1. bento
Foi tudo muito inesperado. Mas bastou um instante. Aqueles
poucos minutos mudaram a vida de Bento para sempre. E a sua
própria, é claro, ainda que no momento Miudim não pudesse desconfiar quanto.
Viu muito bem quando os guardas levaram seu irmão. Mas
não havia nada que pudesse fazer na hora, além de se esconder
para não ir junto.
Nem chegou a saber como a briga começara. Mas logo deu
para perceber que era violenta, feia. Ouviu a gritaria, e ainda chegou a ver Bento atirando um prato com restos de comida na direção de alguém. O tumulto era tão grande que nem conseguiu
distinguir nada. No primeiro momento, quis ajudar. Mas estava
longe. Descia as escadas, carregando uma bandeja que a dona da
taberna mandara buscar num dos quartos.
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. bento
Num instante, ouviu um barulhão e logo não dava mais para
tentar distinguir nada do que acontecia. Voavam garrafas, rolavam tonéis, quebravam-se objetos em meio a um tumulto imenso.
Alguns braços se juntaram para revirar a tosca mesa comprida e
pesada em volta da qual, no fim de cada dia, costumavam se sentar
pelo menos uns dez homens. Em segundos, ela se transformou
numa barricada, atrás da qual seu irmão Bento e o filho do taberneiro se protegiam.
Alguém gritou:
— Aqui d’El-Rei!
Qualquer pessoa da cidade sabia que esse pedido de socorro
logo atrairia os soldados da guarda. Truculentos, em pouco tempo
eles chegariam, a mostrar quem mandava por ali.
Ainda no alto da escada, de bandeja na mão, no meio do
atordoamento com aquela súbita violência, Miudim percebeu
que Bento lhe fazia um sinal para que não descesse. E, mesmo
sem poder dizer que distinguia as palavras, entendeu perfeitamente o que ele lhe ordenava, com as mãos em concha em volta
da boca:
— Some daqui! Não deixes que te agarrem!
Recuou e se escondeu atrás de uma arca enorme que ficava
no patamar da escada e era usada para guardar copos e pratos de
estanho. Teve medo e raiva ao mesmo tempo. Vontade de correr
e sumir para bem longe, mas também ímpetos de avançar e sair
distribuindo pancada a torto e a direito, dar um golpe em alguém
com a bandeja. Não sabia o que fazer, mas obedeceu ao irmão.
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enquanto o dia não chega
Seu coração latejava com força, como se fosse saltar pela boca.
Do esconderijo, viu quando um sujeito mal-encarado golpeou
a cabeça do irmão com um objeto que não identificou, mas parecia pesado. Um castiçal, talvez. Bento tonteou, mas se manteve de
pé. Um filete de sangue começou a escorrer em sua testa.
— Os guardas! Os guardas!
O aviso se alastrou. Saiu gente a correr para tudo quanto era
lado. O local se esvaziou em segundos. Só Bento ficou ali na imensa
sala, meio zonzo, perdido, talvez sem enxergar direito, oscilante e
trôpego, para lá e para cá. Ia caindo quando foi agarrado por três
pares de braços ao mesmo tempo. Todos de soldados da guarda.
Bem que ele tentou se defender:
— Larguem-me! Eu não fiz nada! Depressa, corram atrás deles! Os culpados vão escapar!
Levou um safanão, enquanto o sujeito que parecia comandá-los respondia:
— Que culpados? Aqui não há mais ninguém… Só tu mesmo,
que vais ficar aí bem amarrado enquanto o taberneiro nos serve
um bom vinho para nos recobrarmos da refrega.
Foi a conta. Já de cabeça quente, Bento ficou furioso:
— Não há mais ninguém porque fugiram todos. Vão deixar
que escapem? Corram atrás deles! Depressa, seus covardes!
Um dos soldados puxou a espada, ameaçador. Outros dois
passaram uma corda em volta dos punhos unidos na frente do
corpo do rapaz e o fizeram sentar à força no primeiro degrau da
escada. Nem assim conseguiram calar o brigão, que continuou a
enfrentá-los com palavras, ensanguentado e raivoso:
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. bento
— Com toda certeza Sua Majestade não vos paga os soldos aos
senhores para que fiquem tomando vinho de graça em tabernas,
em vez de perseguir arruaceiros.
— Pois saiba que já prendemos o único arruaceiro que encontramos. Aliás, um arruaceiro que mal se sustenta nas próprias pernas, de tanto beber. E que, além de quase haver destruído o local
de trabalho que serve de sustento a uma família, ainda acaba de
incorrer em novos crimes, desrespeitando a autoridade da guarda
e chegando mesmo a ofender Sua Majestade.
Bento percebeu que não adiantava continuar a esbravejar,
porque isso só iria complicar sua situação. Era melhor ficar calado.
O taberneiro bem que tentou explicar o que ocorrera, gaguejando com medo:
— Ele t-t-t-tem razão, s-s-s-enhores… Est-t-t-á a dizer a v-v-v-erd-dade…
A resposta foi cortante:
— Não discuta, homem! Traz logo nosso vinho. Ou desejas
que te levemos também?
Patrão ou não, o homem sabia muito bem que não tinha proteção contra aquela brutalidade. Não adiantava responder nem
tentar explicar coisa alguma. Tratou de ir lá para dentro, correndo.
Com os punhos bem atados e sentado no degrau, Bento também começava a entender toda a extensão da situação perigosa
em que se metera. Foi sossegando. As coisas estavam bem complicadas para o seu lado. A cabeça lhe doía, o sangue escorria.
Tomado por uma preocupação de irmão mais velho, lembrou
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enquanto o dia não chega
dos conselhos do pai. Tinha de ser responsável. Não podia deixar que nada de mau acontecesse a Miudim.
Sem virar a cabeça, e disfarçando a busca enquanto procurava apenas com o canto dos olhos, pelo meio da balaustrada de
madeira distinguiu um pequeno vulto agachado atrás da arca no
andar de cima. Fez a única coisa que lhe restava. Dissimulando,
como se fosse coçar o rosto, trouxe até a frente da face as mãos
amarradas, ergueu o dedo indicador direito e o imobilizou diante da boca. Era um gesto eloquente, a pedir silêncio. Um conselho mudo, de proteção fraterna.
Suas recomendações foram entendidas e cumpridas. Mesmo
oscilando entre a vontade de sair correndo e o ímpeto de avançar
nos guardas, o vulto escondido não se mexeu. Até se encolheu
um pouco mais na sombra. Foi dali que assistiu à cena em que os
soldados levaram o irmão. Para onde, não sabia. Mas ia descobrir.
Nem que para isso tivesse de percorrer Lisboa inteira.
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