FERNANDA SILVA SOARES
A CIDADE E A ÉTICA DO TER E DO SER
Dissertação apresentada ao Curso de Pós
Graduação em Geografia, na Área de
Ordenamento Territorial e Ambiental da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito para a obtenção do grau de Mestre
em Geografia.
Orientador: Prof. Dr. Ruy Moreira
NITERÓI
2007
S676
Soares, Fernanda Silva
A cidade e a ética do ter e do ser / Fernanda Silva
Soares. -- Niterói : [s.n.], 2007.
111 f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade
Federal Fluminense, 2007.
1.ÉTICA DAS RELAÇÕES SOCIAIS. 2.CIDADE.
3.CIDADE – SOCIOLOGIA. 4.PÓS-MODERNIDADE.
I.Título.
CDD 177
2
FERNANDA SILVA SOARES
A CIDADE E A ÉTICA DO TER E DO SER
Dissertação apresentada ao Curso de Pós
Graduação em Geografia, na Área de
Ordenamento Territorial e Ambiental da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito para a obtenção do grau de Mestre
em Geografia.
Defesa em 06 de dezembro de 2007.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Ruy Moreira - Orientador
Universidade Federal Fluminense (UFF)
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Floriano José Godinho de Oliveira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Ivaldo Lima
Universidade Federal Fluminense (UFF)
NITERÓI
2007
3
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..............................................................................................................06
CAPÍTULO I: A Cidade e suas Formas Urbanas no Tempo.........................................09
1.1. As cidades através dos séculos.................................................................12
1.1.1. A Cidade Antiga...........................................................................12
1.1.2. A Cidade Medieval.......................................................................22
1.1.3. A Cidade Islâmica........................................................................25
1.1.4. A Cidade do Renascimento..........................................................27
1.1.5. A Cidade Barroca.........................................................................30
1.2. As Cidades do Período Moderno...............................................................33
1.2.1. A Cidade na Revolução Industrial................................................40
CAPÍTULO II: O Conceito de Moderno e Pós-Moderno e a Ética no Urbano...............45
2.1. A Cidade Moderna e a Pós-Moderna.........................................................45
2.1.1. A Cidade Moderna.......................................................................45
2.1.2. A cidade Pós-Moderna.................................................................54
2.1.3. O Contraponto da Ética................................................................59
2.2. O moderno e o pós-moderno na literatura do urbano.................................67
2.3. O Conceito de Ética....................................................................................83
2.4. As Categorias da Ética e a Ética na Cidade...............................................86
2.5. Ética e Indiferença......................................................................................90
CAPÍTULO III: A Crítica da Atual Ética do Urbano........................................................92
3.1. Vende-se uma cidade: o exemplo da city marketing..................................92
3.2. A Cidade Chamada Shopping Center.........................................................93
3.3. A Cidade e o Fetiche..................................................................................95
3.4. Ética e Política na Cidade Mercantilizada..................................................96
CONCLUSÃO: Ética Urbana Atual, Críticas e Caminhos Possíveis...........................105
BIBLIOGRAFIA............................................................................................................109
4
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Imagem de satélite da parte nova da cidade de Barcelona (Espanha)
projetada por Cerdá. ............................................................ ........................................43
Figura 2: Centro Pompidou em Paris...........................................................................56
Figura 3: Hannover Gehry Tower.................................................................................57
Figura 4: Interior do Banco de Berlim...........................................................................57
Figura 5: Imperial War Museum North.........................................................................58
Figura 6: Norddeutsche Landesbank Hannover...........................................................58
5
AGRADECIMENTOS
A Universidade Federal Fluminense e em especial ao Instituto de Geociências
e ao Programa de Pós Graduação em Geografia.
A CAPES pelos subsídios fornecidos, sem os quais, a elaboração deste
trabalho seria dificultada.
A meu orientador, Ruy Moreira, que me ensinou com sua sabedoria infinda,
dando-me o privilégio de ser sua orientanda e de conviver alguns anos em sua
presença. Sempre me surpreendendo por entender dos assuntos mais diversos. Esses
anos de convivência certamente fez-me crescer como profissional e pessoa, obrigada.
Ao Professor Dr. Ivaldo Lima e ao Professor Dr. Jorge Barbosa, por participar
da banca de pré-defesa, prestigiando-me com vossas apreciações em prol do
melhoramento de meu trabalho.
Ao Professor Dr. Ivaldo Lima e ao Professor Dr. Floriano José Godinho de
Oliveira, por participar da banca de defesa, abrilhantando minha dissertação com
vossas presenças e apreciações.
A todos os professores do curso de Pós Graduação em Geografia da UFF que
tive o imenso prazer de conviver e aprender, e que também me ensinaram muito.
E a todos os funcionários do Programa de Pós Graduação em Geografia da
UFF, que sempre atenderam rapidamente às minhas solicitações e resolveram
problemas, em especial à Ana Paula.
6
RESUMO
Desde o início do período moderno, profundas transformações ocorreram nas
maneiras de entender, pensar e atuar no mundo. Enfatizou-se a partir de então a
razão do homem. Essas alterações refletiram-se no entendimento acerca da ética, e,
conseqüentemente, transliteraram-se no espaço das cidades.
Uma nova ética emerge nas últimas décadas, alterando-se mais uma vez o
espaço das cidades. É a nova ética do ter em detrimento do ser. A moda, o consumo,
as aparências, as efemeridades são estimuladas. As próprias cidades tornaram-se
produtos de consumo em um mercado mundial de cidades. Esta nova ética reflete-se
nas obras e nas políticas urbanas que, atualmente, buscam tornar a cidade mais bela
e atrativa ao consumo e aos investimentos, através das obras de remodelização. A
grande questão é que as desigualdades sociais não são o foco das políticas urbanas,
portanto tendem a se ampliar, gerando diversos problemas no espaço das cidades.
Conseqüentemente, emerge um sentimento generalizado de incerteza, de
insegurança, de caos, tão presentes em nosso dia-a-dia da pós-modernidade. Não há
respeito às alteridades, pois tudo e todos devem seguir o padrão ditado pela mídia. Os
diferentes são vistos como estranhos e perigosos. As pessoas na cidade não se vêem
como iguais, rompendo-se a identidade coletiva da população e destruindo as
estruturas sociais. O respeito ao outro e o reconhecimento das diferenças são a base
para a convivência próspera na cidade.
A indiferença é uma grande marca de nossa época. Ela corrompe as cidades,
pois se traduz na apatia, nas exterioridades, na falta de preocupação com o outro. A
indiferença corrói as emoções e ações éticas, ao ampliar sentimentos como o egoísmo
e o individualismo. Ela tornou-se a principal questão ética das cidades atuais.
Palavras-chave: Ética, Cidade, Indiferença e Pós-Modernidade.
7
ABSTRACT
Since the beginning of the modern period, deep transformations had occurred in
the ways to understand, to think and to act in the world. The reason of the man was
emphasized from now on.
These alterations had been reflected in the agreement
concerning the ethics, and, consequently, they had been transliterated in the space of
the cities.
New ethics one more time emerge in the last decades, getting excited the
space of the cities. It is the new ethics of having in detriment of the being.
The
fashion, the consumption, the appearances, the efhemeral are stimulated. The proper
cities had become products of consumption in a world-wide market of cities. This new
ethics are reflected in the workmanships and the urban politics that, currently, they
search to become attractive city, most beautiful, to the consumption and the
investments, through the rebuilding workmanships. The great question is that the social
inaqualities are not the focus of the urban politics, therefore tends if to extend,
generating diverse problems in the space of the cities.
Consequently, a generalized feeling of uncertainty, unreliability emerges, of
chaos, so gifts in ours day-by-day of post-modernity. It does not have respect to the
differences, therefore everything and all must follow the standard dictated for the
media. The different ones are seen as strange and dangerous. The people in the city
do not see themselves as equal, breaching it collective identity of the population and
destroying the structures social. The respect to the other and the recognition of the
differences would have to be the base for the prosperous acquaintanceship in the city.
The indifference is a great mark of our time. It corrupts the cities, therefore it is
expressed the apathy, the appearance, the lack of concern with the other. The
indifference corrodes the ethical emotions and actions, when extending feelings as the
egoism and the individualism. It became it main ethical question of the current cities.
Word-Key: Ethics, City, Indifference and Post-modernity.
8
INTRODUÇÃO
O entendimento acerca da ética, ao longo do tempo, passou por profundas
transformações, acompanhando as mudanças na forma de enxergar, pensar e agir no
mundo, tendo como grande ponto de ruptura, de alteração radical, o início do período
moderno. A ética então deixa de ser encarada como uma teoria que traduziria a ordem
do universo da coexistência humana, e, passa a ser enxergada como uma teoria que
exprimiria a edificação artificial dessa ordem através da razão do Homem. Essas
transformações com relação à ética acabam por se transliterar no espaço das cidades.
Nas últimas décadas mais mudanças ocorrem com relação ao entendimento da
ética. É o momento que se delineia uma nova ética nas cidades, é a ética do ter
suprimindo-se o ser. Cada dia mais, as pessoas preocupam-se com o que têm, com
as aparências, com o externo, com as superficialidades, deixando de lado a essência,
o interno e a profundidade. Na cidade podemos observar mais claramente a
consolidação desta nova ética. A moda e a mídia têm o papel de propagar idéias
consonantes com a nova ética do ter. Estimulando ao consumo, às aparências, às
efemeridades, onde pessoas passam a dar mais valor ao ter do que ao ser. Outro
exemplo seria a aspiração pela obtenção de um automóvel, que faz com que a pessoa
possuidora deste bem, sinta-se mais segura, mais forte, poderosa, marca clara do
individualismo e superficialidade. As próprias cidades, atualmente, tornaram-se
produtos veiculados pela mídia num mercado mundial de cidades, com o interesse de
atrair investimentos e pessoas com potencial financeiro. Porém, o exemplo mais típico
dessa nova ética do ter nas cidades, é a ânsia por obter o imóvel próprio. A pessoa na
cidade apenas se sente completa quando obtêm a moradia própria.
As pessoas passam, portanto, a confundir valores, quando o ter passa a ser
mais valorizado que o ser. Essa falta de discernimento com relação aos valores, com
relação à ética na cidade, este elo rompido do entendimento e da prática de uma ética,
e conseqüentemente, da compreensão do que seria a moral e a liberdade, atualmente,
é um dos principais motivos que geram o sentimento generalizado de incertezas, de
inseguranças, de caos, presente no nosso dia-a-dia da pós-modernidade.
Todo esse contexto reflete-se também no espaço físico das cidades. As obras
e as políticas urbanas apontam para o mesmo sentido, a valorização das aparências,
das superfícies, do ter em detrimento do ser, deixando-se de lado o verdadeiro papel
9
do poder público, que é o de assistir à população mais carente, dotando de infraestruturas e bens básicos à população como um todo, tornando a distribuição de renda
e bens um pouco mais equânime. Até porque, não há possibilidade de uma cidade, de
uma região e de um país, prosperar com uma profunda desigualdade social.
A mídia é um forte meio de propagação desta nova ética do ter, porém, não é o
ator gerador desta nova ética. Os governos locais também não são os atores diretos.
Os atores diretos que criaram esta nova ética do ter são os detentores do capital, os
empresários, que na cidade se manifestam com mais força e influência no setor de
construção civil e no setor imobiliário. Os políticos, por sua vez, necessitam de voto, e,
para obtê-los precisam do aporte financeiro fornecido por esses empresários do setor
da construção civil. Em contrapartida, atendem aos interesses desses empresários,
fornecendo licenças para obras, fazendo obras de infra-estruturas nos locais de
interesse, e mesmo, criando dificuldades para vender facilidades.
Enfim, o jogo de interesses e a troca de favores existem na política e são
naturais e, por vezes, saudáveis. Mas, tornam-se prejudiciais quando são levados ao
extremo, deixando-se de lado o principal papel do poder público ou mesmo
prejudicando a maior parte da população em benefício de poucos. O interessante é
quando ocorrem parcerias do poder público e privado que beneficiem a maior parte da
população, gerando uma melhora da qualidade de vida, criando empregos e infraestruturas, ou seja, tornando a cidade melhor para todos os seus cidadãos e não
apenas para aqueles que detêm o grande capital.
Este trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro, busquei mostrar as
diferenças nas cidades ao longo do tempo, desde a cidade antiga até a cidade
contemporânea, relacionando as mudanças no espaço das cidades com as alterações
acerca da compreensão sobre a ética. Já no segundo capítulo, optei por duas obras
que tratam da pós-modernidade com relação ao urbano, ou seja, tratam da cidade,
das relações entre seus cidadãos, na ética nas cidades atuais, etc; e busquei as idéias
destes dois autores sobre o tema. Além disso, tratei do conceito de ética,
principalmente, relacionando-o ao urbano.
Finalmente, no capítulo três, relacionei a ética do urbano com as recentes
política públicas urbanas. Posteriormente, questionei a existência de uma ética nas
cidades atualmente. E, pautei críticas e algumas considerações acerca dos principais
problemas que assolam várias cidades no mundo, mas, principalmente, as cidades
brasileiras.
Não pretendo dar soluções aos principais problemas urbanos atuais, até
porque, para tal seria necessário mais tempo de estudos e pesquisas acerca dos
temas. Almejo através deste suscitar reflexões acerca da indiferença que está
10
presente em nosso cotidiano, que é a causa principal dos maiores problemas nas
cidades atualmente. Desejo mostrar como as questões éticas são fundamentais para o
convívio na cidade e para a compreensão acerca dos principais problemas urbanos
atuais. Ambiciono, estimular reflexões futuras com relação aos problemas urbanos,
mais prementes, que assolam nossas cidades e que desestruturam o convívio dos
cidadãos, não respeitando as alteridades e enfatizando as diferenças.
Neste trabalho tomar-se-á as políticas urbanas, seja na cidade da modernidade
e seja na da pós-modernidade, como o veículo de organização e consecução do
espaço urbano em termos éticos do ter e da indiferença. Na modernidade por meio do
planejamento global e na pós-modernidade da revitalização do espaço urbano, num e
noutro caso sempre a intervenção das políticas urbanas destinando-se a ver e
estruturar a cidade como o grande templo do consumo. A imagem, sobretudo na
cidade pós-moderna, é o grande veículo dessa concertação.
11
CAPÍTULO 1
A CIDADE E SUAS FORMAS URBANAS NO TEMPO
As cidades tendem a crescer, a transbordar seu sítio, criam memória própria,
solidificam-se. Suas estruturas, suas funções, as relações intrínsecas a ela,
modificam-se, as paisagens alteram-se, e igualmente a formas, os hábitos, a
sociedade, os motivos e formas do seu desenvolvimento e as políticas urbanas.
Conjuntamente a todas estas mudanças, muda também a arquitetura, transparecendo
o contraste entre o particular e o universal, entre o individual e o coletivo. Segundo
Rossi, A. (1977, p 25), a “(...) arquitetura é parte integrante do homem; é a sua
construção”. Por meio da arquitetura podemos verificar de maneira concreta as
necessidades humanas, os sentimentos, os momentos, acontecimentos antigos e
novos. Coletivo e privado, sociedade e indivíduo, convivendo todos juntos, imbricados,
contrapondo-se e completando-se, num movimento contínuo que caracteriza a cidade,
o geral e o particular unidos num uno que é a cidade e corporeizados, personificados,
concretados, na arquitetura. A vida cotidiana, que passa a cada dia com sua rotina,
não torna-se mais fluida do que já é, chegando a desvanecer, por causa de sua
consolidação nas casas de habitação e nas áreas que abarca.
Ao estudarmos a morfologia urbana - ou seja, a descrição das formas de um
fato urbano - estamos compreendendo um instrumento, um momento. Este estudo nos
aproxima da estrutura da cidade, pois esta é mais do que as formas, possuindo
também a qualidade dos fatos urbanos. Porém, o estudo da morfologia urbana nos
possibilita uma melhor compreensão do todo urbano, ou seja, das formas, relações,
processos, etc. Na cidade o pensamento se concretiza e toma forma, ao mesmo
tempo em que as formas urbanas influem no pensamento.
Os pontos mais fixos da dinâmica urbana são os monumentos, enquanto
destruições, expropriações, especulação, transformações do uso do solo, são os
meios principais da dinâmica urbana. “Princípios e modificações do real constituem a
estrutura da criação urbana” (Rossi, A., 1977, p 26).
Para Tricart1 segundo Rossi (Tricart, apud Rossi, 1977, p. 50), a base da leitura
da cidade é o conteúdo social, já que os fatos sociais antecedem as formas e as
1
Tricart, Jean (1963). Cours de géographie humaine. Paris, vol. II, 1963.
12
funções. Mas o que nos ajuda a localizar o nosso estudo sociológico são as formas e
as funções, por isso pretendemos estudar as estruturas da cidade conectadas com a
forma do lugar. Até porque não pretendemos fazer um estudo sociológico e sim
geográfico, sendo assim, não há estudo geográfico sem uma localização.
Marcel Poète2 segundo Rossi (Marcel Poete, apud Rossi, 1977, p. 55) defende
a tese de que os fatos urbanos são indicativos das condições do organismo urbano,
portanto através deles podemos observar concretamente. E, realmente o são, basta
que observemos a planta de uma cidade, com o traçado de suas ruas, a morfologia
urbana, a utilização do solo urbano, dentre outros inúmeros fatores que nos fornecem
informações preciosas e precisas sobre a cidade. Daí a tamanha importância em
estudar os fatos urbanos para que possamos compreender o significado próprio e a
identidade da cidade. Cada elemento é parte de um sistema maior que é a cidade e
que segundo Rossi (1977, p. 56), atribui a cada arquitetura determinados critérios de
necessidade e de realidade. As formas da arquitetura são persistentes, não podendo
ser reduzidas ao instante, por isso fazem parte ao mesmo tempo em que
transparecem a história e a geografia do local é um passado que ainda
experimentamos. Mas, o processo dinâmico da cidade tende mais para a evolução do
que para a preservação. A forma da cidade sempre é a forma de um tempo da cidade,
e existem múltiplos tempos na forma da cidade.
De acordo com Georges Chabot3, (apud Rossi, 1977, p.47), “a cidade é uma
totalidade que se constrói por si mesma e na qual todos os elementos concorrem para
formar ‘l’âme de la cité’”. Sendo assim, é imperativo o estudo das diversas
manifestações e dos variados comportamentos, para que dessa forma, nos seja
facilitado o estudo da cidade como totalidade e a possibilidade de conseguirmos nos
aproximar da compreensão desta totalidade. Temos consciência de que todos os
dados da complexa elaboração que são os fatos urbanos, nenhum estudo nem
nenhuma ciência podem abranger esta totalidade. Devemos, portanto, entender a
ciência urbana da maneira mais global possível, reconhecendo a necessidade da troca
entre as várias ciências para o enriquecimento e para buscar alcançar o máximo
possível do aspecto global da cidade.
A arquitetura é uma das variáveis que desejamos analisar, dentre muitas outras
que nos auxiliam a apreender a cidade. Nas cidades mais antigas o pouco que restou
da geografia destas foram as formas arquitetônicas, que resistiram ao tempo e por
meio destas pudemos juntar peças, como num quebra-cabeça, e compreender um
2
Marcel Poète (1929). Une vie de Cite; Paris de sa naissance à nos jours. Paris, p 232.
CHABOT, Georges (1958). Les Villes: apercu de géographie humaine. 3. ed. Paris: Armand
Colin.
3
13
pouco da forma de vida nestas cidades e sociedades. Essas formas arquitetônicas que
resistiram ao tempo, que Milton Santos (2004) denomina de rugosidades, são como
páginas de um livro onde estão marcadas uma história de uma época, de uma
sociedade, e ao mesmo tempo são e contam as grafias do homem no espaço
geográfico. São partes das Geo-grafias. Para compreendermos as cidades atuais, do
período moderno e pós-moderno, devemos entender como eram as cidades
anteriores. É importante que conheçamos essas cidades, pois as cidades do período
moderno e pós-moderno são reflexos do passado, ou seja, dessas outras cidades, dos
modos de vida, hábitos e costumes, comportamentos. Existe nos traços mais típicos
da modernidade e da pós-modernidade, a presença de características de outras
épocas, daí a importância de compreendermos as características das cidades
anteriores à modernidade.
O termo urbanismo foi criado por Cerda nos fins do século XIX, sendo o estudo
científico da cidade e estando relacionado a uma teoria urbana. Parece ser um a priori
o termo urbanismo, devido a sua abrangência, algo que existe desde a criação da
primeira cidade. O que existia anteriormente, na verdade, eram artes urbanas diferente
do urbanismo, que possui um caráter reflexivo, crítico e uma pretensão científica. Com
o passar do tempo, o termo passou a englobar a cidade, as obras públicas, a
morfologia urbana, planos urbanos, práticas sociais, pensamento urbano, legislação e
direito relativo à cidade. Portanto, a palavra urbanismo possui relação com a
modernidade, tendo suas origens na Renascença. Pouco a pouco, parte da
Humanidade deixa de lado a maneira de encarar o espaço urbano relacionado à
religião, ao sagrado e à determinadas práticas e representações sociais. Portanto, o
estudo das cidades relacionado à ciência, tem sua origem totalmente relacionada à
modernidade. E é esta concepção de urbanismo da modernidade que estamos
utilizando neste trabalho.
Em um primeiro momento veremos as formas das cidades, anteriores à cidade
moderna, ao longo do tempo, desde a cidade antiga até a cidade Barroca. Depois
veremos quais são os elementos que configuram a denominada cidade moderna e
pós-moderna. Utilizamos acima a palavra “elementos”, pois, não temos como afirmar,
atualmente, que uma cidade é tipicamente moderna ou pós-moderna. É mesmo difícil
de se afirmar que uma cidade é, ainda hoje, tipicamente medieval, ou renascentista, e
assim por diante. Isso porque, ao longo do tempo, as cidades vão assimilando
características de cada época. Sendo assim, as cidades, na grande maioria dos casos,
possuem elementos de várias épocas. Roma, é um grande exemplo disto. Na
antiguidade era uma típica cidade antiga, com o passar do tempo possuiu fortes
características de uma cidade medieval, renascentista ou barroca - como por exemplo,
14
o Vaticano. Hoje Roma é uma das cidades com forte características modernas e pósmodernas. Por conta disso, temos que tomar cuidado com os rótulos. Não podemos
nos deixar levar pelo hábito moderno de compartimentação do conhecimento.
Portanto, para ficar mais claro, vamos relacionar os tipos de cidades à época. Mas,
com a consciência de que os exemplos que citamos são de partes da cidade, de
determinadas obras e projetos, de uma forma de pensar predominante em uma
determinada época.
Subdividimos, então, esses vários tipos de cidades, cada qual com
características peculiares em três grupos: as cidades antigas, as cidades modernas e
a cidade pós-moderna. Em cada um desses grupos buscamos discutir a forma em que
a ética era encarada e trabalhada nas cidades dos respectivos períodos.
1.1) As cidades através dos séculos
1.1.1. A Cidade Antiga
As primeiras civilizações da história surgem nos vales do Nilo, do Tigre, do
Eufrates e do Indo. Poucos vestígios restaram das cidades das culturas egípcia,
mesopotâmica e indostânica, permanecendo mais alguns monumentos, locais
sagrados e palácios.
As cidades antigas possuíam uma configuração bem regular, onde as
habitações eram pequenas e reunidas em blocos retangulares e as ruas que os
separavam eram muito estreitas. As casas eram pequenas habitações em torno de um
pátio ou terraço fechado. De acordo com a importância do ocupante as casas
variavam de tamanho. A cidade era um retângulo cercado por taipas e protegido por
um fosso. Um exemplo deste tipo de cidade é a de Illahun (atual Kahun) no Egito
(Goitia, 1982, p. 41).
Restaram
muitas
construções
religiosas
nas
quais
houvera
intensa
preocupação com a coordenação das partes, com um rigoroso critério geométrico,
traçado retilíneo, buscando adaptar-se ao terreno e produzir um efeito cenográfico,
como por exemplo, o que vemos, segundo Goitia (1982, p. 42) em Mênfis, Tebas e
Tell-el-Amarna.
Nessas cidades, o palácio normalmente localizava-se num extremo da cidade,
assentado firmemente em um dos muros com uma grande e elevada plataforma para
defender-se nos conflitos e nas inundações.
15
Algumas cidades fugiam a este padrão de cidade antiga descrito até aqui. De
acordo com Goitia (1982, p. 44), no vale do Indo, escavações descobriram uma cidade
do ano de 3.000 a.C. bem desenvolvida, com pavimentação e esgoto. Já as
civilizações do Mar Egeu, devido a seu relevo acidentado, seu traçado não era mais
tão regular. Determinadas cidades, como as cretenses não possuíam fortificações
devido a sua situação insular, diferente das do Peloponeso, como Micenas e Torento
que eram protegidas por fortes muralhas.
Nas civilizações antigas do Ocidente a vida doméstica era mais desenvolvida,
com a casa mais complexa e confortável, possuindo no centro o megaron – área com
teto aberto com objetivo de entrar a luz solar e captar água das chuvas. O palácio do
Rei situava-se no meio da cidade juntamente com uma praça. Neste ponto podemos
notar uma clara diferença entre os governantes do Oriente e os do Mar Egeu. Os
primeiros situavam-se isolados do povo, como que possuidores de um poder divino; os
últimos eram mais acessíveis, governando comunidades de certa maneira livres
(Goitia, 1982, p. 45).
Na Grécia a concepção de cidade era totalmente diferente da concepção de
vila. A cidade (polis) possui um caráter de uma associação moral, política e religiosa, e
acima de tudo é uma comunidade de cidadãos. A cidade também envolvia os burgos
dos campos da mesma maneira que os citadinos.
Na cidade grega a religião era um dos elementos de sustentação da
solidariedade entre os membros da comunidade civil, principalmente no que concerne
à divindade da polis. Outros elementos que também exercem este papel na polis
grega são as atividades de defesa e a política.
Foi na Grécia antiga que surgiu o primeiro urbanista com um critério científico
rigoroso, Hipódamo de Mileto. Foi ele quem planejou o Pireu, em Atenas, na época de
Péricles. Também foi arquiteto da colônia de Turi, na Itália, em 443 a.C. Foi o primeiro
arquiteto grego a conceber um planejamento urbano e a estrutura de uma cidade a
partir de um ponto de vista que privilegiava a funcionalidade. Hipódamo foi o introdutor
de uma planificação apoiada em ruas largas que se cruzavam em ângulos retos. A
lógica, a clareza e a simplicidade se destacavam. Já Platão e Aristóteles, no século IV,
é que começam a fazer uma reflexão sobre a cidade, através de discussões acerca
dos elementos que uma cidade deveria ser dotada para que fosse eleita como uma
cidade ideal (Harquel, 1945, p. 12). Os gregos sempre preocuparam-se com a
sensibilidade, comprometidos com um sentido de espaço e de composição (Goitia,
1982, p.54).
Com o desenvolvimento da democracia na Grécia surgem vários edifícios e
construções dedicadas ao bem público, ou seja, surge o centro cívico da cidade.
16
Portanto, a cidade complexifica-se, surgindo os elementos de utilização comum, como
a praça, os mercados, os edifícios públicos, etc.
Até o final do século VI, as cidades gregas configuravam-se em bairros
habitacionais, com ruas estreitas, tortuosas e fechadas sobre si próprias. Localizavamse sempre ao pé ou ao lado de uma colina íngreme onde situava-se a acrópole, que
era um local fortificado e símbolo do poder político. O sítio escolhido para a localização
das cidades sempre priorizavam a defesa contra possíveis invasores de outras
cidades ou bárbaros. Na parte baixa da cidade localizava-se a ágora ou praça pública,
que aos poucos rouba o papel da acrópole no que concerne ao aspecto político e
religioso, sendo o local de reunião da assembléia do povo. Com a centralidade política
e administrativa passando para a ágora, ela passa a ser um dado fundamental no
urbanismo grego, enquanto a acrópole começa a aparecer apenas raramente. A ágora
também possui uma função religiosa.
Segundo Harquel (1945, p. 15), apenas nos fins do século VII e no VI há na
Grécia uma busca pela realização de melhoramentos e pelo planejamento da cidade
de maneira sistemática, objetivando o melhoramento da qualidade de vida. Há uma
grande preocupação com a água, no que concerne ao abastecimento e ao esgoto.
Iniciam-se
também
neste
período
as
primeiras
experiências
de
urbanismo
monumental.
Nos séculos IV e V, ocorre uma pausa nas obras de melhoramento das
cidades, mas que é marcado pelo aparecimento dos traçados urbanos ortogonais. De
acordo com Harquel (1945, p. 15), o plano ortogonal, também denominado plano
hipodâmico, aparece de fato com a reconstrução da cidade de Mileto, que houvera
sido destruída pelos persas, em 494. Verifica-se o gosto pela clareza, tornando-se
bem usual para a fundação de novas cidades e também para o planejamento e
expansão de outras cidades já existentes. Além do rigor geométrico, neste plano é
observada a divisão do espaço urbano por marcos.
Afirma-se nesse período o gosto pelo grandioso e pelo monumental, como uma
maneira de exprimir a glória e o poder do príncipe. É o período da construção dos
grandes teatros, pórticos com longas colunas, monumentos públicos, santuários, ruas
largas, grandiosos edifícios públicos e jardins, dentre outros. Havia a preocupação
com o sítio da cidade para que esse fosse propício à construção com traçados
ortogonais.
O muro cercando toda a cidade surge apenas em razão de guerras. Antes
disso, até o século VI, o único elemento da cidade que era fortificado era a acrópole.
As ruas também têm sua configuração variando, ao longo do tempo, nas cidades
gregas. Eram estreitas e tortuosas, por vezes interligadas por ruelas ou escadas, com
17
as ruas principais um pouco maiores. Com o passar do tempo, principalmente no
período helenístico, as ruas passam a serem construídas mais largas, para atender
aos desfiles e paradas. Determinadas ruas possuem pavimentação, enquanto outras
possuem calçamento de pedra. Em algumas o esgoto é a céu aberto. Outras possuem
redes subterrâneas de esgoto. Mas uma das principais preocupações para os gregos
eram as aduções de água. A religião é outro aspecto importante, ela estava presente
em todos os aspectos da vida pública, por isso que existiam santuários espalhados por
toda a cidade.
Na Grécia antiga já existia um verdadeiro direito urbanístico. Havia um sistema
de desapropriação para as obras públicas, onde uma assembléia do povo e uma
comissão que determinava a desapropriação e decidia sobre o montante das
indenizações. Uma grande preocupação dos gregos era a de proteger o espaço
público contra empreendimentos privados. As grandes obras de urbanismo da época
eram decididas pelo povo.
Segundo Goitia (1982, p. 55), as cidades romanas também possuíam um
grande refinamento técnico. Existiam cidades de vários tipos: industriais, comerciais,
capitais, etc, cada qual correspondendo às especificidades locais. Porém, eles eram
mais práticos e objetivos. Faltava-lhes um refinamento, um detalhamento, eram menos
arquitetos e bem mais engenheiros. Utilizavam bem mais os traçados regulares e
geométricos, e gostavam muito de monumentalidade, aparatos de grandes dimensões
e rigorosamente geométricos impressionavam pela majestade e poder.
A história de Roma perdura mais de um milênio, mas tem seu momento ápice
nos dois primeiros séculos de nossa era. Uma interessante observação é que o
urbanismo plenamente desenvolvido e as melhores condições de qualidade de vida,
não estavam presentes em Roma, e sim, nas cidades provincianas que possuíam uma
população muito pequena, de apenas algumas dezenas de milhares de habitantes.
Sempre ao fundar uma cidade, os romanos faziam um ritual proveniente dos
etruscos4, que se compunha de quatro fases, segundo Harquel (1945, p. 22): o
agouro, que verificava a permissão dos deuses para a construção da cidade; a
orientatio, que determinava os dois grandes eixos da cidade, suas duas ruas principais
que eram perpendiculares, sendo a de direção leste-oeste o decumanus e a de
direção norte-sul o cardo; a limitatio que determinava o local das portas criando uma
linha de proteção denominada pormerium; e finalmente, a última fase, a da
4
Os Etruscos viveram na atual região da Itália, na região ao sul do rio Arno e ao norte do rio
Tibre, na então denominada Etrúria, tendo se instalado na área em cerca de 1.200 a 700 a.C..
A Etrúria era composta por meia dúzia de cidades-estados altamente civilizadas. Ocorreram
prolongadas lutas entre Roma e a Etrúria, que acabou com a derrota desta última nos anos 200
a.C..
18
consagração, através da qual a cidade obtém a proteção dos deuses, essencialmente
a proteção da tríade capitolina, ou seja, Júpiter, Juno e Minerva.
Os
planos
transparecendo
as
das
cidades
preocupações
romanas
práticas
possuem
dos
um
romanos.
traçado
ortogonal,
Utilizavam
muito,
principalmente no período dos fins do período republicano e do Alto Império, a forma
urbana em quadrado ou retângulo, tomando o cardo e o decumanus como medianas.
As demais ruas eram traçadas paralelamente a estes dois eixos principais. Esse gosto
pelos traçados quadriculares regulares, tanto dos romanos, quanto dos etruscos, é
derivado dos gregos. Porém, os romanos afirmavam a necessidade de adaptação da
cidade à natureza local. Portanto, essa concepção de cidade ideal romana somente
era de fato aplicada em determinados locais.
Na cidade romana existiam alguns elementos urbanos principais, como: a
muralha, as ruas, o forum, os equipamentos públicos e as habitações, segundo
HARQUEL (1945, p. 24-27). Na muralha, existia uma conotação religiosa, pois sua
delimitação fazia parte do ritual de limitação da cidade. Apesar de que em muitos
locais do Império a muralha foi deixada de lado para possibilitar a expansão urbana, e,
somente no século III é que as cidades voltam a utilizar as muralhas devido à
insegurança. As ruas normalmente são pavimentadas, bem largas e possuem
calçadas nas suas margem. É muito comum a existência de ruas com pórticos. O
forum faz o papel de mercado, local de reunião, de encontro, e é o centro da vida
pública. É uma praça cercada por edifícios públicos, mas que também é o centro da
vida religiosa, com um templo destinado aos deuses, como no templo do Capitólio em
Roma, que era dedicado à tríade capitolina5. Até o surgimento dos anfiteatros, os
combates dos gladiadores ocorriam no forum. Portanto, o forum abrigava a diferentes
funções, deste transações comerciais até o exercício da justiça. Somente na época
imperial é que ocorre uma especialização do forum, que é quando surgem os fora,
detinados à atividade comercial. Os equipamentos públicos são: a praça, o teatro, o
5
A tríade capitolina era composta por Júpiter, Juno e Minerva, correspondentes
respectivamente aos deuses gregos, Zeus, Hera e Atena. Júpiter era o deus supremo do
panteão romano, senhor dos deuses e do Universo, deus do céu, da luz, do tempo e do trovão.
Juno, irmã e esposa de Júpiter, representa a mulher e as suas características, tais como o
casamento, a gravidez e o parto, protegendo também as que ocupavam altos cargos
administrativos e que não eram casadas. Minerva era a deusa que protegia Roma, defensora
dos artesãos e do trabalho manual e dos médicos, símbolo do conhecimento e da sabedoria, e,
posteriormente, foi considerada deusa da guerra. A tríade capitolina era formada por
divindades difundidas pelos reis etruscos, cujo templo se erguia no Capitólio,em Roma,
cercado pela árvore sagrada de Júpiter, o carvalho. O monte Capitólio, ou monte Capitolino, é
uma das mais altas e famosas das sete colinas de Roma, situada entre o Fórum Romano e o
Campus Martius (Campo Marzio) e é o local do templo da Tríade Capitolina iniciado pelo último
rei de Roma Lucius Tarquinius Superbus (Tarquínio, o Soberbo), e considerado um dos
maiores e mais belos templos da cidade.
19
monumento, o circo, o anfiteatro e as termas, dentre outros. Na época, grandes
edifícios eram importantes para criar a perspectiva monumental. Era um urbanismo
que ambicionava a estética, a política e a prática. Já as habitações eram de dois tipos:
domus - tipo clássico de casa particular romana, térrea, ocupando bastante espaço no
solo; e insulae - eram edifícios coletivos de vários andares, subdivididos em
apartamentos de aluguel.
Roma no período da república sofreu com um problema que denominamos
atualmente de crescimento urbano desordenado HARQUEL (1945, p. 30). O
crescimento urbano que ocorre ao redor do fórum ocorre de maneira desordenada,
não respeitando os eixos originais, fazendo com que a cidade cresça sem um plano
prévio e com traçado irregular. Como conseqüência deste processo crescem em
Roma a especulação, o crescimento vertical e todos os problemas decorrentes desses
processos. As desigualdades se exacerbam, as habitações precárias se multiplicam,
as redes de vias públicas e praças tornam-se insuficientes, fazendo com que Roma
torne-se urbanisticamente mais atrasada em relação às cidades orientais e as da Itália
meridional. E, quanto mais a população aumenta mais os problemas de Roma se
multiplicam. Com isso várias medidas e diversas obras são realizadas para tentar
solucionar ou ao menos minimizar os problemas, transformando a paisagem de Roma,
e Roma em um modelo a ser imitado pelas províncias. Mesmo que nem todos os
problemas tivessem sido resolvidos, a magnificência do urbanismo imperial era
exaltada.
Havia em Roma um controle e organização urbana, como os serviços
administrativos responsáveis pela limpeza pública e pelas construções. Havia a
preocupação com o saneamento básico e com o controle sobre as construções, como
impedir o avanço das casas sobre as ruas, obrigar a demolição de casas com o perigo
de desmoronamento, conservação de ruas. Existiam normas para a construção de
qualquer edificação, como por exemplo, uma distância determinada entre as casas
para evitar a propagação de incêndios, mas que com o tempo, devido à valorização do
solo urbano, passa-se a utilizar o sistema geminado. A preocupação com a estética é
muito grande, não permitindo aos proprietários a destruição de um imóvel sem
autorização prévia. A desapropriação também encontra-se presente nas leis de Roma,
apesar de não ser muito corriqueira, até por ferir o direito à propriedade privada, mas
em casos particulares, onde havia um interesse superior este recurso era utilizado.
Nas cidades antigas, a questão da ética estava presente, mas de maneira bem
diferente do que conhecemos atualmente. Platão afirmava que o ser do homem se
fundamenta na natureza, isto é, no incondicionado da idéia do Bem. A existência
individual ao encontrar uma norma se eleva ao plano da existência universal. A norma
20
é o paradigma imutável de seu agir na história. Ou seja, ao encontrar uma norma o
homem se universalidade, saindo de sua particularidade.
Na perspectiva metafísica há uma essência imutável. Para a metafísica o
indivíduo só supera sua particularidade quando supera a temporalidade. A metafísica
afirma que o homem é ser potencial e deve lutar por sua efetivação. Ele deve
conquistar a sua essência.
Na antiguidade clássica acreditava-se que a sociabilidade humana baseia-se
na a-historicidade das normas. Acreditavam na imutabilidade da totalidade do real. Ou
seja, as normas eram universais, imutáveis e eternas.
Para termos a noção de como a ética era trabalhada nas cidades antigas,
percorreramos as idéias dos dois dos grandes pensadores da época, Platão e
Aristóteles.
Aristóteles acreditava na existência de uma eticidade empírica. Era através da
pólis que, através do debate, da administração, da legislação, da jurisdição que se dá
sua universalização. A pólis é capaz de regrar a convivência em sociedade, por meio
das leis criadas pelos cidadãos, com o objetivo de produzir o bem estar de todos. A
pólis é livre e quando o indivíduo participa dela ele torna-se livre, pois para Aristóteles,
liberdade é sinônimo de vida política. Sendo assim, Aristóteles segundo Oliveira
(Aristóteles, apud Oliveira, 1993, p. 15), “O ético é, então, o que pertence ao “etos”, ao
mundo institucional da pólis. E é esse etos que efetiva o homem enquanto homem,
através do processo de universalização”. Ou seja, na interpretação de Aristóteles, a
determinação ética é essencialmente política.
“A pólis é a práxis que atualiza o ser potencial do homem” Aristóteles segundo
Oliveira (Aristóteles, apud Oliveira, 1993, p. 15). Ou seja, a pólis torna o se do homem
de potência em ato. A pólis traz o homem a sua humanidade, ou seja, faz com que
ocorra a efetivação do ser do homem.
Segundo Oliveira (1993, p. 16), Aristóteles afirmava que “A ética enquanto
ciência só pode ser uma hermenêutica política”. As reflexões éticas até a modernidade
tiveram esta como sua principal linha de pensamento.
Para os gregos o natural é a comunidade e não o indivíduo isolado, como os
modernos. A sociabilidade é constitutiva da essência humana de modo que o homem,
apenas encontra sua efetivação na comunidade política, ou seja, na pólis.
Platão pensa o ético enquanto condição de possibilidade de “politicidade”
(Oliveira, 1993, p. 30). Ele também possui uma concepção histórica do pensamento;
pensamento de caráter político. Segundo ele o homem só é através do todo (o
cosmos) e o todo só se revela e manifesta através do homem, que é a unidade lógicoontológica entre homem e todo, como o cosmos natural, oriunda da filosofia pré-
21
socrática. Os pré-socráticos foram filósofos da natureza, que era entendida como o
ser, a realidade em sua globalidade, como o todo. Os pré-socráticos com sua fisiologia
pensavam o todo, diferente do pensamento metafísico que se pergunta pelas
essências. Com o aparecimento da sofística acentua o direito do indivíduo de ele
próprio impor-se contra o todo.
Platão não concordava com a sofística, que significava para ele o fim da vida
política. Platão resolve se dedicar a conhecer a verdadeira essência do Estado, ou
seja, essência da vida política. É exatamente aí que surge a diferença entre o ser (o
fato) e o dever-ser (a norma). Ou seja, entre a facticidade e a normatividade, que é o
cerne da metafísica de Platão. Segundo ele, as normas eram paradigmas eternos. A
norma provocou a superação do individualismo e do subjetivismo da sofística, gerando
o dever-ser.
Para Platão a filosofia era a única que poderia descobrir o que é justo para o
indivíduo e para a pólis. A subjetividade da razão é sempre objetiva, pois, suas normas
têm validade universal. Segundo ele, o caminho da filosofia é para o interior, que é
aquele que leva à libertação da individualidade.
A metafísica busca descobrir uma nova norma para o Estado, tematizando a
pergunta pela essência. Segundo Oliveira (1993, p. 39), Platão afirmava que “A
essência é a norma imutável, e os homens e as coisas só são permanentes pela
“participação” nas essências imutáveis.” Para a metafísica o fato é observado a partir
da norma, que é a priori. Segundo a metafísica, o mundo empírico, que é o caos, deve
ser submetido ao mundo ideal.
A política para Platão é uma arte, arte política ou arte do Estado. A arte para os
gregos é uma forma de saber e presta um serviço ou um bem. Segundo Oliveira
(1993, p. 39), Platão afirmou que “Política é autoprodução do homem.” Para ele a arte
política é a suprema arte, porque se relaciona com o homem em sua essência. A vida
em comum fundamenta-se na justiça, que é a questão fundamental da política. Há
profunda relação entre ética e política.
A vida de acordo com medidas, com normas é a verdadeira vida racional. Ou
seja, a vida se organiza racionalmente, sendo esta razão, uma razão ética. A política
possui relação com a organização da vida humana a partir de normas. Sem a
dimensão ética a vida política torna-se repressão.
Para Platão o que vale para o indivíduo vale também para a pólis. O bem para
a pólis, para o todo, pesa mais que o bem para o indivíduo. A pólis pode exigir
sacrifícios para o indivíduo. Tudo que o indivíduo é, ele deve à pólis e às suas leis. O
indivíduo é parte integrante da pólis, porém,conserva a sua independência, e mesmo a
22
sua superioridade em relação à pólis. O homem é uma micro-pólis e a pólis é um
macro-homem, enquanto realização, atualização de suas potencialidades.
Segundo Oliveira (1993, p. 43), liberdade para Platão é “a decisão racional e
interna da alma humana, fundamentada, em última análise, na idéia do bem, que devia
exprimir-se na ordem eterna, isto é, social e política”. O bem enquanto tal é o
fundamento da ética e da política. A “liberdade é o bem se realizando nos atos dos
homens, o ato do homem à medida que ele se deixa normar pelo bem” (Platão, apud
Oliveira, 1993, p. 43). Só existe liberdade numa ordem racional, ético-política. Um
problema que Platão levanta é a questão de desenvolver uma ética política no
indivíduo. Parte-se do indivíduo irracional e egoísta para se chegar a uma ordem
social e política que propicie a subsistência e o bem estar.
A categoria central do pensamento político de Platão é a justiça, pois é ela a
virtude que liga mais diretamente o indivíduo ao Estado. A justiça imbrica-se com a
igualdade. Para ele (Platão, apud Oliveira, 1993, p. 45) “Justiça política significa
possibilidade de desenvolvimento das capacidades do indivíduo, das capacidades dos
outros”.
A igualdade, para ele, significa adequação e não nivelamento. A pólis é
igualitária quando se leva em consideração a opinião de todos ou da maioria e na
repartição dos bens e das funções em vista do bem comum, a diferença e a
desigualdade de todos. A organização política da pólis pode ser considerada justa
quando se baseia na coordenação harmoniosa entre distintas naturezas e funções
políticas. A atividade política justa, organiza a sociedade de tal modo que cada qual
ocupe na sociedade o lugar que lhe compete em vistas da organização da vida na
pólis da melhor maneira possível. O Estado só é justo quando os indivíduos desejam o
bem supremo e bem universal. Então para concretizar tudo isto, já que a idéia não
pode tornar-se norma comum, que se torne então lei. A vida em comum baseia-se no
interesse da razão, e é a partir daí que as instituições políticas devem ser regradas.
Segundo Oliveira (1993, p.47/48), Platão afirmou que “O bem é o fundamento
do ser e do conhecer e, com isso, possibilidade de uma vida reta, em correspondência
a ele, como norma suprema do agir, o que possibilita ao homem seu transcender
sobre o ser, sobre o existente, portanto uma vida que transcende o vigente”.
Platão crê na democracia como a dominação de muitos ou de todos em função
da consecução de bens externos.
Há uma contraposição externa entre a vida virtuosa, ou seja, racional, e a
busca da riqueza como valor supremo, sendo este a negação da essência do homem.
Ele afirmou que “Num Estado onde os ricos são louvados, os bons não têm lugar”. E
também que, “No Estado oligárquico, Estado que se impõe pela força, a harmonia é
23
substituída pela opressão e pela luta entre as classes.” No verdadeiro Estado deve
reinar a harmonia entre as diversas artes. A lei só é lei quando baseia-se no bem. Isso
apenas é possível através da passagem do estado de força ao Estado de direito.
Como atingir então, a ordenação legal da pólis? Através da introdução de leis e da
formação científico-ética e da vida comum a partir desse saber.
É impossível separar ética e política, pois a justiça não é exclusividade do
indivíduo, mas também é do Estado, pois a justiça só atinge sua realidade e verdade
no Estado. A justiça é o universal, fazendo valer a parte e o todo.
Já Aristóteles, segundo Oliveira (1993, p. 55), faz uma nova tentativa de
redescoberta da ética, na perspectiva da filosofia analítica, onde a função crítica da
ética restringe-se a constatar os problemas éticos e a resolvê-los através das
descobertas dos mal-ententidos da linguagem.
O ponto de partida do pensamento Aristotélico é problema da legislação, da
vida de acordo com as leis, ou seja, da vida segundo a razão. Em Aristóteles, o ético
só pode ser entendido a partir do “etos”, do costume, do viver da sociedade, os modos
convenientes de comportamento, a virtude, as instituições que sustentam os modos de
viver. Segundo Oliveira para Aristóteles (Aristóteles, apud Oliveira, 1993, p. 58), a
determinação do que é ético se faz pelas maneiras de se viver instituídas na
sociedade, por meio dos costumes, mediados pela linguagem e pela ação dos
homens. Aristóteles nunca conheceu a separação entre indivíduo e a esfera política,
como observamos no período moderno. Segundo Oliveira (1993, p. 58), “... em
Aristóteles a determinação ética do agir individual no costume, no uso, já está de
antemão, em relação à ordem política e jurídica pois estas pressupões as formas
“éticas de vida e nelas se fundamentam.” A lei possui validade pelo costume.
Para ele, o fim da ciência ética é o agir ético do homem. O interesse teórico da
ciência ética é menor que o interesse prático, no sentido ético. De acordo com Oliveira
(1993, p.60-61) “Aristóteles parte do indivíduo, mas em sua vida organizada pelas
instituições ‘éticas’”. Para ele livre é aquele que vive para si porém, essa liberdade só
possui existência quando está na vida inserida nas instituições éticas da pólis. A tarefa
fundamental da pólis é tornar possível a vida, eticamente configurada dos cidadãos,
enquanto a vida de homens livres, portanto, atingir a comunidade numa “vida boa”. O
cidadão é o sujeito da pólis e a práxis deste cidadão é sempre relacionada às
instituições éticas, pois que são a vida e o ser, a realidade dos indivíduos.
Segundo Oliveira (1993, p.61), “ A ética, como uma forma de pensar a práxis
humana, não se restringe, em Aristóteles, jamais, aos indivíduos isolados, mas é
reflexão sobre o mundo institucional, onde o indivíduo está inserido e através do qual
ele se eleva a indivíduo universal.”
24
Aristóteles, no campo da ética, preocupava-se muito com a prática, com o
viver, o dia-a-dia. Porém, reconhecia que a importância da tarefa de determinar o
princípio da vida ética, mas essa não abrange toda a tarefa da filosofia política. Seu
interesse é descobrir como o pensamento pode contribuir para a atividade da vida
humana. Ele afirmava que a reflexão moral não torna o homem bom, mas o melhora.
Ele pesquisava os elementos, os princípios, as causas do agir ético. Segundo Oliveira
para Aristóteles (Aristóteles, aput Oliveira 1993, p. 65), “A ética realiza, assim, no
campo prático, a tendência fundamental do homem à compreensão: ela é a razão
refletindo sobre sua racionalidade. A melhoria do homem através da reflexão prática,
ou seja, ética, não se faz pelo fornecimento de receitas concretas, mas através do
próprio saber, à medida que o homem desce às raízes de seu agir.” A reflexão ética
faz com que o homem tenha clareza de suas ações, tornando o agir humano
eticamente melhor.
Assim, a pessoa ética possuirá uma esfera de criticidade. Pois “O pensamento
ético é o ato através do qual o homem rompe o caráter opressor de todo etos e
transforma sua vida, até então realizada ingenuamente no seio de determinado etos,
numa vida racional, produzida pela razão consciente de si.” A ética encontra-se
profundamente relacionada com a razão. A reflexão ética evoca a transformação do
saber ético, e não diretamente da pólis. O saber ético é um momento constitutivo do
agir ético.
O objeto da ética em Aristóteles era a unidade originária entre um fato e uma
exigência moral, ou seja, é a síntese entre o incondicionado e o condicionado. Um dos
problemas do direito é o da legitimação das instituições éticas. As considerações
econômicas são de ordem ético-política, na Grécia antiga. Os problemas da economia,
como o da troca justa e do preço, são considerados problemas éticos. A divisão do
salário e da posse e sua origem e produção são problemas da ética.
A casa é o local onde deve nascer a sensibilidade para o valor da justiça. Ela é
o lugar onde o homem é treinado em suas virtudes, é a primeira instituição de
socialização.
O indivíduo torna “realidade” no processo de politização de sua vida. Esta
afirmativa é para ratificar a importância da política para a vida na pólis, e como a ética
e a idéia de justiça estão diretamente relacionadas com a política e com a pólis.
O pensamento clássico intepreta o real a partir de uma diferença entre
normatividade e facticidade, entre essência e fato. O pensamento político clássico
buscava a superação da arbitrariedade da individualidade e a descoberta de um
espaço intersubjetivo.
25
1.1.2. A Cidade Medieval
Durante a Alta Idade Média, devido às crises econômicas e políticas
associadas às invasões bárbaras e à queda do Império Romano, ocorre uma retração
das cidades que ficam circunscritas às suas muralhas, com isso a população dessas
cidades espalha-se pela área rural. A população mais rica,
instala-se nos seus
domínios rurais enquanto as cidades ficam fechadas sobre si mesmas ocasionando
uma forte regressão destas. Daí a adoção do modo de vida rural da aristocracia da
época. A Igreja teve um importante papel na manutenção das cidades neste período,
pois acaba defendendo a cidade diante dos bárbaros.
O feudalismo europeu tem por base a sociedade agrária, onde os senhores
feudais possuem o domínio de um grande território em troca de proteção e exército
para o rei no momento de uma guerra. A população do campo é serva do senhor, que
detém o controle total das terras. Essa população espalhada no campo cria uma
contínua ocupação por toda a área, marcando assim a paisagem. Mas, ao mesmo
tempo, há na Europa, neste período, um grande crescimento urbano com a formação
de muitas aglomerações.
Quando as desordens maiores findam muitas muralhas são destruídas para
serem utilizadas na construção de caminhos de pedra. Porém, novas invasões
ocorrem da segunda metade do século IX e do século X, tornam-se essencial a
construção de novas muralhas, fazendo com que as cidades se transformassem em
fortalezas (Harquel, 1945, p. 34).
A grande explosão urbana do período medieval ocorre a partir do século XI,
desenvolvendo-se nos séculos XII e XIII e perdurando até o final da Idade Média, onde
até então predominavam a organização feudal e agrária. Com o final das invasões nas
cidades medievais ocorre um intenso crescimento urbano, ocasionado pela melhoria
das condições de vida e de segurança, e, pelo desenvolvimento das técnicas
agrícolas. O reaquecimento da produção e do comércio tem papel fundamental no que
concerne ao processo de urbanização, pois provocam uma migração dos camponeses
das regiões circundantes para a cidade. Outra importante modificação que atrai a
população para as cidades é a melhora do estatuto jurídico dos habitantes, que
passam a ter certas autonomias em relação ao seu senhor feudal (Harquel, 1945, p.
35-36). Conseqüentemente, origina-se aí a burguesia composta por mercadores
viajantes e um pessoal fixado no centro da comercialização. Vários ofícios começam a
ser desenvolvidos nestas cidades, para suprir suas necessidades emergentes. As
pessoas do meio rural cada vez mais são atraídas pelas cidades que começam a
crescer, sendo a burguesia a base da cidade medieval.
26
Porém esta burguesia era contraditória à sociedade medieval, mas ela não
desejava derrubar a ordem posta, e sim obter mais facilidades para os seus negócios.
Com o tempo ela conseguiu esta certa liberdade de que necessitava, pois os senhores
feudais resolveram se aliar à burguesia em troca de grandes benefícios materiais. As
cidades, portanto, são as áreas mais livres, e em torno delas mantêm-se as áreas
rurais submetidas a uma vassalagem quase total. Com o surgimento dessas cidades a
legislação foi muito modificada, sendo criadas leis diferentes nas cidades em relação
ao campo.
Com a passar do tempo, esses burgos tiveram um significativo aumento de sua
população, e, até mesmo a criação de áreas destinadas ao comércio e ao artesanato.
Os mercadores se estabeleciam na porta da cidade, até porque estes necessitavam
de mobilidade e estavam sempre se deslocando entre cidades. Sendo assim, outro
importante atrativo para a população da época, era a importância econômica das
cidades, pois, foi o local de formação dos mercados e de áreas comerciais, devido ao
fato de que, em muitos casos, essas cidades situaram-se em áreas de passagem,
como uma ponte, um córrego, uma estrada, etc. Muitas das cidades medievais
possuíam apenas alguns milhares de moradores e diversas outras tinham um número
ainda menor.
Algumas cidades do período medieval foram criadas a partir de cidades já
existentes, como as romanas. Mas, a maioria das cidades deste período desenvolvemse em áreas pouco urbanizadas, em torno de uma entidade de poder, como o castelo
do senhor feudal, a abadia, o monastério, o episcopado, dentre outras. Essas
populações passaram a se concentrar em torno de uma área fortificada,
principalmente devido à função de proteção que essas áreas apresentavam, pois,
quando haviam confrontos as pessoas se protegiam dentro das muralhas da área
fortificada, e em troca da proteção lutavam, tornando-se guerreiros nestes períodos.
Sendo assim, uma marcante característica da cidade medieval é a muralha. Para a
construção desta e de outras obras necessárias criou-se uma contribuição obrigatória
de todos os que residiam na cidade. Os que se negavam a dar a contribuição eram
expulsos. A muralha era a base necessária para a defesa. Normalmente era circular
ou elíptica, formato este mais fácil de construir e melhor para defesa. Além da muralha
a cidade medieval normalmente situava-se em locais de difícil acesso: colinas, topos
de morros íngremes, ilhas, próximas a rios, etc, novamente por motivos de defesa.
Num primeiro momento, as cidades medievais, no que concerne ao plano
urbanístico, rompem com os quadriculados romanos. As ruas são mais irregulares em
sua disposição e desenho, devido à localização das cidades normalmente em áreas
irregulares. Sendo que, nas cidades mais antigas eram mais tortuosas e estreitas, e,
27
nas mais novas já existia a presença de ruas mais retilíneas e largas. Isto ocorre
devido à influência do sítio urbano e à existência de antigos caminhos e trilhas rurais
que acabaram por se transformar em ruas.
O desenvolvimento dessas cidades ocorre de duas maneiras principais: ou ao
longo de vias de transporte, de maneira linear; ou em torno de uma importante
edificação, como os castelos, os monastérios, as igrejas, etc, de maneira areolar. A
ligação da cultura medieval com a vida monástica é muito grande. O mosteiro sempre
foi um centro religioso muito ligado ao campo e isolado da cidade. Ele ajudou na
criação de uma plasticidade nessa contínua ocupação. Nessa continuidade urbana
surgiram enclaves urbanos, cidades pequenas que não rompiam com a continuidade
existente. Já no final da Idade Média surgem traçados ortogonais em alguns locais.
O principal padrão das cidades medievais eram o radicocêntrico (Goitia, 1982,
p. 88), com ruas principais saindo do centro e indo em direção às bordas da cidade e
ruas secundárias fazendo círculos em torno do centro. Sempre no centro da cidade
verifica-se uma praça onde encontra-se a catedral ou templo, os edifícios de
organização da cidade e o mercado. Os monumentos também destacam-se nesta
cidade, principalmente os religiosos. A cidade medieval é um tipo de cidade bem
homogênea.
As cidades medievais possuíam algumas características principais. A muralha
era um elemento essencial para garantir a segurança. As fontes de água eram
fundamentais, como poços, cisternas, rio, mas sempre dentro da muralha, já que
outras fontes de água que viessem de áreas externas à muralha poderiam ser
envenenadas ou cortadas em uma ocasião de conflito. Pelo mesmo motivo algumas
atividades agrícolas e de criação de animais situavam-se dentro da cidade. Não havia
esgotos e sim valas a céu aberto, o que ocasionava grandes problemas de
salubridade. Próximo à igreja encontrava-se o cemitério. A praça principal era o
mercado e próximo e este estava o edifício da prefeitura local.
Na Idade Média havia uma organização da cidade. Normalmente seu fundador
traçava ou encarregava outrem de traçar o plano da cidade, fixando a largura das
ruas, as formas dos loteamentos, dentre outras medidas, fornecia parte do material
para a construção das casas, principalmente a madeira oriunda de florestas próximas,
e forçava àqueles que receberam o terreno a construir rapidamente. Para construir ou
reformar uma edificação dever-se-ia pedir permissão à autoridade, devendo-se pagar
uma taxa para obtê-la. Há uma preocupação em fazer com que se cumpram
determinadas regras, mas que ocorre de maneira limitada. Já mais no final da Idade
Média surge um sistema de desapropriação devido a interesses de utilidade pública.
28
Segundo Oliveira (1993, p.32), Tomás de Aquino afirmava que, a essência
indica para cada realidade seu lugar especifico na totalidade da realidade. A ação do
homem é normada pela ordem da totalidade. Ou seja, até a Idade Média, o que
normatizava o agir era o mundo enquanto cosmos, enquanto ordem universal. A
religião tinha uma grande influência nas questões acerca do agir ético. Ou melhor, a
religião católica é que indicava os princípios da ética, criando uma moral
correspondente. Todas as pessoas deviam seguir os princípios éticos e a moral da
Igreja.
Era o cristianismo que regulava todas as esferas da vida social. O teocentrismo
orientando as expressões artísticas e filosóficas é um exemplo. O direito divino
legitimava o poder político. O trabalho era uma maneira de mortificação para alcançar
a vida eterna, são alguns exemplos.
1.1.3. A Cidade Islâmica
O Islão se espalhou de maneira muito rápida, fazendo com que se adaptasse à
cultura dos países que abarcou. As cidades islâmicas são extremamente semelhantes,
mais que qualquer outra de demais cultura, já que os mulçumanos ao chegarem a
uma cidade não tendiam a mantê-la, destruindo-a e implantando uma nova.
Os árabes inicialmente geraram grandes cidades, que devem seu progresso ao
fato de os territórios da bacia do Mediterrâneo serem mais urbanizados. As cidades
islâmicas são mais simples e funcionais. Tudo nesta cidade gira em torno do Corão, a
política, a religião, a legislação, a moradia e etc. É a cidade privada.
De acordo com Goitia (1982, p. 63) "Quando Ídris II se preparava para fundar
Fez, disse a um velho ermitão que queria construir uma cidade onde se adorasse o
Deus Supremo, onde se lesse o seu livro, e as suas ordens fossem cumpridas".
Portanto, como podemos observar o propósito das cidades islâmicas é bem diverso
das cidades do mundo clássico. Das edificações dedicadas à vida pública,
encontramos nas cidades islâmicas apenas as termas, dedicadas aos banhos, que
são as mais importantes manifestações de relações sociais.
A porta para a cidade mulçumana é um elemento primordial, que possuía um
valor simbólico e funcional. As portas eram grandes composições arquitetônicas,
complexas e monumentais, que normalmente eram duplas, uma primeira dando
acesso a um pátio e a segunda, ao final deste pátio e que através dela se entrava na
medina. É através dela que se tem o acesso ao interior da cidade e próximo a elas é
que encontravam-se os mercados.
29
As origens das cidades mulçumanas ainda não são muito claras, pois elas
derivam do mundo oriental, das cidades egípcias e mesopotâmicas, locais estes sobre
os quais não temos muitas informações.
Outra importante característica do mundo mulçumano é a dicotomia campocidade, que é uma característica também da cidade clássica, mas que nas cidades
islâmicas é mais premente, mais característica.
A arquitetura da cidade islâmica é constituída por casarios compactos, um
amontoado de edifícios e casas, terraços, pátios, ruelas tortuosas e normalmente
estreitas, com várias outras ruas que se ramificam em diversas direções, muitas
acabando em becos sem saída, um verdadeiro labirinto, possuindo uma arquitetura
muito descontínua, cidades sem plano. Essas características podem ser explicadas
pela cristalização da antiga vida nômade na cidade. Tudo na cidade mulçumana é
construído de dentro para fora, sendo assim, o público perde a importância,
juntamente com a rua. As ruas são quebradas, sem nenhum alinhamento, sempre
acabam em esquinas e cotovelos, mantendo assim a intimidade, ponto base para o
Islão.
Em uma descrição de Pierre George6 (apud Goitia 1982, p. 76), podemos
visualizar as cidades mulçumanas como espectadores,
"A velha cidade oferece-nos o contraste comum a todo o Mediterrâneo
mulçumano, entre os bairros de moradias e ruas dos comerciantes. O primeiro é um
formigueiro de ruas estreitas, freqüentemente cobertas por saliências das casas e que
às vezes terminam em azinhagas sem saída. As casas baixas, construídas com
paredes de taipa e madeira, estão fechadas à curiosidade. Nenhuma abertura excepto
a porta de entrada. As janelas do piso superior, bem gradeadas ou fechadas com
persianas e gelosias. A vida privada é impenetrável pra o transeunte, que só distingue
sombras fugidias através da estreita valeta da rua. O silêncio e a calma fazem
esquecer a extraordinária densidade da população. Esta, contudo, aparece com uma
profusão exagerada de cores no souk, mercado de bairro ou mercado geral. É aqui
que surge a outra face do Oriente, com o seu ruído de multidão, com o seu odor acre a
especiarias, pó e suor. Parece que todos os povos e todos os tipos de pessoas
marcaram entrevista para aqui: camponesas de Ghuta, com seus amplos véus claros,
cor-de-rosa ou azul-pálido, hauraneses de cara tatuada e severo traje azul-escuro,
judeus de Bagdad todos de negro, com a cara tapada à moda da Pérsia, beduínos do
deserto envolvidos nos seus farrapos e na sua dignidade, curdos com turbantes
6
Pierre George (1952). La Ville. Paris: Presses Universitaires de France, p. 270-271.
30
multicores, afegãos vestidos de branco, negros do Sudão em bubu, e habitantes do
Magrebe nas suas chilabas".
Todas as cidades mulçumanas eram cercadas por uma muralha. Na Madina
encontrava-se a maior mesquita, as ruas comerciais, posteriormente as ruas
residenciais, e finalmente os arrabaldes.
A ética na cidade islâmica possui profunda relação com a religião mulçumana.
É a religião que escolhe as categorias da ética e que difunde uma moral que toda a
população deve seguir.
1.1.4. A Cidade do Renascimento
Segundo Goitia (1982, p. 101), apesar de o Renascimento - final da Idade
Média e o início da Moderna, entre os séculos XIV e XVI - ser um período de grandes
transformações, nas cidades ocorrem poucas alterações. A explicação para tal fato é
que o Renascimento é, principalmente, uma modificação cultural, sendo o primeiro
grande movimento cultural burguês dos tempos modernos. A princípio, o termo
Renascimento pode nos parecer algo como uma renovação da cultura clássica ou um
renascer cultural. Na realidade, este movimento apenas inspirou-se na Antiguidade
Clássica, principalmente no antropocentrismo, com o objetivo de resgatar valores que
interessavam ao novo mundo urbano-comercial. Buscou eliminar o que era velho,
resgatando o que era antigo, da antiguidade clássica.
Própria das mudanças em curso e da negação do período anterior foi a
denominação dada então à Idade Média, de Idade das Trevas. Como em todo
momento de ruptura, o Renascimento descarta a vasta produção cultural do momento
anterior, a Idade Média. Caracterizou-se por ser um movimento anticlerical e
antiescolástico, sobressaindo-se os valores modernos e burgueses, como o otimismo,
o individualismo, o naturalismo, o hedonismo e o neoplatonismo. A base do movimento
foi o antropocentrismo, ou o humanismo. Descartes, um dos principais pensadores da
história humana e deste período, em dois aspectos de sua filosofia, marca a
modernidade: (1) caráter pragmático-utilitarista que o conhecimento adquire; e (2) o
antropocentrismo. É com ele que intensifica-se ainda mais a questão da separação
homem-natureza (Gonçalves, 1998, p.33). Ele afirmava que através do conhecimento
poderíamos nos tornar senhores e possuidores da natureza, provocando a
dessacralização da natureza.
Costuma-se dividir o Renascimento em três grandes fases: o Trecento, o
Quattrocento e o Cinquecento. O Trecento (em referência ao século XIV) manifesta-se
predominantemente na Itália, mais especificamente na cidade de Florença, pólo
31
político, econômico e cultural da região. Giotto, Boccaccio, e Geovanni Trapattoni
Petrarca estão entre seus representantes. Durante o Quattrocento (século XV) o
Renascimento espalha-se pela península itálica, atingindo seu auge. Neste período
actuam Botticelli, Leonardo da Vinci, Rafael e, no seu final, Michelangelo (que já
prenuncia certos ideais anti-clássicos utilizando-se da linguagem clássica, o que
caracteriza o Maneirismo, a etapa final do Renascimento, considerados os três últimos
o "trio sagrado" da Renascença. No Cinquecento, o Renascimento torna-se no século
XVI um movimento universal europeu, tendo, no entanto, iniciado sua decadência.
Ocorrem as primeiras manifestações maneiristas e a contra reforma instaura o barroco
como estilo oficial da Igreja Católica. Na literatura atuaram Ludovico Ariosto, Torquato
Tasso e Nicolau Maquiavel, já na pintura eram Rafael e Michelangelo.
No Renascimento a formação de aglomerações urbanas é menos numerosa.
Um menor número de contribuições foi dado no campo do urbanismo - tanto das idéias
quinhentistas, quanto das realizações - pelo Renascimento, se comparado com a
arquitetura do mesmo período (Goitia, 1982, p. 104). O urbanismo não deixa de lado
as questões práticas, mas a preocupação premente é a busca pelo modelo de cidade
ideal e por uma estética urbana universal, onde a cidade não deveria ser apenas
cômoda, mas também bela. Neste período, a estética urbana da antiguidade é
retomada como modelo. Porém, os renascentistas apesar de se proclamarem fiéis no
resgate do antigo, abriram caminhos para novidades. A dependência do Renascimento
em relação aos exemplos da antiguidade transparecia também nas novidades criadas
por ele. Daí a enorme riqueza e variedade da arquitetura renascentista. Os
renascentistas somente possuíam alguns textos e fragmentos de textos de Vitrúvio,
que descrevia como deveria ser a cidade ideal e algumas construções da época. O
plano radiocêntrico era o modelo de plano urbano perfeito. Com forma de estrela de
oito pontas, cada qual voltado para um dos ventos predominantes, ou seja, um
polígono de 16 lados, com 16 ruas radiados que convergem no centro deste polígono
em uma praça onde localiza-se o palácio do soberano e no meio desta praça
encontra-se um monumento redondo. Portanto, foi assim a idéia de cidade idealmente
perfeita dos renascentistas, uma cidade octogonal, rodeada por muralhas que
possuem torres redondas, com uma organização circular, possuindo assim, um centro.
Existem também as praças secundárias e ruas formando anéis concêntricos, tudo com
grande perfeição geométrica em busca do esteticamente perfeito e belo. Admitia-se
que o plano urbanístico de uma cidade, em muitos casos, deveria ser adaptado a seu
sítio, porém afirmava-se que a cidade ideal é um octógono regular, com as
características acima descritas. O problema começa a surgir quando discute-se a
organização das ruas no interior do octógono, pois estes dados não mais existiam ou
32
encontravam-se incompletos. Alguns, portanto, colocaram as ruas na forma de
tabuleiro de xadrez para que não coincidissem com a direção dos principais ventos.
Outros,
devido
à
forma
octogonal
do
perímetro
utilizavam
a
organização
radioconcêntrica.
A idéia da defesa militar estava também muito presente nas cidades
renascentistas. A forma da cidade ideal também possui profunda relação com a função
de defesa. As muralhas passam a ser baixas, mas muito espessas, reforçadas por
vários baluartes. Além disso, a partir da praça central podia-se fazer disparos de
canhões que atingiam todas as ruas principais. O teatro passa a situar-se em salas
fechadas, mas sempre com uma decoração que lembre a cidade. Os jardins são
valorizados e passam a ser ordenados em torno de um eixo, sendo composto
geometricamente. As florestas passam a ser reestruturadas com relação à caça.
No Renascimento a busca pela cidade ideal se baseia em uma concepção
intelectual do espaço urbano a ser projetado, sendo assim as novas cidades utilizavam
e muito a planificação urbana, e este sistema passa também a ser utilizado para
remodelar cidades existentes. A regularização do traçado urbano passa a ser a
condição primeira de beleza da cidade, tudo baseado na geometrização do espaço
urbano. Havia também o gosto pela perspectiva monumental, onde monumentos eram
colocados em locais estratégicos, tornando-se marco e referência da visão. A partir
desta concepção também era bem usual a combinação entre uma rua retilínea com
um edifício terminal. Nas praças as ruas desembocavam no meio das laterais para que
o monumento situado em seu centro pudesse ser visto de todos os ângulos. A fachada
clássica também tinha aspecto monumental, atravessada por janelas com mesmo
ritmo. Nessas cidades existiam programas, que consistiam num modelo arquitetural
obrigatório, ao qual todas as construções realizadas na cidade deveriam obedecer,
com a concepção estética sempre guiando o poder.
Um número significativo de cidades é criado, mas a maioria delas não se
encaixa no padrão de cidade ideal. As cidades-fortalezas são um exemplo, sendo um
grande quadriculado, com uma praça central quadrada e dois eixos perpendiculares
que se cruzam nesta praça central.
Claro que a maior parte das cidades da Europa havia sido fundada na Idade
Média, centros urbanos fundados no Renascimento foram poucos, pequenos e pouco
expressivos. Como exemplo desse tipo de cidade, temos, segundo Goitia (1982, p.
107), a cidade de Palmanova, de 1539, situada na fronteira oriental da República
veneziana; Grammichele e Avola, no final do século XV, na Sicília; Vitry-le-François,
na França, dentre outras.
33
Normalmente, nos séculos XV e XVI, o que ocorria eram as modificações
dentro das cidades já existentes, que alteravam bem pouco a estrutura original.
Portanto, são criadas ruas retilíneas e regulares, praças regulares com um
monumento homenageando um rei ou príncipe e edifícios solenes, como as principais
obras no interior das cidades neste período.
Muitas idéias urbanísticas do Renascimento mantiveram-se apenas na teoria,
no projeto, um simples exercício intelectual, porém, muitas foram aplicadas na
América, devido à colonização espanhola.
Miguel Ângelo, adiantado em seu tempo, produz sua obra com um sentido de
unidade e de correspondência orgânica entre partes, bem próprio do barroco. A
Europa só vai absorver estes ensinamentos da Itália, criando praças com arquitetura
espetacular, bem ordenada e com ruas e composições com nível estético superior,
bem mais tarde, na cidade barroca.
No campo da ética desenvolveram-se questões centradas em problemas
cívicos e naqueles relacionados à constituição do sujeito. Neste momento, abre-se um
campo importante de contato também com as discussões atuais sobre a natureza do
individualismo e dos direitos civis.
1.1.5. A Cidade Barroca
Bem vagarosamente, porém ininterruptamente, ocorre a transição da ordem
clássica para a ordem barroca. O Barroco inicia-se a partir do século XVII e decorre
até a primeira metade do século XVIII. A palavra barroco deriva de pérola irregular.
Nas cidades propriamente não ocorrem grandes modificações. As maiores
modificações ocorrem para as classes mais altas da sociedade. Continuavam e existir
pequenas cidades, a população se concentrava no campo, onde encontrava-se
espalhada e dispersa. Isso facilitou a emergência de um conceito unívoco de nação,
originando o conceito de Estado-nacional, com o sentido de um todo nacional, que
englobava não apenas as cidades, mas sim, e principalmente, a área rural.
Portanto, o Estado nacional moderno surge baseado na estrutura agrária
medieval. E é este Estado nacional moderno que aniquila e altera a ordem medieval,
instaurando grandes cidades, e provocando com isso a redistribuição da população
pelo território. O Estado e suas instituições que estavam em constante movimento pelo
território nacional fixam-se num local, a capital, criando-se uma burocracia. Neste
momento, esta capital espelhava o todo, que era a nação. Com a emergência da
grande cidade concomitante com o todo nacional, as estruturas medievais se esvaem,
pouco a pouco, desaparecendo.
34
Mumford (1938, p. 140-141), descreve a cidade barroca: "A lei, a ordem e a
uniformidade são produtos essenciais da capital barroca; a lei, no entanto, existe para
confirmar o estatuto das classes privilegiadas e assegurar a sua posição; a ordem é
uma ordem mecânica, que não se baseia no sangue, na vizinhança ou em objetivos e
desejos comuns, mas sim na submissão ao princípio em vigor; quanto à uniformidade,
é a uniformidade dos burocratas, com seus arquivos expedientes e numerosos
procedimentos para regularizar e sistematizar a cobrança dos impostos (...) o braço
econômico é a política mercantil e capitalista e as suas instituições mais típicas são o
exército, a bolsa, a burocracia e a corte. Todas estas instituições completam-se
mutuamente e criam uma nova forma de vida social: a cidade barroca".
A cidade barroca, teoricamente, provém dos estudos e das idéias do
Renascimento, da idéia da regularidade e da beleza baseada na harmonia geométrica.
A cidade barroca era entendida como uma obra de arte, onde um instrumento era
extremamente valorizado, a perspectiva. Para a pintura e para a arquitetura a
perspectiva foi uma grande descoberta e foi muito utilizada. Já no campo do
urbanismo a utilização deste instrumento foi um pouco mais demorada. Somente no
século XVIII é que o urbanismo atingirá seu ápice na arte barroca.
O barroco é libertação espacial, é libertação mental das regras dos tratadistas,
das convenções, da geometria elementar. É libertação da simetria e da antítese entre
espaço interior e exterior. Por essa ser a vontade, de libertação, uma atitude criativa
liberta de preconceitos intelectuais e formais. É a separação da realidade artística do
Renascimento. Francesco Barromini, que entre muitas obras construiu em Roma o S.
Carlo alle Quatro Fontanes. Surge aí a associação entre elementos rectos e elementos
curvos, utilizando formas ambivalentes, a fachada é visualmente dinâmica, que não
deixa os espectadores parados. Exibe uma complexidade em termos de organização,
concava, convexa e retas, é este dinamismo que o barroco impõe. Cria-se um portal
monumental, que joga com várias formas, desloca-se o sino para a zona da fronte, em
vez da zona central, destacando assim também a importância da fronte, como
elemento criativo e funcional integrado na arquitetura. Barromini foi ainda o autor de
Sante Agnes e de Sante Andrea delle Frentte, ambas em Roma (Goitia, 1982, p. 131).
Hardonin Manstr é outra obra também característica do Barroco, em Versailles,
em que a planta é elíptica, os jogos de luz criam contrastes visuais. Em todo o espaço
se cria uma multiplicidade cenográfica. O muro não é entendido como um limite, mas
sim uma realidade espacial privilegiada para conter movimento. Os efeitos
volumétricos são essenciais como elementos na arquitectura Barroca.
A França, no período barroco, desponta como nação principal da época, com
muito poder, muitos recursos e com uma política dominante. Com uma arquitetura
35
muito uniforme, típica deste período, tudo fica imiscuído numa harmonia e num grande
equilíbrio. Utilizava-se sempre de uma praça monumental com uma estátua em
homenagem a um rei.
Afirmava-se na época que uma cidade não pode ultrapassar uma certa
dimensão sem que haja riscos. Seriam os denominados perigos do gigantismo urbano,
tais como as dificuldades para o abastecimento, para a manutenção da ordem, para o
bom funcionamento da administração urbana, para as comunicações, dentre outros.
Havia grande preocupação com a retificação e alargamentos de ruas para
facilitar as comunicações e transporte. Assim como com a salubridade, surgindo
preocupações com a altura das edificações e largura das ruas, e, também com a
formação de jardins e passeios, para favorecer a circulação do ar. A preocupação com
a higiene pública reflete-se com a preocupação em pavimentar as ruas e com a
criação de um sistema de esgotos. Determinadas atividades muito poluidoras, como
os matadouros, curtumes, dentre outros, passam a ser concentrados nas periferias.
Os cemitérios são transferidos para áreas externas às aglomerações e os
sepultamentos em igrejas foram proibidos, pois cristaliza-se o receio com relação à
doenças e contaminações oriundas dos mortos. É uma época onde há uma
preocupação social muito grande. São construídas diversas infra-estruturas, como,
igrejas, hospitais, edifícios públicos, casernas, teatros, dentre outros, com a
preocupação de que a função de uma edificação, principalmente as públicas, deveria
ser expressa em sua arquitetura. O abastecimento de água passa a ser foco de
grande preocupação, com a criação de aduções e reservatórios de água que
aumentam em número, e também, com o surgimento das bombas hidráulicas em
algumas áreas.
As principais características do urbanismo barroco são: a linha reta, a
perspectiva monumental e a uniformidade, conforme Goitia (1982, p. 136). Resumindo,
a perspectiva. A cidade e mesmo o mundo era visto como um panorama, e o
urbanismo como arte. Portanto, se o mundo era observado em perspectiva,
pressupõe-se uma contemplação, e mais, uma visão única, que era a do homem, mais
especificamente, do poder do príncipe. Esta visão num foco determinado ajusta-se
muito bem à organização monárquica da época. A cidade transborda a sua realidade
política. No ponto central da cidade encontrava-se o palácio. A simetria era uma
preocupação central.
Com relação à estética urbana, grande preocupação do período barroco,
podemos ressaltar alguns pontos importantes. O alinhamento das ruas era a base
para a beleza da cidade barroca. O traçado urbano esteticamente mais belo na época
era aquele que correspondia a uma figura regular, como os quadriculados regulares,
36
os traçados em forma de estrela, praças circulares, dentre outros. A regularidade das
fachadas foi largamente utilizada, decorando o exterior, sendo o essencial a fachada,
a aparência, um embelezamento do exterior, podendo-se construir o que se queria
atrás da bela fachada que não poderia ser tocada. A cidade deixa de ser isolada do
meio natural, abrindo-se a cidade para o rio e criando-se passeios e jardins, como por
exemplo.
A regulamentação do urbanismo é uma das preocupações do poder público na
época. A prioridade no que concerne à regulamentação era a manutenção da
segurança através da criação de regras para as construções. Outro objetivo do poder
público era o melhoramento da circulação, promovendo o alargamento e a retificação
de ruas. A criação de um modelo de fachada padrão, obrigando-se aos moradores da
área a construírem e reformarem suas fachadas para atender aos padrões estéticos.
Portanto, vê-se que o trinômio circulação, segurança e estética, era a grande
preocupação urbanística da época. A desapropriação torna-se de uso freqüente
devido à necessidade de utilidade pública. Todas as obras da cidade barroca eram
realizadas com um sentido de unidade muito forte, como algo absolutamente novo.
1.2) As Cidades do Período Moderno
Na modernidade emerge a questão da razão, como um novo começo, um
esclarecimento, uma transformação da humanidade através da razão. Já havia entre
os gregos o ideal de uma civilização da razão, mas na modernidade essa razão possui
um outro enfoque. É um novo começo, pois toda a filosofia de uma ordem cósmica
será desmontada, e, portanto, a concepção ética baseada na totalidade de ordem
cósmica material será destituída. A modernidade vai romper com essa visão, através
das novas perspectivas teóricas que surgem, produzindo uma revolução da ética. Em
seu lugar temos a descoberta da subjetividade como, segundo Oliveira (1993, p.17),
“nova instância da incondicionalidade e da absolutidade do agir humano.”
A esfera da normatividade entra em crise na modernidade, pois deixa de existir
uma ordem válida à ação humana, surgindo várias ordens aceitas. De acordo com
Oliveira (1993, p.17), “A vinculação entre metafísica, cosmologia e ética perde seu
fundamento.” A nova instância do pensamento da vida ética passa a ser o sujeito e
toda vez mais como autônomo, pois ele medeia e fundamenta seu próprio agir. O que
passa a ser valido é através do conhecimento e da razão. O que motiva a ação
humana, passa a ser apenas aquilo que “se submete à reflexão critica, livre e pública
da razão humana”. É nesse momento, com a ascensão da filosofia moderna da
subjetividade, em detrimento, a ontologia cosmocêntrica clássica, que os fundamentos
37
do ético entram em crise. Não existem mais fundamentos pré-condicionados do agir
ético do homem. Este passa a orientar seus atos (ética) pela razão.
Surge, assim, um novo sentido de liberdade: o homem através da razão passa
a conquistar a sua liberdade. Sendo assim, o tema central da modernidade é a razão
como instrumento de emancipação da humanidade.
Para o homem moderno a sociabilidade passa a ser um apêndice, ou um mal
necessário, pois o indivíduo é isolado e egoísta. Além disso, o ético foi reduzido à
moral, deslocando-se das instituições sociais para a interioridade subjetiva.
Segundo Oliveira (1993, p.20), Thomas Hobbes afirmava que os homens são
iguais com relação à vida natural, isso causa conflitos pela convergência de
interesses. A razão é a mediadora. Para ele “querendo mais de um a mesma coisa é
impossível que vários a atinjam” , o que vai gerar problemas de inimizades entre os
homens. Sendo assim, segundo Thomas Hobbes, a vida natural dos homens é um
estado permanente de guerra, que a razão surge como mediadora da humanização. É
o primado do indivíduo. Então, a grande questão era a de como produzir a associação
de indivíduos isolados. O homem e sua razão promovem a socialização e a instituição
de normas para o agir humano. Há, portanto, uma ruptura com o estado de natureza e
criação de uma segunda natureza, a sociedade civil.
Para Hobbes, portanto, somente a razão legitima
a ordem social, ética e
política e consegue superar o estado de caos da vida natural. A ética deixa de ser a
teoria de tradução da ordem universal na esfera da conveniência humana para
transformar-se numa teoria da própria construção artificial dessa ordem pela razão
humana. Ocorre uma revolução da compreensão do que se entende por ética na vida
humana. O homem passa a ser responsável pela criação do universo normativo que
fundamenta seu agir no mundo. O ético passa a ser o processo de libertação para o
infinito, o eterno e o imutável, onde é a subjetividade como autonomia absoluta.
Na modernidade, o homem passa a se compreender como um “ser de
necessidade” que precisam ser satisfeitas. A auto-realização passa a ser sinônimo de
auto-conservação. Daí a importância tamanha, neste momento, da razão, pois é
através dela que os desejos, anseios e carências do homem serão satisfeitos; ter o
que é necessário para a satisfação dos desejos do homem passa a ser condição para
sua humanização.
A liberdade passa a ser autodeterminação. A ser encarada como “liberdade
para possuir”. Os indivíduos passam a ser vistos como proprietários de si mesmos e
das coisas. É a nova ontologia do ser humano e de seu agir, em que segundo Oliveira
(1993, p.22), o homem passa a ser encarado como um ser de carências que precisam
ser satisfeitas. A natureza passa a ser utilizada pelo homem para a sua satisfação,
38
alterando-se, assim, a relação homem natureza. A propriedade passa a ser condição
para a efetivação do ser homem, identificando-se bem e prazer. O ético passa a ser
aquilo que conduz à fruição dos bens, que satisfazem carências. E, as leis, para
Hobbes, regulamentam as relações entre os homens, superando assim a insegurança
do estado de natureza.
Segundo Oliveira (1993, p.23), Lache afirmava que o homem a partir de valores
como o egoísmo, o enriquecimento individual e a concorrência consegue realizar seu
ser. Ele reduz a liberdade à esfera da interioridade.
De acordo Oliveira (1993, p.24), o centro da reflexão ética de Rousseau, é
descobrir uma forma de comunhão dos homens entre si que não destrua a liberdade
individual de cada um. A solução que ele encontra é a submissão da vontade
particular para a vontade geral. Ele afirma que só a esfera do político é capaz de
efetivar o homem enquanto ser livre. Rousseau apud Oliveira (1993, p.25), “O ético é o
universal, de tal modo que o homem virtuoso é aquele cuja vontade individual se deixa
normar pela vontade universal, a qual é, assim, criadora da comunidade entre os
homens”. O ético, portanto, seria a vontade universal. E a liberdade só seria atingida
pela igualdade.
É a reafirmação da liberdade como o que há de absoluto no homem. Liberdade
como princípio ético. No sentido moderno, a comunidade é uma congregação
daqueles que estão em busca de seus próprios interesses e não mais daqueles que
querem o bem comum. Oliveira (1993, p.27), afirma que, “o Estado deixou de ser a
totalidade dos indivíduos eticamente vinculados para transformar-se no protetor e
defensor dos interesses individuais, somente um poder comum é capaz de agregar
politicamente indivíduos iguais.” Portanto, a questão central nesse período passa a
ser, como construir a comunidade sem ferir o individual? Essa e outra série de
perguntas que nos fazemos ainda hoje são a herança de pensamento ético da
modernidade.
Segundo Oliveira (1993, p.104), Hegel afirma que, o Estado é a realidade da
ética e que “a idéia ética nada mais é que a unidade dos dois momentos
fundamentais: a existência imediata, objetiva, no etos, no mundo dos costumes e das
instituições, e a existência mediata, subjetiva, na autoconsciência dos indivíduos”. A
substância da eticidade para Hegel é a liberdade. O Estado, segundo Hegel, é a
realidade na qual o indivíduo supera o mundo dos interesses particulares elevando-se
às universalidades. Essas universalidades se efetivam através das leis e das
instituições.
39
Marx, segundo Oliveira (Marx, apud Oliveira, 1993, p.105), o Estado é o
instrumento da classe dominante para impor seus interesses à sociedade, com a
aparência de universalidade. O Estado reflete em si o estado das relações sociais.
Locke, segundo Oliveira (Locke, apud Oliveira, 1993, p.110), crê no indivíduo
livre, dotado de direitos naturais. O individual é pensado independentemente do todo.
O homem natural é o burguês, apropriador e acumulador de bens. Ele vive no
momento em que o Estado assemelha-se mais com o moderno Estado de direito
liberal. Segundo ele, a liberdade e a igualdade são características fundamentais do
estado de natureza. Acredita em uma igualdade natural dos homens. O estado de
natureza que era de paz, transformou-se em um estado de guerra, através da criação
do dinheiro, momento em que a posse desigual de bens foi aceita. Por isso é que uma
sociedade dominada pelo dinheiro não sobrevive sem a criação do Estado para
garantir a propriedade privada. Para ele, a maioria dos homens não vive segundo às
leis naturais, pois só se preocupam com seus próprios interesses. O dever do poder
político é assegurar a vida e a propriedade dos cidadãos. Surge a idéia de que
somente os proprietários são cidadãos plenos.
De acordo com Oliveira (1993, p.28), Kant era um grande teórico da autonomia
do homem, defendendo a “humanização do homem” e a “ética pós-convencional”.
Kant, procurou pensar a liberdade como processo de síntese entre individualidade e
sociabilidade.
O pensamento clássico é alterado ao longo da modernidade, passando por um
processo de transformação.
Há uma mudança do centro de gravidade do
pensamento, deixando de lado o cosmos imutável e entrando em cena o próprio
homem enquanto subjetividade. O homem é subjetividade como sujeito de seu
conhecimento e de sua ação no mundo. A pergunta central passa a ser pelo homem
que pensa, determina, dá sentido a tudo o que ele encontra. Subjetividade como ponto
de referência do agir teórico e prático do homem. É o homem que confere ordem ao
caos de sua experiência fenomenal.
O político passa a ter um sentido funcional, revelando-se como um aparato ou
instrumento de um grupo ou de certa sociedade em função da regulação e da
ordenação da vida social. O questionamento acerca da significação é substituído pelo
questionamento pelos meios. O princípio, pois, do Estado moderno é o da liberdade
subjetiva e do querer individual. O grande problema do pensamento político moderno é
o da constituição da sociabilidade humana. A liberdade passa a ser o tema central da
filosofia política. A politicidade do homem moderno, é entendida como a busca pela
satisfação das necessidades individuais.
40
Kant, segundo Oliveira (Kant, apud Oliveira, 1993, p.100), o sentido político
surge como contribuição para a humanização do homem. O político serve para tornar
possível a moralização do homem. Ao mesmo tempo em que,o homem quer
socializar-se, busca afirmar-se na auto-suficiência de sua subjetividade, gerando um
antagonismo permanente.
Kant, segundo Oliveira (Kant, apud Oliveira, 1993, p.130), vê a razão como
capacidade do homem, que torna-se, pois sujeito, impondo-se e manipulando o
mundo. O homem emerge como subjetividade, através da transformação do outro em
objeto. A filosofia transcendental de Kant legítima essa nova visão de mundo. Para ele
o ético é a fonte de grandeza do homem. O homem possui a capacidade de agir
segundo normas, diferente das coisas que agem mecanicamente. Mas, como justificar
essas normas? Como dar validação a elas? O princípio de fundamentação das
normas, constitui o homem como ser ético. As leis são válidas para qualquer sujeito
racional. Existem para Kant as leis da natureza que dizem o que é, e as leis da
liberdade, que dizem o que deve ser. As ações do homem radicam na liberdade e não
na natureza. A liberdade é a condição universal de possibilidade das ações dotadas de
sentido. A fonte única que legítima as normas da ação humana é a razão. Moralidade
para ele significa “emancipação do homem para sua humanidade” (Kant apud Oliveira
1993, p.136). Sendo assim, significa o retorno da razão a si mesma. Ele pensa a
liberdade como “antítese à necessidade da natureza” (Oliveira, 1993, p.140) e da ação
ética. A moralidade da ação implica a escolha de uma máxima que valha como lei para
todos. “A liberdade, enquanto critério de moralidade, é a fonte de uma legislação que
me abre, em princípio, à comunidade de todos os homens” (Oliveira, 1993, p. 140). A
teoria ética de Kant, concentra-se no motivo da ação humana, que não pode ser outro
senão a liberdade enquanto autodeterminação, que nos abre à comunhão universal.
Kant, de acordo com Oliveira (Kant apud Oliveira, 1993, p. 140), afirma que, “O
indivíduo ético é o que, superando sua particularidade biológica, respeita em si e em
cada indivíduo a humanidade”. Portanto, a ação ética é fundamentalmente uma
passagem, que é emancipação: a passagem de um eu empírico, de uma vontade
particular, para uma vontade universal, portanto, passagem para a razão, para a
liberdade, para a comunhão da liberdade”.
Kant afirma que encontra as normas e não as cria. A reflexão ética dirige-se à
“normatividade das normas”. Como justificar as sentenças normativas. Não é possível
deduzir a lei moral nem a liberdade pela razão. Como legitimar a sentença normativa.
O pressuposto fundamental da experiência ética é a liberdade, pois somente o
ser livre pode moralmente obedecer a leis. Por isso Kant afirmava que a experiência
ética não é deduzida da razão, pois senão negaria o pressuposto da liberdade. A
41
liberdade, pois, torna-se a condição de possibilidade do agir ético. A nova ética,
segundo Kant, passa a demonstrar a consciência da razão prática e a consciência de
nossa liberdade. O homem revela-se assim como ser de razão, transcendendo seu ser
de necessidades.
O homem não se restringe à pura e simples obediência das normas. Ele
precisa de um princípio que possa legitimar essa sua obediência. Além disso, o fato
legitimador não pode ser igual ao da razão teórica. “A tarefa da ética é embasar a
norma fundamental, a partir da qual se pode medir a normatividade de todas as
obrigações morais” (Oliveira 1993, P.147). Kant direciona sua argumentação para
provar a realidade da lei moral e da liberdade. Para ele, o homem emerge no mundo a
partir de que assume funções determinadas em seu contexto sócio-histórico e que se
comporta segundo as normas de ação. De acordo com Oliveira (1993, p. 148) “toda a
vida humana é ‘ética’, de vez que o homem sempre se encontra numa tradição
cultural, que lhe transmite normas de comportamento historicamente gestadas”.
A distinção entre normas e princípios, foi um dos motivos de se denominar a
reflexão kantiana sobre ética uma reviravolta. A ciência do ético tem como tarefa
fundamental o estabelecimento de princípios. Ou seja, o princípio fundamental, que é
através dele que decide-se o caráter normativo das normas. A reflexão ética não torna
o homem capaz de agir eticamente, pois isso ele já o faz naturalmente através do
processo de socialização. Ela, na verdade, capacita o homem a dar razões das
motivações da sua maneira de agir. Segundo Oliveira (1993, p. 150), as normas das
ações do homem somente são aceitas quando refletem a vontade universal, ou seja,
enquanto os homens a queiram como leis universais. Uma das grandes conquistas da
reflexão ética de Kant é ter conseguido elaborar a problemática da justificação das
normas de ação. De acordo com Oliveira (1993, p. 152), “Respeito significa
simplesmente a consciência da submissão de minha vontade a uma lei, sem mediação
de outras influências sobre seu ser”. É a consciência de nossa subordinação à lei, que
implica na necessidade de ir além do interesse egoísta. O respeito é, principalmente, o
respeito pela liberdade. Uma ação moral não é simplesmente aquela que está de
acordo com a lei, mas sim, a que faz em virtude da lei. Pois, a lei deve ser sentida em
si mesma, valendo assim, independentemente de tudo. É por meio da lei universal que
o indivíduo se universaliza.
É a dignidade da pessoa humana, para Kant, que segundo Oliveira (Kant apud
Oliveira, 1993, p. 154)
encontra-se no fato de que ao experimentar a exigência
absoluta da lei, experimento-me como absoluto, possuindo uma dignidade intocada,
incondicionada. A emergência do outro se faz no momento constitutivo e indispensável
42
no processo de auto-conquista da subjetividade. Quando tudo é reduzido a objeto,
torna-se possível fazer-se sujeito.
Assim, Kant, segundo Oliveira (Kant, apud Oliveira, 1993, p.156), “Ser pessoa
é viver a partir da liberdade, é fazer-se sujeito a partir da vontade livre, que independe
de qualquer causalidade da natureza. A pessoa é o ser que se põe como fim em si
mesmo. Liberdade é então a capacidade da pessoa para ser fim em si mesma,
capacidade para a autolegislação. Assim, a lei moral revela-se como dever da pessoa
para com sua personalidade, isto é, para a liberdade: portanto, dever, em última
análise, é dever de efetivação da liberdade, dever da autodeterminação do universal
do homem. A personalidade, então, enquanto produto da liberdade, não se efetiva
mecanicamente: a vida do homem está necessariamente diante das alternativas:
efetivação ou destruição da liberdade. A ação humana tem assim peso considerável:
nela se decide, em última instância, a efetivação do homem como ser livre”.
Para Kant, as leis morais são princípios da razão pura prática, que é a razão
que determina-se exclusivamente a partir de si mesma, independentemente dos
impulsos da sensibilidade.
A liberdade para ele é uma propriedade em que os seres racionais possuem,
pois que podem agir independentemente de toda causa determinante, estranha a si
mesma. É para Kant, a liberdade, a capacidade de dar-se a si mesma a lei. O homem
existe como ser moral, pois pode com suas forças submeter a natureza. Para ele
realizar a liberdade é fruto de uma decisão pessoal a partir da interpelação do
incondicionado.
Segundo ele, todas as ações sociais se submetem ao coletivo, ao público, que
é a constituição civil, fazendo com que indivíduos transformem-se em cidadãos. O
Estado surge em virtude do mal existente na vida humana, que é o antagonismo, as
divergências da vida social. O homem possui uma forte tendência contraposta, ao
mesmo tempo em que busca viver em sociedade, tende a se individualizar de maneira
mais forte. O grande mal da vida humana é a possibilidade de afastar-se da máxima
lei moral.
Existe um estado das coisas jurídico-civil, no qual os homens se relacionam
regidos por leis comuns de direito de ordem pública. Ao mesmo tempo, existe um
estado de coisas ético-civil, no qual os homens se reúnem a partir de leis não
coercitivas, que são as leis da virtude. A liberdade não pode ser atingida a partir da
coerção. Para ele a verdadeira religião é a ética. E o estado divino é o ético.
Já, Hegel, segundo Oliveira (Hegel apud Oliveira, 1993, p. 146), deve-se abrir
espaço ao reconhecimento da diferença. A unidade não pode ser obtida a partir do
poder de dominação, e, sim, do reconhecimento da alteridade. A real conquista da
43
subjetividade só é obtida a partir do reconhecimento mútuo dos homens como seres
iguais e livres, como serem essencialmente comunitários.
Para Hegel, tudo parte do princípio da liberdade. A individualidade e a
sociabilidade são contraditórias e justapostas, excluem-se e incluem-se, não podendo
ser pensadas separadamente. A questão central acerca do problema ético em Hegel o
processo de identificação entre a vontade singular e a vontade universal. Ele afirma
que uma ação pode ser denominada de legítima moralmente, quando o agir do
indivíduo baseia-se nas determinações objetivas, provenientes da idéia de liberdade,
ou seja, quando são universalizáveis. O universal não é fundamento do ético, pura e
simplesmente, porque sempre existirá a vontade singular, individual. Ele procura,
portanto, superar a contraposição entre universal e particular. A vontade universal só é
tal quando desemboca nas vontades particulares. Pensa a moralidade como momento
da eticidade.
Hegel, segundo Oliveira (Hegel, apud Oliveira, 1993, p. 219), “A liberdade
humana é energia que não fica presa na esfera da interioridade subjetiva, mas se
realiza nas leis, nos costumes e nas instituições que regem a vida comum dos
homens”. Somente com a fusão entre o homem e o ético é que torna-se possível
pensar a liberdade como exercício pleno da racionalidade dos indivíduos. Através da
autoconsciência da racionalidade, inscrita nas relações éticas da época, é que a
liberdade avança. Ele busca a racionalidade na realidade histórica. Com isso, a própria
eticidade histórica fornece o quadro de sentido das ações. A ética situa-se na esfera
da crítica e da fundamentação de normas de ação.
De acordo com Oliveira (1993, p. 245), para Hegel, o conteúdo da sociedade
moderna é a natureza necessitante do homem enquanto indivíduo e sua satisfação
através do trabalho abstrato e da divisão de trabalho. Portanto, na sociedade moderna
o cerne da questão é a natureza carente do homem, que é visto como um indivíduo
isolado, produtor e consumidor. Os indivíduos se vinculam entre si para satisfazer
suas carências. É a partir desse pensamento que fundamenta-se a questão do direito
fundamental do homem de apropriar-se das coisas. A sociedade moderna é formada a
partir dos interesses individuais. Por um lado, baseia-se na acumulação de riquezas,
por outro na formação de uma massa abaixo da medida de subsistência. Este tipo de
sociedade acaba por gerar cisões, oriundas das contradições, que ocasionam a
destruição da liberdade. A liberdade é a união entre individualidade e sociabilidade. É
na esfera da eticidade que se dá a efetivação da vontade livre e universal no plano da
história dos homens. Isso se dá pela criação de instituições e comunidades segundo
as exigências da liberdade. Isso é a criação da sociabilidade, na medida em que o
44
conteúdo da vida das pessoas não é apenas a vontade particular, mas a vontade
universal.
Os interesses particulares são contraditórios, são contrapostos. Mesmo com
regras, na tentativa de equilibrar os interesses, este equilíbrio será precário, pois o
universal não é buscado por si mesmo. Isso é o que gera a polarização entre pobres e
ricos, o que leva à moderna sociedade industrial à miséria e à corrupção física e
moral. Boa parte dos indivíduos se frustram na tentativa de satisfazer suas
necessidades. Com a pobreza deixa de existir o sentimento de dignidade obtida pelo
trabalho criando uma situação de indignação, por conta das injustiças.
Para Marx, segundo Oliveira (1993, p. 248) , os homens se relacionam apenas
no mundo das mercadorias, no mundo do mercado, pois fora dele reduzem-se a
indivíduos. A eticidade capitalista é a inversão do homem em não-homem, já que a
liberdade e a propriedade, dentre outros predicatos que eram atribuídos ao homem,
passam a ser atribuídos ao capital. A eticidade capitalista, portanto, acaba traduzindose na expropriação sistemática e contínua de um grupo de homens por outros. Marx
propõe uma eticidade alternativa que elevaria o homem à condição de sujeito
verdadeiro.
1.2.1. A Cidade na Revolução Industrial
A partir da metade do século XVIII, ocorre um grande crescimento da
população mundial, principalmente nas cidades. Neste período, ocorrem grandes
progressos científicos e técnicos, que ampliaram a produtividade e facultaram o
grande inchaço da população citadina. A estrutura setorial da população ativa
modifica-se. Enquanto no século XIX a maior parte da população concentrava-se no
setor primário, com o passar do tempo essa população começa a se deslocar para o
secundário e posteriormente para o terciário. Isso claro, ocorre nos países
desenvolvidos, enquanto no países subdesenvolvidos a situação é diferenciada, sendo
que este processo só ocorre no século XX. O aumento da população das cidades teve
relação com o êxodo rural, quando a população excedente do campo foi para a
cidade, o que foi bem positivo para a indústria do século XIX que necessitava de mãode-obra.
A Revolução Industrial produziu modificações fundamentais nas cidades, até
mesmo porque, houveram diversas revoluções, como a agrícola, a energética, nos
meios de transporte e comunicações, na economia e na sociedade, e não apenas na
indústria. Foi um processo de profundas transformações técnicas e econômicas,
45
através do qual a energia física foi substituída pela energia mecânica. Como bases
ideológicas para o novo desenvolvimento industrial e capitalista, surgiram doutrinas
como as de Adam Smith, Jeremias Bentham e Stuart Mill. Os principais postulados
destes teóricos eram: o utilitarismo, a não intervenção do Estado na economia, a
indústria como um sistema auto-regulador. Adam Smith defendia a política do laissez
faire, dentro da lógica liberal, assim como a divisão do trabalho.
A divisão do trabalho facultou um aumento da produção e também promoveu o
desenvolvimento e melhoramento das máquinas. A Revolução Industrial inicia-se na
Inglaterra, nos fins do século XVIII, que desenvolveu principalmente a indústria têxtil.
Na Inglaterra existiam condições favoráveis ao surgimento das indústrias, como por
exemplo, o clima e a disponibilidade de correntes fluviais em que ao longo de suas
margens foram instaladas indústrias para a utilização da energia hidráulica. Os
cercamentos (enclosures) fizeram com que os camponeses ficassem sem local para
morar e tirou seu sustento, com isso, foi criado um grande número de trabalhadores
para as fábricas. As invenções multiplicavam-se, conseqüentemente a produção
também. Para que esse crescimento progredisse houve também uma grande
ampliação dos mercados econômicos.
O advento da máquina à vapor facultou o surgimento das aglomerações,
grandes concentrações industriais que auxiliaram muito a produção em massa. Essas
grandes concentrações industriais ocasionaram o crescimento das cidades industriais.
Manchester é um dos melhores exemplos deste tipo de cidade, que de 1760 até 1800
teve um crescimento de mais de 100% do número de seus habitantes e de 1760 até
1850 de mais de 1.000% (Goitia, 1982, p. 157). Outro fator essencial para a
industrialização e para o surgimento das cidades industriais foi o desenvolvimento no
setor de transportes, tanto para a obtenção de matérias-primas, quanto para a
distribuição dos produtos gerados nas fábricas.
Nessas cidades o trabalho humano era tratado como uma mercadoria. Quanto
maior fosse o exército industrial de reserva, ou seja, um excedente de trabalhadores,
melhor para o patrão, pois este poderia pressionar os salários para baixo como lhe
aprouvesse. Além disso, o trabalho de crianças e mulheres era muito comum devido
ao pequeno pagamento que essa mão-de-obra possibilitava. Neste período e nestas
cidades, as condições de vida do trabalhador pioraram muito, apesar de ter sido uma
saída encontrada por estes para a situação de miséria, expropriação e desemprego
instalados no campo. Os bairros operários, neste momento, ganharam destaque, pois
eram as áreas onde a mão-de-obra residia.
Com a diminuição do pagamento ao trabalhador os lucros eram muito maiores,
pois se o custo de produção diminuía, conseqüentemente o lucro crescia. Daí a
46
importância do surgimento das cidades industriais, que fizeram com que os
trabalhadores ficassem reunidos numa área, o meio urbano criando assim uma massa
permanentemente disponível para o trabalho na indústria. Segundo Mumford (1938, p.
266), a "aglomeração topográfica substituía um modo de produção bem organizado".
Portanto, neste período cresceram as cidades industriais, mas não apenas elas, pois
as cidades mineiras, cidades antigas e grandes capitais do período barroco tiveram
um grande crescimento, já que umas continham matéria-prima e outras o excedente
demográfico necessário à indústria. Obviamente que estamos nos referindo às cidades
com mais de 100.000 habitantes, que tiveram seu desenvolvimento urbano
completamente alterado pelo conjunto de mudanças e por uma conjuntura
denominada de Revolução Industrial. Determinadas cidades também surgem
relacionadas às vias de comunicação e transporte marítimo ou terrestre, ao turismo e
a portos militares. Nos fins do século XIX algumas cidades já estavam com sua
população muito grande e em busca da solução para este problema, foram criadas as
cidades-satélites (Harquel, 1945, p. 102).
Outro fator que gerou a necessidade da criação de aglomerações e que
determinou a localização destas foi a existência de matérias-primas. A proximidade de
recursos naturais, como as jazidas minerais e os cursos d'água, era um fator decisivo
no momento de escolha da localização da empresa, já que na época os meios de
transportes, apesar de ter tido um desenvolvimento muito grande, ainda eram bem
precários se compararmos com os existentes atualmente.
Uma técnica muito utilizada para clarificar a estrutura urbana, neste período,
era a abertura de uma grande via retilínea, a exemplo do que Haussmann fez em
Paris, (Harquel, 1945, p. 111-114). Outra preocupação era a de criar um
desenvolvimento planificado, muitas vezes, através de um grande quadriculado de
avenidas e ruas. Ocorre a multiplicação de altos edifícios, verticalizando a paisagem
urbana, em algumas cidades, como por exemplo o centro de Paris.
Com relação ao traçado urbano, ao longo do século XIX, adotava-se para criar
ou ampliar uma cidade de maneira planejada o plano ortogonal, surgindo também
alguns traçados em forma de estrela. No século XIX, muitas ambições do século
anterior foram postas em prática. Já no século XX, predominam os traçados leves e
funcionais, transparecendo o ideal moderno. Novos equipamentos urbanos surgem
com a evolução das técnicas, como a iluminação pública e privada a gás e mais tarde
a eletricidade, ônibus e bondes à tração animal e mais tarde a motor, estradas de
ferro, aeroportos; tornando o espaço da cidade muito mais complexo, baseado na
técnica e tornando-se, aos poucos, cada vez mais fluido. Um exemplo de traçado
47
ortogonal é a expansão da cidade de Barcelona planejada e projetada por Cerda
(Figura 1).
Figura 1: Imagem de satélite da parte nova da cidade de Barcelona (Espanha)
projetada por Cerdá.
Fonte: Programa Google Earth.
Não havia nesta época uma preocupação com a beleza, com a estética ou com
a preservação da natureza. O objetivo maior e único era com o lucro da fábrica.
Portanto, as fábricas dominavam as áreas urbanas e decidiam onde se localizar
levando apenas em consideração as vantagens para sua obtenção de matériasprimas, energia, mão-de-obra, transportes, etc, sem considerar a conservação
ambiental e mesmo a beleza estética. Considerava-se que tudo aquilo que auxiliasse e
facilitasse a instalação de indústrias era bom e levaria ao progresso.
Porém, esta visão que priorizava a indústria em detrimento de tudo e de todos,
com o tempo, foi se mostrando simplista e errônea, para muitas pessoas. Pois, dentro
de poucos anos percebeu-se que a apropriação do espaço pela indústria, da maneira
que foi implementada, tornou-se prejudicial à própria indústria. A concentração
populacional, nestas cidades industriais, provocou uma grande falta de habitações e o
surgimento de habitações muito precárias. Iniciou-se uma crescente preocupação com
a qualidade de vida do trabalhador, buscando a criação de uma habitação operária
mais humana e saudável.
As cidades industriais, também designadas de paleotécnicas (Goitia, 1982, p.
18), eram símbolos do progresso. Tinha como partes principais a fábrica e o slum, ou
seja, tudo nesta cidade é ditado pela produção e pelo lucro. A palavra slum, denomina
48
um tipo de subúrbio industrial. Não existe uma cidade puramente paleotécnica,
algumas aproximam-se muito disso, mas não são completamente destituídas dos
aspectos espirituais, sociais e domésticos. O urbanismo que surge por conta de
Revolução Industrial, iniciou-se na Inglaterra, nos fins do século XVIII, no século XIX
se espalha pelos países desenvolvidos e somente no século XX que torna-se
concretamente um fenômeno de alguns países subdesenvolvidos. No início da
Revolução Industrial, a cidade recebeu um contingente populacional que não estava
preparada para receber, sendo assim, começam a proliferar os cortiços, que eram as
habitações populares insalubres e facultando péssima qualidade de vida.
A morfologia dominante deste tipo de cidade é a quadrícula, através da qual
havia um máximo aproveitamento do terreno, onde todos possuíam o mesmo valor,
não existindo diferenciação do preço do solo, beneficiando assim, aos especuladores.
As casas do slum são monótonas e repetitivamente iguais. O arranha-céus é outra
importante característica desta cidade.
Nestas cidades, as áreas utilizadas para a instalação das indústrias são as
mais privilegiadas pelos recursos naturais, as margens dos rios, as costas marítimas,
pois assim, o transporte das matérias-primas e do produto final da fábrica ficaria
facilitado.
A população de alta-renda refugia-se em áreas afastadas da poluição das
fábricas e do comércio, em uma periferia privilegiada. Procura-se, portanto, revitalizar
o centro destas cidades para buscar compensar a degradação, criando-se centros
cívicos dignificados pela arquitetura, para ampliar a vida social e fortalecer o espírito
da cidade.
49
CAPÍTULO 2
O CONCEITO DE MODERNO E PÓS-MODERNO E A ÉTICA NO URBANO
2.1. A Cidade Moderna e a Pós-Moderna
2.1.1. A Cidade Moderna
No mundo moderno a razão é muito valorizada, portanto para os modernos as
cidades antigas não eram construções racionais e sim exemplos de desarrumações e
caos. Segundo Descartes (1999, p.43-44), "... essas antigas cidades que, tendo sido
no início pequenos burgos e havendo se transformado, ao longo do tempo, em
grandes centros, são comumente tão mal calculadas, em comparação com essas
praças regulares, traçadas por um engenheiro a seu bel-prazer, que, mesmo
considerando seus edifícios individualmente, se encontre neles com freqüência tanta
ou mais arte que nos das outras, contudo, a ver como estão ordenados, aqui um
grande, ali um pequeno, e como tornam as ruas curvas e desiguais, poder-se-ia
afirmar que foi mais por obra do acaso do que pela vontade de alguns homens usando
da razão que assim os dispôs”.
Portanto, para Descartes e seus contemporâneos - século XVII e XVIII -,
partidários da mesma maneira de pensar e compreender o mundo, a história não
possui relação com a razão, tudo que acumula-se em seu percurso é tão desordenado
que mais parece obra do acaso. Sendo assim, eles buscaram organizar a cidade de
acordo com a razão, considerando tudo do pretérito como obra do acaso, acreditava
que teriam que construir tudo novo. A cidade seria arrumada segundo a vontade
humana iluminada pela razão. Do racionalismo surge "... a cidade como fato artístico
como artefato" (Goitia, 1982, p. 26). Utilizava-se muito neste momento, o traçado
regular e o sistema ortogonal, que é geométrico e cartesiano.
Uma característica das entranhas do modernismo era a destruição criativa ou
criação destrutiva. Qualquer coisa nova que surge necessita da destruição do que
existia anteriormente. Um novo mundo, para eles, só poderia ser criado a partir da
destruição do anterior. Se a destruição passa a ser a única forma para a criação, a
50
representação de verdades eternas passaria necessariamente pela destruição de
verdades anteriores, chegando a um momento em que as próprias verdades criadas
precisam ser destruídas. O maior evento que caracteriza a destruição criativa foi a
Segunda Guerra Mundial.
Outra característica importante deste período é a valorização do indivíduo,
levando a um individualismo exacerbado e a um subjetivismo radical. Mas uma
questão inquietante era de como seria possível representar o eterno e o imutável em
meio a todo o caos existente. A única forma encontrada foi a de congelar o tempo e
todas as qualidades transitórias pertencentes a ele, utilizando-se, muitas vezes, do
recurso da montagem/colagem para tal (Harvey, 2004, p. 30).
O êxtase provocado pela técnica, pela velocidade, pelo movimento e pela
máquina refletiu-se em conseqüências estéticas, traduzindo-se pela imitação.
Claramente observada na arquitetura e nas obras de arte, a cópia passa a ser
elemento central. A máquina passa a ser o novo mito moderno, juntamente com a
ciência,
a
racionalidade,
a
funcionalidade,
em
nome
do
progresso
e
do
desenvolvimento, solidificando a matematização e a cientifização do espaço e do
homem.
Modernismo ou modernismos, fica difícil delimitar este movimento tão diverso e
contraditório. O modernismo pós 1848, foi um fenômeno tipicamente urbano, fruto de
um
crescente
processo
de
urbanização,
industrialização,
mecanização
e
reorganização dos espaços construídos. Foi uma reação às novas condições de
produção, de circulação e de consumo (Harvey, 2004, p. 32-33). Em troca de uma
maior liberdade individual, impuseram-nos o relacionamento com o outro de forma fria,
impessoal, calculada e uma disciplina do nosso sentido de espaço e tempo,
necessária a nova divisão social do trabalho. A única saída foi o cultivo de um
individualismo, utilizando, como por exemplo, a moda, com seus signos e matizes de
diferenciação.
Começou a haver na cidade moderna, principalmente as altamente
industrializadas, uma preocupação com a qualidade de vida da população urbana.
Devido
às
péssimas
condições
de
vida
nas
cidades,
decorrentes
dos
congestionamentos e da forte poluição, houve uma intensa valorização das áreas dos
subúrbios e do campo. Começa, pois a valorização da re-incorporação na natureza.
Devido a estes fatores surgem várias hipóteses sobre soluções para
reorganizar a cidade objetivando uma maior qualidade de vida concomitante à intensa
produtividade industrial, sendo uma das características marcantes da cidade moderna
a ampla utilização de reformas urbanas. A cidade linear é uma dessas tentativas.
Projeto este do século XIX, que defendia a criação de uma cidade ao longo de uma
51
única via muito extensa. Todos gozariam de uma localização privilegiada ao longo da
via principal, resolvendo o problema da comunicação, e possibilitando que a cidade
cresça indefinidamente. Claro que na época ainda não existiam os automóveis e os
meios de comunicação como os atuais.
Havia uma preocupação extrema em fornecer à cidade uma estrutura orgânica.
Outra importante característica do urbanismo moderno do século XIX é o traçado
ortogonal, com uma intensa aridez, monotonia e repetitividade, devido ao sentimento
prático, funcionalista, dominante. O traçado ortogonal é uma das heranças dos
traçados hipodâmicos7, resultantes do racionalismo grego, que é resgatada pelos
urbanistas modernos devido ao utilitarismo e à especulação de terrenos. A busca pelo
aproveitamento máximo, pela máxima produtividade, onde a quadrícula adequa-se
perfeitamente, enfatizando-se a posse do terreno em detrimento de sua função. Com o
rápido crescimento das cidades, áreas de cultivo tornaram-se áreas de habitação,
estas foram valorizadas, e por isso a especulação se ampliou tanto. Era a cidade
inorgânica, onde uma companhia apoiava-se no seu poder financeiro para agir em
grande escala (Choay, 1979, p. 240).
Em contrapartida, surgiram as cidades da burguesia emergente, belas, com
grandes avenidas, muita luz, praças ornamentadas, edifícios monumentais, formosas
zonas residenciais, catedrais góticas, arborização, dentre outras características. Estas
cidades possuíam o característico exagero das classes emergentes, exibindo,
ostentando, o poder e o dinheiro.
A cidade moderna pode ser analisada de acordo com sua arquitetura, pois esta
reflete a forma de pensar e agir da época, momento em que existiam diversas
correntes de pensamento. Em grande parte do século XX, principalmente entre as
décadas de 1920 e 1960, a arquitetura moderna era a predominante, dentro do
contexto do movimento cultural e artístico do Modernismo. Os estudos principais que
foram a gênese da arquitetura moderna são: Bauhaus, na Alemanha; Le Corbusier, na
França; e Frank Lloyd Wright, nos Estados Unidos. Porém, existem vários autores,
como Leonardo Benevolo e
Nikolaus Pevsner, que acreditam que o início da
arquitetura moderna, assim como o design gráfico e o desenho industrial, modernos,
7
Hipodâmico (adjetivo) - Hipodamos de Mileto (século V a.C.): arquiteto e urbanista, responsável,
segundo indicações literárias difíceis a conciliar, por diversas obras de organização urbana na Grécia.
Além do plano da sua cidade, Mileto, refundada após 479, atribui-se a ele a reorganização do Pireu, porto
de Atenas, a pedido de Péricles em meados do século V a.C., o plano da colônia pan-helênica de
Thourioi, fundada em 444 a.C. no lugar da antiga Sybaris (destruída em 511) e a supervisão da construção
da nova cidade de Rodes, em 408. Desde a Antigüidade, credita-se a Hipodamos a concepção de um
plano urbano perfeitamente ortogonal, no qual as ruas se cruzam a ângulos retos e definem quarteirões
regulares e de tamanho igual. Este plano é dito “hipodâmico”, a partir de seu nome, o que demonstra a
celebridade deste arquiteto.
52
ocorreu em meados do século XIX. Como por exemplo, o art & crafts, movimento
inglês deste período que buscava romper com a diferença estabelecida entre o
artesão e o artista, fundindo-os em um artesão-artista, que é conhecido atualmente
como o designer. Este movimento influiu no movimento francês da art nouveau.
Há muita divergência no que concerne ao surgimento da cidade moderna.
Existem três linhas principais em que podemos observar a gênese da cidade moderna.
Todas as três linhas culminam no denominado movimento moderno na arquitetura,
que foi o ápice de uma série de acontecimentos, que geraram a arquitetura executada
na maior parte do século XX.
A primeira relaciona o ideário moderno à visão de mundo iluminista. Esta linha
de pensamento detecta a gênese da cidade moderna, nas inovações surgidas com a
Revolução Industrial e com a variadas propostas urbanísticas e sociais de alguns
teóricos, como os socialistas utópicos e os prosélitos das cidades-jardins. Por meio
desta interpretação a principal causa da arquitetura urbana é a social, deixando a
estética como algo secundário.
A segunda linha está mais relacionada à arte e seu papel na sociedade,
analisando profundamente os momentos, que ao longo do século XIX mostraram as
alterações na arte. É a explanação que destaca os movimentos como o Arts & crafts,
da Inglaterra, e à art noveau, da França, que eram vinculados às formas e conceitos
do passado, mas que sugeriam novos caminhos e idéias para a estética.
Já a terceira linha, mais usual, assevera que a gênese da cidade moderna
encontra-se com a própria gênese do movimento moderno, ou seja, com as intensas
modificações estéticas geradas pelas vanguardas artísticas das décadas de 1910 e
1920, em particular, o Cubismo, o Abstracionismo (principalmente pelos estudos
executados pela Bauhaus, pelo De Stijl e pela vanguarda russa) e o Construtivismo.
O movimento moderno na arquitetura buscava superar completamente os
movimentos clássicos anteriores, através de uma renovação completa. Como já foi
dito, este era um movimento multifacetado, onde existia muitos tipos de arquiteturas
modernas, devido à diversidade de escolas e de tendências, porém, todas elas
seguiam alguns princípios fundamentais.
Os modernos rejeitavam energicamente toda a compilação formal do passado
e tinham horror à idéia de estilo. Buscavam a arquitetura sem ornamentos, já que esta
era uma característica principal dos clássicos. Exaltavam um sentimento de
construção através da criação e do estudo de espaços abstratos, geométricos e
mínimos. A praticidade e a utilidade das obras arquitetônicas eram características
principais, juntamente com as idéias de industrialização, economia e design. O
53
arquiteto passa a ter a obrigação de criar um ambiente contruído com uma justa
distribuição entre os homens. Os edifícios tinham que ser econômicos, limpos, úteis.
Duas máximas marcaram o período moderno, a primeira de Mies Van der
Rohe, “Menos é mais”, e, a segunda de Louis Sullivan, “A forma segue a função”
(Choay, 1979, p. 300). A primeira mostrando um sentido de economia, utilidade e
praticidade. A segunda defendendo o ambiente funcional, ou seja, prático e utilitário, e
repudiando a ornamentação.
O movimento moderno, no que concerne à arquitetura da cidade, é subdividido
em duas grandes linhas: o organicismo de Frank Lloyd Right, originado nos Estados
Unidos e o funcionalismo de Le Corbusier, Mies van der Rohe e Walter Groupis,
originado na Europa.
Algumas das principais correntes da arquitetura moderna que geraram os mais
importantes estudos neste campo são: a Bauhaus, o International style, a Arquitetura
Brutalista, a Arquitetura Construtivista, a Arquitetura Racional e a Arquitetura
Orgânica, que acabam por traduzir a forma de pensar a sociedade, o trabalho, o
homem, etc, do ideário moderno.
A Bauhaus, muito conhecida como Staatliches Bauhaus (casa estatal de
construção), foi uma escola de arte e arquitetura de vanguarda da Alemanha que
funcionou entre 1919 e 1933, sendo uma das primeiras escolas de design do mundo.
Foi umas das principais, maiores e mais inovadoras manifestações do modernismo na
arquitetura (Groupis, 1972, p. 29-31).
Um dos principais nomes desta corrente e da arquitetura do século XX, é o
arquiteto alemão Walter Gropius, que fundou e foi diretor desta escola. A maior parte
dos trabalhos feitos pelos alunos desta escola foram vendidos durante a Segunda
Guerra Mundial. Era uma escola que buscava combinar a arquitetura, o artesanato e
as artes (Groupis, 1972, p. 34).
Foi Walter Gropius que percebeu que após a Primeira Guerra Mundial, algo
novo estava por vir, que começara um novo período da história e para isso deveria ser
criada um estilo arquitetônico que acompanhasse essas mudanças e essa nova
época. Portanto, criou um estilo arquitetônico tinha como características principais a
funcionalidade, o custo reduzido e que era voltado para a produção em massa.
Um grande objetivo da Bauhaus era a união das artes com o artesanato e com
a tecnologia. Valorizava a máquina e a produção industrial. A história não era
ensinada nesta escola, porque acreditavam que tudo deveria ser criado a partir de
princípios racionais e não através de padrões pretéritos (Groupis, 1972 & Choay,
1979).
54
Outra importante corrente da arquitetura moderna é a International style, que é
a arquitetura funcionalista, muito perpetrada na primeira metade do século XX. Um dos
principais nomes desta corrente é Ludwig Mies van der Rohe, que participou da
Bauhaus e foi um dos formadores da International style. Sua arquitetura era muito
voltada para o racionalismo espacial, para a depuração da forma, sempre dirigida às
necessidades do lugar. Essas características convergem em sua característica central,
que é o minimalismo, expressa em uma de suas mais celebres afirmações: Less is
more – “Menos é mais” (Choay, 1979, p. 310). A característica predominante em seus
projetos são os espaços abertos ou transparentes, utilizando-se muito do vidro e do
metal.
A base desta corrente situa-se nas idéias de Le Corbusieu e da Bahaus. Nega
referências históricas da arquitetura, até porque são totalmente contra ao ornamento,
considerando este desnecessário. A produção desta corrente era de fácil adaptação
aos vários países do mundo, fazendo assim, com que fosse muito difundida. Apesar
deste movimento não buscar ser um estilo - até porque uma de suas premissas
fundamentais era exatamente a negação da cópia e da repetição – acabou tornandose um estilo, acompanhando o processo de estilização do modernismo, nas décadas
de 1960 e 1970, o que contrariava totalmente suas premissas.
O International style influenciou a primeira geração de arquitetos brasileiros,
como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Afonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Rino Levi,
muito influenciados por Le Corbusier. Algumas das características mais tradicionais da
obra destes arquitetos são: utilização de pilotis, brises, cores puras, concreto armado,
dentre outras (Choay, 1979, p. 315).
A terceira corrente da arquitetura moderna seria a brutalista ou o brutalismo,
desenvolvida entre as décadas de 1950 e 1960. Este movimento desenvolveu-se a
partir de uma radicalização de um conjunto de princípios modernos. Sempre buscava
mostrar os elementos estruturais das edificações, o concreto armado, os perfis
metálicos, as vigas e os pilares. Criticavam muito a ornamentação desnecessária,
mas, muitas vezes, incorriam num extremo formalismo.
Outra corrente da arquitetura moderna é a construtivista, que recusava a
existência de uma arte pura, buscando por fim na idéia de que a arte é algo especial
separada da vida cotidiana (Choay, 1979, p. 317). A arte, para os construtivistas,
deveria servir para os objetivos sociais. Utilizava-se muito da geometria e de cores
primárias. Manifestação esta muito influenciada pela Bauhaus e pelo construtivismo de
De Stijl (Choay, 1979, p. 320).
Uma das principais correntes da arquitetura moderna é a corrente racional.
Esta corrente defendia o abandono de tendências históricas, buscando uma
55
arquitetura sem adornos desnecessários ou referências ao passado. Utilizavam formas
geométricas puras, com intensa valorização do espaço e da funcionalidade, com
edificações simples, utilizando-se de muitas superfícies transparentes. Essa
arquitetura é típica das grandes cidades, da especulação financeira e dos novos
materiais. Um exemplo de racionalistas era a escola de Bauhaus, com suas linhas
simples, com seus interiores que se fundiam gerando espaços homogêneos. O grupo
De Stijl é outro exemplo, assim como, a arquitetura construtivista russa. Porém, o
ápice do funcionalismo seria alcançado com Le Corbusier, cujas formas de
volumétricas eram tão simples que adaptavam-se à casas ou às fábricas. Ele
acreditava que os edifícios deveriam ser todos brancos, sem ornamentação alguma,
com estrutura simples e austera. A cidade de Brasília é um exemplo de uma
concepção realizada segundo suas teorias.
Outra corrente da arquitetura moderna é a orgânica ou organicista ou
organicismo. Os adeptos desta corrente acreditavam que uma casa era como um
organismo vivo e que deveria acolher as necessidades das pessoas e das
características do país. As edificações para eles influenciam as pessoas que ali
habitam, trabalham ou freqüentam, portanto o arquiteto seria um modelador de
homens. Seria um contraponto à arquitetura racionalista da International style.
Podemos perceber, portanto, através das formas arquitetônicas, características
marcantes do período moderno, tais como, a preocupação com a racionalidade, com a
produtividade, com a funcionalidade, utilizando toda a tecnologia da época,
valorizando-se a máquina, negando a ornamentação. O exemplo mais concreto de
uma cidade moderna é Brasília, projetada por Oscar Niemeyer. Através das formas
arquitetônicas vemos concretamente no espaço citadino os preceitos da modernidade.
Muitas alterações na cidade são provocadas pela nova organização territorial,
imposta pelo conjunto de revoluções que ocorreram neste momento devido à criação
de novas tecnologias, e, principalmente a Revolução Industrial. Na segunda metade
do século XX ocorre o despovoamento do centro de determinadas cidades, devido à
proliferação dos escritórios, do aumento do preço do solo e das habitações. Já em
outras cidades, no mesmo período ocorre o inverso, já que a população mais
abastada, em busca de melhor qualidade de vida, desloca-se para áreas residenciais
suburbanas, e o centro proletariza-se e degrada-se.
Na primeira metade do século XIX os subúrbios são locais de passeio
campestre e onde a burguesia e a aristocracia possuíam casas e palácios. A
industrialização produz a explosão demográfica urbana e o desenvolvimento de um
subúrbio moderno. Na primeira metade do século XX, os subúrbios têm grande
crescimento, mas sempre ligados a meios de transporte, formando várias áreas
56
separadas por florestas e zonas rurais. Com o passar do tempo os subúrbios
aumentam muito, desenvolvendo-se em crescimento contínuo, principalmente por
conta do automóvel, sendo estas áreas uma sobreposição de residências e de vias de
transporte.
Uma das principais correntes do urbanismo moderno, a progressista, defendia
a tese de que dever-se-ia criar meios para solucionar os problemas causados pelo
maquinismo. Através das habitações insalubres e da péssima condição de vida de
grande parte da população, afirmava-se que isto seriam a base para a criação de
epidemias, da delinqüência, corrompendo a raça humana, disseminando o vício e o
crime. Esta corrente baseava-se no racionalismo moderno, centrado na concepção
abstrata do homem, que é encarado como mutável no espaço e no tempo. Para eles a
ciência deveria criar um modelo urbanístico adaptável a todos os grupos humanos, ou
seja, um plano urbanístico perfeito. Esta idéia da criação de uma cidade ideal é
proveniente do Iluminismo, onde os utopistas ansiavam a formação de uma cidade
onde haveria a cooperação e a harmonia, sendo à base de toda sua teoria a busca
pela higiene.
Os progressistas desejavam que o urbanismo moderno fosse uma ciência
global da cidade. Defendiam um urbanismo de formas puras, muito influenciados pelo
cubismo. Desprezam a cidade antiga e tudo referente ao clássico, pois, enfatizam a
necessidade de criar um urbanismo totalmente novo adaptado a seu tempo, a
modernidade, baseando-se no avanço da técnica, essencialmente a indústria, o
automóvel e o avião. O urbanismo deste período é austero e racional. Para eles os
monumentos mais importantes deveriam ser mantidos, mas o restante das
construções do entorno deveriam ser destruídas. O próprio Le Corbusier8, segundo
Harquel (Le Corbusier apud Harquel, 1945, p. 120), afirmou que “realidades antigas
que chocam um espírito novo”, como justificativa para este estímulo à destruição,
denominado de destruição criativa. Uma importante preocupação moderna é com a
higiene, enfatizando-se a importância do sol e do verde na cidade. As construções
devem ser altas, distanciadas uma das outras, possibilitando a entrada de luz e
intercaladas pelo verde. A corrente progressista afirma ser a rua um local perigoso,
barulhento, contrário aos princípios de higiene e luminosidade, sendo assim, os
imóveis deveriam ser implantadas distantes das vias de circulação. Outra
característica é a criação de zonas específicas para cada função dentro da cidade, ou
seja, deveria existir uma zona específica para habitação, outra para o trabalho, outra
8
Le Corbusier (1966). Urbanisme, Paris, p. 264-273.
57
para o lazer, dentre outras; fragmentando a cidade. Segundo Le Corbusier9 segundo
Harquel (Le Corbusier apud Harquel, 1945, p. 121), afirmou que “todos os homens
possuem as mesmas necessidades”, por isso acreditava que um modelo de cidade
atenderia às necessidades de todos os seus habitantes, tanto em grandes quanto em
pequenas cidades, em todas as partes do mundo.
É na verdade o urbanismo progressista que mais repercussão obteve. As
demais correntes ficaram limitadas a áreas determinadas, já a progressista se
espalhou por toda parte. Em grandes espaços vazios encontram-se diversos edifícios
público enormes, baseados em volumes geométricos simples, inspirados no cubismo.
Muito contestado por sua característica desumana, contestação essa observada pela
recusa da população aos conjuntos habitacionais em forma de caixa e o uso excessivo
do concreto, que acomete a cidade antiga e nega o natural. Porém, este urbanismo
tornou-se fundamental no período pós-guerra, quando foi necessário uma profusão de
construções, devido às grandes destruições que assolaram a Europa. Foi uma época
de construção em massa de conjuntos habitacionais, utilizando-se das técnicas e
materiais modernos, aumentando e muito a produtividade nas construções, através da
utilização de tijolos, concreto e estruturas metálicas. O problema está no fato de ter se
utilizado esses materiais além da conta, afirmando-se a superioridade estética do
concreto. Defendia-se o grande número de imóveis coletivos enormes, com muitas
células habitacionais para se obter a felicidade na cidade, como máquinas de habitar
para homens que passam a ser considerados como máquinas.
Existiam outras correntes do urbanismo no período moderno, como a
humanista, que se subdivide em dois movimentos, o culturalista e o antropológico. O
primeiro, surge na Inglaterra, no século XIX, e, afirma que a sociedade européia préindustrial foi um momento incrível da história que possibilitou a realização do indivíduo
e o desenvolvimento cultural. Sua base é a estética e a cultura. São antiindustrialistas, com um grande sentimento nostálgico com relação à cidade do
passado, buscando o calor humano e a qualidade arquitetural. Busca o retorno à
pequenas cidades, afirmando ser o industrialismo uma deficiência cultural, propondo
um retorno à arte da Idade Média. Propõem a construção da cidade nova ao lado da
antiga, respeitando o pretérito. Propunham não a cópia das artes antigas, mas o
estudos destas para a construção de uma arte moderna. A cidade deveria ser
planejada de acordo com os locais de passagem e de encontro, defendiam a
continuidade do espaço urbano. É neste movimento que existe a proposta da cidadejardim, onde preconizava-se a necessidade de unir as vantagens do campo e da
9
Le Corbusier (1958). Vers une architecture, Paris, p.108.
58
cidade. O outro movimento da corrente humanista, o antropológico, busca a solução
para os problemas da criação e do planejamento das cidades através da antropologia
descritiva. Para os partidários deste movimento a criação urbana possui total relação
com uma continuidade histórica de cada civilização, pois a cidade é formada por
homens que possuem necessidades e desejos. Rechaçam qualquer plano urbanístico
como modelo, pois acreditam que cada caso é uma particularidade. Buscam a
reintrodução nas cidades do calor humano das cidades medievais. Afirmam que para
que se faça um planejamento, um plano para uma cidade ou bairro, deve haver
anteriormente um estudo das características gerais daquele local e de sua população
(Harquel, 1945, p. 125).
Outra corrente urbanística que surge no período moderno é a naturalista,
criada nos Estados Unidos, no século XIX. Era baseada em uma tradição anti-urbana,
com forte nostalgia com relação à natureza virgem. Defende a criação de somente
habitações individuais envoltas por uma grande área, com as atividades profissionais
ligadas à habitação, ou agrupadas em pequenos centros isolados, interligados por
vias. Eram partidários da idéia de que o indivíduo só poderia ser feliz e realizado se
estivesse em contato com uma parcela significativa de natureza.
Podemos perceber que estas últimas correntes urbanísticas que surgem no
período moderno, eram, na verdade, embriões do pós-moderno, já que eram
contrárias aos princípios mais caros e essenciais do período moderno. Sendo estas
um contraponto à corrente urbanística predominante, a progressista, que é aquela que
mais caracteriza os preceitos modernos na cidade (Harquel, 1945, p. 128).
2.1.2. A cidade Pós-Moderna
A pós-modernidade, segundo Harvey, implica uma clara “alteração na estrutura
urbana das cidades”, fazendo com que seu urbanismo passe a caracterizar-se pela
fragmentação, efemeridade, descontinuidade. O pós-modernismo provoca uma ruptura
da ordem temporal, tornando tudo pertencente a um “mix de passado e presente”.
Expressando a nova estética da cidade, a arquitetura pós-moderna combina partes
diversas do passado, num grande ecletismo de passado e presente (Harvey, 2004, p.
58). Fragmentado, indiviso e misturado, o tecido urbano é um palimpsesto de formas
passadas e presentes superpostas. Portanto, vemos multiplicar-se pelas paisagens
urbanas prédios modernos com colunas gregas, jardins, praças medievais, vilas de
pesca de imitação, uma mistura do presente com diversos momentos do passado.
Valoriza-se o retorno ao clássico, mas também a mistura de estilos diversos, sempre
buscando a beleza estética. Também é comum observar a reabilitação de um tecido
59
urbano antigo, unindo visões tradicionais com o avanço tecnológico e materiais
modernos.
Sendo assim, segundo Harvey (2004, p. 85), o projeto urbano passa a ser
desenhado numa “colagem de partes”, sendo bem específico, captando as
singularidades e necessidades de cada lugar, num impulso de preservação do eu, ou
seja, a identidade individual e coletiva local, gerado pelo sentimento de insegurança da
pós-modernidade. De acordo com Harvey (2004, p. 96), “Ficção, fragmentação,
colagem e ecletismo, todos infundidos de um sentido de efemeridade e caos, são,
talvez, os temas que dominam as atuais práticas da arquitetura e do projeto urbano”.
Devido a esta perda da temporalidade e da preocupação com um impacto
instantâneo, ocorre perda de perpetuidade, fixando-se o visual urbano nas aparências,
no imediato, não podendo assim ter sustentação com o tempo. Este fascínio pelas
superfícies, evidencia, muitas vezes, uma falta de profundidade planejada, criando
uma arquitetura do espetáculo, com um brilho superficial de exibição e efemeridade.
Há, aí, o desígnio de uma nova economia política. Segundo Harvey (2004, p. 99), “As
preocupações pós-modernas com o significante e não com o significado, com o meio
(o dinheiro) e não com a mensagem (o trabalho social), com a ênfase na ficção e não
na função, nos signos em vez das coisas, antes na estética do que na ética, sugerem
um reforço, e não uma transformação, do papel do dinheiro descrito por Marx”.
O capital simbólico torna-se essencial para a reprodução da ordem e para a
continuidade da dominação, fazendo isto de maneira oculta, discreta, através dos
efeitos ideológicos, sendo sustentado pela moda, que forma gostos, desejos, e
mesmo, formas de agir e de pensar.
A paisagem da cidade é a melhor materialização disso. Observa-se na
arquitetura pós-moderna uma preocupação com a heterogeneidade de habitantes e
culturas urbanas, o que provoca a fragmentação. A busca por exprimir esta estética da
diversidade provoca um grande ecletismo arquitetônico, alterando, conseqüentemente,
a vida diária da sociedade. Segundo Harvey (2004, p. 83), “Os ambientes construídos
pós-modernos costumam procurar reproduzir deliberadamente temas que Raban10
tanto enfatizou em Soft city: ‘um empório de estilos, uma enciclopédia, um livro de
rabiscos de um maníaco cheio de itens coloridos’”. Porém, esta diversificação e este
ecletismo pós-modernos, tornaram-se factíveis somente com o avanço nas
comunicações e nos transportes, derrubando as barreiras do espaço e do tempo; e
com as novas tecnologias, que possibilitaram a produção em massa flexível, com
produtos quase personalizados, tudo consignado na ideologia de um novo design.
10
RABAN, J. (1974). Soft city. Londres.
60
É facultada uma importância, cada vez maior, ao embelezamento, à
ornamentação, à decoração como símbolos de distinção do espaço. As classes
médias são confinadas nos espaços fechados e os habitantes protegidos nos espaços
dos shoppings, ao tempo que os pobres são alijados para fora dessa paisagem por
falta de habitação adequada.
Vamos observar algumas das características das formas urbanas tipicamente
pós-modernas, para assim podermos destacar claramente as características da pósmodernidade expressas nas formas arquitetônicas. A cidade pós-moderna, assim
como seu urbanismo, é a negação das tendências e estilos modernos. Faz um resgate
ao estilo clássico, enfatizando a ornamentação, misturando tendências e estilos do
passado. Caracteriza-se pela fragmentação, pela descontinuidade, pelo grande
ecletismo.
A corrente da arquitetura High Tech, surge na década de 1970, e estimula o
uso de tecnologia avançada nas construções. Como exemplo, podemos citar o Centro
Pompidou em Paris, de Richard Rogers e Renzo Piano (Rossi,1977, p. 157).
Figura 2: Centro Pompidou em Paris.
Fonte: www.dw-world.de
Outra corrente da arquitetura pós-moderna é a desconstrutivista, também
denominada, movimento desconstrutivista ou desconstrutivismo e desenvolveu-se nas
décadas de 1980 e de 1990 (Rossi,1977, p. 158).
61
Figura 3: Hannover Gehry Tower
Fonte: www.answers.com
Figura 4: Interior do Banco de Berlim
Fonte: www.galinsky.com/buildings/iwmnorth/index.htm
62
Figura 5: Imperial War Museum North
Fonte: www.e-architect.co.uk
Figura 6: Norddeutsche Landesbank Hannover
Fonte: http://de.structurae.de/structures/data/index.cfm?ID=s0023034
Caracteriza-se pela descontinuidade, pela incompletude de suas obras, por seu
caráter fragmentário. Quando observamos este tipo de obra temos a sensação de que
não há alinhamento, é um tipo de obra totalmente anti-cartesiana, as paredes não são
verticais, as lajes se dobram deixando de ser planas, os espaços ortogonais são
abolidos. São obras muito criativas que fogem da regularidade cartesiana e buscam a
estetização em suas últimas conseqüências. Este tipo de obra foi possibilitado pelo
desenvolvimento da computação gráfica. Portanto, podemos perceber que o que
63
marca as obras pós-modernas é o uso de alta tecnologia mesclado a formas e
preceitos do passado clássico.
Os shoppings Centers são o grande símbolo desse novo design (Bienenstein,
2002, p. 75). Cidades dentro das cidades, seu surgimento determinou novos padrões
de sociabilidade urbana, criando além do objeto do consumo, novos modos de
consumir, ou seja, formando um novo tipo de consumidor. Com ele a cidade deixa de
ser um cenário de encontro, de convivência, transferido para o âmbito interno dos
Shoppings Centers. De acordo com a lógica do consumo, os espaços públicos do
encontro são reinventados como espaços privados, onde o lazer, a diversão, tornamse sinônimo de consumo (Bienenstein, 2002, p. 85). Assim, o shopping center inserese e recria, cada vez mais, o cotidiano da cidade, através das técnicas da propaganda
e marketing e da incorporação das funções mais diversas em seus espaços. Este
processo de incorporação vai provocar um tipo de reestetização dos lugares em torno
dos seus espaços. É uma tendência que está diretamente relacionada aos interesses
do capital, ampliando suas possibilidades de acumulação através de uma nova forma
de manipulação da paisagem e da estetização dos espaços (Bienenstein, 2002, p. 8889).
O shopping Center é apenas um exemplo do que se denominam obras de
remodelização urbana, ou seja, as principais obras e políticas urbanas que atendem
as necessidades da city marketing.
A preocupação com o local então se amplia, já que para os pós-modernos
abarcar o global por meio do global é uma função impossível. As cidades e lugares
buscam assim a criação de uma imagem positiva de si próprios, já que a imagem é
tudo na pós-modernidade.
Eis que as qualidades do lugar passam a ser enaltecidas, juntamente com as
abstrações do espaço. A singularidade de cada lugar passa a ser essencial para a
competição espacial entre lugares, cidades e nações. Por isso, as cidades esforçamse por criar uma imagem singular, ligada às tradições, à cultura, ao lugar, para que
assim seja atrativa para o capital e para as pessoas certas (Harvey, 2004, p. 266).
Todavia, apesar da aparente diferenciação entre as cidades e lugares, devido à sua
abertura a sistemas de acumulação a tendência é a repetição de padrões e moldes já
conhecidos.
2.1.3. O Contraponto da Ética
Tudo isto reflete-se no tipo de obra pública predominante; a maior parte das
obras urbanas atuais são remodelizações, onde remodelização urbana é entendida
64
nesta pesquisa, como uma forma de re-ordenamento territorial do espaço das cidades,
aqui contrapondo-se moderno e pós-moderno.
Ora, o ordem(na)mento territorial é um arranjo do espaço arrumado com o
objetivo de realizar funções de direcionamento e controle das relações no espaço,
possuindo assim uma intencionalidade de influenciar determinadamente os corpos da
sociedade no seu diálogo entre si. Um tema da modernidade urbana, tomado agora
como pós-moderno. O ordenamento é uma espacialização de políticas, através da
transliteração de regras e normas (Moreira, 2002, p. 53). Nos termos de Sá (1991, p.
20), “ordenamento do território [é] o processo de definição do uso do solo, urbano e
rural, ou em situações intermediárias, assente na análise dos vários interesses e
valores econômicos, sociais e culturais em presença, visando a sua articulação e, na
medida do possível a sua compatibilização”.
Sendo assim, ordenamento, nem sempre é entendido como planejamento,
tendo este metas claras e definidas a serem atingidas. Todo planejamento é um
ordenamento, mas nem todo ordenamento é planejado. No ordenamento temos uma
intencionalidade, já no planejamento temos um propósito. A intenção está presente na
prática diária, já o propósito pressupõe projetos, planos com um objetivo definido e de
longo prazo (Santos, 2002, p. 89-94). Não são todas as nossas práticas diárias que
possuem propósito, pois não planejamos todas as nossas ações no dia a dia, mas,
quando temos uma meta, um objetivo definido, quando traçamos caminhos com um
método específico, quando articulamos táticas para atingir nosso objetivo, quando
planejamos, aí sim, temos um propósito.
Ordenar vem do latim ordinare, de ordo, ordinis, ordem. O sufixo mento,
significa ação ou resultado da ação, traduzindo-se o ordenamento assim como o ato
de ordenar a ordem, ou seja, colocar em ordem alguma coisa, pressupondo portanto
que existe uma desordem, já que algo só pode ser colocado em ordem se está
desordenado. Mas, ordem de quem? E, para quem existe a desordem? Guardemos
estas reflexões para mais adiante, pois para que entendamos a configuração
completa, temos que compreender o que é o território.
Já por modelização entende-se um modo de por forma e modelo consonantes
com o movimento do ordenamento, visando geografizá-lo na forma de uma estrutura e
um visual paisagístico específico (Moreira, 2002). O termo difere então de uma
reforma, tema do moderno, que significa a instituição de uma nova qualidade de
organização do espaço em uma sociedade.
Usa-se o termo remodelização urbana no sentido do conferimento de uma
forma nova de paisagem ao ordenamento territorial do espaço urbano que não traz em
65
si o significado de introdução de um momento estruturalmente novo na história da
cidade. Tema do pós-moderno.
Território é aqui entendido como um recorte espacial onde está implícita uma
relação de poder. Entendendo-se poder como uma relação assimétrica entre partes,
onde se estabelece uma relação de dominação, subordinação, hierarquia entre elas.
Sendo este, portanto um fenômeno que cria normas e regras, sendo capaz de agir e
ocasionar efeitos (Lima, 2002).
Por conseguinte, ordenamento territorial da cidade nada mais é que o exercício
de análise do estabelecimento de arranjos e rearranjos orientados no sentido de uma
nova modelização paisagística no território urbano da cidade. Mas por que no
território? Por que não falamos de ordenamento espacial apenas? Porque na palavra
ordenar, no ordenamento em si, está implícita a questão do poder; pôr ordem em
alguma coisa implica em uma relação de poder, onde um ator está infringindo a
outrem a sua concepção de ordem por meio de regras e normas.
Consoante Moreira (2002), as regras são as leis, que proíbem ou permitem e
assim diretamente ordenam e reordenam a ordem, normatizando a obediência àqueles
que visa o poder. Já as normas agem em consonância com as regras, porém de forma
dissimulada, através do véu da normalização, da naturalização da regra, fazendo com
que as diferenças se reconheçam no uno como o padrão do normal, do natural, que
deve ser seguido por todos que queiram ser aceitos na ordem constituída. Regras e
normas são assim o conteúdo do arranjo e os conversores deste na configuração de
espaço presente em toda e qualquer sociedade. No tocante à cidade, regras e normas
são, portanto as “leis estruturais/estruturantes” da pólis.
Referenciada nessas categorias, algumas cidades serão esquadrinhadas no
seu arranjo, buscando mapear-se as dissonâncias da configuração dos ordenamentos
antigos e “pós-modernos”. E explicita-se aqui o aparato teórico-metodológico no seu
entendimento em termos da sociedade relacionada com seu espaço enquanto uma
relação entre o sujeito e seu objeto.
É de perguntar-se para isso quais são os atores que produzem o ordenamento
territorial na cidade moderna como na pós-moderna. Sem dúvida, primeiramente e de
uma forma explícita e central, temos o Estado, atendendo às solicitações, decidindo
aonde intervir, criando e administrando regras e normas. Mas, as grandes corporações
industriais, comerciais, financeiras e de serviços têm tido um papel cada vez mais forte
de intervenção e regulação do território. O marketing cria normas, padrões, que
induzem a comportamentos e a atitudes, ordenando e levando à configuração de um
determinado arranjo do território que seja favorável aos interesses das grandes
corporações. E mesmo as ações da sociedade, no dia-a-dia produzem novos
66
ordenamentos. Por conta dessas ações não intencionais, não planejadas, dissemos
anteriormente que o ordenamento territorial, não necessariamente requer algum tipo
de planejamento para que ocorra.
Com a estetização pós-moderna do ordenamento territorial globalizado as
cidades passam a ser consideradas mercadorias, e como tais devem ser bonitas,
seguras, agradáveis, prazerosas. Camuflada nessa estética, a cidade segue, todavia,
possuindo suas contradições, possuindo espaços e contra-espaços que vão de
encontro à ordem posta. Situações espaciais da (des) ordem, os contra-espaços não
se sujeitam às regras e normas impostas por não encontrarem identificação com as
mesmas, questionando-as, combatendo-as ou resistindo a elas, sendo denominados,
contra-espaços. Contradizendo-o, o contra-espaço possui uma relação dialética com o
espaço, e por aí também intervém no ordenamento do território, provocando
(re)ordenamentos, alterações no arranjo, realinhamento das configurações indicando
que a população excluída e dominada também possui seu papel no ordenamento do
território (Moreira, 2002, p. 65-66).
No âmbito deste contraponto de espaços que vão de encontro às normas e
regras agravado na projeção da cidade como mercadoria, é que aparece a visão
ideologizada da cidade caótica, desordenada, do caos urbano (Barbosa, 2002, p. 8990). Por um lado, verifica-se a desorganização da cidade, por outro, tem-se a tentativa
de reorganização pela recriação e imposição do uso das regras. A ideologização do
conflito vem no sentido da idéia do caos urbano, hoje onipresente nas grandes
metrópoles e megacidades da globalização e do pós-moderno.
Em conseqüência, passam a surgir dentro das cidades territórios isolados,
fechados, um verdadeiro apartheid urbano, onde as pessoas só se relacionam com
aqueles que são seus semelhantes, a cidade se fragmentando nesses estilhaços do
seu espaço, havendo a perda da alteridade e a intensificação do narcisismo. Mais e
mais, teme-se o diferente, o estranho, o desconhecido, e a cidade que era um local de
encontro dos diferentes, o local da diversidade na unidade, passa a se fragmentar,
formando-se territórios isolados, como os condomínios fechados, os clubes, os
shoppings centers, o protótipo da cidade pós-moderna. A cidade em que as pessoas
sentavam-se nas calçadas de suas ruas para conversar com os vizinhos, onde as
pessoas cumprimentavam-se ao longo do caminho para o trabalho, uma época onde
gentileza era comum, a cortesia era valorizada, tudo isto, esta já não existe mais, toda
esta época foi rechaçada. Na era pós-moderna, o que é valorizado é a rapidez, a
flexibilidade, a impessoalidade, a fluidez. Contraditoriamente, ao tempo que busca-se
o encaixe espacial com o que se é semelhante, não conhecer o vizinho que reside no
apartamento ao lado é comum, a cordialidade torna-se estranha, motivo para
67
desconfiança, a gentileza, sinônimo de fraqueza. Estranha combinação entre
antropologia e economia política do espaço. Se as relações de vizinhança se
flexibilizam, igualmente os vínculos com as empresas e com os lugares, a
imprevisibilidade e a instabilidade se tornam figuras comuns, corroboradas pelo
estatuto da normalidade (Barbosa, 2002, p. 91). As pessoas perdem a conexão, a
identidade com a cidade, até mesmo a cidade tende a perder sua identidade própria
com o processo homogeneizante dessa era pós-moderna, onde tudo ao mesmo tempo
se mistura e se separa, objetivando a criação de novos produtos e formas de
consumo, onde o diferente, o antigo, o tradicional, passa a ser valorizado como
mercadoria, e onde a própria cidade e sua paisagem, passam a ser mercadorias. O
condomínio dos espaços segregados é um bom exemplo.
Mas, as pessoas têm se cansado desse estilo de vida, havendo um retorno a
uma concepção mais tradicional de cidade, com a busca por ruas a céu aberto,
pedestres, lojas, oficinas, etc. Começa-se a perceber que o que a cidade tem de mais
belo a oferecer vem sendo suprimido, ou seja, o contato, a segurança, a formação das
crianças, a diversidade de relações, a sociabilidade, dentre outros. O zoneamento
urbano faz com que áreas da cidade fiquem vazias em alguns momentos do dia,
favorecendo o aumento da violência, dos desvios de conduta, do tédio, da
insegurança, do vazio. Atualmente, podemos observar o reordenamento do centro de
algumas cidades neste sentido e também a busca de determinadas pessoas,
principalmente aquelas que possuem uma condição financeira melhor, em relação às
cidades médias e pequenas, que possuem maior qualidade de vida, oferecendo um
maior contato com a natureza, menor violência, tranqüilidade, o convívio pessoal
perdido nas grandes cidades, dentre outros fatores. Um dos problemas muito
discutidos, atualmente, é a questão do gigantismo urbano, ou seja, a questão dos
aspectos negativos das cidades muito grandes, como as megacidades, as metrópoles
e as megalópoles, tais como, problemas de circulação, poluição, esgotamento nervoso
dos habitantes, habitações precárias, dentre muito outros.
É a base da ética do ter, onde o ter passa a ser mais valorizado que o ser,
fazendo com que haja uma clara segregação daqueles que não podem ter de acordo
com os padrões pós-modernos. Quem não está apto a aderir ao mundo do consumo,
passa a ser indesejado, perdendo seu direito à cidade. Processo este que nos faz
refletir sobre a questão da cidadania, mais especificamente sobre de que cidadania
estamos nos referindo. O cidadão passa a ser somente aquele que pode consumir.
Assim, observa-se um processo de exclusão sócio-espacial, no geral um processo de
desterritorialização, diretamente ligado à negação do direito à terra, aos meios de
68
produção e à perda da identidade territorial para os sem-terra, os índios, os moradores
de rua, os moradores das favelas (Haesbaert, 2002, p. 35-36).
Ora, a maior preocupação com o ordenamento do território verifica-se em
como determinada cidade pode ficar mais sedutora, atraente, para o consumo, para os
investimentos, para as empresas, diluindo-se assim a questão primeira que o
ordenamento deve enfocar, que é a configuração de planos e metas para ordenar a
cidade de maneira que seus habitantes, como cidadãos, tenham suas necessidades
básicas atendidas.
Pudera, o ordenamento territorial globalizado na cidade pós-moderna é uma
forma de manutenção do sistema capitalista, ou seja, é um recurso para a sua
expansão e sobrevivência diante do aumento e globalização dos conflitos. A
organização e reorganização do espaço urbano são realizadas através dessa
estratégia.
Sem o processo de urbanização/reprodução do espaço urbano o capitalismo
não sobreviveria (Lefebvre, 1973). Por esta razão, o espaço geográfico em nossos
dias é o espaço da racionalidade, graças à técnica presente nas ações e nas coisas
(Santos, 2002, p. 294). As cidades são os espaços onde a técnica se encontra mais
concentrada, ou seja, a cidade é o local onde se tem uma grande densidade técnica,
sendo assim mais racional, porque quanto mais racional o espaço mais artificial ele é,
fornecendo uma maior segurança para os atores hegemônicos da economia e da
sociedade. Portanto, o espaço da cidade é extremamente racional, possibilitando o
planejamento da ocupação humana e facilitando o controle através das normas e
regras, e assim da reprodutibilidade do capital por meio da re-produção permanente
do espaço. É isto a estratégia do pós-moderno. Esse espaço racional é perfeito para a
obtenção da eficácia máxima, para a re-produtividade ideal, para a diminuição do
tempo de giro do capital, para a adaptação das ações dos seres humanos, ou seja,
para a satisfação do capitalista. De acordo com Soja (1993, p. 118), “(...) o espaço
urbano [hoje é] socialmente organizado para o consumo e para a reprodução”.
E é em razão disso que cada vez mais presenciamos a mercantilização do
espaço urbano, da paisagem, do prazer, da felicidade, das sensações, ocorrendo a
valorização do ter em detrimento do ser, num ordenamento territorial realizado muito
mais em função do ter do que do ser, transformando tudo em mercadoria.
Então, como resposta, formam-se espaços de resistência dos que reivindicam
sua inserção na cidade pós-moderna. É a dialética entre o espaço e o contra espaço
que a remodelização dos ordenamentos territoriais da paisagem urbana apenas
intensifica.
69
Na cidade pós-moderna o capital financeiro possui grande importância. O
capital financeiro passa a receber um destaque especial somente na virada do último
século, quando as máquinas de produção urbana superaram a capacidade de
consumo da sua produção, provocando uma queda nos lucros, esse tema volta a ser
abordado após ficar evidente que a expansão imperialista e o monopólio empresarial
não seriam capazes de sozinhos solucionarem a crise econômica, iniciada na Grande
Depressão e na II Grande Guerra. Percebemos então que “o capital financeiro tornouse ainda mais significativo na moldagem do espaço urbano, em conjunção não apenas
com o capital industrial, mas também, cada vez mais, com o outro agente de
regulação e de reestruturação espacial, o Estado. Essa coalizão entre o capital e o
Estado funcionou eficazmente, replanejando a cidade como uma máquina de
consumo, transformando o luxo em necessidades”. Nesse momento nota-se um
crescimento da produção em escala global e ao mesmo tempo a expansão do
capitalismo monopolista, sendo esses fatores que podem ser apontados como
responsáveis por intensificar a concentração de capital nos centros dos países
industriais mais avançados, onde foi criada uma pressão para o investimento em infraestrutura, melhoria na habitação e serviços. Houve uma reorganização do espaço
urbano, isso se deu pela necessidade de fazer com que os sistemas urbanos fossem
mais eficazes e adequados à acumulação de capital (Soja, 1993, p. 125-126).
As atuais intervenções urbanas buscam se inserir na escala global e atender à
nova dinâmica da acumulação capitalista. Para poder se inserir nessa nova ordem
tornam-se necessários investimentos em tecnologia de informação, obras viárias,
investimentos arquitetônicos e ainda reformas institucionais, com o objetivo de atrair
as grandes empresas. Vemos, que as cidades se encontram submetidas à
segmentação da produção ditada pela divisão técnica do trabalho flexível e às regras
das corporações empresarias. “Desse modo a globalização da economia encontra, no
espaço urbano metropolitano, as possibilidades de reprodução de sua lógica de
dominação, agora, fundada na segmentação da produção e do consumo da
acumulação flexível” (Barbosa, 2002, p. 99-100).
As grandes cidades destacam-se como sendo grades centros financeiros, de
consumo e de entretenimento e a imagem projetada por esses centros urbanos,
através da organização dos seus espaços urbanos se transformou em uma maneira
de atrair capital e pessoas, estabelecendo uma competição interurbana e de
empreendimentismo urbano intensificado (Harvey, 2004, p.92).
O ordenamento territorial globalizado na cidade pós-moderna é, pois, uma
forma de manutenção do sistema capitalista, ou seja, é uma estratégia para a sua
expansão e sobrevivência diante do aumento e globalização dos conflitos. A
70
organização e reorganização do espaço urbano são realizadas em benefício dessa
estratégia. “O capitalismo luta perpetuamente, portanto, por criar uma paisagem social
e física à sua própria imagem, e indispensável para suas necessidades em
determinado ponto do tempo, simplesmente para, com igual certeza, minar,
desintegrar e até destruir essa paisagem, num ponto posterior do tempo.” (Harvey,
2004, p. 99).
Sem o processo de urbanização/reprodução do espaço urbano o capitalismo
não sobreviveria (Lefebvre, 1973). Por esta razão, o espaço geográfico em nossos
dias é o espaço da racionalidade, graças à técnica presente nas ações e nas coisas
(Santos, 2002, p. 294). Um espaço inteligente, que corresponde a uma fração do
território caracterizado pelo uso da ciência, da tecnologia e da informação. As cidades
são os espaços onde a técnica se encontra mais concentrada, ou seja, a cidade é o
local onde se tem uma grande densidade técnica, sendo assim mais racional, porque
quanto mais artificial o espaço mais racional ele é, fornecendo uma maior segurança
para os atores hegemônicos da economia e da sociedade. Portanto, por trás do caos,
o espaço da cidade é extremamente racional, sendo esses os espaços mais visíveis
atualmente, possibilitando o planejamento da ocupação humana e facilitando o
controle através das normas e regras, e assim da reprodutibilidade do capital por meio
da re-produção permanente do espaço. É isto a estratégia do pós-moderno. Esse
espaço racional é perfeito para a obtenção da eficácia máxima, para a reprodutividade ideal, para a diminuição do tempo de giro do capital, para a adaptação
das ações dos seres humanos, ou seja, para a satisfação do capitalista. De acordo
com Soja (1993, p. 118), “(...) o espaço urbano [hoje é] socialmente organizado para o
consumo e para a reprodução”. Mas não podemos esquecer daquilo que foi colocado
por Santos, ou seja, “a racionalidade dominante e cega acaba por produzir seus
próprios limites” (Santos, 2002, p.247).
O espaço geográfico atual além de ser caracterizado como racional, pode ser
também denominado intencional, uma vez que os objetos que o constituem são
propositalmente concebidos para o exercício de certas finalidades, intencionalmente
fabricados e intencionalmente localizados. Não mais se produz um objeto e depois
descobre-se sua função. Hoje, toda invenção é programada e testada antes mesmo de
existir como objeto concreto (Santos, 2002, p.267).
O efeito retroativo dessa reprodutibilidade é evidente. A propagação da visão
da cidade caótica, como justificativa para um ordenamento e para a criação de normas
e regras, cria uma nova moral de existência urbana, estruturada na indiferença, no
individualismo e no exclusivismo nas diversas relações sociais. A nova ética nas
cidades atuais é pautada no ter, onde o cidadão só é tratado como tal, na medida que
71
é consumidor. Além disso, atualmente, confunde-se ética com moral. O indivíduo no
seu cotidiano preocupa-se cada vez menos com a ética, como um reflexo da
valorização das superficialidades, típica da fase atual do capitalismo. Essas questões
serão discutidas mais adiante, nos próximos capítulos.
2.2. O moderno e o pós-moderno na literatura do urbano
O modernismo ou movimento moderno foi um conjunto de procedimentos
culturais, de escolas e estilos, que permearam várias áreas dos mais diversos campos
de conhecimento, principalmente às artes, o design, a literatura, a arquitetura e a
música, na primeira metade do século XX. Este movimento foi denominado moderno
porque era o contraponto ao que é ultrapassado, por isso, muitas vezes, também é
denominado de contemporâneo.
Por meio dele buscava-se a superação do clássico e da vida cotidiana, através
da necessidade de gerar uma nova cultura. Portanto, para isso, os mais variados
aspectos da existência foram analizados para buscar os vestígios antigos, de modo a
serem substituídos por formas novas, tudo isso, acreditava-se, em prol do progresso.
Justificava-se que essas mudanças deveriam ser feitas devido às profundas
mudanças ocorridas no século XVIII - XIX, que para eles eram permanentes,
indeléveis, e que faziam parte de um todo no qual as pessoas deveriam se amoldar,
ajustando-se às novas visões de mundo.
Segundo Harvey (2004, p. 21), a modernidade é caracterizada pelo casamento
entre o “efêmero e fugidio e o eterno e imutável”. Como conseqüência, a modernidade
rompe com qualquer condição histórica anterior, individualizando-se por um infindo
processo de rupturas e fragmentações. Mas afinal, por que a vida moderna é
preenchida por esse sentimento de efemeridade, mudança e caos? Para
solucionarmos esta questão, é importante recordarmos sobre as origens da
modernidade.
Os pensadores iluministas, no século XVIII, buscaram o desenvolvimento da
ciência objetiva, da arte autônoma, da moralidade e das leis universais, tudo isso
objetivando o domínio científico da natureza, para que assim o homem fosse capaz de
escapar da escassez e pudesse dominar a natureza. Cria-se com isso, o mito da
ciência como sinônimo de verdade. O homem se separa da natureza, sentindo-se
assim liberto das superstições e irracionalidades que balizavam o progresso, que é
visto como sinônimo de domínio da natureza, como se o homem não fosse um ser
natural, corroborando a tese de que o homem é superior à natureza, justificando todos
os danos de que somos testemunhas, atualmente, a ela. Passa também, em última
72
instância, ao próprio domínio do homem pelo homem. As verdades da religião são
deixadas de lado em troca das verdades da ciência, que passa a ser o mito do mundo
moderno.
Tudo
então
é
justificado
quando
afirma-se
que
é
comprovado
cientificamente, ou seja, como sinônimo de verdade absoluta. A partir, principalmente,
do século XIX, a extrema fragmentação do conhecimento consagrou a separação
homem-natureza. Com a influência de Descartes, Galileu, Leibniz e Newton, formouse a idéia de uma physis ordenada como um relógio. É o universo newtoniano, que é
mecanicista, “relojoeiro”, sincronizado; é o universo mecânico da Revolução Industrial
(Gonçalves, 1998). Porém, o mundo orgânico, não mostra essa regularidade dos
mecanismos da lei da gravitação universal. Esse mecanicismo passa a ser a imagem
de progresso da humanidade, através da máquina. A vida, os movimentos do indivíduo
acabam sendo cada vez mais controlados pelo relógio; é a sincronização dos
movimentos, onde o tempo está relacionado a um maior lucro
Então, acreditava-se, que através desse projeto as qualidades da humanidade
seriam reveladas. Envolto nos ideais de progresso buscou-se desmistificar o
conhecimento e a organização social, valorizando a criatividade, a ciência o individuo.
Os iluministas, visando este progresso, perceberam que o transitório, o fugidio e o
fragmentário, eram condições ímpares às mudanças (Harvey, 2004, p. 23).
Acreditavam que este projeto, além de possibilitar o domínio da natureza, facultaria o
progresso moral, a justiça e até mesmo a felicidade entre os homens.
O século XX provocou a ruptura deste pensamento otimista, com as guerras,
crises, campos de concentração, as bombas nucleares acenando para a possibilidade
de um derradeiro fim da humanidade. O pensamento iluminista possuía uma gama
variada de matizes problemáticos, tendo sido criticado por muitos.
Já após 1848, a idéia iluminista de que haveria apenas um modo de
representação começou a ser deixada de lado, e em seu lugar enfatizou-se temas
divergentes de representação (Harvey, 2004, p. 36). Diversas mudanças ocorreram
em resposta a estas modificações.
Pouco antes da Primeira Guerra Mundial, a arte moderna exprimia uma
alienação, era contrária a qualquer sentido de hierarquia e, na maioria das vezes,
criticava o consumismo e o modo de vida burguês.
No período entre as guerras, os artistas foram obrigados pelos acontecimentos
a expressar sua visão política. O modernismo reconhece que o mundo, devido a sua
complexidade, deveria ser representado em uma linguagem mais complexa através de
várias perspectivas e com relativismos múltiplos (Harvey, 2004, p. 37-38). Este
período do modernismo é denominado como período “heróico”. Neste período de
grande devastação provocado pela guerra, havia a necessidade de reconstruir as
73
economias da Europa que foram assoladas pela guerra. Daí o caráter positivista do
modernismo entre guerras, com o crescimento do mito da máquina, o enfoque na
racionalidade e no poder da tecnologia. Neste período entre guerras, segundo Harvey
(2004, p. 41), “havia algo de desesperado na busca de uma mitologia que pudesse de
algum modo aprumar a sociedade naquela época conturbada”.
Pós a Segunda Guerra Mundial, o modernismo “universal” ou “alto” consegue
hegemonia, sendo positivista, tecnocêntrico e racionalista, e estando sob o domínio da
elite. Portanto a arquitetura e o urbanismo deste período refletem a vaidade e o poder
da elite numa total alienação e desumanização. Havia necessidade de planejamento e
industrialização, principalmente na indústria de construção ligado ao transporte mais
eficaz. O mito da máquina, mais uma vez fora retomado. Todo detalhe arquitetônico,
com relação à ornamentação e à personalização, foi deixado de lado. Os espaços e as
perspectivas maciças, juntamente com a linha reta, foram supervalorizados. O
liberalismo constitui o modernismo, tendo este último perdido seu caráter
revolucionário.
Como
resposta
surgiram
os
vários
movimentos
contraculturais
e
antimodernistas dos anos de 1960. De acordo com Harvey (2004, p. 44), “... as
contraculturas exploram os domínios da auto-realização individualizada por meio de
uma
política
distintivamente
‘neo-esquerdista’
da
incorporação
de
gestos
antiautoritários e de hábitos iconoclastas [...] e da crítica da vida cotidiana”.
A partir do movimento antimoderno,
entre 1968 e 1972, emerge o pós-
modernismo como um movimento maduro, mas ainda contraditório.
Atualmente o capitalismo, alcunhado de pós-industrial, é a condição sóciocultural e estética, que denomina-se pós-modernidade. Existem as mais variadas
concepções sobre este vocábulo. Para Fredric Jameson (2002) a pós-modernidade é
a “lógica cultural do capitalismo tardio”. Já François Lyotard (1988) crê que a pósmodernidade seria um real rompimento com verdades absolutas antigas, típicas da
modernidade. Muitos autores, por sua vez, não crêem na existência de uma mudança
estrutural, afirmando ser apenas uma mudança tecnológica. Em nosso texto, não nos
deteremos à discussão sobre a concepção de pós-modernidade, pois não contempla
nossos objetivos para o presente trabalho. Ater-nos-emos à interpretação de David
Harvey sobre a pós-modernidade, até porque nosso interesse é concernente às
mudanças ocorridas nas cidades.
Os fins do século XX testemunharam profundas mudanças tecnológicas e no
pensamento, devido ao avanço das tecnologias das comunicações e dos transportes,
das artes, de materiais, da engenharia genética. Houve uma alteração da forma de
pensar as sociedades e as instituições. Os valores atuais são mais abertos e menos
74
determinantes do que aqueles do modernismo. Este período baseia-se nos serviços e
trocas de bens simbólico, abstratos, é o primado do símbolo. Claro que as trocas
simbólicas ocorrem de maneira desigual no mundo.
O pós-modernismo tem influência positiva, no que diz respeito à valorização
das diversas formas de alteridade. Outros afirmam que a pós-modernidade é uma
máscara de um novo autoritarismo remodelador da cidade. Porém não podemos
pensar que o pós-modernismo é apenas um recurso mimético, pois a transformação
da forma sucede a imaginação, o pensamento, o planejamento, a racionalização.
Diversas vezes, o pós-modernismo se classifica como um movimento voltado a
resolver os problemas do modernismo. Mas não deve ser feita uma generalização do
movimento moderno, classificando-o de todo ruim. Existem muitos modernismos e
existem também boas realizações materiais. Eles conseguiram organizar o espaço
urbano em rápida mudança do século XX, deram soluções para a Europa arrasada
pelas guerras mundiais. Toda uma crise relacionada a este momento não tem relação
com os modernistas e sim com os capitalistas. É deveras simplificador por a culpa de
todo um processo mais complexo nos modernistas.
De acordo com Harvey (2004, p. 111), entre modernismo e pós-modernismo há
muitas continuidades. “Parece-me mais sensível ver [o pós-modernismo] [...] como um
tipo particular de crise [do modernismo] [...] uma crise que enfatiza o lado
fragmentário, efêmero e caótico [...] enquanto exprime um profundo ceticismo diante
de toda prescrição particular sobre como conceber, representar ou exprimir o eterno e
imutável” (Harvey, 2004, p. 111).
Com sua valorização exacerbada da estética ao invés da ética, o pósmodernismo acaba extrapolando. Valoriza ao máximo a desconstrução e a
deslegitimação de qualquer argumento, a entrega total à fragmentação e à cacofonia.
Assim, chegará um momento em que não haverá nada para servir como alicerce a
ação racional. Ao mesmo tempo, dá autenticidade a outras vozes, nega a elas o
acesso a fontes mais universais de poder, forjando uma alteridade opaca (Harvey,
2004, p. 112).
Evitando enfrentar as realidades econômico-políticas e as circunstâncias do
poder global, a retórica pós-moderna torna-se perigosa, pois se aproxima da
cumplicidade da estetização política que lhe sustém.
O momento atual em que vivemos passa por profundas transformações
ideológicas e tecnológicas. Essas transformações invadem todas as esferas de nossas
vidas, transformando o espaço e a paisagem, alterando nossa maneira de enxergar o
mundo e a vida, de nos relacionar com o outro, de pensar, de agir e reagir. Sendo
75
assim, interferem na organização espacial das cidades e também, na teia de relações
que se desenrolam dentro dela.
Daí decorre a importância em compreendermos o que ocorre de diferente,
atualmente, dentro das cidades. E como a globalização, as inovações tecnológicas da
revolução tecno-científica informacional, as novidades nas artes, as alterações na
arquitetura, alteram o modo de vida, as políticas públicas e a organização espacial das
cidades.
Para isso utilizaremos dois autores que desenvolveram seus livros em torno da
questão das alterações que ocorrem hoje nas cidade. A primeira autora é Fernanda
Sánchez, com seu livro intitulado “A Reinvenção das Cidades - para um mercado
mundial”. O segundo autor é David Harvey com “A Condição Pós-Moderna”.
A idéia central na obra de Fernanda Sánchez (2003) é a questão da city
marketing. Segundo a autora, a globalização vai muito além da questão econômica,
pois, interfere na relações sociais, com uma nova retórica global que busca validar
processos hegemônicos mundiais e infligir a todos um pensamento único. As cidades
hoje vêm passando por alterações, denominadas por “espaços de renovação”,
formatados a partir de moldes culturais e hábitos de consumo perpetrados em todo o
mundo. Sendo assim, esses espaços de renovação, tornam-se áreas cada vez mais
homogêneas, criando uma “pasteurização” dos espaços. Esses espaços renovados,
ao mesmo tempo em que, tornaram-se símbolos da modernização, podem ser
encarados como obscurecedores das diferenças no espaço e tempo sociais.
O espaço passa a ser a mercadoria, portanto, a própria cidade passa a ser
uma mercadoria, mas não parte dela e sim o seu conjunto. Vende-se o conjunto da
imagem da cidade renovada. É a city marketing como instrumento central do
planejamento urbano. Ocorre uma reestruturação espacial nas cidades, especialmente
nas grandes cidades, que mediante o planejamento urbano atende requisitos por
vezes determinados por uma lógica global, através da introdução de uma série de
equipamentos materiais e imateriais. Essa rede é cada vez mais uniforme na medida
em que ela mais se globaliza. Apenas partes das cidades é que estão conectadas por
meios telemáticos, informáticos e logísticos. Com isso, as desigualdades entre partes
dessas cidades, que possuem os meios e aquelas que não os possuem fica cada vez
mais flagrante.
Segundo Sánchez (2003, p. 74), a lógica cultural do estágio atual do
desenvolvimento capitalista corresponde ao pós-modernismo, que teve seu início na
década de 1970, e que caracteriza-se pela superação da rigidez do estágio anterior. É
neste momento que ocorre uma ampla internacionalização das redes de comunicação
e de informação, ocasionando também a transnacionalização da lógica do
76
consumismo, ao mesmo tempo em que há a difusão dos comportamentos
competitivos. Juntamente com isso, ocorre uma mudança no papel do Estado,
gerando um agravamento das desigualdades sociais.
A ampliação da esfera do consumo e a aceleração de seus processos, altera
também a nossa observação e a produção e o consumo de imagens da cidade. A
produção de imagens da cidade é realizada através da inter-relação entre um sistema
técnico e um sistema de ação. A produção de imagens e discursos, atualmente,
reproduz a ordem simbólica. As dimensões do espaço e do tempo, hoje, são espaços
e tempos de poder, que tendem a determinar a organização da geopolítica do
capitalismo, e que também, diferenças e alteridades que só são compreendidas dentro
da lógica global do capitalismo. Portanto, o espaço passa a ter relação direta com a
pós-modernidade, e tal fato pode ser percebido no nosso dia-a-dia, segundo Sánchez
(2003, p. 80). Primeiro, pela perda ou diminuição significativa da sensibilidade, por
meio de um jogo de superfícies, gerando os espaços do simulacro. Segundo, por
conta da perda do sentido da história, através da valorização da vivência do presente,
produzindo uma alienação baseada no impulso ao consumo. Terceiro, pois o espaço
deixa de ser algo impalpável e passa a ser parte de nossa experiência direta, através
das redes de comunicação imediatas. Em quarto lugar, o espaço arquitetônico se
altera profundamente, na medida em que busca reproduzir a experiência imaterial
através dos projetos. Em quinto lugar, a cultura política atual passa a ter uma
crescente preocupação com as questões espaciais. Em sexto e último lugar, o hiperespaço pós-moderno possui uma realidade histórica e socioeconômica e é por meio
dele que se desenvolve a terceira grande expansão capitalista. Sendo assim, é por
meio dessa nova cultura política, baseada na mídia e na produção de imagens que
difunde-se as mensagens e as imagens de cidades-modelo. Ao mesmo tempo, ocorre
a fragmentação do tecido social, gerado pela cultura da valorização do indivíduo, do
narcisismo, do consumismo, do privado.
É a expansão do consumo, preterindo valores importantes na modernidade,
tais como, a autonomia e a subjetividade, que são cada vez mais separados das
práticas políticas e cotidianas. Atualmente, temos uma incrível liberdade de escolha,
mas esta é limitada às escolhas feitas anteriormente por outros agentes, minando a
espontaneidade, a participação e a criatividade nos espaços, como o da cidade. Todas
essas formas de poder, baseadas nas novas técnicas e nas comunicações, refletemse nas estratégias espaciais urbanísticas, arquitetônicas, dentre outras, que
predominam nos processos de reestruturação urbana a partir da década de 1990.
Nesse mundo balizado na mídia surgem novos modos de controle social e de
exercício de poder que dependem dos espaços das telecomunicações.
77
Nas cidades, os progressos técnicos da comunicação, servem para que os
governos organizem e controlem a vida social. As imagens e representações
propostas devem ser imitadas por todos, pois são propostas de modelos idéias. Mas, é
claro que não conseguem ser seguidos, criando uma sensação negativa nos cidadãos.
Toda a sociedade urbana está à mercê das comunicações e das informações
propagadas, transformando a vida urbana em imagens programadas, imagens
modelo, transformando o particular em geral. Sendo assim, esses veículos
informacionais, são gerados para propagar a ideologia e as estratégias dos governos
urbanos e das coalizões dominantes. Os maiores difusores de ideologia são os
setores relacionados com a construção de projetos para a reestruturação urbana, pois
que constroem o imaginário social urbano e agenciam a imagem urbana oficial, que na
maioria das vezes, não é a verdadeira, ou não dá conta da totalidade urbana.
De acordo com Sánchez (2003, p. 86), os projetos de cidades criados geram
uma transformação urbana relacionada a um discurso dominante dos governos locais
e das coalizões pró-crescimento. Esse discurso modifica a imagem da cidade gerando
uma imagem-marca. Os projetos de cidades atualmente, são ao mesmo tempo, a
alteração e a produção de espaços urbanos, e, a criação de símbolos. Esses símbolos
relacionam-se com as ações concretas de alteração de espaços e da criação de novos
espaços, e são o reflexo da visão de mundo, das convicções, das representações, dos
atores envolvidos no projeto. Há a criação de um discurso sobre a cidade, e, ao
mesmo tempo, a geração de ações que correspondam a este discurso, que o balizem.
A imagem possui um papel essencial levando a representação daqueles que a
produzem e alterando a representação daqueles que a recebem. As novas políticas
urbanas baseiam-se em uma visão de mundo específica, e, utilizam-se de discursos
visuais e verbais para gerar a promoção da reestruturação espacial, criando o
convencimento e a legitimação dessa reestruturação.
Os espaços novos, dirigidos para o consumo, por serem superficiais, precisam
criar meios para tornarem-se sustentáveis. Assim sendo, buscam o enraizamento
social ao realizar um resgate mimético de traços culturais materiais ou do imaginário
da sociedade, como um pastiche, criando assim a idéia de cidade para ser consumida.
Mas, é claro que nenhum espaço consegue ser tão programado a ponto de coibir por
completo a diferença e o que não está programado. Sempre há uma atividade
subversiva, não condizente com a ordem posta, questionadora, nos interstícios da vida
cotidiana.
Portanto, segundo Sánchez (2003, p. 92), atualmente, ao mesmo tempo em
que a cada nova intervenção urbana realizada, esta torna-se também ação e
comunicação simbólicas. Por isso é que as políticas de comunicação tornam-se cada
78
vez mais centrais nas estratégias adotadas nos projetos de cidade. A linguagem
destas políticas são bem homogêneas, porém, os meios técnicos adotados são bem
diversos, como a televisão, folders, páginas da web, etc.Os setores de comunicação e
marketing passaram a situar-se como uma das principais esferas do governo.
As empresas privadas que possuem interesses na cidade também possuem
ampla influência na construção de uma imagem da cidade. Portanto, essas novas
políticas pautadas no marketing possuem íntima relação com os interesses do governo
na manutenção dos investimentos na cidade.
Segundo Sánchez (2003, p. 95), há uma constante preocupação em estar
sempre renovando a imagem da cidade. Atualmente, toda imagem rapidamente se
desgasta, pois o consumismo exacerbado exige tal inovação e transitoriedade. A
alteração na imagem da cidade é realizada com cuidado de não se alterar o seu
princípio básico de imagem e busca a reconstrução da história da cidade para criar a
identidade necessária entre imagem e cidade. É necessário que haja um consenso
para os padrões das políticas na cidade.
A atual reestruturação urbana objetiva a inserção das cidades na nova ordem
mundial, que está voltada para um setor terciário qualificado. As práticas sociais e
culturais também têm se alterado com a modernização técnica e financeira da
economia. A reestruturação urbana indica uma renovação de ideologias e dos
universos simbólicos, através da construção de imagens e discursos. “Assim, é
possível interpretar a construção de discursos sobre a cidade como fator constituinte
da história do presente” Sánchez (2003, p.96). Existe pois, uma visão de mundo
dominante e um poder hegemônico que produz e reproduz o espaço, que difunde a
globalização e que orienta os processos de renovação urbana.
O discurso criado para as cidades gera uma justificativa e supre as
necessidades geradas pelo atual estágio de produção, baseado no mercado e no
espaço globais. Há uma racionalidade por trás desses discursos, pautada na produção
e consumo globalizados. A política de city marketing, segundo Sánchez (2003, p. 98),
é central como um forte instrumento de propagação desse discurso. É criado o projeto
da cidade por determinados atores, pautado em uma concepção de espaço, e, que
produz intervenções espaciais através de um planejamento. O discurso difunde a idéia
de renovação urbana, e a retórica deste discurso é verbal e imagética, mas também é
material, pois as obras urbanas possuem um duplo sentido: real e imaginário.
Todo o espetáculo criado pelo discurso acaba com a comunidade, o diálogo e o
espírito crítico, gerando assim, a indiferença. A relação gerada pelos discursos dos
meios de comunicação vão além da relação de exploração, pois são de abstração,
separação e rompimento do intercâmbio, por impedirem a resposta. São criados
79
modelos, nas cidades, que devem ser seguidos, portanto somente determinadas
atitudes, usos e lugares são valorizados. “A colonização do lazer, o consumo de
imagens espetaculares e a opulência informativa da pós-modernidade dos anos 90
constituem fenômenos culturais que penetram na vida cotidiana” (Sánchez, 2003, p.
102).
Como nessas cidades que passam por políticas de requalificação da imagem
atraem novos investimentos privados, pois reúnem as condições necessárias para que
haja a aceleração dos fluxos de consumo e criação de novos fluxos. Portanto,
podemos perceber que existe, atualmente, uma apropriação privada das imagens
urbanas que são geradas com base na esfera pública. O espaço é colocado como um
valor agregado ao produto ou serviço, portanto, os produtos ou serviços e a cidade
são vendidos juntamente, auxiliando um ao outro através de suas estratégias
promocionais. Então, associa-se o marketing da cidade ao marketing do produto, para
que beneficiem-se mutuamente, o próprio marketing da cidade impulsiona a venda do
produto.
De acordo com Sánchez (2003, p. 110), através das novas políticas de
intervenções públicas, realizadas por meio do city marketing, reordena-se os espaços
metropolitanos, adaptando-os às novas demandas mundializadas que clamam por
uma determinada qualidade de vida na cidade. Busca-se a adaptação da cidade para
a produção e o consumo de alto padrão. As políticas para a promoção das cidades
estão relacionadas à idéia de inovação nos mais diversos setores, como, na gestão da
cidade, na administração de serviços, no urbanismo, no turismo urbano, na
organização de eventos, etc.
É através das imagens-síntese que a população é levada a se apropriar do
espaço de formas específicas e de reproduzir determinados traços culturais locais,
consolidando comportamentos típicos de um morador daquela cidade (Sánchez, 2003,
p.110 -111). Quanto mais essas imagens-sínteses se tornam mitos modernos, maior é
o risco delas gerarem classificações excludentes ou controles de comportamentos
sociais, ampliando as desigualdades na vida coletiva.
Porém, existem diversas leituras da cidade. Cada pessoa enxerga a cidade de
uma maneira particular. Portanto, não existe uma única leitura possível. Dependendo
de onde se olha e das necessidades e anseios de cada qual, teremos diferentes
projetos. As imagens-síntese oficiais são impostas como dominantes, assim como os
projetos de modernização da cidade que são balizados nesta imagem-síntese. Não
possibilitam a discussão, a dúvida, à outras interpretações. Os governos buscam
tornar essas imagens eficientes, sempre sendo mostradas com uma aparência de
objetividade, e, mostrando fatos sociais como inquestionáveis, como se fosse uma
80
verdade absoluta. Essa leitura oficial da cidade, apresentada como a verdadeira, como
a inquestionável, natural, é na verdade puramente ideológica. As posições
aparentemente neutras defendem uma abordagem específica do real. Mas, na
verdade, não existe posição neutra, pois toda abordagem é uma verdade relativa
pautada sobre um conjunto de valores. Na realidade, as representações são
abarrotadas de intencionalidade, pois buscam produzir determinados efeitos sobre a
realidade.
Nas cidades atuais, os objetos materiais são produzidos concomitantemente
com a maneira que ele será consumido, através do discurso e da imagem produzidos
por meio de práticas ideológicas. A representação da cidade passa a ser sinônimo de
poder, no seguinte sentido: aquele que cria essa representação, ou seja, que produz a
leitura oficial e total da cidade constrói uma hegemonia, busca o convencimento dos
demais e cria o consenso. É aí que entra o poder do discurso, pois é aquele mais forte
que vencerá a disputa. São, ao mesmo tempo, políticas culturais e econômicas.
Aquele que não se alinha ao poder dominante é desqualificado, excluído, alijado.
Juntamente com as imagens e sínteses surge o pensamento de que não há
outro meio de se viver na metrópole, senão aquele que é propagado. Constantemente
os meios de comunicação de massa disseminam o pensamento dominante, para
assim, manter a cidade em ordem e o pensamento dominante em vigência. Sánchez
(2003, p. 128), afirma que, “A nova retórica associada ao projeto dominante de
modernização urbana, que tece as figuras de linguagem em discursos e imagens da
reestruturação, entretece também interpretações e leituras do mundo que lhe dão
sustentação”
Constantemente os meios de comunicação de massa disseminam o
pensamento dominante, para, assim, manter a cidade em ordem e o pensamento
dominante em vigência. Parece não estar em pauta a compreensão da complexidade
da cidade, e sim, a utilização de metáforas para fornecer instrumentos para as
necessidades da nova ordem mundial do capitalismo global. É uma “colonização
mental”, que impõe ao mundo todo categorias de percepção e representação
determinadas, disseminando pelo mundo modelos, políticas, formas de pensar dos
atores dominantes.
Atualmente, o perfil dos líderes desejados nas cidades modificou-se. Hoje, há o
mito do líder carismático, empreendedor, culto, mais técnico do que político. Portanto,
essas características passam a ser essenciais no momento de escolha do prefeito da
cidade ou então dos agentes que desenvolverão o plano e os projetos ligados à
reestruturação urbana. É a importância de buscar uma roupagem neutra e balizada na
ciência para os discursos sobre a questão urbana. Sendo assim, esse discurso
81
pautado na ciência e na técnica constrange o cidadão, que se limita a concordar com o
especialista e a ter a ilusão que está participando da construção do projeto da cidade.
É um discurso que dissemina idéias convenientes e interesses particulares (Sánchez,
2003, p. 138).
Podemos perceber então, que Sánchez (2003), afirma que a cidade hoje
transformou-se em uma mercadoria que busca atender aos requisitos do capitalismo
global. E mais, que os cidadãos passaram a ter a ilusão da participação nos processos
decisórios sobre a cidade, mas que na verdade, são manipulados e convencidos,
através das imagens e de discursos, de que o discurso oficial é o melhor e o correto, já
que é pautado na ciência e na técnica. Mas, na realidade, este discurso oficial não é
neutro, muito menos possuidor da verdade, e, sim, uma forma de atender aos
interesses particulares de certos atores hegemônicos da sociedade.
Segundo David Harvey (2004), com relação à arquitetura e ao projeto urbano,
os modernistas afirmam que o planejamento e o desenvolvimento devem ser
realizados em planos urbanos de grande escala, com alcance metropolitano, que
sejam racionais e eficientes e que possuam uma arquitetura despojada. Já os pósmodernistas, rompem com esta idéia. Para eles, o tecido urbano é algo “fragmentado,
um ‘palimpsesto’ de formas passadas superpostas umas às outras e uma ‘colagem’ de
usos correntes, muitos dos quais podem ser efêmeros” (Harvey, 2004, p. 69).
Valorizam o projeto urbano e não o planejamento. Querem captar as tradições locais,
os sonhos, as vontades e necessidades individuais, criando formas arquitetônicas
singulares e personalizadas. Outra característica é o ecletismo arquitetônico,
possuindo uma multiplicidade de estilos.
O espaço para os modernistas está sempre modelado para servir a fins sociais,
ou seja, sempre servil à elaboração de um projeto social. Para os pós-modernistas, o
espaço é algo autônomo e independente, livre e desprendido. É moldado de acordo
com determinados princípios estéticos, ser-ter, obrigatoriamente, uma relação com
uma meta social ampla.
O planejamento urbano dos modernistas trabalha com o zoneamento
monofuncional. Visam o crescimento da cidade por extensão e largura. Já o pósmodernismo, afirma que a melhor forma de uma cidade crescer é por “multiplicação”,
ou seja, como se criassem “cidades no interior de uma cidade” (Krier, apud Harvey,
2004, p. 70). A cidade ideal seria aquela que possuísse “comunidades urbanas
completas e finitas” (Krier11, apud Harvey, 2004, p. 70), já que uma boa cidade deve
fornecer a totalidade das funções urbanas à distâncias agradáveis e compatíveis a pé.
11
KRIER, R. (1987). Tradition-modernity-modernism: some necessary explanations. Architectural
Desing Profile, nº 65, Londres.
82
Observa-se também, dentre os pós-modernistas, uma busca pelo resgate ao diálogo,
à proximidade, entre os mais diversos possíveis, na cidade.
Os modernistas valorizavam a reconstrução, a reformulação e a renovação de
todo o tecido urbano. Outra importante característica dos modernistas era o
“planejamento racional” e os “sistemas de construção industrializada”. Possuíam uma
preocupação com a “racionalização dos padrões espaciais e dos sistemas de
circulação para promover a igualdade (ao menos a oportunidade), o bem-estar e o
crescimento econômico” (Harvey, 2004, p. 71).
Todas essas características podem ser explicadas pelo fato de que, o
modernismo nas cidades surgiu no período do pós-guerra tornando-se característico
da organização urbana deste momento. Era um período em que havia a necessidade
de construir-se a paz, atendendo às necessidades do povo, ultrapassando os
problemas da guerra e não retornando àqueles que haviam antes da guerra, como o
desemprego, a recessão, os problemas de habitação, dentre outros. Todos esses
problemas não poderiam ressurgir após a guerra. Para o bem e a sustentação do
sistema capitalista de produção deveria haver o vislumbre de um futuro melhor. As
políticas e as maneiras de realizá-las variavam de acordo com o local, mas todas elas
seguiam um mesmo padrão, o da utilização da produção e do planejamento em
massa, conhecimentos esses oriundos do período da guerra. Com o fim do conflito foi
necessário o lançamento de um amplo programa de reconstrução, reformulação e
renovação do tecido urbano. As idéias modernistas foram de encontro às
necessidades da época. Harvey (2004, p. 72) afirma que, apesar das críticas dos pósmodernos, as soluções modernistas não foram um pleno fracasso, pois as cidades
destruídas pela guerra foram reconstruídas e as condições de vida da população
foram melhoradas. Além disso, com as tecnologias e recursos disponíveis na época,
seria complicado fazer tudo o que foi feito sem a utilização dos padrões modernistas
de padronização e de uniformidade de linha de montagem. Muito do que foi realizado
na época, possuía maior relação com as questões políticas e econômicas daquele
período do que com a ideologia modernista.
Uma das principais maneiras de acumular capital, nesse período, foi com a
indústria do desenvolvimento e da construção. O poder do capital corporativo era
muito amplo, mesmo quando o planejamento era realizado pelo Estado com
investimentos públicos. Os monumentos gerados pelos modernistas serviam como
símbolos de poder do capital corporativo. Jane Jacobs12 (Jane Jacobs, apud Harvey,
2004, p. 74-75), uma das primeiras antimodernistas afirmou que, “Projetos para
12
JACOBS, Jane (1961). The death and life of great American cities. Nova Iorque.
83
pessoas de baixa renda que se tornaram piores centros de delinqüência, de
vandalismo e de desamparo social geral do que as favelas que pretendiam substituir.
Projetos de habitação para pessoas de renda média que são verdadeiras maravilhas
da estupidez e de sujeição, privados de toda jovialidade ou vitalidade da vida na
cidade. Projetos de habitações de luxo que mitigam sua inanidade, ou tentam, com a
vulgaridade insípida. Centros culturais incapazes de sustentar uma boa livraria.
Centros cívicos que só não são evitados pelos vagabundos, que têm menos escolhas
de locais de vagabundagem do que outros. Centros comerciais que são imitações
apagadas de shoppings suburbanos padronizados com lojas de departamentos.
Calçadões que vão de nada a lugar nenhum e que não têm quem passe neles. Vias
expressas que desfiguram as grandes cidade. Isso não é reconstrução de cidades,
trata-se de devastação de cidades”.
Esta afirmativa de Jane Jacobs mostra a visão dos pós-modernos com relação
aos modernistas. Temos que ter consciência de que em parte esta visão é correta,
mas, não podemos radicalizar e aplicar esta visão em todos os projetos, obras e
planejamentos modernistas. Naquele momento, e, em determinados locais, os ideais
modernistas foram muito úteis, como já expusemos anteriormente.
Os pós-modernos valorizam a restauração e a recriação dos valores urbanos
clássicos. Ou seja, defendem a restauração do tecido antigo, concomitantemente a
sua reabilitação para novos usos, muitas vezes, utilizando visões tradicionais com
novas tecnologias e novos materiais. Eles afirmam que os modernistas são
“antiecológicos”, pois criam zoneamentos e artérias artificiais ligando estas zonas.
Criticam também a monotonia funcionalista gerada pelas práticas de zoneamento
funcional. Os pós-modernos, valorizam os processos de interação social que se
desenrolam no ambiente citadino. A cidade, para eles, é um sistema complexo e
diversificado, onde os processos urbanos são importantes, mas, mais ainda o são
seus impulsionadores. Segundo eles, o modernismo seguia alguns processos que
acabavam caminhando contra essa diversificação, porque acreditavam que a
diversidade poderia levar ao caos, à desordem, à irracionalidade e à falta de beleza. O
pós-modernismo parece buscar maneiras para exprimir essa estética da diversidade.
Porém, muitas vezes, podemos observar como é superficial e limitado esse esforço.
Segundo Harvey (2004, p. 77), a arquitetura pós-moderna possui raízes no
avanço das comunicações e dos transportes, que derrubaram as barreiras,
ultrapassaram os limites, infiltraram-se em espaços diversos, rompendo as tradicionais
fronteiras do tempo e do espaço. Isso gerou um novo internacionalismo e uma forte
diferenciação interna de cidades e lugares, produzindo, portanto, uma fragmentação.
Porém, essa fragmentação, atualmente, é possibilitada pelos avanços nas
84
comunicações e nos transportes, que realizam a interação social das formas mais
diversificadas possíveis. Isso possibilita a criação de novas formas espaciais, mais
diferenciadas uma das outras, bem diferente do período moderno, onde as condições
e as necessidades da época limitavam a diversificação e estimulavam a massificação
e a homogeneidade. Hoje, as formas urbanas podem ser mais dispersas, mais
descentralizadas, mais desconcentradas, por conta das novas tecnologias. Além
disso, as novas tecnologias possibilitaram a conjugação de uma produção em massa
com uma diversificação, ou seja, uma produção em massa flexível, com a quase
personalização dos produtos. A facilidade para a criação de um trabalho
personalizado, com variados tipos de clientes, situações e funções aumentou muito.
Novos materiais surgiram permitindo que se criem formas e estilos quase
idênticos aos antigos com um custo acessível. As novas tecnologias suprimiram as
restrições que existiam no pós-guerra, mas isso não quer dizer que o pós-modernismo
é um movimento que surgiu apenas por conta dos avanços tecnológicos.
As questões e os problemas daqueles que não são privilegiados, das minorias,
são deixados de lado. Prioriza-se as questões mercadológicas em detrimento das
questões sociais. Ou seja, a arquitetura e o projeto pós-moderno enfatizam as
“culturas do gosto” e o poder do mercado, segundo Harvey (2004, p. 78), e, são
mesmo dirigidos para o mercado. Essa tendência em atender prioritariamente às
exigências do mercado, acaba por cair no risco de se atender às necessidades do rico
e do privado em prejuízo do pobre e do público. Portanto, prioriza-se aquele que pode
pagar, enfatiza-se a utilização da terra pautada nos aluguéis e não em princípios de
um projeto urbano. De acordo com Harvey (2004, p.79), “O populismo do livre
mercado, por exemplo, encerra as classes médias nos espaços fechados e protegidos
dos shoppings (...) e átrios (...), mas nada faz pelos pobres, exceto ejetá-los para uma
nova e bem tenebrosa paisagem pós-moderna de falta de habitação (...)”.
Os arquitetos e planejadores urbanos pesquisam os gostos, as preferências
estéticas, estimulando a produção e o consumo, pontos basilares da acumulação do
capital. É o que Bourdieu13 (Bourdieu, apud Harvey, 2004, p. 80) denomina por “capital
simbólico” que ele define como “o acúmulo de bens de consumo suntuosos que
atestam o gosto e a distinção de quem os possui”.
O fetichismo é outra característica que surge nas cidades atuais. A aparência
superficial, com a roupagem da cultura e do gosto, torna-se mais uma maneira de
transparecer as diferenças econômicas. Uma característica marcante da vida urbana,
atualmente, é a busca pela aquisição de cada vez um maior número de símbolos de
13
BOURDIEU, P. (1977). Outline of a Theory of Pratice. Cambridge.
85
status, para assim, demonstrar as diferenças sociais. Derivou daí o mercado de
ambientes e de estilos arquitetônicos, muito estimulados pelos pós-modernos. Estes
últimos, vinham de muito sendo reprimidos, no período moderno, onde havia um
conjunto de estilos arquitetônicos que eram aceitos e estimulados, e, o que diferisse
disso era criticado e alijado. Esse desejo reprimido foi expresso nos movimentos
culturais da década de 1960.
Porém, o gosto não é algo estático, e, sim, muito dinâmico, mutável, móvel,
instável, enfim, a moda sustenta o capital simbólico, que só se mantém como tal, por
conta da mutabilidade da moda. Foram estabelecidos novos critérios de gosto na arte
e na vida urbana, alterando as formas de vida na cidade, a paisagem urbana, o real e
o imaginário, tudo isso unindo o capital simbólico à busca da riqueza simbólica. Daí,
segundo Harvey (2004, p. 82), é que deriva “(...) o atual fascínio pelo embelezamento,
pela ornamentação e pela decoração como códigos e símbolos de distinção social”.
A linguagem geral dissolve-se em múltiplas linguagens particulares. A
fragmentação é resultante da tentativa de atender a todos os gostos, e, muitas vezes,
essa fragmentação é realizada de maneira consciente e planejada. As cidades
começam a ser encaradas como um grande conjunto de peças diferentes, expondo
uma anarquia, uma constante renovação, exprimindo a complexidade citadina como
um grande e complexo labirinto inescapável. A arquitetura das cidades, através dos
pós-modernos, passa a ser um mesclado de diversos estilos, passa a ser múltipla, o
que gera uma tensão, criando a “esquizofrenia”, segundo Harvey (2004, p. 83). A
arquitetura pós-moderna procura associar o pessoal, o particular, o tradicional, o dia-adia, a memória coletiva, a história de cada um e de cada lugar, com o moderno, com
as rápidas alterações sociais, com as novas tarefas funcionais, com os novos
materiais, tecnologias e ideologias, e com uma intensa e contínua renovação da arte e
da moda.
Os monumentos são uma outra forma de manutenção da memória coletiva da
cidade, de acordo com Aldo Rossi (1977, p. 168). Portanto, ao manter-se o
monumento e os rituais em torno dele mantém o sentido de coletividade da cidade e
propaga as idéias daquele contexto urbano. Sendo assim, para Rossi, o arquiteto deve
manter a memória coletiva da cidade através dos monumentos urbanos, que
disseminem e mantenham esta memória. Esta idéia fundamenta-se no conceito de
“genre de vie” de Vidal de la Blache, ou seja, um modo de vida que determinada
sociedade edifica, de acordo com fatores geográficos, sociais, econômicos e
tecnológicos. Porém, muitos pós-modernos, utilizam a história como forma de
legitimação, mas na realidade fazem uma grande mistura de estilos de diversos
86
períodos históricos. Esta mescla de estilos passados é uma marcante característica do
pós-moderno, principalmente, quando isto é realizado de maneira superficial.
Esta insistência em preservar o passado mostra uma preocupação com o eu,
ou seja, a identidade, as raízes pessoais e coletivas. Isto ocorre, pois a partir da
década de 1970 emerge uma grande insegurança generalizada, oriunda das
profundas alterações que ocorrem com a intensificação da globalização, criando a
insegurança no mercado de trabalho, com as novas tecnologias, com a fluidez
exacerbada, etc. Através do conhecimento e da afirmação do passado a identidade
individual e coletiva é fortalecida, diminuindo as inseguranças.
Ocorre também, uma mistura de gostos e culturas, que verificamos em seu
extremo nos países que possuem bairros, lugares, cidades, que são reflexo de uma
cultura, com minorias reunidas formando áreas singulares, como por exemplo, em
bairros latinos nos Estados Unidos, ou, bairros chineses em São Paulo. É como se
grande parte da arquitetura pós-moderna fosse dotada de uma superficialidade
arquitetada. As culturas e seus passados históricos respectivos são utilizados e
manipulados para servir ao consumo e à mídia. Nesse contexto, fica difícil avaliar o
que é e o que não é proposital e programado. Mais ainda, quais são as ações de
manipulação social e àquelas de movimentos revolucionários.
Segundo Harvey (2004, p. 91), a arquitetura pós-moderna tem por objetivo
renovar as cidades, pois, é a arquitetura do espetáculo, com um brilho superficial,
exibicionista, efêmera, de prazer participativo transitório. Tudo isso, para adequar a
cidade às tendências atuais de mercado de consumo, da velocidade de mudança e
renovação das coisas, da efemeridade do mundo da moda e da necessidade de
constante renovação e reciclagem de imagens de mídia. São criados novos espaços
urbanos que sustentam espetáculos mais fixos ou mais transitórios. Harvey (2004, p.
91-92), afirma que, “Ao que parece, as cidades e lugares hoje tomam muito mais
cuidado para criar uma imagem positiva e de alta qualidade de si mesmos, e têm
procurado uma arquitetura e formas de projeto urbano que atendam a essa
necessidade. (...) Dar determinada imagem à cidade através da organização de
espaços urbanos espetaculares se tornou um meio de atrair capital e pessoas (do tipo
certo) num período (que começou em 1973) de competição interurbana e de
empreendimentismo urbano intensificados (...)”.
Portanto, a repetição de modelos bem sucedidos é notória, pois que esses
modelos buscam adequar-se às necessidades atuais do mercado nas cidades. A
arquitetura e o projeto urbano pós-moderno buscam sair da realidade e levar a todos
ao mundo da imaginação. Os temas mais centrais deste período são, a fragmentação,
o caos, a desordem, ecletismo, concomitantemente, a uma aparente ordem.
87
2.3. O Conceito de Ética
É difícil definir o que é ética. Entendemos como significado da palavra ética
algo muito diferente do significado dado pelos gregos, pois estes consideravam ética e
moral como sinônimos. Ética é um princípio, permanente, universal, sendo uma regra.
Todo ser humano segue princípios éticos. O que muda ao longo do tempo e do espaço
é a moral. A moral é um conjunto de regras e normas de uma sociedade. Portanto, é a
maneira de agir e de lidar com o outro socialmente. Refere-se ao comportamento
humano. Muitas vezes, pela estreita relação e pela tênue linha que separa moral de
ética, tendemos a trabalhar com esses dois conceitos de maneira equivalente, como
se fossem sinônimos. Apesar de que a ética não existe sem uma moral.
A ética pode ser compreendida também como a área da filosofia que estuda o
conjunto do que é considerado correto moralmente e mais adequado. Então podemos
afirmar que a ética estuda regras e normas de uma sociedade, em um determinado
período. Ou seja, dependendo do local e do período da história teremos diferentes
tipos de moral. Não existindo assim uma moral correta ou ideal, daí vem a dificuldade
em definir o que é ética e moral e quais são seus pressupostos e fundamentos.
O comportamento humano, as regras sociais e suas conseqüências são
características da ética. A moral possui profunda relação com a ética, pois o agir ético
pressupõe a existência de uma moral.
Ética é diferente de moral e de meta-ética. A meta-ética estuda a origem de
nossos julgamentos. A ética e, às vezes, a moral, estudam os tipos de julgamento que
fazemos a respeito do que consideramos certo e errado. A ética, portanto, diz dos
nossos julgamentos, nossos juízos de valor.
Ética vem de hetos, hetos de um povo, quer dizer um comportamento, os
hábitos, os costumes de um povo. A ética é entendida tradicionalmente como “um
estudo ou uma reflexão, científica ou filosófica, e eventualmente até teológica, sobre
os costumes ou sobre as ações humanas” (Valls, 1994, p. 7). Ou seja, a vida no que
concerne aos costumes que são considerados corretos.
Os costumes mudam, tanto de acordo com o momento, quanto de acordo com
o local. Então, será que a ética seria uma pura e simples listagem das convenções
sociais e provisórias? Não são somente os costumes que variam, mas também os
valores que o acompanham, os ideais, a sabedoria, etc. Qual é a importância da
regulamentação ética atualmente, com o capitalismo avançado? Não existiria uma
ética absoluta? Ou uma moral absoluta?
88
O absolutismo moral assume a existência de leis morais absolutas que nos
dizem o que é certo e errado. Já o relativismo moral aceita a concepção de moralidade
proposta, mas caracteriza as regras sempre inerentes a determinada cultura, e recusa
que a racionalidade possa fornecer regras, conclui que a moralidade é irracional e
subjetiva, supondo, portanto, que só haja racionalidade e objetividade onde há leis
universais. Reconhecer leis morais universais capazes de prescrever as ações que
devem ser realizadas e proibir outras ações assume a razão como guia privilegiado
para a motivação moral. A teoria da lei moral na tradição filosófica coloca como idéia
central o ser humano possuindo uma razão universal capaz de reconhecer um sistema
de princípios morais que nos diga como agir.
A ética pode não beneficiar o outro, porém, não pode prejudicá-lo. O
comportamento ético é aquele considerado bom. Porém, o que é ser bom, ou agir
segundo o bem? O que é bom para uma pessoa não o é para outra. Esse é um dos
dilemas da ética. Por isso é que podem existir vários tipos de moral, de acordo com o
momento da história e com o local. A ética deve buscar aquilo que é bom para o
indivíduo e para a sociedade ao mesmo tempo.
É a ética que julga o comportamento moral de uma pessoa. Sendo assim, o
principal objeto da ética é a moral. Ela seria então uma avaliadora do caráter das
pessoas, pois são as escolhas que revelam o caráter do ser humano, pois descortinam
conceitos e preconceitos. A ética almeja a perfeição do ser humano.
Se a moral ética é um conjunto de regras, normas, princípios e maneiras de
agir de uma sociedade, esta deve ter aceitação da sociedade para que tenha
autoridade. Ela é mesmo um produto da sociedade e tem a função de melhorar o agir
humano.
Sendo assim, a questão ética nas cidades é de suma importância. Atualmente,
vivemos um período de profundas incertezas, a pós-modernidade. A política torna-se
desacreditada pela população tornando-se uma pura e simples estratégia de poder,
rompendo com a ética. A sociedade civil foi afastada dos processos decisórios. A
cidade passa a ser analisada de maneira puramente técnica. Ao mesmo tempo em
que há o fim das ideologias, emergem inúmeros problemas nas cidades, surgindo
então a necessidade de uma reflexão ética nas cidades.
Por isso, as regras do sistema político devem sujeitar-se ao crivo da ética
pública, pois ampliando-se a participação da sociedade civil na política teríamos a
oportunidade de criar uma política mais ética. Até porque, se o Estado tem a função de
atender à sociedade civil, deve-se para isso ter a participação ativa desta última.
E junto à ética há que ter moral nas coisas públicas e privadas da política.
Existem valores morais diversos. Segundo o filósofo contemporâneo, Mark Johnson,
89
no mundo não existem escolhas, pois temos o limite social, cultural etc (Cortina &
Martínez, 2005). Nós somos inseridos no mundo e este sendo social já é formado,
situado, sendo assim, tem sentido afirmarmos que o eu pode deliberar totalmente? A
deliberação moral reside na questão – que tipo de pessoa quero ser? Então, a moral é
quando a decisão contribui para a identidade do seu “eu”. Claro que não podemos
deliberar sobre tudo, mas nota-se um tanto de exagero afirmar que não existem
escolhas no mundo. Certamente, algumas de nossas escolhas são realizadas a partir
das opções que temos.
Muitos são os problemas a ser enfrentados pelo homem contemporâneo ao
discutir a respeito da moral: o individualismo, o narcisismo hedonista, a recusa da
razão dominadora, o relativismo moral. A pessoa moral, ao se perguntar como deve
agir em determinada situação, certamente se aproxima de questões teóricas e
abstratas tais como: Em que consiste o bem? Qual o fundamento da ação moral?
Quando nos é apresentado um dilema moral o que ocorre, segundo essa linha
de argumento, é uma exploração imaginativa das possibilidades, visando responder
qual é a melhor atitude para aquela situação específica.
Em suma, nós somos basicamente seres em processo, criaturas sintetizantes
cujos corpos nos situam em um mundo que é ao mesmo tempo físico, social, moral e
político. Portanto, nós estamos localizados em uma tradição cultural específica que
supre o estoque de funções sociais, estruturas, modelos e metáforas que são o nosso
modo de apreender o mundo, compreendê-lo e raciocinar sobre ele. Assim, os
julgamentos morais ocorrem nesse panorama biológico-cultural e fazem uso dessas
ferramentas imaginativas.
Ao criticar o absolutismo moral as pessoas são tentadas a dar o passo
inevitável da necessidade de ordem, de estabilidade, para um processo pelos
constrangimentos absolutos morais na forma de leis ou de princípios da moral
universal, pois o absolutismo moral é motivado por um generalizado desejo humano
pela claridade, certeza, ordem e constrangimento, a fim de nos dar uma resposta para
nossa limitação, por meio de princípios morais absolutos. Mas, o que há de errado
com essa visão? O erro consiste em tratar os princípios morais como absolutos, pois é
falsa a idéia de uma racionalidade livre de contexto, com base na ilusão de que nós
poderíamos pensar fora ou acima do tempo, tocando o eterno e imutável. O melhor
procedimento para a moralidade, nesse sentido, seria um conjunto de estratégias que
valorizassem o conjunto social como uma forma de experimento com possibilidades
para desenvolver a sobrevivência e a prosperidade.
A moralidade tem três pontos centrais: preocupa-se com obrigações inevitáveis
a se fazer, ou abstém-se de certas ações; nega a possibilidade de um último conflito
90
entre nossas obrigações; e suas reações características são culpar, acusar e se autorepreender. A instituição da moralidade também tenta forçar toda a consideração
moral significante em um tipo altamente específico de obrigação moral (Cortina &
Martínez, 2005).
A moralidade nos leva a um tipo de vida e nos mostra que nossas ações
podem ajudar ou prejudicar pessoas. Ações que eram antes pensamentos meramente
técnicos, estéticos, ou teóricos voltam-se para ter dimensões morais.
Enfim, o âmbito da moralidade é amplo como a instituição da moralidade
permite, alcançando virtualmente todo o aspecto de nossas vidas.
A educação moral desenvolvida não consiste primariamente em aprender os
papéis morais, mas que as aprendemos na experiência e no exemplo. Nós
desenvolvemos nosso senso moral através de como as pessoas têm nos tratado, o
que nós temos experimentado, e na moral das idéias e estruturas de nossas culturas.
Nossa moral é entendida como uma construção ao redor da moral prototípica que nós
temos encontrado e que significado tem para nós.
2.4. As Categorias da Ética e a Ética na Cidade
Na Grécia antiga, Sócrates, Platão e Aristóteles, dentre outros, encaravam
como problema da ética a busca pela felicidade. Platão e Aristóteles, segundo Valls
(1994, p. 26), partem da correlação entre o Ser e o Bem, para discutir a ética.
Segundo ele, Aristóteles afirmava que, “... o homem tem o seu ser no viver, no sentir e
na razão (p. 30)”. E que “O ser do homem é uma substância composta: corpo material
e aluna espiritual. Como o corpo é sujeito às paixões, a alma deve desenvolver hábitos
bons, uma vez que a virtude é sempre uma força adquirida, um hábito, que não brota
espontaneamente da natureza” (p. 33).
Para os gregos, viver de acordo com a natureza era uma questão moral. A
religião era muito ligada à natureza, quando cria-se um Deus único, ou seja, quando o
homem começa a se perguntar como deve agir, ele não mais se satisfaz com as
respostas relacionadas à natureza. Por um lado, a religião foi benéfica ao
desenvolvimento moral da humanidade, mas, por outro, obscurecem a mensagem
ética da liberdade, do amor, da fraternidade universal.
Para os antigos filósofos, tal como Platão, a justiça e a virtude centralizavam
todo o problema moral. O termo virtude tem, em grego, um significado bem mais rico e
bem diferente do que tem para nós hoje. Designa o que faz a excelência, a perfeição
de um ser, em qualquer ser considerado e em qualquer domínio de atividade. É, para
91
cada um, o poder de realizar aquilo que ele em conformidade com uma ordem,
entendendo-se que ordem, para os antigos, era sinônimo de “valor” (Cortina &
Martínez, 2005).
A ética tem como princípio supremo a moralidade. Uma de suas grandes
questões filosóficas é o da ação humana, ou seja, o problema moral. Tratava-se de
saber não o que o homem conhece ou pode conhecer a respeito do mundo e da
realidade última, mas do que deve fazer, de como agir em relação a seus
semelhantes, de como proceder para obter a felicidade ou alcançar o bem supremo.
Esta somente seria estabelecida pela razão, o que leva a conceber a liberdade como
postulado necessário da vida moral.
A vida moral apenas é possível, para Kant, na medida em que a razão
estabeleça, por si só, aquilo que se deva obedecer no terreno da conduta. Na
“analítica” da Crítica da Razão Prática, Kant, distingue, inicialmente, as máximas
morais das leis morais. As primeiras seriam subjetivas, contendo uma condição
considerada pelo sujeito como válida somente para sua vontade. As leis morais, ao
contrário, seriam objetivas, contendo uma condição válida para a vontade de qualquer
ser racional. Para Kant, o imperativo categórico era uma maneira de agir através da
qual o motivo que te levou a agir dessa forma possa ser convertido em lei universal.
Kant, centraliza a importância da pura vontade moral. Em sua visão uma vontade boa
em si é aquela que é livre O eu com o agente moral é visto fundamentalmente como
vontade racional, ou seja, como vontade prática. Para Kant, no centro das questões
éticas aparece o dever, que é a obrigação moral. Ele busca uma moral igual para
todos, pautado na busca por uma moral racional (Cortina & Martínez, 2005).
Qual é, então, o ideal da vida ética? Muitos pensadores do século XX, segundo
Valls (1997, p. 43), insistem em afirmar que a liberdade é um ideal ético, em termos
que privilegiam o aspecto social. De acordo com o autor acima, o pensamento social e
dialético tende a buscar como ideal ético, a idéia de uma vida social mais justa, com a
superação das injustiças econômicas, ou seja, é a ética voltando-se para as relações
sociais.
O prazer hoje tornou-se sinônimo de posse de bens materiais ou a propriedade
do capital. Segundo Valls (1997, p. 55), “... na massificação atual, a maioria hoje talvez
já não se comporte mais eticamente, pois não vive imoral, mas amoralmente”. Os
meios de comunicação de massa, as ideologias, o Estado, etc, não permitem que
vivamos livremente, que sejamos cidadãos conscientes e participantes, de
consciências que tenham a capacidade crítica de discernir e de julgar.
Falar de ética significa falarmos de liberdade. A palavra ética nos faz lembrar
de normas e responsabilidades. A norma nos diz como devemos agir, portanto, isso
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quer dizer que não podemos agir de outras maneiras. Se a resposta passa a ser
determinada, condicionada, ela passa a ser mecânica, automática. Portanto, a ética
passa a ser impossível. Ela refere-se às ações humanas, e assim, pressupõe a
liberdade. A ética busca solucionar a questão da contradição entre necessidade e
possibilidade, entre o individual e o social, entre o econômico e o moral, entre o natural
e o moral, entre a inteligência e a vontade, entre o instinto e o racional. Todas essas
incongruências são oriundas do fato de que o Homem não é um ser pronto,
determinado, e, sim, um ser inacabado, que precisa realizar-se, e para isso necessita
realizar suas contradições que o compõem primeiramente.
Segundo Valls (1997, p. 60), Kierkegaard afirmava, ao contrário dos gregos,
que o homem pode conhecer o bem, porém, preferir o mal, assim, a liberdade deve
ser a consciência da possibilidade de optar pelo mal, mas, preferir deliberar pelo bem,
como uma opção voluntária, como uma decisão racional. Daí deriva o sentimento de
angústia do ser humano, ocasionado pela consciência que o homem possui de poder
e ter que optar.
A ética grega buscava o belo e o bom, uma busca pelo prazer. A ética medieval
baseava-se no comportamento religioso, que eram orientados pelos mandamentos e
pelas autoridades religiosas. Ao mesmo tempo em que, existiam outros códigos de
ética paralelos, como por exemplo, o código dos cavaleiros. Já no Renascimento e na
Idade Moderna, com o surgimento da imprensa, com a difusão cultural, com a
emergência da burguesia, etc, surge também uma nova perspectiva sobre a moral e a
ética, nos âmbitos individual, social e estatal. Surge, então, uma inquietação com
relação a autonomia moral dos indivíduos, que devem buscar agir segundo sua razão
natural. Pois que, a natureza nos fez livre, porém, não determinou nossa maneira de
agir. Segundo Valls (1997, p. 66), Hegel acreditava que todo agir é político, até mesmo
e sobretudo o agir ético.
Na segunda metade do século XX, a questão do comportamento ético passa a
ser discutida, principalmente com relação ao discurso. Um caminho para isso foi a
crítica da ideologia, que busca descobrir, por traz dos discursos, os reais interesses
materiais, econômicos e de dominação política, que mascaram-se como interesses
éticos e universais, mas na realidade são interesses hipócritas e particulares.
Atualmente a ética reduziu-se ao privado. As virtudes éticas eram relativas ao
universal, eram políticas, sociais, ao bem comum. A ética hoje ficou reduzida ao
particular, ao privado. Kant, segundo Valls (1997, p. 70), coloca como centro da
preocupação moral, a consciência moral do indivíduo. Já Hegel, segundo o mesmo
autor, enfatiza a esfera da eticidade ou da vida ética, que se encontra nas instituições
93
históricas como a família, a sociedade civil e o Estado. Seriam estes três momentos da
eticidade onde encontram-se os problemas éticos.
Algumas questões acerca da família seriam sobre o amor, a fidelidade, as
novas formas de relacionamento, a vida celibatária, o homossexualismo, o
relacionamento dos filhos com os pais, a escola, os meios de comunicação na vida
cotidiana dos filhos, os direitos e deveres dos pais e dos filhos, a emancipação
feminina, dentre outros.
Sobre a sociedade civil, podemos elencar: a questão da propriedade privada
concentrada nas mãos de poucos, o desemprego, o trabalho escravo, os salários de
fome, o analfabetismo, o acesso diferencial aos estudos, dentre outros. A ética
contemporânea preocupa-se com o julgamento do sistema econômico como um todo.
A grande questão é a concentração da propriedade. A propriedade particular,
atualmente, é encarada como extensão da personalidade, do corpo humano, como
uma forma de ampliar a segurança pessoal e de afirmar sua autodeterminação sobre
as coisas do mundo.
Acerca do Estado, as questões éticas são diversificadas e intricadas. O
indivíduo só é livre se é pertencente como cidadão de um Estado livre e de direitos. Os
direitos, a divisão de poderes, as leis, a constituição, as eleições, são exatamente para
que abusos sejam evitados em prol de uma verdadeira ética. Porém, uma questão é
muito discutida com relação ao Estado. Este seria uma instituição que realmente
funciona de acordo com os interesses universais, acima das classes e interesses
privados, ou, é um aparelho dominado pelas classes dominantes que é utilizado como
instrumento de dominação e exploração daqueles que não fazem parte do grupo dos
privilegiados.
Cada vez mais as formas de exploração e dominação aparecem de maneira
muito sutil, nas relações entre patrão e operário, centro-periferia, através da
exploração econômica pautada em uma legislação trabalhista, dentre outros. Ainda
hoje encontramos formas políticas ditatoriais, totalitárias, autoritárias, que pautadas na
força, mostram bem seu caráter nada ético. Atualmente, existe o grande problema da
massificação, onde o indivíduo se desvaloriza, tornando-se através dos meios de
comunicação, cada vez mais passivo, perdendo assim sua voz, sua expressão, sua
força de mobilização, ocorrendo a despolitização das massas. Infelizmente,
atualmente, os meios de comunicação não se colocam a serviço da democracia,
tornando-se meios de manipulação e controle de massa, pois que a informação é uma
forma de poder. Os meios de comunicação atuais não favorecem o surgimento de uma
consciência eticamente mais crítica. Avigoram a indiferença, o sentimento de
impotência do expectador, a transformação de fatos importantes em banalidades.
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Segundo Hegel, (Hegel, apud Oliveira, 1993, p.197), vivemos em uma sociedade em
que permanentemente são gerados mecanismos geradores de dominação.
Se a habilidade técnica substitui com facilidade o instinto em tudo o que se
refere à satisfação das necessidades e, em geral, à adaptação, ela não basta para
permitir que os homens se entendam e administrem as cidades. Deve-se levar aos
homens o sentimento da honra e do direito para solucionar essa questão. Devemos
assumir a nossa vida de uma maneira mais ética, portanto, mais consciente, crítica,
mais livre e mais humana.
2.5. Ética e Indiferença
Para este trabalho entender-se-á por indiferença a apatia, o descaso, a falta de
preocupação com o outro, um afastamento. Ela corrompe as emoções e ações éticas.
Em nossa sociedade urbana a indiferença tornou-se corriqueira, já que ampliou-se o
consumismo, o egoísmo e o individualismo. Na política também cresce, já que a
sociedade não participa ativamente encontrando-se em uma profunda apatia.
Ela reflete com clareza a questão do Ter em detrimento do Ser. Ter sendo
entendido como o ato de possuir algo, dominar, controlar a situação. Muito valorizado
nos dias de hoje na sociedade de consumo capitalista, onde, muitas vezes, não se
está de acordo com os princípios éticos e morais. E o Ser como sendo a essência do
homem. É o que há de mais profundo no ser humano, é a existência.
Porém, de fato a indiferença é a grande marca de nossa época, em que o
sentimento de acomodação é tão profundo que aceitamos sem reclamar uma gama de
fatos e em outras épocas seriam o estopim de reclamações e revoluções. Instala-se a
impressão de que a maioria da população concorda com o status quo, e que,
satisfeita, não deseja altera-lo. Constantemente, altera-se a fisionomia, mas não o fato
em si. Este fato é muito claro na política brasileira, onde observamos uma contínua
sucessão de políticos, partidos e políticas, que possuem os mesmo objetivos e
resultados.
A indiferença reflete as necessidades do capitalismo, onde a busca pelo lucro
transcende qualquer tipo de pensamento altruísta. Onde o egoísmo reflete os
interesses particulares, destruindo os interesses coletivos. A indiferença cria uma
sensação de exterioridade, onde tudo e todos que estão fora do indivíduo são
estranhos, criando assim a angústia de nossa época. As pessoas na busca de
resolução para esta angústia, recorrem ao consumo e às superficialidades.
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A indiferença é um fator que limita a liberdade, a razão, a moral e a
democracia. E tornou-se o principal problema ético da cidade.
96
CAPÍTULO 3
A CRÍTICA DA ATUAL ÉTICA DO URBANO
O problema ético da cidade vem acompanhado da sua sujeição aos ditames e
à ideologia mercantil de que tudo é mercadoria, a partir da própria cidade.
3.1. Vende-se uma cidade: o exemplo da city marketing
Uma cidade é muito mais complexa que qualquer outro tipo de mercadoria,
então o que se vende como uma cidade? Cada cidade se adequaria a uma
necessidade do mercado mundial, e, cada uma delas teria assim seu próprio slogan,
ou seja, uma seria mais relacionada ao turismo, outra ao mercado financeiro, ou ao
mercado cultural, e assim por diante. Daí, cada cidade ter seu próprio slogan, como
por exemplo, “Rio cidade maravilhosa”, “Curitiba, capital ecológica”, “Curitiba, a capital
dos ligeirinhos”, “Barcelona, a melhor loja do mundo”, dentre outros (Sánchez, 2003).
O uso do espaço é o que faz com que ele seja produtivo e valorizado, pois todo
ambiente da cidade, tanto construído, quanto natural, possui uma ocupação política
intencional pelo Estado e pela sociedade. Inclusive aqueles denominados “vazios”,
que na verdade estão abarrotados de intencionalidade.
O ambiente urbano como um todo, incluindo a natureza, transforma-se em
espaços políticos das estratégias de ocupação e expansão da cidade. Todos os
espaços da cidade possuem valores que fragmentam e hierarquizam funcionalmente
seu território. Este é um processo sócio-espacial, pois, o espaço da cidade como
mercadoria é submisso à troca e à especulação, deslocando a população
diferencialmente, criando assim, uma morfologia da cidade que passa a ser definida e
valorizada diferencialmente (Penna, 2002).
É o caso da city-marketing, como observa Sánchez (2003): “O objetivo do city
marketing consiste na manipulação de padrões comportamentais desses públicos
seletos, de modo a interferir nas decisões locacionais das empresas, nas decisões de
consumo ou nas decisões relativas a destinos de viagens”.
97
Então, o que é almejado, é a construção de um ambiente de negócios favorável
não apenas para a produção, mas também para a atração de consumidores externos
e aumento do consumo interno.
As cidades mercadorias têm como características principais: a construção e a
modernização de infra-estruturas, o estabelecimento de distritos empresariais e
financeiros associados a estações de telecomunicações, a criação de espaços
residenciais de alto padrão ampliando o processo de gentrificação, a produção de
novas centralidades e a renovação de áreas centrais.
Este é o receituário muito utilizado atualmente por todas as cidades que
candidatam-se ao modelo city marketing.
Para muitos o crescimento econômico e social de uma cidade consiste em
apenas melhorar as infra-estruturas, fazer obras de remodelamento e embelezamento,
esquecendo-se dos custos sociais e ambientais e do contexto mais amplos que tais
melhoramentos devem ser inseridos. Este crescimento tem como base de sustentação
a propaganda e o marketing. De acordo com Souza, 2003, “Um desenvolvimento
urbano autêntico, sem aspas, não se confunde com uma simples expansão do tecido
urbano e a crescente complexidade desde, na esteira do crescimento econômico e da
modernização tecnológica”.
Esquecem-se dos problemas reais existentes, as contradições sociais, e, que o
desenvolvimento que mais importa para grande parte dos cidadãos é o sócioeconômico. Para tal é preciso considerar também o sistema político, os valores e
padrões culturais e a organização social, pois para aqueles que não pertencem à elite
econômica, não basta apenas o desenvolvimento econômico.
3.2. A Cidade Chamada shopping center
Outro típico exemplo de projetos para estimular o consumo de produtos,
imagens e espaços na cidade, é a proliferação dos Shoppings Centers. Os Shoppings
Centers multiplicaram-se pelas cidades, foram também distribuídos geograficamente
com o intuito de reduzir a centralidade do Centro da cidade e de sub-centros locais.
Eles passaram a ser uma bela opção, principalmente, para a classe média que
buscava diversão com beleza e segurança, bem no estilo do fetiche da mercadoria de
Marx.
Os Shoppings Centers são o grande símbolo do novo design (Bienenstein,
2002). Cidades dentro das cidades, os Shoppings se originaram nos Estados Unidos,
relacionados ao surgimento e a expansão dos subúrbios e ao advento do automóvel.
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No Brasil, surgem na década de 1950/60, quando uma dinâmica de acumulação
verdadeiramente capitalista se estabeleceu no país, com a intensa urbanização da
economia e da população. Seu surgimento determinou novos padrões de sociabilidade
urbana, criando além do objeto do consumo, novos modos de consumir, ou seja,
formando um novo tipo de consumidor.
Com ele a cidade deixa de ser um cenário de encontro, de convivência,
transferido para o âmbito interno dos Shoppings Centers. De acordo com a lógica do
consumo, os espaços públicos do encontro são reinventados como espaços privados,
onde o lazer, a diversão, torna-se sinônimo de consumo.
Assim, o Shopping Center insere-se e recria, cada vez mais, o cotidiano da
cidade, através das técnicas da propaganda e marketing e da incorporação das
funções mais diversas em seus espaços. Este processo de incorporação vai provocar
um tipo de reestetização dos lugares em torno dos seus espaços. É uma tendência
que está diretamente relacionada aos interesses do capital, ampliando suas
possibilidades de acumulação através de uma nova forma de manipulação da
paisagem e da estetização dos espaços (Bienenstein, 2002).
Os novos espaços, remodelizados, tornam-se homogêneos, pois tem como
base os valores e hábitos culturais dominantes na escala mundo. É importante
enfatizar, que estes valores dominantes não são os valores culturais da maioria da
população, e sim os valores de parte da população mundial que detêm a hegemonia.
Essa tendência tem levado a uma homogeneização, uma pasteurização, dos espaços.
Portanto, nos espaços remodelizados das cidades, estando em Tóquio, Londres, Nova
York ou São Paulo, que teremos os mesmos tipos de serviços, as mesmas lojas, a
paisagem muito semelhante e os hábitos e valores também (Sánchez, 2003).
A questão é que as diferenças espaciais e temporais são suprimidas, abafadas,
negadas, com a inclusão ou exclusão de determinado grupo social. Portanto, a cidade
passa a ser dividida em áreas que tem acesso permitido ou negado para um grupo de
cidadãos. Isto nos faz questionar que tipo de cidadania é esta, daí nossa discussão
anterior sobre como o cidadão tornou-se um usuário.
Também é interessante lembrarmos que o espaço é um constructo da história.
Portanto, um espaço criado. Remodelado não possui vínculo histórico. Esses novos
espaços criados para o consumo não têm identidade histórica, vínculos sociais
próprios, portanto, para que sejam sustentáveis, apropriam-se de um arraigamento
social preexistente e o reproduzem, porém de maneira superficial, como um pastiche.
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3.3. A Cidade e o Fetiche
City-marketing e shoppings centers estão na linha da cidade como espaço do
consumo. E com imprescindível ajuda da mídia.
A propaganda e a comercialização criam e reforçam o fetiche. A aceleração do
tempo de giro na produção teria sido inútil sem a redução do tempo de giro no
consumo. O consumismo torna isto possível, em uma época onde tudo é instável,
fugaz, fugidio, onde celebra-se a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a
mercadificação das formas culturais (Harvey, 2004).
A aceleração do consumo só foi possível através de diversas modificações,
sendo duas de especial importância: a mobilização da moda em mercados de massa e
a passagem do consumo de bens para o consumo de serviços. Dentre as
conseqüências dessa aceleração generalizada podemos citar algumas, como a
acentuação da volatilidade e da efemeridade, tanto em relação à moda, aos produtos,
às técnicas de produção e aos processos de trabalho, quanto em relação às idéias,
ideologias, valores e práticas. Com isso, temos a propagação da sociedade do
descarte, onde tudo se torna descartável, instantâneo, traduzindo-se, principalmente
nas grandes cidades, no problema do lixo e dos resíduos urbanos. O mesmo ocorre
com relação aos valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego às coisas,
lugares, pessoas, modos de ser e agir, no que tudo se torna transitório, descartável,
efêmero. Outra conseqüência a que poderíamos nos reportar é a manipulação do
gosto e da opinião através da construção de signos e imagens por meio da publicidade
e das imagens da mídia, produzindo uma cultura do consumismo. As imagens tornamse mercadorias, processo este que produz a estetização da mercadoria, daí sua
efemeridade, que é essencial à pós-modernidade (Harvey, 2004).
O capital simbólico torna-se essencial para a reprodução da ordem e da
desordem e para a continuidade da dominação, fazendo-se isto de maneira oculta,
discreta, através dos efeitos ideológicos, sendo sustentado pela moda, que forma
gostos, desejos, e mesmo, formas de agir e de pensar.
A natureza também passa a ser uma estratégia de “marketing”, ocorrendo o
consumo da natureza, estimulado pelo desejo de morar próximo às áreas verdes,
distante da agitação e do caos urbano. Portanto, ao serem enlaçados pelo mercado, o
espaço urbano e a natureza assimilam as leis do valor e da mercadoria. Sendo assim,
os ambientes naturais na cidade passam a ser encarados como valor de uso e como
recurso para a produção de um novo espaço (Penna, 2002).
A tão clamada qualidade de vida, baseada na beleza do verde da paisagem, do
ar puro, da água, entre outros valores que espacializam-se, passa a ser um trunfo para
100
a valorização imobiliária de determinadas áreas brindadas com essas características.
Daí deriva o paradoxo entre consumo do meio ambiente e sua degradação. Muitas
vezes, observa-se a substituição da vegetação nativa pelo paisagismo estético
(Penna, 2002).
Grandes eventos culturais, festas tradicionais, feiras, exposições, são
organizados por empresas em parceria com o governo municipal, para estimular o
consumo da cidade, como exemplo, o caso de Barcelona nos Jogos Olímpicos em
1992.
3.4. Ética e Política na Cidade Mercantilizada
Ideologia do mercado e política deram as mãos na definição da ética urbana
atual. Uma sustenta a outra.
Existe ética na política? Quando a conduta da cidade é definida como uma
simples organização de mercado, a idéia de uma competência técnica é contrária a
toda reflexão ética. É a profissionalização da política e o fim das ideologias. O político
torna-se apenas uma estratégia de poder mercantil. E isso reforça à máxima de que os
problemas da cidade não podem ser discutidos separadamente da análise ética ou
moral (RUSS, 1999, p. 165).
A relação entre ética e política sempre foi de conflito. Mas, como se constitui a
política moderna e qual é a sua relação com a ética? Nas sociedades tradicionais, os
valores e normas que determinavam o comportamento do indivíduo na esfera
econômica, política, dentre outras, eram os mesmos. Com a emergência da sociedade
moderna houve uma ruptura entre moral e política. A racionalização dos processos
envolvendo todas as esferas da vida é a marca do período moderno. Isto levou a falta
de preocupação ética, já que a maior preocupação é com a eficácia dos meios para
atingir os objetivos (SUNG, 1995, p. 71-72).
O lucro, preocupação maior das empresas capitalistas, consolida a
racionalidade, assegurada também pelas normas jurídicas e administrativas do
Estado. A ética moral dá lugar à ética política. Segundo Maquiavel (apud SUNG, 1995,
p. 73), a primeira preocupa-se com os fins e a segunda com os meios. Ou seja, não há
uma preocupação com os propósitos e intenções dos governantes, e sim, com as
ações que os manterão no poder e que gerarão sua ascensão política. Raramente, na
política moderna leva-se em conta os problemas morais como critério de decisão, pois
ela pretende-se amoral. Ou seja, deseja organizar-se através de objetivos de decisão
e não por valores (SUNG, 1995, p. 72-74).
101
Na modernidade ocorreu a separação entre público e privado, que gerou um
avanço na democratização da política. Atualmente, há um maior acesso às
informações possibilitando uma maior participação da sociedade. Porém, o excesso de
racionalização do Estado, gerou uma excessiva burocratização administrativa. Isso
gerou também a transformação de questões políticas em questões técnicas. Este fato
afastou grande parte da população das contendas acerca das políticas públicas. A
sociedade passa então a ser afastada dos processos decisórios (SUNG, 1995, p. 7475).
Na tentativa de corrigir os excessos realizados pela racionalização da política,
os trabalhadores lutam por uma maior democratização do Estado, principalmente a
partir do século XIX, através da criação de sindicatos, partidos políticos, dentre outras
formas. Por causa da tecnificação da política ocorre o desinteresse da população em
participar da vida política, nas poucas brechas de participação popular. O Estado,
hoje, é direcionado a atender interesses privados e políticos. Os cidadãos têm sua
participação limitada na esfera pública, encontrando o desinteresse e o individualismo.
Em contrapartida os políticos, em sua maioria, visam apenas interesses pessoais pelo
poder e enriquecimento material (SUNG, 1995, p. 76-78).
Toda vez que os cidadãos percebem que a gestão política é anônima, emerge
a necessidade de um fundamento ético. Hoje isto ocorre, pois a política passa por um
profundo descrédito. Resgata-se a busca pela reunificação moral, ética e política, já
observada em Aristóteles que afirmava que a ciência da cidade e da sociedade são
diretamente ligadas a moral. Quais princípios éticos poderão guiar nossas
democracias? Atualmente, com o desmoronamento do socialismo, do comunismo e do
marxismo, e a consolidação do capitalismo, emergem as incertezas. Isso torna
premente entender a democracia e os direitos do homem sob a luz da ética, unindo
novamente ética e política (RUSS, 1999, p. 166-167).
A crítica ética tem por objetivo mostrar como a política se afastou dos
princípios morais e dos seus próprios princípios. Não existe instituição neutra, porém,
o Estado deve servir ao bem comum. Para isso deve-se exigir a moralização da coisa
pública. A ética na política tem por objetivo corrigir os excessos de racionalização do
sistema através da participação da sociedade civil. O sistema político é um sistema de
articulação de interesses, e conseqüentemente, os conflitos são inúmeros. Os
movimentos sociais servem para corrigir o sistema político. As regras do sistema
político devem ser alteradas, pois o Estado existe para atender a sociedade civil. As
mudanças devem ser no sentido de ampliar a participação da sociedade na política
(SUNG, 1995, p. 79-81).
102
O modelo para toda a atividade ética é a excelência. Ela que nos mostra como
uma ação deve ser realizada para alcançarmos um bem. É ela que possibilita que
possamos julgar uma ação. Possibilita a analise das ações de maneira qualitativa.
Já a escolha, segundo CHALITA (2003, p. 73), revela o caráter de uma pessoa,
ao manifestar claramente os julgamentos interiores individuais, suas opiniões, seus
conceitos e preconceitos. Mas, para este tipo de análise, apenas as escolhas
voluntárias é que são válidas.
As escolhas são oriundas da vontade. A vontade é entendida como o conjunto
de impulsos interiores e de nossa capacidade racional, que nos permite mentalizar um
objetivo almejado e planejar as ações que nos encaminharão a sua conquista
(CHALITA, 2003, p. 74).
A vontade de uma pessoa está relacionada ao tipo de vida, à consciência de si
própria, de sua realidade vivida e das conseqüências possíveis de seus atos. Suas
ações podem ser voluntárias, involuntárias e não voluntárias. A ação não voluntária é
aquela realizada por uma pessoa que não sabe o que está fazendo, não conhecendo
assim, as conseqüências de seus atos. Não pode, portanto, ser responsabilizado pelo
que faz por não poder se arrepender ou sentir satisfação pelo que o sua ação
ocasionou. Nas ações involuntárias, a pessoa tem consciência das conseqüências de
suas ações, mas é obrigada a executá-las. Ou então, quando tem o objetivo de
realizar uma ação e acidentalmente realiza outra. Sendo assim, a pessoa não é a
autora da ação. Já nas ações voluntárias, a pessoa que as realizam possui plena
consciência de todo o contexto, inclusive das conseqüências de suas ações. Além do
que, não é obrigado a executar a ação (CHALITA, 2003, p. 74-77).
Escolha é algo diferente de ação voluntária, embora seja voluntária. Para
realizar escolhas a pessoa deve estar inserida na comunidade política, como indivíduo
independente e livre. O desejo não determina uma escolha, pois visa apenas a
obtenção do prazer e suas ações resultantes terão pouca ou nenhuma liberdade. A
paixão também não é escolha, já que não é um produto da racionalidade humana,
nem de um julgamento ético. A escolha não é aspiração, pois se relaciona com os
meios, enquanto a última com as finalidades. A aspiração pode ser um sonho,
portanto, pode ou não ser alcançada pelo esforço particular. A escolha também não é
opinião, pois podemos ter opiniões sobre temas que nunca teremos alcance, mas que
basta que possamos raciocinar sobre eles. Já as escolhas estão diretamente ligadas a
coisas que podemos realizar, que podemos fazer, relacionando-se com o nosso
comportamento e com nossas atitudes em sociedade (CHALITA, 2003, p. 78-79).
As escolhas condicionam o modo como os projetos são desenvolvidos, daí a
sua importância com relação à ética. Elas devem ser independentes da opinião alheia,
103
já que cada pessoa da sociedade deve ter discernimento próprio sobre a maneira de
agir. Cada pessoa deve agir conscientemente. Demanda o uso da razão e do
pensamento (CHALITA, 2003, p. 80).
A escolha é sempre premeditada, pois é realizada a partir de ponderações e
julgamentos racionais. Ou seja, utiliza o intelecto. Para realizar uma escolha ética é
preciso deliberar. A finalidade da ética é o bem, portanto, ao fazer escolhas devemos
deliberar sobre os meios. A deliberação e a escolha possuem relação com o mundo
social real, já que sempre estão atreladas a coisas que podemos realizar. Este poder
que cada pessoa possui de realizar algo, tem relação e é limitado pelo contexto e
pelas pessoas do nosso dia-a-dia (CHALITA, 2003, p. 81).
A escolha necessita, para que se realize, da pessoa. Esta é a origem da
atividade a ser realizada. A escolha relaciona-se com a vontade da pessoa, perante
uma finalidade determinada. As paixões e o desejo não possuem relação com a
escolha. A pessoa que faz a escolha possui consciência de todas as suas etapas. Ela
é racional, utiliza o intelecto. O que não significa frieza, pois deve também ter
harmonia entre emoção e razão. Para determinar os meios corretos para atingir os
objetivos, a pessoa deve usar suas capacidades mais elevadas para pesquisar a
realidade e assim, chegar a um juízo de valor (CHALITA, 2003, p. 82-83).
Como podemos reconhecer o bem verdadeiro? Já que cada pessoa possui seu
julgamento próprio. Falemos pois, de um bem aparente, ou seja, aquilo que
aparentemente é bom, segundo nosso julgamento. Sendo assim, ele pode não
corresponder ao bem verdadeiro, já que as pessoas cometem erros de julgamento.
Para evitar os erros as pessoas devem estar sempre relacionando-se sinceramente
com outras pessoas da comunidade. Isso faz com que fiquemos atentos aos valores
da sociedade, os interesses sociais mais abrangentes, como a justiça e a proteção aos
valores comunitários. Somente assim, com essa atenção, é que podemos agir
eticamente. Não devemos nos restringir ao nosso julgamento individual, pois podemos
incorrer no erro. Portanto, dependemos do outro para agir eticamente. Precisamos de
vários pontos de vista. De princípios sociais sólidos e de leis. Ter um comportamento
ético significa realizar boas escolhas. A ética necessita da liberdade de pensamento
de cada pessoa convivendo com uma sociedade que se baseia nos mais altos valores
de justiça, tolerância e verdade. Sendo assim, todo indivíduo precisa ter a
responsabilidade por seus atos, já que a escolha é sempre um processo pessoal que
deve atender aos princípios da excelência moral (CHALITA, 2003, p. 84-85).
A escolha sempre depende do saber da pessoa. Por isso, esta deve cultivar o
auto-conhecimento e adquirir e manter bons hábitos. O auto-conhecimento faz com
que a vontade se exercite com mais liberdade. Devemos distinguir a vontade
104
consciente daquela condicionada por nosso corpo, isso nos permite realizar escolhas
no campo da ética. Mas, também não podemos levar em conta apenas a
racionalidade, pois nos tornaríamos serem insensíveis e isso nos impediria de nos
relacionarmos com o mundo (CHALITA, 2003, p. 86-87).
O desejo existe, mas deve ser orientado pela escolha. A escolha reflete a
humanidade da pessoa. O norte, a diretriz da escolha é a aspiração, que é a meta da
vida (CHALITA, 2003, p. 88-89). Como por exemplo, a aspiração e as escolhas na
cidade para a formação de cidades mais justas, mais igualitárias, que não aceitem
conviver com o preconceito e a indiferença.
A cidade, basicamente, possui diferentes papéis, ao longo do tempo, e diversas
finalidades, que se superpõem demarcando territórios e configurando seus usos. E
guarda, também, sentidos que lhes são essenciais desde sua origem, que estão na
base do discurso fundante e do desejo de cidade. Segundo Antolini e Bonello14
(Antolini e Bonello, apud Oliveira, 1999), são três estes sentidos: (1) o de
agrupamento, desejo de viver em conjunto; (2) o de proteção, lugar em que os
indivíduos sintam-se seguros e protegidos da natureza e de outros homens; e (3) o de
interdição, para sustentar os dois sentidos anteriores deve-se ter a lei e a ordem.
Todavia, determinadas cidades, atualmente, passam por uma crise desse
modelo cívico-territorial, provocada por sua inserção na globalização e devido à
orientação que a urbanização atual possui. Estas alterações provocam a fragmentação
da cidade, descaracterizando seu projeto urbano inicial e seu discurso de origem,
levando à necessidade da reconstrução do seu discurso original e à criação de uma
nova ética pautada no ter.
Portanto, essas modificações na política urbana passam por objetivar organizar
a cidade, reconstruir seu discurso original e encaixá-la ao contexto da globalização,
levando a uma aparente melhoria de vida, ampliação do processo de segregação
social e enfraquecimento da cidadania, ou seja, do nexo político entre habitantes e
território da cidade, mas acabam por valorizar mais o ter do que o ser, configurando
assim, uma ética urbana que privilegia o cidadão possuidor de bens e de dinheiro.
A sociedade burguesa separou o indivíduo do cidadão, sendo assim, separou o
corpo político – o Estado – da sociedade civil.
Hoje, tornou-se o grande desafio a convivência de identidades parciais
exclusivas, e não mais a produção das condições de igualdade. Para se viver na
cidade devem ser exercitados a civilidade, o autocontrole e a autodisciplina. Então,
14
ANTOLINI, André & BONELLO, Yves-Henri (1994). Lês Villes du désir. Paris: Éditions Galilée.
105
para esta cidade, ser cidadão é saber comportar-se nos espaços públicos, saber agir,
saber falar, ter as atitudes corretas e discretas. Tudo isso hoje se desfaz.
Segundo Oliveira (1999), “O cidadão de hoje (...) nada mais é do que a
‘civilização’ do indivíduo ou sua normatização político-social, que se apresenta
geograficamente diferenciada, aqui e ali, enquanto possibilidade histórica”.
No Brasil, a cidadania nunca se completou de fato como um projeto de
sociedade. Ser cidadão em nosso país, ou seja, ser visto como um igual, é algo visto
como desvantajoso, pois o vantajoso aqui é ser tratado como especial, diferente, mais
importante que os demais cidadãos, numa ética derivada do patrimonialismo, do
clientelismo e da corrupção. Isso leva a uma continuidade de um sistema social
extremamente perverso e injusto, pois as pessoas não obtêm seus direitos e possuem
seus deveres como cidadãos de forma equânime.
A nacionalidade no Brasil foi incutida pelo Estado na população, ou seja, o
dever cívico não é consciente e sim imposto pelo Estado. O percurso da cidadania no
Brasil ocorreu de maneira inversa à que a Inglaterra, por exemplo, experimentou, ou
seja, os direitos sociais precederam os direitos sociais e políticos. Isto devido a
interesses de regulação do trabalho e de disciplinarização do trabalhador urbano.
Entretanto, o Estado tem perdido a função de regulador e impulsionador das
relações econômicas e sociais que tinha na época desenvolvimentista. É o mercado
que passa a regular a cidade desde a onda neoliberal, com uma ideologia de
democracia de mercado. As desigualdades e a exclusão social, que já eram grandes,
tornaram-se ainda maiores.
De acordo com Oliveira (1999), “(...) os limites da cidadania no Brasil
encontram-se postos, hoje, sobretudo pela larga exclusão social de seu povo, pelo
recuo de direitos sociais conquistados e pelo desrespeito histórico e estrutural em
relação aos direitos humanos no país”.
Somos afinal, cidadãos ou consumidores de produtos e imagens? O
individualismo cresce cada vez mais em nossa sociedade, sendo que o consumismo
exacerbado alimenta-se do individualismo e vice-versa, num processo dialético.
De acordo com Leca15 (Leca, apud Oliveira, 1999), “o individualismo corrompe
a cidadania, destruindo a vida em comum e os laços comunitários. ‘O individualismo
atomiza, fragmenta e corrói todo grupo social, e transforma o indivíduo em juiz
soberano de tudo’, conjugando-se na economia capitalista com os interesses privados
da exploração e do mercado”.
15
LECA, Jean. Individualisme et citoyenneté. In: BIRNBAUM, Pierre & LECA, Jean (dir.). Sur
L’Individualisme. 2ª ed., Paris: Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1991, p. 159 –
209.
106
A cidade do city marketing enfatiza o consumo. E o consumo aliena o cidadão,
que passa a aceitar ser chamado de usuário. O consumo exacerbado destrói a
personalidade, fazendo com que o homem não se reconheça como distinto, e assim,
acabe não respeitando a distinção entre todos. Finda-se assim, a ética pautada no ser.
Por um lado, a expansão do consumo e de sua ideologia no mundo, tem uma
vertente democrática, pois possibilita a um maior número de pessoas o acesso aos
bens e serviços, mas, por outro lado, tem aumentado a concentração da riqueza, a
exclusão social e a violência, nas cidades.
Ao mesmo tempo em que se fortalece a idéia de um cidadão consumidor,
usuário, individuo autônomo, para além das fronteiras da cidade, um consumidor do
mercado mundial, enfraquece-se a visão do cidadão-sujeito, que atua como força
política, com conexão com o território definido por uma comunidade ou pelo Estadonação. A ética do ter é cada vez mais valorizada, em detrimento da ética do ser, isso
traz conseqüências prejudiciais a toda a sociedade.
Toda mercadoria precisa de uma imagem-síntese que é produzida pelo
marketing. O mesmo ocorrerá nas cidades, que ao ser reduzida a uma mercadoria
também passa a precisar de imagens-síntese para ser vendida. Isto é uma violência
simbólica para as cidades, pois ignora-se as múltiplas formas de ser e viver na cidade
e não aceita-se a existência da heterogeneidade, da diversidade. Ao invés da
identidade, tem-se o consenso.
Delineia-se um processo de construção e de legitimação de novos paradigmas,
onde a materialização e a simbolização têm um papel fundamental. Toda esta
renovação urbana tem por base uma revolução simbólica. Essa revolução tem por
objetivo legitimar e avigorar, no âmbito político, os projetos de cidade. Muitas vezes,
as construções discursivas antecedem as construções materiais e as decisões para
implementar as ações.
Em nossa sociedade atual “o insatisfatório se equilibra com o sedutor e não
estremece, não abala ideologias”. Daí deriva o sentido de acomodação. Se
estivéssemos em outra época essas insatisfações gerariam revoltas, conflitos, enfim,
as pessoas não deixariam de reagir. O egoísmo adaptou-se a lógica do capitalismo
(LINS, 2006, p.111-112).
Uma característica acentuada de nossa época é a indiferença. Vemos diante
de nossos olhos a corrupção, as injustiças sociais, nossa liberdade sendo tolhida, a
imensa desigualdade sócio-espacial, e, não agimos, ficamos inertes, sem tomar
nenhum tipo de atitude. A elite finge não ver todos esses problemas existentes.
Quando vemos uma criança pedindo esmola na rua e fechamos o vidro do carro. Ou
quando estamos andando pela rua e nos deparamos com pessoas deitadas no chão e
107
procuramos desviar, mudar nosso trajeto, não olhar, fingir que eles não estão ali, que
eles não existem. Ou então, quando restringimos nossos trajetos a bairros e ruas da
cidade nas quais sabemos que não passaremos por residências menos favorecidas.
Podemos perceber a indiferença também no sentido de que sabemos que a
maioria dos políticos são corruptos, mas não fazemos nada para mudar esta situação.
No momento do voto, mudamos o rosto, mas não a essência. Não nos organizamos
para realizar manifestações e revoluções. Aceitamos os fatos com um profundo
sentimento de acomodação, como se não fossemos capazes de alterar a situação.
Também na vida cotidiana isso se reflete quando buscamos não nos relacionar
com o outro, com o diferente. Quando olhamos para o lado e vemos o diferente temos
a sensação de receio, o que gera angústia e insegurança. Os interesses particulares
sempre estão na frente dos interesses coletivos. Esse tipo de atitude não pode gerar
bons frutos na vida em sociedade. Isso é a indiferença que corrompe a cidade e a vida
social, que limita a liberdade e não respeita a alteridade.
Quando modifica-se o estilo de vida no cotidiano das grandes cidades se
enfraquece o convívio, ou seja, as regras do convívio em sociedade começam a ser
rompidas e acompanhando este processo podemos verificar a proliferação de uma
incivilidade. Então, estamos verificando como fator mais grave derivado deste
processo de modificação do estilo de vida nas grandes cidades, um golpe no modelo
de cidadania e de civilidade. Rompendo com um ideal de convivência urbana, produzse além de uma crise urbana evidente, uma crise ética e moral, explicitada pelos
conflitos que enlaçam a cidade.
Sempre neste processo de tentativa de legitimação de um discurso ocorrem
embates, pois este discurso impõe-se sobre vários outros existentes. Camuflada
nessa estética e nesse discurso, da nova ética, a cidade segue todavia possuindo
suas contradições, possuindo espaços e contra-espaços que vão de encontro à ordem
posta. Situações espaciais da (des) ordem, as pessoas nos contra-espaços não se
sujeitam às regras e normas impostas por não encontrarem identificação com as
mesmas, questionando-as, combatendo-as ou resistindo a elas, sendo denominados,
contra-espaços. Contradizendo-o, o contra-espaço possui uma relação dialética com o
espaço, e por aí também intervém no ordenamento do território, provocando (re)
ordenamentos, alterações no arranjo, realinhamento das configurações indicando que
a população excluída e dominada move-se para também possuir seu papel no
ordenamento do território (Moreira, 2002).
Limitando a alteridade e estimulando o egoísmo, as pessoas passam a buscar
conforto nas superficialidades e no consumo. O que vai ao encontro dos interesses do
capitalismo atual. Mas, a indiferença quando corrompe a alteridade, desestabiliza a
108
vida em sociedade gerando os mais variados problemas que temos hoje nas cidades,
como, a violência, a desigualdade sócio-espacial, a má distribuição da renda, a
especulação imobiliária, a corrupção, a perda da cidadania, a perda da liberdade.
É por isso que devemos fazer as nossas escolhas pautadas no combate à indiferença.
Devemos, para termos atitudes éticas, ter a responsabilidade de nossas escolhas, pois
só assim teremos liberdade. Nossas escolhas, realizadas com a consciência da
responsabilidade, devem levar em consideração a alteridade, ou seja, deve ter a
preocupação de respeitar e conviver com o outro. A busca por uma ética nas cidades
deve passar pelo rompimento da indiferença e pela busca, através de nossas
escolhas, da liberdade. Mas, somente somos livres se reconhecermos e respei
109
CONCLUSÃO: ÉTICA URBANA ATUAL, CRÍTICAS E CAMINHOS POSSÍVEIS
Existe ética nas cidades atuais? Se existe, que ética seria esta? Estas são
nossas grandes questões. Ao que parece o lucro é posto na frente da ética. Quando
isso ocorre surgem os mais variados problemas que vivenciamos atualmente em
nossas cidades.
A renovação pública e privada torna-se agressiva, destruindo construções
antigas e monumentos. Alguns bairros, algumas áreas, algumas obras são protegidas,
mas o restante de todo o tecido urbano não mais importa. E todas as ações justificamse no mito do progresso e na euforia de atrair novos investimentos, pessoas com
capital para injetar na cidade e de colocar a cidade na rota do mercado mundial de
cidades. Todas as obras de remodelização seguem o mesmo padrão: obras
grandiosas, bem localizadas, que são voltadas para o turismo e a atração de
investimentos. Em todas elas o povo não tem opinião, pois que é convencido pela
mídia que quem é contrário a esses projetos está contra a cidade e o progresso. Essa
corrida pela projeção mundial da cidade, muitas vezes, faz com que a ética na cidade
se altere em detrimento dos cidadãos com renda mais baixa.
Nesta cidade pós-moderna, o ter passa a ser mais valorizado que o ser. Uma
busca incessante por uma felicidade que é sinônimo de ter e não mais de ser. Onde a
busca pelo prazer individual é crescente, sem a preocupação com o outro, muito
menos com o coletivo. A distinção entre o somos e o temos é clara, sendo que, o que
temos é independente de nós mesmos. Porém, na relação entre sujeito e coisa
possuída, o ter pode ser transformado em ser, pois sujeito e objeto criam-se
mutuamente (Santos, 2002, p. 91). Porém, quando esvaziamos de importância o ser e
damos todo o sentido da vida e estima ao ter, surgem os problemas.
Os contrastes na cidade fazem com que as pessoas não se vejam como iguais,
isso rompe com a identidade coletiva da população auxiliando na desmobilização
política e no enfraquecimento dos sindicatos e movimentos populares. Este processo
suscita a fragilidade nas leis trabalhistas, que acaba por gerar baixos salários que não
correspondem com o custo de se morar numa grande cidade, insatisfação da
população e aumento da pobreza na cidade.
110
É a indiferença corrompendo a cidade. Ela faz com que busquemos não
enxergar o que estamos vendo e que nos incomoda. Ela destrói as estruturas sociais e
a alteridade. Uma cidade não pode prosperar sem alteridade, pois a base da cidade é
a convivência dos cidadãos. A convivência próspera depende do respeito ao outro, do
reconhecimento das diferenças. Mas, que esse reconhecimento das diferenças esteja
ligado ao respeito e ao convívio.
O aumento do desemprego, gerado pela mecanização, pela automação e pela
automatização, cria a hipertrofia do setor terciário, e, principalmente, do setor informal.
É a população carente, os cidadãos que na cidade atual não são reconhecidos como
tais, que busca meios de sobreviver diante da inserção das cidades na globalização,
onde a maior parte das atenções são despedidas com a população de classe média e
alta, residente na cidade ou visitante, o turista.
Como os movimentos populares e os sindicatos estão enfraquecidos, os
trabalhadores se desmobilizam politicamente, não reivindicando seus direitos e,
conseqüentemente, sendo mais explorados. Quando os interesses financeiros de
determinados atores, sobrepujam-se aos interesses sociais surgem inúmeros
problemas. A qualidade de vida da população pobre piora, o que gera o
descontentamento, que é um dos motivos em que a violência se infiltra. O processo de
favelização e periferização se amplia. Em nosso país a questão ainda é mais
complexa, pois envolve a corrupção. Aqueles que deveriam lutar pelos direitos dos
cidadãos e que deveriam zelar pelos recursos do país se envolvem em esquemas de
corrupção que dilapidam ainda mais os recursos do país e os direitos dos cidadãos. A
violência nas cidades brasileiras cresce assustadoramente.
A mídia passa a ter um papel fundamental nessa questão, pois que convence a
população em vários sentidos: os trabalhadores deixam de acreditar no seu poder de
mobilização; a população passa a crer nas políticas e decisões do governo se
constrangendo em questionar; o povo passa a desconfiar da polícia pois todos os
confrontos que ocorrem nas cidades e que geram vítimas, a mídia insinua que a
polícia é culpada. Enfim, uma série de distorções são criadas para atender aos
interesses de alguns atores e o conjunto da população é que é prejudicado. As
pessoas tornam-se cada vez mais indiferentes aos fatos, ao mesmo tempo em que
cresce o sentimento de impotência, como se o conjunto da sociedade não pudesse
realizar ações para melhorar a vida nas cidades.
É por isso que deve haver uma maior valorização do ser do que do ter. A ética
nas cidades, atualmente, é muito deturpada, pois aqueles que possuem maiores
riquezas são os mais favorecidos pelo poder público. E é exatamente o oposto que
deveria ocorrer. Isso porque valoriza-se mais o ter do que o ser, valoriza-se mais o
111
que o indivíduo possui e não o que ele é, cidadão igual a todos os outros. Os cidadãos
passam a ser encarados como consumidores de bens e serviços e não como
consumidores de direitos. Os investimentos nas cidades são mais dirigidos para as
áreas da população mais favorecida ou para a atração de turistas. Esquece-se que o
principal alvo das políticas públicas urbanas deveriam ser os cidadãos, e não, apenas
os consumidores de bens e serviços.
As cidades, ao longo do tempo e de acordo com os lugares, diferenciam-se e,
conseqüentemente, ocorre também grande alteração da forma como a ética é
entendida e praticada, ao longo do tempo.
Atualmente as pessoas não se preocupam mais tanto com as conseqüências
de suas escolhas para o outro. Isto ocorre por causa do individualismo exacerbado e
da crescente valorização do ter em detrimento do ser. É a ética do ter se delineando.
Uma ética deturpada, que na realidade, nada possui de ética.
Para
vivermos
em
sociedade
é
necessário
que
haja
normas
e
responsabilidades para que vivamos em convívio com o outro sem que
desrespeitemos ou que sejamos desrespeitados. Para que haja um convívio
harmônico. Quando essas normas e responsabilidades são deixadas de lado iniciamse inúmeros problemas.
As formas de exploração hoje, aparecem de maneira cada vez mais sutil,
subliminar, tênue, mascaradas pela ação da mídia. Observamos nas cidades atuais as
marcas dessa nova ética, que se reflete nas políticas públicas atuais. São as políticas
urbanas pós-modernas, pois, como falamos anteriormente, não existem cidades pósmodernas e sim políticas, obras ou partes das cidades que são pós-modernas. As
novas maneiras de intervir nas cidades buscam elaborar renovações, revitalizações,
remodelizações, com o objetivo de tornar a cidade mais bela e atrativa ao turista e aos
investidores, ao mesmo tempo em que, não há preocupação com a alteridade, a
parcela da população mais carente não é atendida em suas necessidades básicas e a
indiferença tende a crescer.
O conjunto das ações em cada momento da história cria espaços diferenciados
a partir de novos ordenamentos territoriais. Cria-se um planejamento urbano visando,
principalmente, o mercado e não o que deveriam ser os tópicos prementes de todo o
planejamento, ou seja, o bem-estar da população residente na cidade. É claro que, em
muitos casos, quando a cidade se lança no mercado mundial isso traz benefícios para
a população, como o aumento de capital circulando na cidade, e a ampliação do
consumo de bens e serviços. Porém, não se deve restringir as políticas públicas e o
planejamento urbano a isto, pois estes dois últimos devem ser mais abrangentes
englobando os interesses de toda a população.
112
Afinal, somos cidadãos ou consumidores de produtos e serviços? Como
cidadãos deveríamos ser consumidores também de direitos. Na cidade pós-moderna,
onde o individualismo é enaltecido, somos considerados consumidores de bens e
serviços. É a mercantilização do espaço urbano, concomitantemente, com a
mercantilização da cultura, da vida, dos hábitos, enfim, para sermos aceitos na cidade
pós-moderna, temos que nos adequar, nos adaptar às normas da mídia, ditados pela
moda.
Enfim, os governos das cidades atuais deveriam dar mais atenção à população
mais pobre, pois isso seria uma maneira de melhorar as condições de vida dessa
população. Essas seriam reais políticas redistributivas de renda que ampliariam a
justiça e a eqüidade social.
113
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FERNANDA SILVA SOARES A CIDADE E A ÉTICA DO TER E DO