumo As associações e organizações de pacientes emergiram em diferentes partes do mundo como atores centrais na abertura de novos espaços de participação e deliberação no campo da saúde, desenvolvendo formas de intervenção inovadoras, atuando como mediadoras entre participantes heterogêneos no campo da saúde, promovendo e organizando plataformas e coalizões à escala nacional e transnacional e envolvendo-se ativamente em áreas antes reservadas a especialistas e profissionais, como a pesquisa. Este texto apresenta uma pesquisa em curso sobre as associações de pacientes em Portugal, como parte de uma pesquisa mais ampla à escala européia dos novos atores no espaço da saúde. Palavras-chave Associações de pacientes, saúde, pesquisa, intervenção, Portugal Ao longo das últimas décadas, as associações e organizações de pacientes têm aparecido em diferentes partes do mundo – Europa, América do Norte e América Latina – como novos atores coletivos com um papel central na transformação do campo da saúde. Essa transformação passa pela abertura de novos espaços de participação para os pacientes e para os que a eles prestam cuidados fora do âmbito profissional da medicina e da enfermagem, de modo a promover a defesa dos direitos e, em particular, do direito efetivo dos pacientes ao acesso a cuidados de saúde. Além disso, as associações e organizações de pacientes têm desenvolvido práticas inovadoras de mediação entre participantes heterogêneos no campo da saúde, como os profissionais e as instituições de prestação de cuidados, os governantes e os fazedores de políticas, os pesquisadores e as instituições de pesquisa em biomedicina e saúde pública, os prestadores de cuidados não convencionais e a indústria farmacêutica RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.107-110, jan.-jun., 2007 107 05 (RABEHARISOA, 2003; 2006; RABEHARISOA et al., 2002; BARBOT, 2002; GAUDILLIÈRE, 2002; DODIER, 2003; BROWN et al., 2005). A promoção e organização de plataformas e de coalizões entre associações e entre estas e outros atores, tanto em cada país como em escala transnacional – como ocorre no espaço da União Européia –, constituem uma das formas mais eficazes de ampliar a visibilidade e a capacitação das associações de pacientes enquanto atores políticos. Uma outra forma de atuação das associações diz respeito ao seu envolvimento em atividades que são tradicionalmente consideradas como reserva de pesquisadores, de especialistas e de profissionais, como é o caso da pesquisa biomédica. Muitas associações têm procurado intervir ativamente na redefinição de prioridades de pesquisa, na organização de ensaios clínicos, na angariação de fundos para financiamento de pesquisa sobre doenças raras ou doenças crônicas e na própria produção de conhecimento sobre situações e condições sobre as quais existe escassa ou nula produção científica (EPSTEIN, 1996; 2000; RABEHARISOA et al., 2004). A pesquisa relatada a seguir insere-se num projeto mais amplo (MEDUSE – Governance, Health and Medicine: Opening Dialogue between Social Scientists and Users), financiado pela Comissão Européia no âmbito do 6º Programa Quadro de Apoio à pesquisa. Trata-se de uma parceria entre a École des Mines de Paris (França), a Lancaster University (Reino Unido), o Centre National de la Recherche Scientifique (França), a Université de Liège (Bélgica) e o Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). O projecto MEDUSE tem como objetivo central a promoção do diálogo entre cientistas sociais e atores sociais não acadêmicos no domínio da saúde no espaço europeu (RABEHARISOA et al., 2006). O trabalho em curso, a cargo da equipe do Centro de Estudos Sociais, procura inventariar e analisar o cenário das associações de pacientes e/ou pessoas portadoras de deficiência em Portugal e a sua comparação com o caso da França. Uma segunda tarefa envolve a colaboração com as associações na organização de um espaço europeu de diálogo e de deliberação sobre políticas de saúde. Os dois pontos de partida desta pesquisa são, em primeiro lugar, a relativa fraqueza histórica das associações de pacientes em Portugal (uma situação, aliás, extensiva ao conjunto da atividade associativa nesse país) (SANTOS, 1994) e, em segundo lugar, a emergência recente de novas associações e movimentos que se têm afirmado como protagonistas no campo da saúde. A inexistência de informação sistemática que permitisse identificar e delimitar este universo obrigou à construção de uma base de dados sobre as associações e as suas características, e a pesquisa de tipo qualitativo que permitisse uma caracterização pormenorizada da sua atividade. Tratando-se de um fenómeno emergente, não é viável a delimitação a priori do universo das associações de pacientes. Esta situação obrigou à definição de uma metodologia que incluiu três passos: uma pesquisa pre108 liminar de sites na internet, de informação publicada na mídia e de uma amostragem em “bola de neve” a partir da identificação de informantes privilegiados, tanto membros ou dirigentes de associações como profissionais e pesquisadores com elas envolvidos, com vista à constituição de uma base de dados. No momento presente, o universo das associações assim identificadas e caracterizadas é de 101. O segundo passo consistiu na aplicação a essas associações de um questionário, tendo sido recebidas 43 respostas, que permitiram caracterizar os respondentes em detalhe com respeito à sua data de constituição, organização, corpos dirigentes, número de membros, atividades desenvolvidas, publicações e outros materiais, envolvimento em pesquisa, parcerias nacionais e internacionais, fontes de financiamento e meios de informação e divulgação utilizados. Finalmente, foram realizados dois focus groups com representantes de 11 associações de pacientes previamente selecionadas, de forma a maximizar a diversidade das suas características, da sua composição e dos seus objetivos. Essa seleção foi realizada com base na informação contida na base de dados. Da análise preliminar do inquérito confirma-se que a esmagadora maioria (90,8%) das associações atualmente existentes com atividade e que responderam ao inquérito foram criadas já após a restauração do regime democrático em Portugal, ou seja, entre 1974 e 2006, tendo cerca de 50% delas menos de dez anos de existência. Gráfico 1 – Associações de pacientes por anos de existência. Fonte: Base de dados do projecto MEDUSE É igualmente relevante assinalar que cerca de metade (48,6%) tem menos de 300 associados e aproximadamente dois terços (67,6%) têm menos de 500 associados, sendo a amplitude de 12 a 12.549 associados. Gráfico 2 – Associações de pacientes por nº de associados individuais Fonte: Base de dados do projecto MEDUSE RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.107-110, jan.-jun., 2007 A informação incluída na base de dados está em curso de exploração, de forma a permitir uma caracterização pormenorizada do universo das associações de pacientes em Portugal. No que respeita aos focus groups, estes foram centrados em três grandes temas: o novo papel social e político para as associações de pacientes; a internacionalização das associações de pacientes, especialmente no espaço europeu; e, finalmente, o envolvimento das associações de pacientes na pesquisa e na reconfiguração das práticas dos profissionais e instituições de saúde. Aos participantes foi pedido que explicitassem as suas posições em relação a estes três temas. O desenho do procedimento permitiu que fosse realizado um diálogo entre os participantes, de forma a clarificar a diversidade das suas posições, os seus pontos de convergência e as suas divergências. Cada um dos focus groups foi moderado por um membro da equipe de pesquisa, registrado em áudio e transcrito. É possível enumerar quatro resultados preliminares dessa pesquisa. O primeiro diz respeito à ainda limitada colaboração entre associações, apesar de uma forte convergência de alguns dos seus objetivos, nomeadamente no que toca à defesa perante o Estado do direito à saúde e à garantia de prestação de cuidados adequados e de acesso a medicamentos para portadores de doenças crônicas ou de deficiência. Um segundo resultado é a forte internacionalização de grande parte das associações, que em alguns casos se constituíram mesmo a partir do apoio de federações ou plataformas internacionais, e de modelos inspirados em congêneres de outros países. Em terceiro lugar, é importante registrar o reconhecimento da importância da pesquisa e da colaboração de profissionais e pesquisadores, apesar de os escassos recursos financeiros e organizacionais e a dependência em relação ao voluntariado que marca a maior parte das associações impedir que esse reconhecimento se transforme muitas vezes em envolvimento efetivo. São relevantes, contudo, algumas colaborações com instituições de pesquisa, nomeadamente nos casos em que estão envolvidas doenças raras ou doenças genéticas sem terapias disponíveis, e em que muito do que é o conhecimento especializado sobre a doença depende crucialmente da informação produzida a partir dos relatos e registos da experiência de viver com a doença ou de cuidar daqueles que são afetados por esta. Finalmente, é manifesta a existência de associações que defendem e promovem o que poderia ser descrito como a desmedicalização de situações que têm sido incluídas entre as que estão submetidas à autoridade e à competência dos profissionais de saúde. É o caso, por exemplo, das associações que defendem a humanização do parto e as terapias dirigidas à infertilidade, e também das associações de portadores de deficiência, que procuram sobretudo promover a questão da deficiência como um problema de reconhecimento de direitos ligados à sua diferença. Uma situação que exige uma abordagem específica é a dos problemas caracterizados como ligados à saúde mental, em que é reconhecível uma tensão entre uma orientação “medicalizadora”, que exige a ampliação do acesso a cuidados e a medicamentos, e uma orienta- ção “desmedicalizadora”, que procura lidar com essas situações em termos de recusa da sua caracterização como doença. Este processo de pesquisa evoluiu para uma forma de pesquisa-ação participativa (FALS-BORDA, 2001; AUGUSTO et al., 2005) em boa medida devido ao modo como o próprio projeto funcionou para os atores envolvidos, como uma plataforma de encontro e de diálogo, com os pesquisadores atuando como mediadores. Daí que a pesquisa realizada em Portugal obrigue a uma interrogação sobre o que significa o diálogo entre cientistas sociais e outros atores, quais os espaços, os recursos e os procedimentos através dos quais esse diálogo é realizado e a forma como ele é entendido e apropriado pelos participantes. Num domínio como o da saúde, em que a produção de conhecimento não pode evitar lidar com as suas implicações normativas, o papel dos cientistas sociais não pode ser o de observadores distantes. Ele terá de ser repensado como um processo de engajamento que vincula o rigor da produção colaborativa de conhecimentos com uma postura normativa solidária com os que lutam pelos seus direitos, pelo seu reconhecimento e pela construção de um conhecimento socialmente responsável e relevante. Referências bibliográficas AUGUSTO, L. G. S.; FLORENCIO, L.; CARNEIRO, R. M. Pesquisa (ação) em saúde ambiental: contexto – complexidade – compromisso social. Recife: Editora Universitária UFPE, 2005. 148p. BARBOT, J. Les malades en mouvements: La médecine et la science à l’épreuve du sida. Paris: Balland, 2002. 308p. BROWN, P.; ZAVESTOSKI, S. Social movements in health: an introduction. Sociology of Health & Illness, v.6, n.26, p.679-694, Set. 2004. DODIER, N. Les leçons politiques de l’épidémie du sida. Paris: Éditions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2003. 359p. EPSTEIN, S. Democracy, expertise and AIDS treatment activism. In: KLEINMAN, D.L. (Ed.). 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É pesquisador da linha de Comunicação e Documentação da Área de Nutrição do Centro Superior de Investigación en Salud Pública (CSISP), de Valência na Espanha. Também é professor assistente e pesquisador da linha de documentação científica da História da Ciência da Universidad de Alicante. Além disso, é membro dos grupos: Red de Malnutrición en Iberoamericana (Red MeI – CYTED); Comunicação e Documentação Científica aplicada à Nutrição da Sociedad Española de Nutrición Parenteral y Enteral (CDC-Nut SENPE); da junta diretiva da Sociedad Valenciana para el Estudio de la Calidad (SoVEC); do Comitê Científico da Revista Medicina y Seguridad del Trabajo e, assessor do Comitê Editorial da Revista Nutrición Hospitalaria. Jorge Veiga Graduado em Medicina pela Universidad de Salamanca na Espanha (1983), diplomado em Sanidad e mestrado em Pesquisa Clínica pela Escuela Nacional de Sanidad de Madrid (Espanha). Foi diretor da Biblioteca Nacional de Ciencias de la Salud da Espanha onde desenvolveu o Índice Bibliográfico Espanhol de Ciência e da Saúde e o Catálogo Coletico de Publicações Periódicas das Bibliotecas de Ciencias de la Salud Españolas, Biblioteca Virtual en Salud e Scientific Electronic Library Online (SciELO) Espanha, sendo os últimos em colaboração com a BIREME (OPS/OMS), instituição que continua a colaborar na qualidade de consultor. Atualmente é chefe do Serviço de Divulgação Científica da Escuela Nacional de Medicina del Trabajo, sendo responsável pelo Programa de Editorial e redator chefe da Revista de Medicina y Seguridad del Trabajo. É membro do grupo de Comunicação e Documentação Científica aplicada da Sociedad Española de Nutrición Parenteral (CDC-Nut SENPE) e do Centro Superior de Investigación en Salud Pública de Valencia. É também colaborador do projeto de terminologia Médica da Real Academia Española. 110 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.107-110, jan.-jun., 2007 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Pesquisas em andamento O luto na agenda das equipes multiprofissionais de oncologia e cuidados paliativos: apresentação de um Programa de Assistência a Familiares na Universidade Federal de São Paulo João Paulo Consentino Solano Marcela Alice Bianco Departamento de Medicina e Projeto de Proteção ao Luto - Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo, Brasil [email protected] contato@casadahumanidade. org.br Projeto de Proteção ao Luto - Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo, Brasil Renata Moraes Ferreira Projeto de Proteção ao Luto - Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brasil Resumo Nos últimos anos tem sido chamada a atenção para o fato de que o conceito de cuidados paliativos deve ser ampliado e de que as reações de luto dos familiares dos pacientes sejam incluídas como foco de atenção por equipes multiprofissionais. Nos hospitais, o luto afeta o paciente que recebe a notícia de ter um prognóstico reservado, mas também afeta seus familiares e as equipes técnicas que do paciente se acercam. Pelo seu potencial de complicar-se e causar prejuízos físicos, psíquicos e comunitários, o luto já foi referido como um problema de saúde pública, capaz de onerar as redes assistenciais de forma silenciosa. O presente trabalho tem por objetivos localizar o problema do luto nas equipes hospitalares de cuidados paliativos e de oncologia, e apresentar um programa de assistência grupal a familiares enlutados que tem contribuído para a melhoria da qualidade da comunicação e veiculação de informações em um hospital-escola de São Paulo. Palavras-chave Luto, cuidados paliativos, oncologia, assistência multiprofissional, terminalidade RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.111-116, jan.-jun., 2007 111 O ano de 2002 poderá ser lembrado como um divisor de águas na história do desenvolvimento do paliativismo no mundo todo. Isto porque, em 2002, documento emitido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) cunhou um novo conceito para Cuidados Paliativos, que veio a substituir o conceito anterior de 1990. O novo conceito, mais abrangente, pode ser resumido ressaltando-se seus aspectos nucleares: cuidados paliativos passaram a ser entendidos como uma abordagem que visa melhorar a qualidade de vida de pacientes e de seus familiares ao enfrentarem doença crônica, progressivamente debilitante e fatal, através da prevenção e alívio dos sofrimentos a ela inerentes, por meio do diagnóstico precoce e impecáveis avaliação e tratamento da dor e de outros problemas físicos, psicossociais e espirituais (SEPULVEDA et al., 2002; WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002; 2004). A leitura dos documentos da OMS permite depreender que o alargamento do conceito de Cuidados Paliativos se deu em quatro dimensões. Em primeiro lugar, não apenas os pacientes terminais são os elegíveis para receber cuidados paliativos, mas todos os pacientes com doenças crônico-degenerativas, progressivamente debilitantes e fatais. Isto significa que tanto pacientes com uma neoplasia fora de possibilidades terapêuticas, como aqueles com síndrome de imunodeficiência humana adquirida (Aids), com falência cardíaca, doença pulmonar obstrutiva crônica, insuficiência renal crônica, doenças neurodegenerativas, os seqüelados de traumas craniencefálicos e acidentes vasculares cerebrais, pacientes com fibrose cística, entre outros, passam a ser alvo dos cuidados paliativos – e já a partir do diagnóstico. Em segundo lugar, ficou determinado que não só às necessidades físico-sintomatológicas dos doentes, mas também às suas demandas psíquicas, sociais e espirituais deve ser dada atenção. Em terceiro lugar, tanto o paciente como sua família passam a ser alvo do planejamento e do benefício da assistência. Em quarto lugar, o luto dos familiares passa a ser foco de atenção e assistência, tanto antes como depois da morte do paciente. O luto deve ser definido como um conjunto de reações emocionais, físicas, comportamentais e sociais que aparecem como resposta a uma perda – seja uma perda real ou fantasiosa (um “medo de perder”), seja uma perda por morte ou pela cessação/diminuição de uma função, possibilidade ou oportunidade (PARKES, 1998a). Trabalhos conduzidos nos países mais desenvolvidos têm colocado as intervenções com enlutados como um importante problema de saúde pública, devido às implicações sobre a saúde geral dos sobreviventes (YOUNG et al., 1963; STROEBE et al., 1993; PARKES, 1998b; KATO, 1999). Conseqüências adversas à saúde física incluem prejuízo temporário da imunidade corporal, aumento no número de consultas médicas, hospitalizações, cirurgias e aumento da taxa de mortalidade das populações enlutadas, quando comparadas à população geral (YOUNG et al., 1963; STROEBE et al., 1993; PARKES, 1998b). Conseqüências à saúde mental têm sido descritas em termos de variados níveis de depressão, ansiedade, desespero, descrença e/ou “paralisia emocional” (BOWLBY, 1961; PARKES, 1998b). 112 Parece haver um atual consenso de que, entre os extremos entre uma reação de luto adaptada, autolimitada, não merecedora de intervenção terapêutica, de um lado, e as síndromes psiquiátricas de outro lado, há uma população intermediária de indivíduos que apresentarão uma síndrome de luto complicado – indivíduos que merecerão tratamento que os alivie de intensos e deletérios sintomas emocionais (PRIGERSON 1997; 1999; SHEAR, 2001). Na área da saúde, caso sejam observadas as várias maneiras pelas quais as pessoas estão sendo afetadas pelo luto, muito poderá ser feito para a melhoria da comunicação entre pacientes, familiares e técnicos. Em hospitais gerais, temos que observar o luto que incide em pelo menos quatro situações (SOLANO, 2006): 1. luto do paciente, quando recebe a notícia de estar com alguma doença incurável, ou percebe a progressão inexorável de suas limitações e vê que a morte se aproxima; 2. luto da família ao acompanhar, portanto, o declínio funcional de um de seus membros; 3. luto dos sobreviventes (familiares e amigos) após a morte do paciente; 4. luto da equipe técnica que cuida do paciente. No presente artigo, além de nos postarmos junto à OMS ao advogar que a assistência ao luto precisa estar incluída nas atividades dos paliativistas e oncologistas, iremos apresentar um programa de apoio a enlutados que se originou dos contatos com os familiares dos pacientes que vimos atendendo no Setor de Cuidados Paliativos da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). A experiência de trabalhar em equipe multiprofissional de Cuidados Paliativos precocemente demonstrou que urgia implantarmos um programa de apoio em saúde mental aos familiares e cuidadores dos pacientes assistidos pelo setor. Tal programa foi fundado em outubro de 2003 e recebeu o nome de PROLU - Projeto de Proteção ao Luto. A idéia foi acolhida pela Reitoria da Universidade, que disponibilizou um anfiteatro no Centro de Assistência e Ensino em Enfermagem (CAENF), localizado a 400 metros da Universidade. Cuidadores, familiares e amigos de todos os pacientes que eram encaminhados ao Setor de Cuidados Paliativos (na sua maioria portadores de câncer em estado avançado, inseridos em famílias com baixa renda e residentes em bairros periféricos de São Paulo) tornaram-se elegíveis de receber um convite para participar das atividades do PROLU. A essas pessoas foram oferecidas duas atividades assistenciais seqüenciais: (a) participar de um grupo onde se encontravam com outros familiares e cuidadores de pacientes fora de possibilidades terapêuticas de cura (grupo com cuidadores); e (b) participar, após a morte de seu ente querido, de um grupo com outros enlutados (grupo com enlutados). Os objetivos das atividades (a) e (b) são mostrados no Quadro 1. Um cuidador ou familiar que freqüentasse a atividade (a) era instruído quanto ao fato de que, após a morte de seu enfermo, seria convidado a participar do grupo com outros enlutados (atividade b). No entanto, o grupo RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.111-116, jan.-jun., 2007 com enlutados também era alimentado por clientes que nunca tinham participado da atividade a, pois, após cerca de duas semanas do óbito de um paciente, uma carta de condolências era enviada e pelo menos um telefonema era feito à família. O quadro 2 apresenta o modelo de carta de condolências adotado pelo PROLU. Quadro 1 – Objetivos das atividades do PROLU – Projeto de Proteção ao Luto da Universidade Federal de São Paulo (a) Grupo com cuidadores Treinar pessoal não-especializado para assistência domiciliar a enfermos com alto grau de dependência, familiares ou pertencentes à comunidade. (b) Grupo com enlutados Favorecer que familiares de pacientes que tinham morrido aos cuidados do hospital da universidade (Hospital São Paulo) se encontrassem e trocassem as experiências de suas dores. Quadro 2 – Modelo de Carta de Condolências adotado pelo PROLU (*) São Paulo, __ de _________ de ____ À família e aos amigos de ___________________: A equipe de Cuidados Paliativos desta Instituição espera que este momento de pesar que ora vocês estão sofrendo passe o mais breve possível. Queremos agradecer pela confiança que vocês demonstraram ao entregarem um familiar amado seu aos nossos cuidados, e ao permitirem que adentrássemos a intimidade de seu lar. Principalmente, queremos parabenizá-los por terem cuidado de __________ até os seus últimos dias. Sabemos que a batalha foi árdua, e vimos de perto com que coragem e dedicação vocês lutaram. Agora, passada a luta, esperamos que todos nós possamos descansar. Sabemos que, mesmo descansando, a imagem do(a) ___________ vivo(a) não será esquecida. E sabemos que a força que herdamos dele(a) nos ajudará a enfrentar as próximas batalhas junto a nossos semelhantes. Obrigado, e guardem nossos telefones, pois queremos continuar à disposição de vocês. Manter um vínculo de alguns meses entre os familiares e a instituição. Acompanhar o processo de enlutamento dos familiares, selecionando os casos mais graves e __________________________________________ (Assinatura) Setor de Cuidados Paliativos do Departamento de Medicina Universidade Federal de São Paulo os encaminhando para tratamento específico. Treinar líderes de grupos de auto-ajuda para a comunidade. (*) A carta é enviada somente após duas semanas do óbito do paciente e se acompanha de (pelo menos) um contato telefônico no qual se convida a família para conhecer o grupo com enlutados (atividade b). Cada um dos grupos acontecia quinzenalmente, era verbal aberto, tinha duração de 90 minutos, no máximo 12 participantes e era conduzido por um terapeuta principal (psiquiatra) e um terapeuta observador (psicóloga ou assistente social). A freqüência aos grupos era espontânea e não havia limite quanto ao número de pessoas que cada família podia trazer; era permitida a entrada de amigos da família; pessoas com menos de 16 anos não eram convidadas para freqüentar o grupo, mas não eram impedidas de entrar caso comparecessem. A técnica utilizada na condução de cada um dos grupos diferia. O grupo de cuidadores (a) abrigava formato psicopedagógico, com entrega de informações práticas que ajudassem a cuidar de um enfermo em casa. Já o grupo com enlutados (b) objetivava oferecer apoio psicoterápico, sendo o estudo do processo de enlutamento ativamente buscado e os participantes estimulados a investirem em seu trabalho de luto; os casos de luto complicado eram identificados pelo terapeuta principal e abordados com medidas adicionais (farmacoterapia ou encaminhamento para serviço de saúde mental, onde vínculos de terapia individual pudessem ser constituídos). A atividade (a) falhou em constituir-se porque um grupo de trabalho não foi formado ao longo do tempo. Nenhuma reunião contou com um número de participantes superior a três, e houve várias para as quais não houve presença. A freqüência altamente irregular dos poucos participantes inviabilizou qualquer tentativa de mensuração de resultados. A atividade (b) tem acontecido desde o início do projeto (outubro/2003), com uma interrupção entre junho e outubro de 2004, por motivo de viagem do terapeuta principal, e outra entre janeiro e outubro de 2006, para reforma de um novo espaço. Além dos encontros quinzenais, cinco “eventos sociais” foram promovidos (quatro comemorações de Natal e uma “despedida” do terapeuta), com grande comparecimento de ex-participantes. Até o momento, 56 enlutados foram recebidos nos grupos. Seis casos de luto complicado (11%) foram identificados e foram ou estão sendo tratados. O quadro 3 mostra os critérios diagnósticos utilizados no PROLU para identificar casos de luto complicado (ou patológico), uma categoria nosográfica cuja inclusão na próxima ver- RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.111-116, jan.-jun., 2007 113 são (quinta) do Diagnostic and Statistical Manual for Mental Disorders (DSM-V) está sendo cogitada (PRIGERSON 1999). A partir de dezembro de 2004, o serviço se tornou disponível para quaisquer pacientes da UNIFESP e para o público em geral. Famílias enlutadas têm freqüentemente se mostrado confortadas pela carta de condolências que recebem. Nenhuma mensuração objetiva do impacto deste procedimento foi feita até o momento, porém. Quadro 3 – Proposta de PRIGERSON et al. para inclusão da categoria de Luto Complicado no DSM-V Critério A: perda de um ser amado por morte, seguida de reação com pelo menos três dos seguintes: - pensamentos intrusivos sobre o morto; - ânsia pelo reencontro; - comportamento de busca pelo morto; - vivência de solidão como resultado da morte. Critério B: pelo menos quatro dos seguintes: - vivência de falta de objetivos ou valoração do futuro como fútil; - vivência subjetiva de anestesia emocional, desligamento do mundo ou de perda da responsividade emocional; - dificuldade para aceitar a perda; - sentimento de vida vazia ou sem sentido; - sentimento de ter perdido parte de si mesmo (“morreu junto”); - colapso da visão de mundo; - repetição de sintomas (ou hábitos de risco) do morto; - excessiva irritabilidade, amargura ou raiva em relação ao ocorrido. Critério C: pelo menos dois meses de duração. Critério D: o distúrbio causa significativo prejuízo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. Fonte: Adaptado de SOLANO 2006. Tradução: João Paulo Consentino Solano Impõe-se perguntar por que houve falha na intervenção (a). É pertinente levantar a hipótese de que famílias de baixa renda, moradoras de regiões longínquas na periferia de uma grande metrópole e que estão tentando cuidar de seu enfermo em casa (como é solicitado pela equipe de Cuidados Paliativos) encontrem dificuldade para deslocar um familiar/cuidador quinzenalmente ao hospital – pois isto poderia deixar o enfermo, por meio período do dia, sem cuidador e causar um acréscimo à 114 sobrecarga emocional e econômica a que tais famílias já estão expostas. O grupo com enlutados (atividade b) constituiu-se de pessoas que tinham perdido um ente querido e que foram convidadas para o grupo pelo mesmo profissional que tinha dado assistência domiciliar ao enfermo, um dos autores deste artigo. Esses sujeitos sabiam que este profissional seria o mesmo que conduziria o grupo com enlutados. Ao todo, 38 famílias receberam o convite para vir ao grupo. Vinte e sete famílias atenderam (taxa de resposta de 70%), gerando a freqüência aos grupos de 56 sujeitos enlutados. Entre junho e setembro de 2004, o grupo interrompeu suas atividades por motivo de força maior, e ficou claro que a partir de outubro de 2004 uma segunda fase na história do grupo se iniciara: a maior parte dos enlutados não voltaria para a continuação do trabalho, a despeito de terem sido contatados por telefone e correio. Após considerável ponderação entre os terapeutas, entendeu-se que não se deveria insistir nos convites, já que isto poderia significar a emissão de mensagens ambíguas quanto à capacidade desses ex-clientes cuidarem de seus trabalhos de luto – agora sem a ajuda do grupo. Esta segunda fase na história do grupo pode ter significado, na verdade e simplesmente, que um novo grupo se formou, pois houve renovação de quase todos os membros assíduos. Grupos psicoterápicos com enlutados, em geral, podem seguir duas grandes linhas técnicas: uma que preza mais a expressão emocional dos membros e outra que privilegia as ações com que os membros devem modificar a realidade interna e externa para que seu trabalho de luto vá-se consolidando. Uma terceira opção técnica ao trabalhar com os grupos resulta da mescla das duas estratégias de abordagem. Esta é a técnica utilizada no PROLU, por achar-se que sua inerente flexibilidade pode acolher melhor as oscilações de demandas de um grupo aberto de psicoterapia (CONGRESSO INTERNACIONAL DE TANATOLOGIA E BIOÉTICA, 2005). A opção de trabalhar com grupos de enlutados numa casa fora do hospital – embora casual a princípio – mostrou-se benéfica, pois muitas famílias que perderam entes queridos, após meses ou anos de acompanhamento nas várias enfermarias e ambulatórios do hospital, hesitariam, conforme sugerido na literatura especializada, em continuar freqüentando os mesmos espaços nas primeiras semanas ou meses de enlutamento (PARKES, 1998a; CONGRESSO INTERNACIONAL DE TANATOLOGIA E BIOÉTICA, 2005). Desde dezembro de 2004, pessoas têm sido incluídas no grupo, ainda que não oriundas das famílias acompanhadas pelo Setor de Cuidados Paliativos. Até abril de 2005, 56 pessoas foram atendidas pelo PROLU, das quais oito tomaram conhecimento do serviço através da mídia. Ao final do primeiro semestre de 2006, foi feita uma tentativa de mensurar o impacto da intervenção por meio de entrevistas aplicadas a todos os participantes e ex-participantes da atividade. Os resultados dessa avaliação serão apresentados em outro trabalho. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.111-116, jan.-jun., 2007 Alguém já estimou que, para cada pessoa que morre, cinco parentes, amigos íntimos ou amores ficam de luto (ZISOOK, 2000). O que significa que qualquer pessoa envolvida em Oncologia e Cuidados Paliativos deve saber que encontrará muito mais reações de luto ao redor de seu paciente do que, propriamente, pacientes. Trabalhar com questões relativas à morte e ao luto é ainda algo novo no Brasil, especialmente no meio hospitalar (e, principalmente, entre médicos). No entanto, é fora de dúvida que as recomendações emitidas pela OMS, quanto a estendermos os cuidados oferecidos aos pacientes terminais também a seus familiares e cuidadores, precisam ser implementadas entre nós. Em seguida, conduziremos estudos de boa qualidade que mensurem a efetividade da intervenção, e com amostras maiores que aquela de que dispomos por ora. Temos podido observar, porém, mesmo antes de mensurar o impacto da intervenção, que ela é, por si só, capaz de refinar a qualidade das comunicações entre os enfermos e as equipes que trabalham no hospital, bem como prover a divulgação de informações críticas à prevenção de reações patológicas de luto na comunidade. Referências bibliográficas BOWLBY, J. Processes of mourning. The International Journal of Psycho-Analysis, v.42, n.4, p.317-340, 1961. CONGRESSO INTERNACIONAL DE TANATOLOGIA E BIOÉTICA, 3, 2005, São Paulo. [nota: conferências proferidas por Dr. Colin Murray Parkes]. KATO, P.M.; MANN, T. 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Oxford: Oxford University Press, 2000. Chap.22, p.321-334. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.111-116, jan.-jun., 2007 115 Sobre os autores João Paulo Consentino Solano Médico pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (1987), psiquiatra pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, 1990), psicanalista pela Clínica “Roberto Azevedo” (2000-2005) e Research fellow em Cuidados Paliativos no Departamento de Cuidados Paliativos, Reabilitação e Política da Kings College London, Inglaterra (2004). É mestrando do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e colaborador do Núcleo de Epidemiologia do Hospital Universitário (HUUSP). Foi médico do Setor de Cuidados Paliativos da UNIFESP (2000-2006). É professor da Disciplina de Clínica Médica do Departamento de Medicina e fundador-coordenador do Projeto de Proteção ao Luto da UNIFESP. Além disso, é fundador e presidente da ONG Casa da Humanidade e tem diversos artigos publicados em revistas internacionais como, por exemplo: Journal of Pain and Symptom Management, Hospice Information Bulletin, Psychiatry on Line. Marcela Alice Bianco Psicóloga pela Universidade Federal de São Carlos (2004) com especialização em Atendimento Multiprofissional Geriátrico e Gerontológico em Psicologia pelo Hospital Servidor Público Estadual (2006) e curso de extensão em Psicologia Hospitalar pelo Hospital do Coração (São Paulo). Com experiência em Psicologia Hospitalar, desenvolvendo ações preventivas e terapêuticas em saúde de adultos, idosos e seus familiares. Sua experiência inclui ainda: Psicologia Clínica, Psicoterapia Breve, Orientação Familiar e Coordenação de Grupos Informativos e de Treinamento na área da saúde. Recebeu recentemente uma menção honrosa no Prêmio de Incentivo em Ciência e Tecnologia para o SUS, do Departamento de Ciência e Tecnologia (DECIT) do Ministério da Saúde, na categoria Especialização, pela pesquisa “Aspectos psíquicos da relação paciente-família-equipe interdisciplinar em enfermaria geriátrica: impacto sobre o tratamento do idoso”. 116 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.111-116, jan.-jun., 2007 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Pesquisas em andamento Integração de Ontologias: o domínio da Bioinformática Maria Luiza de Almeida Campos Departamento de Ciência da Informação – Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação UFF-IBICT, Niterói, Brasil [email protected] Resumo O crescimento da utilização de arquiteturas distribuídas, especialmente no ambiente da Web, contribuiu para que informações originalmente isoladas sejam disponibilizadas para serem utilizadas de maneira integrada. Ontologias assumem papel fundamental nessa integração, viabilizando a interoperabilidade semântica de sistemas distribuídos heterogêneos. Este artigo é fruto da pesquisa “Integração de Ontologias: o domínio da Bioinformática e a problemática da compatibilização terminológica”, que tem por objetivo apresentar diretrizes que permitam o desenvolvimento, uso e integração de ontologias empregadas na descrição e recuperação dos recursos e serviços de Bioinformática. Palavras-chave Integração de ontologia, ontologia de domínio, bioinformática, base teórica e metodológica em ontologia, compatibilização e integração de linguagem Este artigo tem por objetivo apresentar a pesquisa em desenvolvimento desta autora, apoiada pelo CNPq (período 2005/2008), onde propõe investigar mecanismos de uso, desenvolvimento e integração de ontologias no domínio da Bioinformática, especificamente no campo que envolve as pesquisas em Genoma e Transcriptoma, visando apoiar os estudos nessa área, que estão sendo desenvolvidos por instituições como a Fiocruz, trazendo aspectos teóricos e metodológicos da Ciência da Informação no seu domínio de competência relacionado à elaboração de linguagens documentárias e organização do conhecimento. Especificamente, pretendemos identificar nas bases teóricas da Ciência da Informação e da Terminologia, no campo específico de construção e compatibilização de linguagens, propostas teóricas e metodológicas que possibilitem o desenvolvimento, o uso e a integração de ontologias. No que tange à integração de ontologias, na primeira etapa desta pesquisa, pretendemos identificar as Ontologias do domínio de Genoma e Transcriptoma existentes internacionalmente e nacionalmente através de ações que permitam a comparação dos diversos modelos taxonômicos empregados para a representação dos domínios e de suas relações, identificando os níveis de compatibilização semântica e lingüística, visando a apresentação de proposta de harmonização terminológica, evidenciando diretrizes para a integração de ontologias. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 117-121, jan-jun, 2007 117 No que concerne aos princípios teóricos e metodológicos que venham a auxiliar a elaboração de ontologias, na segunda etapa desta pesquisa, pretendemos identificar no Consórcio Internacional que aspectos do projeto não estão sendo contemplados nas diversas ontologias analisadas, através da aplicação do método de compatibilização de linguagens, visando atender às especificidades brasileiras. Os domínios temáticos não atendidos serão então definidos como espaço empírico para o desenvolvimento de propostas metodológicas para a sua modelização através da identificação de bases teóricas e metodológicas estudadas e sistematizadas para elaboração de ontologias. No âmbito dos Sistemas de Recuperação de Informação, a organização e a recuperação de informações sempre estiveram condicionadas à tecnologia associada. Atualmente, bases de dados de todos os tipos têm proliferado com a disponibilização de informações em rede e, principalmente, na Web. A recuperação dos conteúdos informativos ainda não é realizada de forma satisfatória, devido à falta de ferramentas de acesso adequadas, que viabilizem, por exemplo, o controle terminológico. Para garantir esta precisão, verifica-se a necessidade de ferramentas taxonômicas e terminológicas para o tratamento semântico de informações contidas em bases de dados, viabilizando, entre outros processos, a integração de informações como auxílio ao desenvolvimento de pesquisa em domínios de conhecimento. Ferramentas semânticas como ontologias precisam ser construídas em meio informatizado, abarcando domínios de estudos e pesquisa em língua portuguesa, para serem utilizadas em bibliotecas digitais e virtuais, em sistemas para gestão de conhecimento, para viabilizarem processos de integração de informações entre pesquisadores, como auxílio para as ferramentas de busca de um modo geral, e, principalmente, como um instrumento para a melhoria do tratamento e da recuperação de informação na rede. Ontologia é um conjunto de conceitos padronizados onde termos e definições devem ser aceitos por uma comunidade no âmbito de um domínio, e tem por finalidade permitir que múltiplos agentes compartilhem conhecimento. Uma ontologia consiste em termos, definições e axiomas relativos a eles. As ontologias constituem um meio poderoso de inter-relacionar sistemas. São elaboradas, principalmente, visando à estruturação de bases de conhecimento ou para serem utilizadas como ferramentas semânticas no suporte à interoperabilidade entre sistemas de informação. Atualmente, o crescimento da utilização de arquiteturas distribuídas, especialmente no ambiente da Web, de interfaces abertas de acesso a bancos de dados, de tecnologias de mediadores e de padrões de formato para troca de dados contribuiu para que informações originalmente isoladas sejam disponibilizadas para serem utilizadas de maneira integrada. Ontologias assumem papel fundamental nesta integração, viabilizando a interoperabilidade semântica de sistemas distribuídos heterogêneos. Desta forma, ontologias estabelecem fun118 damentos de significados conceituais sem os quais a Web Semântica não seria possível, devido à heterogeneidade dos conceitos representados (JACOB, 2003). A heterogeneidade tem sido identificada como um dos problemas mais importantes e difíceis de tratar. Ela envolve a interoperabilidade e cooperação entre múltiplas fontes de informação, retratando diferenças sintáticas, semânticas e estruturais entre sistemas. A heterogeneidade semântica representa atualmente o maior empecilho para a interoperabilidade semântica, representando um grande desafio para a integração de informações na Web. Para tratar esse problema, é preciso buscar uma linguagem capaz de representar conhecimento e regras, além de inferir novos dados. Isso se dará a partir de inter-relacionamentos entre ontologias específicas de domínios, que têm como premissas o uso racional de metadados, para descrição de dados de forma homogênea, o uso sistemático de ontologias, preenchendo a lacuna entre fontes de dados heterogêneas, e a utilização de associações semânticas, tratando a interoperabilidade entre domínios (ADAMS, 2002). Dentro do domínio de desenvolvimento de ontologias, as abordagens para a sua construção são específicas e limitadas. A literatura, no âmbito da Ciência da Computação, tem privilegiado ora as ontologias como vocabulários de domínios específicos, sem um suporte teórico, ora um conjunto de regras e aportes teóricos, sem elementos que orientem a construção de vocabulários que permitam a elaboração de definições lógicas. Além disto, verifica-se a existência de dois grandes problemas nas metodologias (FERNÁNDEZ-LOPEZ, 1999; GUARINO, 2002; JONES, 1998; SURE, 2002) para projeto de ontologia: a falta de explicação sistemática de como e onde serão usadas as abordagens teóricas dentro de seu processo de elaboração; a não existência dos estágios de integração e manutenção de ontologia no método na maioria das metodologias. Acredita-se que o aporte teórico e metodológico existente no âmbito da Ciência da Informação se beneficiando de estudos no escopo da Teoria da Terminologia (WUESTER, 1981), Teoria do Conceito (DAHLBERG, 1978), Teoria da Classificação (RANGANTHAN, 1967) e Compatibilização de Linguagens (NEVILLE, 1970; DAHLBERG, 1981, 1983) possa apresentar propostas eficazes de aplicação. Por outro lado, estas áreas podem se beneficiar atuando numa área bastante aplicada da questão, fugindo da complexidade de um tratamento excessivamente formal. Espera-se que este projeto venha possibilitar maior integração das informações, criando mecanismos para consolidar a participação do Brasil nos consórcios internacionais que envolvem a pesquisa em Genoma e Transcriptoma. As pesquisas em Bioinformática no Brasil vêm desenvolvendo estudos que têm por finalidade prover um ambiente que possa oferecer informação semântica sobre os recursos científicos, como dados e programas nessa área, e possibilitar o uso desses recursos de forma conjunta pela comunidade científica interessada. Um RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 117-121, jan-jun, 2007 dos aspectos que envolvem a descrição e a recuperação desses recursos e serviços está relacionado ao desenvolvimento de uma linguagem padronizada e consensual para facilitar o entendimento dos vocabulários, muitas vezes interdisciplinares. No campo da genômica, iniciativas da comunidade científica internacional, nos últimos anos, levaram a um crescimento explosivo de informações biológicas geradas todos os dias (HGP, 2003). A preocupação inicial era a criação e manutenção de bancos de dados para armazenar informação biológica. Conforme as bases de dados genômicas vão sendo preenchidas, e os genomas seqüenciados, o foco das pesquisas começa a se transferir do mapeamento dos genomas para a análise da vasta gama de informações resultantes da caracterização funcional dos genes através da Biologia Molecular e Bioinformática. Torna-se fundamental a interligação entre os dados obtidos pelos diversos projetos de pesquisa ao redor do mundo sobre o inter-relacionamento de enzimas, genes, componentes químicos, doenças, espécies, tipos de células, órgãos etc., visando responder a perguntas, tais como: Qual é a proteína que este gene codifica? Qual a função desta proteína neste organismo? Este gene é similar a outro gene presente em organismo distinto? (MENDES, 2005). Desta forma, é importante considerar a relevância da gerência, descrição e organização dos recursos científicos em meio digital para a pesquisa em Bioinformática. Especificamente, nesta área, nem sempre esses recursos estão disponíveis para o biólogo, e muitas vezes este tem que recorrer à utilização de programas proprietários, residentes em outras instituições. Assim, para que essas equipes e/ou instituições troquem recursos científicos entre si, é preciso encontrar uma forma comum de descrição e acesso a esses recursos, de modo a facilitar a busca e a integração dos mesmos. Assim, a grande quantidade de dados que está sendo acumulada nos diferentes bancos de dados ao redor do mundo precisa, a partir das informações genômicas disponíveis, ser anotada e interpretada. Para este fim, é necessário que os diversos projetos interessados em trocar e integrar informações descrevam seus dados de forma a possibilitar com consistência a recuperação de informações. Iniciativas no campo do tratamento terminológico têm sido apresentadas através de repositórios de ontologias. A Biblioteca de Ontologias OBO – Open Biological Ontologies é um repositório de terminologias desenvolvido para uso compartilhado entre diversos domínios biológicos e médicos. Dentre os mais difundidos vocabulários componentes da OBO, podemos destacar a Gene Ontology (GO). A GO compreende termos referentes a três categorias de assunto, ou seja, componentes celulares, processos biológicos e funções celulares. No Brasil, especificamente na área de aplicações científicas genômicas, vem sendo desenvolvido o projeto “Genoma e Transcriptoma comparativo: um consórcio de Bioinformática para o desenvolvimento de uma plataforma Web e bancos de dados integrados”, atualmente financiada pelo CNPq e coordenado pelo Dr. Alberto M. R. Dávila da Fiocruz. Este projeto tem como um dos principais objetivos prover um ambiente que possa oferecer informação semântica sobre recursos científicos, como dados e programas, na área de Bioinformática e possibilitar o uso desses recursos de forma conjunta pela comunidade científica interessada, e vem utilizando a GO para as anotações em seu banco de dados. No nível internacional, como apresentado anteriormente, reconhece-se a Gene Ontology, que inclui termos referentes a processos biológicos, componentes celulares e funções moleculares, de maneira independente de espécies, entre outras iniciativas. Entretanto, até o momento não se identificam, em níveis nacional e internacional, ontologias desenvolvidas dentro do recorte conceitual específico, ou seja, de Genoma e Transcriptoma para atender às demandas dos grupos coordenados pela Fiocruz. Apesar dos esforços internacionais, a Gene Ontology parece não possuir classes de conceitos que venham a atender plenamente as pesquisas desenvolvidas no Brasil; em alguns casos é necessário investigar a harmonização existente entre termos e o seu conteúdo conceitual. Como resultados esperados do projeto, podemos citar: diretrizes para integração de ontologias, envolvendo questões relativas às definições conceituais; diretrizes para o desenvolvimento de ontologias; modelização do domínio de Genoma e Transcriptoma. Neste último aspecto, estudos relacionados à modelização de domínios, princípio fundamental para a etapa de elaboração de taxonomias para ontologias, já vem sendo ponto de investigação em nossos estudos e pesquisa (CAMPOS, 2004). O projeto envolve pesquisadores, professores e alunos de programas de pós-graduação e cursos de graduação de instituições de renome nas áreas de conhecimento associadas ao tema do projeto, garantindo com isso a formação de recursos humanos capacitados em temáticas estratégicas para o tratamento, integração e recuperação de informações, mas ainda de pouca divulgação no país. Nesta primeira etapa do projeto pretendemos atingir aos seguintes objetivos: 1. revisão de literatura no domínio da Ciência da Informação, Ontologia e Terminologia; 2. análise e identificação de princípios para a integração e desenvolvimento de ontologias; 3. levantamento e análise de Ontologias no domínio de Genoma e Transcriptoma. Atualmente, estamos nos concentrando nas seguintes atividades: 1. revisão da literatura sobre integração e compatibilização de linguagens no âmbito da Ciência da Informação, Ciência da Computação e Terminologia. Por meio do levantamento realizado, estamos elaborando um banco de dados, onde as informações estão sendo tratadas, possibilitando acesso ao grupo de pesquisadores envolvidos; 2. levantamento de ontologias existentes no domínio de Genoma e Transcriptoma, com a finalidade de mapear as áreas e subáreas dentro dos domínios apresentados e auxiliar os pesquisadores na identificação da produção nestes domínios; 3. estudos referentes às definições conceituais. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 117-121, jan-jun, 2007 119 No caso das ontologias, as definições propiciam a possibilidade de compatibilização semântica, pois descrevem o conteúdo semântico do signo lingüístico (o termo). Esta descrição possibilita que agentes inteligentes possam entender o significado de um termo e estabelecer inferências sobre esses significados, pois a definição é composta de características de conceitos, que são também conceitos que se relacionam formando o entendimento semântico dos termos em questão. Desta forma, as definições são de fundamental importância para a elaboração de ontologias consistentes. Entretanto, é fato que as ontologias existentes se ressentem hoje de um padrão definitório para a sua elaboração. Isto é bastante problemático quando se coloca a questão da compatibilização de linguagens que operam em bases cooperativas, como é o caso das pesquisas que vêm sendo desenvolvidas em Bioinformática. Este estudo tem por pretensão teórica e prática aproximar campos de atividades diferentes em torno da problemática definitória e da compatibilização de linguagens. Até a década de 1960 as definições tinham um caráter mais conceitual, filosófico, evidenciavam o que pensar acerca de um conceito. Entretanto, para atender às necessidades da Ciência, que possui um caráter menos filosófico, mais operacional, foi necessário um esforço teórico que visasse a elaboração de definições operacionais, que pretendiam relacionar um dado conceito, além de conceitos que indicavam o gênero próximo e a diferença específica, mas também, a outros conceitos que procurava definir certas operações onde o conceito seria aplicado, ou melhor, ao que seria observado se determinadas operações fossem executadas. Por outro lado, a questão das definições é também um campo de estudo no âmbito da Terminologia desde a década de 1930, com (WUESTER, 1981), que tinha por objetivo o estudo do termo no âmbito da língua de especialidade, ou seja, da própria ciência. Segundo DAHLBERG (1983a) o conceito de definição pode ser apresentado como: “a equivalência entre um definiendum (o que deve ser definido) e um definiens (como algo deve ser definido) com o propósito de delimitar o entendimento do definiendum em qualquer caso de comunicação.” A partir desta explicação, apresenta três tipos de definições: nominal, ostensiva e conceitual. A definição nominal é aquela onde o definiendum é uma expressão verbal e o definiens é uma equivalência textual deste termo, como, por exemplo, A = B. A definição ostensiva é aquela onde o definiens é estabelecido apontando-se para o referente nomeado pelo definiendum, ou seja, C = A. Já a definição conceitual, também denominada definição real, ocorre quando o definiens contém as características necessárias de um referente nomeado pelo definiendum, ou seja, C = B de A. No caso das questões que envolvem a compatibilização e a integração entre ontologias, nos interessa o estudo das definições conceituais e das nominais, pois estas permitem a compatibilização no plano semântico e no plano lingüístico, respectivamente. 120 A partir do apresentado, como contribuição importante do projeto, defendemos ainda a convergência de métodos e técnicas de duas áreas de conhecimento fundamentais ao desenvolvimento de práticas relativas às ontologias: Ciência da Informação e Ciência da Computação. Além de um espaço empírico de aplicação, ou seja, o domínio da Bioinformática. Na maior parte dos projetos neste tema, pode-se observar um viés específico de uma dessas áreas, sem considerar importantes contribuições que a outra área poderia trazer. Das interações anteriores dos pesquisadores, resultou a firme convicção da importância de uma abordagem integrada e multidisciplinar no tratamento do tema ontologia. Referências bibliográficas ADAMS, K. 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Sobre a autora Maria Luiza de Almeida Campos Doutora em Ciência da Informação pelo Instituto Brasileiro em Informação Científica e Tecnológica - IBICT/UFRJ, Professora Adjunta e Chefe do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação UFF/IBICT. Possui atividades de ensino e pesquisa na área de Organização e Recuperação da Informação, Taxonomia; Ontologia, Construção de Tesauros. Atuou também como professora convidada de cursos de pós-graduação strictu sensu da Pós-Graduação em Informática da UFRJ (2002-2004) e latu-sensu em nível de aperfeiçoamento (Curso de Indexação, ano 1998-2000/USU; Curso de Gestão do Conhecimento, ano 1998/USU; Curso de Tesauro, ano 1994/UFF; Curso de Teoria da Classificação, ano1990/UNIRIO), e em nível de especialização (Curso em Planejamento, Organização e Direção de Arquivos - A Gestão da Informação, ano de 1996, 2007). Foi membro, desde a sua criação em 1992, da Comissão Nacional de Princípios Terminológicos da Associação Brasileira de Normas Técnicas-ABNT, que tem por objetivo a elaboração de normas terminológicas nacionais. Desenvolve a pesquisa “Integração de Ontologias: o domínio da Bioinformática e a problemática da compatibilização terminológica, como bolsista em produtividade pelo CNpq. Além disso, é coordenadora do grupo de pesquisa registrado pelo CNPq “Ontologia e Taxonomia, aspectos teóricos e metodológicos”. Atualmente atua em diversas Instituições como consultora em atividades de elaboração de taxonomias, tesauros e de política de indexação, como FINEP; Casa de Rui Barbosa; FIOCRUZ; SESC; IPHAN; Central Globo de Produções e Petrobrás. É autora do livro “Linguagens Documentárias: teorias que fundamentam sua elaboração” e de artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 117-121, jan-jun, 2007 121 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Pesquisas em andamento Cooperação internacional e bioprospecção no Brasil e no Peru Camila Carneiro Dias Maria Conceição da Costa Departamento de Política Científica e Tecnológica – DPCT. Instituto de Geociências – IG Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Capinas, Brasil [email protected] Departamento de Política Científica e Tecnológica – DPCT. Instituto de Geociências – IG Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Campinas, Brasil [email protected] Resumo Este trabalho refere-se ao projeto “Natureza e Impacto de Parcerias Norte-Sul, Público-Privado em Pesquisa Aplicada à Bioprospecção”, que tem por objetivo investigar a natureza e identificar a contribuição da cooperação norte-sul em bioprospecção como mecanismo de promoção das capacidades científicas e tecnológicas dos países do sul. A metodologia baseia-se em estudos de caso realizados no Brasil, Peru, Colômbia e Suriname. Apresentam-se resultados preliminares da análise da prática bioprospectiva em dois países, Brasil e Peru, com base na análise de três arranjos de bioprospecção ocorridos nestes países, entre 1993 e 2001. Palavras-chave Cooperação Norte-Sul, desenvolvimento, bioprospecção, Brasil, Peru Esta comunicação refere-se ao projeto “Natureza e Impacto de Parcerias Norte-Sul, Público-Privado em Pesquisa Aplicada à Bioprospecção”, desenvolvido no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (DPCT-UNICAMP), sob a coordenação das pesquisadoras Léa Velho e Maria Conceição da Costa, com o apoio do International Development Research Centre (IDRC). O projeto tem por objetivo investigar a natureza e identificar a contribuição da cooperação norte-sul em bioprospecção como mecanismo de promoção das capacidades científicas e tecnológicas dos países do sul. A metodologia baseia-se em estudos de caso realizados no Brasil, Peru, Colômbia e Suriname. Aqui, são apresentados resultados preliminares da análise da prática bioprospectiva em dois países, Brasil e Peru. A preocupação dos países avançados no sentido de colaborar com os países do Terceiro Mundo para que atinjam desenvolvimento econômico é antiga e faz parte do discurso político de um número considerável de nações. Nesta linha, a partir da década de 50 do século XX, vários países criaram suas agências de cooperação para o desenvolvimento. As agências pautaram-se por um tipo de atuação, voltado, em grande medida, para a doação sem fins lucrativos centradas em atividades científicas, diante do crescimento da importância e das necessidades da ciência e tecnologia, num momento de crescimento e consolidação das nações capitalistas. Até a década de 50, estas ações estiveram direcionadas para áreas mais carentes de pesquisa, como, por exemplo, saúde, sanitarismo, agricultura e educação. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.123-127, jan.-jun., 2007 123 À luz da cooperação internacional, a bioprospecção tem se revelado uma área fértil para investigação. É sabido que os centros mais dinâmicos da atividade biotecnológica encontram-se, fundamentalmente, no hemisfério norte, nas sociedades de capitalismo avançado. Por outro lado, as principais reservas de biodiversidade estão, em larga medida, concentradas no hemisfério sul, em sociedades situadas nos estágios menos avançados do desenvolvimento capitalista. Deste modo, a atividade de bioprospecção possibilita construir um quadro das diferentes maneiras nas quais os benefícios para os participantes podem derivar das parcerias, além de identificar condições políticas e socioeconômicas em que as parcerias podem contribuir para o desenvolvimento sustentável. A bioprospecção envolve a coleta de material biológico e o acesso a recursos genéticos em busca de novos compostos cujos princípios ativos possam ser aproveitados para a produção de produtos ou processos. As matérias-primas da prática bioprospectiva consistem nos conhecimentos prévios a respeito da natureza e nos recursos biológicos disponíveis em determinada região. A bioprospecção apóia-se não apenas nos conhecimentos desenvolvidos no âmbito das instituições e laboratórios de pesquisa, mas, igualmente, num legado de tradições e saberes populares, nem sempre codificados, passados de geração para geração. O processo de regulação das atividades de bioprospecção é relativamente recente. A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), aprovada no Rio de Janeiro em 1992, é o tratado internacional que estabelece os parâmetros para a conservação da biodiversidade e para a utilização sustentável de seus componentes. Desde então, estes componentes são considerados objeto da soberania dos Estados Nacionais e não mais um patrimônio comum da humanidade. O acesso a estes recursos está condicionado ao consentimento prévio de seus detentores e à negociação dos termos de repartição dos benefícios entre as partes. A prática bioprospectiva é, possivelmente, um dos campos do desenvolvimento científico-tecnológico contemporâneo que mais coloca em evidência uma miríade de tantos atores: indústria, comunidades autóctones, agricultores, consumidores, ambientalistas, instituições de pesquisa, organizações não-governamentais, governos locais e seus representantes e dirigentes de organismos internacionais. Isto confere à bioprospecção o caráter de uma prática coletiva condicionada por outras práticas sociais, que inclui cientistas e não cientistas (LATOUR, 2000) e que instiga questões relativas: à lógica e à ética da investigação científica (SHIVA, 2004; SANTILLI, 2004); à definição dos legítimos representantes dos atores envolvidos (GREENE, 2004); à ecopolítica das relações internacionais (LEPRESTRE, 2000; TOBIN, 2005); ao significado de soberania e aos conceitos de Estado e nação (BRUSH, 1999) – ao contrapor necessidades e expressões de povos indígenas, seus territórios e os Estados que os delimitam (COOMBE, 2005); às fronteiras entre natureza e cultura (LATOUR, 2004); e aos limites da regulação internacional quanto aos direitos de propriedade sobre os 124 conhecimentos tradicionais (CARNEIRO DA CUNHA, 1999; DUTFIELD, 2004). No Brasil, a mais importante empresa de bioprospecção, Extracta Moléculas Naturais S.A., foi criada em 1998 dentro da Fundação Bio Rio, incubadora de biotecnologia do Rio de Janeiro. Desde o inicio de suas atividades, a empresa optou por parcerias com sócios estrangeiros. Inicialmente, tinham um sócio inglês, Xenova Group PLC, uma pequena indústria farmacêutica inglesa, contato estabelecido por conta de uma pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que havia realizado seu doutorado na Inglaterra alguns anos antes. No mesmo ano estabeleceu-se um contacto informal com o então presidente da Glaxo-Wellcome Latino-América que propôs uma espécie de contrato de “terceirização tecnológica”. Este contrato previa a detecção de novas moléculas para medicamentos, sendo que a patente, na época, seria da Extracta. Em julho de 1999, a Extracta e a Glaxo-Wellcome firmaram um contrato para colaboração na triagem de materiais derivados de fontes naturais visando a procura de moléculas singulares. A existência deste contrato veio a público quando foi citado pelo presidente da Glaxo-Wellcome, em depoimento prestado à Comissão Parlementar de Inquérito (CPI) dos Medicamentos, em abril de 2000, caracterizando-o como o primeiro projeto de pesquisa firmado entre uma empresa multinacional e uma companhia local de biotecnologia, após a aprovação da Lei de Propriedade Intelectual. Na época, foi um dos maiores acordos de pesquisa na área de produtos naturais, com investimento de US$3 milhões, aplicados durante três anos. Na ocasião, a Extracta empregava 60 pesquisadores, sendo 20 doutores. Hoje, tem um quadro fixo de 12 pesquisadores e um faturamento de R$ 1 milhão. A Extracta implantou um Banco de Biodiversidade Química de cerca de 30.000 substâncias extraídas da natureza brasileira, de composição química conhecida. Coube à Extracta desenvolver o sistema de testes que permitiu fazer a triagem dos compostos naturais. As novas moléculas de interesses farmacêuticos foram patenteadas pela Extracta e tiveram seu uso licenciado com exclusividade pela Glaxo-Wellcome, a quem caberá o desenvolvimento final do produto, os testes clínicos e a comercialização mundial. O contrato entre Glaxo-Wellcome e Extracta foi concluído em 2002, após 183 excursões que percorrreram mais de 10.000 km2 de áreas biodiversas, determinando mais de dez compostos bioativos. Em conseqüência do relato prestado pelo presidente da Glaxo-Wellcome do Brasil, foi encaminhado pedido de informações aos Ministérios do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia, que retornaram resposta informando o desconhecimento de tal acordo. Neste ínterim, foi requerida à Comissão da Amazônia e de Desenvolvimento Regional (CADR) da Câmara dos Deputados a realização de audiência pública para debater os convênios celebrados entre indústrias farmacêuticas e instituições públicas de ensino e pesquisa na área de biotecnologia. Após a apreciação do contrato, este foi aprovado por não ter sido considerado lesivo ao patrimônio social, ao meio ambiente RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.123-127, jan.-jun., 2007 e aos interesses do povo brasileiro. A Extracta explorou a biodiversidade brasileira sem entraves até 2000, pois, até então, o Brasil não dispunha de nenhuma lei que regulamentasse a atividade. De forma análoga, os primeiros contratos de bioprospecção realizados no Peru foram concebidos no vácuo de uma legislação nacional sobre o tema. Esta trajetória começa em 1993, quando é firmada uma parceria envolvendo um consórcio norte-americano de organizações públicas e privadas, duas universidades peruanas e uma organização de representação dos interesses das comunidades indígenas Aguaruna. O percurso controvertido deste acordo exerceu influência significativa no processo de institucionalização da regulação da exploração dos recursos da biodiversidade no país. O contrato foi selado quando não apenas o Peru, mas todos os países signatários da Convenção ainda não dispunham de regimes nacionais de regulação do acesso a recursos genéticos e conhecimento tradicional. Na ausência de uma legislação nacional, os termos do acordo foram negociados diretamente entre os parceiros, sem a mediação do Estado peruano (GREENE, 2004; HAYDEN, 2003). O contrato foi concebido no âmbito do programa International Cooperative Biodiversity Group (ICBG), criado em 1991 e financiado com recursos de agências norteamericanas, como o United States Agency for International Development (USAID) e o National Institutes of Health (NIH). Em 1993, uma equipe da Washington University foi contemplada com uma linha de financiamento. O contrato original previa a participação da seguinte rede de atores: a Washington University, a Universidade Peruana Cayetano Heredia (UPCH), o Museu de História Natural da Universidade San Marcos e os Aguaruna, um grupo indígena que habita a região amazônica peruana, representado por uma organização, o Conselho Aguaruna-Huambisa. Neste arranjo, os quatro participariam da coleta de material biológico; a pesquisa para isolamento de princípios ativos seria realizada pela Washington University e pela Universidad Peruana Cayetano Heredia, e à Universidade San Marcos caberia a tarefa de catalogar um inventário da biodiversidade peruana. Em 1994, o Conselho Aguaruna-Huambisa e a equipe do ICBG assinaram um contrato onde a Washington University comprometia-se a realizar um pagamento anual pelo trabalho de coleta de material e pelas amostras de plantas obtidas. Logo após, a equipe da Washington University retorna aos EUA para formalizar a participação de uma empresa privada no arranjo. Esta deu-se sob a forma de um contrato de licenciamento entre a universidade e a G.D. Searle & Co., então braço farmacêutico da Monsanto Corporation. Pelos termos do contrato, a Washington University tornou-se a representante legal e única intermediária entre os parceiros peruanos e a Searle. O que ocorreu a seguir foi a contestação do arranjo entre o Conselho Aguaruna-Huambisa e a Washington University. Durante este período, a equipe de pesquisadores da Washington University retorna ao Peru para a coleta de amostras nas proximidades de uma reserva não-indígena, chamada Imazita, fato que provocou fortes atritos entre a a equipe do ICBG e o Conselho Aguaruna-Huambisa. No início de 1995, o Conselho Aguaruna-Huambisa retirou-se do projeto e o ICBG retornou ao Peru para consolidar os termos do acordo com outra organização indígena, a Organização Central de Comunidades Aguarunas do Alto Maranhão (OCCAAM). Ao tomar conhecimento, o Conselho Aguaruna-Huambisa enviou uma carta de protesto à Washington University e ao National Institutes of Health. Entre outras reivindicações, a carta alegava que a Washington University tinha negado ao Conselho informação suficiente sobre o contrato de licença com a Searle e que a primeira havia retirado amostras de território Aguaruna sem a devida autorização. A evolução do caso resume-se na trajetória da equipe do ICBG e da OCCAAM para ampliar sua legitimidade através da conquista de aliados. Assim, ocorreu a associação da OCCAAM com outras três organizações indígenas: Federação Aguaruna Domingusa (FAD), Federação de Comunidades Nativas Aguarunas do Rio Nieva (FECONARIN) e Organização Aguaruna Alto Mayo (OAAM). O “mote” desta aproximação foi a inclusão dessas organizações no projeto ICBG e no arranjo de repartição de benefícios. O passo seguinte foi a escolha da Confederação de Nacionalidades Amazônicas do Peru (CONAP), uma das maiores federações indígenas do Peru, para representar este consórcio de organizações junto à Searle. O trabalho de campo recomeçou em 1996. Os testes limitaram-se à tentativa de identificação de princípios ativos para tratamento de diabetes e problemas cardiovasculares, abordagem que prescindiu da maioria das informações colhidas junto às comunidades Aguaruna. Em setembro de 1999, a Searle cancela o contrato com a equipe do ICBG sob a alegação de que os testes não haviam indicado uma linha de pesquisa atraente em termos de custo-benefício. Além deste projeto, outras experiências influenciaram significativamente o processo de construção do quadro normativo para regulação da bioprospeção no Peru. Um dos casos mais representativos foi o processo de contestação da patente do extrato da planta Maca, planta cultivada há muitas gerações pelas populações andinas. Desde a década de 1990, no rastro dos lucros alcançados pela Pfizer com a comercialização do Viagra, a planta tem atraído a atenção de empresas do ramo farmacêutico e fitoterápico, sendo freqüentemente divulgada nos meios de comunicação sob o rótulo de “viagra natural”. Em julho de 2001, uma norte-americana, a Pure World Botanicals, após a identificação e isolamento dos princípios ativos da raiz da planta, entrou com pedido de registro do extrato junto ao Escritório de Patentes Norte-Americano, que foi concedido. A contestação da patente foi feita em julho de 2002, na sede do Fórum Ecológico de Lima, e reuniu: organizações de base (federações indígenas e lideranças rurais), organizações não-governamentais nacionais (Sociedade Peruana de Direito Ambiental – SPDA) e internacionais (ETC RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.123-127, jan.-jun., 2007 125 Group) e o governo peruano, através do Instituto Nacional de Defesa da Competência e da Proteção da Propriedade Intelectual (INDECOPI). A coalizão exigiu do governo peruano que fosse investigado o registro de todas as patentes de produtos e/ou processos derivados da utilização do conhecimeno tradicional e dos recursos da biodiversidade peruana. A empresa americana reagiu às denúncias de biopirataria, declarando que seus procedimentos satisfaziam os critérios da legislação norte-americana de patentes. A coalizão peruana contra-argumentou com base no princípio da existência de um conhecimento prévio acerca dos efeitos terapêuticos da planta, sem o qual o screening não poderia ter sido realizado. A assimetria entre as partes litigantes e os altos custos envolvidos em um processo internacional de contestação de patentes obstacularizaram a tentativa de impugnação da patente norte-americana. Isto não significa que outras estratégias não tenham sido organizadas pelos atores peruanos. O conflito gerou um movimento de reação que resultou na criação de um grupo de trabalho multissetorial para rastrear os registros de patentes relacionadas com a exploração de recursos da biodiversidade e conhecimento tradicional, que institucionalizou-se sob o nome de Comissão Nacional para a Proteção da Biodiversidade, em 2004. Entre os principais projetos da Comissão estão a alimentação de um banco de dados digital para rastreamento dos recursos da biodiversidade e a criação de um certificado internacional de identificação de origem. Finalmente, do exame preliminar da trajetória de acordos de bioprospecção no Brasil e no Peru, observa-se os seguintes aspectos: • Um descompasso entre as expectativas iniciais e os resultados efetivos dos projetos, seja em termos do desenvolvimento de novos produtos ou processos, da promoção das capacidades científicas e/ou tecnológicas dos países do sul ou da repartição de benefícios com as comunidades autóctones. outros enxergam nas mesmas um vetor de assistência às comunidades excluídas (GREENE, 2004). Quanto às visões de futuro da prática bioprospectiva, a percepção parece estar dividida entre uma visão mais otimista e outra mais cética entre os especialistas. O debate sobre a busca de modelos normativos revela uma realidade de difícil estabilização e uma condição de relativa ambigüidade quanto a que estratégias desenvolver (TRIGUEIRO, 2006). Restam, portanto, dúvidas as mais diversas. Talvez esse seja o principal atrativo da investigação do tema da bioprospecção: a possibilidade de levantar questões que apontem para aspectos ainda não explorados, ou que sugiram a necessidade de dedicarmos maior atenção à análise da complexidade do fenômeno. Referências bibliográficas BRUSH, S. B. Bioprospecting the public domain. Cultural Anthropology, v.14, n.4, p.535-555, 1999. CARNEIRO DA CUNHA, M. Populações tradicionais e a convenção da diversidade biológica. Estudos Avançados, v.13, n.36, p.24-39, 1999. COOMBE, R. The recognition of indigenous peoples’ and community knowledge in international law. St. Thomas Law Review, v.14, n.2, p.275-285, 2005. DUTFIELD, G. Repartindo benefícios da biodiversidade – qual o papel do sistema de patentes? 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Não obstante a complexidade do tema, aponta-se como tendência futura a ampliação dos mecanismos do tipo “rights first, access later” (TOBIN, 2005), a exemplo de regimes de certificação de origem, como os instrumentos mais prováveis para a regulação do acesso aos recursos genéticos provenientes de reservas de biodiversidade. LATOUR, B. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. São Paulo: Edusc, 2004, 411p. • A existência de visões conflitantes em torno do papel das organizações não-governamentais, quanto aos limites para essa atuação e quanto à legitimidade de que se revestem como porta-vozes de vários outros segmentos sociais na prática bioprospectiva, como os grupos indígenas. A literatura divide-se entre uma visão da atuação dessas organizações como parte de um projeto neo-liberal para disseminação de um conceito equivocado de emancipação de populações marginalizadas, enquanto 126 LE PRESTRE, P. Ecopolítica internacional, 1. São Paulo: Senac, 2000, 518p. SANTILI, J. Conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade: elementos para a construção de um regime jurídico sui generis de proteção, In: Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Meio Ambiente – ANPPAS, 2., 2004, Indaiatuba, Anais... Indaituba: ANPPAS, 2004, p.1-15. SOUSA SANTOS, B.; MENEZES, M.P.; NUNES, J. A. Para ampliar o cânone da ciência: a diversidade epistemológica do mundo, In: SOUSA SANTOS, B. (Org.) Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Afrontamento, 2004, p. 18-56. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.123-127, jan.-jun., 2007 SHIVA, V. Biodiversidade, direitos de propriedade intelectual e globalização, In: SOUSA SANTOS, B. (Org.) Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Afrontamento, 2004, p.18-56. TOBIN, B. Biodiplomacy: bringing “life” to interna- tional negotiations. UNU-IAS Working Paper, Tokyo, v.17, n.2, 2005. Disponível em: http://www.ias.unu.edu. Acesso em: março 2006. TRIGUEIRO, M.G.S. Bioprospecção: uma nova fronteira da sociedade, Campinas: IG-UNICAMP, 2006, 116p, mimeo. Sobre as autoras Camila Carneiro Dias Doutoranda do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (DPCT/IG/UNICAMP) desde 2005, onde desenvolve o projeto “Natureza e Impacto da Produção e Utilização de Conhecimento em Biotecnologia Aplicada à Bioprospecção: o Caso do Peru”, sob a orientação da Profa. Maria Conceição da Costa. É Mestre em Administração pelo Núcleo de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal da Bahia (NPGA-UFBA), onde desenvolveu a dissertação “Conflito, Cooperação e Aprendizado nos Complexos Agroindustriais: o Caso do Instituto Biofábrica da Cacau de Ilhéus, Bahia” sob a orientação da Profa. Elizabeth Loiola. Foi professora substituta da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (2000-2003) e consultora da Federação das Indústrias do Estado da Bahia (2002-2004). Seus interesses de pesquisa incluem: Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia; Meio-Ambiente; Agroindústria. Maria Conceição da Costa Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1983), mestrado em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (1991), doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (1997) e pelo Institut d´Etudes Politiques, Grenoble (1992-1993), e pós-doutorado em Sociologia da Ciência pela University of South Florida, Tampa, nos Estados Unidos (2001-2002). Atualmente é professora doutora da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Possui experiência na área de Sociologia da Ciência e Ciência Política, com ênfase em Estudos Sociais da Ciência, atuando principalmente com os seguintes temas: dinâmica do conhecimento científico, cooperação internacional e gênero e ciência. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.123-127, jan.-jun., 2007 127 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Avanços tecnológicos Abrir o espaço semântico em prol da inteligência coletiva Pierre Lévy Membro da Royal Society of Canada, Canada Research Chair in Collective Intelligence at the University of Ottawa, Ottawa, Canadá [email protected] Palavras-chave Inteligência coletiva, gerenciamento do conhecimento, interoperabilidade semântica, www, cálculo semântico Resumo e Introdução Como a memória humana gravada é cada vez mais digilitalizada e inserida online, a necessidade de um sistema de coordenadas semânticas independente das línguas naturais e ontologias está aumentando. Um futuro sistema de endereçamento semântico universal, capaz de indexar todos os documentos digitais, deveria atender a três exigências básicas. Primeiro, cada conceito distinto deve ter um único endereço. Segundo, o sistema de coordenadas semânticas deve ser aberto a qualquer conceito e relações entre conceitos (ontologias) independentemente do ambiente cultural em que esses conceitos são criados e transformados, sem privilégios e exclusões. Terceiro, ele deve permitir um grupo de operações matematicamente definidas (possíveis de ser automatizadas) nos endereços semânticos, ou seja: rotações, simetrias e translações em um “espaço semântico”; compressão e descompressão semântica; operações da teoria dos conjuntos como união, interseção e diferenças simétricas; ranking dos critérios semânticos; reconhecimento do padrão semântico; medidas das distâncias semânticas; inferências lógicas etc. Desenvolvida por uma rede de pesquisa internacional conduzida pela Canada Research Chair in Collective Intelligence [Cadeira de Pesquisa do Canadá sobre Inteligência Coletiva] da Universidade de Ottawa, a Information Economy MetaLanguage (IEML) [Metalinguagem da Economia da Informação] permite a construção de um sistema de coordenadas semânticas que satisfazem essas três exigências. Site que inclui o Dicionário da IEML desde maio de 2006: <www.ieml. org> . No Brasil, BIREME (www.bireme.br) é membro da iniciativa da IEML. Interoperabilidade semântica O problema O universo de comunicação aberto, para nós, pela interconexão de dados digitais e manipuladores automáticos de símbolos – em outras palavras, ciberespaço – de agora em diante constitui a memória virtual da inteligência coletiva humana. Todavia, obstáculos importantes impedem que a memória digital funcione completamente em prol de um gerenciamento ótimo dos conhecimentos. Os obstáculos são: v.1, jan.-jun., RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v. 1,n.1, n. 1,p.129-140, p. 129-140, jan-jun,2007 2007 129 • a multiplicidade de línguas naturais; • a incompatibilidade mútua e a adaptação deficiente dos diversos sistemas de indexação e catalogação herdados da era impressa (que não foram concebidos para usar a interconexão e a potência de cálculo do ciberespaço); • a multiplicidade de ontologias, taxonomias, tesauros, terminologias e classificações; • as dificuldades encontradas pela engenharia da informação quando tenta levar em conta o significado de documentos por meio de métodos genéricos. Essa série de obstáculos ao desenvolvimento da inteligência coletiva com base digital é conhecida como “problema da interoperabilidade semântica”. dos sistemas catalogados, das ontologias e das línguas naturais que possibilita identificar, estabelecer relação e manipular automaticamente os conceitos. A IEML permite uma computação semântica uniforme quaisquer que sejam os assuntos tratados pelos fluxos e pelos estoques de informações. Ao fazer isso, a metalinguagem abre caminho para um programa de pesquisa técnico-científico que associa as diversas áreas de conhecimento e a informática: gerenciamento do conhecimento computacional. Usada como um dispositivo de endereçamento da memória digital, a IEML possibilita a exploração inteligente e intensiva dos dados, usando métodos genéricos (Quadro 1). Solução proposta As camadas de endereçamento da memória digital A metalinguagem da economia da informação (IEML) foi especialmente concebida para resolver este problema. Trata-se de um sistema de digitalização semântica independentemente do formato dos documentos, Para compreender a necessidade de uma nova camada de endereçamento da memória no ciberespaço, temos de analisar como se organizam as camadas precedentes. Quadro 1 – Primeira camada (endereçamento dos bits) Segunda camada (endereçamento dos servidores) No nível dos computadores que compõem os pontos de ligação no ciberespaço, o sistema local de endereçamento de bits de informação é gerenciado de uma maneira descentralizada por vários sistemas operacionais (tais como Unix ou Windows) e utilizado por softwares de aplicativos. O desenvolvimento da informática, na década de 1950, criou condições técnicas para um aumento extraordinário dos processamentos aritméticos e lógicos das informações. No nível da rede das redes, cada servidor tem um endereço atribuído de acordo com o protocolo universal da internet. Os endereços IP (Internet Protocol) são usados pelo sistema de roteamento – ou comutação – de informações que faz a internet funcionar. O desenvolvimento da internet na década de 1980 corresponde ao advento da informática pessoal, o crescimento de comunidades virtuais e o começo da convergência da mídia e das telecomunicações no universo digital. 130 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.129-140, jan.-jun., 2007 Terceira camada (endereçamento das páginas) No nível da World Wide Web, as páginas de documentos, por sua vez, ganharam um endereço de acordo com o sistema universal de URLs (Uniform Resource Locator) [Localizador Uniforme de Recursos) e os links entre documentos são tratados de acordo com a norma HTTP (HyperText Transfer Protocol) [Protocolo de Transporte de HiperTexto]. Os endereços da Web e os links hipertextuais são usados por ferramentas de pesquisa e surfistas da Web. A popularização da Web, de 1995 em diante, ajudou a dar origem a uma esfera pública mundial multimídia. Quarta camada (endereçamento dos conceitos) A Noosfera se apresenta de uma camada adicional da memória digital, com base em um sistema de endereçamento universal dos conceitos: IEML. Enquanto sistema de coordenadas da Noosfera, a IEML possibilita o gerenciamento automático das relações entre os conteúdos significativos dos documentos independentemente das línguas e terminologias em que esses documentos foram escritos, catalogados e indexados. O gerenciamento do conhecimento computacional se dedica à manipulação automática dos números semânticos que endereçam os dados dos documentos. Ao fazer isso, ele aumenta a capacidade humana de interpretação da memória virtual. Novos dispositivos de exploração multimídia do universo dinâmico dos conceitos poderão se apoiar no cálculo semântico. IEML e a web semântica Ferramentas da web semântica Algumas pessoas podem questionar a necessidade de construir uma nova camada de endereçamento semântico para dados, uma vez que já temos normas e ferramentas da web semântica sistematizadas por Tim Berners-Lee. Todavia, a web “semântica”, ao contrário do que sugere seu nome, propõe fundamentalmente normas de codificação lógica das informações. As principais ferramentas simbólicas da web semântica são: • XML (eXtensible Mark-up Language) [Linguagem de Marcação Extensível), derivada da SGML (Standard Generalized Mark-up Language) [Linguagem Padronizada de Marcação Genérica], de Charles Goldfarb; a XML é usada para descrever, de maneira universal, a estrutura dos bancos de dados; • RDF (Resource Description Framework) [Estrutura de Descrição de Recursos], que possibilita catalogar dados da web, junto com a linguagem Sparkl, que pode ser usada para expressar perguntas nos recursos catalogados pela RDF; • OWL (Ontology Web Language) [Linguagem da Web para Ontologia), que possibilita descrever ontologias, ou seja, estruturas conceituais de várias áreas de conhecimento que podem servir de base para inferências automáticas. Embora a principal função desses descritores e marcadores seja estimular a pesquisa automatizada de dados e a execução das operações por robôs de softwares, o problema da interoperabilidade não foi resolvido pela web semântica, pelo menos na forma de métodos genéricos e ótimos, por no mínimo duas razões: a notação dos conceitos em língua natural é arbitrária e as diversas ontologias são incompatíveis. Notação alfabética arbitrária dos conceitos em línguas naturais Mesmo que a XML, a RDF e a OWL formalizem as relações entre conceitos na linguagem universal e neutra da lógica, os próprios conceitos são anotados por meio de palavras ou abreviações em diferentes línguas naturais. E isto coloca um problema porque (a) existem milhares de línguas naturais diferentes; (b) em cada língua, as palavras podem ter vários significados; (c) o mesmo significado pode ser expresso por várias palavras; sem falar (d) das mudanças de significado devido a variações do contexto e dos pontos de vista. O sistema de notação dos números, pela posição (seja na base 10, na 2 ou em outra), possibilita uma interpretação universal e inequívoca do significado de cada numeral, e do lugar ocupado por cada numeral na seqüência escrita do número. Assim, o conceito que corresponde à seqüência dos numerais (o número) pode ser automaticamente deduzido dessa seqüência. Ao contrário, a notação alfabética de palavras em línguas naturais leva a códigos arbitrários – encadeamento de caracteres – que podem ser sempre comparados ou ligados a outro encadeamento de caracteres, mas sem que os caracteres ou sua respectiva disposição possam ser interpretados per se. Nesse caso, os símbolos básicos representam sons e não elementos de significado. Em suma, para os autômatos manipuladores de símbolos, os números anotados na ideografia arábica são imediatamente compreensíveis, enquanto as línguas naturais anotadas em letras alfabéticas são semanticamente opacas. Mesmo que as ligações entre as etiquetas lógicas em XML, RDF e OWL sejam calculáveis, os encadeamentos de caracteres que marcam as etiquetas permanecem códigos arbitrários do ponto de vista da computabilidade semântica. A multiplicidade de hierarquias ontológicas O segundo motivo pelo qual a Web semântica não pode resolver sozinha o problema da interoperabilidade semântica é que as ontologias são mutuamente incompatíveis. Geralmente, elas são estruturadas por hierarquias de conceitos, e de relações entre conceitos, que permitem que níveis inferiores herdem automaticamente propriedades dos níveis superiores. Essas hierarquias são contextuais, ou seja, estão ligadas a campos da prática ou a escolhas filosóficas e culturais. Obviamente, é possível usar ontologias superiores capazes de organizar um grande número de ontologias locais, como a Cyc, de Douglas Lenat, ou a SUMO1 do IEEE2, e associar a cada conceito de uma ontologia superior sua tradução em um grande número de línguas naturais. No entanto, dificilmente isso resolve o problema da interoperabilidade, pois existem várias RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.129-140, jan.-jun., 2007 131 ontologias superiores e cada uma delas envolve necessariamente escolhas filosóficas e práticas particulares. Um sistema universal de endereçamento dos conceitos deve necessariamente: (1) ser independente das ontologias; (2) permitir a expressão de tantas ontologias distintas quanto forem desejadas; e (3) admitir a medida de proximidade entre ontologias, sem privilegiar a priori qualquer ponto de vista ontológico. Complementariedade da IEML e a web semântica Não se trata, aqui, de colocar em questão a utilidade da XML, RDF ou das ontolologias em OWL; mas simplesmente reconhecer que elas não fornecem um sistema matemático universal de endereçamento dos conceitos. As ferramentas e normas da web semântica são efetivamente necessárias para a implementação técnica de um endereçamento matemático de conceitos, todavia não são suficientes. A semântica computacional baseada na IEML possibilitará a valorização das ferramentas e dos métodos produzidos pela web semântica, com a qual ela entra em uma relação de complementariedade e valorização recíproca, mais do que de rivalidade. É possível ler e escrever números IEML (semanticamente calculáveis) nas etiquetas lógicas da web semântica, sendo a tradução, em línguas naturais, dos conceitos correspondentes fornecida por um dicionário IEML multilingüe. Assim, a web semântica pode ser considerada um dispositivo lógico intermediário entre a web e a Noosfera. O Quadro 2 mostra a arquitetura técnica geral da economia da informação proposta pela iniciativa da IEML. Quadro 2 – Economia da informação Estrutura da IEML Generalidades A IEML pode ser considerada uma espécie de ábaco semântico que pode ser manipulado por computadores. Todas as cifras dessa metalinguagem podem ser reconhecidas por uma máquina de estados finitos3. As cifras da IEML são construídas de uma maneira uniforme por meio da geração de fluxos de informações entre um pequeno número de elementos primitivos de acordo com uma hierarquia articulada de níveis estruturais. Uma cifra semântica é sempre construída como um fluxo de informações entre duas ou três cifras semânticas, de ní132 veis de articulação inferiores, que desempenham o papel de fonte, de destino e (eventualmente) de tradutor ou mediador. Uma regra de composição estabelece que o tradutor será vazio se o destino for vazio e que o destino será vazio se a fonte for vazia. Elementos A IEML é baseada em cinco elementos básicos, que descrevem os principais componentes do significado: Elementos verbais (O) Virtual U e Real A são os dois elementos verbais O, ligados aos processos: (O = U, A). RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.129-140, jan.-jun., 2007 O virtual abrange o universo de possibilidades, coisas a acontecer, potenciais, capacidades, problemas, classes e tipos gerais universais que muito freqüentemente são “intangíveis”. O elemento virtual é caracterizado por uma ausência de coordenadas espaço-temporais. O real ocorre no tempo e no espaço. É constituído por indivíduos singulares, eventos originais, formas surgidas, soluções de problemas, exemplos típicos de fenômenos universais e dados perceptíveis. A dialética da ação (O) organiza uma troca de informações, uma circulação de diferenças entre o virtual e o real: cada atualização transforma o virtual e cada transformação do virtual gera uma nova realidade. A dialética do virtual (U) e do real (A) é encontrada em um grande número de tradições filosóficas e culturais: o céu e a terra das primeiras filosofias, a transcendência e a imanência das teologias, o yin e o yang do taoísmo, o inteligível e sensível do platonismo, o numenal e fenomenal de Kant, o vácuo e os fenômenos do budismo maaiana etc. Na maioria de suas definições abstratas, o virtual define um domínio de variação e o real um operador: a combinação dos dois papéis cria uma função. Elementos nominais Signo S (significante), ser B (significado para um interpretante) e coisa T (referente) são os três elementos nominais M, ligados às representações (M = S, B, T). O signo corresponde ao significante em lingüística. É um instrumento simbólico cuja operação principal é apontar para os referentes do discurso humano. Signos são os sons da palavra, os caracteres da escrita, gestos e sinais, imagens e sinais de todos os tipos, geralmente símbolos que podem ser interpretados. “O dedo aponta para a lua. O idiota olha para o dedo”, como diz um provérbio zen. Neste exemplo, o dedo representa o significante (em outras palavras, o signo) S, enquanto a lua é o referente (em outras palavras, a coisa) T. Agora, com exceção dos nomes próprios que designam realidades singulares, é impossível ligar um significante a uma referência singular da fala, sem primeiro passar por um conceito intermediário associado ao signo: o significado. Por sua vez, o significado somente pode significar para um interpretante. Esse significado, que é indissociável de seu interpretante subjetivo, é denominado ser na IEML. O ser completa o movimento cognitivo que passa do dedo (o signo) para a lua (a coisa) e dá um valor contextual para essa relação signo-referente. Os elementos nominais da IEML (signo S, ser B, e coisa T) são os três fatores de representação distintos e interdependentes. Mas atenção: eles são diferenciados por sua função, e não por sua natureza intrínseca. Dependendo das várias perspectivas cognitivas, uma pessoa, por exemplo, pode desempenhar o papel de signo (o significante do discurso) ou de ser (o interpretante do discurso) ou de coisa (o objeto do discurso). Na dialética semântica, o signo, o ser e a coisa foram denominados vox, conceptus e res na universidade medieval. Na filosofia de C. S. Peirce, estes foram traduzidos como signo (ou representamen), interpretante e objeto. Suas variações na lingüística moderna são o significante, significado e referente. Essa dialética semântica é encontrada na lógica (proposições, julgamentos, circunstâncias), na economia (preço, propriedade, utilidade) e na teologia (ensinamentos, comunidade, realidade final). Essa dialética ternária pode ser detectada no trivium das artes liberais na Antiguidade e na Idade Média ocidental: a gramática desenvolve o domínio da linguagem (a manipulação de signos), a dialética oferece uma introdução ao diálogo racional (entre seres), a retórica se ocupa da construção prática do discurso visando à sua memorização e aos efeitos reais (sobre as coisas). Assim, as primitivas da IEML – uma linguagem do endereçamento de dados numéricos de acordo com o seu significado – são, como era de se esperar, as próprias estruturas do significado. Essas estruturas foram descritas por antigas e inúmeras tradições pertencentes a várias culturas e disciplinas. Simplesmente, contentei-me em recolhê-las e relacioná-las. De eventos a frases A partir desses cinco elementos, a IEML desenvolve quatro níveis de combinação e articulação das cifras semânticas (Quadro 3): Quadro 3 - Alfabeto IEML OO energias OM ações MO mutações MM conceitos S " S s pensamento U " U wo refletir U " S y saber S " U j significante U " A wa agir U " B o querer B " A g documentário S " B b linguagem A " U wu perceber U " T e poder B " U h significado S " T t memória A " A we reconstituir A " S u expressar B " A c pessoal B " S k sociedade A " B a comprometer-se T " U p referente A " T i fazer T " A x material B " B m afeto B " T n mundo T " S d verdade T " B f vida T T l espaço RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.129-140, jan.-jun., 2007 133 • 25 (52) eventos, ou “letras semânticas”, que são fluxos de informações entre dois elementos (os eventos são representados por 25 letras minúsculas em negrito no quadro acima, em que as vogais são verbos e as consoantes são substantivos); • 625 (252) relações, que são combinações de duas letras ou “sílabas semânticas” da metalinguagem; • 240 milhões de idéias (6252 + 6253), combinações de 4 ou 6 letras, que representam as “palavras” da metalinguagem; • uma quantidade astronômica (1023) de “frases” que combinam uma, duas ou três idéias. Em suma, a gramática da IEML tem cinco níveis de articulação: elementos, eventos, relações, idéias e frases. para se obter um destino não-vazio). Projetado em uma perspectiva semântica, o número semântico torna-se um ponto geométrico. Um grafo de frase da IEML é uma série de numerais semânticos e define uma subsérie do espaço semântico. É denominado número semântico. Existe uma quantidade astronômica de números semânticos possíveis. Mesmo que teoricamente finito, ele é praticamente infinito. Projetado em uma perspectiva semântica, o número torna-se uma série de pontos geométricos, uma “figura”. Os números semânticos (coordenadas do espaço semântico) são comuns a todas as perspectivas semânticas: a única diferença é sua projeção 3D em uma figura, que é ligada a uma perspectiva semântica particular. Dados semânticos O espaço semântico Dimensões e perspectivas Considera-se que o espaço semântico endereça uma quantidade praticamente infinita de diferentes grafos de frases de IEML. Matematicamente, um grafo pode ser definido por uma série de triplos. Cada triplo é composto por 1) um vértice inicial; 2) um vértice de chegada; 3) uma ligação entre os dois vértices. A frase da IEML que etiqueta o vértice inicial é denominada frase fonte (So), a frase da IEML que etiqueta o ponto de chegada é denominada frase destino (De) e a frase da IEML que etiqueta a ligação é denominada frase tradutora (Tr). Os triplos que compõem os grafos das frases da IEML podem ser representados como “pontos” abstratos de um espaço 3D [tridimensional] do qual os três eixos são So, De, Tr. 1ª dimensão: fonte; 2ª dimensão: destino; 3ª dimensão: tradutor. Em cada dimensão, as variáveis são as 1023 frases da IEML. Assim, o espaço semântico da IEML é uma matriz cúbica abstrata que contém 1069 unidades básicas, ou pixels semânticos que são triplos das frases da IEML. O espaço semântico 3D pode ser projetado em muitos espaços 3D geométricos denominados perspectivas semânticas. Há tantas perspectivas semânticas quantas ordens estritas existirem entre frases nos três eixos do espaço semântico. Qualquer ordem possível de frases ao longo dos três eixos produz uma diferente projeção geométrica 3D do espaço semântico. Uma perspectiva semântica não se baseia em um ponto do espaço 3D mas em um espaço 3D completo de uma matriz de espaços 3D possíveis (o espaço semântico). Endereçamento no espaço semântico Como vimos anteriormente, o “pixel semântico” ou unidade básica do espaço semântico é um triplo de frases da IEML (So, De e Tr). Esta unidade é denominada um número semântico. Existem 1069 triplos de frases ou números semânticos (na verdade, um pouco menos do que isso porque é necessário um destino não-vazio para se conseguir um tradutor não-vazio e uma fonte não-vazia 134 Os dados semânticos representam conceitos aos quais se atribui valor e referência. Um dado semântico é composto por três partes: 1) o conceito formal ou endereço semântico; 2) os valores do conceito; 3) as referências do conceito. 1) A coordenada espacial única de um conceito é dada por um número semântico, ou seja, por uma série de numerais semânticos ou, em outras palavras, por uma subsérie do espaço semântico. 2) Os valores do conceito correspondem à ordenação (ou ranking) de números associados a um número semântico e às quantidades – ou números cardinais – associados a um número semântico. Números ordinais dependem de funções de ranking explícitas (se não automáticas) e os números cardinais dependem de funções de mensuração explícitas (se não automáticas). Vários valores podem ser associados ao mesmo conceito formal, de acordo com as várias funções de atribuição de valor. 3) As referências são links para endereços físicos de documentos (URLs, por exemplo). Vários endereços físicos de documentos podem ser associados ao mesmo número semântico; por exemplo, documentos com conteúdo semântico equivalente, mas em diferentes línguas naturais. Cada endereço físico de documento depende de uma função de indexação explícita (se não automática). O mesmo endereço físico pode ser associado a diferentes coordenadas semânticas de acordo, por exemplo, com diferentes funções de indexação. Finalmente, um endereço físico pode conter um endereço semântico (auto-referência do espaço semântico). Cálculo dos dados semânticos Dados semânticos são compostos por três partes diferentes: endereço, valores e referências de um conceito. Duas delas, o endereço e os valores, podem sempre admitir manipulações automáticas porque são compostas por números. O endereço do conceito – ou conceito formal – é um número semântico que pode ser manipulado por uma máquina de estados finitos. Os valores são números ordinais (que dependem de funções de ranking) e números cardinais (que dependem de funções de mensuração). Portanto, é sempre possível definir funções calculáveis. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.129-140, jan.-jun., 2007 Obs.: a parte da referência dos dados semânticos depende das funções de indexação que nem sempre são calculáveis como, por exemplo, as convenções que resultam do acordo de um grupo de intérpretes humanos que são registradas nos dicionários de línguas naturais da IEML. No entanto, é possível programar autômatos de indexão a partir dos dicionários. • operações da teoria dos conjuntos (união, interseção, diferenças simétricas) dos conceitos formais; línguas naturais (francês e inglês) as 625 relações e mais de mil idéias abrangendo a maioria dos objetos e disciplinas das ciências humanas (em que é especializado). Agora, é necessário que a continuação do processo de interpretação seja um empreendimento coletivo aberto, do qual são convidados a participar: (a) os gestores de ontologias, terminologias, tesauros e classificações; (b) os especialistas das áreas de conhecimento que quiserem formalizar seus conceitos em IEML; e (c) os tradutores que estão desenvolvendo o dicionário IEML. A principal ferramenta desse processo de interpretação conjunto é um dicionário wiki denominado “wikimetal” (wiki da metalinguagem) que pode ser encontrada no site <www. ieml.org> desde abril de 2007. • compressões e descompressões (síntese e análise) de conceitos formais a partir de classificações; Polissemia Entre as várias funções dos dados semânticos que podem ser automaticamente calculadas, citaremos: • rotações, translações e simetrias de conceitos formais no espaço semântico; • ranking automático de conceitos formais de acordo com a semântica ou com critérios externos; • funções verdadeiras (valor 0 ou 1); • reconhecimento dos padrões/normas semânticos(as). A composição de funções define autômatos semânticos que refletem os interesses, as interpretações e as operações cognitivas de uma comunidade de intérpretes e aumenta sua capacidade de gerenciamento do conhecimento. Significado dos conceitos formais Atribuição de descritores em línguas naturais aos vértices semânticos da IEML As línguas naturais são múltiplas, ambíguas e sujeitas a mudanças. Portanto, é impossível deduzir automaticamente a interpretação dos vértices semânticos da IEML (principalmente idéias e frases) em línguas naturais. Essa interpretação pode ser apenas convencional. Em compensação, uma vez dada a interpretação das idéias da IEML (as “palavras” da metalinguagem), a interpretação dos números semânticos (os “textos” da metalinguagem: grafos de frases) pode ser gerada automaticamente. Uma vez que o objetivo da metalinguagem é calcular automaticamente relações semânticas, a atribuição de descritores em línguas naturais às idéias e frases da IEML não pode ser arbitrária: na medida do possível, ela deve se conformar aos três principais critérios abaixo: Critério de simetria. As simetrias semânticas da metalinguagem devem se refletir nas simetrias semânticas reveladas pelos descritores em línguas naturais. Critério de economia. A atribuição dos descritores deve possibilitar gerar, por composição, um máximo de conceitos por meio de um mínimo de símbolos da IEML. Critério de composição. A interpretação de uma combinação de símbolos da IEML por descritor em língua natural deve corresponder tanto quanto possível (nem sempre é possível) à combinação das interpretações desses símbolos. Com o objetivo de iniciar o processo de interpretação dos conceitos formais da IEML, o autor traduziu em Na IEML, um conceito formal (um número semântico) é unívoco: cada endereço do espaço semântico é único, distinto e sem ambigüidade. Apesar disso, a IEML não foi inventada para eliminar mas, ao contrário, para aumentar as possibilidades contextuais de interpretação. No espaço semântico, a multiplicação de interpretações (ou polissemia) não se baseia na ambigüidade de conceitos, mas na imensa variedade de operações (transformação, ranking, mensuração e indexação) que podem ser desempenhadas nos conceitos. Portanto, a multiplicidade de contextos geradores de sentido é moldada pela multiplicidade de autômatos semânticos capazes de compor suas operações em um encadeamento semântico. Existem tantos autômatos semânticos possíveis (contextos geradores de sentido) quantas comunidades de intérpretes possíveis. Conclusão: a interdependência dos três problemas tratados pela semântica computacional Como vimos, a semântica computacional baseada na IEML propõe tratar o problema da interoperabilidade no ciberespaço. Para concluir este artigo, gostaria de enfatizar a interdependência entre as soluções para três problemas: (1) o problema da interoperabilidade semântica; (2) o problema do apoio para a tomada de decisão do gerenciamento do conhecimento nas organizações; (3) o problema do estudo científico dos processos da inteligência coletiva humana. IEML e interoperabilidade semântica A solução para o problema da interoperabilidade supõe o uso da metalinguagem, que é: (a) capaz de dar endereços únicos a conceitos distintos; (b) manipulável por computadores; e (c) capaz de traduzir as várias línguas naturais, ontologias e sistemas de classificação que, hoje, fragmentam a indexação de documentos na web. A necessidade dessa metalinguagem está começando a ser reconhecida pela comunidade técnico-científica que gravita em torno da web semântica. Uma das repercussões mais óbvias da adoção desse sistema de coordenadas semânticas universais seria abrir o caminho para ferramen- RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.129-140, jan.-jun., 2007 135 tas de pesquisas semânticas personalizadas, trabalhando com conceitos em vez de encadeamentos de caracteres. As ferramentas de pesquisas semânticas são caracterizadas pela capacidade de: a) produzir ranking automático de resultados a partir de critérios semânticos; b) calcular distâncias geométricas entre padrões conceituais de acordo com sensores semânticos personalizados; c) gerar automaticamente síntese, análise e inferências lógicas através de ontologias. IEML e gerenciamento do conhecimento Não só a IEML é capaz de traduzir mutuamente as várias línguas naturais e ontologias, como também constitui uma ferramenta para representar e simular os vários ecossistemas de conceitos mantidos pelas coletividades humanas (negócios, escolas, universidades, disciplinas, entidades territoriais, associações e comunidades virtuais de todos os tipos). Uma vez que os ecossistemas de conceitos são representados em uma metalinguagem padrão, os dados semânticos podem ser acumulados e comparados, e é possível desenvolver um gerenciamento do conhecimento científico. A IEML é concebida para auxiliar a tomada de decisão no gerenciamento do conhecimento, baseada em uma explicitação do objetivo da comunidade usuária e em uma representação o mais matizada possível da dinâmica conceitual existente (e não como uma função de métodos ou teorias a priori). Assim, a semântica computacional é chamada a orquestrar o desenvolvimento inovador do conhecimento em tempo real e a coordenação prática da competência de grupos e coletivos de todas as espécies e escalas. IEML e a observação científica da inteligência coletiva Um vez que o problema da interoperabilidade semântica for resolvido, por meio de uma metalinguagem capaz de representar e simular ecossistemas de conceitos, será possível observar cientificamente os processos da inteligência coletiva humana. Na verdade, o volume de memória cultural acumulada assim como uma proporção crescente da comunicação e das transações humanas pairam no universo digital online. Assim, teoricamente é possível usar o ciberespaço como instrumento para observar a inteligência coletiva humana desde a escala de pequenos grupos até a escala mundial. Todavia, para que essa possibilidade se realize de acordo com as expectativas, deveremos primeiro ser capazes de distribuir e situar os fluxos e estoques de informações em um espaço semântico unificado, um espaço que seja capaz de acomodar uma variedade ilimitadamente aberta de conceitos em interação e transformação. Dentro dessa perspectiva, a IEML apresenta-se como um sistema de localização (ou endereçamento científico) de conceitos que possibilita abrir o espaço semântico – como uma natureza da mente – para a observação científica. E essa observação inevitavelmente terá repercussões epistemológicas importantes 136 nas ciências humanas e sociais, assim como nas aplicações práticas em benefício do desenvolvimento humano. Neste sentido, a semântica computacional baseada na IEML pode ser compreendida como uma disciplina auxiliar das ciências humanas. A inseparabilidade dos três problemas Em suma: a) a idéia de uma linguagem comum para a web está começando a progredir; b) a jovem disciplina de gerenciamento do conhecimento está buscando e descobrindo teorias científicas, métodos e ferramentas; c) nos últimos 15 anos, a pesquisa – e o discurso teórico – sobre a inteligência coletiva tem sido ampliada. A semântica computacional baseada na IEML faz com que essas três correntes de pesquisa compartilhem uma série de equipamentos de cálculos matemáticos, mensuração e endereçamento conceitual. Esses equipamentos podem: (1) resolver o problema da interoperabilidade semântica; (2) oferecer um padrão para a representação de ecossistemas de conceitos e servir de ajuda para a tomada de decisão no gerenciamento do conhecimento; (3) servir de base para a construção de um instrumento de observação científica organizada dos processos de inteligência coletiva. Nenhum dos três problemas pode ser perfeitamente resolvido a menos que os outros dois o sejam. Qualquer tentativa de solucioná-los separadamente pode levar apenas a resultados parciais ou deficientes. A ocasião de um salto na inteligência coletiva iria se perder se a linguagem comum da web (que necessariamente será construída em um prazo relativamente prazo, e sob pressão da necessidade) não desse acesso à observação de um espaço semântico ainda invisível e, ao mesmo tempo, não possibilitasse a organização, com o auxílio do computador, do gerenciamento científico do conhecimento em prol do desenvolvimento humano. Notas 1. Suggested Upper Merged Ontology. Ontologia superior, criada por Ian Niles, Adam Pease (principal pesquisador) e Chris Menzel (colaborador). Considerada a maior ontologia pública formal existente atualmente, é usada para pesquisa e aplicativos de busca, de lingüística etc. (N.T.) 2. Institute of Electrical and Electronic Engineers (Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos). (N.T.) 3. Ou autômatos finitos. Para uma definição, ver <http:// pt.wikipedia.org/wiki/Aut%C3%B4mato> (N.T) Referências bibliográficas Biologia, teoria da evolução ATLAN, H. 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Escreveu vários livros sobre este assunto que foram traduzidos para mais de 12 idiomas e são utilizados em diversas universidades no mundo inteiro. Atualmente leciona no departamento de comunicação da Universidade de Ottawa (Canadá), onde tem o cargo de Presidente de Pesquisa em Inteligência Coletiva do Canadá (Canada Research Chair in Collective Intelligence). Seu livro “As Tecnologias da Inteligência”, publicado no início dos anos 90, previu o advento da Web. Em 1992, fundou na França a primeira empresa de software dedicada ao gerenciamentdo de conteúdo. Seu livro sobre inteligência coletiva, publicado em 1994, ainda inspira jovens pesquisadores. Ele é o autor de uma linguagem artificial (www.ieml.org) capaz de expresser qualquer conceito de forma computável. IEML poderia se tornar o <<código semântico>> do espaço cibernético, oferecendo à inteligência coletiva humana uma memória compartilhada interoperável. Pierre Lévy é membro do Royal Society of Canada e já recebeu várias premiações e distinções acadêmicas. 140 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.129-140, jan.-jun., 2007 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Avanços tecnológicos Ontologias e tecnologia da informação e comunicação: sistemas especialistas, web semântica e gestão integrada de compras governamentais eletrônicas DOI: 10.3395/reciis.v1i1.47pt Laura Cristina Simões Viana Olga Fernanda Nabuco Vice-Presidência de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Fundação Oswaldo Cruz – Rio de Janeiro, Brasil Centro de Pesquisas Renato Archer – CENPRA Campinas, Brasil / Laboratoire D’Analyse Et D’Architecture Des Systemes – Centre National de la Recherche Scientifique LAAS/CNRS (CNRS), Toulouse, França Carlos José Saldanha Machado Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil [email protected] Resumo A consolidação da tecnologia da informação e comunicação como um paradigma técnico-econômico sinaliza transformações no modo de se fazer ciência. Tanto que as pesquisas de ponta exigem expressivas capacidades de processamento e de rede para a manipulação de dados originados de diversas disciplinas e dispersos geograficamente, inaugurando a “e-ciência”, a exemplo da bioinformática. Nesse contexto, o presente trabalho apresenta os Sistemas Especialistas e a Web Semântica, cuja construção depende de tecnologias de representação do conhecimento, a exemplo das ontologias. Estas, ao explicitarem uma conceituação comum, podem viabilizar a integração de conjuntos de dados diversos e heterogêneos, facilitando a interoperabilidade dos sistemas de informação. Esta integração de dados é uma etapa crítica do desenvolvimento de quase todos os sistemas computacionais, sejam estes utilizados em atividades de pesquisa, como na nova organização do trabalho colaborativo, a “e-ciência”, como em atividades governamentais e também comerciais. Conclui-se afirmando que a construção de ontologias é uma alternativa tecnológica para a interoperabilidade dos sistemas de informação, podendo favorecer a nova organização do trabalho colaborativo em prol de uma gestão integrada de compras governamentais eletrônicas, particularmente no Setor Saúde. Palavras-chave Ontologias, sistemas especialistas, web semântica, tecnologia da informação, compras governamentais RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.141-152, jan.-jun., 2007 141 Introdução Quando a biotecnologia moderna, caracterizada pela possibilidade de manipulação direta do código genético, se mostrou um paradigma tecnológico1 na década de 1980, a microeletrônica já se configurava como um novo paradigma técnico e econômico2. Inicialmente restrita aos modernos laboratórios de pesquisas, especulava-se sobre o potencial revolucionário da nova biotecnologia e sobre o mercado que essa tecnologia representaria para a microeletrônica (PEREZ, 1986). Atualmente, a Tecnologia de Informação e Comunicação – TIC - de base microeletrônica é considerada uma tecnologia genérica (FREEMAN, 2003), pois, além de ter demonstrado inúmeras vantagens técnicas e econômicas, vencendo a barreira do mercado, avança por toda a sociedade e determina mudanças também nas dimensões organizacional e institucional. Por outro lado, as pesquisas mais recentes no campo da biotecnologia invocam a “e-ciência” (e-science), inaugurando a bioinformática e confirmando a vocação da biotecnologia como mercado para a TIC3. O termo e-science4 ou “e-ciência” foi cunhado por John Taylor, do Escritório de Ciência e Tecnologia do Reino Unido – OST (HEY et al., 2002), para traduzir uma nova organização do trabalho científico, caracterizada pela colaboração global em áreas-chave da ciência e seu equivalente em infra-estrutura necessária à operacionalização da “e-ciência”. Segundo HEY et al. (2002), a enorme quantidade de bytes gerados, diariamente, pela comunidade científica e tecnológica, exige o acesso eficiente aos dados armazenados, que se encontram dispersos geograficamente, bem como expressiva capacidade computacional e de rede para a gestão e a análise desses dados em prazos e custos factíveis. Para atender a esta demanda, surgiu o conceito de Grid computing (HEY et al., 2002), ou computação distribuída, que é um modelo computacional de processamento distribuído em uma infra-estrutura que executa, em simultâneo, a mesma tarefa em diversos processadores. A idéia subjacente ao termo Grid computing é análoga à de rede de energia elétrica, onde geradores de energia elétrica são distribuídos e os usuários têm acesso à energia elétrica sem se preocupar com a fonte de energia e sua localização. Ou seja, este modelo envolve uma série de computadores de menor porte, conectados entre si via redes locais e Internet, os quais conformam uma arquitetura virtual de computadores que, quando ociosos, realizam atividades que exigem alto desempenho. Esta nova abordagem da computação em rede é também conhecida como metacomputação (metacomputing), computação expansível (scalable computing), computação global (global computing), computação via Internet (Internet computing) e computação ponto a ponto (peer-to-peer computing) (BAKER et al., 2002). O espaço da “e-ciência” não se limita aos megaprojetos ou à ciência fundamental. Há indicações atuais de que a “e-ciência” está modificando a maneira como as pessoas colaboram, ou extraem conhecimentos de enormes quantidades de dados, ou organizam projetos de engenharia e de negócios (REDFEARN, s.d.). A “e-ciência” se constitui 142 numa inovação na organização do trabalho científico, formatando uma nova infra-estrutura para a produção de conhecimentos científicos (HINE, 2006). Entretanto, o desenvolvimento da “e-ciência” e seus desdobramentos necessitam da integração de conjuntos de dados diversos e heterogêneos organizados em diferentes disciplinas. O compartilhamento de ontologias definidas, para fins de simplificação como conceituações comuns e seus relacionamentos, pode auxiliar esta integração. O presente trabalho apresenta os Sistemas Especialistas – SEs - e Web Semântica – WS. Estas tecnologias são exemplos de TIC, cujo desenvolvimento depende da construção e da reutilização de conceituações comuns. Após esta introdução, o trabalho segue com uma breve caracterização e retrospectiva da evolução dos trabalhos em Inteligência Artificial – IA, área na qual as possibilidades de representação do conhecimento são uma questão importante para o sucesso da tarefa em dotar uma máquina com capacidade de inferência. A segunda seção apresenta uma visão geral dos Sistemas Especialistas – SEs - e suas respectivas aplicações para mostrar, em seguida, uma nova versão da Web, a Web Semântica – WS - e como esta poderá ser praticada. Na penúltima seção, o trabalho caracteriza o termo ontologia no contexto da TIC e explora algumas de suas aplicações mais recentes. Finalmente, o trabalho sugere um exercício de elaboração de uma ontologia de produtos e serviços que possa ser utilizada como ferramenta de auxílio às atividades de compras governamentais. Inteligência artificial e sistemas especialistas A partir do trabalho fundamental de TURING, MCCARTHY e MINSKY foi cunhado o termo Inteligência Artificial – IA, e lançada a pedra fundamental da utilização de máquinas que aprendem e inferem, facilitando o trabalho e a vida do homem (MCCARTHY et al., 1969; MCCARTHY, 2004; MACKWORTH, 2007). A linha de pesquisa em IA simbólica5, que segue a tradição lógica inaugurada por McCarthy e Hayes, entende que um programa de computador “inteligente” deve ter uma representação geral do mundo a partir da qual suas entradas podem ser interpretadas; do ponto de vista prático, o problema da IA é como modelar a “inteligência” (BITTENCOURT, 2005). A evolução da IA simbólica pode ser dividida em três fases (BITTENCOURT, 2005): clássica, romântica e moderna. Na fase clássica, que se prolongou até a década de 1970, o objetivo da IA simbólica era simular a inteligência humana, utilizando-se de métodos solucionadores gerais de problemas e lógica. Nesta fase, a principal limitação da IA foi subestimar a complexidade computacional dos problemas. A fase romântica, entre os anos de 1970 e de 1980, tinha por objetivo simular a inteligência humana em situações predeterminadas. Os métodos adotados nessa fase eram os formalismos de representação de conhecimento adaptados ao tipo de problema e os mecanismos de enfoque procedural6, com o objetivo de atingir maior eficiência computacional. A fase romântica não tinha a noção da RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.141-152, jan.-jun., 2007 quantidade de conhecimento necessário para lidar com problemas simples de senso comum. O surgimento dos Sistemas Especialistas – SEs – marcou a passagem da IA para a fase moderna entre as décadas de 1980 e 1990. Nesta fase, o objetivo da IA simbólica era forjar o comportamento de um especialista, em um domínio específico, na resolução de problemas. Assim, a partir de 1980 vários SEs foram desenvolvidos, mas, após este sucesso inicial, seguiu-se um desencanto, reforçando o entendimento de que a inteligência em um Sistema Especialista – SE – encontra-se, essencialmente, na forma como o conhecimento sobre o domínio é representado e que a etapa de aquisição do conhecimento é a parte mais difícil do desenvolvimento de um sistema (BITTENCOURT, 2005; FURNIVAL, 1995). Os parágrafos a seguir situam esta questão da representação do conhecimento no contexto da IA simbólica, caracteriza os SEs e enumera alguns exemplos e suas respectivas áreas de aplicação. Os métodos (ou formalismos) clássicos de representação do conhecimento, cuja base é a Lógica (ou Lógica de primeira e segunda ordem), são os sistemas de produção, as redes semânticas e os sistemas de representação de quadros (BITTENCOURT, 1998). Os sistemas de produção incluem os sistemas baseados em regras de produção, ou seja, pares de expressões consistindo em uma condição “se” e uma ação “então”. As redes semânticas, utilizadas em sistemas para a compreensão da linguagem natural, são um conjunto de nodos conectados por conjuntos de arcos, onde os primeiros representam objetos e os últimos, relações binárias entre os objetos. Os quadros são nodos com estrutura interna; este último método é considerado a base das idéias que resultaram nas linguagens de programação orientadas ao objeto. Os SEs utilizam regras de produção como método de representação do conhecimento. Considerando que a capacidade cognitiva pode ser dividida em duas partes, uma base de conhecimento declarativa e um motor de inferência (BITTENCOURT, 1998), os SEs igualmente possuem dois componentes principais, que são a sua base de conhecimento e o motor (ou máquina) de inferência (ou de raciocínio). A base de conhecimento reúne dados factuais ou regras e o motor de inferência aplica as regras para inferir novos conhecimentos. Os sistemas DENDRAL e MYCIN são exemplos de SEs clássicos (LUGER, 2005). O sistema DENDRAL é emblemático dos tempos pioneiros dos SEs voltados para a resolução de problemas em domínios específicos. Desenvolvido em Stanford no fim dos anos de 1960, como um conjunto de programas, o objetivo do sistema DENDRAL era inferir a estrutura de moléculas orgânicas com base em fórmulas químicas e em dados de espectrometria de massa sobre as ligações químicas presentes nas moléculas (LINDSAY et al., 1993). O sistema DENDRAL adota um método de busca heurística e conhecimento químico especializado na realização da busca, limitando a procura a situações promissoras (WALKER, 1987). Embora o DENDRAL seja conhecido na comunidade da química computacional, a sua utilização na prática da química foi limitada e, enquanto um pacote integrado de software, não é mais executado (LINDSAY et al., 1993). A experiência adquirida com o DENDRAL mostrou-se relevante para a IA e para o projeto e a implementação de outros sistemas especialistas (LINDSAY et al., 1993). O sistema MYCIN, também desenvolvido em Stanford em meados dos anos de 1970, inaugurou a metodologia contemporânea dos SEs ao solucionar os problemas de raciocínio com informação incerta e incompleta (LUGER, 2005). Este sistema fornece explicações lógicas sobre o seu raciocínio, usa uma estrutura de controle adequada ao domínio específico do problema e identifica critérios confiáveis para avaliar seu próprio desempenho (SHORTLIFFE, 1984; 1975). O sistema MYCIN utiliza conhecimento médico especializado no tratamento de pacientes acometidos de meningite e de bacteremia (SHORTLIFFE, 1984). Junto com o MYCIN, os sistemas PIP, INTERNIST-1 e CASNET, brevemente descritos a seguir, são considerados marcos inaugurais das pesquisas em IA aplicadas em Medicina (SHORTLIFFE, 1986): • Sistema PIP (Present Illness Program): reúne dados para gerar hipóteses sobre processos de doenças em pacientes com doenças renais. • Sistema INTERNIST-1: utilizado no diagnóstico de problemas complexos em medicina interna (SHORTLIFFE, 1986). • Sistema CASNET: é um sistema de assessoria em oftalmologia utilizado em avaliações da doença e na administração de pacientes com glaucoma. Atualmente, as aplicações de IA na prática da Medicina7 incluem a prescrição de medicamentos, os laboratórios clínicos, os contextos educacionais, o acompanhamento clínico e as áreas que exigem a manipulação de muitos dados, como unidades de terapia intensiva (COIERA, 2003). Os sistemas PROSPECTOR, DIPMETER ADVISOR e XCON, adiante enumerados, também são considerados SEs clássicos (LUGER, 2005): • Sistema PROSPECTOR: projetado para localizar depósitos de minerais, como ouro e molibdênio (WALKER, 1986). • Sistema DIPMETER ADVISOR: utilizado para interpretação de resultados de perfuração de poços de petróleo. • Sistema XCON: utilizado na configuração de computadores VAX (Digital Equipment Corporation). A utilização dos sistemas especialistas pode contribuir para melhorias na produtividade em atividades comerciais, científicas, tecnológicas e militares. O mercado oferece, atualmente, inúmeros pacotes comerciais de sistemas especialistas com interfaces amigáveis, os quais possuem várias aplicações (ENGELMORE, 1993): • diagnóstico e identificação de problemas em dispositivos e sistemas em áreas diversas, como sistemas médicos e de engenharia; RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.141-152, jan.-jun., 2007 143 • planejamento e elaboração de cronogramas, como programação de vôos, de escala de pessoal e de terminais de embarque e desembarque para companhias aéreas, programação de job-shop de manufatura e planejamento de processo de manufatura; inferências sobre os conceitos formadores da ontologia. Mais recentemente, a aquisição do conhecimento para os SEs passou a ser guiada por modelos, os quais incluem a reutilização de ontologias e estruturas de inferência (CIN/UFPE, s.d.). • configuração de objetos manufaturados através de montagens parciais, como a construção de casas modulares e outras atividades que envolvem projeto de engenharia e de manufatura complexos; Web semântica • tomada de decisão no setor financeiro, como programas de assessoria utilizados em suporte a análise de crédito, análise de risco e determinação do prêmio em seguros, e comércio exterior; • editoração de conhecimento, como assessoria em ortografia e gramática e assessoria tributária, em especial imposto de renda pessoa física; • controle e monitoramento de processos, como os sistemas utilizados em usinas siderúrgicas e em refinarias de petróleo, os quais analisam, em tempo real, dados originados dos equipamentos e outros dispositivos, com o objetivo de detectar anomalias, prever tendências e controlar a correção de falhas e a otimização; • planejamento e manufatura, como os sistemas de auxílio a projetos de produtos e de processos tanto no plano conceitual como na configuração de chão de fábrica de processos de manufatura; • serviços de informação e bibliotecas, como os sistemas utilizados em indexação, formulação automática de resumos, trabalhos de referência, catalogação, recuperação de informações on-line, desenvolvimento de coleções, detecção de registros duplicados (FURNIVAL, 1995; MENDES, 1997). Alguns exemplos de pesquisas sobre sistemas especialistas realizadas no Brasil incluem aplicações em Medicina (RAZZOUK et al., 2006); em projeto de produto (MAZIERO, 2000); no apoio à tomada de decisão em ambiente industrial (HENNEMANN, 2006); no uso e manejo da terra (GIBOSHI et al., 2006); no gerenciamento da informação (MENDES, 1997); no controle de processo industrial (SELLITO, 2002); no controle sanitário de sementes (ALVES et al., 2006) e na avaliação de terras para o cultivo de grãos (CHAGAS et al., 2006). Grande parte dos produtos comerciais disponíveis no mercado brasileiro que utilizam IA combinam recursos de sistemas especialistas (lógico) e de redes neurais (intuitivo) com aplicações, principalmente, nas áreas financeira, de telecomunicações e de serviços de utilidade púbica, como energia (ABES, s.d.). Antes de passarmos para a próxima seção, sobre a Web Semântica, convém relembrar que a etapa mais crítica da construção de um SE é aquela de aquisição do conhecimento, que consiste na acumulação, transferência e transformação do conhecimento para a máquina, formando a base de conhecimento do SE (CIN/UFPE, s.d.). As principais fases da aquisição do conhecimento na construção de um SE são a identificação das características do problema, cuja resolução é objeto do SE, o desenvolvimento de uma ontologia (conceituações comuns) no domínio do problema e a identificação das 144 Embora a Web seja cada vez mais parecida com a TV, é inegável que a Web permanece interativa e rica em informações, possibilitando a conexão de um sem-número de dispositivos, como a casa inteligente e as consultas à conta bancária através do celular. Entretanto, existe um caminho a ser percorrido para que dispositivos diferentes e pessoas possam conectar-se, pois a Web não é mais limitada a uma interface de computador. Dado que a Web se desenvolveu como um repositório de documentos para a manipulação por pessoas e não por máquinas, a exploração de todo o potencial da Web deve privilegiar uma linguagem que seja compreensível para as pessoas e para as máquinas. Uma solução possível repousaria em uma teoria semântica que interpretasse símbolos, transformando dados em informações e fornecendo explicações sobre os significados; a conexão lógica dos termos estabeleceria a interoperabilidade entre os sistemas (BERNERS-LEE et al. 2001). A Web Semântica - WS - é uma nova versão ou uma versão ampliada da Web atual, onde a informação é acompanhada por um significado bem definido, auxiliando o trabalho cooperativo entre pessoas e computadores. Segundo BERNERS-LEE et al. (2001), o funcionamento da WS depende dos computadores terem acesso a coleções estruturadas de informações e conjuntos de regras de inferência que possam ser utilizadas na condução da automação da inferência do raciocínio automatizado. Conforme comentado anteriormente na seção II, a inteligência em um sistema encontra-se na representação do conhecimento. O desafio da WS, portanto, é desenvolver uma linguagem que expresse dados e regras de raciocínio sobre os dados, permitindo que as regras de qualquer sistema de representação de conhecimento sejam exportadas para a Web. O que é, então, necessário para descrever uma informação de modo que esta seja igualmente compreensível para pessoas e máquinas? O modelo em camadas de padrões e tecnologias Web, mostrado na Figura 1 e descrita nos parágrafos seguintes, sugere uma arquitetura para a WS. As recomendações da W3C8 indicam que os recursos9 apontados pelos endereços não devem possuir significados dúbios, mas sim relacionar dados com objetos do mundo real. Os endereços eletrônicos de projetos encontram-se na camada Uniform Resource Identifier - URI, a qual fornece de modo inequívoco os meios para a identificação de recursos na Web. Uma URI é um nome (string) curto que identifica recursos na Web, como documentos, imagens, endereços de arquivos “descarregáveis”, serviços, endereços eletrônicos, entre outros. A URI é uma forma genérica de Uniform Resource Location - URL, o endereço tradicional da Web, como por exemplo, www.w3c.org. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.141-152, jan.-jun., 2007 Figura 1 – Web semântica. Modelo em camada Fonte: adaptado de Globe (2007) As camadas eXtensible Markup Language – XML - e Resource Description Framework – RDF - representam os formatos de dados e informações usuais para a Web. A camada XML, junto com definições de tipos e esquemas, garante a integração das definições de WS com outros padrões baseados em XML. O RDF é modelo universal de formato para dados na Web, permitindo que dados estruturados e semi-estruturados sejam misturados, exportados e compartilhados por diferentes aplicações. O Resource Description Framework descreve vários tipos de recursos, enquanto os esquemas XML, por exemplo, descrevem apenas documentos, possibilita a interoperabilidade entre aplicações e permite que o significado dos termos e dos conceitos seja prontamente processado pelos computadores (BERNERS-LEE et al., 2001); pode utilizar XML em sua sintaxe e URI para descrever entidades, conceitos, propriedades e relações. A linguagem RDFSchema contém esquemas que facilitam a recuperação de informações no formato adequado para uma determinada aplicação, tornando possível aos programas de computador “entender” as informações. A RDFSchema define classes e propriedades específicas às aplicações, sendo que as classes podem ser coleções de recursos. A camada Web Ontology Language – OWL - utiliza Lógica de Descrição (Lógica de primeira ordem) e pretende estender o significado das aplicações que utilizam a Web para programas que interpretam automaticamente essas informações. O objetivo é inserir a interoperabilidade de máquinas, programas automáticos, agentes10 etc. com sistemas Web. A linguagem OWL permite que se faça inferência sobre o conteúdo que ela representa. Semantic Web Rule Language – SWRL - é uma linguagem para escrever regras em lógica de primeira ordem. Utilizada em conjunto com OWL, forma uma dupla potente de linguagem de representação do conhecimento para Web. SWRL e OWL juntas permitem guardar informação categorizada e recuperá-la. Além disso, também permitem que um motor de inferência possa usar essa base para acrescentar novos conhecimentos à própria base. Anotações são feitas sobre a base de conhecimento principal, acrescentando-se um link para uma informação que explicite mais ainda esta informação. A camada Anotação acrescenta informação à própria informação, permitindo distingui-la de outras informações, caracterizando-a melhor. A camada Integração porta interoperabilidade para as aplicações, integrando fontes de informações; em termos semânticos, a integração traz à tona o significado exclusivo da informação, que extrapola aquele de uma simples palavra-chave ou de um thesaurus, aproximando-se de um catálogo do tipo “páginas amarelas”. A cada camada aumenta o reconhecimento do valor da informação. A inferência é possível quando a linguagem de descrição é rica o suficiente para descrever axiomas e frases lógicas, permitindo que um programa do tipo sistema especialista ou uma máquina de regras interprete a informação, acrescentando-lhe nova informação. Esta nova informação, embora ainda não estivesse escrita, obedece às regras existentes. A camada Inferência raciocina com base na informação existente e cria novas instâncias da informação. Esta camada não cria novas regras, a exemplo das conclusões construídas a partir de propriedades de transitividade: se Flávio Simões é filho do Luiz Simões e cada pessoa pode ter um só pai, e João Barbosa é pai do Flávio Simões, então, conclui a máquina, Luiz Simões e João Barbosa são a mesma pessoa. Em resumo, o desenvolvimento da Web Semântica concentra-se na definição de camadas de linguagens utilizadas no suporte à representação e utilização de metadados; as linguagens constituem o instrumental básico utilizado para acrescentar significado à informação necessária para a Web Semântica (GLOBE, 2007). As aplicações da Web Semântica são inúmeras, e as indicações a seguir constituem uma amostra: biblioteca de metadados (para integração em um único domínio); integração de dados em segurança pública; integração de dados de P&D; ferramentas de busca; conexão de conhecimentos de diferentes disciplinas, como genômica, proteômica, ensaios clínicos, regulamentação e outras; governo eletrônico e energia (HERMAN, 2007). Em termos de página na Internet, o Mind Lab11, do Institute for Advanced Computer Studies, da Universidade de Maryland, combina tecnologias Web (HTML, XHTML, XML, PHP, CSS etc.) com linguagens WS (RDF, RDFS, DAML+OIL, OWL) e outras ferramentas. O projeto FOAF – Friend of a Friend12, cuja proposta é criar páginas da Web pessoais que também possam ser lidas por máquinas, igualmente incorpora tecnologias WS. Já o centro Biotechnological Centre – BIOTEC da Technische Universität Dresden desenvolveu uma máquina de busca em ciências da vida, e em particular em biologia molecular, GoPubMed13, baseada no serviço PubMed14. Os resultados das buscas são classificados de acordo com GeneOntology15, que é um vocabulário controlado para descrição do gene e dos atributos de seus produtos em qualquer organismo. Ao mesmo tempo, alguns produtos comerciais já utilizam tecnologias WS16 desenvolvidas pelo Consórcio W3C. Estas iniciativas ainda guardam alguma distância de um modelo de Web de dados e informações, ou seja, da Web Semântica. Este distanciamento ocorre porque ainda não existe mediação baseada em agentes, em larga escala, a qual depende da consolidação de padrões e tecnologias Web que descrevam significados RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.141-152, jan.-jun., 2007 145 (SHADBOLT et al., 2006). Por outro lado, a utilização crescente de ontologias na “e-ciência” para a integração de conjuntos de dados distintos e heterogêneos, oriundos de diversas áreas, pode acelerar o desenvolvimento da WS (SHADBOLT et al., 2006). Outros especialistas, como LÉVY (2006), argumentam, entretanto, que a WS não resolve a questão da interoperabilidade semântica17 porque a notação de conceitos em linguagem natural é arbitrária e também porque as inúmeras ontologias são incompatíveis. O que significa ontologia Duas questões inter-relacionadas estão presentes em muitas das discussões sobre Inteligência Artificial: a representação do conhecimento e a interoperabilidade. A primeira, já comentada na seção II, trata da representação do mundo (ou parte dele), de um modo tal que as máquinas possam processá-lo. Esta questão constituiuse em uma área específica de estudos, a engenharia do conhecimento, formada a partir do desenvolvimento dos Sistemas Especialistas (WELTY, 2003). A outra questão, mais recente, é a interoperabilidade entre os sistemas de informação, a qual ainda tem um longo caminho a percorrer para viabilizar a comunicação entre os sistemas e também entre estes e seus usuários. Em ambas as questões, as ontologias desempenham um papel fundamental. Existem muitas construções denominadas ontologias que se diferenciam no propósito da modelagem, da representação utilizada para a modelagem e do ponto de vista filosófico (BODENRIDER et al., 2006). O termo ontologia, originário da Filosofia, foi incorporado pela Ciência da Computação no começo dos anos de 1980, quando John McCarthy o utilizou pela primeira vez (WELTY, 2003). Desde então, surgiram muitas definições para ontologia, sem que se tenha notícia, até o momento, de um consenso sobre o termo na Ciência da Computação. Segundo WELTY (2003), a ontologia na Ciência da Computação trabalha o significado e a existência de objetos e conceitos; para o autor, a ontologia define os objetos e os conceitos que existem no domínio de um sistema, como estes se relacionam e qual é o significado mais claro possível destes objetos e conceitos. Para GRUBER (1983), importa a finalidade da ontologia e, no contexto do compartilhamento e da reutilização do conhecimento, a ontologia pode ser definida como uma especificação explícita de uma conceituação. Ou seja, a ontologia é uma descrição dos conceitos e dos relacionamentos que podem existir entre eles. Nesse contexto, a especificação da ontologia cria compromissos ontológicos, os quais significam um acordo sobre a adoção de um vocabulário consistente, embora incompleto, com relação à teoria especificada por uma ontologia. Segundo GRUBER (1983), a conceituação é a base de um corpo de conhecimento formalmente representado. Para STUDER et al. (1998), a conceituação refere-se a um modelo abstrato de um fenômeno, identificando os conceitos relevantes relativos a esse fenômeno; a especificação explícita indica que os tipos de conceitos utilizados e as 146 restrições referentes à utilização dos respectivos conceitos são explicitamente definidos. Segundo SHADBOLT et al. (2006), nos últimos cinco anos, os projetos em Web Semântica apontam para a necessidade de desenvolvimento, gestão e validação de ontologias, independentemente do domínio. A reutilização de ontologias e dados deverá conduzir os usuários à reutilização e à descoberta de informações, movimentos estes que podem apresentar grandes desafios para as pesquisas em Web Semântica. Por exemplo, poderá ser necessário procurar auxilio em áreas diversas, como análise de redes sociais e epidemiologia, para entender como a informação e os conceitos se espalham na Web e como garantir a origem e a confiabilidade da informação e dos conceitos (SHADBOLT, 2006). Os desenvolvimentos, as metodologias, os desafios e as técnicas em discussão sobre a Web Semântica contribuirão para a construção de uma nova Web e, segundo SHADBOLT (2006) e BERNERSLEE et al. (2006), para uma nova disciplina: a Ciência Web. A Ciência Web trataria de desenvolver, implementar e entender sistemas distribuídos de informação, sistemas de pessoas e sistemas de máquinas operando em escala global (SHADBOLT, 2006). Aplicações práticas de ontologias Tal como comentado na introdução deste trabalho, os projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação na biotecnologia moderna são multidisciplinares e demandam a integração de conjuntos de dados diversos e heterogêneos, tornando-se um dos principais mercados para a Tecnologia da Informação e Comunicação e inaugurando a bioinformática. Esta integração pode ser favorecida com a adoção de ontologias comuns. Tanto que, nos últimos anos, o desenvolvimento de ontologias de uso específico em determinadas disciplinas tornou-se uma realidade, permitindo que especialistas de um domínio compartilhem e anotem informações em suas respectivas áreas de expertise (NOY et al., 2001). As ontologias estão sendo adotadas não só por comunidades científicas, mas também em atividades comerciais18 e governamentais, como uma forma de compartilhar, reutilizar e processar o conhecimento sobre um domínio. Por exemplo, na área da medicina19, foi desenvolvido o Systematized Nomenclature of Medicine – SNOMED20, que é um vocabulário estruturado e padronizado, e a rede semântica Unified Medical Language System – UMLS21. Na área biomédica, a página Open Biomedical Ontologies – OBO22 - reúne vocabulários estruturados para uso compartilhado entre diferentes domínios das áreas biológica e médica. A OBO contém ontologias23 genéricas aplicadas a todos os organismos e ontologias de escopo mais restrito, para serem utilizadas em grupos taxonômicos específico. Já a página do projeto The Gene Ontology – GO24 - apresenta um vocabulário controlado para descrever genes e atributos dos produtos dos genes em quaisquer organismos. Outras disciplinas igualmente procuram integrar dados e informações, a exemplo do Plant OntologyTM Consortium25, que desenvolve, acompanha e compartilha ontologias sobre estruturas de plantas e seus estágios de crescimento e desenvolvimento, e do RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.141-152, jan.-jun., 2007 projeto Marine Metadata Interoperability26, que promove o intercâmbio, a integração e o uso de dados em ciências do mar. A construção da Linguagem de Marcação da Plataforma Lattes27 – LMPL - é uma iniciativa brasileira voltada para a integração de sistemas de informações em ciência e tecnologia através da construção de uma ontologia comum neste domínio (PACHECO et al., 2001). Na área governamental, a Diretiva 2003/98/EC, da Comissão Européia, estabeleceu condições gerais para a reutilização de documentos produzidos pelo setor público dos países Membros e para o acesso a estes documentos. Esta Diretiva visa facilitar a ampla circulação de informações sobre produtos e serviços contidos nos documentos, inclusive no ambiente empresarial, promovendo, desta forma, a competição (EU, 2003). No Reino Unido, o estabelecimento de políticas sobre padrões, acesso e fomento à reciclagem de informações do setor público é de responsabilidade do Office of Public Sector Information28 – OPSI. Também no Reino Unido, a página GovTalk29 é um fórum de trabalho conjunto para o desenvolvimento de políticas e padrões para o governo eletrônico; a página Electronic Service Delivery - ESD30 - disponibiliza listas controladas e padrões de dados associados, utilizados em todas as esferas do setor público; o vocabulário The Integrated Public Sector Vocabulary – IPSV31 – apresenta um esquema de codificação, utilizado na marcação de informação, visando garantir o fluxo transparente das informações entre os órgãos do setor público e oferecer aos cidadãos e empresários melhor acesso aos serviços públicos. Pode-se também encontrar ontologias de uso geral, como a taxionomia The United Nations Standard Products and Services Code® - UNSPSC32, que reúne uma classificação aberta para produtos e serviços em geral. O código UNSPSC é uma ferramenta de negócios que tem padrão aberto e, portanto, suas especificações estão disponíveis. O objetivo deste código é auxiliar a atividade de compras de empresas e instituições, consolidando valores e relacionando-os a produtos e fornecedores. O código UNSPSC é compatível com outros sistemas e permite análises agregadas e desagregadas em diversas etapas da atividade de compras, inclusive compras eletrônicas. Os segmentos incluídos no UNSPSC são: matérias-primas, equipamentos industriais, produtos finais, serviços e componentes. Exercício de elaboração de uma ontologia para gestão de compras governamentais eletrônicas Antes de terminar este trabalho, sugerimos um exercício de elaboração de uma ontologia que possa ser utilizada por organismos da Administração Pública Brasileira como ferramenta de auxílio às atividades de compras governamentais eletrônicas, as quais representam 57% do total contratado pelo governo federal (BRASIL, 2007). Estima-se que R$ 2 bilhões, ou 22% desse total, sejam referentes ao Setor Saúde33. De acordo com a Constituição Federal, art. 37, inciso XXI, as obras, serviços, compras e alienações no âmbito da Administração Pública Brasileira devem ser contratadas mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes. O arcabouço regulamentar básico da atividade de compras governamentais compreende: • Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, que regulamentou o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, e instituiu normas para licitações e contratos da Administração Pública (BRASIL, 1993) 34. • Decreto no 3.555, de 08 de agosto de 2000, que regulamentou o Pregão para a Administração Federal (BRASIL, 2000). • Lei nº 10.520, de 17 de junho de 2002, que instituiu, no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, também nos termos do artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, a modalidade de licitação denominada Pregão, para aquisição de bens e serviços comuns (BRASIL, 2002); e • Decreto no 5.450, de 31 de maio de 2005, tornou o Pregão obrigatório nas contratações públicas no Governo Federal, dando preferência o eletrônico (BRASIL, 2005). A modalidade de licitação denominada Pregão é destinada à aquisição de bens e serviços comuns, assim considerados aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos por meio de especificações amplamente conhecidas no mercado. Incluem-se, neste grupo, cerca de 50 mil tipos de produtos e 2,5 mil modalidades de serviços (BRASIL, 2007). O Pregão Eletrônico caracteriza-se por ser inteiramente realizado via Internet, através do portal de compras do governo federal – Comprasnet35. Segundo dados do Governo Federal (BRASIL, 2007), o País economizou R$ 1,8 bilhão com o Pregão Eletrônico em 2006. Nesse mesmo ano de 2006, o governo brasileiro adquiriu R$ 11,1 bilhões de bens e serviços comuns através da modalidade eletrônica. Ao todo, o governo federal contratou R$ 19,6 bilhões de bens e serviços comuns em 2006. Além da redução de custos para a administração, o Pregão Eletrônico pode agilizar e simplificar o processo de contratação, aumentar a segurança, a transparência e a democratização das compras governamentais, já que estas ocorrem pela internet. Estudo realizado pelo Banco Mundial – BIRD (BRASIL, 2006) – indica que o sistema brasileiro de compras governamentais eletrônicas, Comprasnet, é eficiente em termos de transparência na divulgação das licitações e de seus respectivos resultados, e na utilização de métodos de licitação competitivos. Este mesmo estudo recomenda melhorias na integração do Comprasnet com os sistemas de gerenciamento de contratos e pagamentos a fornecedores, ampliando o alcance do sistema sobre a logística de compras. Ademais, sabe-se que há uma heterogeneidade na nomenclatura de produtos e serviços adotada por usuários finais e gestores do processo de compras. Esta prática gera morosidade e dificulta a integração dos sistemas de informação intra e interorganismos governamentais. Neste particular, embora o sistema Comprasnet disponha de um Catálogo de Materiais, este ainda não foi RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.141-152, jan.-jun., 2007 147 inteiramente incorporado pelos órgãos governamentais e é desconhecido por boa parte dos usuários finais e gestores das atividades de compras. O Catálogo de Materiais do Comprasnet adota a classificação norte-americana Federal Supply Classification36, criada e desenvolvida pelo Departamento de Defesa, com o objetivo de estabelecer e manter um sistema uniforme de identificação, codificação e catalogação para todos os órgãos componentes de sua estrutura. O desenvolvimento de uma ontologia de produtos e serviços para a atividade de compras em geral, e do Setor Saúde em particular, poderá facilitar a prática da compra eletrônica e a integração entre os núcleos de planejamento, execução e gestão das compras inter e intra-organismos governamentais. Síntese e conclusão A consolidação da Tecnologia de Informação e Comunicação – TIC - foi apresentada ao longo do presente trabalho como uma tecnologia genérica (FREEMAN, 2003) que vem ocasionando expressivas transformações nas dimensões técnica, econômica, organizacional e institucional das sociedades contemporâneas. A configuração da “e-ciência” nos anos recentes confirma a vocação das atividades científicas avançadas como mercado para a TIC e mostra o potencial de transformação da TIC. A “e-ciência” exige grandes capacidades de processamento e de rede para tratar e gerenciar a enorme quantidade de dados diversos e heterogêneos gerados pelo trabalho científico, que passa a organizar-se em uma nova infraestrutura colaborativa para a produção do conhecimento científico com reflexos em outras atividades técnicas e comerciais. A evolução dessa nova organização do trabalho colaborativo demanda máquinas e redes mais potentes em arranjos do tipo Grid Computing, mas também a integração de dados e de sistemas. A construção de ontologias, as quais possuam aplicações em Sistemas Especialistas e em Web Semântica, é uma alternativa tecnológica para a interoperabilidade dos sistemas de informação e poderá favorecer essa nova organização do trabalho colaborativo em prol de uma gestão integrada de compras governamentais eletrônicas, particularmente no Setor Saúde. Notas 1. O conceito de “paradigma tecnológico” (DOSI, 1982) equivale ao de“trajetórias naturais” (Nelson et al., 1977) e corresponde à lógica que norteia a evolução de uma determinada tecnologia. 2. Embora o conceito de “paradigma técnico e econômico” guarde semelhança com os conceitos de “paradigma tecnológico” e “trajetória tecnológica”, FREEMAN (1990) argumenta que um paradigma técnico e econômico compreende princípios orientadores que evoluem para o senso comum de engenheiros e gestores ao longo do desenvolvimento de um novo ciclo de crescimento econômico. 3. O mercado mundial da bioinformática foi estimado em U$ 38 bilhões em 2006 (FREEMAN, 2003). 148 4. O termo cyberinfrastructure (NSF, 2007) é o equivalente norte-americano ao termo e-science, adotado no Reino Unido. 5. As três principais linhas de pesquisas em IA são: IA simbólica, IA conexionista e computação evolutiva. A IA conexionista trabalha com a modelagem da inteligência humana, simulando o funcionamento dos neurônios e suas interligações. A computação evolutiva é baseada em mecanismos evolutivos encontrados na natureza (BITTENCOURT, 2005). 6. O enfoque procedural manipula e raciocina sobre problemas específicos, em mundos simples, de modo a evitar os problemas de explosão combinatória, típicos dos métodos gerais (BITTENCOURT, 1998). 7. O endereço eletrônico http://www.openclinical.org/ applications.html disponibiliza informações sobre sistemas de gestão do conhecimento, sistemas de suporte à tomada de decisões e sobre aplicações em clínica médica projetadas para profissionais de saúde. 8. O Consórcio World Wide Web– W3C: http://www. w3c.org desenvolve tecnologias interoperáveis – especificações, orientação geral, software e ferramentas que favoreçam a expressão de todo o potencial da Web. O Consórcio é um fórum de informação, comércio, comunicação e compreensão mútua. 9. Recursos inclui qualquer entidade, como páginas da Web, partes de uma página da Web, dispositivos, pessoas e outros. 10. Agente(s): parte de um programa de computador executado sem o controle direto ou a supervisão do homem para alcançar metas estabelecidas por um usuário. Os agentes podem coletar, filtrar e processar informações encontradas na Web, inclusive com o auxílio de outros agentes (BERNERS-LEE, 2001). 11. Mind Lab: http://www.mindswap.org 12. Friend of a Friend: http://www.foaf-project.org/index. html. 13. GoPubMed: http://www.gopubmed.org 14. PubMed: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez/query. fcgi?db=PubMed&itool=toolbar. PubMed é um serviço da US National Library of Medicine que inclui 16 milhões de citações do MEDLINE e outros periódicos sobre ciências da vida. 15. GeneOntology: http://www.geneontology.org 16. Uma lista destes produtos pode ser encontrada em http://esw.w3.org/topic/CommercialProducts#head5ef4570c3401e6fbb8c719b398fc1692b8535d74 17. Segundo Pierre Lévy (2006), a interoperabilidade semântica equivale ao desenvolvimento da inteligência coletiva de base digital. 18. Encontramos ontologias do tipo taxionomias de categorias de páginas Web, como o site Yahoo!, e de produtos comercializados e suas características, como o site Amazon.com (NOY et al., 2001) 19. BODENREIDER et al. (2006) apresentam uma revisão do estágio atual das ontologias na biomedicina. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.141-152, jan.-jun., 2007 20. SNOMED: http://www.snomed.org/snomedct/index. html 21. UMLS: http://www.nlm.nih.gov/pubs/factsheets/ umls.html 22. OBO: http://obo.sourceforge.net 23. OBO – ontologias genéricas específicas: http://obo. sourceforge.net/cgi-bin/table.cgi 24. GO: http://obo.sourceforge.net/cgi-bin/table.cgi 25. Plant OntologyTM Consortium: http://www.plantontology.org 26. Projeto Marine Metadata Interoperability: http://marinemetadata.org. 27. Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/index.htm 28. OPSI – http://www.opsi.gov.uk/about/index.htm 29. GovTalk: http://www.govtalk.gov.uk/howitworks/howitworks.asp 30. ESD: http://www.esd.org.uk 31. IPSV: http://www.esd.org.uk/standards/ipsv_internalvocabulary. 32. UNSPSC: http://www.unspsc.org. 33. Esta estimativa tomou por base o valor total das licitações na modalidade Pregão em 2006 (R$ 8.833.380.000) e valor correspondente ao Ministério da Saúde no mesmo período (R$1.945.389.000), disponíveis em http://www. comprasnet.gov.br/publicacoes/boletins/12-2006.pdf 34. Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional, proposta de Projeto de Lei que altera dispositivos desta Lei. Por exemplo, está se propondo que qualquer modalidade de licitação estabelecida na Lei no 8.666 possa ser realizada e processada por meio de sistema eletrônico integrado à Internet (BRASIL, 2007a). 35. Portal eletrônico de compras governamentais – Brasil: http://www.comprasnet.gov.br 36. http://www.dlis.dla.mil/default.asp. Referências bibliográficas ALVES, M.C. et al. Desenvolvimento e validação de um sistema especialista para identificar fungos na análise sanitária de sementes. Revista Brasileira de Sementes, v.28, n.1, p.176-186 (2006). Disponível em: <http://www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010131222006000100025&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 7 Apr. 2007. em: <http://www.sciencemag.org/cgi/content/full/313/ 5788/769?maxtoshow=&HITS=10&hi...>. Acesso em: 18 Apr. 2007. BERNERS-LEE, T. Web for real people. s.l.:W3C. s.p. (2005). Disponível em: <http://www.w3.org/2005/ Talks/0511-keynote-tbl/>. Acesso em: 7 Apr. 2007. BERNERS-LEE, T.; HENDLER, J.; LASSILA, O. The semantic web: a new form of web content that is meaningful to computers will unleash a revolution of new possibilities. Scientific American, p.34-43, May 2001. BITTENCOURT, G. 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Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.141-152, jan.-jun., 2007 151 Sobre os autores Laura Viana Doutora em Engenharia de Produção pela Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia (COPPE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é analista em Ciência e Tecnologia da Fundação Oswaldo Cruz. Tem experiência profissional nos setores público e privado, com ênfase em inovação tecnológica e organização industrial aplicada às indústrias de tecnologia da informação e comunicação, farmacêutica e de alimentos, em estudos e projetos sobre inovação em serviços, pesquisa e desenvolvimento tecnológico e políticas públicas. Olga Nabuco Doutora em Engenharia Mecânica pela Universidade Estadual de Campinas e pesquisadora do Centro de Pesquisa Renato Archer. Atualmente é pesquisadora visitante do Laboratoire D’Analyse Et D’Architecture Des Systemes – Centre National de la Recherche Scientifique (LAAS/CNRS). Sua área de atuação caracteriza-se, principalmente, pelos estudos de modelos de representação de conhecimento, ontologias, compartilhamento de conhecimento, arquiteturas orientadas a serviço, modelos de negócios e web semântica. 152 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.141-152, jan.-jun., 2007 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Artigos de revisão Inovação e sistemas de inovação: relevância para a área de saúde José Eduardo Cassiolato Helena M. M. Lastres RedeSist (Rede de Pesquisa em Sistemas Produtivos e lnovativos Locais); Instituto de Economia - Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil [email protected] RedeSist (Rede de Pesquisa em Sistemas Produtivos e lnovativos Locais); Instituto de Economia - Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil [email protected] Resumo Nas últimas décadas do século XX, atenção especial passa a ser dada aos processos de geração, difusão e uso de conhecimentos. Diversos enfoques analíticos e normativos têm sido desenvolvidos visando entender e orientar esses processos. Este artigo objetiva apresentar e discutir os conceitos e sistema de inovação, suas vantagens e desafios, assim como examinar a experiência brasileira na sua utilização e no seu desenvolvimento. Em seu final, o artigo retoma as principais conclusões da análise realizada, destacando: (i) a prioridade de estimular e desenvolver os sistemas produtivos e inovadores mobilizadores do desenvolvimento social - como os de saúde; (ii) a urgência em avançar na compreensão das possibilidades de desenvolvimento dessas áreas, assim como na formulação de políticas que orientem e dinamizem esse desenvolvimento de forma sistêmica e sustentável. Palavras-chave Inovação, sistemas de inovação, arranjos e sistemas produtivos locais, experiência brasileira, áreas mobilizadoras do desenvolvimento social Introdução A atenção dada às formas de geração, difusão e uso de conhecimentos ganhou renovado vigor nas últimas décadas do século XX. Dentre os principais avanços, destaca-se o desenvolvimento do conceito de sistemas de inovação crescentemente utilizado para entender o papel da inovação e do conhecimento na competitividade de organizações e países. O foco deixa de ser as inovações e organizações individuais, passando a se concentrar nos processos sistêmicos que permitem às empresas e demais organizações aprender, usar e acumular capacitações e desenvolver novos produtos e processos (FREEMAN, 1982a; 1987; LUNDVALL, 1985; IMAI et al., 1989). Retomar esta discussão é um dos objetivos deste texto. Um segundo objetivo é o de discutir a experiência brasileira na utilização no desenvolvimento desse conceito, tanto na análise, quanto na orientação das capacitações produtivas e inovativas. Já o terceiro objetivo é o de alertar para a urgência de estimular e desenvolver os sistemas produtivos e inovativos mobilizadores do desenvolvimento social no Brasil - como os de saúde O artigo encontra-se estruturado da seguinte forma: o item 2 discute os desenvolvimentos do conceito de inovação desde o final dos anos 1960s, culminando com a evolução do conceito de sistemas de inovação, nos anos 1980s. O item 3 apresenta a evolução deste conceito, discutindo suas vantagens e desafios e apontando alguns do principais pontos de conexão entre as contribuições RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.153-162, jan.-jun., 2007 153 entre a chamada Escola Estruturalista Cepalina e a Escola Neo-schumpeteriana. O item 4 examina a experiência brasileira na utilização no desenvolvimento do conceito de sistemas produtivos e inovativos locais. Na conclusão, aponta-se a necessidade de avançar tanto no entendimento dos sistemas produtivos e inovativos mobilizadores do desenvolvimento social, como na formulação de políticas que orientem e dinamizem o desenvolvimento dos mesmos de forma sistêmica e sustentável. Inovação A literatura sobre inovação tem em sua fundação as contribuições de Schumpeter, e em especial sua tentativa de teorização da relação entre inovação tecnológica e o desenvolvimento econômico. O crescimento da economia é visto como um processo dinâmico que depende tanto da geração e uso das inovações, quanto dos processos de difusão das mesmas. Os avanços - produtivos, tecnológicos, organizacionais, institucionais, etc. - resultantes de processos inovativos são tomados com fator básico na formação dos padrões de transformação da economia e de seu desenvolvimento no longo prazo (SCHUMPETER, 1912; 1939; 1942). Essas contribuições têm sido qualificadas e aprimoradas por uma série de autores que o seguiram na busca de entender a dinâmica capitalista focalizando centralmente a dinâmica inovativa e seus impactos no desenvolvimento de organizações e países. Até os anos 1960, a inovação era identificada com novos produtos ou processos e entendida como ocorrendo em estágios sucessivos de pesquisa básica, pesquisa aplicada, desenvolvimento, produção e difusão (visão linear da inovação). Geralmente a discussão sobre as fontes mais importantes de inovação, polarizava-se entre aqueles que (i) atribuíam maior importância ao avanço do desenvolvimento científico (science push) e os que (ii) destacavam a relevância das pressões da demanda por novas tecnologias (demand pull). Nas décadas seguintes, o entendimento da inovação é requalificado e ampliado, com amplas conseqüências para a esfera das políticas de ciência e tecnologia (C&T). Estudos empíricos e teórico-conceituais mostraram que existe uma ampla gama de informações e conhecimentos essenciais favorecendo a geração e incorporação de novidades (inovação), processos estes caracterizados por mecanismos de tentativa e erro e de feedbacks. As inovações passaram a ser entendidas como resultantes do conjunto de atividades interligadas, compreendendo principalmente sua assimilação, uso e difusão. A análise do processo inovativo passa a se concentrar nas estruturas subjacentes a tais conexões. Reconheceu-se, por exemplo, que apesar de o processo de acumulação de conhecimentos ser essencialmente específico da empresa ele é fundamentalmente influenciado por constantes relações entre firmas e demais organizações. Portanto, a inovação passa a ser entendida não como “um único ato, mas sim uma série deles ... adquirindo significado econômico apenas através de extenso processos de redesign, modificação e inúmeras pequenas melhorias” (ROSENBERG, 1976) Ou como preferiu DOSI (1988), “a busca por e a descoberta, 154 experimentação, desenvolvimento, imitação e adoção de novos produtos, novos processos produtivos e novos sistemas organizacionais”. Especialmente importante foi o entendimento de que os processos de inovação e de difusão se determinam mútua e simultaneamente. Constatou-se na verdade que ao se iniciar o processo de difusão de qualquer tecnologia existe um conjunto de novidades concorrentes, baseadas em tecnologias que se alteram constante e sistematicamente em resposta à experiência e aos incentivos que surgem durante a difusão (METCALFE, 1986). Nesta perspectiva, interações entre produtores e usuários e a existência de um pool relativamente sofisticado de qualificações no entorno são elementos importantes no processo de desenvolvimento de uma nova tecnologia. Processos de seleção sociais, econômicos e políticos vinculados à geração, uso de difusão de inovações contribuem simultaneamente para definir as trajetórias tecnológicas. Trata-se, portanto, de uma relação biunívoca, onde o ambiente no qual a inovação se desenvolve e difunde conforma o padrão da evolução das tecnologias, que por sua vez redefine a própria trajetória inovativa. Ambientes diferentes onde se encontram as empresas e organizações são associados a diversos padrões de avanço tecnológico (GEORGHIOU et al., 1986). Isto ressalta as especificidades nacionais, regionais e locais dos processos de geração, uso e difusão de inovações. O processo inovativo é então visto como resultado da aprendizagem coletiva, a partir dos vínculos dentro da empresa e entre esta e demais organizações (LUNDVALL, 1985; PÉREZ, 1988). A inovação passou a ser vista, não mais como um ato isolado, mas sim como um processo de aprendizado interativo, não-linear, cumulativo, específico da localidade e dificilmente replicável. O caráter sistêmico da inovação já era reconhecido por FREEMAN (1982a), que apontava que as decisões e estratégias tecnológicas são dependentes de fatores que abrangiam o setor financeiro, o sistema de educação e a organização do trabalho, além da própria esfera da produção e comercialização de bens e serviços. Este esforço antecipou a definição do conceito de sistema nacional de inovação, a qual foi explicitada no livro sobre a evolução do caso japonês (FREEMAN, 1987). É interessante notar que diversos autores latino-americanos e caribenhos, pelo menos desde meados do século XX, sempre apontaram que o entendimento da dinâmica industrial e tecnológica, e das políticas para sua mobilização, exige considerar e atuar de forma sistêmica os condicionantes do quadro macroeconômico, político, institucional e financeiro específico de cada país (PREBISCH, 1949; FURTADO, 1961). Uma percepção fundamental de que este contexto mais amplo jamais pode ser ignorado foi a observação de que o mesmo se constitui em importante “política implícita” capaz de dificultar e até anular as políticas explícitas específicas (HERRERA, 1971). Significativo, também, é que os trabalhos de FREEMAN (1982a; b), que associando o entendimento da evolução do capitalismo às ondas de crescimento e depressão de longo prazo: RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.153-162, jan.-jun., 2007 • exploram as formas do processo inovativo no novo paradigma tecnológico das TICs; • criticam as teses de que o livre comércio seria desvantajoso para países menos desenvolvidos; • apontam a necessidade de iniciativas governamentais para dar conta da incertezas especialmente altas nos períodos de mudança de paradigma. As mudanças nos paradigmas técnico-econômicos são tidas como essenciais para explicar os períodos de crescimento e de crise econômica. Os novos paradigmas alteram as fronteiras tecnológicas e criam novos conjuntos de padrões, práticas e processos produtivos. Geralmente a mudança tecnológica é rápida e acompanhada por um grande nível de inércia nas instituições e organizações públicas e privadas. Deste modo, os períodos de crise são vistos a partir do conflito entre a emergência do novo paradigma e a estrutura institucional anterior, assim como os booms econômicos são relacionados aos períodos em que ocorre a adaptação das instituições e da estrutura econômica e a sua interação com o novo paradigma tecno-econômico (FREEMAN, 1982c; 1998; PEREZ, 1983; 1988). Estes desenvolvimentos levaram à ênfase da visão sistêmica nas proposições de política e à relevância de focalizar as articulações entre os diferentes atores nos distintos sistemas nacionais de inovação. Destaca-se a dupla característica das novas políticas: a inovação passa a ser o mais importante componente das estratégias de desenvolvimento (e não apenas das políticas de C&T ou das políticas industriais) e as políticas a ela direcionadas passam a ser entendidas como políticas para sistemas de inovação. O foco em conhecimento, aprendizado e interatividade deu sustentação à idéia de sistemas de inovação, os quais foram conceituados como conjuntos de instituições que contribuem para e afetam o desenvolvimento da capacidade de aprendizado, criação e uso de competências de um país, região, setor ou localidade (FREEMAN, 1987; 1988; LUNDVALL, 1992; 1995). Tais sistemas constituem-se de elementos que interagem na produção, uso e difusão do conhecimento. Estes sistemas contêm, não apenas aqueles diretamente voltadas ao desenvolvimento científico e tecnológico, mas vários outros, incluindo formas de comportamento, normas, políticas e demais características do contexto onde se localizam. Reforça-se, deste modo, a idéia que os processos de inovação - que têm lugar no nível da firma - são também gerados e sustentados por suas relações com outras empresas e organizações e dependem deste ambiente mais amplo. A evolução do conceito de sistemas de inovação, suas vantagens e desafios Conforme apontado por LUNDVALL (2006), alguns autores tendem a utilizar o conceito de sistemas de inovação de forma restrita, considerando-o como um desdobramento de visões anteriores sobre os sistemas nacionais de ciência e tecnologia (NELSON, 1993; MOWERY et al., 1995). Para esta linha de raciocínio, os pontos principais se relacionam a mapear indicado- res de especialização e desempenho nacionais relativos aos esforços de P&D e inovação e às organizações de C&T. No que se refere à política, os tópicos se referem exclusivamente à política explícita de C&T. A análise inclui alguns fatores que influenciam a produção e uso do conhecimento, mas ignora o conjunto mais amplo de elementos: desde aqueles que conformam a criação de capacitações – tais como a educação, treinamento, relações industriais e a dinâmica do mercado de trabalho – até aqueles outros mais gerais mas que afetam decisivamente os sistemas de inovação, como as políticas implícitas macro-econômicas e o setor financeiro. A definição mais ampla de sistemas nacionais de inovação inclui estas dimensões analíticas, incorporando o papel das firmas, organizações de ensino e pesquisa, governo (como um todo e não apenas a política de C&T), organismos de financiamento, e outros atores e elementos que influenciam a aquisição, uso e difusão das inovações. Nesta linha é que se enfatiza (i) o papel de processos históricos - responsáveis por diferenças em trajetórias de desenvolvimento, evolução político-institucional e capacitações sócio-econômicas; (ii) a importância do caráter nacional dos sistemas de inovação. (FREEMAN, 1982; 1987; LUNDVALL, 1985). Conforme destacado acima, desde o primeiro trabalho que introduziu o conceito, FREEMAN (1982a), argumentava que não apenas o desempenho dos países está ligado à inovação, mas que outros fatores além das organizações de C&T e P&D influenciam significativamente o desempenho inovativo de países e empresas, sublinhando a sua natureza nacional. Posteriormente ele usou especificamente o conceito amplo de sistemas nacionais de inovação na análise do desempenho econômico e tecnológico japonês dos anos 1950s até os 1980s. A abordagem de sistemas nacionais de inovação foi também ampliada por trabalhos que destacaram a relevância das relações produtor-usuário para a inovação e o papel do mercado doméstico (LUNDVALL, 1988). Tal trabalho destacou que uma importante fonte de inovação é o aprendizado interativo que ocorre na produção, desenvolvimento tecnológico, marketing, vendas e que envolve elementos não vinculados ao preço tais como poder, lealdade e confiança. Tudo isto reafirmou a importância de capturar a especificidade dos diferentes atores, o tipo e a qualidade das relações e o entendimento do papel das instituições no seu sentido mais amplo – como normas e regras, informais e formais. Ênfase especial foi dada a este papel das instituições na determinação: (i) de como as pessoas se relacionam e como elas aprendem e usam conhecimentos; (ii) da direção que tomam e da taxa em que evoluem as atividades inovativas (JOHNSON, 1992; LUNDVALL, 2006; JOHNSON et al., 2003). Evidentemente que continuam tendo enorme utilidade as análises focalizando as relações produtorusuário, universidade-empresa, etc. No entanto, não se deve esquecer todo o avanço registrado nas últimas três décadas no entendimento da inovação - como processo sistêmico, com múltiplas e simultâneas fontes e não-linear - o qual nos faz compreender que tais relações em alguns sistemas esta relações podem até ser as principais, RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.153-162, jan.-jun., 2007 155 mas jamais serão as únicas. Adicionalmente, destaca-se que em todos os países é reconhecida a importância de processos formais e informais de geração, aquisição, uso e disseminação de conhecimentos. No caso das relações universidade-empresa destaca-se, portanto, a restrição a este particular tipo de organização de ensino e pesquisa.1 Um enfoque mais amplo deve, não apenas considerar o contexto das organizações de ensino e pesquisa com um todo (incluindo universidades, escolas e centros de capacitação de diversos níveis), mas também ser capaz de apreender os processos informais envolvidos nos processos de aprendizagem e criação de capacitações. Reitera-se aqui a conclusão que para explicar o desempenho econômico é necessário considerar as dimensões sociais, políticas e culturais específicas a cada realidade. Isto por sua vez reforça a necessidade de um instrumental analítico/normativo mais amplo e complexo do que aquele oferecido pela teoria econômica tradicional. Nesta direção, tanto FREEMAN quanto LUNDVALL assinalam as restrições da análise quantitativa baseada em modelos abstratos, propondo um método por eles caracterizado como ‘reasoned history’. Citando SCHUMPETER na análise do desenvolvimento econômico eles sublinham que (FREEMAN 1982a; LUNDVALL, 2006): “... it is absurd to think that we can derive the contour lines of our phenomena from our statistical material only. All we could ever prove from it is that no regular contour lines exist … We cannot stress this point sufficiently. General history (social, political and cultural), economic history and more particularly industrial history are not only indispensable, but really the most important contributors to the understanding of our problem. All other materials and methods, statistical and theoretical, are only subservient to them and worse than useless without them.” Outra dimensão que constitui uma parte importante do entendimento mais amplo dos sistemas nacionais de inovação – e que tem um impacto significativo na inovação – é a perspectiva de tempo. Como exemplo de como diferenças institucionais têm uma influência decisiva na conduta e desempenho nacionais, as estratégias corporativas de curto prazo têm sido confrontadas com perspectivas de longo prazo. Tal fator é ainda mais relevante no caso de investimentos em atividades que necessitam maturação no longo prazo e envolvem alto risco, como é o caso de educação e inovação. Outra dimensão se refere ao papel da confiança e das instituições a ela relacionadas. A força e o tipo da confiança determinarão como o aprendizado interativo ocorrerá. Arranjos formais e legais refletirão e terão um impacto nesta dimensão social tácita. Outras instituições formais e informais que são importantes para o sistema nacional de inovação incluídas na definição mais ampla são: o nível de coesão e solidariedade, o papel da educação e treinamento, mercado de trabalho e legislação corporativa, legislação contratual, instituições de arbitragem, etc. Todas são historicamente determinadas e dependentes do contexto (JOHNSON et al., 2003; LUNDVALL, 2006). Foi particularmente relevante o fato de o conceito de sistema de inovação haver sido criado e desenvol156 vido em meados dos anos 1980, exatamente quando tomava corpo e rapidamente se difundia a tese sobre a aceleração da globalização econômica, a qual inclusive foi associada à hipótese de uma tendência a um suposto tecnoglobalismo2. Como vimos, esta abordagem reforçou o foco no caráter cumulativo localizado e nacional da geração, assimilação e difusão da inovação, assim como a conclusão que a base do dinamismo e da competitividade das empresas não se restringe: • a uma única empresa ou a um único setor, estando fortemente associada a atividades e capacidades existentes ao longo da cadeia de produção e comercialização, além de envolver uma série de atividades e organizações responsáveis pela assimilação, uso e disseminação de conhecimentos e capacitações; • apenas aos atores econômicos e às cadeias e complexos produtivos, mas reflete também as particularidades dos demais atores sociais e políticos, assim como dos ambientes onde se inserem. Assim, diferentes contextos, sistemas cognitivos e regulatórios e modos de articulação e de aprendizado são reconhecidos como fundamentais na aquisição, uso e difusão de conhecimentos e particularmente aqueles tácitos. Tais sistemas e modos de articulação podem ser tanto formais como informais. Outro avanço crucial consolidado na abordagem de SIN se refere à constatação de que inovação não se restringe a processos de mudanças radicais na fronteira tecnológica, realizados quase que exclusivamente por grandes empresas através de seus esforços de pesquisa e o desenvolvimento (P&D). São significativas as conseqüências de entender a inovação como “processo pelo qual as organizações incorporam conhecimentos na produção de bens e serviços que lhes são novos, independentemente de serem novos, ou não, para os seus competidores domésticos ou estrangeiros”.3 Esse entendimento ajuda a evitar diversas distorções, incentivando os policy-makers a adotarem uma perspectiva mais ampla sobre as oportunidades para o aprendizado e a inovação em pequenas e médias empresas (PMEs) e também nas chamadas indústrias tradicionais. As implicações para políticas de tais qualificações são significativas. Assim, em vez de ignorar as especificidades dos diferentes contextos e atores locais, os principais blocos do enfoque em sistemas de inovação exigem que sejam elas sejam captadas e analisadas. A ênfase em tratar a inovação como um processo cumulativo e específico ao contexto determinado permite desmistificar, por exemplo, idéias simplistas sobre as possibilidades de gerar, adquirir e difundir tecnologias. Tal ênfase torna claro que a aquisição de tecnologia no exterior não substitui os esforços locais. Ao contrário, é necessário muito conhecimento para poder interpretar a informação; selecionar, comprar, copiar, transformar e internalizar a tecnologia importada. Outro aspecto essencial é o papel central dado à inovação para a competitividade dinâmica e sustentável. Esta contrasta com a usual prioridade dada à exploração RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.153-162, jan.-jun., 2007 das vantagens competitivas tradicionais (como baixos custos da mão-de-obra e da exploração de recursos naturais sem uma perspectiva de longo prazo e à manipulação da taxa de câmbio), as quais FAJNZYLBER (1988) chamou de espúrias. Apesar destas e outras vantagens associadas ao desenvolvimento e uso da abordagem em sistemas de inovação, alertas têm sido feitos sobre o risco de estes representarem apenas rótulos novos em velhas práticas. Refere-se aqui àquele enunciado por REINERT et al. (2003), que algumas tentativas de uso do enfoque em sistemas de inovação não passavam de ‘a thin icing on a solid neo-classical cake´: ‘We argue that by integrating some Schumpeterian variable to mainstream economics we may not arrive at the root causes of development. We risk applying a thin Schumpeterian icing on what is essentially a profoundly neoclassical way of thinking, trade theory is but one example here. … As has already frequently been emphasized in the NIS approach, it is crucial to understand the different national contexts.’ (REINERT et al, 2003). A tentativa de dar um caráter operacional ao conceito de sistemas de inovação tem levado diversos autores a propor diferentes dimensões a ele associadas. Assim a idéia de sistemas supranacionais (FREEMAN, 1999), regionais (COOKE et al., 1998) e setoriais de inovação (MALERBA et al., 1996) tem sido proposta pela literatura. Em paralelo, a percepção sobre a importância da proximidade geográfica das empresas para explicar um bom desempenho na competitividade de firmas tem aumentado. Termos como sinergia, economias de aglomeração (clustering), eficiência coletiva, etc têm sido apresentados de modo a exprimir algumas preocupações de tal debate. A pesquisa sobre aglomerações industriais e sobre o local como uma fonte de vantagens competitivas tem crescido significativamente nos últimos anos. A idéia de aglomerações setoriais torna-se associada ao conceito de competitividade a partir do início dos anos 1990 e tem sido utilizada, tanto como unidade de análise, quanto como unidade de ação de políticas industriais. Evidentemente existem diferenças entre uma visão estritamente setorial da inovação e a abordagem sistêmica apresentada neste artigo. De fato, a visão setorial não captura a situação atual onde as fronteiras dos setores produtivos encontram-se em mutação, tornando-se fluidas. Questionam-se também as formas tradicionais de mensurar e avaliar atividades econômicas agrupando-as em setores, principalmente dada a heterogeneidade das organizações e suas estruturas produtivas e inovativas existentes dentro de um mesmo setor. Adiciona-se a esta condição a tendência tanto à incorporação de conhecimentos avançados e crescentemente multidisciplinares, como à convergência das funções e aparatos tecnológicos de vários segmentos até então desvinculados entre si. Tais tendências são particularmente marcante em situações de transformações técnico-econômicas radicais e abrangentes – como nas mudanças de paradigma (LASTRES et al., 2006). Há casos ilustrativos nos chamados setores primários, como o agrícola, o extrativo e o pesqueiro, e também naqueles mais avançados. MARQUES (1999), por exemplo, utiliza a produção de tomates para mostrar como as novas tecnologias afetam todas as etapas da cadeia produtiva, sugerindo que a produção deste bem depende e se articula profundamente com a produção de diversos setores, tornando pouco relevante a sua classificação como um produto agrícola: “agora, antes de plantar tomates são necessários muitos planos, desenhos, tabelas e roteiros para produzir as sementes geneticamente tratadas, os fertilizantes, o plantio geométrico, a colheitadeira, o sistema de seleção eletrônica, os recipientes e seus meios de transporte, etc. … – o tomate é um produto high-tech!” Aponta-se que com a alta difusão das novas tecnologias base do novo padrão – TICs, biotecnologia, engenharia genética e materiais avançados – mesmo setores considerados tradicionais podem apresentar-se como intensivos em tecnologias de ponta. Com isto se torna ainda mais evidente a inadequação da forma como são definidos os setores econômicos. Apesar de o conhecimento já acumulado sobre as trajetórias setoriais continuarem relevantes, tanto a produção quanto a inovação são cada vez mais influenciadas pelo conhecimento e as capacidades de diferentes atividades produtivas e áreas científicas e tecnológicas. Devido às dificuldades em mensurar os conhecimentos de variadas origens utilizados nos diferentes setores, continuamos tratando tais setores do mesmo modo que quando as classificações foram concebidas. Portanto, mesmo que sejam adicionadas novas atividades e setores àqueles que fazem parte dos sistemas estatísticos dos diferentes países, mostra-se crescentemente difícil continuar usando estas categorias sem questioná-las (LASTRES et al., 2006). As principais conclusões desta discussão contribuem para ressaltar a necessidade de um referencial que dê conta dos novos desafios. A classificação setorial usual relaciona-se a conjuntos de conhecimentos e atividades que podem agora estar representando peso minoritário no valor agregado do setor em questão. Evidentemente a linha de fronteira entre setores sempre foi arbitrária. Ressaltamos porém que, no quadro atual, torna-se mais agudo o problema de se captar - através de indicadores imperfeitos - apenas parte dos sistemas produtivos e inovativos. Existe, portanto, uma necessidade de avançar no refinamento do uso da visão sistêmica, tanto no âmbito analítico quanto político-normativo. O objetivo do próximo item é apresentar brevemente a experiência brasileira no desenvolvimento e uso pragmático do conceito de sistema nacional de inovação. A experiência brasileira no desenvolvimento do conceito de sistema de inovação No Brasil, o conceito de sistemas produtivos e inovativos locais foi criado e desenvolvido pela RedeSist em finais da década de 1990s e foi rapidamente disseminado na esfera de ensino e pesquisa e de política (CASSIOLATO et al., 1999; 2005; LASTRES et al., 1999; 2006). Este conceito combina as contribuições sobre desenvolvimento da escola estruturalista latino RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.153-162, jan.-jun., 2007 157 americana com a visão neo-schumpeteriana de sistemas de inovação.4 Chama-se a atenção para o significativo processo de aprendizado posto em marcha ao colocar em prática esta nova abordagem, tanto enquanto ferramenta analítica quanto de orientação de políticas. Todos os atores envolvidos aprenderam muito com erros e acertos e muitas vezes tiveram que inovar. • permite estabelecer uma ponte entre o território e as atividades econômicas, as quais também não se restringem aos cortes clássicos espaciais como os níveis municipais e de micro-região; De acordo com a definição proposta pela RedeSist5, sistemas produtivos e inovativos locais (SPILs) designa conjuntos de atores econômicos, políticos e sociais, localizados em um mesmo território, que apresentam vínculos ao desempenharem atividades de produção e inovação. SPILs geralmente incluem: • tem proporcionado um entendimento amplo das oportunidades e desafios colocadas ao desenvolvimento produtivo e inovativo; • empresas – produtoras de bens e serviços finais; fornecedoras de bens e serviços (matérias-primas, equipamentos e outros insumos); distribuidoras e comercializadoras; consumidoras, etc. – atuando tanto nos setores primário e secundário quanto no terciário; • organizações voltadas à formação e treinamento de recursos humanos, informação, pesquisa, desenvolvimento e engenharia, promoção e financiamento, etc.. • cooperativas, associações, sindicatos e demais órgãos de representação; Arranjos produtivos locais APLs designa os casos de sistemas fragmentados e desarticulados. Seguindo as orientações do foco em sistemas de inovação, esta abordagem focaliza conjuntos de diferentes atores, assim como atividades conexas dos diferentes sistemas produtivos e inovativos locais. Acompanhando o desenvolvimento deste conceito, a RedeSist também desenvolveu uma metodologia que focaliza e investiga as articulações entre empresas e destas com outros atores; os fluxos de conhecimento (em particular, em sua dimensão tácita); as bases dos processos de aprendizado para capacitação produtiva, organizacional e inovativa; e o papel da proximidade geográfica e da identidade histórica, institucional, social e cultural como fontes de diversidade e vantagens competitivas sustentadas. O objetivo final é discutir as implicações para políticas das análises realizadas6. As experiências pioneiras de analisar e promover sistemas produtivos e inovativos no Brasil confirmam que esta consiste de fato em uma nova forma de pensar e fazer política que: • coloca a geração, aquisição e difusão de conhecimentos e a criação e uso de capacitações produtivas e inovativas como fatores chave da produtividade e competitividade dinâmica e duradoura de organizações, regiões e países; • engloba diferentes tipos de atores e atividades, inclusive aqueles geralmente excluídos das ações de promoção, com por exemplo as empresas de micro e pequeno portes e seus requerimentos; as atividades do setor primário e terciário, os segmentos à margem da vida econômica formal – empresas, atividades e processos de aquisição, transmissão de conhecimento; • cobre o espaço, onde ocorre o aprendizado, são criadas as capacitações produtivas e inovativas e fluem os conhecimentos e particularmente aqueles tácitos; 158 • visa dar conta das variações espaciais devidas à grande extensão geográfica, heterogeneidade e desigualdades econômicas, políticas, sociais e regionais; • representa o nível em que as políticas de promoção do aprendizado e criação de capacitações produtivas e inovativas podem ser mais efetivas; • destaca a necessidade de articular e implementar as diferentes políticas numa perspectiva integrada e de longo prazo. Segundo esse enfoque, onde houver produção de qualquer bem ou serviço haverá sempre um sistema em torno da mesma, envolvendo atividades e atores relacionados desde a aquisição de matérias-primas, máquinas e demais insumos até a sua comercialização. Tais sistemas variarão desde aqueles mais rudimentares àqueles mais complexos e articulados, que funcionam de modo realmente sistêmico. Nesta perspectiva, o número de sistemas produtivos locais existentes em qualquer país é tão grande quanto sua capacidade produtiva permita. Tanto do ponto de vista analítico quanto normativo, não basta desenvolver indicadores e mapas objetivando identificar a quantidade de sistemas existentes e suas diferentes configurações e graus de desenvolvimento. De forma semelhante, por serem baseadas no reconhecimento das especificidades dos diferentes sistemas, as políticas para sua promoção são incompatíveis com modelos genéricos que utilizam idéias de benchmark e best practice. Diferentes tipologias e indicadores vêm sendo desenvolvidos visando entender os processos de aprendizado, capacitação e inovação. Entretanto, alerta-se que o uso de algumas dessas taxonomias, indicadores, assim como a seleção de casos exemplares não deve de maneira alguma inibir a compreensão dos elementos diferenciados que a riqueza das experiências apresenta no mundo real. Isto é particularmente importante no caso da definição e implementação de políticas. Sublinha-se aqui a conclusão que a adoção de políticas uniformes ignora a existência de disparidades, que decorrem não só de fatores econômicos, mas também de diversidades das matrizes sócio-políticas e das particularidades históricas (FURTADO, 1998). A mobilização de um determinado sistema produtivo geralmente implica em conjuntos específicos de requerimentos que variam tanto no espaço e quanto no tempo. Sugestões de política para mobilização de arranjos e sistemas produtivos e inovativos no Brasil A promoção de sistemas produtivos e inovativos tem sido vista como uma nova forma de política para o desenvolvimento industrial e tecnológico capaz de dar RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.153-162, jan.-jun., 2007 conta das especificidades do novo padrão de acumulação. No entanto, para que a ênfase em APLs corresponda não apenas meramente a utilização de novos rótulos em velhas práticas de forma a seguir a ‘moda’ e para se obter acesso a apoio financeiro, as abordagens analíticas e normativas devem avançar e incorporar de fato a essência dos conceitos envolvidos. Aponta-se, assim, para a necessidade de uma melhor compreensão dos conceitos de desenvolvimento, competitividade, inovação e APLs entre os pesquisadores, formuladores e executores de políticas, tanto públicas quanto privadas. Particularmente urgente é avançar no entendimento e uso coerente do conceito, assim como superar suposições que colocam (i) a promoção da inovação e da competitividade como oposta à promoção do desenvolvimento local e da inclusão social; (ii) o desenvolvimento local como sinônimo de fragmentação do espaço nacional. Adicionalmente, coloca-se a necessidade de formular e implementar políticas adaptadas aos desafios brasileiros e que promovam um desenvolvimento mais amplo e inclusivo, em vez de apostar sempre e exclusivamente nos mesmos “vencedores”, o que contribui para reforçar as desigualdades regionais e sociais. Nesta linha, recomenda-se que as discussões sobre política para promoção de APLs iniciem com a superação da visão enviesada e parcial sobre os processos de desenvolvimento e dos modelos genéricos de política - os quais têm como referência o desempenho das maiores e mais dinâmicas empresas do mundo e as instituições de alguns países desenvolvidos - e com o necessário desenvolvimento de referenciais conceituais próprios e capazes tanto de captar as especificidades do desenvolvimento produtivo e inovativo brasileiro quanto de orientar tal desenvolvimento. Além desse mais amplo domínio e melhor utilização do conceito, outros três desafios maiores colocam-se às políticas de promoção de arranjos e sistemas de produção e inovação no Brasil. O primeiro diz respeito à necessidade de superar a superficialidade, miopia e imediatismo dos objetivos das políticas; reverter a destruição das capacidades locais, produtivas e inovativas; e garantir que as políticas implícitas não sejam anuladas pelas explícitas. Isto remete tanto à capacidade de desenhar e implementar políticas que sejam economicamente dinâmicas, socialmente inclusivas e politicamente viáveis, quanto à necessidade de desenhar e implementar uma política pró-ativa e de longo prazo de desenvolvimento, nas quais as demais possam se articular e sustentar. Grande parte dos insucessos das políticas públicas e privadas, especialmente aquelas para o desenvolvimento industrial e tecnológico, derivam da falta desse projeto nacional que as oriente e ancore. Qualquer política, especialmente a de promoção de arranjos e sistemas produtivos locais, será mais efetiva se representar o rebatimento - setorial, regional e local - das prioridades de um projeto de desenvolvimento nacional de longo prazo. Em segundo lugar, coloca-se a necessidade de (i) identificar e desenhar políticas com olhar e ação sistêmi- cos, que levem em conta os requisitos dos diferentes atores locais e seus ambientes; (ii) envolver o conjunto desses atores e ambientes em seu desenho e implementação; e de (iii) garantir a coerência e a coordenação das políticas em nível local, regional, nacional e supranacional. Em terceiro lugar coloca-se o objetivo de transformar estruturas produtivas desarticuladas e fragmentadas em sistemas dinâmicos e inovadores. Ou seja, como promover e apoiar empresas e outros atores de forma que estes se transformem em um grupo de atores que interagem e colaboram na produção, inovação, design, comercialização, etc. Um desafio associado refere-se ao objetivo de proporcionar a estes sistemas condições que lhes permitam trilhar este caminho de forma não espúria e sustentada. De forma resumida, recomenda-se no curto prazo desenvolver os arranjos e sistemas brasileiros mobilizando sinergias, conhecimentos e capacitações para o desenvolvimento. Isto implica em apoiar os sistemas produtivos e inovativos já existentes no país, garantindo sua sustentabilidade, assim como mobilizando seus processos de aprendizado e criação de capacitações. O escopo dos casos a serem apoiados deve ser amplo e envolver atividades do setor primário, secundário e terciário. Ênfase especial deve ser dada àqueles sistemas que atendam às prioridades do desenvolvimento social e que contribuam para compensar os enormes desequilíbrios sociais e regionais brasileiros. Destaca-se, portanto, a necessidade de estimular e desenvolver tanto os arranjos e sistemas produtivos que contribuam para tais objetivos, quanto aqueles diretamente mobilizadores do desenvolvimento social e que contribuem para a melhoria das condições de vida da sociedade brasileira. Neste caso, colocam-se como carros-chefe os sistemas produtivos e inovativos nas áreas de saúde – e especialmente saúde pública – assim como os de alimentação, educação, habitação, saneamento etc.. Portanto a urgência em avançar na compreensão do desenvolvimento produtivo e inovativo destas áreas, assim como na formulação de políticas que orientem e dinamizem este desenvolvimento de forma sistêmica e sustentável. Notas 1. Os estudos realizados no Brasil – ao mesmo tempo em que confirmam a importância da participação das universidades em diferentes sistemas produtivos e inovativos – incluem também casos onde não existem universidades, mas sim centros de formação técnica, ou mesmo nem estes, nos quais os meios de geração e difusão de conhecimentos são exclusivamente informais, mas nem por isso menos importantes ou irrelevantes para a agenda de pesquisa e de política. 2. A idéia de tecnoglobalismo é que a geração de tecnologias dar-se-ia também de forma global, com o local não apresentando importância particular. 3. Esta definição baseia-se em proposta de Lynn Mytelka (1993), suas vantagens para países menos desenvolvidos são discutidas em Cassiolato, Lastres e Maciel, 2003 e Lastres, Cassiolato e Arroio, 2005. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.153-162, jan.-jun., 2007 159 4. Para detalhes sobre as convergências entre estas visões ver Cassiolato et al., 2005 e Guimarães, et al., 2006. 5. Ver www.redesist.ie.ufrj.br. FREEMAN, C. Technology policy and economic performance- lessons from Japan. Londres: Frances Pinter, 1987. 6. A descrição detalhada desta metodologia encontra-se em www.sinal.redesist.ie.ufrj.br. Ver também Lastres, Cassiolato e Campos (2006). FREEMAN, C. Diffusion: the spread of new technologies to firms, sectors and nations. In: HEERTJE, A. (Ed.). Innovation, Technology and Finance. Oxford, Basil Blackwell, 1988. Referências bibliográficas FREEMAN, C. The national innovation systems in historical perspective. Cambridge Journal of Economics, v.19, n.1, p.5-24, 1995. AROCENA, R.; SUTZ, J. Knowledge, innovation and learning: systems and policies in the North and in the South. In: CASSIOLATO, J.E.; LASTRES, H.M.M; MACIEL, M.M.L. (Eds.). Systems of innovation and development: evidence from Brazil. Cheltenham: Elgar, 2003. 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New York: McGraw-Hill, 1939. Sobre os autores José Eduardo Cassiolato Doutor em Desenvolvimento, Industrialização e Política Científica e Tecnológica e Mestre em Economia do Desenvolvimento pela Sussex University, Inglaterra e Economista pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor e pesquisador do Instituto de Economia (IE/UFRJ) onde coordena a RedeSist e um projeto de pesquisa internacional sobre sistemas de inovação no Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Além disso, é membro do Conselho Científico da rede mundial Globelics, Professor Convidado do Mestrado Profissional em Gestão de C&T em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz; e da Escola de Pós-graduação em Inovação e Desenvolvimento Econômico: Globelics Academy de Lisboa em Portugal. Dedica-se à pesquisa e ensino em economia da inovação, do desenvolvimento e política industrial e de C&T&I. Helena Maria Martins Lastres Doutora em Desenvolvimento, Industrialização e Política Científica e Tecnológica da Sussex University na Inglaterra; Mestre em Engenharia da Produção pela COPPE/UFRJ e Economista, Faculdade de Economia, Administração/UFRJ. Atualmente é professora, pesquisadora e coordenadora da RedeSist, UFRJ. Além disso é pesquisadora Titular do Instituto Brasileiro de Informação Científica e Tecnológica do MCT e professora convidada do Mestrado Profissional em Gestão de C&T em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz; e da Escola de Pós-graduação em Inovação e Desenvolvimento Econômico: Globelics Academy de Lisboa em Portugal. Dedica-se à pesquisa e ao ensino em política de desenvolvimento industrial e tecnológico; economia da inovação, da informação e do conhecimento e arranjos e sistemas produtivos e inovativos locais. 162 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.153-162, jan.-jun., 2007 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Ensaios Gênero, democracia e filosofia da ciência Sandra Harding Graduate School of Education and Information Studies – University of California, Los Angeles, Estados Unidos [email protected] Resumo Epistemologias feministas e filosofias da ciência questionaram padrões convencionais de objetividade, racionalidade, “bom método” e “ciência real”. Este texto enfoca os padrões mais fortes, reivindicados por feministas, para maximizar a objetividade e os desafios às filosofias e histórias da ciência convencionais resultantes do conhecimento de tradições da ciência e tecnologia não-ocidentais. As ciências e filosofias da ciência que quiserem promover o progresso e a justiça sociais não poderão fazê-lo se ignorarem esses desafios feitos por grupos localizados nas “periferias do Iluminismo”. Palavras-chave Gênero, democracia, filosofia da ciência, epistemologias feministas, ciência não-ocidental Introdução Agora já se completaram três décadas que especialistas começaram a abordar as teorias e práticas da ciência e tecnologia (C&T) por meio das diferentes perspectivas produzidas pelo movimento das mulheres nos Estados Unidos e na Europa. Esses especialistas se perguntam em que medida a C&T discrimina os interesses das mulheres. Como uma estrutura social sexista na ciência e na sociedade produz os padrões de conhecimento e de ignorância das ciências modernas? O que pode ser feito para aumentar os efeitos democráticos dos projetos da C&T? Especialmente na última década, as análises que partiram da vivência de mulheres pertencentes a minorias raciais e étnicas no Norte e de mulheres do Terceiro Mundo acrescentaram perspectivas diferentes a esses debates.1 Aqui, farei uma breve análise dos principais temas tratados nessa literatura e, em seguida, mais brevemente ainda, vou me ocupar de suas conseqüências para as teorias da democracia e para a filosofia da ciência. Questões de gênero Inicialmente, cinco tipos de questões chamaram atenção desses especialistas.2 O espaço permite apenas uma rápida menção aos principais temas das quatro primeiras abordagens. Uma destas enfocou a ausência de igualdade de gênero na estrutura social das ciências naturais, da matemática e da engenharia. Historiadores descreveram como mulheres e gênero influenciaram as ciências européias e norte-americanas, e cientistas sociais documentaram os contínuos obstáculos com os quais as mulheres se depararam para atingir igualdade. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.163-168, jan.-jun., 2007 163 Atualmente, mulheres têm tido amplo acesso ao estudo pré-profissional e profissional das ciências naturais, da matemática e da engenharia, ao ensino e a trabalhos em laboratórios, publicações em revistas especializadas em pesquisa, e ao quadro de membros de sociedades da C&T. Todavia, quando se observa o mundo da C&T, quanto mais alto o escalão, menos mulheres se encontram. Seja no Norte ou no Sul, poucas mulheres dirigem os mais prestigiosos laboratórios, são chefes de departamentos de ciências naturais, matemática e engenharia nas universidades ou ocupam posições do topo nas agências ou organizações políticas da C&T internacionais. (HARDING et al., 1996; MIT, 1998; SCHIEBINGER, 1989; SCIENCE 1992, 1993, 1994) A persistência dessa discriminação contra as mulheres levanta outras questões problemáticas. Mais questões sobre elas seriam abordadas pelos projetos da C&T se houvesse mais mulheres elaborando políticas de C&T no Norte e no Sul? Além disso, essa discriminação de gênero prejudica a objetividade das demandas de conhecimento e dos padrões de conhecimento produzidos pela C&T? Deveríamos sempre nos preocupar quando aqueles que detêm o poder social, econômico e político e os que determinam o que consideram verdade são as mesmas pessoas? Uma segunda abordagem enfocou os casos das aplicações de tecnologias da C&T sexistas e androcêntricas. Tecnologias relativas à reprodução, habitação e local de trabalho, arquitetura e paisagismo urbano foram concebidas sem muita preocupação com a saúde, segurança e bem-estar das mulheres. Abordagens da tecnologia, feministas construtivistas, geraram análises esclarecedoras que foram obstruídas por concepções mais antigas de tecnologias como “máquinas e equipamentos” neutros culturalmente. Essas explicações mostram como os artefatos têm gênero. (COCKBURN, 1985; BERG et al., 1995; WAJCMAN, 1991). Especialistas indicaram como as chamadas práticas de desenvolvimento acrescentaram noções sexistas, do Norte, de culturas européias e norte-americanas, agências internacionais e corporações transnacionais às sociedades do Sul para reduzir a probabilidade de mulheres no Sul receberem benefícios de pesquisas da C&T concebidas no Norte ou no Sul. Exemplos especialmente deploráveis dessa discriminação foram documentados no trabalho sobre saúde, agricultura, recursos naturais (energia, água etc.) e pesquisa sobre meio ambiente (BAIDOTTI et al., 1994). Na terceira, resultados sexistas, racistas, imperialistas e “orientalistas” de pesquisas científicas nas áreas de biologia e ciências sociais justificaram imposições legais, econômicas e sociais que privam as mulheres de alguns direitos de cidadania. Ao mesmo tempo que esse tipo de pesquisa começou a florescer no século XIX, ainda tem êxito na sociobiologia e nas ciências sociais dominantes (FAUSTO-STERLING, 1994). Análises extremamente influentes emergiram de estudiosos e ativistas que trabalham com questões de gênero e desenvolvimento do chamado Terceiro Mundo (BRAIDOTTI et al., 1994; SMITH, 1999; VISVANATHAN et al., 1997). 164 Na quarta, o foco nos currículos e na pedagogia de ciências naturais, matemática e engenharia mudou a atenção das famosas deficiências das meninas e mulheres adultas para as deficiências evidenciadas dos currículos e da pedagogia da C&T. Meninas e mulheres maduras tendem a ter diferentes estilos de aprendizado, de pesquisa e diferentes interesses na C&T dos de seus irmãos. No Sul, os projetos de alfabetização da C&T têm de lutar também contra as taxas de analfabetismo mais altas das mulheres, em algumas culturas, e contra a demanda de meninas e mulheres adultas para serviços domésticos (HARDING et al., 1996; ROSSER, 1986). Epistemologia feminista e filosofias da ciência Talvez mais potencialmente revolucionárias têm sido as críticas de filosofias da ciência convencionais. Essas filosofias articulam a “lógica” do que elas identificam como as práticas científicas mais desejáveis, baseadas em sua compreensão da história da ciência. Feministas se perguntaram: como os próprios padrões de objetividade, racionalidade, bom método e boa ciência refletiram desproporcionalmente as preocupações das instituições que usaram a C&T como recurso para elaborar políticas constitucionais, de saúde, educacionais, militares e econômicas? Como seriam esses padrões se fossem concebidos para responder também aos interesses, medos e desejos das mulheres? Como seria a C&T se as mulheres, do Sul e do Norte, fossem também seus sujeitos mais do que apenas seus freqüentemente objetos malcompreendidos? (BRAIDOTTI et al., 1994; HARDING, 1991; KELLER, 1984) As respostas feministas mais interessantes a essas questões epistemológicas evitaram cuidadosamente rejeições inúteis de objetividade, racionalidade, bom método e da própria ciência. As mulheres necessitam mais objetividade, racionalidade, bom método e boa ciência para projetos que se originam em suas necessidades. Elas não necessitam as formas excessivamente estreitas dos que, há muito tempo, têm sido favorecidos nas filosofias da ciência. Como exemplo, consideremos a importância dos modos padronizados de pensamento sobre objetividade para as feministas (HARDING, 1998). Maximizar a objetividade exigiu maximizar a neutralidade dos valores. De acordo com a visão convencional, é por meio dos métodos científicos, especificados nos projetos de pesquisa, que os valores sociais e os interesses que os pesquisadores inevitavelmente levam para seu trabalho podem ser identificados e eliminados. Essa abordagem certamente tem suas virtudes. Todavia, é evidente que ela só consegue alcançar uma forma fraca de objetividade, uma vez que muitas suposições sexistas e androcêntricas (sem falar das suposições baseadas em interesses e valores de classe, religião, cultura, nacionais, raciais e imperiais) moldaram, nos que foram declarados os projetos de pesquisa científica mais rigorosos, os resultados das pesquisas em C&T, especialmente na biologia e nas ciências sociais. Como podem ser adequados os padrões convencionais de RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.163-168, jan.-jun., 2007 objetividade, se inúmeras vezes eles permitem descrições de inferioridade biológica e social das mulheres?3 Especialistas identificam três problemas desse tipo de padrão para maximizar a objetividade. Primeiro, importantes processos científicos ocorrem antes dos métodos científicos começarem e não são controlados por noções de método convencionais. Nesse “contexto da descoberta”, condições problemáticas naturais ou sociais são identificadas como, por exemplo, a pobreza. Apenas o que é problemático é conceitualizado: “muitas bocas para se alimentar”. Conceitos e hipóteses para conduzir pesquisas são formulados: “superpopulação”; “controle populacional”; “se a reprodução das mulheres for controlada, haverá menos bocas para alimentar”. Em seguida, é concebida a pesquisa para testar hipóteses. No caso aqui considerado, atualmente até as Nações Unidas reconhecem (desde a Reunião das Nações Unidas no Cairo em 1995 sobre população) que essa pesquisa supostamente objetiva não conseguiu identificar as suposições sexistas, racistas e classistas que moldaram muitas décadas de pesquisa sobre controle populacional. Em primeiro lugar, é a pobreza que causa o crescimento da população e não o contrário. Famílias pobres necessitam do trabalho e dos salários dos filhos para sobreviver e estes devem cuidar dos irmãos menores e, quando eles crescem, dos idosos, uma vez que os governos, rendas e riquezas herdadas sustentam as classes média e alta. Aumentar a educação das mulheres e, assim, sua renda possível constitui a única maneira mais eficaz de reduzir a fertilidade. Assim, as abordagens feministas demandaram análises críticas sistemáticas do “contexto de descoberta” assim como do “contexto de justificação”. Em primeiro lugar, pesquisas sobre a vida de mulheres, em vez de estruturas conceituais das instituições sociais dominantes e das disciplinas de pesquisa que lhes suprem de informações, podem gerar questões sobre “as práticas conceituais de poder” que não são acessíveis da perspectiva das instituições dominantes e de suas agendas de pesquisa (SMITH, 1990). Uma segunda crítica da objetividade fraca é que sua maneira de identificar valores e interesses sociais consiste em repetir observações feitas por diferentes indivíduos ou grupos; os métodos para se obter resultados científicos devem ser repetidos. Ao mesmo tempo que essa exigência é eficaz para identificar valores e interesses que se diferem entre observadores individuais ou grupos de pesquisa, ela não identificará aqueles que são compartilhados. Opiniões sexistas e racistas não são invenções de indivíduos ou grupos de pesquisa; são suposições amplamente sustentadas por instituições e pela sociedade como um todo que, antes do surgimento de feminismos e anti-racismos, pareciam perfeitamente naturais para quase todo mundo. No caso desses tipos de suposições profundas e difundidas, considera-se mais do que o uso de noções padronizadas de “bom método” para identificar valores e interesses distorcidos. Nesses casos, consideraram-se críticas políticas coletivas para dar visibilidade geral aos valores sociais e interesses que moldam as idéias sexistas e racistas. Mais uma vez, iniciar a pesquisa por estruturas conceituais diferentes das dominantes traz novas perspectivas para abordar as opiniões comuns de uma cultura. É claro que ninguém pode jamais ficar completamente fora de sua cultura. No entanto, simplesmente uma pequena liberdade relativa às opiniões prevalecentes pode proporcionar uma perspectiva crítica válida, como enfatizaram cientistas sociais ao relatarem a maior objetividade possível para quem está fora de um cultura. Isso nos traz um terceiro problema relativo à objetividade fraca. Não é possível distinguir os tipos de valores e interesses que aumentam e os que atrasam o crescimento do conhecimento. Uma vez que a maximização da neutralidade de valores considerou-se a única maneira sempre razoável de tentar maximizar a objetividade, pareceu sem sentido levantar a questão se e como os valores e os interesses sociais podem, às vezes, de fato aumentar a objetividade. Adiantando, no momento, meu tópico final, podemos observar que aqui se encontra um importante desafio a ser abordado pelos pesquisadores que estiverem interessados na responsabilidade social da C&T. Uma parte fundamental do desafio é conceitualizar como o que os pesquisadores observam é sempre dado tanto pela natureza quanto construído pela cultura – ou seja, evitar o naturalismo absoluto assim como o relativismo absoluto. Para colocar a questão de outra maneira, um tipo de realidade virtual é tudo aquilo que as ciências sempre mapearam para nós ou poderiam mapear. Para começar a responder a esse desafio, podemos pensar como valores e interesses antidemocráticos bloqueiam o crescimento do conhecimento, uma vez que calam as mais vigorosas perspectivas críticas sobre modos de pensar antidemocráticos e outros modos dominantes. Valores e interesses a favor da democracia dão a essas perspectivas visibilidade geral e, assim, ampliam as oportunidades para maximizar a objetividade dos processos de pesquisa. Todavia, essa percepção é de fato aqui apenas um começo, pois precisamos pensar mais sobre o que, essencialmente, queremos dizer com valores e interesses democráticos (aqueles evidentes nas tendências correntes à “democratização” global, em que a desigualdade econômica é ignorada e até mesmo algumas vezes intencionalmente acelerada? Ver ROBINSON (1996) e a respeito de como, especificamente, os processos de pesquisa científicos e tecnológicos os desenvolvem ou os atrasam. Muitos feminismos, muitos interesses da C&T A narrativa acima pode passar uma idéia de que há uma e apenas uma posição feminista sobre as questões da epistemologia e da filosofia da ciência. No entanto, isto não poderia acontecer e não acontece. Distintos feminismos surgiram nas “agendas públicas” durante os séculos XVIII e XIX na Europa e nos Estados Unidos. Estes basearam-se nas filosofias políticas – liberalismo, marxismo etc. – por meio das quais mulheres e homens fizeram reivindicações aos governos. Mary Wollstone- RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.163-168, jan.-jun., 2007 165 craft e John Stuart Mill começaram a pensar a partir da vivência das mulheres com quem tinham mais familiaridade. Tratava-se da vida das mulheres nas classes que tinham instrução, cujos interesses permaneceram fundamentais durante mais de dois séculos do Feminismo Liberal. É claro que hoje, quando a educação controlada pelo Estado continuamente aumenta a população das “classes com instrução”, é possível argumentar que o Feminismo Liberal expandiu amplamente seus interesses e que seus adeptos vêm de um espectro econômico e político mais amplo do que o do século XVIII. Feministas liberais tiveram diferentes interesses na C&T em comparação a outros grupos feministas como os dos feminismos marxistas e socialistas que surgiram no século XIX. Assim, não é de se espantar que o pensamento sobre a C&T do ponto de vista da vida de minorias raciais e étnicas no Norte e de mulheres no Sul também produza distintos interesses e temas. A narrativa acima sugere apenas algumas maneiras como os interesses dessa maioria de mulheres do mundo apareceram nas categorias críticas construídas para explicar grandes grupos de interesses da C&T das mulheres do Norte. No entanto, começar a pensar fora dessas estruturas filosóficas liberais e marxistas também levanta questões inteiramente novas para a C&T do Norte, feministas ou não (HARDING, 1993, 1998; HESS, 1995). Apesar de tudo, as tentativas de acrescentar os interesses das mulheres às estruturas conceituais dominantes da biologia, sociologia, antropologia, economia, filosofia política e outras áreas revelaram, de forma consistente, que os próprios arcabouços eram resistentes a esses projetos aditivos. A vida das mulheres não podia ser objetivamente entendida através de estruturas que tinham complexos sistemas de noções e categorias elaborados para conceitualizar a biologia das mulheres como inferior e suas contribuições para as relações históricas e sociais como mínima ou até mesmo negativa. Mas, então, nem a vida dos homens poderia ser objetivamente compreendida através dessas estruturas. Se mulheres, sua natureza e suas atividades não são de fato inferiores mas meramente diferentes, então tampouco homens, sua natureza e atividades são superiores ou merecedores da marca distintiva do idealmente humano. As próprias estruturas conceituais foram questionadas meramente pelas tentativas de “acrescentar mulheres e misturar”. Da mesma maneira, as tentativas de acrescentar a vivência da maioria das mulheres do mundo aos esquemas concebidos para explicar a vida de minorias relativamente privilegiadas no Norte moderno também mostraram as limitações daqueles arcabouços eurocêntricos para explicar objetivamente a vida de alguém. O importante para mim, aqui, é que agora temos disponíveis múltiplas perspectivas teóricas feministas esclarecedoras para questionar a história e práticas da C&T. E os feminismos multiculturais e pós-coloniais levantaram uma série de novas questões que colocaram desafios para as feministas do Norte assim como para as filosofias convencionais da C&T. Aqui, apresento apenas três dessas questões. 166 Questões filosóficas feministas multiculturais e pós-coloniais4 Primeiro, precisamos novas histórias e geografias da distribuição, no passado e no presente, do conhecimento dos seres humanos pela C&T. Não é mais razoável admitir que a ciência moderna ocidental seja a única capaz de contar uma história verdadeira sobre a organização da natureza. Hoje, novas histórias mostram a riqueza das tradições mais antigas chinesas, islâmicas e outras sul-asiáticas da C&T e práticas inovadoras de tradições indígenas contemporâneas da C&T em todo o mundo. Elas mostram a apropriação contínua dessas outras tradições de conhecimento pela C&T do Norte. No sentido mais amplo da C&T que essas novas descrições propiciam, as contribuições das mulheres para a história e para a acumulação atual de conhecimento humano ganham visibilidade. Além disso, essas narrativas revelam que, nos momentos marcados como progressivos nas histórias da ciência triunfalistas padronizadas, as mulheres e outros grupos subordinados, freqüentemente, perderam status sociais e recursos. Em segundo lugar, os estudos da ciência multiculturais e pós-coloniais mostram como os padrões de objetividade, racionalidade, bom método, e mesmo boa ciência foram definidos não só distantes das qualidades e práticas associadas ao feminino, mas também distantes do primitivo. Os padrões filosóficos que orientam a C&T ocidental moderna são padrões também de algumas formas características européias (e norte-americanas) de masculinidade. Eles não consideram os ideais humanos, mas apenas as formas historicamente específicas da masculinidade. Nos dois casos, esses padrões cortam a capacidade da C&T moderna ocidental tanto de detectar estruturas conceituais e práticas válidas que outras culturas desenvolveram quanto de conseguir fazer uma avaliação objetiva da eficácia e das limitações reais dessa C&T. Tradições da C&T não-ocidentais e de mulheres têm sido evitadas pelas filosofias da ciência nas áreas (entre outras) em que as mulheres estão inseridas em valores e interesses culturalmente locais e, portanto, não desinteressadas e objetivas transculturalmente. Todavia, essas tradições da C&T proporcionaram conhecimentos sistemáticos sobre o mundo natural e o social que possibilitaram suas culturas sobreviverem e prosperarem. Por outro lado, o desinteresse da C&T ocidental tornou-a útil para os atores mais poderosos da economia política global atual cada vez mais desigual, sem falar de uma longa história de outros projetos militaristas, lucrativos e antidemocráticos. Enquanto não estivermos preparados para compreender como a ética e a política moldam a boa ciência e não apenas a “ciência ruim”, não conseguiremos limitar os caminhos que levam a C&T a continuar servindo aos interesses do poder político e econômico. Finalmente, como as duas primeiras questões indicadas, esses estudos da C&T feministas, multiculturais e pós-coloniais, mostram como todos os sistemas de conhecimento, inclusive a C&T moderna ocidental, são historicamente diferentes, ou “locais”, de maneira significativa. Esses estudos quebram narrativas padronizadas RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.163-168, jan.-jun., 2007 triunfalistas das contribuições da C&T moderna ocidental para o progresso humano. Uma vez que diferentes culturas, ou mulheres e homens de uma cultura se interagem diferentemente com os ambientes naturais e sociais, têm interesses diversos, utilizam recursos de argumentação diferenciados e organizam distintamente a produção de conhecimento, tendem a desenvolver uma grande e variada quantidade de conhecimento sistemático e de ignorância sistemática. Por exemplo, aquelas que são designadas a cuidar de crianças e os que são designados a cuidar de motocicletas (para ser fiel aos estereótipos) desenvolverão distintos padrões de conhecimento e de ignorância de relações naturais e sociais. Assim, mulheres e homens em todas as profissões e diferentes culturas, em qualquer lugar do mundo, à medida que se ocupam de diferentes tipos de atividade, desenvolverão e manterão distintos padrões de conhecimento (e de ignorância). Além disso, todas essas são “ciências modernas” uma vez que são continuamente avaliadas sobre a possibilidade de seus usuários interagirem efetivamente com ambientes modificados e com informações e modos de pensamento recentemente vindos de outras pessoas e culturas. Essas questões desafiam os remanescentes da velha tese de unidade da ciência, segundo a qual há um mundo, uma “verdade” (explicação verdadeira) sobre ele, e uma única ciência (diferente historicamente, embora transcultural) essencialmente capaz de produzir aquela explicação verdadeira. Poucos que hoje refletem sobre a imensa diversidade de ontologias, epistemologias, e métodos que caracterizam as chamadas ciências modernas, sem mencionar as muitas outras tradições da C&T que contribuíram para o acúmulo do conhecimento humano, admitiriam essa tese de unidade da ciência em suas formas mais restritivas (Galison et al., 1996). No entanto, a maioria de nós detém suposições de unidade que dificultam avaliar os estudos multiculturais e póscoloniais disponíveis da C&T científicos, filosóficos, e sobre oportunidades feministas pró-democráticas. Como seria uma teoria do conhecimento humano que se construísse com base nas percepções desses movimentos contemporâneos característicos? Notas 1. Muitos termos fundamentais dessas discussões, tais como Terceiro Mundo, pós-colonialismo, desenvolvimento, feminismo e a própria palavra ciência são questionados. Por isso devem permanecer como os horizontes de nossa compreensão sobre como a C&T funciona nas relações sociais locais e globais que continuam a se expandir. 2. Analisei essas questões em vários lugares. Ver, por exemplo, HARDING (1991). 1980. Temas centrais e fontes dessa literatura podem ser encontrados em BRAIDOTTI et al., 1994; HARDING, 1998; e HESS, 1995. Referências bibliográficas BERG, A-J.; MERETE L. Feminism and Constructivism: Do Artifacts Have Gender? Science, Technology, and Human Values, v.20 n.3, p.332-351, 1995. BRAIDOTTI, R. et al. Women, the environment, and sustainable development. Atlantic Highlands, N.J.: Zed, 1994. COCKBURN, C. Machinery of dominance: women, men, and technical know-how. London: Pluto Press, 1985. FAUSTO-STERLING, A. Myths of gender: biological theories about women and men. New York: Basic Books, 1994. GALISON, P.; STUMP, D. (Eds.) The Disunity of Science. Stanford: Stanford University Press, 1996. HARDING, S. Feminism Confronts the Sciences: Reform and Transformation. In: Whose Science? Whose Knowledge? Thinking From Women’s Lives. Cap. 2. Ithaca: Cornell University Press,1991. HARDING, S. (Ed.). The ‘Racial’ Economy of Science: Toward a Democratic Future. Bloomington: Indiana University Press, 1993. HARDING, S. Is science multicultural? Post-colonialisms, Feminisms, and Epistemologies. Bloomington: Indiana University Press, 1998. HARDING, S.; MCGREGOR, E. “The Gender Dimension of Science and Technology,” UNESCO World Science Report 1996. Paris: UNESCO, 1996. HESS, D. Science and technology in a multicultural world: the cultural politics of facts and artifacts. New York: Columbia University Press, 1995 KELLER, E.F. Reflections on gender and science. New Haven: Yale University Press, 1984. MIT. “Women Scientists at MIT.” A Report, 1998. ROBINSON, W.I. Promoting polyarchy: globalization, U.S. intervention, and hegemony. New York: Cambridge University Press, 1996. ROSSER, S. Teaching science and health from a feminist perspective. Oxford: Pergamon Press, 1986. SCHIEBINGER, L. The mind has no sex? Women in the origins of modern science. Cambridge: Harvard University Press, 1989. 3. Existe atualmente uma ampla literatura que documenta essas afirmações feitas pela área de biologia e pelas ciências sociais. No que se refere à biologia, FAUSTO-STERLING (1994) é um bom trabalho para se começar. SCIENCE. Women in science. v. 255, s.p, 1992; v.260, p.383-430, 1993; v.263, p.1467-93, 1994. 4. Estudos da C&T multiculturais e pós-coloniais com seus diversos componentes feministas começaram a ter visibilidade internacional desde meados da década de SMITH, D.E. The conceptual practices of power: a feminist sociology of knowledge. Boston: Northeastern University Press, 1990. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.163-168, jan.-jun., 2007 167 SMITH, L.T. Decolonizing methodologies: research and indigenous peopes. New York: Zed Books, 1999. WAJCMAN, J. Feminism confronts technology. University Park: Pennsylvania State University, 1991. VISVANATHAN, N. et al. (Eds.) The women, gender and development reader. London: Zed Books, 1997. Sobre a autora Sandra Harding Filósofa. Atualmente professora de Educação e Estudos da Mulher na University of California (UCLA) em Los Angeles nos Estados Unidos. Lecionou por duas décadas na University of Delaware antes de se juntar à UCLA em 1996. Desde então, dirigiu o Center for the Study of Women da UCLA de 1995-2000, e co-editou a revista “Signs: Journal of Women in Culture and Society” de 2000 a 2005. É autora e editora de mais de quinze livros e revistas especiais incluindo: Science and Social Inequality: Feminist and Postcolonial Issues (2006); The Feminist Standpoint Theory Reader (2004); Science and Other Cultures: Issues in Philosophies of Science and Technology, co-editado com Robert Figueroa (2003); Is Science Multicultural? Postcolonialisms, Feminisms, and Epistemologies (1998); The Science Question in Feminism (1986). É professora visitante na University of Amsterdam, na University of Costa Rica, no Swiss Federal Institute of Technology, e no Asian Institute of Technology. Além disso, foi consultora de diversas organizações das Nações Unidas incluindo a Organização Mundial de Saúde, UNESCO e o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM), e a Comissão das Nações Unidas em Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento. Atualmente está escrevendo um livro sobre gênero, ciência e modernidade. 168 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.163-168, jan.-jun., 2007 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Resenhas The Challenge of Scientometrics. The Development, Measurement, and SelfOrganization of Scientific Communications Loet Leydesdorff Resenha – DOI: 10.3395/reciis.v1i1.34pt Por Léa Velho Professora titular do Departamento de Política Científica e Tecnológica, Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil [email protected] Publicado pela primeira vez em 1995 pela DSWO Press da Universidade de Leiden, Holanda, esse livro é uma segunda edição que, segundo o próprio autor, não difere substancialmente da primeira. Foi feita, basicamente, uma correção de erros tipográficos e acrescentou-se uma nova seção ao capítulo 10, baseada em estudo publicado depois da primeira edição. Esta foi traduzida para o japonês e o chinês, o que, de certa forma, já é uma indicação da influência internacional do pensamento do autor. Loet Leydesdorff é professor do Departamento de Estudos da Comunicação na Universidade de Amsterdam (Amsterdam School of Communications Research – ASCoR - http://www.pscw.uva.nl/ascor/). Ele é químico de formação com Mestrado em Química e em Filosofia e PhD em Sociologia. Ainda como estudante de pósgraduação em bioquímica, no início dos anos 70, foi que ele viu despertar seu interesse nas relações entre ciência e sociedade. Isso porque se associou a uma das então inovadoras experiências desenvolvidas pelas universidades holandesas que se intitulavam “science shops”. Essas organizações surgiram de forma independente quando pequenos grupos de professores e alunos interessados decidiram conduzir e coordenar estudos, assim como resumir e divulgar resultados de pesquisa sobre temas sociais e tecnológicos em resposta a questões e preocupações colocadas por grupos comunitários, organizações de interesse público, governos locais e trabalhadores (para mais detalhes sobre as science shops, ver: http://www. loka.org/pubs/chron.htm). Nesse processo, Leydesdorff se inclinou para os estudos sociais da ciência, sendo um Universal Publishers / uPUBLISH.com, 2001 ISBN: 1-58112-681-6 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.169-171, jan.-jun., 2007 169 dos fundadores, nos anos 80, do influente programa de pós-graduação e pesquisa em Dinâmica da Ciência (Science Dynamics) na Universidade de Amsterdam. Essa unidade, por razões que não cabem aqui discutir, acabou desaparecendo enquanto sua concepção original, mas por ela passaram os principais expoentes dos estudos sociais da ciência e da tecnologia que ainda hoje trabalham sobre o tema na Holanda, tais como Stuart Blume, Arie Rip, Rob Hagendijk, Nelly Oudshoorn, Olga Amsterdanska e, obviamente, Loet Leydesdorff. Desde que iniciou suas atividades de pesquisa e reflexão em estudos da ciência e da tecnologia, Leydesdorff publicou extensivamente nas áreas de cienciometria, teoria da comunicação, filosofia da ciência, sociologia da inovação e análise de redes sociais (para uma lista detalhada de suas publicações, ver http://www.leydesdorff. net/list.htm). Como ele mesmo reconhece, e sua lista de publicações indica, nesse trajeto trabalhou com inúmeros colaboradores das áreas de filosofia, história e sociologia da ciência, incluindo John Law, Michel Callon, Susan Cozzens e Henry Etzkowitz. Mas, ainda que transite pelos diversos referenciais conceituais e metodológicos da filosofia, história e sociologia da ciência, Leydesdorff chama a si próprio de “cienciometrista” (scientometrician, p. vii). E foi exatamente em reconhecimento à sua importante contribuição à cienciometria que Leydesdorff recebeu, em 2003, o prêmio Derek John de Solla Price concedido pelo conselho editorial e consultivo da revista Scientometrics. Entretanto, Leydesdorff não é um cienciometrista puro, definido este como o estudioso que analisa a ciência apenas como uma relação entre insumos e produtos que, respectivamente, entram e saem de uma caixa preta, onde não se sabe muito bem o que acontece. Pelo contrário, Leydesdorff tem uma visão complexa e sistêmica da produção de conhecimento e o foco de seu programa de pesquisa é exatamente produzir evidência empírica para seu argumento de que “os desenvolvimentos científicos são passíveis de medição”, a despeito do que dizem os sociólogos da ciência da vertente relativista/construtivista (p. 3). O argumento e o foco do programa de pesquisa de Leydesdorff, tão bem expressos no livro em questão, constituem um grande desafio. Por que? A principal razão é que neste livro, Leydesdorff procura identificar as bases conceituais da cienciometria com a visão moderna sobre dinâmica de produção de conhecimento. Ou seja, o autor argumenta que as premissas teórico-conceituais da cienciometria estão em sintonia, ou pelo menos não se confrontam, com as tendências atuais – relativistas e construtivistas – sobre ciência. É exatamente essa associação da cienciometria com os estudos sociais da ciência de vertente construtivista que, na minha opinião, se constitui no desafio principal deste livro. Isto porque a epistemologia subjacente à cienciometria difere radicalmente daquela subscrita pelos praticantes dos programas pertencentes à nova sociologia da ciência (Programa Forte, Relativismo de Bath e estudos de laboratório, para citar apenas os mais conhecidos). De fato, a cienciometria é, dentro dos estudos sociais da 170 ciência, a arena que herdou a dimensão quantitativa do trabalho de Merton e, consequentemente, é a “responsável” pela manutenção hoje dos pressupostos teóricos e epistemológicos dessa tradição - ainda que muitos que se utilizam das técnicas cienciométricas não tenham consciência muito clara de sua submissão ao paradigma Mertoniano. Quais são esses pressupostos Mertonianos que estão na base conceitual da cienciometria e como eles diferem das premissas e epistemologia da nova sociologia da ciência? Em primeiro lugar, a cienciometria, assim como o sistema social da ciência definido por Merton, vê a ciência como um processo de input-output. Certos recursos - no caso da ciência eles são recursos humanos, financeiros, equipamentos, laboratórios, bibliotecas, prédios - são alimentados a uma “caixa preta” e certos produtos emergem dessa caixa como resultado. A nova sociologia da ciência, por sua vez, considera que essa maneira de olhar a ciência é muito simplista, e passa por cima da parte mais interessante e crucial do problema: os processos que acontecem dentro da caixa preta e que transformam input em output. A cienciometria também vai buscar na tradição Mertoniana a definição do objetivo da ciência, qual seja, a produção de conhecimento científico certificado. Nessa visão está também embutida a noção de autonomia e de neutralidade da ciência, conceitos estreitamente ligados ao paradigma Mertoniano em sociologia da ciência, além da idéia de que o pesquisador que busca outros objetivos (por exemplo, contribuir para a solução de problemas práticos), não faz propriamente ciência. Todas essas concepções são fortemente refutadas pela nova sociologia da ciência. Coerentemente com a premissa anterior, a cienciometria assume, assim como Merton, que o produto da ciência e sua qualidade refletem-se integralmente nos instrumentos escritos formais de comunicação científica, particularmente nos artigos publicados em periódicos científicos. De acordo com a análise dos cienciometristas, os cientistas são recompensados pelas contribuições originais que fazem ao avanço do conhecimento científico, através da estima e reconhecimento que recebem de seus pares. Esse reconhecimento inclui as várias práticas eponímicas, o recebimento de prêmios honoríficos e número de referências na literatura científica aos trabalhos publicados pelos diferentes pesquisadores. Merton sugere que o reconhecimento adequado de uma descoberta é uma condição necessária para a manutenção do “comunalismo”, desde que sem reconhecimento os cientistas não teriam incentivos para publicar e a ciência não seria mantida como uma atividade pública institucionalizada e universal. E é exatamente essa universalidade da publicação científica como meio de comunicar novos resultados de pesquisa que possibilita aos analistas da ciência avaliar a ciência sem recorrer necessariamente aos cientistas basta analisar o que eles publicaram, onde publicaram e a quem se referiram. Os novos sociólogos da ciência, entretanto, consideram que a publicação formal é apenas um dos tipos de RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.169-171, jan.-jun., 2007 comunicação em ciência - menos significativo e radicalmente diferente dos meios informais - e, portanto, acreditam que faz pouco sentido derivar medidas quantitativas a partir da literatura científica. Eles argumentam que o conhecimento tácito - por exemplo, a aprendizagem de técnicas de laboratório durante o treinamento e os processos de “negociação” entre colegas - é parte constitutiva da ciência que, por definição, não pode ser descrita na literatura científica. Ignorar esses meios de comunicação informal, como os indicadores quantitativos convencionais fazem, é mais do que simplesmente escolher uma técnica analítica; significa a perpetuação de um relato excessivamente racional dos processos científicos, relato este que sistematicamente obscurece as características fundamentais da produção de conhecimento. Além do conhecimento tácito, outros tipos de conhecimento gerados pela pesquisa podem não chegar até a literatura científica publicada por uma série de motivos que podem ser ditos sociais: falta de motivação em função do sistema de recompensa vigente; dificuldade de acesso aos periódicos científicos; cláusula de confidencialidade imposta pela instituição; etc. Mesmo ignorando essas objeções, para transformar uma contagem de publicações em uma medida de conhecimento gerado, tem que se admitir que todo artigo contenha a mesma contribuição ao conhecimento - apesar dessa premissa ser muito pouco plausível. Sem dúvida, estudos empíricos têm demonstrado que a literatura científica não é constituída de artigos de igual qualidade. Em suma, ao oferecer uma visão geral objetiva da ciência ‘como ela é’, a cienciometria implica um enfoque impropriamente positivista e realista. Esse enfoque tem sido fortemente questionado pela nova sociologia da ciência. Portanto, compatibilizar as premissas conceituais da cienciometria com a visão moderna de ciência praticada pela nova sociologia da ciência constitui-se, de fato, em um grande desafio, mesmo para Leydesdorff que, como dito acima, não é um cienciometrista puro. Em vista do exposto, cabe perguntar: como o autor se sai no desafio que coloca a si próprio? Ele, de fato, desenvolve argumentos convincentes baseados, principalmente, na idéia de que certas premissas Mertonianas, tais como a separação entre fatores cognitivos e sociais, ainda que não “verdadeiras”, têm enorme validade para fins analíticos. Mas, não resolve a questão e termina-se a leitura da primeira parte do livro com a impressão de que, apesar dos esforços, o autor acaba se rendendo a uma visão Mertoniana do funcionamento do sistema científico. Apesar disso, o esforço feito pelo autor de desenvolver dimensões inovadoras no estudo quantitativo da ciência é digno de nota. Ele introduz, por exemplo, três dimensões diferenciadas da comunicação do conhecimento – autores, textos e cognições. Ele trata essas dimensões com enfoque multidisciplinar principalmente na primeira parte do livro que também inclui a discussão teórico-conceitual discutida acima. A Parte II – estudos metodológicos usando a teoria da informação – é certamente a parte central do livro. Aqui ele desenvolve os procedimentos e ferramentas metodológicas para tratar as questões e conceitos relativos à estrutura e dinâmica da ciência. As técnicas estatísticas usadas são relativamente simples, mas eficientes para estudar algumas características da informação científica. Na Parte III – comunicação, entropia probabilística e auto-organização – a noção de sistemas de informação em desenvolvimento torna-se mais claramente o foco de atenção. Para isso, desenvolve modelos matemáticos sofisticados e aplica-os a alguns conjuntos de publicações. Certamente o autor não teve intenção de escrever um livro texto em cienciometria, e, portanto, algumas referências básicas não aparecem. Assim mesmo, o livro inclui um enorme número de notas de rodapé (132) e referências (308), índice de autores e de assuntos. O livro, de fato, está organizado em 13 capítulos que são baseados em 15 artigos chave e outros 18 artigos adicionais produzidos pelo autor desde o final dos anos 80. Ainda que baseado em artigos publicados, o livro certamente foi consideravelmente reescrito porque ele não se assemelha a uma coleção de artigos, mas pode ser lido como uma monografia. Apesar disso, a leitura não é fácil para os não iniciados. Leydesdorff desenvolve uma lógica sofisticada (já que tem formação em filosofia) e inclui referências que não são comumente usadas pela comunidade de cienciometristas puros, tampouco pelos não iniciados em estudos sociais da ciência. Além disso, usa técnicas matemáticas avançadas, com isso reduzindo ainda mais o rol de leitores potenciais. Essa breve resenha não faz justiça, talvez, à profundidade intelectual do autor e nem às implicações dos novos conceitos que apresenta, assim como das maneiras de quantificá-los. É importante salientar a significativa contribuição deste autor e deste livro não só para a cienciometria, como também para o avanço das idéias sobre informação científica. Os problemas conceituais discutidos na primeira parte desta resenha são relativamente menores à luz da contribuição que ele oferece. A questão maior, talvez, para a ciência na periferia como é o caso brasileiro, é quanto podemos nos valer dos enfoques, conceitos e técnicas presentes para estudar a produção e comunicação de conhecimento nas nossas condições. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.169-171, jan.-jun., 2007 171 [www.reciis.cict.fiocruz.br] ISSN 1981-6278 Resenhas Knowledge-Based Economy: Modeled, Measures, Simulated Loet Leydesdorff Resenha – DOI: 10.3395/reciis.v1i1.36pt Por Lia Hasenclever Professora IE/UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil Evaldo H. Silva Doutorando IE/UFRJ, Professor UFV, Viçosa, Brasil O sujeito principal abordado no livro The KnowledgeBased Economy, de Loet Leydesdorff, é a economia baseada em conhecimento. O autor debruça-se sobre esse tema com um triplo objetivo: criar um modelo capaz de captar a nova dinâmica dessa economia, segundo ele distinta da economia de mercado e da economia política, mensurar essa dinâmica e simulá-la. Do ponto de vista teórico irá focar na especificação do sistema de uma economia baseada em conhecimento. A organização sistemática da produção do conhecimento e de seu controle, digamos assim cada vez mais ‘industrializada’, provê um terceiro mecanismo de coordenação (terceira subdinâmica) para o sistema social, fazendo com que a base de conhecimento seja endógena ao sistema. Quer entender em que medida as inovações baseadas em conhecimento reestruturam o sistema social com uma dinâmica distinta da racionalidade econômica ou das decisões políticas e gerenciais. Do ponto de vista técnico, as preocupações do autor são a ausência de uma operacionalização empírica e rigor metodológico na sociologia de Niklas Luhman e a falência nas teorias de sistemas sociais em encontrar uma solução para cobrir a brecha entre a modelagem de sistemas complexos em termos de simulação, como se tornou comum na economia evolucionária. Em especial está preocupado com as interfaces dos vários subsistemas que compõem a economia baseada em conhecimento. Acredita que essa perspectiva de operacionalização da dinâmica do sistema econômico tenha sido bloqueada pela controvérsia entre as teorias neoclássica e evolucionária. Universal Publishers, 2006 RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.173-176, jan.-jun., 2007 173 Tivemos o prazer de conhecer o autor no ano de 2000 por ocasião da realização do seminário Triple Helix III, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, do qual fizemos parte da organização, onde ele era também um dos organizadores. O título do seminário foi A transição sem fim: relações entre desenvolvimentos sociais, econômicos e científicos. Pode-se dizer que esse título já antecipava bem a preocupação do autor na elaboração dessa obra que ora comentamos. O autor é originalmente formado em bioquímica, tendo se especializado em filosofia e sociologia. Hoje é Senior Lecturer na ASCoR (Amsterdan School of Comunnication Research) da Universidade de Amsterdã, Holanda. No Brasil, é principalmente conhecido por suas publicações em estudos de ciência e tecnologia sobre a Hélice Tripla das relações entre universidade-indústria-governo. Publicou também trabalhos nas áreas de cientometria, teoria de sistemas, análise de redes sociais e sociologia da inovação. Em 2003 recebeu o prêmio Derek de Solla Price para Cientometria e Infometria. Em 2005 foi agraciado com a cadeira The City of Lausanne na Escola de Economia, da Universidade de Lausanne, Suíça. As pesquisas anteriores que sustentam a sua atual obra vêm de dois ramos. O primeiro ramo foi desenvolvido em colaboração com Henry Etzkowitz, gerando a Hélice Tripla das relações universidade-indústria-governo, que culminou no desenvolvimento de um modelo de inovação tecnológica. As diferentes dinâmicas que esse modelo pode gerar foram extraídas de observações empíricas. Neste livro é apresentado um instrumento de medição da dinâmica da Hélice Tripla e testado ao nível de um sistema global – Comunidade Econômica Européia (capítulo 8) – e ao nível nacional – economias holandesa e alemã (capítulos 9 e 10). O segundo ramo de pesquisa foi a elaboração de modelos de simulação para inovações baseadas em conhecimento em colaboração com Peter van den Besselaar e Daniel Dubois. Em especial, é grato a Dubois pelo estímulo a usar a idéia de sistemas antecipatórios no estudo dos sistemas baseados em conhecimento. Neste tipo de sistemas dois discursos são modelados: um histórico, seguindo os atores ao longo do eixo do tempo, e outro analítico – do tipo do discurso científico que analisa os eventos futuros em termos de respostas possíveis. Segundo o sociólogo Antony Giddens, isso gera uma dupla hermenêutica. O discurso científico irá permitir a discussão de futuros possíveis no presente sem estar baseado na experiência do passado, ou seja, sem ter vivenciado historicamente essas situações. Em outras palavras, diferente da evolução biológica, a evolução cultural reestrutura as observações do passado e escreve o presente pela interação que ocorre entre as subdinâmicas antecipatórias. Essa idéia de que o presente é moldado antecipatoriamente foi expressa pela primeira vez por Joseph Shumpeter, em seu livro de 1939, sobre o ciclo de negócios ao criar o conceito de “destruição criadora”. Também pode ser atribuída a Edmund Husserl, que, em 1929, introduziu a noção de “intersubjetividade” como um sistema diferente da noção de ‘subjetividade’, aspectos que serão discutidos pelo autor no capítulo 11. 174 O livro está subdividido em 11 capítulos, além de um prefácio. A junção do capítulo 1 com o prefácio sumariza os principais conceitos e pressupostos do modelo da hélice tripla que suporta as análises teóricas e empíricas da economia baseada em conhecimento. Nessa parte introdutória, fica clara o quanto é desafiadora a proposta do autor, a começar pela definição do conceito de economia baseada em conhecimento. Os estudiosos que trabalham com esse novo enfoque de economia dispõem agora de uma referência riquíssimas em insights teóricos e empíricos. O próprio conceito de economia baseada em conhecimento, apresentado na parte introdutória do livro, é radicalmente distinto das concepções até então prevalecentes. Em vista da relevância do tema, os autores dessa resenha acharam por bem fazer uma breve interpretação das concepções do autor em torno dessa questão. Uma economia baseada em conhecimento não emerge no momento em que se difundem as tecnologias digitais da comunicação e informação, ainda que esse processo seja parte integrante de sua dinâmica. Segundo o autor, a emergência desse novo sistema ocorreu no momento em que foram criadas instituições com o propósito de assegurar a organização sistemática da produção e o controle do conhecimento, o que teria ocorrido no final do século XIX. Esse fato, segundo o autor, foi responsável pela criação de uma terceira subdinâmica, a qual deu origem à hélice tripla que caracteriza a dinâmica da economia baseada em conhecimento. O mercado e o espaço geográfico constituem as outras duas subdinâmicas da hélice tripla (para fins de estudos empíricos, pode-se utilizar a dimensão tangível formada pela tripla universidade-indústria-governo). A economia baseada em conhecimento deve ser concebida, portanto, como uma referência analítica – uma hipótese – contida na reflexão de que cada uma dessas subdinâmicas coevoluem com a outra e que essas coevoluções integram-se para formar uma dinâmica de segunda ordem, definida em torno da noção de globalização. A existência de uma terceira subdinâmica permite a concepção analítica de um terceiro operador ou agente observador, o qual estabelece interconexões com o sistema de comunicação gerado pela coevolucão das outras duas subdinâmicas; porém, as informações trocadas nessas interconexões carregam incertezas, isto é, carregam significados que ainda são estranhos para os processadores de significado conectados dentro das subdinâmicas que coevoluem. Essa incerteza gera reflexão, que, por sua vez, gera incursão, moldando o presente em termos dos eventos futuros discernidos no conhecimento refletido. O conhecimento discursivo, que define a prática incursiva dentro de uma coevoluçao, ao receber o elemento de incerteza vindo da terceira subdinâmica, é permanentemente desconstruído e reconstruído pela reflexão. A economia baseada em conhecimento é definida, portanto, como uma economia fundamentada na dinâmica antecipatória, isto é, numa dinâmica incursiva em permanente transição. A difusão das tecnologias digitais da comunicação e da informação, ao acelerar a RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.173-176, jan.-jun., 2007 produção, a troca e o poder de processamento das informações, tem o claro papel de aprofundar essa dinâmica antecipatória. O capítulo 2 é dedicado ao propósito de se analisar a dinâmica da economia baseada no conhecimento de uma perspectiva da teoria da comunicação. O essencial desse capítulo é a tese de que os eventos percebidos geram informação (informação do tipo Shannon), cujo significado dependerá das especificidades e da capacidade cognitiva de cada estrato do sistema para os quais esses eventos afiguram-se como relevantes. Antes do processamento do seu significado, toda informação é uma incerteza. A comunicação, por sua vez, é um conceito mais restrito, pois refere-se à troca de informação com significado definido (informação relevante), constituindo assim os links do sistema de comunicação. Do ponto de vista dinâmico, a comunicação é um processo que se desenrola ao longo do eixo do tempo, mas o potencial reflexivo e incursivo da informação se efetivam periodicamente sobre os mecanismos de seleção da informação e de produção de significados, disturbando-os. Com isso, novos significados e canais de comunicação emergem dentro do sistema social. Nesse sentido, a economia baseada em conhecimento pode ser definida como um sistema de troca de informação relevante (significado) em permanente transição e com feedbacks que geram um aumento contínuo da capacidade de reflexão e incursão dos operadores dentro do sistema de comunicação. Nos capítulos 3 e 4, o autor formaliza o conceito de sistema antecipatório por meio dos modelos de simulação. O ponto central desses modelos é a premissa de que os estratos do sistema de comunicação são diferenciados em termos da natureza e da estrutura dos mecanismos de seleção da informação e de produção do significado. Essas diferenças geram subdinâmicas com temporalidades assincrônicas em suas operações de feedback e imagens ortogonalizadas do mesmo objeto. Essas diferenças produzem distintas percepções da mesma realidade, o que introduz o termo de incerteza na reflexão, do qual emerge uma dinâmica de segunda ordem, que se materializa no avanço da capacidade de processar complexidades dos operadores dentro do sistema de comunicação. O capítulo 5 é dedicado às análises das condições que asseguram a emergência e o funcionamento do sistema antecipatório, isto é, do sistema baseado no conhecimento. Segundo essas análises, o passo decisivo para a emergência desse sistema ocorre no momento em que duas de suas sudinâmicas deixam de ser recursivas – que segue o eixo do tempo histórico em suas relações de causalidade (o passado determina o presente) – transformando-se em subdinâmicas incursivas – que inverte o eixo do tempo (o futuro determina o presente). Em termos analíticos, uma dinâmica evoluindo isoladamente e recursivamente tende a gerar ciclos ou trajetórias explosivas. Por sua vez, duas dinâmicas coevoluindo recursivamente tendem a gerar lock-in (trajetórias irreversíveis). Finalmente, a incorporação de uma terceira subdinâmica recursiva sobre duas outras dinâmicas coevoluindo recursivamente gera bifurcação ou caos. Por- tanto, um sistema antecipatório só é concebível dentro da premissa de que pelo menos duas das subdinâmicas coevoluem incursivamente. Por definição, o mercado é uma subdinâmica incursiva, pois o processo de seleção no presente (oferta e demanda) envolve expectativas futuras. O mesmo ocorre com a organização sistemática da produção e controle do conhecimento. Em coevolução, cada uma dessas subdinâmicas incursiona sobre a outra, produzindo a hiperincursão: aos operadores de mercado, interessam os conhecimentos que poderão gerar lucros no futuro; aos operadores do conhecimento, interessam os mercados que apresentam expectativas de absorção dos conhecimentos produzidos. A hiperincursão é uma condição necessária, mas, paradoxalmente, ela gera tendências de lock-in na ausência de uma terceira subdinâmica interagindo com as outras. O papel dessa terceira subdinâmica é introduzir o termo de incerteza sobre a hiperincursão, o que torna imperativa a necessidade de aprimoramento da capacidade do sistema de comunicação de processar complexidades, o que caracteriza o sistema baseado no conhecimento. Os capítulos 6 e 7 podem ser vistos como uma digressão histórico-analítica da emergência da economia baseada em conhecimento. A ênfase desses capítulos recai sobre a evolução do sistema de comunicação, pois a dinâmica da hélice tripla está assentada na auto-organização da produção e troca de informações do tipo Shannon (incerteza) e na seleção dessas informações dentro de cada subdinâmica. A invenção da imprensa e a edição em escala da Bíblia (e de outros livros) representaram, segundo o autor, o primeiro marco em direção à emergência do sistema baseado em conhecimento, assim como um bom exemplo da auto-organização da produção e troca de informações e do seu impacto sobre o sistema social (o advento do protestantismo e do capitalismo). A invenção da imprensa foi analiticamente interpretada como uma bifurcação (ou mutação) do sistema social. No que foi exposto anteriormente, a bifurcação, ou caos, são tendências que caracterizam os sistemas em que a dinâmica global (hiperciclo) advém da integração de três subdinâmicas que coevoluem recursivamente. Do ponto de vista histórico, essa bifurcação ocorreu na época em que a dinâmica do sistema social era marcada por três tendências fundamentais: o avanço do sistema colonial, o fortalecimento dos estados-nações e a consolidação do pensamento científico. A organização sistemática da produção e do controle do conhecimento representa a bifurcação que consolidou definitivamente as bases do sistema baseado em conhecimento. As raízes dessa transformação encontram-se na consolidação dos sistemas republicanos e do livre mercado. Os capítulos 8, 9 e 10 são dedicados aos estudos empíricos relacionados à mensuração da economia baseada em conhecimento ou, mais precisamente, da hélice tripla universidade-indústria-governo. O capítulo 8 enfoca a economia global, e os capítulos 9 e 10 tratam, respectivamente, a economia holandesa e RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.173-176, jan.-jun., 2007 175 alemã. O conceito de informação mutual ou transmissão representa a peça-chave desses capítulos. Sempre que uma informação é produzida e trocada dentro de uma subdinâmica, gera uma incerteza para os operadores das outras subdinâmicas. Com isso, gera-se uma transmissão positiva.. Quando a informação é produzida em coevolução, ela se torna relevante (com significado) para os operadores das subdinâmicas que coevoluem, gerando assim uma transmissão negativa. Finalmente, as informações produzidas e trocadas a partir da integração das três subdinâmicas geram uma transmissão positiva, pois uma terceira subdinâmica sempre introduz o termo de incerteza nas informações trocadas entre os operadores das subdinâmicas que coevoluem. O balanço entre o total das transmissões negativas e positivas indica o grau de aprofundamento da economia baseada em conhecimento. Quanto maior a participação relativa da transmissão negativa maior é esse aprofundamento. Vale observar que o termo de incerteza, presente no estrato do sistema de comunicação onde são produzidas e trocadas as informações relativas à integração das três subdinâmicas, é uma condição sine qua non para a autoorganização do sistema de comunicação da hélice tripla. A presença desse elemento e o saldo negativo no balanço da transmissão são as características fundamentais que fazem da economia baseada em conhecimento um sistema não caótico e em permanente transição. No último capítulo o autor apresenta uma síntese e as conclusões de sua obra. Nessa parte, o autor reafirma 176 a sua tese de que a evolução do sistema social é guiada pelas avaliações subjetivas mutuais (intersubjetividade) entre os operadores do sistema, os quais se diferenciam em termos dos mecanismos de seleção das informações e de produção de significados, o que faz emergir um sistema de comunicação generalizado e auto-organizado. As principais contribuições do autor podem ser assim destacadas. Em primeiro lugar, provê uma modelação e uma simulação radicalmente novas do sistema que tem como centro uma economia baseada em conhecimento, captando a articulação existente entre estrutura, comunicação e posição hierárquica no processo de tomada de decisão. Em segundo lugar, traz uma ruptura, tanto teórica quanto técnica, para compreender a dinâmica interna da economia baseada em conhecimento, quando se introduz uma terceira dinâmica no modelo e se propõe o uso de modelos de simulação para desenhar a transição qualitativa das condições econômicas fortemente influenciadas pelo conhecimento. Finalmente traz contribuições importantes para a obra do sociólogo Niklas Luhmann, um dos poucos cientistas sociais capazes de explicar um evento decisivo quando ele acontece, introduzindo o fenômeno de antecipação em sua teoria. A obra aqui comentada pode ser de interesse de todos os profissionais que tenham a intenção de ampliar seu conhecimento sobre uma economia baseada em conhecimento. Entre eles, incluímos não somente teóricos desse novo tipo de economia, mas também os policies makers responsáveis pela formulação e operação de políticas de ciência, tecnologia e inovação em saúde. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.173-176, jan.-jun., 2007