161 DRAMATURGIA E EDUCAÇÃO: IMAGENS E REPRESENTAÇÕES DE MINAS Luiz Humberto Martins Arantes Universidade Federal de Uberlândia RESUMO Objetivos: Um dos modos legítimos para a construção da história do teatro e da educação teatral passa pelo estudo de sua historicidade e dos instrumentos utilizados no processo de construção do ensino de teatro. A pesquisa a respeito de textos teatrais é um destes legítimos caminhos. O dramaturgo brasileiro Jorge Andrade escreveu duas peças teatrais em que Minas Gerais aparece como espaço e tempo da narrativa. Esta proposta de comunicação pretende discutir a forma como o dramaturgo, ao escrever teatro, estava difundindo uma imagem de Minas Gerais. Portanto, tecendo representações que, atualmente, vem sendo muito utilizadas nas salas de aula e, conseqüentemente, formando opiniões de professores e alunos. Assim, pretende-se, com a presente comunicação, discutir momentos em que pensamento teatral apresenta-se como pensamento educacional. Objetiva-se ainda, entender Jorge Andrade como sendo um homem de fronteiras e que, além de dramaturgo, exerceu atividades de jornalista e também de professor e, neste caminho, sempre valorizando o caráter pedagógico de sua produção teatral. Periodização: Neste sentido, será importante discutir o momento em que os textos teatrais selecionados foram escritos – (Pedreira das Almas, 1957 e As Confrarias, 1968) –, como ainda a temporalidade que as narrativas representam, isto é, Minas Gerais do fim do século XVIII e meados do século XIX. Na primeira, Andrade explora a necessidade da liberdade de expressão, por ser escrita no fim da década de 1950, parece já prenunciar as perseguições que a ditadura militar iria implantar nos anos seguintes. Já, a segunda peça, discute o lugar do artista mestiço num país que exclui aqueles que não se enquadram nos padrões que a sociedade estabelece a respeito de profissão e raça. Fontes: Este pensamento educacional, divulgado como texto teatral, pode ser pesquisado nas próprias peças escritas, como ainda em depoimentos em que o autor relembra a matéria-prima para a composição de sua partitura teatral, em entrevistas e na sua auto-biografia romanceada. Material que fora deixado pelo dramaturgo Jorge Andrade ao longo de sua trajetória no teatro brasileiro das décadas de 1950 a 1980. Metodologia: Assim, objetiva-se discutir a relação entre educação e escritura e, em seguida, entender toda e qualquer escritura como uma representação que dialoga com a realidade que a tornou possível, entrecruzando com a mesma e provocando recepções múltiplas. Entender, assim, que a leitura de um texto teatral deve ser realizada entendendo sua peculiar estrutura, ou seja, sabendo localizar a noção de personagem, atos, contexto em que foi escrita, ambientação da narrativa e as múltiplas recepções que as obras provocam no leitor/espectador. Conclusão: Assim, será possível aproximar produção artístico/teatral e pensamento educacional, entendendo Jorge Andrade como dramaturgo, mas também como educador que soube articular em suas peças memória, história e imagens de Minas Gerais e, por ter esta intenção, suas obras são absorvidas como instrumentos pedagógicos no espaço da sala de aula. Mais que isto, tal encaminhamento permitirá observar que o texto de teatro merece ser analisado não apenas como literatura ou textualidade a ser encenada, mas também, em alguns momentos, como instrumento importante na construção do conhecimento, seja sobre história ou sobre valores que a sociedade de determinado tempo entendia como legítimos. TRABALHO COMPLETO O dramaturgo brasileiro Jorge Andrade nasceu em São Paulo em 1922, mesmo sendo paulista não deixou de pensar o país e, no caso, teceu tramas teatrais que também tematizaram 162 Minas Gerais. Sua principal ocupação sempre foi a escrita teatral, mas foi também jornalista e professor de teatro. Em todas as suas atividades sempre ressaltou o fazer teatral como atividade intelectual e pedagógica. Entendia a arte teatral como formadora cultural e instrumento para se recuperar o passado e, assim, constituir o caleidoscópio da brasilidade. As peças teatrais Pedreira das Almas e As Confrarias foram ambientadas em Minas Gerais. A primeira inspira-se na cidade de São Tomé das Letras e em fatos ocorridos no ano de 1842, durante a revolta dos liberais contra os poderes do Império. A segunda, foi escrita tendo a cidade de Ouro Preto como tema, mais especificamente, situa a relação entre arte e religião no século XVIII, quando então a personagem Marta tenta, sem sucesso, enterrar o filho José - um ator -, porém precisa da autorização das irmandades religiosas. Ao procurar tecer representações sobre Minas Gerais, o dramaturgo tocou numa palavra que acompanha a região desde os tempos do Império: a questão da liberdade. O tema da liberdade em Jorge Andrade já aparece em 1957, no texto Pedreira das Almas, o qual já apontava para a presença do tema em sua dramaturgia. Nesta peça, o dramaturgo articula uma tripla temporalidade, visto que é escrita no final de década de 1950, possui um enredo que remete à Revolta Liberal de 1842. No entanto, ela é publicada, ao lado do conjunto da obra, em 1970, quando o país atravessava os momentos mais truculentos da ditadura militar. A busca da liberdade é sustentada por tensões que também aparecem em outras peças, tais como a relação passado/presente, tradicionais/progressistas no conflito entre aqueles que desejam partir e aqueles que precisam ficar. Diante dessa polarização, a personagem Urbana destaca-se, viu a vila de Pedreira surgir, crescer e, frente à sua decadência, não quer deixá-la. A sua verdade é permanecer junto aos mortos de seu passado. Ela é a continuidade de uma tradição construída na ‘rocha’: Urbana: Encontraram sinais estranhos na rocha, e uma imagem de São Tomé no nicho de pedras. “Este é o lugar para a cidade. São Tomé nos protegerá, como nos protegeu da tormenta!” Descobriram ouro na gruta. Abriram galerias que foram sair em dez pontos diferentes do morro, como se fossem dez portas de Pedreira. Mais tarde, partindo daqui, abriram lavras por todo o vale e fundaram novos lugarejos. (ANDRADE, 1970: 81- 82). A firme opinião de Urbana irá contrastar com o espírito novidadeiro dos mais jovens, entre eles, aparece Gabriel, que vê na partida para outras terras o único caminho de busca da prosperidade. Para cumprir seu objetivo, Gabriel procura aliciar Mariana a Martiniano, ambos de filhos de Urbana. Esse conflito, que tem como pano de fundo o embate político entre liberais e conservadores, em 1842, prevalece até a chegada, em Pedreira, de um batalhão de policiais comandados pelo delegado Vasconcelos, que traz, algemado, o ‘subversivo’ Martiniano. Logo na sua entrada à cidade, Vasconcelos propõe trocar a liberdade de Martiniano pela delação de Gabriel. Inconformado com a possibilidade da troca, Martiniano - mártir? solta-se dos soldados e sai correndo. Aos gritos, a mãe e toda a vila vêem o jovem cair fuzilado. Após a morte, um novo conflito se apresenta, pois já não há mais lugar no cemitério, ninguém pode sair da vila para buscar terra para se construir novos túmulos. Como desafio à autoridade e às atrocidades do poder de Vasconcelos, Mariana sugere que o corpo fique exposto como exemplo. Mariana: Leis! Leis! Não aceitamos, nem o povo de Pedreira das Almas aceitará suas leis. Vasconcelos: (Áspero) Falo com dona Urbana. Mariana: Respondo por ela e por Pedreira. Todas as leis que o senhor representa, não nos poderão arrancar nenhuma palavra, nem um gesto de acatamento às suas 163 ordens. Abra as suas portas das prisões, traga os instrumentos de tortura, revolva e destrua a cidade, derrube as torres de nossa igreja...! Mas de nossas bocas jamais sairá uma única palavra de delação Os mortos sairão das lajes e os impiedosos serão destruídos! (Os soldados entreolham-se, admirados) Que um anátema caia sobre suas cabeças! Que o corpo de meu irmão fique exposto... será uma lembrança viva do seu pecado, da sua indignidade! Vasconcelos: Veremos mais tarde, minha senhora, se não falam. Mariana: O senhor tem as espadas... nós, aquilo que assassinos de sua espécie desconhecem: respeito à liberdade. É o que Gabriel representa para nós. Pagaremos, por ele, qualquer preço! (ANDRADE, 1970: 97) Mais uma vez, retorna a imagem do corpo que permanecerá insepulto, o que reforça novamente a tensão entre as leis naturais e as leis do Estado. Diante do fuzilamento do irmão e a iminente prisão do namorado, a jovem Mariana assume a defesa da liberdade, pois se, anteriormente, seu direito de ir e vir era ameaçado pela força da tradição da mãe, no momento seguinte, a situação transforma-se, já que a questão da busca da liberdade ganha uma conotação política. Após a perda do irmão e a fuga do revolucionário Gabriel, coube a Mariana o enfrentamento da opressão, no caso, representado na figura do delegado Vasconcelos. Mariana: Entre na igreja, diante de seus soldados, e prove que suas leis não são ímpias. Onde está sua justiça para ajudá-lo a transpor esta porta? Onde o poder que o levará até aqueles corpos? Não passam de mortos, disse o senhor! Então, deve ter coragem para insultá-los com sua presença. (...) Se o senhor não suporta, por que suportarão eles? O senhor nos prometeu um túmulo, se revelássemos onde está Gabriel. Gabriel está lá, como minha mãe, caído sobre Martiniano. O senhor nos impôs, como condição da sua opressão, o corpo exposto de Martiniano. Nós só lhe impomos, para a nossa delação, a sua entrada na igreja. Entre e veja o que suas leis fizeram dos homens, depois de terem feito à província, empobrecendo a terra com seus tributos e toda sorte de impiedades! (ANDRADE, 1970: 108). As leis do Estado parecem chegar àquela localidade pelas vias da força e da imposição, o que justifica as reações de Mariana e das demais mulheres. Considerando que esse texto perpassou os anos 1960 e só veio a ser publicado em 1970, há que se observar que ele estabelece um íntimo diálogo com a idéia de engajamento do período. A narrativa aponta claramente para os poderes opressivos e até mesmo para os métodos de tortura exercidos pelo Estado ditatorial. Vasconcelos: Será processada e responderá pelo crime de Gabriel. Mariana: Já estou com as mãos amarradas. Faça cumprir suas leis! Martiniano também estava, como está o povo da Província desde os dias da Bela Cruz. Desde que nossa montanha passou de sesmaria de ouro a pedra para os mortos. Onde está Gabriel? Onde os mortos estão expostos, e os vivos presos nas rochas, sonham com uma terra mais justa. Gabriel é a única saída deste túmulo imenso que seu Governo fez de Pedreira das Almas. Faça cumprir suas leis, já que não pode fazer os mortos reviverem. Este é o nosso preço, senhor. O meu e o seu. O senhor não terá nunca Gabriel, porque matou Martiniano... e eu... porque deixei Martiniano e minha mãe morrerem! Chame seus soldados e entre na igreja! Prove a eles que não teme os mortos. Que pode encarar seus crimes. (Silêncio. Vasconcelos continua imóvel) Governos como o seu, senhor, só executam leis ímpias, mas com braços subordinados ou mãos escravas. Não presenciam nunca a verdadeira imagem de suas vítimas. Se o senhor entrar... (Vacila, fazendo um 164 grande esforço)... naquele rosto desfigurado... que era a própria imagem do nosso sonho... verá a que ficou reduzida a Província sob sua justiça! Só aí poderá saber o que Gabriel representa para nós. Entre!... e Gabriel será seu! Eu também prometo! (ANDRADE, 1970: 108). Aceitando o desafio, o delegado resolve entrar na igreja, e o que o leitor percebe é a indicação do dramaturgo que descreve a expressão de horror que domina o rosto de Vasconcelos. O que ele teria visto? Os corpos amontoados? Desfigurados? As indicações do autor não são diretas, deixando no subtexto o que o delegado teria presenciado dentro da igreja. Com toda certeza, estavam lá os corpos de Martiniano e Urbana, mas o estado em que estavam não é descrito claramente, cabe ao leitor/diretor/espectador a construção do sentido. Sabe-se, ainda, que o acontecido foi o suficiente para os soldados fugirem e o delegado desistir de Gabriel. Em seguida, Mariana entra para a igreja e proíbe as outras mulheres de contarem a Gabriel os fatos ocorridos. Ninguém deve comentar ou lembrar a imagem que se viu de Martiniano. Ao fim, a vila apresenta sinais de abandono, empoeirada e com papel sendo levado pelo vento aos quatro cantos. Mariana, cada vez mais parecida com a mãe, é observada por Padre Gonçalo, dando indícios de que não vai partir com o restante da vila, nem mesmo para acompanhar Gabriel. O diálogo final é entre Gabriel e Mariana, também é a última tentativa de demovê-la da idéia fixa de não partir para outras terras. Mariana: Mais forte do que as promessas é a morte que nos liga à terra. Sinto tudo dentro do meu corpo, como se fizesse parte do meu sangue. As rochas... a igreja... o adro! Gabriel: Mariana! Não podemos passar a vida venerando mortos. Foi para escapar a isso que sonhamos partir. É preciso saber escolher, Mariana. (...). Mariana: Gabriel! Duas pessoas perderam a vida. Não compreendes? Duas pessoas que eram a minha família. Como queres que seja a mesma? Gabriel: Também perdi a minha. Mariana: Há muito tempo. Viveste sem ela. Gabriel: Prometeste uma para mim. Não te lembras. Mariana: Não a este preço. Gabriel: Mas que preço? Foi o próprio mundo de Pedreira que matou Martiniano, como matou minha família. Mariana: Nossos mortos não podem ser abandonados. (ANDRADE, 1970: 112) A jovem Mariana assume todo o apego da mãe à vila de Pedreira. Não bastando, quer também estar junto aos mortos. Tal como a mãe, quer valorizar o passado em detrimento do presente, o qual é representado pelo personagem Gabriel. Na despedida do jovem casal, é marcante a emoção construída: Gabriel: Pedreira! Vista de longe, perdida entre as nuvens, parece uma estrela branca de mármore! (consigo mesmo) O passado é um monstro... que nos acompanha para onde vamos! (ANDRADE, 1970: 114). A personagem Urbana simboliza uma tradição consolidada, que valoriza o passado e os mortos da vila. Diante da ‘velha senhora’, Gabriel precisa satisfazer às necessidades 165 históricas do presente, por isso, precisa do rompimento, deseja partir para outras terras e construir o novo. No início, Mariana acredita na urgência da partida, mas, diante do passado, que pode ser esquecido, resolve ficar e defender o direito à lembrança. Ela será uma inventora de tradições, a sua atitude de ficar irá provocar uma nova coesão na coletividade, não a mesma da mãe, mas sim, novas definições de comunidade e de pertencimento a um grupo. (PINTO, 1998: 57). Essa peça de Jorge Andrade traz a defesa da liberdade, mas como sendo bandeira daqueles que acreditam que as mudanças são possíveis, mesmo sacrificando vidas. Martiniano pagou este preço. Gabriel partiu para construir o novo, e Mariana articulou a novidade e o arcaico, o passado e o presente, rebelou-se contra as leis artificiais do Estado, mas, ao fim, apostou na conservação da tradição deixada pela mãe e seus antepassados. Esses três personagens de Pedreira das Almas, mais uma vez, reforçam a idéia de que Jorge Andrade construía seus textos com os olhos no passado, mas com os pés no presente. Por ser escrita em 1957 e divulgada neste contexto auxiliou o dramaturgo a participar do debate do momento, qual seja: o processo de construção do ‘homem novo’1. A partir da década de 1950, vários setores da sociedade brasileira passaram a refletir a construção desse novo homem. Havia, assim, uma valorização da vontade de transformação, da ação humana capaz de mudar o curso da história. As raízes deste homem brasileiro deviam, portanto, ser buscadas no passado, no ‘autêntico homem do povo’, ainda com características rurais e sem a contaminação da urbanidade capitalista. (RIDENTI, 2000: 24). Pensando assim, Jorge Andrade aproxima-se das influências de esquerda, dos comunistas ou trabalhistas do final da década de 1950. Mas esta aproximação temática não é tranqüila no universo ficcional. Se as idéias da ‘utopia revolucionária’ propunham a ruptura, Jorge Andrade diferencia-se e lança um olhar singular sobre esse homem novo. O dramaturgo mostra a coragem de Gabriel para romper com a tradição de Urbana. Mas, ao mesmo tempo, apresenta as agruras de Mariana com uma consciência que se divide entre o ficar e o partir. Se o dramaturgo ressalta a força do rompimento, não deixa de ser verdade que este se realizou com perdas, pois Gabriel teve de partir sem a noiva Mariana. Se o homem novo das ‘utopias revolucionárias’ é decidido e está pronto para, se necessário, pegar em armas, o de Jorge Andrade titubeia entre passado e presente, ao duvidar da tradição e não vislumbrar que o novo que se aproxima deixa florescer toda sua humanidade, o que o faz pensar e pesar as perdas de suas decisões. Até aqui, privilegiou-se olhar a forma como Jorge Andrade foi, na década de 1950 – Pedreira das Almas -, buscar fôlego para tematizar a questão da liberdade e, com isso, interferir no debate estético-político do período seguinte. Mas o grito de Jorge Andrade pela liberdade de expressão ecoaria mais forte ainda com a escrita de As Confrarias, em 1969. O cenário político do final da década de 1960 foi fortemente marcado pelo processo de fechamento dos canais de expressão, até então, timidamente suportados pelo regime militar. É também lembrado como sendo um período marcado por invasões a espaços em que se reuniam os ‘resistência cultural’ - estudantes, artistas e intelectuais -, tal como o restaurante Calabouço no Rio de Janeiro. Neste sentido, sempre se ressaltam os protestos da CNBB diante da falta de liberdade em 1968 e, também, a greves de Osasco, severamente reprimidas. Acrescentem-se a isto os 739 presos no Congresso da UNE e, ainda no ano de 1968, a promulgação do AI-5 e o fechamento do Congresso Nacional. Por outro lado, o contexto foi palco ainda da opção, de parcela das esquerdas, pela luta armada como forma de enfrentamento ao regime. (KÜHNER & ROCHA, 2001: 77) 1 O final da década de 1950 reforçou, no campo das esquerdas, a procura deste homem novo, aquele “(...) a que se referia o jovem Marx, termo recuperado com entusiasmo na época pela revolução cubana – e pelos escritos daquele que é chamado romanticamente em Cuba de ‘guerrilheiro heróico’, Che Guevara.” (RIDENTI, 2000: 120). 166 As conseqüências desse longo processo de enfrentamento tornaram-se agudas em 1969, quando as forças aliadas ao regime militar começaram a criar órgãos para reprimir as esquerdas. Se, de um lado, foi promulgada a Lei de Segurança Nacional, por outro, generalizou-se a guerrilha urbana, marcada por assaltos a bancos e seqüestros de autoridades. Em meio a este embate, sempre se destaca a deserção do capitão Lamarca e suas incursões como guerrilheiro, mas também se lamenta a morte de Carlos Marighella, em novembro de 1969. O teatro brasileiro, em fins da década de 1960, dava sinais de uma produção crescente e sempre voltada para pensar o cenário político brasileiro. Num recuo a 1967, pode-se destacar a montagem de Arena Conta Tiradentes, pelo Teatro de Arena, e O Rei da Vela de Oswald de Andrade, encenada pelo Teatro Oficina, cujo diretor, José Celso Martinez Correa, voltaria em 1968 com a montagem de Roda Viva no Rio de Janeiro. Espetáculo esse que levou seu elenco a sofrer um atentado de direita no Teatro Ruth Escobar em São Paulo e, depois, também em Porto Alegre. Assim, verifica-se que o engajamento político no fazer teatral estava em pauta. O dramaturgo Jorge Andrade, morador de São Paulo, acompanhou esse contexto e soube posicionar-se sobre ele. Sua peça As Confrarias, ambientada nas Minas Gerais do século XVIII, não deixa de, mais uma vez, retomar o método do dramaturgo, qual seja, articular a relação passado/presente. Olhar acontecimentos passados e ficcionalizá-los, interferindo no debate que então se realizava acerca da liberdade de expressão de intelectuais e, particularmente, de artistas de teatro. Em poucas palavras, pode-se dizer que a peça As Confrarias narra as tentativas de uma mãe para enterrar o filho, o que torna o enredo um desenrolar de um cortejo fúnebre. Marta é esta mãe que tenta, por vários meios, sepultar o filho José, um ator que morrera defendendo causas misteriosas. A peça é escrita em 1969, mas a narrativa é toda ambientada nas ruas de Ouro Preto, Minas Gerais, no século XVIII. Nos caminhos de pedra da velha cidade, uma mãe carrega o corpo do filho mulato - um ator - de irmandade em irmandade. Em cada uma, é recebida, ouvida e expulsa por preconceitos, ora raciais ora políticos. A idéia do corpo insepulto remete de imediato o leitor à tragédia grega Antígona, obra fundamental acerca do conflito entre direito natural e direitos ditados pelo Estado. Tal é o dilema de Marta, que quer exercer a liberdade de sepultar o filho no lugar em que acredita que ele mereça. A recusa das irmandades nada mais faz que prorrogar o sofrimento da mãe e expor as desigualdades e preconceitos de um Brasil colonial. Essa representação do passado não se encerra nela mesma, pois sabe-se que Jorge Andrade articulava muito bem a relação passado/presente. Assim, ao construir tal enredo, ao longo dos anos 1960, está tocando numa ferida ainda exposta: a liberdade de expressão do artista em períodos de exceção ou ditatoriais. A personagem Marta quer exercer o seu direito de ir e vir, já que a liberdade de expressão do filho foi silenciada. Sua primeira parada é a Irmandade da Ordem Terceira dos Carmelitas, uma tradicional confraria que só aceita gente de pele branca. Diante da insistência de Marta, os membros querem saber a trajetória de vida do morto: Provedor: Ele andou em maus caminhos? Marta:(Astuciosa) Se há caminhos é porque alguém já passou. A gente também pode passar. Ele passou por todos. Provedor: Há caminhos do demônio! Marta: Não conheci nenhum. Não há nada escondido em nosso passado. É um emaranhado de trilhos que se perde na memória, mas que todos podem percorrer. Em um deles, meu filho nasceu, fazendo-me sofrer, partindo meu corpo em torrões 167 de dor... (esperando o efeito) quando sua cabeça passou entre minhas pernas. (ANDRADE, 1970: 30). Em plena década de 1960, Jorge Andrade vai tecendo uma trama teatral em que expõe a exclusão social e a falta de liberdade de expressão de artistas e atores. Em certa fala de Marta, aparece uma compreensão plural que o dramaturgo possuía a respeito da profissão ator: Marta: É no trabalho que compreendemos os outros. Quem se transforma em negro, em homem ou mulher, em judeu ou mouro, sente cada um como realmente é. Abandona seu corpo por um outro. Esquece seus sentimentos e faz outros nascerem. Guarda em algum lugar suas idéias e ensina outras. Encontra em si mesmo sentimentos que são de todos. Fiquei extasiada, ouvindo o que ele dizia...! (ANDRADE, 1970: 43) Diante das dificuldades para enterrar o filho, Marta não vê outra saída senão seguir seu caminho. Ao entrar na Irmandade de São José, sabe-se que é conhecida como ‘os pardos de São José’, os quais, por serem ‘pardos’ apresentam uma conflituosa relação com as outras irmandades. No entanto, a Confraria de São José também é o lugar que abriga pintores e escultores, o que faz Marta acreditar que naquele lugar seu filho conseguiria abrigo para seu corpo ainda insepulto. Por isso, a mãe indaga aos ‘irmãos’ se, sendo ali o lugar dos pintores e escultores, não seria também dos atores? Conjugando passado e presente, o dramaturgo situa diálogos anteriores entre mãe e filho, recuperando, assim, idéias acerca da necessidade do artista de teatro estar engajado na luta política. A ambientação é passada num distante Brasil colonial, mas os pés estão fincados no presente histórico do final dos anos de 1960, momento em que as ‘confrarias militares’ armavam e conduziam uma ditadura, silenciando artistas e intelectuais que ameaçavam a ordem que fora instituída pela força. Momento também em que os próprios artistas apresentavam sinais de disputas internas e diferenças estéticas e políticas. José: Que quer de mim, mãe? Marta: Que não fique se amesquinhando por causa deste ou daquele sangue. Que olhe à sua volta.... e veja que o povo só conhece impostos que imaginam o clero, a magistratura e o fisco. Têm cem braços arrecadando; cem olhos vigiando, atormentando com denúncias e urdindo vinganças. Um dia, suas garras chegaram em nossa casa e penduraram seu pai em uma árvore. (...) Um homem não morre inutilmente. São os outros que tornam a morte inútil, não a usando para nada. Filho! São belos os papéis que representa. Mas há outros que vivem à sua volta. Nenhum dos personagens que cria tem a mesma grandeza de seu pai!... matando para defender o trabalho dele; cortando algumas mãos do monstro que continua sufocando. José: Vai acabar vencendo, mãe! (ANDRADE, 1970: 51-52). Após ser expulsa como conspiradora, Marta, mais uma vez, toma seu caminho, chegando à Ordem Terceira das Mercês, a qual é freqüentada por brancos, negros e mulatos. Desconfiando da origem de José, os párocos ouvem de Marta a necessidade social da arte, a ponto de, às vezes, morrer por ela: Marta: (Popular, bate nas costas do Definidor 1) Os poetas dizem coisas bonitas, mas ficam paralisados diante das feias. Ministro: Que coisas feias? Marta: (Brincalhona) Luta, sangue, morte...! 168 Definidor 1: Cada um encara a morte com a coragem que tem, se a tem. Eu, por mim, não a temo. Marta: (Representado) ‘O pobre, porque é pobre, pague tudo, E o rico, porque é rico, vai pagando Sem soldados à porta, com sossego!’ Marta: Fazer rir também é maneira de não temer, de lutar e de morrer. (ANDRADE, 1970: 61). Diante do exposto, nota-se que o dramaturgo traz uma importante preocupação com a relação passado/presente. Para isso, contextualiza a obra nas Minas Gerais do século XVIII. Porém seu momento de escrita é 1969, um momento chave na história do país no que diz respeito aos acontecimentos políticos e à garantia de direitos civis e liberdade de expressão, portanto, de censura às artes e de perseguição a artistas de teatro. As Confrarias tematiza também o lugar da arte teatral. Esta, tratada no texto ora como contestação e ora como simples ostentação. Em alguns momentos, pode ser um instrumento necessário à busca da liberdade e, em outros, utilizada apenas para ornamentar igrejas e palácios. A utilização de recurso narrativo que ambienta a ação e os personagens num passado distante foi muito comum na década de 1960. Jorge Andrade é um exemplo disso, reforça sempre que suas personagens vivem no século XVIII. Nas palavras e ações de Marta e nas lembranças de seu filho José, observa-se uma ‘revolução’ e uma conscientização sendo construídas. Estas posturas não deixam de ser um posicionamento político do próprio dramaturgo, que acreditava na capacidade de denunciar de sua obra. Mas, ao situar a trama num passado distante, conseqüentemente, a interferência que pretendia realizar no presente foi suavizada, ou seja, os censores são despistados em virtude da própria ambientação espacial e temporal da narrativa. Ao observar o contexto da escritura de As Confrarias, percebe-se que Jorge Andrade não foi o único a fazer uso de peças teatrais combativas que, ao interferirem no presente, também alertavam para a necessidade de dissimular a vigilância dos censores do regime militar. Neste sentido, os últimos textos de Jorge Andrade também devem ser vistos como participantes – juntamente com vários outros autores – da intensa luta libertária que o meio intelectual passou a defender no seio da sociedade brasileira, a partir da segunda metade da década de 1960. Assim, novamente, o dramaturgo retoma o recurso da metalinguagem para problematizar a história e o próprio meio teatral. A principal personagem de As Confrarias é Marta, uma costureira, que tenta enterrar o filho ator, mas, como pano de fundo, aparece uma conspiração sendo tramada, e o principal receio das confrarias é, justamente, o inconformismo de Marta. É o conflito entre poderes instituídos e desejo de liberdade de expressão. Para Jorge Andrade, o exercício retórico – escrever teatro, seja no século XVIII seja no final da década de 1960 – não representaria ameaças ao poder estabelecido se não conseguisse romper com discursos difundidos apenas entre os ‘pares’, entre uma vanguarda intelectual esclarecida. (SAN`TANNA, 1997: 283). Assim, o tema da Inconfidência Mineira foi amplamente retomado no decorrer da década de 1960. A luta libertária exigia que o passado fosse retomado e as experiências revolucionárias, conservadoras ou não aos olhos do presente, fossem revisitadas. Um outro exemplo disto é o espetáculo Arena Conta Tiradentes, de 1967. Além de ser a retomada do ‘mártir revolucionário’, exemplifica a situação em que um acontecimento e um personagem 169 histórico são erigidos como modelos para iluminarem o presente. Não a preocupação com o rigor científico, mas uma analogia que aproxime as duas temporalidades. Em Arena Conta Tiradentes, assim como em As Confrarias, explicita-se o conflito entre nacionais e estrangeiros. No século XVIII, nas duas peças, o inimigo expropriador das riquezas é a Coroa Portuguesa, incentivadora de altas taxas e impostos. Esta atmosfera é aproveitada por Jorge Andrade e pelo Teatro de Arena para interferirem no debate político do final da década de 1960, contexto marcado pelo discurso antiimperialista, mais especificamente, anti-norteamericano. A idéia de grupos – confrarias –, fechados em si mesmos e árduos defensores de privilégios, também aparece nas duas peças, ora são os militares e ora o clero e os intelectuais. Sendo assim, aos poucos, o leitor vai apreciando os objetivos da peça: contar um movimento libertário fracassado, mostrando o caráter perfeitamente evitável do malogro – e até por respeito à história escolhida, nada poderia, no plano da fábula, ter sido evitado. (CAMPOS, 1988: 109). A retomada da Inconfidência Mineira por Jorge Andrade e pelo Teatro de Arena, do passado para interferir no presente, ancora-se, portanto, num desejo de liberdade que, para quem viveu o momento, não seria conseguido sem a luta política: Eu sou brasileiro mas não tenho meu lugar Pois lá sou estrangeiro, estrangeiro no meu lar. A quem nasceu lá fora tudo seu a terra dá: Essa Pátria não é minha, é de quem não vive lá. O pássaro na gaiola, já nascido em cativeiro, Aprende a cantar e canta se permanece prisioneiro. Mas se lhe abrem a portinhola, bem capaz é de morrer. Com seu medo à liberdade, já não sabe nem viver. Quem aceita a tirania Bem merece a condição Não basta viver somente, É preciso dizer não! (BOAL & GUARNIERI, 1967: 61). Ao longo deste texto, foi possível entender um Jorge Andrade conhecedor e defensor do tema da liberdade. Já desde o final da década de 1950, com a peça Pedreira das Almas, verifica-se o desejo do dramaturgo de também se envolver no debate sobre a construção do ‘homem novo’. Momento no qual as ‘utopias revolucionárias’ também se dedicavam com entusiasmo a tal busca. Jorge Andrade soube, ao longo da década de 1960, colocar a figura do escritor e do artista em situações limites, tal como acontece com o ator de As Confrarias. Personagens criados num período em que o próprio meio artístico e político costumava dividir-se em políticos e políticos engajados. Jorge Andrade soube buscar seu espaço. Essas duas peças de Jorge Andrade, mesmo tendo sido escritas nas décadas de 1950 e 1960, ainda hoje continuam sendo utilizadas na sala de aula e nos palcos brasileiros. Em certos momentos são encenadas e em outros são utilizadas junto aos alunos, pois projetam uma imagem de Minas pensada a partir do olhar de um paulista que queria alcançar os traços da brasilidade. 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