GERSON LACERDA PISTORI ASPECTOS HISTÓRICOS DO DIREITO E DO TRABALHO UM BREVE OLHAR JURISTRABALHISTA SOBRE A IDADE MÉDIA Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE EM DIREITO DO TRABALHO sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Teixeira Manus PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Agosto/2006. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 2 Toujours tisserons drap de soie, Jamais n’en serons mieux vêtues, Toujours serons pauvres et nues, Et toujours aurons faim et soif... Nous avons du pain à grand’peine, Peu le matin et le soir moins... Mais notre travail enrichit Celui pour qui nous travaillons. Des nuits veillons grande partie, Veillons tout le jour pour gagner. Chrestien de Troyes, por volta de 11701 1 “Sempre teceremos a seda, nunca estaremos mais bem vestidas, sempre estaremos pobres e desnudas, e sempre teremos fome e sede... Nós temos pão a muito custo, de manhã pouco e menos à tarde... Mas nosso trabalho enriquece aquele para quem nós trabalhamos. Grande parte da noite velamos, e o dia inteiro, para ganhar, velamos." ( trecho de poema sobre as tecelãs, in Coornaert, 1941: p.74). 3 Dedico este trabalho à Maria Helena: continente de amor, inteligência e solidariedade em que estão contidos minha família e eu. 4 Agradecimentos Tenho que agradecer, em primeiro lugar, a meu orientador, o professor doutor Pedro Paulo Teixeira Manus, por seu incentivo ao estudo do Direito do Trabalho, dando exemplo a todos de sua dedicação. Em seguida, devo agradecer ao professor doutor José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza, grande historiador brasileiro dedicado ao estudo da Idade Média, que, com lhaneza, me possibilitou olhar com atenção vários aspectos históricos fundamentais nesse período, além de indicar diversos textos sobre a história medieval. Por fim, devo agradecer a ajuda de vários amigos e colegas na pessoa de dois colegas juízes do trabalho que muito me incentivaram: Jorge Luiz Souto Maior e Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani. 5 Resumo Este trabalho busca recuperar uma fase do trabalho humano livre não valorizada pela História do Direito do Trabalho, mas que apresenta as bases da relação trabalhista verificada após a Revolução industrial. Enfoca um período da Idade Média ocidental, principalmente entre os séculos XIII e XV, sob o prisma histórico, dando destaque ao Direito e ao Trabalho, em forma de dois painéis. O primeiro painel, panorâmico, visualiza notadamente as relações sociais, religiosas, institucionais e jurídicas; e o segundo painel, aproximativo, observa como o trabalho livre se situava e se relacionava naquele período. Em decorrência dos painéis destacados apresentam-se as considerações finais com formato analítico e reflexivo, realizando um cotejo entre eles e entre o trabalho na contemporaneidade. Na parte final, destacam-se as muitas similaridades com o atual momento histórico, em que a descentralização do poder do Estado e as características do trabalho horizontalizadas ensejam um estudo de relacionamentos entre essas épocas para uma melhor compreensão do contexto que vivemos. 6 Abstract The aim of this work is to present and restore a stage of human free labor not valorized by the History of Labor Law, although it resembles to the basis of labor relations as it is established after the Industrial Revolution. The work shows basically three centuries in Western Middle Ages, from the thirteenth to the fifteenth, presenting first a panoramic view: the social, religious, institutional and juridical relations in the period concerned; and second, a closer view: the way free labor happens at that time. Finally, it compares and analyzes this period with the present days, in order to reveal many similarities between the work in these times appointed, due mainly to the State power decentralization and the horizontal relations at work. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................... 10 A – UM OLHAR INDAGADOR. ........................................................................................................................... 12 I - Objetivos desse olhar histórico jurídico-trabalhista sobre a Idade Média ........................................... 12 1 - O porquê do tema........................................................................................................ 12 2 - O porquê do período de tempo escolhido ................................................................... 14 3- O porquê do espaço escolhido ..................................................................................... 17 B – UM OLHAR PANORÂMICO (OU A GRANDE ANGULAR) ............................................................................... 19 I – O conjunto de interesses denominado Cristandade ............................................................................... 19 II - A sociedade medieval ............................................................................................................................... 24 1- Características ............................................................................................................. 24 2- Feudalismo ................................................................................................................... 28 3- As cidades e a relação feudal....................................................................................... 31 III - As instituições políticas .......................................................................................................................... 35 1 - A organização do reino ............................................................................................... 35 2- A organização da Igreja: ............................................................................................. 40 3- Os conflitos políticos entre os reinados e o papado .................................................... 43 IV – O contexto jurídico................................................................................................................................. 49 1- O direito costumeiro .................................................................................................... 49 2- O direito romano.......................................................................................................... 50 3- O direito canônico........................................................................................................ 53 4- A aplicação da justiça .................................................................................................. 55 5- O pensamento jurídico: formação e transformação .................................................... 61 V – Os estertores da Idade Média ................................................................................................................. 69 C – UM OLHAR DE APROXIMAÇÃO (ZOOM)..................................................................................................... 74 I – As organizações urbanas .......................................................................................................................... 74 1- Associações mercantis ................................................................................................. 74 2- A “indústria artesanal”: ofícios (métier) .................................................................... 77 8 II - A organização das corporações............................................................................................................... 79 1- Uma corporação especial: a universidade .................................................................. 80 2- Corporação de ofício: o ateliê ..................................................................................... 83 3- A Juranda ..................................................................................................................... 86 4- A Confraria .................................................................................................................. 86 5 - Tipos de ofícios ........................................................................................................... 88 III – Os regramentos das corporações .......................................................................................................... 90 1- Regulamentos de trabalho: .......................................................................................... 92 2- Regulamentos da produção:......................................................................................... 92 IV – O contexto das corporações de ofício.................................................................................................... 93 1- Aspectos do cotidiano corporativo: a produção .......................................................... 95 2- Aspectos das condições de trabalho ............................................................................ 97 3- O relógio e sua relação com o trabalho .................................................................... 100 V - Os conflitos relativos ao trabalho...........................................................................................................101 VI - A interferência real nas corporações....................................................................................................105 CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM OLHAR EM PERSPECTIVA ................................................................................108 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .........................................................................................................................117 9 INTRODUÇÃO Um dos objetivos deste trabalho é apresentar um painel histórico de um período da Idade Média, com destaque a aspectos jurídicos e trabalhistas, tendo em foco principalmente a Idade Média baixa, entre os séculos XIII e XV, embora apresentando situações precedentes a esse período quando se entender necessário. O outro objetivo é destacar a relevância da relação entre o período medieval enfocado e o atual momento histórico, visando a apresentar a importância subestimada dessa época para o atual Direito do Trabalho. O método empregado é o que parte do geral para o particular, estabelecendose como geral uma visão histórica mais ampla, com os aspectos religiosos, econômicos, sociais e jurídicos do período apontado e, como particular, uma visão mais objetiva da forma e condições do trabalho naquele contexto apresentado. Portanto, não se optou por um prisma dogmático, mas adotou-se um aspecto zetético, de verificação de um quadro histórico e análise de algumas situações apresentadas para exemplos. Em uma tentativa de melhor enunciação do pretendido a partir desta introdução, apresentaram-se quatro formas de olhares figurativos para o texto: o primeiro, denominado de olhar indagador, relativo aos porquês, isto é, os motivos do presente texto, incluindo-se aí os fatos que levaram ao interesse sobre o tema, tendo em conta o espaço e o tempo escolhidos. A justificativa do presente trabalho, pois, nos pareceu merecer um olhar à parte, razão por que se destacou desta introdução e se fez detalhar em um item próprio. O segundo olhar, denominado de olhar panorâmico (ou a grande angular), visa a mostrar um painel histórico com destaque ao Direito, na busca de melhor compreensão do período apontado. O terceiro foi denominado de olhar de aproximação (ou o zoom), por significar o olhar mais próximo sobre as relações de trabalho não mais afetadas pela servidão, principalmente no período de tempo relativo à baixa Idade Média. Por fim, as considerações finais no derradeiro olhar em perspectiva, que correspondem a uma reflexão sobre os olhares anteriores. Destaque-se o aspecto analítico das considerações finais e não de síntese concreta do exposto anteriormente, visto que, sobre uma relação de cotejo aplicada entre o painel histórico ampliado, o subpainel específico a respeito do trabalho e a 10 perspectiva do trabalho contemporâneo, mais interessante, julgamos, é a exposição de reflexões. Eis aqui, portanto, no que consiste este trabalho: um breve olhar histórico com preocupação jurídica e trabalhista, elaborado não por um historiador, mas por quem estuda o Direito do Trabalho e, em razão disso, procura, ainda que de maneira modesta, pesquisar matérias que possam auxiliar a compreensão melhor deste ramo importante da ciência do Direito. 11 A – UM OLHAR INDAGADOR. I - Objetivos desse olhar histórico jurídico-trabalhista sobre a Idade Média 1 - O porquê do tema Temos visto na maioria das obras que tratam do Direito do Trabalho um reduzido espaço para a análise do trabalho humano anterior ao século XIX, notadamente o período da Idade Média. De fato, quando observado o início da História do Direito do Trabalho por diversos autores2, vê-se uma delimitação de sua formação a partir do período industrial, principalmente com relação ao século XIX. Assim, o período anterior à chamada Revolução Industrial não é visto como parte da história do juristrabalhismo, mas como sua pré-história ou proto-história, pois se afirma, entre vários argumentos: que a relação de trabalho até o momento industrial não é uma relação de emprego, não há o típico assalariamento, não ocorre um trabalho com conjunto humano fixo em determinado espaço físico, não há regulamentação e subordinação mais efetiva na forma do trabalho e sua contraprestação, além de não haver liberdade para a contratação do trabalhador pelo empregador nem regulamentação das condições de trabalho, bem como por faltar a interferência do Estado ou de seus entrepostos nessas relações (cf. Martins: 2001, p. 34). Godinho Delgado (2002: p. 81), que dá ênfase ao sistema capitalista como o cerne para a caracterização do Direito do Trabalho como ciência, nos diz: O elemento nuclear da relação empregatícia (trabalho subordinado) somente surgiria, entretanto, séculos após a crescente destruição das relações servis. De fato, apenas já no período da Revolução Industrial é que esse trabalhador seria reconectado, de modo permanente, ao sistema produtivo, através de uma relação de produção inovadora, hábil a combinar liberdade (ou melhor, a separação em face dos meios de produção e seu titular) e subordinação. Trabalhador separado dos meios de produção (portanto juridicamente livre), mas subordinado no âmbito da relação empregatícia ao proprietário (ou possuidor, a qualquer título) desses mesmos meios produtivos – eis a nova equação jurídica do sistema produtivo dos últimos dois séculos. 2 Pedro Paulo Teixeira Manus, ao descrever a ubiquação do Direito do Trabalho na História, apresenta uma relação de autores nessa linha de posicionamento (2005: pp. 26-27). 12 Vemos, assim, que há uma concepção industrialista pela qual apenas a revolução industrial propiciou a situação atendida pelo Direito do Trabalho tal qual a conhecemos e estudamos. Como mais um exemplo desta concepção industrialista, temos a destacar Martins Catharino que, em sua obra Tratado Elementar de Direito Sindical (1982: pp. 1419), distingue os períodos de pré-história e proto-história do Direito do Trabalho. Ali, este jurista conceituado fixa a pré-história como o período em que se cuida da Antigüidade e da escravidão (período que chama do trabalhador-objeto ou coisas) e se inicia a proto-história de forma mais concreta no Ocidente europeu com o advento das corporações de ofício. Orlando Gomes e Élson Gottschalk (1975: pp. 20-21) também vinculam o Direito do Trabalho à Revolução Industrial, mais precisamente como um seu efeito. Assim destacam: A história do movimento operário é uma lição de sociologia, que nos fornece a precisa idéia do grupo social oprimido. O envilecimento da taxa salarial, o prolongamento da jornada de trabalho, o livre jogo da lei da oferta e da procura, o trabalho do menor de seis, oito e dez anos em longas jornadas e o da mulher em idênticas condições criaram aquele estado de détresse sociale de que nos fala Durand, no qual as condições de vida social se uniformizaram no mais ínfimo nível. ...................................................................................................................................... O associacionismo, clandestino a princípio, tolerado numa etapa média e reconhecido pela autoridade pública afinal, foi a concretização material de uma consciência de classe, que foi se formando, lentamente, no seio das sofridas massas trabalhadoras, em vários países da Europa, no curso do século XIX. São estes exemplos paradigmáticos da concepção de que o Direito do Trabalho surge em decorrência da Revolução Industrial e, mais precisamente, em razão do segundo período desse mesmo evento, em que ocorreu uma concentração maior do capital produtivo e, em conseqüência, a formação do proletariado industrial. E também fazem transparecer a visão de uma cortina de interesses jurídicos e históricos do Direito do Trabalho entre o período pré e pós Revolução Industrial e, mais precisamente, antes e depois do século XIX, em detrimento ao estudo do período anterior referido. É aqui, sobre essa barreira colocada a respeito do que seja histórico para esse mesmo Direito, que nos propomos lançar um olhar longínquo e perscrutador: a fim de que possamos, ainda que em forma de painel sintético, examinar se o trabalho humano em um período como vimos denominado de proto-histórico, pode ser visto de forma isolada e sob 13 um critério meramente de curiosidade, e sem interferência mais efetiva sobre o Direito do Trabalho, ou pelo contrário, como parte a merecer uma reflexão maior pela História do Direito do Trabalho. Visamos, assim, a uma tentativa de observação de um período da Idade Média logo após aquele em que se organiza o trabalho livre, com repovoação e criação de cidades, a fim de procurar perceber, naquele período, que tipos de formas de trabalho e atividades podem ser relacionados com o trabalho a partir da Revolução Industrial e, se nessa relação, há possibilidade de uma concepção mais extensiva de período histórico para o Direito do Trabalho. Afinal, cabe verificar se o trabalho em época pré-mercantil ou mercantil merece também a preocupação do Direito do Trabalho como parte de uma observação mais prolongada, ainda que em um período longínquo e sob outros paradigmas econômicos e sociais. Por fim, cabe destacar mais um dos principais motivos de análise do trabalho humano neste período escolhido da Idade Média: relaciona-se a uma das atuais preocupações do estudo do Estado por vários setores científicos humanos, em que se observa contemporaneamente um movimento pendular de diminuição do poder centralizador do Estado, cristalizado e aperfeiçoado desde o Renascimento Ocidental. Tal diminuição de poder estatal centralizado, de acordo com esses estudos, leva à sua atomização em diversos graus e setores existentes na sociedade civil contemporânea. E, em alteração semelhante e contemporânea no mundo do trabalho, vemos o chamado toyotismo como forma de produção diferenciada (descentralizada e setorializada) do tradicional modelo fordista-taylorista (centralizado, hierarquizado). Toda essa situação assemelha-se em muito à forma do poder e de relações sociais existentes durante a Idade Média, o que torna o objeto deste estudo, longe de se tornar diletante, algo atual, comparativo e objetivo para efeito de extraírem-se lições. 2 - O porquê do período de tempo escolhido A Idade Média é um período cronológico muito longo: basicamente corresponde seu início ao final do Império Romano, com a ocorrência das principais invasões bárbaras, até o chamado período da Renascença ocidental, no final do século XV 14 (sem nos referirmos a várias instituições feudais que perduraram por séculos). Por certo que o período da Idade Média alta, reconhecido de forma mais uníssona como tal, entre o século VI e o século X3, possui um grande interesse histórico, mas não um correspondente interesse jurídico e trabalhista, pois o esfacelamento do Império Romano e de suas instituições afetou a aplicação do Direito estruturada naquele Império, prevalecendo principalmente costumes, quer do período romano, quer das tribos invasoras, majoritariamente germânicas4. Além disso, ocorre apenas após o século X uma maior presença do trabalho livre e organizado em grupos, em função do crescimento e ampliação das cidades. Constata-se que somente após a tentativa de uma rearticulação do antigo Império Romano, com a instauração do Sacro Império Romano-Germânico a partir de Carlos Magno, e com o apoio integral da Igreja Católica, é que ocorreu uma paulatina segurança dos espaços ocupados e reconquista dos territórios perdidos aos muçulmanos, húngaros e normandos. Observa-se uma contínua mudança na sociedade de então, desde a fragmentação do império carolíngio, o que Le Goff (1995: p. 75) chama de esboço de futuras nações, à fragmentação da autoridade e do poder político, com um tipo de concentração de poderes pelos mais fortes beneficiados pela divisão de terras e submetidos ao conceito de vassalagem no período de Carlos Magno5. Mesmo a tentativa de reconsolidação do Sacro Império Romano-Germânico pelos otonianos6 resultou em uma frustração daquele projeto de restauração pela expulsão, por Roma sublevada, de Oto III, e o retorno ao reino dos germânicos de Henrique II. No entanto, por força do período carolíngio, já ocorria uma mudança econômica, quer pela renovação do comércio desde o século VIII, com a importância da região dos hoje Países Baixos (Frísia), a exportação de panos, e a reforma monetária de Carlos Magno. A economia desse período, essencialmente rural, vai se beneficiando da melhoria da tecnologia agrícola, com a ampliação das terras cultivadas, novo sistema de 3 Há corrente de pensamento que entende ser o início da Idade Média baixa o século XIII; outra, o século XIV, assim como quem defende a existência da Idade Média central entre o século X e XIII, além de outros posicionamentos paralelos. Optamos por entender como período da Idade Média baixa o período entre o século XIII e XV para efeito do tempo a ser observado neste trabalho. 4 E com resolução de litígios de forma rudimentar em comparação ao Direito Romano. 5 Como diz Le Goff (1995: pp. 78-79): “O homem antigo tinha de ser justo ou reto; o homem medieval terá de ser fiel. Maus doravante serão os infiéis”. 6 Oto (Otão ou Othon) I, II e III, reis germânicos, coroados pelos papas romanos como sucessores de Carlos Magno, com um projeto de continuação de um império ocidental e cristão. 15 atrelamento dos animais para plantio, nova forma de arar, aperfeiçoamento do uso do moinho, preparação de pães com novos ingredientes de plantio, a adoção de plantas mais ricas em proteínas (legumes em favas, lentilhas, ervilhas, por exemplo), propiciando maior poder energético aos seres humanos que as utilizavam, o que resultou em ações humanas mais efetivas para construções e desbravamentos (cf. Le Goff, 1995: pp. 83-84). A par disso, também se observa, a partir do século X, um fortalecimento do comércio escandinavo, que se relaciona com o comércio judeu e árabe, que por sua vez se movimentava trazendo e levando madeiras, ferro e estanho para as espadas francas, além de mel e escravos7 (geralmente eslavos - slaves), por estradas entre Córdoba (então muçulmana) e Kiev (através da Europa Oriental), incluindo-se como beneficiárias dessa rota comercial a região do Reno e a região das cidades de Pádua e Milão. O fim das invasões à Europa Ocidental e o desenvolvimento de acordos e regulações de paz, estimulados pela Igreja Católica (Paz de Deus), que permitiam o respeito da atividade militar aos setores da população não combatentes (como os padres, mulheres, crianças, camponeses, mercadores e até animais de trabalho), além de uma melhoria das condições climáticas por um grande período de tempo, propiciaram um aumento da demografia, a ponto de a população da Europa Ocidental, entre os séculos XI e XIII, ter dobrado e, em algumas regiões, triplicado o número de seus habitantes (cf. Jerôme Baschet, 2004: p.89). E o aumento da população propulsionou a atividade de construção de novos tetos, com a ampliação das cidades, além da criação de novas cidades. Uma população maior exigia, em um ambiente profundamente clerical e religioso, igrejas maiores e mais igrejas. Essa produção exigia a obtenção de matériasprimas como pedra, madeira e ferro; foram surgindo, assim, novas técnicas de construção, aperfeiçoamento de transporte, novos canteiros construtivos, novas pontes, celeiros, mercados, novas casas com material melhor para os mais ricos, tudo isso formando uma espiral de crescimento econômico e formando novas situações a serem pensadas, conflitos a serem resolvidos, interesses afetados e assim por diante. 7 A escravidão, em descenso desde o final do Império Romano, foi sendo por etapas substituída por situações intermediárias, como a manumissio cum obsequio, a servidão mansa, e diversos estatutos correspondentes, até estabilizar-se com a servidão típica no final da Idade Média alta. Mas em alguns lugares, como por exemplo na região da Provence, com maior influência da cultura romana e também com muito contato com as regiões muçulmanas dominadas (assim como ocorreu na Península Ibérica), a figura do escravo doméstico perdurou por quase toda Idade Média. 16 Esse fenômeno repercutiu nas instituições de poder, alterando os horizontes políticos e sociais, criando-se, a partir daí, universidades e recuperando-se o Direito de sua herança romana. Toda essa movimentação econômica e social propiciou, a partir do século XI, um fenômeno denominado pelos historiadores de “Renascença medieval”, momento em que se dá uma maior importância e atenção ao trabalho humano. Afinal, até então predominava a concepção de que a sociedade era formada pelos oradores (os clérigos), os guerreiros (os cavaleiros nobres) e por fim, e de derradeira importância, os trabalhadores (o povo, os plebeus) - a estes últimos restava arcar com a maldição do pecado original: o trabalho. A mudança dessa concepção nos permite, então, observar as relações de trabalho a partir do período apontado, com ênfase na Idade Média baixa, ou Idade Média tardia, época em que o trabalho livre se estrutura e também se modifica paulatinamente nas cidades novas ou repovoadas desde a chamada “Renascença medieval”. Assim, o período da Idade Média baixa representa um momento de crise na Igreja, de crise de poder político na mudança nas relações entre a Igreja e os reinos, de estruturação dos reinos nacionais emergentes, de transformações nas concepções jurídicas e suas aplicações, de crise em razão de guerras entre reinos e revoltas internas (a guerra dos cem anos, por exemplo), de crise econômica e financeira interna e entre os reinos existentes, de sérias crises causadas pelas epidemias (peste negra, por exemplo), de formação e ampliação da burguesia nas cidades, agudização das tensões existentes no âmbito das cidades e das corporações existentes, de modificações nas relações corporativas, e assim por diante. Trata-se, portanto, de um período rico de situações e de transformações sociais, institucionais e jurídicas que merece uma atenção especial. 3- O porquê do espaço escolhido Como já pudemos observar acima, é a partir da tentativa de retomada do Império dos romanos pela Igreja, através do Sacro Império Romano-Germânico, que se constata uma nova leva de crescimento e desenvolvimento da Europa Ocidental. E o ponto de referência desse momento é o espaço principal do referido Império com apoio da Igreja 17 Católica: a região em que os francos haviam se instalado, após sua invasão, sobre o declinante Império Romano, ou seja, preponderantemente a Gália (mais tarde, França). Podemos constatar, assim, que o espaço central relativo ao Sacro Império Romano-Germânico, mais precisamente as atuais regiões da França e circunvizinhança (inclusive parte da Península Ibérica8), constituem o centro político e territorial principal do período de tempo escolhido. Destaque-se que essa região continuou sendo, durante todo o período da Idade Média, ponto irradiante de fatos e posturas para os povos próximos, inclusive local de onde partiu a primeira cruzada cristã9, no século XI. Aqui, portanto, a razão de se adotar esse espaço como lugar a ser observado em primeiro plano. Cabe notar, ainda, que é a França o território em que, pela primeira vez na Europa Ocidental, um rei se torna rei de um espaço relacionado a um povo: é o caso de Felipe Augusto, que bem no início do século XIII (entre 1204 e 1205) não se coloca mais como rei dos francos, mas rei dos franceses10 (Basdevant-Gaudemet, e Gaudemet, 2003: p. 15). Por fim, deve ser destacado que, embora Roma fosse a sede espiritual da Igreja Católica, tanto ela como as cidades da hoje Itália, possuíram uma importância secundária na Idade Média. A sede espiritual da Cristandade, Roma, possuía um destaque religioso, como era, por exemplo, Santiago de Compostela, só que com um contingente populacional bem maior. Dessa maneira o destaque político, social e econômico nesse período corresponde ao centro geográfico escolhido acima. 8 Aqui também em razão da influência ibérica para nós, brasileiros. Promovida pelo papa Urbano II, a partir de região central do reino dos francos. 10 L’expression est nouvelle. En 1204 Philippe Auguste se reconnaît Rex Franciae, Regnum Franciae apparaît en 1205. 9 18 B – UM OLHAR PANORÂMICO (OU A GRANDE ANGULAR) I – O conjunto de interesses denominado Cristandade Durante a Alta Idade Média, na região acima destacada, foi sendo forjada uma estreita relação entre os poderes locais, a povoação existente nas terras e os representantes da Igreja Católica. O desenvolvimento desse conjunto resultou em um fenômeno geográfico, político, social, cultural e religioso (ou teológico-filosófico) denominado Cristandade11. À frente da Cristandade, a Igreja Católica ligada a Roma e remanescente do período final do Império Romano, com uma proposta universalista, representando as crenças e as ideologias durante o período medieval12, com autoridade intelectual ilimitada e detentora de grande poder econômico (vastos domínios e grandioso tesouro). Assim, a par do crescimento econômico na Idade Média Ocidental rapidamente apresentado acima, temos a expansão interior da cristandade européia a partir do desbravamento das terras sobre matos e pastagens13 e formação de novas cidades. Sob o prisma exterior, o uso da via militar para ampliação de fronteiras e as longínquas e as nem tão longínquas expedições contra os muçulmanos e outros “infiéis” através das cruzadas. Vê-se como parte dessa expansão a cristianização de povos chamados pagãos, como os normandos (homens do norte: escandinavos) instalados também no noroeste da França e na Grã-Bretanha, além de conquistadores de terras muçulmanas ocupadas, no sul da Itália e Sicília. Também a cristianização ocorreu na parte centrooriental da Europa, nas regiões germânicas e eslavas. Aliás, vale destacar que a reconquista da Península Ibérica sobre os muçulmanos teve uma estreita relação com a emigração francesa e a atuação numerosa de cavaleiros franceses de regiões próximas dos Pirineus: eles atuaram junto aos reis cristãos locais e com apoio dos monges de Cluny, diante de sua estreita relação com Santiago de Compostela. 11 Utilizamos nesta parte do trabalho, como referência principal, a obra de Jacques Le Goff, A Civilização do Ocidente Medieval, volume I, que é ímpar, detalhada e rica em informações e análises sobre o período aqui objeto, principalmente sobre a cristandade medieval. 12 Vide Ellul, 1999: p. 237. 13 As florestas foram por muito tempo poupadas como lugar de caça dos nobres senhores ou como fator de isolamento das abadias. 19 Essa guerra militar de reconquista religiosa serviu como elemento de ambientação às cruzadas em direção ao Oriente Próximo, que acabaram se tornando uma quimera de saída para o excedente populacional do Ocidente, busca de terras e feudos, riquezas e as mais variadas ambições latentes. Mas também representaram um dos fatores de crises políticas, sociais e econômicas na Idade Média baixa, ainda que tenham permanecido como um ícone da expansão da cristandade medieval. Vemos que não foram as cruzadas que proporcionaram desenvolvimento comercial com lugares mais longínquos, já que havia anteriormente relações comerciais, assim como contato com tecnologia e produtos com o mundo muçulmano, inclusive com rotas de comércio já referidas supra. Da mesma forma, as informações de cunho intelectual e erudito sobre o Islã (ou Islão), Roma e a Grécia eram obtidas por centros de tradução e bibliotecas na Grécia, Sicília e Espanha, com muito maiores contatos, do que na Palestina. As expedições dos cruzados trouxeram o empobrecimento dos nobres cavaleiros (outro motivo de crise na Idade Média baixa), trouxeram as rixas entre nações (por exemplo, na segunda cruzada, efervesceu o ódio entre franceses e alemães) e entre latinos e gregos (o que resultou na quarta cruzada de cristãos sob o signo de Roma contra Constantinopla/Bizâncio, em 1204). Também foram nas cruzadas que se iniciaram os excessos de morticínios, como os pogroms contra os judeus, e as pilhagens. Para financiamento dessas campanhas, a Igreja aumentou os impostos pontifícios e deu destaque à venda de indulgências, com repercussões sérias para sua divisão futura. E a breve permanência dos cruzados em Jerusalém é considerada por Le Goff o “primeiro exemplo do colonialismo europeu” (1995: p. 98). A concepção das cruzadas, em seu início, era transformar o ato guerreiro, tão usual naquele período, em que a Igreja se batia pela “Paz de Deus”, em uma causa justa contra os infiéis, mudando o rumo dos combates intramuros para extramuros, formando uma unidade cristã contra os maus e infiéis, na busca da Jerusalém espiritual. Apesar de todos os problemas trazidos por suas contradições, as cruzadas serviram, entretanto, como ponto de referência da presença da Cristandade pelo mundo fora do âmbito europeu, além de ser o pólo ideológico utilizado pela Igreja de Roma para marcar sua presença em todo esse mundo, notadamente entre os séculos XI e XIII, inclusive. 20 Se as cruzadas representam a atividade externa principal do conjunto de interesses a que se dá o nome de Cristandade, temos no âmbito interno desse coletivo uma Igreja que também conviveu e participou das mudanças ocorridas a partir do período denominado de Renascimento medieval. Embora no plano de desbravamento de terras para plantio e construções os monges das abadias tradicionais (como os cluniacences, de formação beneditina), por sua postura senhorial e ociosa, não incentivassem a instalação e uso de terras para o trabalho14, o surgimento de novas ordens com novas posturas tiveram caminhos diferentes: ou de característica mendicante, sem vínculos com espaços maiores; ou de caráter eremita, sendo que nesses casos não havia preocupação com as novas terras e novas construções; ou então, ligadas aos conglomerados urbanos, com relações com as igrejas nas cidades ou com relação mais próximas com as universidades nascentes, aí sim, ligadas com os novos tempos15. O grande crescimento e desenvolvimento das cidades levam a Igreja a caminhar pelo apoio às ordens que se coadunam com os novos ares, deixando em plano secundário as ordens eremitas e mendicantes, muito próximas a uma estrutura mais agrária e feudal. Mas mesmo algumas delas passaram, com o tempo, a se aproximar dos centros populacionais e da linha oficial da Igreja de então, em compasso com o momento histórico: como exemplo, temos Tomás de Aquino e Boaventura, mestres com atuação destacada na Universidade de Paris16, sendo um dominicano (frade predicante) e outro franciscano (frade menor). Como destacado por Le Goff (1995: p. 120), no século XIII se vê a Igreja, que conduzia a sociedade, passar a se adequar à sociedade. Merece ser observada a ênfase na construção das igrejas em forma de basílicas, em contraponto às abadias do período anterior. Essa opção possui direta relação com a presença da Igreja nos locais com maior conglomerado urbano. Da mesma forma, esse conglomerado urbano relaciona-se com a laicização e, em paralelo, com a maior vigilância da Igreja sobre esse fenômeno que envolvia população urbana, universidades, discussões filosófico-religiosas e posicionamentos práticos; daí as sumas escolásticas e 14 Em função da visão de que o trabalho relacionava-se à maldição do pecado original de Adão e Eva, que foram expulsos do Paraíso e condenados ao trabalho; a utilização do trabalho manual era empregada como forma de expiação do pecado e de sofrimento, como na frase “trabalho de beneditino”. 15 “A oposição entre o monaquismo antigo e o novo monaquismo é simbolizada pela polémica entre o cluniacense Pedro, o Venerável, abade de Cluny (1122-1156) e o cisterciense S. Bernardo, abade de Clairvaux (1115-1154)” (Le Goff, 1995: p.118) 16 Final do século XIII. 21 atitudes mais severas de disciplina teológica, resultando disso a “Santa Inquisição”17. E foram várias as heresias formadas nesse período aqui retratado. Vale lembrar que essa preocupação com a disciplina ideológico-religiosa da Igreja Católica se dá de forma dura e forte, a ponto de ter ocorrido uma cruzada e um massacre dentro própria França, mais precisamente na região do Languedoc do território francês, tendo como alvo principal a cidade de Albi. Tal cruzada sobre os albigenses uniu o interesse centralizador e disciplinar da Igreja, com uma preliminar postura centralizadora de poder do reino, no início do século XIII, afastando e subjugando à força os principais senhores feudais daquela região, muito fortes econômica e politicamente, e intimamente ligados à doutrina catarista18. Sendo a Igreja Católica o ponto referencial do que se denomina Cristandade, vale a pena observar sua presença política no período destacado. No que se chama de Igreja Católica (universal) “Imperial” 19, a partir do século XI passa a ocorrer o que se denomina de reforma da Igreja. É que, após a fracassada tentativa de retomada do Sacro Império Romano pelos reis germânicos, com influência papal, mais de cem anos depois o papa Gregório VII adota uma conduta política de separação e supremacia do reino temporal pela Igreja Católica. É dele o Dictatus Papae (declaração papal sobre seu papel e da Igreja no mundo), assim como o início da estruturação concreta e temporal do poder papal e da organização do Direito Canônico. É ainda importante destacar que, desde a relação de protetorado entre Gregório, o Grande, e os reis merovíngios, no final do século VI, completando-se com o período carolíngio (século VIII em diante), a relação de poder da Igreja se situava, de um lado, no plano espiritual, e de outro, na influência que a nobreza exercia sobre os estamentos do clero, ocorrendo mesmo uma inter-relação de bispos nobres e nobres bispos. Afinal, os reis desse período influenciavam nas escolhas das direções eclesiásticas, inclusive colocando nos cargos de direção pessoas diretamente ligadas à nobreza local, ou então, influenciando na escolha dos bispos locais, havendo até bispos laicos. E as leis 17 Merece destacar que a Inquisição como instrumento oficial surge no século XIII e permanece bem atuante até o século XV, diminuindo sua atuação paulatinamente nos séculos posteriores; na Península Ibérica perdurou atuando com apoio dos reis locais até o século XVIII. 18 Grupo heterogêneo e maniqueísta com influência de concepção bizantina dissidente, composto em parte de nobres, artífices e de gente do povo nas cidades; formaram uma anti-igreja, com bispos, clero e ritual – denominavam-se os “perfeitos”. 19 Estabelecida sob a proteção do Imperador Constantino, patrocinador do primeiro concílio, no século IV. 22 canônicas sofriam total incorporação da liturgia e da teologia, sendo mais regras comuns, que por sua vez eram vagas e, portanto, de aplicação abstrata, com influência política óbvia. Lima Lopes (2002: pp. 85-86) destaca que Gregório VII representou uma tomada de posição de libertação da Igreja do chamado poder secular, formando um poder burocrático, com aspectos de racionalidade, legalidade e formalidade20. Centrou assim sua luta contra a simonia (venda dos símbolos sagrados, como cargos e ordenações clericais), casamentos dos padres (nicolaísmo) e nomeação dos leigos para os cargos mais altos do clero, que recebiam rendas pelo uso das terras e bens da Igreja. Também representou um conflito que se tornou crônico por séculos21 diante de sua proposta de centralização de poder e de supremacia do poder papal diante dos reinos temporais. Este marco sela a estruturação do direito canônico sob a égide papal como a fonte legitimadora desse poder, sendo o Decreto de Graciano seu ícone principal (utilizado pelos decretistas ou canonistas). José Antônio C. R. de Souza e João Morais Barbosa (1997: p. 30) destacam Gregório VII como aquele que “lançou os alicerces inovadores da teoria segundo a qual o sacerdócio tem uma missão mais relevante, do que a realeza, no interior da cristandade, tese esta progressivamente enriquecida até alcançar a maturidade no século XIV”. A esse fenômeno estes autores denominam hierocracia. A presença da Igreja Católica com uma política centralizadora de poder a partir daquele momento causou uma grande alteração na sociedade medieval. Isso porque havia uma sociedade que pode se chamar de anárquica, no sentido de haver uma plêiade de poderes e jurisdições, típica do período feudal, e essa nova postura de aspecto burocrático, aglutinador e subordinador é um contraponto àquele momento da sociedade. Vale aqui observar então a sociedade medieval. 20 Entende-se até que lança aí as bases para a futura concepção do estado moderno. O conflito se iniciou com o germânico Henrique IV e se denominou de “querela das investiduras”, por força do posicionamento papal sobre quem tinha o direito divino e temporal para escolher e investir como bispo da Igreja. Devem ainda ser lembrados outros conflitos posteriores, como o inglês, entre a Igreja, representada pelo bispo Thomaz Beckett, e Henrique II; e a polêmica portuguesa, entre o papa Honório III e D. Afonso II; além desses, o episódio francês de Felipe, o Belo, já no início do século XIII (“querela bonifaciana”). 21 23 II - A sociedade medieval 1- Características Jacques Ellul22 (1999: pp. 130-136) destaca que a sociedade medieval, desde o final do império carolíngio, sofreu diversas influências. Em primeiro lugar a cristã, através de um conjunto de doutrinas políticas e jurídicas de um sistema organizativo tal como o poder político sob a concepção da vontade de Deus e escolha de soberanos, as noções de justiça sob o critério religioso e, nesse contexto, a eqüidade, compaixão, fidelidade, etc., que formam as bases do pensamento elaborado pelos canonistas e teólogos da Igreja. Em seguida, a presença da Igreja como instituição própria, impondo-se como uma sociedade com suas próprias regras jurídicas e com influência direta na sociedade ao redor de sua presença, quer pelo ensino, assistência aos pobres, jurisdição nas questões relacionadas com a Igreja, e quer mesmo por propostas de pacificação entre os poderes laicos e respeito destes à paz declarada pela Igreja em seus espaços. Em segundo lugar, observa esse autor a influência oriental, que aponta ser, de um lado, negativa e de outro, positiva. Como negativa, destaca o cerco político e econômico provocado pela civilização árabe, impedindo o acesso à região mediterrânea, o que ocasionou profundo prejuízo econômico às regiões ao derredor que não possuíam uma relação de identidade com aquela civilização. E, como positiva, destaca uma nova postura de relacionamento com o mundo muçulmano, principalmente após o ano 1000 de nossa era, com obtenção, pelas regiões européias denominadas cristãs, de contato com moeda, comércio, importação de métodos agrícolas e de novos tipos de plantas, além de contatos culturais, políticos e sociais. Em terceiro lugar, Ellul destaca a influência romana, a partir da redescoberta do direito romano; e aí passa a ser conhecida uma sociedade anterior unitária e uniforme, com um poder político centralizado e um sistema jurídico racional, o que, no caminhar da Idade Média, representará um elemento instrumentador da centralização política nas mãos dos reis locais. Por fim, são de se destacar os pontos internos de influência da própria sociedade medieval no Ocidente, como a região de Flandres, cidades italianas e francesas, 22 Neste capítulo utilizamos como fonte principal Histoire des instituitions – Le Moyen Age, deste notável escritor, historiador e jurista francês. 24 quanto ao desenvolvimento urbano; a região da Grã-Bretanha, com aspectos de organização monárquica (como o sistema financeiro e organização militar); e a importância das relações internacionais de comércio, com uma estratificação do chamado jus mercatorum. O mesmo autor supra aponta como características gerais da sociedade medieval os seguintes aspectos: trata-se de uma sociedade anárquica, pois não possui um poder centralizado e único ou mesmo uma concepção abstrata do que seria um Estado; mesmo os direitos e poderes do que hoje se relaciona ao Estado são divididos entre várias autoridades, como os senhores feudais, a igreja, as cidades e assim por diante. E essas autoridades exercem os poderes e os direitos relativos à justiça, às finanças, à moeda e o exercício do poder militar. Como essas autoridades não prestam contas a um poder central, os diferentes grupos que a compõem equilibram-se mutuamente, ocorrendo uma dispersão de direitos políticos e uma fragmentação do direito em cada estamento, com o que se pode nomear de sistema jurídico próprio e particular de cada grupo de poder. Ao mesmo tempo em que anárquica, abundando de grupos políticos e com fragmentação de poderes, não se trata de uma sociedade desordenada, pois é profundamente hierarquizada. Dessa forma se observa que a sociedade medieval convive com o princípio da ordem e da organização: de uma parte, o rei como órgão de coordenação, usando o bem comum para aplicá-lo na forma de instrumento de conciliação e arbitragem; de outra parte, os grupos locais, unidos uns aos outros através de hierarquias. E é a hierarquia o modo de organização do mundo feudal; mais uma hierarquia de grupos do que de pessoas que se encadeiam por princípios sistemáticos, espontâneos, por ações individuais seguidas de modelos associativos. E esse espírito associativo se desenvolve entre indivíduos, mas tendo em conta indivíduos associados a um grupo, pois não se visualiza o indivíduo sem o seu grupo; essa associação ocorre não de forma arbitrária, de escolha própria, mas de forma orgânica, pois para viver naquela sociedade é preciso estar ligado a um grupamento. Ocorrem associações internas e também entre grupos distintos, como entre senhores, entre comunidades de trabalho, entre cidades e comunidades de habitantes, entre poderes senhoriais e eclesiásticos, em um encadeamento próprio e hierárquico. A sociedade medieval é também uma cristandade, derivando daí duas resultantes: em todos os setores dessa sociedade há uma ligação com a cristandade; cada senhor feudal, cada cidade e cada reino é parte e participa do conjunto da cristandade e de 25 sua Igreja e a ela se subordina. E ocorre aí uma duplicidade relacionada entre o poder temporal e o espiritual, pois essa convivência gera conflitos típicos da concomitância do exercício de poderes por setores distintos. Como segunda resultante, temos uma concepção de que para fazer parte dessa sociedade é fundamental ser cristão e quem diz quem é cristão é a Igreja; os participantes desse conjunto possuem uma mesma linha de visão do homem e do mundo, e uma mesma fé. Quem desse conjunto enfrentasse ou rejeitasse a concepção apontada pela Igreja era submetido à pecha de heresia e isso o levaria à excomunhão; para os de fora desse conjunto, e sem fé, havia o rótulo de pagãos e infiéis, que eram, no máximo, tolerados, como os judeus, que viviam em comunidades sem direitos ou deveres cívicos. O autor referido ainda destaca que a sociedade medieval é universalista, malgrado sua fragmentação. Isso se observa por meio de três pontos principais: primeiro, não há a divisão dessa sociedade em nações ainda, não havendo, portanto, uma sociedade feudal francesa, outra inglesa ou alemã, pois as fronteiras existentes são por demais flexíveis. Como exemplo disso, temos que um senhorio pode estar em um território de um reino mas, em razão de um mecanismo de vassalagem, por força do sistema de feudos, submete-se por juramento a um príncipe de outro reino. Segundo, é a Igreja o fator de unidade entre os diversos setores da sociedade fragmentada política e economicamente; e a Igreja detém a conduta espiritual a ser seguida e também um poderio econômico, político, social e intelectual. De um lado, há a identidade pela fé, pelos ritos religiosos e instituições (como ordens religiosas); de outro, a unidade pela língua, ou seja, o latim, signo de universalidade intelectual dessa sociedade e que não representa uma língua popular. É o retrato desse mundo social. Como terceiro, o aspecto do cunho internacionalista daquela sociedade relaciona-se a um tipo de nomadismo constante, quer de forma externa, como as peregrinações a lugares religiosos ou expedições de cruzadas e expedições de comércio externo, quer de forma interna naquele espaço, com a presença de monges peregrinos e sucessivas migrações de trabalhadores avulsos ou mercenários, e viagens de comércio interno cruzando sucessivamente todo aquele lugar já apontado acima. Outro aspecto característico é que a sociedade medieval é uma sociedade sem classes; “ela é dividida em ‘corpos’ ou em ‘ordens’, mas não em classes. A diferença 26 entre esses dois termos é a seguinte: a classe é um fenômeno sócio-econômico (habitat, forma de viver, nível de vida, maneira de trabalhar, etc.); a ordem é um fenômeno funcional e jurídico. Uma ordem responde a certa função da sociedade e a repartição segundo as funções é regulada juridicamente. Cada ordem tem um estatuto jurídico particular correspondente à sua função (enquanto na divisão por classes todos têm a mesma situação jurídica)” 23. Nesse contexto, a sociedade medieval possui uma divisão de basicamente três ordens: a dos clérigos, com funções religiosas, intelectuais e de assistência aos necessitados, possuindo um estatuto jurídico próprio; a da nobreza, com uma função militar e política; e os plebeus, entre estes os servos e os vilãos (habitantes das vilas ou cidades). Neste último estamento, que atendia materialmente as outras ordens, foram sendo criados grupos em forma de corpos que passam a se estabelecer como classe com o decorrer do tempo: como a dos burgueses (principalmente negociantes), a dos chamados vilãos (trabalhadores livres das cidades) e a dos servos (no âmbito rural); estabelecidos nas cidades, os burgueses foram obtendo um estatuto jurídico próprio, com os privilégios especiais conquistados. Destaque-se que havia a possibilidade de mudança de status de ordens por cooptação. Tais corpos sociais atuam corporativamente, em grupamentos ou associações na qual o indivíduo participa institucionalmente, como parte do todo; ali tem sua função, sua proteção, seu estatuto jurídico e o meio de se desenvolver naquela comunidade. Esses corpos ou corporações atuam de forma simples, buscando seu próprio fim, como os monastérios, a comunidade de mercadores ou de trabalhadores e a universidade. Há também relações mais complexas, como entre os diversos corpos e ordens em função de uma região ou de uma cidade. 23 Ellul, 1999: p. 135: Elle est divisée en ‘corps’ et en ‘ordres’, mais non en classes. La différence entre ces deux termes est la suivante: la classe est un phénomène socio-ecnonomique (habitat, façon de vivre, niveau de vie, genre de travail, etc.), l’ordre est un phénomène fonctionnel et juridique. Un ordre répond à une certaine fonction de la société et la répartition d’après les fonctions est sanctionnée juridiquement. Chaque ordre a un estatut juridique particulier correspondant à sa fonction (alors que, dans la division par classes, tout le monde peut avoir la même situation juridique). 27 2- Feudalismo Na sociedade medieval, merece ainda ser objeto de observação a figura do denominado senhorio e sua relação com os habitantes do feudo, centro da estrutura feudal. Dominique Barthélemy, ao escrever sobre o vocábulo “Senhorio” no Dicionário Temático do Ocidente Medieval II (2002: pp. 465-466), afirma ser “o ‘senhorio’, um tipo de poder não estatal, próximo, rude e privatizado”. Aponta ser o conceito relativo a “um domínio rural e uma célula da vida social de enorme pujança, na qual os homens aproximam-se de seu chefe”, ou então, ao “despotismo de um castelão, gerador de fratura social”; ou então, “a relação de homem a homem entre um senhor medieval e seu servo”, ou mais ainda, “a relação fundiária estabelecida, a diversos títulos, entre o possessor de uma terra e seus ‘tenancieiros’”. Elenca que, após o século XII, “pode consistir na administração implacável, porém legal, do todo ou de parte de um ‘senhorio de aldeia’ pelos agentes (ministeriais) do nobre senhor que detém o título e a torre”. Marc Bloch (2002: p. 335) nos diz que um senhorio é, antes de tudo, uma terra, um terreno composto por pessoas24. E esse terreno compartilhado de forma própria possui duas partes integradas entre si: uma, de domínio ou reserva do senhor feudal, de onde recolhe diretamente todos os frutos; outra, chamada tenure, pequena ou média concessão de terra a ser explorada por colono (servo) em conjunto a outras tenures em volta do centro dominial. Bloch descreve a relação jurídica como proveniente de um direito real (da coisa) superior, que o senhor possui sobre a casa rústica do servo e o seu trabalho. Monique Bourin e Robert Durant (2000: p. 91) conceituam juridicamente o senhorio como o conjunto de direitos exercidos por um homem sobre outros homens, sendo que os direitos relativos ao poder de comandar, julgar e castigar são conhecidos por ban (daí, seignerie banale), e correspondem a direitos coercitivos; há ainda os chamados direitos senhoriais imobiliários (la seigneurie foncière), que se relacionam aos direitos de um proprietário sobre suas terras e sobre o trabalho daqueles que cultivam ali. Le Goff (1995: p. 125) nos diz que o feudalismo é, em primeiro lugar, o conjunto dos laços pessoais que unem entre si, numa hierarquia, os membros das camadas dominantes da sociedade. Esses laços baseiam-se num fundamento ‘real’: o benefício que o senhor outorga ao vassalo em 24 Destacamos o original: Une segnorie est donc, avant tout, une ‘terre’ – le français parlé ne lui connaissait guère d’autre nom -, mais une terre habitée et par des sujets. 28 troca de um certo número de serviços e de um juramento de fidelidade. O feudalismo, em sentido estrito, é a homenagem e o feudo. Vale lembrar que a figura do senhorio feudal remonta à estruturação carolíngia do poder político. Relaciona-se à cavalaria e à guerra a partir dos condados (domínios dos condes) 25 : é deles a concessão de terras e poderes proporcionais aos seus prepostos (vice-condes ou viscondes) que, por sua vez, passaram a organizar outros prepostos, e assim sucessivamente. O sistema do senhorio feudal26 era composto de oficiais para atuação administrativa, como a administração de armas, a administração jurídica e a notarial, a par de conselhos entre os pares e oitiva de vassalos para resolução de problemas, como guerra e paz, aumento de impostos, etc. A base dessa estruturação era a terra, seu uso e seu domínio, e a vassalagem relativa a essa estrutura27. A população na base da estrutura senhorial é principalmente de colonos de serviço rústico e, entre estes, os servos e os trabalhadores livres (rurículas). Tais plebeus situavam-se no contraponto dos nobres, que possuíam como principais características de seus deveres de nobreza, em primeiro lugar, não precisarem fazer qualquer trabalho servil, de contraprestação por dinheiro, conforme Ellul (1999: p.182) destaca de forma sintética e profunda: “O nobre que trabalha abre mão da sua nobreza” 28. Em segundo lugar, segundo o mesmo autor, existia o dever da obediência a seu senhor, sendo tal dever a absoluta fidelidade; o homem que faltasse com tal dever era considerado traidor e poderia ser punido 25 Há regiões em que há ducados sobre os condados. Destaque-se aqui um documento contido na Introdução Histórica ao Direito (Gilissen, 2001: p. 193): “CONTRATO VASSÁLICO; acto de fé e homenagem dos vassalos do conde da Flandres ao novo conde, Guilherme da Normandia (1127); relação feita por Galbert de Bruges, notário flamengo do condado. Em primeiro lugar, fizeram homenagem da maneira seguinte. O conde perguntou ao futuro vassalo se ele queria tornar-se seu homem, sem reserva, e este respondeu-lhe: ‘Quero’, depois com as suas mãos apertadas nas do conde, aliaram-se com um beijo. Em segundo lugar, aquele que tinha prestado homenagem comprometeu a sua fé ao delegado do conde nestes termos: ‘Prometo por minha fé ser, a partir deste instante, fiel ao conde Guilherme e de lhe guardar contra todos, e inteiramente, a minha homenagem, de boa fé e sem embustes’; e em terceiro lugar, jurou o mesmo sobre as relíquias dos santos.” 27 Hespanha e Macaísta Malheiros, em Nota do Tradutor, destacam na mesma obra de John Gilissen (2001: pp. 191-192) que a existência de feudalismo em Portugal corresponde a um debate clássico; apontam como posição mais próxima da realidade aquela que distingue dois planos quanto ao que seria feudalismo ali: “o das relações entre os grupos sociais dominantes e os grupos sociais dominados (pelas quais os primeiros se apropriam , nomeadamente, dos excedentes produzidos pelos segundos) e o das relações que estruturam o interior dos grupos dominantes (que organizam o bloco social dominante). O primeiro plano seria o domínio de vigência do regime ‘senhorial’, com uma definição próxima da que lhe é dada pela historiografia marxista (temperado, apenas, o exclusivismo economicista de algumas das suas versões). O segundo, o da vigência do regime ‘feudal’, como forma de organização interna dos grupos dominantes, neste plano sem diferenças decisivas em relação aos modelos centro-europeus”. 28 Le noble qui travaille, déroge e perd sa noblesse. 26 29 com a morte. Em terceiro lugar, havia o dever de seguir o código de cavalaria, rigoroso e preciso, ao qual se aderia por juramento; tal código de honra tinha como premissas a lealdade, o desdém pela morte, a fidelidade ao juramento, a proteção aos fracos, aos pobres e viúvas, o combate à injustiça e aos malfeitores e ser generoso29. Quem prevaricasse em seu juramento perderia seu título de cavaleiro. Tal situação de nobreza comportava em obtenção de privilégios ou vantagens, ao que se denominava de “estatuto jurídico particular” 30 . Por exemplo, a dispensa de pagamento de impostos (já que havia o pagamento de “imposto de sangue”), o direito de promover e participar de guerras privadas, o direito de ser livre e julgado apenas por seus pares e com penalidades especiais (sem castigos corporais). Já os chamados plebeus, mais precisamente trabalhadores livres ou vilãos (relativos às vilas ou cidades), que viviam principalmente nas aldeias próximas aos castelos feudais, subordinados a eles, recebiam serviços ou mesmo terra para trabalharem, mas não eram servos: eram livres para mudarem-se, circularem e trabalharem para outro senhor feudal, ainda que permanentemente vivessem sob dependência política de um senhorio. Possivelmente essa característica de liberdade era originária dos antecedentes colonos ou precários, ou estrangeiros livres, originários do período merovíngio (sucedâneo do fim do Império Romano). Os vilãos tinham que pagar tributos ao senhorio, como a taille, ou incisura, ou questus ou sauvement (nomes dependentes da região), que era devida ao senhor feudal pelo exercício de poder de política, segurança e exercício de justiça a todos os habitantes do local, salvo os clérigos e nobres. Estes habitantes sob um senhorio não poderiam se casar com habitantes sob a proteção de outro senhorio sem autorização conjunta deles, havendo lugares em que deveriam pagar uma taxa de casamento para essa situação. Os servos, que eram nascidos como tais ou se transformavam servos por casamento, ou desde que vivessem como agregados ao senhorio por um período certo de costume, ou por força de um contrato de servitude, etc., sofreram uma modificação com o passar dos tempos, pois aqueles com dominação próxima da forma escrava (principalmente ao final do período carolíngio, em que havia castigos corporais e exigência de trabalho 29 30 Aqui sob óbvia influência da Igreja. Cf. Ellul, 1999: p. 182. 30 seguido), tiveram uma melhoria de tratamento e condições entre os séculos XI e XII. Isso se deveu principalmente pelo convívio com os chamados trabalhadores vilãos vistos acima, que viviam nos mesmos locais, pela influência da Igreja exigindo melhor tratamento aos pobres, e trabalhadores, a par do aumento de cidades e utilização da produção rural para o comércio dessas cidades. Havia duas categorias principais de servos: uma chamada de servitude corporal (ou de corpo), pela qual o servo é servo em qualquer circunstância e ligado diretamente à terra em que serve, inclusive sua descendência; outra, a chamada servitude em razão da coisa (ou real), em que há a servidão relativa a determinado lugar e terreno cedido para ser trabalhado: se esse servo tem aceita a mudança de local para outro senhorio ou quita o pagamento relativo àquele local em que serve, deixa de ter a condição de servo e passa a ser um trabalhador livre ou vilão. 3- As cidades e a relação feudal Em contraponto à economia fundada na terra e seu domínio, as cidades passaram a conter uma economia monetária em decorrência da renovação comercial, com a estruturação de comércio e indústrias em seus meios31. Vale observar que o comércio nas regiões de Flandres e da Itália possuía característica mais fortemente pré-capitalista do que na França, que detinha, por seu passado de maior influência clerical, associações de comércio e indústria mais influenciadas por elementos religiosos, o que obstaculizava o desenvolvimento de um capitalismo mais individual. E esse viés provocava uma ênfase para que os comerciantes nas regiões francesas, desde o final do século XII, se preocupassem em colocar o dinheiro ganho preferentemente em terras, e não em novos investimentos comerciais. As atividades de crédito e empréstimo de numerários do Norte da região francesa eram mais simples, diferentemente das dos negociantes italianos. 31 Ellul (1999: pp. 200-201) destaca a renovação comercial desde o século X na Europa Ocidental, a partir de dois pólos principais: um, o setor da Itália com influência bizantina e a cidade de Veneza, que mantém comércio com o Islão; outro, com os normandos pelo mar do Norte e o Báltico, passando pela ilhas britânicas e a Rússia. Logo mais tarde, Marselha e Barcelona se tornam grandes centros comerciais, enquanto aumentam as rotas comerciais pelo rio Sena e a costa britânica, tendo a região de Flandres retomado fortemente a indústria de têxteis de lã. Também se amplia o comércio de especiarias e seda, com a presença de comerciantes italianos na região de Paris estabelecendo ali mais um centro financeiro; e também, é claro, muito importante o comércio de vinho. 31 Entre os negociantes italianos, viam-se cada vez mais as atividades de comércio de dinheiro, operando o crédito com empréstimos e complexificando essa relação com a criação de sociedades comanditárias, letras de câmbio, etc. 32 . Passaram então a suplantar os negociantes judeus, que se mantiveram mais localizados e restritos, inclusive em razão de suas condição de “não fiéis”. Cabe destaque a inclusão de créditos imobiliários, com a obtenção de rendas financeiras e a concessão de arrendamentos de terras e imóveis a terceiros. O comércio e as cidades trouxeram uma modificação para a agricultura: a concentração de pessoas passou a exigir mais provisões. E aquilo que era produzido para sustento passou a ser produzido para servir também para venda, fazendo que o dinheiro passasse a circular cada vez mais no campo, e os servos passassem a receber dinheiro e comprar sua liberação das terras; assim como os vilãos e os burgueses, que também passaram a comprar terras para explorá-las. Os senhores feudais passaram a vender terras ou a emprestá-las para exploração aos banqueiros ou burgueses comerciantes, bem como foram transformando suas reservas próprias em terrenos para uso rural (tenures). Ocorreram, portanto, grandes modificações na forma de exploração da terra dominial sob a influência das novas cidades, que se multiplicaram entre os séculos XII e XIII e passaram a ser autônomas a partir de cartas de franquia de senhores feudais, que cobravam tributos como a talle, mas passaram a admitir uma direção própria para essas comunidades. Vale destacar que essa passagem do direito potestativo senhorial para a autonomia das novas cidades não se realizou de forma homogênea e pacífica. Há vários relatos de insubmissões e contestações de camponeses, vilãos e burgueses contra senhores feudais na formação de diversas cidades, além de arbitragens pelos representantes da Igreja e até processos perante as cortes reais. Ocorreram, ainda, algumas revoltas armadas em regiões francesas, inglesas, italianas e principalmente espanholas; nessa última região, chegaram a existir combates de guerrilha por moradores castilhenses em meados do século XIII contra o bispo de Osma, por “pirataria senhorial” 33. 32 Assim como na Provence e em Barcelona. Bourin e Durant (2000: p. 107) descrevem a revolta castilhense de Osma como contraponto à “pirataria senhorial” representada pela política senhorial episcopal de cunho fortemente autoritário, que usava de força de forma provocativa, trazendo insegurança aos moradores da cidade. 33 32 Entretanto, mesmo que obtidas conflituosamente, os termos dessas cartas de franquia possuíam um ideal cristão e de “cavalaria”, facetado nas suas proposições. Bourin e Durant (2000: p. 108) descrevem a utilização do vocábulo benevolência nas introduções dos termos, em contraposição ao estigma de arbítrio pelo poder senhorial existente. Dão como exemplo a carta de franquia outorgada pelo senhor de Tintinnano, na Úmbria, em 1207, que destaca em seu intróito a “liberdade, a justiça e a igualdade, motivos do triunfo de Roma, que quer ser aplicado a suas terras e a seus fiéis, a fim de se retornar às boas condições antigas” 34. Os mesmos autores ainda descrevem que, no Norte da atual França, um quarto das franquias é de período anterior a 1190; a metade foi redigida entre 1190 e 1240, e o outro quarto delas depois de 1240. Mas as primeiras franquias apareceram na região da Itália, Espanha e Flandres, sendo raras na Normandia, tardias no Sul e praticamente inexistentes no Oeste francês e na Bretanha. Apontam também que as nuances regionais reforçam os resultados mais precoces ou não da existência das autonomias nas cidades mais novas. Destacam (p. 16) 35 : “De uma cidade a outra, de uma região para outra, tal ou tal setor possui uma forma própria de estimular o acerto. Aqui, a forma de fechar as entradas da cidade, ali, os problemas fiscais, acolá, a melhor forma de se ministrar a justiça. As diversas maneiras de se prestar solidariedade comunitária confluem para criar administrações públicas municipais e formas de institucionalização da vida política local”. A estruturação das novas cidades inter-relaciona-se com um tipo social: o burguês. Régine Pernaud (1995: p. 27) nos informa que o burguês habita a cidade e se relaciona a seu desenvolvimento na Idade Média; e a primeira vez que o termo burguês aparece em um documento histórico como tal ocorre para designar os habitantes de uma nova cidade, no início do século XI (1007) através de uma carta de franquia em que o Conde de Anjou garante as isenções de imposto para esses habitantes. A palavra burguês aparece na forma latina: burgensis. 34 ...la liberté, la justice et l’égalité, moteurs du triomphe de Rome, qu’il veut appliquer à sa terre et ses fidèles afin de revenir au bon estaut d’autrefois. 35 D’un village à l’autre, d’une région à l’autre, tel ou tel secteur a joué le rôle de catalyseur. Ici la clôture du village, là les problèmes fiscaux, là enfin la manière de rendre la justice. Les diverses formes de solidarités villegeoises confluent pour aboutir à la naissance de magistrats municipaux et d’une forme instituinnalisée de vie politique locale. 33 Essa categoria não representava um tipo abstrato, ou indeterminado, mas em cada cidade os membros da comuna que faziam o juramento de convívio e participação eram burgueses daquela comunidade específica. Quem era burguês não era nobre, nem clérigo, nem servo ou ligado ao serviço real. O termo burguês em seu início tinha relações diretas ou de até sinonímia à de negociante, ou seja, aquele que comerciava bens que não necessariamente produzia. A condição de burguês era reconhecida por origem de nascimento familiar, ou por cerimônia de entronização na cidade e, nesse caso, teria de ser paga uma taxa de entrada, prestar juramento de cumprir a carta de franquia daquela localidade e construir uma casa de moradia (o que permitia que um ex-servo que cumprisse essas obrigações pudesse se tornar burguês). Havia, para os burgueses nessas cidades, uma característica urbana que diferia da rural, provinda de costumes de comércio internacional (em razão dos mercadores): as relações jurídicas eram cumpridas com base na tradição do direito romano; deveria o burguês participar das festas de Natal, Páscoa, do santo padroeiro da cidade, além de poder participar da escolha da administração da comunidade, a par dos pagamentos de taxas pela sua situação no burgo. A burguesia passou a enriquecer pela ampliação das atividades de comércio e indústria, e começou a se organizar como classe, estruturando-se para fazer a defesa de seus interesses em relação à nobreza e até mesmo ao clero. Como exemplo da capacidade de aglutinação, temos a formação de confrarias burguesas, com características religiosas, porém de cunho disciplinar, organizativo e de defesa do grupo, quer abrangendo um setor, quer abrangendo uma região. A partir do século XIII, surgiu a figura da chamada “burguesia do Rei”, ou burguesia forasteira, originária de cidade subordinada ao Rei, e que passou a se instalar em terras de outro senhorio sem perder os direitos adquiridos na cidade de origem. Em 1287, ocorreu uma ordenança real regulamentando a burguesia. 34 III - As instituições políticas 1 - A organização do reino Em primeiro lugar, cabe destacar que em um grande período, durante a Idade Média, alterando-se a partir da baixa Idade Média, a concepção da realeza representava menos a atribuição de direitos e poderes do rei, do que considerar o rei como um titular de uma função, portador de um grande número de deveres perante a Cristandade e os súditos. A dinastia dos Capetos36 conquistou um prestígio ímpar no reino da França, devendo se destacar que, embora tenha sido eleita, é a partir dessa dinastia a opção da sucessão pelo filho mais velho, em razão de lei sálica37 readotada quanto a esse tema. Sua sucessão tinha também um caráter sacro pois, a partir da morte do rei, imediatamente se declarava rei o descendente direto38, com duas cerimônias interligadas pelo arcebispado, que fazia a transmissão da coroa. Esse ato correspondia ao que se entende como sacralização do poder real, o que levava à concepção do poder divino do rei. Deve ser destacado ainda que, a partir do século XII, o rei francês não presta homenagem ou qualquer tipo de subserviência a qualquer outro senhor; e, durante o reinado de Felipe Augusto, no início do século XIII, ele chega a proibir que se ensine direito romano em Paris, pois tal ensino propaga a supremacia imperial e ele, rei de França, não se subordina a império. É interessante notar que o caminho da concentração do poder real é proporcional ao caminho inverso do poder feudal, pois à medida que diminuem as esferas de poder, diminuem as forças políticas dos senhores que as exercem, substituídas pelo maior ângulo de força real centralizada. Embora integrado ao sistema feudal, o rei é um suserano especial: recebe as homenagens de seus vassalos, aplica a justiça senhorial, mas não presta homenagens, tendo sido fortalecido com o passar do tempo o princípio de que todo o senhor feudal dependeria ao menos mediatamente do rei. Curtis Giordani (1987: p. 50) lembra Ellul ao destacar que o poder de administrar e de exercer a autoridade não sofre 36 Um tal Hugo, que foi eleito em uma reunião de nobres rei dos francos no final do século X, adquiriu o sobrenome de Capeto (Capetien), ou “aquele da capa”, por ter sido escolhido numa abadia em que havia a guarda de uma capa de um santo. 37 Codificação franca do período das invasões do Império Romano (uma das leges barbarorum). 38 “O Rei está morto; viva o Rei”. 35 efetiva contestação por parte dos senhores feudais, mas é na administração da justiça que seu poder é inabalável, pois controla as justiças senhoriais e as subordina por meio das apelações39. E, a partir do século XIII, retorna com força a noção de súdito: todos os habitantes do reino devem obediência ao rei pelo simples fato de serem habitantes; tal situação chega a seu extremo durante os séculos XIV e XV, principalmente em função da guerra dos Cem Anos. O rei possui deveres para com seus súditos fundamentado no mito construído pela sucessão e sagração: proteger o próprio reino e a Igreja, quer de forma interna, na proteção de igrejas, no atendimento aos apelos contra injustiças, no arbitramento de questões entre senhores feudais, quer de forma externa, formulando e exercendo a defesa do reino, organizando negociações com outros reinos, etc. O reino possuía, no período que também é denominado central da Idade 40 Média , duas categorias de pessoas em seu torno: a domus regia, composta pela sua família, notadamente o príncipe herdeiro, e os palatinos, habitantes junto à corte, como cavaleiros sem feudo, clérigos íntimos e colaboradores do rei, além dos oficiais reais, como o senescal (chefe do palácio), o copeiro (com relação direta ao fornecimento do palácio, depois suprimido), o camareiro (depois substituído na prática pela ordem dos templários no tempo de Luís IX), o condestável (conselheiro militar e cavaleiro) e o chanceler (um secretário-geral); e a curia regis, que tinha a forma de assembléia real e era composta de vassalos: senhores feudais, bispos e abades, geralmente convocados para discutirem problemas de ordem política, judiciária e financeira. A partir do século XII, ocorreu uma mudança com alteração na curia regis: foi criada a figura dos “Pares de França” (Pares Franciae), os principais senhores feudais colocados acima hierarquicamente na assembléia41, assim como se iniciou um recrutamento de pessoal especializado para dar andamento a situações que se faziam necessárias no âmbito jurídico, administrativo e financeiro. Também se aperfeiçoou a curia regis com a criação nela de novos órgãos, como os “bailios” (baillis), que eram delegados do órgão, utilizados a partir de Felipe Augusto e tendo como modelo os xerifes ingleses (cf. Olivier39 Cabe lembrar que foi S. Luís (Luís IX), no início do século XIII, quem proibiu o duelo de armas como instrumento recursal, o que foi implantado de forma paulatina, desde os domínios reais até seu completo cumprimento. 40 Utiliza-se aqui a referência de Idade Média entre o período do século X e o século XIII. 41 Iniciaram-se com seis pares leigos e seis eclesiásticos; depois foram ampliados. 36 Martin, 2005: p. 232); o “parlamento”, que era a composição de juízes para atender as tecnicidades processuais; e a “câmara das contas”, composta por pessoal especializado para examinar as contas apresentadas pelos agentes reais. Curtis Giordani (1987: p. 56) destaca que, no século XIV, a “câmara das contas” separou-se da curia regis. Esse autor ainda destaca que foram criados os “estados gerais” a partir do destacamento da curia regis pela curia in concilio, que era um conselho mais próximo do rei, mais precisamente formado por prelados e barões representantes das principais cidades do reino. Tal figura surgiu42 no início do século XIV, na época do conflito entre Felipe, o Belo, e o papa Bonifácio VIII. Esse conselho foi reconvocado para tratar das questões oriundas dos templários e passou a ser composto como assembléia consultiva por três ordens do reino: grandes senhores, prelados e representantes das cidades principais. Davam apoio à monarquia e deliberavam sob a alçada de cada ordem respectiva. Nos domínios reais havia uma administração local que era realizada pelo “preboste”. Este era escolhido em um tipo de leilão: aquele que oferecesse maior soma pecuniária ao rei era arrendatário do prebostado, por um período pré-fixado, que não poderia ser disputado por nobres ou clérigos para evitar a feudalização desse poder diretamente subordinado ao rei. A partir do século XIII, o preboste passou a ser escolhido e demitido pelo rei de forma direta; tinha como circunscrição territorial uma região específica, cabendo a ele dar a conhecer e fazer cumprir as ordens reais, recrutar soldados para o rei, administrar a justiça real, receber rendas e cuidar dos bens do domínio real do qual era encarregado (cf. Curtis Giordani, 1987: p. 58). Além dos prebostes, a partir da “guerra dos Cem Anos”, surgiu a figura dos “governadores”, que inicialmente eram escolhidos pelo rei entre seus nobres principais e eram enviados como delegados reais para manter a ordem em uma região ampla e distante quando isso se fazia necessário. Com o tempo esses delegados reais são fixados por regiões e passam a dirigir a administração que se denomina província. Sob o prisma financeiro, o reino utilizava as taxas denominadas tonlieu, que também correspondiam a rendas régias com base no direito de exercer a mercancia sobre a venda de comestíveis, roupas, vendas em feiras, etc. Havia também outras taxas, como o pedágio de viajantes e circulação de mercadorias, passagens sobre pontes, entradas e saídas 42 E se incorporou ao sistema monárquico até a Revolução Francesa. 37 de bens e mercadorias pelas cidades, etc. Havia também taxas de distribuição de justiça, recursos provenientes de rendas sobre os domínios e contribuições dos súditos. Foram sendo criadas várias taxas durante os séculos, muitas delas tendo sido objeto de reclamações e revoltas, como aquela contra a taxa criada no final do século XIII, em função dos estoques de vinho; tal taxa foi denominada de maltôte, muito embora tal termo designasse uma taxação mais extensiva. Aliás, esse termo acabou denominando a amplidão dos impostos indiretos. Já no século XIV, há na França dois tipos principais de impostos: o chamado fouage, que incidia para cada sede da família (feu); e o imposto indireto, denominado maltôte, que correspondia a taxas de múltiplos aspectos, como as taxas criadas sobre o uso de vestes, combustíveis, as décimas cobradas do clero, venda do sal, etc. A cobrança de impostos reais foi sendo progressivamente substitutiva daquelas cobradas pelos senhores feudais, impedindo-se ampliativamente a concorrência de tributos do rei e dos senhores feudais, passando a ocorrer um monopólio real, caminho para o absolutismo político. Esse também foi o caminho na Península Ibérica, havendo um típico exemplo no texto das Partidas de Afonso XI, no Ordenamiento de Alcalá, em que se declara que são dos imperadores e dos reis as águas e poços salgados que produzam sal (Cf. Curtis Giordani, 1987: p. 190). Cabe ainda observar rapidamente a moeda: com o chamado Renascimento medieval, já visto acima, diante da evolução econômica e transformações sociais ocorridas a partir das cidades repovoadas e criadas, surgiu uma efetiva necessidade de dinheiro. Curtis Giordani (1987: pp.191-192) elenca alguns fatores que deram origem a essa necessidade: novas exigências no campo militar (armamento metálico mais custoso, construção de fortalezas com material mais durável, novas armas), no campo religioso (novas igrejas, peregrinações e as cruzadas), no campo tecnológico (vários tipos de moinhos e uso de roda específica, novas formas construtivas, como abóbadas, escadas em caracol e formas de pavimentação), e no campo doméstico (com melhor conforto e condições de vida, uso de tecidos, etc.). Para atendimento dessa demanda, ocorre um aumento de metais preciosos, em razão da descoberta de minas de prata e cobre (propiciando a ampliação da fabricação das moedas), do comércio com o Oriente próximo (com o uso de moedas bizantinas e 38 muçulmanas) e do retorno das peças de tesouro saqueadas pelos húngaros e vikings (normandos). Diante de tal situação, as oficinas de cunhagem de moeda foram sendo multiplicadas, por interesses da Igreja, dos senhores feudais e mesmo das cidades, tornando o jus monetae um elemento a mais para a anarquia monetária existente no período feudal até a Idade Média baixa. A partir do século XIII, mais precisamente com o rei Felipe Augusto (no início desse século), passou a ocorrer uma política de unificação monetária em seu domínio43, com o fechamento das oficinas de cunhagem regionais e centralizando Paris como ponto de cunhagem do reino, sob sua supervisão. Seu descendente, Luís IX (S. Luís), regulamentou a cunhagem de moedas, devendo ser notado que este rei incentivou a circulação de moeda pela população, com a cunhagem de uma peça de prata, o gros. O mesmo Luís IX passou a cunhar moedas de ouro em 1257, o que ocorreu quase um século depois na região de Castela, por Afonso XI. A organização política na Península Ibérica, tendo como base Leão e Castela, obteve com Afonso X, no início do século XIII, a criação de texto primordial para a organização política do reino. Trata-se das “Siete Partidas” 44 , que estabelecem a sucessão do reino pela primogenitura, e nesse contexto se consagram ao rei o direito à promulgação de leis e sua interpretação, recebimento de impostos ordinários, a responsabilidade direta pela cunhagem de moedas, a nomeação de altos funcionários palacianos e judiciários, o comando supremo do exército e a administração da justiça e indulto de penas. Em Portugal, que recebeu influência marcante das Siete Partidas, principalmente a partir do século XIV, o papel do rei como monarca e centralizador do poder nacional é deflagrado pela redução dos direitos dos nobres e do clero, com o espaçamento das reuniões das cortes e o aumento de delegados e funcionários reais45. 43 A partir do momento em que a ordem dos Templários passa a ser utilizada como base financeira para o reino. 44 “... (assim chamadas, por a partir da sua terceira redacção, se acharem divididas em sete partes – obra que, em Castela, começa por ter um caráter legislativo que, depois, passa a ter uma feição doutrinal e que, em 1348, adquire o valor de direito subsidiário) – é ela um código ou tratado onde se abarca o direito, em geral, nomeadamente romano, de que constitui uma notabilíssima síntese.” (in História do Direito Português, de Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, 2000: pp. 230-231). 45 A centralização do poder em torno do rei, quer na França, Inglaterra, Espanha, Portugal, etc., representa um encaminhamento pela burguesia das cidades de concretização de um poder centralizado e forte, capaz de 39 2 - A organização da Igreja Desde o episódio denominado “querela das investiduras”, no final do século XI, marcado pela luta de poder sobre a investidura dos bispos na região do chamado Santo Império, entre o Papa Gregório VII e o imperador Henrique IV, com reflexos em toda a região circunvizinha, a Igreja Católica veio a conquistar uma vitória do poder papal, efetivada no século XII. No século XI, atribuía-se a regra Officium propter beneficium, pela qual aquele que obtivesse o gozo de um benefício (região de domínio da Igreja que o beneficiário utilizava para seu uso e fruto enquanto tivesse a atribuição concedida) mais rico ou mais importante teria um cargo correspondente a ele. Assim, relacionava-se benefício a ofício, havendo benefícios maiores, relacionados com arcebispos, bispos e abades, e benefícios menores, relacionados com padres oradores, curas, etc. A indicação dos benefícios maiores, a partir do século XII, portanto, passou a ser da autoridade máxima da Igreja, com anuência dos poderes locais, e não mais o inverso, como ocorria principalmente antes do episódio da “querela das investiduras” (cf. Ellul, 1999: pp. 240242). Aliás, até o século XII, a nomeação aos benefícios maiores era efetuada pelos reis ou pelos principais senhores feudais, que entregavam aos beneficiados o anel e a cruz do cargo (as insígnias) como sinal de troca de atenção pela homenagem e fé a eles prestadas. Após a reforma gregoriana (a que se refere o episódio da “querela das investiduras”), cessou o dever de homenagem pelo beneficiado, que passou a ter seu benefício pela responsabilidade direta do Papa, com indicação de escolha pelos sacerdotes locais (relacionados à Igreja catedral), permanecendo, entretanto, a cerimônia da entrega do anel e da cruz pelas autoridades terrenas locais46. A nomeação dos benefícios menores era efetuada pelos bispos locais; no caso de domínio de Igreja construída por um particular (geralmente um senhor feudal), o implantar uma racionalização tributária, estabelecer uma política monetária centralizada, estruturar uma justiça com base nessa centralização política e uma segurança eficaz aos negócios e no dia-a-dia. 46 Ellul (1999: pp. 241-242) destaca que a escolha do bispo se dá por pedido da assembléia eleitoral (padres da localidade em que se encontra a catedral) ao rei para que seja efetuada a eleição. O rei ou o senhor principal dá indicação de seu candidato; a partir daí, os padres votam em sessão sob a direção de um bispo vizinho, e a designação é feita não pela maioria quantitativa, mas pela prioridade qualitativa dos votantes – os principais entre eles. No caso de contestação ao resultado, é feito um apelo de revisão ao arcebispo e depois ao Papa. A partir do século XIII, o Papa passa a nomear diretamente os bispos. 40 fundador apresentava ao bispo sua indicação, que poderia ser anuída pelo mesmo. Caso houvesse alguma irregularidade na nomeação efetuada, que se denominava direito de “Patronato”, a mesma poderia ser revisada pelo Papa47. A hierarquia, após o episódio da “querela das investiduras”, era constituída inicialmente pelos primados que, a partir de meados do século XII, passaram a se constituir em títulos honoríficos, embora até esse momento representassem ainda uma chefia da Igreja no reino. Havia então o arcebispado, com atuação regional e nomeado pelo Papa, que lhe concedia as insígnias de sua dignidade; a partir do século XIII, a atuação do arcebispo passa a ser diminuída pela intervenção direta do Papa nas questões regionais. O bispado também sofreu uma interferência direta do Papado após a reforma gregoriana, pois o bispo passou a ter de se dirigir a Roma e ali permanecer por quatro anos; além disso, teve seu papel reduzido quanto à relação de poder com os senhores locais, graças a uma centralização ainda maior do papado a partir do século XIII. O clero regular tomou uma nova feição entre os séculos X e XII com o surgimento do monastério de Cluny, uma ordem baseada nos ensinamentos de S. Bento, com ampla atuação em diversos reinos, e possuindo, só na região da França, cerca de oitocentas casas ligadas a ela no meio do século XII. Havia ali um prior (o Abade de Cluny) que nomeava os priores de todas as casas (abadias), assim como os destituía de forma unilateral. Tal absolutismo centralizador foi incentivado pelos papas do período, sendo certo que o Abade de Cluny não estava subordinado senão ao Papa. A partir do século XI, ocorreu um tipo de reação a Cluny, acusada de relaxamento das rígidas ordens morais baseadas no beneditismo (S. Bento), sendo criada a ordem Cister48 a partir da Abadia de Citeaux49, próxima a Dijon. Sua organização era descentralizada e cada abadia elegia o abade por seus monges, possuindo uma característica federativa; seu conclave anual, com a presença aberta a todos os seus monges, era o órgão jurisdicional supremo da ordem. Seu grande teórico foi S. Bernardo, e os cistercienses denominados de “beneditinos brancos”. Tinham por base uma conduta austera na vida cotidiana e ênfase no trabalho manual; nos séculos XII e XIII, foram considerados os 47 O mesmo autor supra destaca que o recrutamento dos clérigos de tais benefícios, até o século XIII, era efetuado no meio rural; mas, a partir daquele século, passou a haver um recrutamento de clérigos entre a burguesia comerciante nas cidades, o que veio a transformar a mentalidade do clero desde então. 48 Deserto de Cister em que se situava a Abadia de Citeaux. 49 Comunidade de Saint-Nicolas-les-Cîteaux, a 20 km. de Dijon. 41 maiores cultivadores das terras na Europa em regiões desbravadas. Além disso, demonstravam profundas preocupações com os miseráveis e tinham como mote o trabalho livre: “Os homens livres trabalhando sobre um solo livre” 50. Os templários representavam, por seu turno, a ordem monástica militarizada. Formaram-se entre monges cavaleiros para lutarem contra os infiéis; a ordem dos templários foi fundada no século XII (1128), inicialmente supervisionada pelo Patriarca de Jerusalém, e somente no ano de 1139 foi reconhecida pelo Papa. O mestre da ordem era detentor de uma autoridade total, intitulava-se “Príncipe e Grande Mestre pela Graça de Deus”, e podia dispor do patrimônio da ordem; no entanto, precisava de um conclave para modificar seus estatutos, promover guerras, firmar a paz, receber um cavaleiro e nomear os representantes regionais. O papa não poderia intervir no seio da ordem, quer na parte administrativa, quer na parte financeira. A principal e primeira função dos seus membros era promover a segurança das rotas de peregrinação para Jerusalém. Havia quatro categorias de participantes: os cavaleiros, pertencentes à nobreza e combatentes; os sargentos e escudeiros, saídos da burguesia; os capelães; e os criados e artesãos. Os templários se sobressaíram como operadores de finanças, promovendo operações bancárias como depósitos, contas correntes, cauções, consignações, pagamento de rendas, transmissão de dinheiro a distância, etc. Forneciam empréstimos a papas e a reis (por exemplo, foram muito próximos de Luís IX – São Luís, um rei incentivador de construções, como a catedral de Notre Dame51, S. Denis e Chartres), tendo ainda aplicado técnicas de contabilidade bastante avançadas e se aprofundado em técnicas científicas como a química e construção naval. Outras ordens religiosas foram criadas nesse período acima, cabendo destacar como exemplo de ordem mendicante que se transformou parte atuante na sociedade medieval, a partir do século XIII, a dos franciscanos. Fundada por São Francisco de Assis, em 1209, foi marcada por crise interna duradoura entre os que defendiam os 50 «Des hommes libres travaillanant sur un sol libre». Os templários tiveram ampla atuação durante as cruzadas e na reconquista da Península Ibérica junto aos mouros. No início do século XIV, suas riquezas foram alvo do interesse de Felipe, o Belo (rei francês), e uma das causas do litígio entre esse rei e o papado. Após a supressão da ordem (1312), com a condenação e morte pela fogueira de seu grão-mestre, os bem imóveis dos templários foram doados à Ordem do Hospital. Mas, em Portugal, Dom Dinis ignorou a ordem papal e criou a Ordem de Cristo com os bens dos templários dali; os soberanos portugueses aplicaram os materiais e as riquezas dessa ordem para financiamento de seus empreendimentos. 51 42 cânones iniciais do fundador, com ênfase à pobreza absoluta e ausência de organização regular, e os que consideravam a mendicância inaplicável aos novos tempos no decorrer do século XIII, com opção pelo sacerdócio regular, estudos universitários e ensino, e daí a construção de conventos. Denominavam-se essas correntes, respectivamente “observantes” (mantendo a proposta mendicante) e “conventuais” (com proposta de inserção na sociedade e nas universidades). Observa-se que o Papado foi submetendo as ordens religiosas para torná-las auxiliares em suas reformas, restringindo assim as antigas regras de autonomia (venda de bens das abadias, por exemplo) e estabelecendo outras, como a necessidade de relacionamento direto com a Santa Sé e com as outras ordens. Além disso, incentivou a criação de ordens sob a subordinação direta do Papado, como a organização da ordem dos dominicanos, ratificada pelo Papa em 1216 (cf. Ellul; 1999: pp. 246-247). 3- Os conflitos políticos entre os reinados e o papado Desde a “querela das investiduras”52, que representa a tomada de posição da Igreja e do Papado pela sua inserção definitiva no poder terreno e universal, houve vários litígios e lutas em função do poder temporal, principalmente a partir daquele momento. Lima Lopes (2002: pp. 91-93) aponta que ... enquanto durou o regime de cristandade as relações entre o poder civil e poder religioso ou eclesiástico foram tensas. Sobretudo quando os reis quiseram afirmar seu poder jurídico-político e estender o controle jurisdicional sobre todos os habitantes de um território, inclusive o clero. Um dos litígios ocorreu na Inglaterra do reinado de Henrique II53 (que organizou os tribunais reais e aplicou a figura dos juízos itinerantes), quando o rei promulgou as Constituições de Clarendon(1164), uma “consolidação de costumes” que subordinava a Igreja local ao rei, com inserção do poder real sobre casos de benefícios eclesiásticos, ampliação jurisdicional sobre disputas de terras da Igreja, determinações de proibições de locomoção de bispos para fora da Inglaterra sem autorização régia, proibição 52 Querela ocorrida em função de litígio entre o imperador germânico Henrique IV e o papa Gregório VII, episódio do século XI, já rapidamente observado na nota 21 anterior e no início do item III – 2. 53 Fundador da dinastia plantageneta, cujo nome provém da planta desenhada no escudo da família real, de procedência francesa. 43 de excomunhão de oficiais da casa real sem autorização real, e outros atos de direção integral do reino pelo rei. Em razão dessa promulgação, o arcebispo de Cantuária (Canterbury), Thomas Beckett, mesmo que amigo pessoal de Henrique II, contrapôs-se ao texto, declarando que “a verdade supera o costume, a verdade julga a razoabilidade do costume”, citando padrão canonista inerente ao posicionamento da hierocracia do papado, ligado à autonomia jurisdicional eclesiástica. Isso deu origem ao conflito que chegou ao apogeu com o seu assassinato por outros amigos do rei. Embora Henrique II tivesse negado sua participação no ato, acabou retrocedendo quanto à sua legislação. Mas seu segundo filho, João Sem Terra, também estabeleceu histórica polêmica, com reflexos até nossos dias54, a partir do momento em que se negou a aceitar o arcebispo de Cantuária indicado pelo papa Inocêncio III. Tal ato resultou em um interdito pelo papa à Inglaterra, excomungando João 54 Se o ápice do poder plantageneta ocorreu no reinado de Henrique II, foi seu descendente João Sem Terra que veio a receber o estigma de déspota derrotado. Isso graças ao excessivo centralismo do poder e o excessivo isolamento desse exercício, a excessiva cobrança de impostos e o rompimento com o poder eclesiástico, o que levou à revolta dos barões, com o apoio da Igreja. E aqui surgem dois aspectos para o mesmo fato: em primeiro lugar, os nobres e eclesiásticos que elaboraram a Carta Magna não tinham em mente produzir um documento de garantia de liberdade universal ou de garantia constitucional – seus elaboradores, no início do século XIII, pretendiam uma lista de engajamento feita pelo rei no sentido de respeitar os diversos costumes feudais que ele e seus predecessores diretos vinham violando; no pensamento de seus autores, o texto visava a um retorno à época de ouro do rei Eduardo, o Confessor. Conforme destaca Maurois, citado por Mário Curtis Giordani (1987:p. 72): “Os barões não julgavam estar fazendo uma nova lei, exigiam o respeito dos seus antigos privilégios”. O conteúdo do documento foi, entretanto, formulado por clérigos com fundamentação teórica e teológica de valoração à pessoa humana, ainda que não de forma integral. E o mesmo Maurois, apud Giordani afirma então: “O que faz a importância da Magna Carta é, pois, mais do que ela suscita do que ela é. E aqui o segundo aspecto: para as gerações seguintes, ela se tornará, no sentido moderno, uma ‘carta das liberdades inglesas’, e cada rei até o século XV deverá jurar, várias vezes no curso do reinado, respeitar esse texto”. Entretanto, também aqui se vêem colocadas as premissas de valorização aos direitos do homem já esboçadas, entre outros posicionamentos do pensamento, no estoicismo, e assimiladas pela escolástica, tendo como perspectiva um direito natural e sua projeção histórica. A Magna Carta merece alguns destaques aqui (cf. Giordani, 1987): em seu artigo primeiro declara que atende à Igreja na Inglaterra; a seguir, cabe observar que faz uma concessão: liberdade a todos os homens livres do reino – e aqui se destaque que, no século XIII, quando o rei concede a um senhor um privilégio de manter uma corte de justiça, ou a uma cidade o privilégio de escolher por si mesma seus oficiais, esses privilégios chamam-se ‘liberdades’. É de se observar que no texto há referência de manutenção e obtenção de privilégios para a Igreja, condes, barões e outros vassalos diretos, com a preservação do direito antigo para serviço militar, sucessão feudal, casamento, etc. Também há referência para um tipo de classe média rural feudal (cavaleiros que possuem terras de um barão), pois os barões necessitavam desses vassalos para se defenderem do rei João. Há também uma resguarda dos privilégios burgueses de Londres. E é estabelecida uma concessão de âmbito econômico: a unidade das medidas e dos pesos, a par da proibição de impostos ilegais. Quanto à questão da justiça, cabe observar: a devolução de valores extorquidos à base de multas e apropriações de bens indevidamente requisitados; o princípio do julgamento entre pares a fim de evitar-se a violência e a arbitrariedade; proibição de multas e confiscos legais; o princípio de que a ninguém deve ser negada a justiça e de que nenhum imposto deve ser exigido sem ser aprovado pelo grande conselho do reino (barões e os lugares-tenentes – como os xeriffs). 44 Sem Terra e determinando o fechamento das igrejas dali. Vale lembrar que, na Idade Média, lugar sem igrejas era inadmissível, pois sem batismo, casamentos, confissões, vida cotidiana social (festas, encontros, etc.), atos de féretro e tudo o que era essencialmente para conviver naquela sociedade profundamente religiosa e centrada na Igreja. Por óbvio, tal pressão daquela sociedade, além daquelas já existentes pelos senhores feudais em razão de tributos e manutenção de poder nos respectivos feudos, levaram à edição da Magna Carta de 1215, em que ficou expressa a especificação da liberdade da Igreja frente ao reinado, com a conseqüência da influência papal sobre o reino. Em período próximo, houve também confronto em Portugal. Ainda conforme Lima Lopes (2002: pp. 92-93), no século XII, em 1140, temos D. Afonso Henriques, que passa a usar o título de rei, somente reconhecido após dois anos pelo tratado da paz de Zamora, feito com Afonso VII, de Leão; o título real português foi acatado pelo papa quase quarenta anos depois55. Cinqüenta anos após o episódio de Henrique II e o bispo de Cantuária, por volta do ano 1220, ocorreu uma disputa entre D. Afonso II e o papa Honório III, que não aceitou a pretensão do rei português de submeter os clérigos portugueses aos juízes régios seculares, a par de querer impor ao reino leis imperiais da cristandade. Isso porque os reis portugueses entendiam que, por terem conquistado as terras dos mouros, não havia a anterioridade de leis imperiais germânicas no seu solo e para suas gentes, sendo eles os soberanos do lugar, pelo que poderiam estabelecer suas leis. Tanto é que até o século XIII houve menções nos éditos reais ao Código Visigótico, estruturalmente texto de lei romana vulgar. Tal conflito prolongou-se com o sucessor de D. Afonso II, D. Sancho II, deposto pelo papa Inocêncio IV, que nomeou o irmão de D. Sancho II como rei de Portugal, o Conde de Bolonha, que tomou o nome de Afonso III. A situação só se tornou estável no século XV, com o enfraquecimento de poder do papado pela sua divisão, quando represtinado, após revogação por anos, o édito do beneplácito real, pelo qual a legislação canônica só teria aplicação em Portugal com a autorização do rei. Temos que destacar ainda o episódio conhecido como a “querela bonifaciana”, mais precisamente o conflito entre o papa Bonifácio VIII e o rei francês 55 Até então foi tratado como dux pelos papas, cabendo ao papa Alexandre III, pela bula Manifestis probatum est, reconhecer D. Afonso como rex (Gomes da Silva; 2000: p. 146). 45 Felipe, o Belo, no final do século XIII e início do século XIV (1295 a 1303). Enquanto o papa Bonifácio VIII se mantinha fiel ao posicionamento da Igreja desde o papa Gregório VII (parte integrante da “querela das investiduras”), com a concepção universalista do império cristão regido a partir da Igreja56, Felipe, o Belo, representa um novo posicionamento do reino francês inspirado pelo nacionalismo, até mesmo na língua nacional utilizada, como em outros reinos na mesma época. Vale observar que Felipe IV, ou, o Belo, utilizou-se do conhecimento jurídico de seus assessores, influenciados pela recuperação ou redescobrimento do direito romano57, particularmente em relação à estrutura institucional do Império Romano, centrado na figura do Imperador como fonte principal do direito. Mas, ao mesmo tempo, não aceitavam a carga do poder histórico cristão do império germânico-romano do Ocidente, propugnando por um centralismo nacional francês, em detrimento ao domínio da hierocracia papal romana. Não aceitavam, assim, os cânones eclesiásticos romanos como fonte principal do direito, mas entendiam que o direito deveria ser observado a partir de sua natureza universal e humana. Essa vontade de independência nacional do reino e concentração do poder no rei foi manifestada no fim do século XIII pela referida “querela bonifaciana”, que se fez representar através de dois conflitos principais: um, da décima (ou dízimo), outro relacionado à jurisdição. O conflito surgido pela décima relacionou-se com a elevação de tributo do reino junto aos prelados e sua cobrança, principalmente diante dos custos do reino frente a conflito armado com os ingleses. O clero defendia sua isenção, no que era acompanhado pela nobreza; mas a razão principal da querela é que tal aumento e cobrança de tributo não passaram pela aquiescência papal, que se tomava como superior hierárquico, inclusive quanto ao poder temporal sobre o rei. Desse modo, o rei Felipe IV, ao promover em 1294 a ordem de recolhimento do tributo, teve, diante de uma assembléia de prelados e nobres, um pedido de intervenção papal, o que ocorreu pela bula Clericis laicos. Essa legislação determinava a aprovação do papa para quaisquer tributos ao clero e ameaçava o poder laico que descumprisse tais ordens de excomunhão, assim como os clérigos que pagassem tal cobrança (cf. Basdevant-Gaudemet e Gaudemet; 2003: pp. 136-138). 56 A doutrina de que não haveria distinção entre o poder temporal e o espiritual, cabendo ao papa a superioridade frente aos demais príncipes. 57 Os assessores passaram a ser chamados legistas em contraposição aos canonistas ou decretistas. 46 Embora tenha sido editada essa rigorosa bula, o papa Bonifácio VIII e o rei francês, em seguida, atenuaram seus posicionamentos e fizeram vários atos de demonstração de entendimento e suavização de seus pontos de vista. Entretanto, já vinha de algum tempo a existência de conflitos de aspecto jurisdicional entre o reino e o clero, diante de ordenança editada em 1274, que ressalvava o privilégio de julgamento pelos juízes do reino para clérigos que fossem casados e comerciantes ou comerciantes não casados, além da possibilidade de punição aos clérigos que portassem armas ou atos correlatos, como crimes com flagrante delito, etc.. Mas, em 1301, ocorreu o chamado “caso Saisset”58, mais precisamente um conflito com o bispo de Palmiers, Bernard Saisset, que havia sido acusado de complô contra o reino: o rei Felipe IV convocou um tribunal composto de prelados e nobres dirigidos por ele para instaurar um processo contra o referido bispo. O papa, em seguida, advertiu o rei para suspender o processo iniciado, editando duas bulas: uma, tratando da superioridade temporal do papa sobre os reinos e reprovando os atos reais contra o interesse da Igreja (Ausculta fili) e, outra, convocando em Roma um concílio de bispos franceses para julgamento do bispo Bernard Saisset (Ante promotionem). Felipe, o Belo, em contraposição ao papa, convocou um tribunal na Igreja de Notre Dame e apresentou uma versão falsificada da bula Ausculta fili, passando a criticar sua violência e o rigor extremo de seus termos, referindo-se a ela nos termos de uma proclamação: “Saiba da tua enorme presunção”(Basdevant-Gaudenet e Gaudenet; 2003: p. 139)59 E o tribunal de Notre Dame, tanto a nobreza como o clero local, tomou uma resolução de apoio ao rei contra o papa, e de negativa de ida a Roma pelos clérigos franceses. Mesmo assim, o concílio designado em Roma pelo papa Bonifácio VIII ocorreu em novembro de 1302, com trinta e nove prelados e abades franceses e, dali, surgiu uma outra bula papal, a Unam Sanctam. Tal bula insistiu na hierocracia com o papel de sujeição do reino à Igreja através do papa, sem entretanto formular críticas diretas a Felipe IV, sob influência do clero francês, que pretendia uma reaproximação entre o papa e o rei. Apresentada uma relação de doze erros reais pelo papa, nessa tentativa de composição pelas partes, o rei editou uma ordenança denominada “Reforma do Reino”, em que admitiu voltar 58 59 L’affaire Saisset. «Saches ta trés grande fatuité». 47 atrás em alguns temas apontados na relação referida. Mas, na corte de Felipe, o Belo, o setor mais extremado, liderado pelos chamados legistas (Guilherme de Plaisian e Guilherme de Nogaret), passou a defender a tese de que ao rei francês cabia zelar pela cristandade, inclusive em relação às atitudes papais, pelo que, diante das heresias constatadas pelos atos do papa, deveria o rei instalar um concílio para julgar o papa hereje60. O setor extremado nacionalista, tanto do reino, quanto do clero, ampliou sua posição e passou a fortalecer seus ataques com o respaldo político do reino e crítica ao clero “estrangeiro”; em resposta, o papa Bonifácio VIII editou bula excomungando o rei francês e determinou que o cardeal Lemoine afixasse o édito na catedral d’Anagni. Mas essa localidade estava sob as ordens de Guilherme de Nogaret (legista) que, com o apoio do rei, promoveu o episódio denominado “atentado d’Anagni”, em que impediu o ato de excomunhão e também submeteu o papa à sua guarda, configurando uma atitude de seqüestro. O papa conseguiu voltar para Roma, mas, pouquíssimo tempo depois, veio a falecer. Foi escolhido um outro papa, Bento XI, que se refugiou em Perúgia, mas faleceu oito meses depois. A morte de Bonifácio VIII permitiu a Felipe IV livrar-se da excomunhão e, logo após a breve sucessão do papa posterior, veio a conseguir que fosse eleito um papa francês, em 1305, Clemente V, tendo ainda conseguido liquidar a ordem dos templários, sob a acusação de heresia, assumindo todas as suas riquezas na França. Também a eleição de Clemente V teve contestações em Roma, pelo que foi abrigado em Avignon, no sul da França, sob total influência do reino francês. A vinda do papado para Avignon significa o início da divisão da Igreja de forma a afetá-la historicamente em seu poder sobre a cristandade. Esse fato, o nacionalismo nascente e a aliança da burguesia ascendente, que dava apoio financeiro aos reis, acrescido ainda da coleta centralizada de impostos, foram fatores de fortalecimento do centralismo monárquico, baseado na burocracia e na organização dos exércitos61, o que diminuiu 60 E por eles é retomada a concepção adotada pelo rei Felipe Augusto, logo no início do século XIII, pela qual o rei da França não se subordinava ao Império: a tese do “galicanismo”, com princípios e doutrinas próprias da Igreja gaulesa (retomado mais tarde no século XVII e simbolizado pelo grande orador eclesiástico Bossuet). 61 A burocracia foi composta pelo conjunto de normas racionais administrativas e um grupo de funcionários preparados para o exercício administrativo do poder. Os exércitos nacionais, de início, foram montados com 48 também a força dos nobres oriundos do feudalismo. Dá-se, neste contexto, o início do declínio da Idade Média. IV – O contexto jurídico Pretendemos aqui observar o contexto jurídico a partir do período da chamada “Renascença medieval”, momento em que, concomitantemente à organização temporal da Igreja, dá-se a formação efetiva do direito canônico e a sua discussão, com a incorporação do estudo do direito romano nas iniciantes universidades62. Vale observar o Direito, no início daquele período, em que, de acordo com Lima Lopes (2002:pp. 73-78), os conflitos eram resolvidos ou com processo ou com guerra (“Deus e o meu direito”), sendo a guerra um tipo de prova judiciária (ordália) entre os senhores. Invocavam-se antes os argumentos jurídicos, os direitos costumeiros, direitos históricos, mas, não se atingindo um bom termo ou forma de arbitrar o conflito, a guerra traria o resultado esperado ou frustrado, sempre sob o uso do argumento da graça divina. O autor referido lembra o uso de compilações escritas de vários sistemas feudais, como os Usos de Barcelona, de 1068, a Carta de Pisa, de 1142, além de direitos reais na Sicília, França, etc. para a solução dos conflitos judiciais. 1- O direito costumeiro O costume era a fonte de direito principal durante a alta Idade Média, vez que o direito romano fora alijado diante das invasões bárbaras; no máximo, para alguns povos invasores, havia sido incorporado pela influência do período do Império Romano. Em algumas dessas populações havia ocorrido o que se denomina a implantação do direito romano vulgar, tal qual o uso do latim vulgar e outros costumes romanos incorporados e adaptados pelos chamados povos bárbaros63. mercenários pagos; tais forças permitiram aos reis impor suas autoridades aos senhores feudais e, de forma concomitante e sucessiva, passaram, por fim, a estabelecer um monopólio militar (cf. Raymundo Campos; 1989: pp. 214/216). 62 A primeira universidade ocidental iniciou-se em Bolonha, no século XI. 63 Como exemplo, temos o Código Visigótico, usado pelos visigodos que haviam convivido com o Império Romano e se instalado na Gália e Península Ibérica antes dos muçulmanos. 49 Com o desaparecimento do império carolíngio, a autoridade jurídica se desmembrou pelas pequenas senhorias que, em sua maior parte espalhadas e, de certo modo, longe de poderes centrais, passaram a utilizar-se dos costumes locais tendo em conta regras morais e religiosas. Curtis Giordani (1987: pp.236-240) destaca que o período em foco possui um grande número e diversidade de costumes e que, principalmente durante os séculos X e XI, cada senhoria possuía seus próprios costumes. Mas, a partir do século XI, passou a ocorrer uma cristalização de costumes nos centros mais importantes, como na Normandia, e ocorreu sucessivamente uma uniformização e ampliação de seu uso de forma mais abrangente nas regiões circunvizinhas, como no caso das compilações já exemplificadas acima. Este autor aponta que a fixação dos costumes por escrito ocorre principalmente a partir do século XIII, na forma de coutumiers, que possuem “uma exposição de conjunto das regras costumeiras e destinadas a servir de guia aos práticos e aos juízes”. Vale destacar ainda a obra de um jurista compilador sobre os trabalhos jurídicos no período de S. Luís (Luís IX) denominada Les Etablissements de Saint-Louis, de 1270, em que consta a Ordenança de S. Luís suprimindo o duelo judiciário, a reprodução de coutumiers da região de Anjou e do Maine e numerosas referências ao direito romano e ao direito canônico. 2- O direito romano A partir de Bolonha, primeira universidade da cristandade, há que se destacar o trabalho de um mestre no século XI, Irnério (ou Guarnério ou Warnério), que ficou conhecido como o responsável pelo renascimento do direito romano naquele período (Curtis Giordani; 1987: p. 245). Da mesma forma que em Bolonha, também em Provence (Aix), Lombardia e Ravena, passou-se a transmitir os estudos de direito romano, a partir do pressuposto de que tal direito abarcava uma universalidade em seus princípios norteadores; além disso, ressalte-se sua incrível adaptabilidade àquele momento histórico de recuperação urbana e crescimento do comércio. Curtis Giordani cita Vinogradoff para considerar a Summa (súmula) do Código de Justiniano, conhecida como Lo Code, como a “mais interessante contribuição da França ao ressurgimento do Direito Romano”; ela foi redigida em provençal para os juízes da Provence em torno de 1149. Tal trabalho foi realizado por glosadores, que também atuavam na Lombardia e em Revena. 50 Entretanto, foi Bolonha, por sua posição estratégica e proximidade geográfica e política com o papado romano, que passou a representar o principal pólo de irradiação dos estudos jurídicos relacionados com o direito romano, quer por ser um ponto de convergência na intensificação dos estudos naquele momento histórico (em razão de sua posição geográfica e política) de desenvolvimento, quer por sofrer a influência de estudiosos ligados à reforma gregoriana, que buscavam textos do direito romano para poderem contrapor argumentos de enfrentamento ao discurso jurídico dos imperadores germânicos, em prol no posicionamento político da Igreja. Vale destacar o trabalho dos glosadores: sendo considerado o fundador dessa concepção, Irnério destacou-se pelas anotações feitas à margem dos textos da legislação Justiniana (notadamente o Corpus Juris Civilis). As glosas eram interlineares ou marginais às páginas dos textos romanos: entre linhas, as breves explicações sobre o que estava escrito nas linhas originais e, à margem dos textos, as explicações mais detalhadas e aprofundadas sobre o escrito naquele lugar. Adotavam a interpretação exegética, literal, sem generalizações ou mesmo digressões. Curtis Giordani (1987: pp. 248/250) ainda observa que, com o tempo, as glosas passaram a ser compostas em textos próprios, denominados de súmulas (summae), comentários de partes escolhidas de textos (apparatus), ou de hipóteses relativas aos textos (casus), ou ainda regras jurídicas retiradas dos textos (brocardi). São apontados como grandes os defeitos dos glosadores a partir de seu parco conhecimento filológico, o que incidia em grandes erros etimológicos (erros de tradução ou adequação), erros de escrita e deficiência sobre o conhecimento histórico (o que era muito usual na Idade Média64); entretanto possuem o mérito de terem tornado acessível o direito romano aos juristas medievais através das suas glosas. O outro glosador que se tornou referência até em textos reais de diversos países (Ordenações Manoelinas, por exemplo), foi Acúrsio, autor da Magna Glossa, florentino professor da universidade de Bolonha. No final do século XIII, surgiu um movimento de contraponto aos glosadores, que possuíam ainda uma postura estática frente ao texto romano, representado 64 Por exemplo, nos vitrais da Saint Chappelle, capela reconstruída por S. Luís em Paris, há uma genealogia do rei capeto que o coloca como descendente do rei Salomão, de Israel; ou então, na lenda escrita por um clérigo a Carlos Magno, sobre o bispo decapitado de Paris, S. Denis (Dionísio), do século III, há a identificação desse santo com Denis (Dionísio), o Aeropagita, amigo grego do apóstolo Paulo, do século I da nossa era. 51 pelo bispo de Verdun, Jacques de Revigny (falecido em 1296); isso em pleno caminhar das mudanças políticas, religiosas e econômicas ocorridas após a Renascença medieval. Foram os pós-glosadores que passaram a ter um posicionamento mais participativo e includente sobre os textos de direito romano, antes só comentados de forma restritiva ou literal. Os pós-glosadores procuraram extrair dos textos romanos princípios ou teorias para atender aos casos práticos que foram surgindo de forma mais ampla, pela complexidade maior das relações naquela sociedade em mutação. A partir dos silogismos e método dedutivo, passaram a adaptar o direito antigo aos novos tempos. O seu principal representante foi Bártolo de Sassoferrato (1314 a 1357), também usado como referência interpretativa pelas Ordenações do Reino portuguesas. O método silogístico e dedutivo dos pós-glosadores era composto de sete momentos (cf. Curtis Giordani; 1987: pp. 250-252): premitto (esclarecimentos de ordem gramatical); scindo (dividem-se as diversas partes do texto a ser comentado); summo (resume-se o texto em questão, usando-se para isso a obra de Bártolo e de Baldo que continha uma síntese pronta para cada caso, pois esses autores haviam feito um comentário de quase todo o Corpus Juris); casum figuro (exposição de um caso prático a que se refere determinada lei); perlego (relê-se o texto); do causas (indicação das várias questões a que se pode aplicara mesma passagem); connoto (resumo de tudo que foi tratado) (p.252). O lema dos pós-glosadores era “qui bene distinguit, bene docet (quem distingue bem, ensina bem)”65. O autor referido ainda acrescenta que esse pensamento lógico usualmente era aplicado de forma cansativa e obsessiva, o que resultava em divisões e subdivisões excessivas e maçantes. Entretanto, como mérito dessa escola, destaca-se a criação de institutos novos não existentes no direito romano, a par de promover uma inserção e correlação entre o direito romano e o direito costumeiro, sendo teórica e praticamente responsável pelo que se denomina o jus commune, cuja principal fonte (mas não a única) era o direito romano. A 65 Encontramos na baixa Idade Média um posicionamento dos juristas pós-glosadores, ou comentadores, que não mais apenas comentavam em glosas (comentários ao lado dos textos do Corpus Juris Civilis), mas também emitiam suas opiniões diante dos textos clássicos e seus comentários. Eram mais práticos, pois respondiam a consultas de partes interessadas. No dizer de Lima Lopes (2002: p. 135) “não queriam a antiguidade pela antiguidade, mas para seu próprio uso e interesse. Não tinham a paixão pelo texto clássico puro, como diz Wieacker, mas pelo seu valor contemporâneo”. Esses pós-glosadores, repensando as glosas anteriores sobre os textos romanos, passaram a observar a necessidade de outros posicionamentos frente a situações novas, observando o limite entre o justo e o formal. Daí, temos como exemplo contundente de aplicação do justo no âmbito privado, a formação da cláusula conhecida como rebus sic stantibus em antagonismo à tradição romana do pacta sunt servanda: Contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur. 52 partir dele, o direito passa a ser conduzido pelos costumes e pela aplicação do justo (em sua concepção aristotélico-tomista). 3- O direito canônico Desde Gregório VII, no século XI, a Igreja se postara pelo seu direito de legislar e aplicar adequadamente o poder a si avocado. Ao papa também cabia aplicar a interpretação autêntica das antigas normas, e aos canonistas, aqueles que estudavam e propagavam os direitos de acordo com as regras eclesiásticas, tendo como base a formação divina da Igreja, cabia o papel de formar o pensamento e a atuação para as questões surgidas que precisavam de resolução. Lima Lopes (2002: pp. 93-95) aponta que a jurisdição e a aplicação do direito naquele período eram mais do que uma função específica, mas a principal função do poder, pois limitava por cima (com a aplicação do direito natural e da tradição) o exercício do poder; no âmbito usual, no dia-a-dia comum, influenciava o exercício do justo, misturando a decisão judicial com interpretação, legislação aplicada e resposta aos problemas locais; cada resposta formava um precedente e uma regra a ser observada. Este autor assim explica: O intérprete cristão (assim como os judeus e os muçulmanos, de culturas também influentes naquela época e também religiões de livros) precisava vencer a distância temporal que o separava dos fundadores, e a distância contextual que separava redator e leitor do texto. (p. 94) A Igreja foi forjadora de uma multiplicidade de normas, quer por concílios ecumênicos quer regionais, e aplicava-as em cada bispado e até em cada freguesia. A organização dessa plêiade de normas e interpretações passou a ser objeto de textos importantes, destacando-se o trabalho de Yves de Chartres (bispo de Chartres), com três obras principais visando a organizar a pluralidade dos textos e aplicativos: Pannormia, Collectio Tripartita e Decretum. Meio século depois, surgiu Graciano, monge professor de teologia em Bolonha, vivente no tormentoso momento ligado à autonomia temporal da Igreja e influenciado por Santo Abelardo e pelo emprego da lógica dialética. É dele o principal texto dos cânones desse período: Decreto de Graciano, que possuía o título de Concordia Discordantium Canonum. Tal obra se compunha de mais de 3.800 textos no 53 estilo escolástico, buscando a hierarquia dos princípios e procurando eliminar as “antinomias dos cânones” (Lima Lopes; 2002: p. 9466). O Decreto de Graciano se utilizava de quatro critérios: o primeiro, distinguindo pela filologia os sentidos das normas; o segundo, distinguindo as normas pelo tempo de vigência; o terceiro, dando destaque ao espaço de vigência e o quarto, dando ênfase à matéria específica tratada. A obra possuía três partes: a primeira, mais de cem distinções como princípios, relacionadas com o direito canônico e suas fontes; a segunda, composta de 36 causas ou hipóteses aplicativas resumidas; a terceira possuía cinco problemas relativos aos sacramentos ou sacramentais, como o jejum, batismo, etc. A influência do Decreto de Graciano sobre os cânones foi tanta que seus seguidores passaram a se denominar decretistas ou canonistas; o próprio papa Alexandre III foi aluno de Graciano e também professor em Bolonha. Foi nesse contexto que se organizou a burocracia eclesiástica e se criou a forma fiscalizadora da fé: o Tribunal da Inquisição. Tal característica de organização do poder e da atividade jurídica resultou na elaboração de decretais, tipos de decisões ou respostas de consultas que passavam a ter a força de decretos, de origem papal, ou por resolução de concílios. Os decretais editados foram consolidados por ordem de Gregório IX em 1234, e tomaram o nome de Decretais de Gregório IX; eram compostos em cinco livros: um, tratando de fontes do direito e hierarquia (judex); o segundo, tratando de matéria processual (judicium); o terceiro, sobre o clero, sacramentos e coisas (clerus); o quarto, sobre o casamento (connubia) e o quinto, sobre delitos, penas e procedimento penal (crimen). Tal obra tornou-se oficial e foi enviada para as universidades para seu ensino; sua estrutura serviu de base para outros textos, como por exemplo, as Ordenações do Reino em Portugal. Ainda foi organizado, por ordem de Bonifácio VIII, em 1298, o sexto livro de decretais, que tomou o nome de Sexta, com os cânones do Concílio de Lião (Lyon) e decretais desse papa. Foram ainda editadas, em 1314, as decretais Liber septimus, que tomaram o nome de Clementinas, por ordem do papa Clemente V, tendo ainda posteriormente sido criada a coletânea de decretais chamadas de Extravagantes, com vinte decretais de João XXII (1245-1334) e de outros papas anteriores. 66 Utilizamos muito nesta parte o importante e didático livro de Lima Lopes, O Direito na História, bem como Curtis Giordani, em seu História do Mundo Feudal II. 54 Vale observar que o trabalho dos canonistas resultou em vários princípios de cunho jurídico-político, destacando-se o princípio eletivo, pelo qual a escolha do papa, assim como de outros cargos, era efetuada pelos próprios pares (reflexo do contexto feudal); assim, os monges escolhiam o abade, os cônegos escolhiam o bispo e os cardeais escolhiam o papa. Tal formato deu à Igreja e à sociedade que a entremeava um caráter corporativo e hierarquizado, formado entre os que escolhiam e aqueles que não escolhiam. O segundo princípio a ser destacado é o da soberania das corporações, pelo qual, das decisões dos órgãos respectivos (concílios, por exemplo) não caberia recurso, sendo a corporação soberana em seus atos; ao papa cabia apenas intervir para sanar irregularidades e mandar refazer atos considerados viciados. Outro princípio formado foi o assemblear, pelo qual os concílios passaram a ser considerados praticamente uma assembléia legislativa européia. Por quarto princípio tinha-se o monárquico, em que se estruturou a atuação papal como uma monarquia, estendendo-se o braço papal aos seus legados, núncios, delegados, coletores, etc. Os bispos eram também soberanos em sua diocese, atuando como juízes e legisladores, tudo entremeado pelo corpo burocrático. 4- A aplicação da justiça Lima Lopes (2002: pp. 100-104) observa que a estruturação do processo canônico foi composta por profissionais da Igreja de atuação no processo, o que formou a prática de autonomismo, racionalidade e formalidade para resolução de controvérsias, com nítida influência do pensamento filosófico do período. Este autor destaca ainda que o diferenciador entre o direito insular (inglês) e o continental se dá no âmbito da formação jurisdicional, pois o processo canônico nunca foi incorporado nas cortes de justiça britânicas, ao passo que, na Europa continental, o processo canônico precedeu à organização das cortes de justiça reais. Assim, o processo canônico é que proporcionou a caracterização da condução do processo por profissionais do direito, além do reconhecimento de um sistema de recursos em busca de uniformização; deu-lhe, ainda, uma característica investigativa67, e ênfase ao texto escrito, com a estruturação de um modelo 67 Aqui merece referência trabalho de Foulcaut (A verdade e as formas jurídicas; Nau Editora, Rio, 1999) em que esse intelectual francês aponta o processo inquisitório do direito canônico como base iniciadora do processo de busca da verdade científica futura. 55 cartorial no processo. Estas são as bases do chamado ius commune, com feição romanocanônica. Como o processo canônico foi a base utilizada pelo processo comum na Europa continental, vale a pena observá-lo em primeiro lugar. E a base do direito canônico foi o direito natural, a razão legal, um princípio de coerência interna. Era mais um processo de harmonização lógica, moral e política. Nada ou pouco tinha a ver com a dogmática, ou com uma exegese de regras: a dialética do caso concreto estava sempre presente (Lima Lopes; 2002: p. 99). A atuação intelectual dos canonistas ou decretistas era principalmente harmonizar e compor hierarquicamente as fontes de autoridade, tendo como primeiro plano as escrituras sagradas e os textos dos padres da Igreja; em segundo plano, os cânones originários dos concílios eclesiásticos; e, em terceiro plano, as decretais dos papas, a par dos costumes locais a serem aplicados. Havia dois âmbitos de foro: o interno, relativo aos pecados e penitência, vinculado à consciência do cristão, e o externo, relativo à matéria jurídica, em que era aplicado o juizado nos conflitos de direito entre os cristãos. As questões relativas à razão de matéria, ou seja, causas que envolviam problemas que se relacionavam aos sacramentos, como o casamento, juramentos, ou então tinham relação com assuntos diretamente relacionados com o cumprimento ou respeito à fé, como a usura, a heresia, etc., ou mesmo por escolha como arbitragem, eram da competência dos tribunais canônicos. Da mesma forma, quando se tratava de questões em que eram partes pessoas integrantes da comunidade eclesiástica, ocorria a jurisdição canônica. Ela era composta, inclusive, por membros de ordens menores ou com alguma função clerical; nesse foro em razão de pessoa se incluíam aqueles que participavam de órgãos anexos às catedrais, ou mosteiros, como universidades, ou então os que participavam das cruzadas, ou mesmo os que eram atendidos pela ação beneficente da Igreja, como os miseráveis, órfãos e viúvas (o bispo era considerado, pela doutrina eclesiástica, um pai dos pobres). Mas eram os clérigos que gozavam do denominado privilégio absoluto do foro canônico (cf. Lima Lopes; 2002: pp.99-101). No âmbito dos conflitos da esfera civil, o processo canônico fez introduzir o texto escrito e a função notarial; como um secretário do juiz, o redator das fórmulas e atos 56 judiciais permitia a facilitação na constatação das controvérsias apresentadas. Também foram organizadas as fases para o andamento do processo: a queixa escrita do autor, as matérias preliminares e formais para apreciação do libelo, a defesa do mérito, a fase das provas (que permitiu a superação das ordálias, salvo no caso da Inquisição) e, por fim, a decisão. A par disso, havia a presença de um perito que atuava com a parte, sem relação de interesse direto como parte: o advogado. O outro âmbito do processo canônico que ficou na história de forma ignomiosa foi o processo inquisitorial; e isso em função dos tribunais da Inquisição, que representaram o lado extremado e radical de um momento histórico. A bula papal Excommunicanibus (1231), de Gregório IX, organizou o procedimento inquisitorial e determinou aos dominicanos as principais tarefas inquisitoriais. O uso da tortura para produção da prova foi admitido por Inocêncio IV, restando à parte, no entanto, o direito a advogado. Vale destacar, no entanto, a contribuição do direito canônico para a figura ficcional da pessoa jurídica, que se criou na concepção da corporação, que não possuía raiz da família ou da relação feudal da vassalagem. Sua concepção, certamente influenciada pela ficção bíblica da trindade (três em um), tinha como parâmetro a Igreja, considerada uma universalidade própria e distinta de cada membro. Lima Lopes (2002: pp. 101-102) aponta alguns princípios dessa criação teórica: a) O princípio da autonomia da associação: qualquer grupo podia juntar-se para formar uma pessoa jurídica (corporação); qualquer corporação detinha jurisdição sobre seus membros (não só as corporações públicas ou políticas); c) havia casos em que o representante deveria ouvir os representados, sob pena de invalidade de seus atos; d) solidariedade entre os membros da corporação: aquilo que pertencia à sociedade pertencia aos seus membros, daí se originava o poder de taxar os respectivos membros; e) quanto aos crimes e à pena imposta o princípio era que o praticado pela maioria dos membros era imputado a todos da sociedade, os praticados pelo representante apenas não se estendia à sociedade toda. A justiça senhorial, proveniente do império carolíngio, relacionava o direito de justiça com o senhor feudal e incorporava-se às decisões administrativas e demais poderes dessa senhoria em seu território; daí o direito do senhor feudal de confiscar, desconstituir herdades, aplicar penalidades, etc. Assim, o senhor do feudo era também juiz dos procedimentos civis, criminais, administrativos, nos limites da extensão das suas terras e sobre todos os habitantes que estavam ali fixados, ou que se mantivessem por mais de um dia no feudo, inclusive clérigos e estrangeiros naquilo que se referia ao espaço senhorial. 57 Desde meados do século XIII, passaram a existir dois tipos de justiça senhorial: uma, a justiça de sangue, chamada de Alta Justiça, que se relacionava a casos de derramamento de sangue, crimes em que poderia ser aplicada a pena de morte e de duelo judiciário; a Baixa Justiça atendia a todos os demais casos. A partir do século XV, surgiu o grau intermediário para os casos atendidos pela Baixa Justiça, sendo daí a Baixa Justiça atuante para causas civis de questões de menor importância ou para crimes de menor gravidade. Principalmente na França, havia uma tradição de existir em cada feudo um tribunal senhorial, o que influenciou a Inglaterra em razão da invasão normanda à GrãBretanha no século XI; e a base desses julgamentos era ter o direito de cada um ser julgado por seus pares: “cavaleiros por cavaleiros, plebeus por plebeus e servos por servos” (Curtis Giordani: 1987: p.278). Mas houve também uma mudança nessa trajetória, pois, com o tempo, os plebeus vão perdendo o interesse de participar de assembléias para julgamento de seus pares (já que dispunham de pouco tempo para si mesmos) enquanto o poder de justiça do senhor feudal se consolida como algo superior68. A partir do século XII, somente os nobres mantiveram o direito de julgamento pelos pares. Aliás, nessa época, os procedimentos senhoriais eram influenciados pelas tradições francas69, notadamente na região da França, sendo os atos procedimentais todos orais, com a presença das partes, inclusive havia o julgamento oral, tudo em formas ritualísticas. A prova nesses procedimentos relacionava-se com as ordálias, atos de manifestação divina, quer por testemunhos, quando a dúvida entre eles era resolvida por duelo, quer pelas provas: de fogo, água, ferro em brasa, etc. (cf. Ellul; 1999: p. 172). No início do século XIII, com as mudanças urbanas e de poder se concretizando mais firmemente (importância do comércio, maior presença temporal da Igreja, universidades, início dos processos de maior concentração do poder real, etc.), começa a ocorrer uma transformação no procedimento judicial, sobretudo na França, em que ocorrem éditos reais de Luís IX (S. Luís): passam os tribunais a utilizar procedimentos novos sob a influência canônico-romana, com peças e atos escritos; vão sendo eliminados 68 Desse período a existência de “corte baron” para os vassalos (quatro vassalos julgavam um vassalo) e corte costumeira para os vilãos (que era presidida por um preboste assistido por especialistas de direito e nos costumes locais). Na região meridional francesa, com maior influência romana, o exercício do julgador era visto não como algo entre pares, mas superior sobre os submetidos a julgamento, 69 Bárbaros que se cristianizaram no final do século VI e, com apoio da Igreja, expulsaram os visigodos (que anteriormente tinham sido convertidos ao arianismo – concepção considerada herética desde o concílio de Nicéia) da região da França para a Península Ibérica. 58 os ritualismos e acrescida a lógica racional, principalmente para as provas, com certos textos escritos valendo como prova plena; as testemunhas têm o testemunho transcrito, etc.. Tais mudanças ocorrem a partir da corte real, para os grandes senhorios feudais e paulatinamente vão se ampliando para as demais jurisdições entre o século XIII e XIV. No âmbito das cidades revigoradas após o século XI, com a presença da burguesia, estabeleceu-se o denominado “direito de justiça” (Ellul; 1999: p. 221). Para as cidades era nomeado, pelo rei ou por importante senhor feudal, um magistrado (prévôt) que prestava os serviços judiciais, comumente assistido em seus atos por um grupo escolhido (excepcionalmente eleitos, como em Bourges) de homens íntegros (boni viri ou proud’hommes). A justiça nas cidades foi adquirindo autonomia e sucedendo à justiça senhorial, formando-se conselhos judiciários (tribunais locais) para questões civis e criminais. As penas para os delitos dos burgueses eram, por exemplo, o banimento, a destruição da casa de habitação e do lugar de atividade comercial e multa. Os tribunais régios, como já visto, influenciados pelo direito canônico, tiveram na França, desde o reinado de Luís VII, um corpo judicial, em que eram chamados de prud’hommes, viri sapientes ou jurisprudentes ou judices nostri. Passaram a se tornar uma seção especial denominada Parlamento (maîtres de la Cour) em 1260, durante Luís IX, com quatro sessões anuais. Este o embrião do Parlamento de Paris, que veio, com o tempo, também a apreciar questões entre nobres e, neste caso, desde que composto pelos “Pares de França”. Embora a figura da apelação fosse utilizada na região meridional francesa (Provence), o Parlamento de Paris passou a ser, a partir do século XIII, o tribunal admissível dos recursos às decisões das cortes senhoriais, quando do interesse régio, sem que houvesse, entretanto, possibilidade de revisão de decisão senhorial por outra corte senhorial. A partir desse Parlamento se deu início à contribuição ao direito pelos tribunais judiciais, por intermédio de seus julgados, com interpretação e aplicação do direito existente ao momento. Hespanha e Macaísta Malheiros, em nota de tradução da Introdução Histórica do Direito (Gilissen; 2001: pp. 396-398), informam que em Portugal coexistiram, após sua formação, quatro sistemas jurisdicionais: o comunitário-concelhio, o senhorial, o eclesiástico e o régio. O primeiro, com bases romanas e visigóticas, correspondia ao 59 “julgamento dos homens livres pela assembléia dos seus convizinhos, em parte coincidente com a sua parentela”; tal sistema passou a ser regulamentado no século XIV e passou a ser reconhecido como uma instância de primeiro grau. O sistema senhorial, que se iniciou a partir das famílias (pater sobre o domus) entre os séculos XI e XIII, passou a atender o poder senhorial dos mais poderosos sobre povoações, passando a ser regra por intermédio do uso da jurisdição pelo rei, pelos senhores territoriais ou eclesiásticos. Tal justiça se fazia de forma direta ou por delegação (deputados), por juízes, vigários, mordomos, ouvidores, etc.; entre os séculos XIV e XV tal situação passou a ter uma jurisdição intermediária. O sistema régio, integrado que era no sistema senhorial, foi pela ampliação do poder real subordinando os demais sistemas a ponto de, no século XIV, pertencer ao rei um sistema judiciário próprio e supremo, a quem cabia apreciar em grau recursal as decisões dos tribunais inferiores, passando depois a ter regulação de competência e atribuições próprias. O sistema de justiça clerical inseria-se na autonomia jurisdicional da Igreja e do clero; somente em casos excepcionais o clérigo subordinava-se à justiça secular. Tal “jurisdição eclesiástica abrangia também os leigos, em matérias espirituais, na interpretação alargada que deste conceito dava o direito canônico (abrangendo o matrimônio, certos aspectos das relações sucessórias e mesmo das relações agrárias)” (p. 397). No século XIV, na França, ainda se dá uma luta contra a jurisdição eclesiástica, por conta da concentração real do poder político, levando em consideração a questão nacional: passa a haver uma restrição cada vez maior à jurisdição eclesiástica em favor dos tribunais reais; vão se formando princípios jurisdicionais denominados posteriormente de “galicanos”, como por exemplo, a revogação de jurisdição clerical civil aos prelados que exerciam a mercancia ou que fossem casados, ou então, a supressão jurisdicional clerical dos casos criminais em que o clérigo atuasse contra questões reais, como porte de arma, falsificação de moeda, usura, etc.. Também foi extinta a jurisdição da Igreja sobre casos que envolvessem viúvas e órfãos, e os casos externos interligados com ela. Curtis Giordani (1987: p. 283) traduz Johan Huizinga em uma análise sobre a concepção do direito para o homem medieval que passa a ser transcrita: O homem daquele tempo está convencido de que o direito é absolutamente fixo e certo. A justiça devia perseguir o culpado em toda a parte e até ao fim. A reparação 60 e a retribuição tinham de ser completas e assumir um caráter de vingança. Nesta exagerada necessidade de justiça, o barbarismo primitivo, de fundo pagão, misturase com a concepção cristã da sociedade. A Igreja, por um lado, aconselhava indulgência e clemência e procurava assim abrandar a moral judicial. Por outro lado, juntando à necessidade primitiva de retaliação ao horror do pecado, estimulou em certa medida o sentimento de justiça. O pecado para os espíritos violentos e impulsivos era, não poucas vezes, um outro nome dado àquilo que os inimigos faziam. A idéia bárbara de retaliação era reforçada pelo fanatismo. Vale a pena, então, observar o pensamento que embasava as atitudes judiciais. 5- O pensamento jurídico: formação e transformação A concepção de vida e seu reflexo no dia-a-dia influíram e influem no direito de forma direta. Há, portanto, uma relação direta entre a forma de pensar e agir com o direito, sendo fundamental uma visão, ainda que sumária, sobre o pensamento em geral no período escolhido, para que possamos melhor observar o pensamento jurídico, ainda mais se virmos historicamente o pensamento relacionado à filosofia do direito. Até o século XII, inclusive, houve uma preponderância do que escreveu Santo Agostinho no pensamento filosófico da sociedade medieval. E esse pensador cristão, que viveu no século V e foi bispo em Hipona, região da atual Argélia, teve, por um grande período de sua vida clerical, uma ameaça constante: a presença dos vândalos às portas de sua cidade e todas as pressões possíveis dessa presença. Por óbvio, tal situação afetou seu pensamento e ações. Sua formação intelectual foi romanística e influenciada por Platão. Seus escritos trataram da verdade, da ordem natural do universo, da alma humana, do bem e do livre arbítrio. Villey (2003: pp. 110 e seguintes) destaca que, através de diversas obras contra posturas contrárias à ortodoxia da fé, Santo Agostinho indiretamente formula teorias relativas ao direito, como no diálogo De Magistro, em que trata do que seria uma teoria do conhecimento por iluminação divina, de inspiração platônica: propõe que, se conhecemos a verdade, o bem, a justiça, tudo isso, se faz por intermédio de Deus e não por experiência sensível, pois a verdade e a justiça são criações de Deus. Em outros textos, trata da natureza, da instituição do casamento, da defesa da propriedade, além da doutrina do braço secular e das funções ministeriais do Estado como guarda da Igreja, bases para o pensamento medieval. Ao comentar o “Salmo 118”, apresenta uma apologia da lei eterna e o valor da lei mosaica. 61 Aceita-se que dos escritos de Santo Agostinho formou-se uma doutrina favorável ao positivismo jurídico; sua obra não é escolástica, abstrata e intertemporal, mas representa uma resposta a situações. E esse pensador da Igreja, ainda no Império Romano, acata as leis do Estado, buscando um direito sacro a partir das leis recebidas por Deus: “toda justiça e todo o direito residem na lei eterna de Deus”. Sua importância para a Idade Média é fundamental, pois, a partir dele, da Bíblia e dos comentários da Patrística se concebe uma teoria da justiça. De acordo com o que Agostinho escreveu no texto Contra Faustum, há três gêneros pelos quais Deus faz conhecer sua justiça: a lei da natureza, a lei de Moisés e a lei de Cristo (e nos Evangelhos lembra que há o episódio em que Cristo determina que se deve dar atendimento a César para o que seja de César e, a Deus, o que seja de Deus). Cabe destacar que essa lei da natureza não é a mesma de cunho aristotélico, mas a perspectiva de ordem divina sobre toda a natureza (para esta concepção ser justo é estar de acordo com a vontade divina e observar perfeitamente sua lei). Villey (2003: pp.132 e seguintes) ressalta que a influência de Santo Agostinho sobre a cultura clerical de toda alta Idade Média possui uma característica monástica. E, por serem os monges desse período desconhecedores do grego e não aceitarem os escritores pagãos, também fixarem seus estudos apenas na Bíblia e nas obras latinas dos Padres da Igreja, o ambiente filosófico e, portanto, jurídico desse período encontrava-se inserido nessa cultura agostiniana; à tal cultura se incluíam restos do Direito Romano e costumes usuais regionais ou tradicionais e, a partir dessa postura dos monges, o direito utilizado por eles se refletia na vida intelectual do período. Assim, as obras jurídicas monásticas, como a de Benedito d’Aniane, do século IX (conselheiro de Carlos Magno), culminando com o Decreto de Graciano, do século XII, possuíam como fonte principal a concepção de Santo Agostinho. Cabe lembrar que Graciano70, por exemplo, para estabelecer sua teoria das fontes do Direito, utiliza nada menos do que vinte e cinco cânones extraídos da obra do santo de Hipona, mesma fonte que havia sido utilizada por Santo Isidoro de Sevilha (a partir da regra de ouro do Evangelho: ama o teu próximo como a ti mesmo). E o pensamento do direito canônico (e também da filosofia) se estrutura com base na “Revelação Divina”, assim como o poder político carolíngio, que influenciou a 70 João Graciano, que no século XII escreveu texto angular no sentido de que todas as leis contrárias ao direito natural não teriam vigência ou força jurídica, pré-demarcando as bases de um juízo de constitucionalidade avant la lettre. 62 dinastia capetiana, cujo marco principal, Luís IX (S. Luís), se considerava descendente direto do rei Davi e de seu filho Salomão, como está desenhado nos vitrais da Santa Capela de Paris. Trata-se, pois, de um direito estritamente ligado à moral, e a moral ligada à caridade: a concepção defendida por Santo Agostinho. Buscava-se sempre a adequação entre o direito costumeiro e a Palavra de Deus O posicionamento aqui relatado passou, a partir do século XII, a confrontarse cada vez mais com os fenômenos sociais, econômicos e culturais presentes na Europa, pois o crescimento comercial, a importância urbana e o aumento da complexidade das relações sociais e religiosas afetaram a concepção de mundo e, portanto, a concepção jurídica na sociedade. Como diz Villey (2003: p. 139), irrompeu-se uma contradição na concepção agostiniana de “dar a César ao que é de César, e a Deus o que é de Deus”: o conflito entre o Papado e o imperador germânico (querela das investiduras) é o marco entre a necessidade de mudança de posicionamento jurídico da Igreja e, para tanto, a universidade de Bolonha é o marco exponencial para essa mudança. A reintrodução do direito romano foi a utilização necessária para a mudança buscada com base, por exemplo na região bolonhesa, em que a renovação das cidades e do comércio fomentam as trocas, os contratos, as fortunas individuais, afetando-se também os limites das posses e as conseqüências contratuais, com a fixação do “meu” e do “seu”. Para tanto, o direito romano assume uma importância funcional, tanto para fixação do poder papal quanto para a fixação de uma burocracia organizada de forma centralizada. E a doutrina do direito romano importa em uma própria filosofia do Direito: os glosadores passam a traduzir as definições de Ulpiano e de Paulus, a doutrina clássica romana, que comporta nas noções romanas de eqüidade, direito natural, justiça, jurisprudência, etc., o que vai influenciar os canonistas que atuam nos tribunais terrestres. E é Graciano quem procura adaptar a concepção agostiniana aos novos conteúdos romanistas, utilizando as definições clássicas como instrumento de interpretação do direito canônico desde então. A par disso, nos principais centros culturais do período, vinha ocorrendo uma busca além do que os Padres da Igreja haviam escrito. Isso ocorria, sobretudo, em virtude da influência dos clássicos recuperados quer em Bolonha, quer na Espanha, e dos contatos com a cultura muçulmana através de Toledo (o reencontro de Aristóteles). 63 Também influi, nessa busca, a quarta cruzada contra Bizâncio e o relacionamento com a cultura encontrada na Sicília, por força de sua tomada dos muçulmanos e ocupação por Frederico II. Esse contato faz renascer o interesse pelas artes profanas, ocorre uma mudança nos métodos de estudo nas universidades, passa a ocorrer uma outra preocupação com a lógica, metafísica, a preocupação com o intelecto, a história natural, a doutrina moral e a política; a filosofia recupera a utilização da gramática e da dialética, passando a acontecer uma utilização integrativa entre o neoplatonismo e o aristotelismo. Dessa época o “Sim e o Não” de Santo Abelardo, que foi acusado em Paris de ter abusado da retórica dialética, procurando compreender racionalmente a Trindade, ao invés de se ater aos Evangelhos. Em meados do século XIII, sobrevém o primado de Aristóteles, procurandose juntar aos novos caminhos as doutrinas averroístas, relacionadas à eternidade do universo e o monopsiquismo (a unidade da alma intelectiva em todos os homens), mas não sem profundas repercussões negativas dos que se apegavam à tradição agostiniana, antepondo Platão e Aristóteles à Bíblia, as novas doutrinas dos mestres na universidade, à autoridade de Santo Agostinho. Além disso, são estigmatizados como cheios de veleidade os métodos escolásticos com suas disputas, suas questões, suas controvérsias, etc., ao invés do respeito aos textos patrísticos e a fiel leitura do texto sagrado. Tal confronto, iniciado formalmente no Concílio de Sens (1210), que proibiu a leitura de livros sobre a natureza na Universidade de Paris, chegou a seu apogeu na proibição de teses aristotélicas e tomistas, bem como na administração de aulas daqueles que as defendiam na mesma universidade no ano de 1277 (cf. Villey; 2003: pp. 143-145). Aqui vale analisarmos rapidamente o pensamento de Santo Tomás de Aquino e sua relação com o direito. A sua importância se dá no contexto de dois grandes movimentos de seu tempo: “a racionalização pela qual passa a Idade Média das cidades e a disputa de poder político entre a Igreja e o poder secular (Império)” (Lima Lopes, 2002: p. 144). Santo Tomás se encontrava no centro do renascimento do aristotelismo pela influência de dois centros de tradução – Toledo e Palermo. Ambas as cidades haviam sofrido uma influência islâmica e receberam dos muçulmanos o que havia entre eles dos gregos antigos, e que havia sido perdido durante as invasões e a Idade Média Alta. E, a partir de Aristóteles, Santo Tomás traz a confiança na razão, traz uma compreensão e 64 inteligibilidade do real, da natureza e do homem. Do cristianismo traz o pecado e a queda. A razão precisa ser conduzida, daí o método. Temos paralelamente a uma concepção própria da razão, a disputa entre a Igreja e o Império. Para solucionar esse problema, Tomás de Aquino adota uma solução mista, aponta que o direito joga um papel: usa do costume, do direito romano, ou da razão jurídica – e é dessa última que decorre a razão prática, comum a todos os homens, o que permite julgar a razoabilidade das decisões. Ainda para o direito, cabe observar que a reflexão tomista parte dos eventos reais que o circundam e o condicionam, buscando o bem comum; além disso, aponta como os poderes positivos se ordenam visando ao bem comum. E o bem comum, para Santo Tomás, é um ideal regulador. É válido transcrever Lima Lopes ainda (2002: pp.146-147) sobre a ambientação política da criação do Doutor Angélico: Tomás de Aquino é também um homem do renascimento urbano e comercial do século XIII, ensina em Paris de 1252 a 1259, e tem suas teses proibidas, pelo bispo de Paris, até 1325. Sua visão da vida política está associada a um certo otimismo reinante nas cidades que renascem e que renascem através de um esforço coletivo. Este esforço é, geralmente, uma guerra empreendida contra o senhor feudal, leigo ou bispo: e o fim da guerra é selado pela capitulação do senhor que concede à cidade a sua Carta, seu estatuto, seu foral. Algumas vezes esta carta de liberdade urbana é concedida com menos violência e guerra, mas é sempre uma forma de pacto. E os cidadãos não são cidadãos isolados: são as corporações e guildas, que fazem entre si o pacto de defesa mútua, uma conjuração pela paz. A própria comuna ou cidade é uma corporação formada por alguns cidadãos capazes e posta sob a tutela de um grupo de autoridades que deve zelar para que ela cumpra seus fins corporativos (ou fim comum). A vida política é para Tomás isto mesmo: uma busca coletiva de um bem comum, a felicidade. Na visão do autor citado, esta concepção de Santo Tomás de Aquino o distingue de Santo Agostinho, que passara por momentos de pressão pela situação do império em crise, assalto dos vândalos, etc.; tudo isso o tornara pessimista; havia necessidade de se confiar em uma autoridade para impor ordem à crise. Ao contrário, o pensamento tomista defende que a ordem social e política propiciada pela autoridade não se relaciona apenas com a repressão ao pecado, mas também visa à condução do homem à felicidade. Por relacionar-se com Deus, a natureza humana é potencialmente boa e a relação social é humana e também potencialmente boa; o afastamento da vida social leva à aberração (selvageria) ou à excelência (angelical), mas qualquer dessas opções não representa o que é humano. 65 A gênese tomista do direito natural inicia-se na idéia de que o mundo implica em uma ordem, obra inteligente e bem feita por um Criador. Sobre tal doutrina jurídica, Villey (2003: pp. 163-164) aponta alguns aspectos: quanto às necessidades das leis positivas humanas, Tomás de Aquino, com base em Aristóteles, destaca que tais leis representam uma necessidade da natureza do próprio homem, destinado social e naturalmente à ordem política; nesse aspecto, as leis têm um papel de estimuladoras de preceito, e não só repressoras ou facultativas. Sobre as fontes da lei, o tomismo admite sua origem em uma combinação de forças existentes na sociedade, a partir de um monarca, uma elite de ricos ou sábios, e do povo reunido. Sobre a continuidade do direito positivo humano diante do direito natural, Tomás de Aquino vê o trabalho de legislar como um prolongamento do estudo do justo natural; portanto, a lei humana deriva da lei natural (fruto da razão e da vontade). Sobre as qualidades da lei humana positiva, concebe que deveria ser não só justa (pelo bem comum), mas adaptada às circunstâncias do tempo e do espaço quanto à sua aplicação; quanto à autoridade da lei humana positiva, esta deveria ser seguida por todos, pois em tese ela seria justa: quando não, seria importante que não fosse aplicada, pois sua função estaria viciada. Essas concepções possibilitaram, portanto, segundo Villey, uma nova doutrina baseada no justo, com a retomada e adaptação do direito romano e dos seus procedimentos (inclusive recursos), uma reconstrução da jurisprudência e da função legislativa pelos juízos. Podemos afirmar que o importante pensamento de Santo Tomás de Aquino representa o amadurecimento das idéias da Idade Média, mais precisamente, a cristalização racional do modo de vida daquele período, que tinha a fé cristã e a vida comunitária como centro do viver ali. Mas, quando as idéias e o ensinamento do Doutor Angélico se assentaram e estratificaram na sociedade como um todo (universidades, cortes reais, cotidiano eclesiástico, por exemplo), já se iniciara uma outra realidade: a concentração do poder político cada vez maior no âmbito real, o vigor e a força da burguesia nas cidades em anteposição à diminuição dos poderes feudais, a ampliação do comércio e acumulação de riquezas pessoais, a diminuição da força da Igreja, com a divisão do papado entre Avignon e Roma, a força e o terror das epidemias, a presença constante e numerosa da morte e prejuízos dos reinos pelas guerras, etc.. Vários fatores, portanto, foram formando um 66 declínio da concepção do ideal comunitário, da presença e esperança integral, intertemporal e plena da Igreja na vida de todos, de forma a fortalecer uma visão mais natural da morte próxima, do interesse do indivíduo no seu dia-a-dia, da necessidade do uso do tempo (e do relógio) para a própria sobrevivência, da importância dos negócios e contratos na vida cotidiana, entre outros aspectos. Este é o contexto da mudança do pensamento na passagem para o século XIV, após o clímax do poder eclesiástico no século XIII, e um círculo virtuoso da economia que lhe foi correspondente. Desse novo período o chamado primeiro humanismo, de Dante, Petrarca, Boccacio, as primeiras obras em línguas nacionais, a consolidação das monarquias nacionais, as crises econômicas, as crises internacionais, a crise na Igreja, as crises no meio ambiente (peste negra, problemas de clima e plantio), sendo de crises o pano de fundo do cotidiano. Os franciscanos, que correspondiam a um setor de insatisfação dentro da Igreja contra a inércia de seus dirigentes (que viviam senhorialmente) frente à grande pobreza nas cidades enormemente povoadas, representavam um posicionamento de opção pela pobreza e desprezo pela vida intelectual. Com o tempo ocorreu uma divisão na ordem, entre os que seguiam a opção espiritual do fundador da ordem (observantes) e os que moderadamente defendiam uma adaptação dos votos ao ambiente clerical (conventuais); por certo os espiritualistas denominados observantes passaram a ser perseguidos pela direção da Igreja71. É esse o clima das preocupações na formação do pensamento denominado nominalista. Lima Lopes (2003:pp. 165-166) diz ser tal corrente antagônica aos realistas (aristotélico-tomistas) na questão dos universais. “Para o nominalista, os universais (os termos universais, aquilo que a gramática normativa designava por substantivos comuns e em alguns casos abstratos) são conceitos, mas não têm uma existência real”. Assim, se para Santo Tomás o furto ou o adultério representavam o mal em si mesmo, para os nominalistas tais atos eram representação do mal porque contrários à vontade de Deus. O mal não se definia por si, mas pelo que a vontade de Deus demonstrava; a partir da vontade divina é que se estabelecia a base de tudo. E é a partir da vontade que essa corrente analisa o direito: a vontade do soberano (ainda que estivesse 71 Ocorreu, no século XIV, uma terrível perseguição da Inquisição contra os franciscanos observantes; um dos aspectos do ambiente persecutório é retratado com arte e maestria por Umberto Ecco em seu romance O nome da Rosa, que tem por protagonista Guilherme de Ockham. 67 sujeito a regras que não dispostas por ele) e a teoria do direito dos soberanos, o que se relaciona com os estados nacionais estabelecidos e soberanos. Vê-se assim uma retomada platônica à representação das idéias, agora aproximadas da vontade de Deus. Um novo perfil para o positivismo jurídico. Segundo Villey (2003: pp. 209-211), o franciscano Duns Scot, conhecido como Doutor Sutil, não teve uma preocupação mais detalhada com o direito; mas, ao comentar o principal texto sobre o direito de Scot, que é uma análise em Oxford sobre sentenças de Pedro Lombard e a origem do domínio e a autoridade política, exemplifica: ali a tese aristotélico-tomista da origem natural da propriedade, como do poder político, é utilizada no contexto para debater a origem de todas as coisas comuns e a que ponto os homens são livres de toda dominação política. E, à indagação sobre de onde provêm os poderes do domínio e do governo, responde: da permissão divina, pois Deus revogou o preceito da comunidade dos bens usáveis no estado de inocência e deu aos homens permissão de constituir propriedades; define aí a parte do direito positivo divino. Quanto à forma de distinção das propriedades, Scot reutiliza o conceito anterior de Santo Agostinho, que admite a procedência da divisão dos bens pela lei positiva humana: e essa lei positiva humana faz supor o poder político72. É em Guilherme de Ockham que se situa o principal condão do pensamento jurídico do nominalismo. Para Ockham73, todos os mandamentos do Decálogo (os dez mandamentos do Pentateuco bíblico) são puro ato da vontade de Deus a que o homem deve obediência sem qualquer razão que não a Sua vontade – “Deus não é obrigado a qualquer ato; dessa forma é o justo a ser feito”74. Em função de um posicionamento teológico e político de coerência, o franciscano Ockham se dispôs a pensar o direito e o fez sob o prisma do positivismo jurídico por um lado e, de forma criativa, dispôs sobre a doutrina do direito subjetivo individual. O conceito de individualismo se contrapõe ao homem animal 72 Bréhier (2004: p. 641), sob um prisma filosófico, faz distinção entre Santo Agostinho, Santo Tomás e Duns Scot, da seguinte forma: sobre a continuidade e a hierarquia entre as formas da realidade, o agostianismo afirmava existir continuidade no ser e, portanto, continuidade no conhecimento; o tomismo afirmava haver continuidade no ser mas descontinuidade no conhecimento; o scotismo possuía a fórmula da descontinuidade no ser e descontinuidade no conhecimento. 73 Ockham representa o principal pensador do nominalismo, que passou a ter uma influência muito grande nas principais universidades européias entre o século XIV e XV. Seus principais discípulos são Gregório de Ramini, Jean Buridan, Jean Gerson. Vale destacar que Ockham, inglês nascido por volta de 1280, veio a falecer entre 1349 e 1350, em plena peste negra e, possivelmente, por esse motivo. 74 Apud Bréhier (2004: p. 653): «Dieu n’est obligé à aucun acte; c’est donc ce qu’il est juste de faire». 68 político da tradição aristotélica e ao conceito organicista de sociedade da Idade Média. A sociedade passa a ser vista como a soma de indivíduos isolados, que se organizam por formas de contrato social. Sobre o conhecimento, Curtis Giordani (1997: p.107) observa que Ockham considera “saber seguro” o que se percebe com evidência ou o que é dedutível de verdades óbvias. Diz que dá um impulso decisivo à lógica e tem predileção pela coisa individual, pela experiência e pela observação; distingue o conhecimento abstrato e intuitivo; sobre o conhecimento intelectual diz estar no singular. Lima Lopes (2003: pp. 171-173) destaca: Ao individualismo epistemológico e metafísico, Ockham associa o voluntarismo. O que Deus quer é bom porque Deus quer. Em Deus vontade e razão coincidem, mas são ininteligíveis para nós. Trata-se do inalcançável, do infinito, da liberdade e da onipotência absolutas de Deus. A partir daí, a vida política tem relação a uma razão humana de cunho utilitário, prático e funcional. Afinal, é a partir do interesse próximo e da perspectiva do homem é que se vai estabelecer aquilo que parece adequado ao momento e à vontade de Deus. Tal posicionamento estabelece bases para pensar o direito sobre outro eixo: o centro do interesse do direito é o indivíduo e, a partir dele, o direito caminha para descrever-lhe as qualidades jurídicas; procura entender suas faculdades e a vontade positiva dos mesmos. Esse o referencial para o futuro direito moderno. V – Os estertores da Idade Média Ellul (1999: pp. 297-303) descreve o período dos séculos XIV e XV como a ligação entre a sociedade tradicional e feudal da Idade Média e o mundo moderno; são séculos decisivos nos quais todos os fenômenos se conjugam: quer sob o ponto de vista demográfico, quando se abre uma fenda brutal pela eclosão da peste negra; quer sob o ponto de vista econômico, em que surge um influente capitalismo comercial, a par de um maior desenvolvimento de um tipo de indústria; quer sob o ponto de vista intelectual, com o surgimento da imprensa e se abre a tendência para a secularização na arte e no pensamento e, em seguida, virá aparecer a Renascença; quer sob o ponto de vista da influência geopolítica, com o período da expansão européia para os quatro quadrantes do 69 mundo, além do reconhecimento econômico da África e a ligação com a América descoberta oficialmente; quer sob o ponto de vista espiritual, tendo em conta a situação da Igreja com sua teologia clássica e o aparecimento das grandes heresias (Wicliff, por exemplo); quer sob o ponto de vista militar, com a guerra dos Cem Anos, com o aparecimento de novas táticas, desenvolvimento de armas e emprego de mercenários; finalmente, sob o ponto de vista sociológico, com a mudança das estruturas da família, diante do afluxo de população para as cidades e a estruturação de uma nova categoria social que virá a ser dominante, a burguesia. O mesmo autor destaca que acontece, nesse período, um rápido crescimento das instituições do Estado e a destruição ou subordinação das instituições autônomas, ocorrendo ainda um efetivo declínio do direito costumeiro em favor do direito escrito e concentrado nas mãos do rei. Pode-se dizer, em síntese, que dois elementos ganham preponderância: o poder político centralizador e o poder do dinheiro. Mas todas essas mudanças se efetuaram com crises e conflito; nessa transição histórica, com crise e conflito, há dois símbolos trágicos representativos: um, a Peste Negra; o outro, a Guerra dos Cem Anos. A epidemia denominada peste negra75, que surgiu como o fenômeno que vai marcar todo um período, ocorreu de forma efetiva principalmente entre os anos de 1348 e 1350. Atingiu praticamente toda a Europa e matou, pelo menos, trinta por cento da população (cerca de vinte e cinco por cento dos ricos e cinqüenta por cento dos pobres) naqueles dois anos. Provocou inúmeras conseqüências: a) religiosas, pela perda da confiança na Igreja, que não consegue proteger seus fiéis das doenças, e estes caminham para movimentos místicos, hereges, feitiçarias, etc.; b) econômicas, com sensível diminuição da mão de obra, aumento dos preços da mão de obra e das produções, diminuição dos preços dos produtos oferecidos, etc.; c) sociais, com o aumento da intolerância entre setores da sociedade, com os ricos acusando os pobres de propagarem a epidemia e, estes, acusando os ricos de monopolizar os remédios, além da propagação da violência contra os judeus, etc.; d) institucionais, os Estados e as cidades passam a adotar medidas rígidas para evitar o deslocamento de pessoas, ou medidas para fixar trabalhadores 75 Corresponde à peste bubônica, transmitida aos homens pela pulga do rato. 70 em seus locais de trabalho, e manterem estáveis os preços e os salários, bem como desenvolver a organização policial, etc. A guerra dos Cem anos, típico exemplar de guerra endêmica, foi travada entre a França e a Inglaterra e teve como um dos principais reflexos a diminuição do poder dos senhores feudais desses dois países, com o contraponto da concentração e aumento do poder real. O primeiro e mais conhecido dos motivos dessa conflagração foi a sucessão do trono francês, após a morte de Carlos IV (1328) sem descendentes diretos, o que resultou no final da dinastia dos capetos (no poder francês desde o século X). Iniciou-se daí uma luta entre descendentes indiretos: de um lado, Felipe de Valois, senhor feudal francês sobrinho de Felipe, o Belo; e Eduardo III, neto de Felipe, o Belo, mas por parte de mãe e, ao mesmo tempo, rei da Inglaterra. Houve uma assembléia de senhores feudais franceses e foi resgatada a lei Sálica (dos francos), que não admitia a sucessão do rei por mulheres. A partir daí, foi coroado Felipe de Valois, mas Eduardo III iniciou uma luta pelas armas. Entretanto, o principal motivo da guerra instaurada era a disputa pela região de Flandres (Países Baixos e norte da França), um território rico pelo comércio e indústria de tecidos, e que se utilizava da lã inglesa (cf. Campos, 1989: pp. 218-221). A guerra teve três fases: na primeira (1337 a 1364), a superioridade inglesa predominou e a Inglaterra ocupou vários territórios franceses, tendo ocorrido, em razão dos gastos com a guerra, prejuízos para o comércio e os problemas trazidos pela peste negra, uma grave crise econômica na França. Tal quadro resultou em revoltas nas cidades e nos campos; a principal revolta urbana ocorreu em Paris, liderada por um burguês Estevão (Etienne) Marcel, que exigia maior participação da burguesia nos Estados gerais. No âmbito rural, ocorreu uma rebelião de camponeses liderada por Gulherme Caillet, que recebeu o nome de Jacquerie, por serem os camponeses apelidados pelos nobres de Jacques Bonhomme, que Campos (1989: p. 219) traduz para “Jeca-Tatu”76. Tal revolta chegou a congregar cem mil camponeses em 1358, e teve destruição de castelos e mortes de inúmeros nobres; houve reação dos senhores feudais e do reino, que conseguiu sufocar a rebelião de forma drástica. A divisão interna da França resultou em um tratado em que o rei 76 Em inglês usa-se John Doe (João Ninguém). 71 João, o Bom, teve de aceitar a ocupação do território da Aquitânia77 (quase um terço do território francês) pela Inglaterra. A segunda parte da guerra dos Cem Anos ocorreu com a morte de João, o Bom, e a retomada da guerra por seu filho Carlos V78. Tal postura resultou em retomada de boa parte do território anteriormente sob o domínio inglês. Com a morte de Carlos V subiu ao trono seu filho Carlos VI79 (1380), que ficou impedido de reinar por falta de sanidade mental. Como seu filho era menor, foi instituída uma regência que, por sua vez, criou outra divisão pelo uso político desse poder: de um lado, a nobreza apoiava a família dos Armagnacs, de outro, os de Borgonha. Como os Armagnacs dominaram a regência, os de Borgonha se aliaram aos ingleses que, por sua vez, retomaram e obtiveram mais territórios em seu poder, restando ao poder francês apenas a região central da França. A partir de 1422, ocorre a terceira parte da guerra centenária com a ascensão de Carlos VII ao poder. Inicia-se, então, um processo de crescimento do sentimento nacional e de ânimo para superar a situação vivida, o que cria um momento próprio para o surgimento de herói nacional. Surgiu desse contexto Joana d’Arc, de origem camponesa e tomada de sentimento profético religioso; ela assumiu a frente de batalhas e permitiu um espírito de aceitação da liderança de Carlos VII para a nação. Embora presa em batalha e condenada à morte, sua figura martirizada serviu de estandarte de patriotismo. A França reconquistou seus territórios, tendo ainda os duques de Borgonha selado a paz com Carlos VII; seu sucessor, Luís XI (de 1461 a 1483), habilmente conseguiu diminuir a força dos senhores feudais e ampliar ainda mais a concentração do poder real, passando então a adotar uma política econômica mercantilista, de acordo com o interesse da burguesia e da força do Estado. A guerra dos Cem Anos também provocou crises e mudanças políticas na Inglaterra. Podemos destacar rapidamente ali a rebelião de Wat Tyler, ocorrida nas regiões de Essex e Kent, diante do aumento de impostos em razão da guerra. A revolta surgiu dos camponeses que assassinaram os coletores de impostos, vários senhores feudais e destruíram castelos. Foram liderados pelo camponês artesão Wat Tyler e pelo padre John 77 Corresponde à região do sudoeste francês, que tem como capital a cidade de Bordeaux; conhecida também como Guyenne. 78 Conhecido como le Sage. 79 Conhecido como le Fol. 72 Ball; invadiram Londres, ocupando-a; entretanto, as tratativas entre os líderes da rebelião e o rei Eduardo II foram traídas. O rei, que afirmou a aceitação das reivindicações da retirada de vários impostos, abolição da servidão e cercamentos, além da distribuição de terras e anistia aos revoltosos, após o retorno ao campo da população revoltada, deu início a uma terrível repressão, com extermínio de aldeias, execução dos líderes e milhares de camponeses. Os cercamentos foram restabelecidos, embora mantida a abolição da servidão e obrigações feudais, por interesse da coroa inglesa em concentrar o poder e enfraquecer aquele tipo de senhorio. O final da guerra dos Cem Anos trouxe para a Inglaterra uma forte crise econômica, diante da perda de territórios no continente e do fácil acesso à região de Flandres, em que a venda da lã inglesa era altamente propiciadora de lucros aos senhores feudais; isso deu origem a mais conflitos internos que resultaram em maior concentração de poder nas mãos reais e ampliação do comércio mercantilista. Essas duas tragédias principais narradas não foram isoladas. Houve várias epidemias e outras lutas concomitantes80; também a Igreja teve um cisma, com a divisão da cristandade entre um papa francês e outro romano (a partir de 1378). No concílio em Pisa (1407), elegeu-se um terceiro papa; o concílio de Constância depôs um papa e tentou unificar a Igreja de novo, tentando fortificar a figura do concílio sobre o papa, o que foi posto abaixo em novo concílio, situação cismática que perdurou até meados do século XV. Por óbvio, tal situação de divisão do poder da Igreja diminuiu em muito seu poderio e permitiu uma consolidação política de concentração de poder dos reinos europeus. Merece destaque a Península Ibérica, em que não houve grandes cisões internas, o que permitiu que os reinos locais, a partir do século XIV, concentrassem esforços em suas políticas de fortalecimento do Estado e dessem ênfase às políticas econômicas de atendimento ao comércio mercantil. Portugal e Espanha, à frente dos demais, se desenvolveram para a busca de novas terras, início de uma nova era. Este o quadro de um período visto rápida e panoramicamente. 80 Houve um pouco antes (século XIII) a terrível invasão mongol na Rússia e Bulgária (Europa Oriental) pelo exército de Gengis Khan, famoso pela sua crueldade. 73 C – UM OLHAR DE APROXIMAÇÃO (ZOOM). Neste olhar de aproximação, preocupamo-nos em observar o trabalho humano medieval, optando pelo período após a “revolução medieval”, principalmente após o século XII. É que, a partir de então, se estrutura de forma mais efetiva o trabalho naquilo que se denomina de corporação de ofício, o interesse mais próximo desta pesquisa. I – As organizações urbanas 1- Associações mercantis Guy Fourquin (1969: pp. 230-235), ao analisar o desenvolvimento urbano no setor secundário em seus aspectos múltiplos, aponta um quadro, a partir do Renascimento medieval (século XI e XII), que merece ser destacado: nesse período, setores urbanos na Europa Ocidental, como no Norte da Alemanha e Inglaterra, eram não valorizados pelos senhores feudais, o que redundou em poucas cidades, com alguns entrepostos de paradas entre elas. Ali acorriam os mercadores ambulantes que, por serem muitos, logo se organizaram em associações profissionais que usavam tais lugares como pólo de saída das atividades. Na região que denomina de zona intermediária entre o Norte e o Oeste europeu, no entorno dos chamados países baixos, a influência romana prevaleceu com a presença maior de cidades e ali se estabeleceu comércio, embora ainda isoladas umas cidades das outras e sem muita presença senhorial. Nas regiões mediterrâneas, ocorreu a manutenção de cidades fortalecidas e próximas umas das outras em que viviam os nobres e senhores feudais que, por sua vez, se inter-relacionavam com os comerciantes urbanos. Isso resultou na formação de uma elite urbana composta de clérigos, nobres, mercadores, com um movimento comercial e artesanal importante para a vida comum. Com o aumento dos negócios, os comerciantes tiveram de criar formas de ajuda mútua diante dos inúmeros problemas com vários tipos de autoridades (senhoriais e de principados), além dos usuais problemas de prejuízos pela insegurança dos negócios. Já havia formatos de organização de cunho religioso (caridade) desde 1050 aproximadamente, 74 sendo certo que essas associações de comerciantes denominadas guildas (ghildes)81, estruturadas sob influência do procedimento religioso (que era ínsito àquela sociedade), formaram-se principalmente na região que é hoje Holanda e Bélgica, além daquelas dos arredores de Paris, Inglaterra e próximas ao rio Reno, tomando aspectos de regulamentação própria dos negócios urbanos de formato monopolista. As organizações denominadas hansas (hanses),82 da mesma região geográfica acima, correspondiam a um grupo de guildas, ou então correspondiam a um grupamento mais amplo destinado a operar na esfera estrangeira, limitando e organizando o número de participantes aos grandes tráficos comerciais. Tais entidades se formaram tendo em conta necessidades específicas, como, por exemplo, a ordem jurídica83, pois era necessário sair da influência dos tribunais senhoriais, cuja estrutura era por demais inflexível e inaplicável pelo desconhecimento factual das realidades comerciais e da vida mercantil; também se fazia importante, na esfera política, atender uma sociedade de negociantes ricos em seus problemas urbanos com necessidades próprias, bem diferentes da vida rural. Esta questão, de cunho mais econômico, foi fundamental diante da grande circulação de mercadorias nas cidades e a importância que alcançou esse fenômeno. Um grande exemplo dessa importância corresponde à hansa parisiense dos mercadores de água, montada no final do século XI, para fazer frente à que havia em Ruão (Rouan), região ligada à Normandia, e que se relacionava ao aporte e transporte de vinho pela região fluvial parisiense. Ali se criou um monopólio de transportes pela hansa, que logo passou a ter importância política na região de Paris e que, em seguida, passou a ter 81 Aqui transcrevemos trecho da carta de uma das concessões para funcionamento de guilda na França: “A carta da guilda de Aire-sur-la Lys (1188)... 2. Todos os que fazem parte da ‘Amizade’ da cidade confirmam, através da fé e juramento, que cada um tratará o outro como um irmão naquilo que é útil e honrado... se aquele que tenha sido o autor ou a vítima de um ato prejudicial e não aceitar um arbitramento, após três avisos que ele mesmo e qualquer outro que tiver sido cúmplice, sendo culpado e cometa perjúrio contra o interesse e a honra da ‘Amizade’ a que fez juramento, responderá à ‘Amizade’ da comuna” (Fourquin; 1969: p. 286). 82 Não se trata aqui das hansas teutônicas. 83 Coornaert (1941: pp. 60-63) aponta o crescimento do comércio e da indústria entre os séculos XI e XII, com o advento da atuação da burguesia nas cidades, de forma lenta, difícil e às vezes até brutal, como causa da grande mudança nas comunidades urbanas e do fortalecimento das comunidades corporativas; tal mudança constituiu uma consolidação de liberdade de atuação representada pela formação da jurisdição própria. Como exemplo, cita os comerciantes valencianos com seus costumes de julgamento desde o final do século XI, sendo estes valencianos, ou taverneiros de Chartres (logo no início do século seguinte), admitidos como autoreguladores de seus afazeres, com apoio das autoridades maiores dos reinos correspondentes, o que introduz uma validade corporativa com natureza de direito público ou quase-público. 75 relações muito próximas com o poder real, daí granjear privilégios de organização e influência efetiva em toda a administração da cidade. Aqui deve ser destacado que o vinho foi muito importante como fator de exportação lucrativa para as cidades, o que veio a lhes granjear fortalecimento econômico e político. Vale notar que as cidades medievais não possuíam número grande de habitantes. Fourquin aponta serem as italianas aquelas que contavam com maior população, como Milão e Veneza, que chegaram, no século XIV, a ter duzentos mil habitantes. Florença e Gênova tinham nessa época cerca de cem mil habitantes cada; na França, a principal cidade em população na época medieval foi Paris, com duzentos mil habitantes; na região de Flandres, a população nesse período era de vinte mil habitantes, como também em Arras e Ypres; próximas a elas, Gand e Bruges tinham em torno de cinqüenta mil habitantes cada uma; Londres possuía, nessa época, cerca de quarenta mil habitantes, o mesmo que Colônia, enquanto Sevilha tinha cerca de quinze mil habitantes. Todas as cidades aqui exemplificadas correspondiam às maiores de suas regiões. Mas as atividades comerciais dessas localidades permitiram a expansão do setor terciário, tendo havido uma revolução das técnicas de negócios. A própria Igreja, no século XII, manifesta-se no concílio de Latrão pela admissão dos mercadores no benefício da sua proteção, aceitando uma situação de fato que ela não poderia enfrentar, diante da irremediável incorporação do ganho e do lucro no âmbito das cidades, a par dos próprios interesses de ganho na sociedade (até pelos clérigos da Igreja). Dessa época a intensa presença de feiras temporárias e internacionais, sendo na região de Champanhe as suas principais promoções, caracterizando-se como local estratégico por ser rota de comércio e pela proximidade da região de indústria de tecidos (Flandres). Em meados do século XIII, em razão principalmente da sedentariedade dos comerciantes e da guerra entre a França (Felipe, o Belo) e a região dos países baixos e, posteriormente, da guerra dos Cem Anos, as feiras de Champanhe entraram em declínio, passando a ter importância internacional os grandes centros urbanos de comércio84. Nesses centros de comércio, temporários (com as feiras) e gradativamente fixos (com os centros urbanos principais), os burgueses foram os principais agentes do 84 Em razão dos conflitos, a rota comercial mudou de direção, afastando-se da França e passando a se utilizar, principalmente, das vias marítimas. 76 crédito comercial, sendo principalmente deles as funções de banqueiros. A par da usura, atuavam com o câmbio, e logo passaram a atuar como guardadores de depósitos e investimentos (principalmente a partir das grandes cidades italianas, em que foram criadas, com cunho prático, as figuras dos contratos de câmbio e letras de câmbio). Por força do grande comércio internacional, promoveu-se uma mudança mais complexa nos tipos de associações de mercadores, criando-se um direito de sociedades; assim, as associações de comércio, que se iniciaram como associações de defesa e de organização da profissão relativa a quem fazia comércio (guildas ou hansas), com o tempo e o desenvolvimento dessas entidades se tornaram companhias (na forma italiana) ou sociedades (conforme o termo jurídico). Vale destacar ainda as organizações comerciais dos mercados urbanos voltados ao consumo no varejo: com o crescente aumento da população urbana desde o século XII, o abastecimento das cidades passou a ser uma das principais preocupações das administrações municipais, que passaram a regulamentar economicamente a situação, procurando evitar fraudes e assegurar a alimentação e materiais de uso comum; passaram a observar a publicidade das transações, fixação dos preços, medidas, qualidade e número de mercadores nos locais, mantendo uma estabilidade nos comerciantes, não aceitando pessoal de fora para vender na cidade, além de exercer a fiscalização para evitar estoques de especulação, etc. 2- A “indústria artesanal”: ofícios (métier) Georges Lefranc (1957: pp. 124-126) nos informa que o termo ofício (métier ou corp de métier) era relativo ao grupo de pessoas que trabalhavam artesanalmente. Desde o século XII85, esses grupos se desenvolveram nos ambientes de aglomeração populacional, de forma livre (sem controle ou regulamentação); logo em seguida à multiplicação dos que se aplicavam nesses trabalhos, passou a existir uma organização entre os que trabalhavam nesses ofícios, ocorrendo uma forma comunitária de funcionamento na cidade, ressaltandose a seriedade nas atividades e um monopólio em tal exercício. 85 Até então, os artesãos atuavam de forma esparsa e isolada (ateliês artesanais) nos domínios dos senhorios e abadias, ocorrendo nessa situação ainda uma condição servil do artesão. 77 Eram esses artesãos, produtores dos bens necessários para a vida cotidiana daqueles que viviam nas cidades, que foram se especializando com o passar do tempo e dos serviços: no âmbito do atendimento à alimentação, havia o moleiro, o padeiro, o confeiteiro, o açougueiro, o cozinheiro, o quitandeiro, o bodegueiro, etc.; no âmbito da construção e mobiliário, havia o pedreiro, o carpinteiro, o telheiro, o marceneiro, o vidreiro, o carreteiro, o toneleiro, o oleiro, o cesteiro, o fabricante de portas, torneiros, fabricante de panelas, fabricante de objetos de chifre, etc.; no âmbito de vestuário, havia o alfaiate, o comerciante de roupas usadas, o tecelão rudimentar, o tintureiro de lã, etc.; no âmbito da metalurgia, havia o ferreiro, o polidor, o cuteleiro, o ferramenteiro (fabricante de morsas, etc.), o ourives; e assim, em cada atividade que se fazia necessário um atendimento, havia uma especialidade produzida e aperfeiçoada pelo trabalho humano. Este autor destaca que sistematicamente se poderia observar a consolidação dos ofícios em três fases: a primeira, a do costume oral; a segunda, a de regulamento livre elaborado pelos interesses dos artesãos integrados; e a terceira, a fase do regulamento aprovado pelo poder e sistematizado na comunidade. Mas essas duas primeiras fases foram ocasionais, nem sempre presentes. Ellul (1999: pp. 225-230) observa que a primeira etapa da instalação de ofícios se deu pela formação de associações artesanais livres entre os artesãos que haviam se fixado nas cidades até o final do século XI e se relacionavam com as associações comerciais como forma de defesa, principalmente contra os senhores feudais que ainda possuíam muita influência nos setores urbanos relacionados com seus domínios. Tais associações, quanto às suas produções, eram objeto de fiscalização e regulamentação pelos senhores ou pelos que eram encarregados pela administração municipal; só aqueles que estavam integrados às associações fiscalizadas é que poderiam exercer o seu mister. Essa situação criada pela estrutura de poder naquele contexto propiciou também um paradigmático formato de auto-organização das entidades montadas pelos artífices. Essa forma de organização, assim, de um lado, defendia os interesses dos artesãos para a garantia e segurança de seus trabalhos para com os de fora, quer o poder senhorial, quer a presença de forasteiros; de outro lado, essa associação montada era supervisionada pelas administrações municipais, que asseguravam o controle municipal na defesa dos interesses dos consumidores para uma boa qualidade do produzido. No século XII, 78 inclusive, não existe efetivamente, ainda, uma “corporação” típica, pois ainda há uma intervenção exterior (municipal ou senhorial) e não há ainda uma regulamentação própria e uma autonomia econômica do grupo. Vale destacar que a organização comunitária entre os artífices se deu concomitantemente ao momento de revolução medieval, a partir do novo ímpeto de crescimento das cidades, como uma revolução industrial86constante e progressiva que se colocou de forma duradoura e prolongou-se no Renascimento ocidental. II - A organização das corporações A organização daqueles que trabalham principalmente de forma artesanal em atividades semelhantes ou afins não se originou na Idade Média, mas se tem notícia de associações assemelhadas desde a Antiguidade, como na Índia, no Oriente persa (bazar) e na Roma antiga. É a forma romana (colégio) que influenciou a formação da corporação na Europa da Idade Média, notadamente a partir do período da revolução medieval. O termo corporação não era usado pelos franceses na Idade Média87, mas sim o de comunidade de ofícios (communauté de métiers – cf. Ellul, 1999: p.226). A figura dessa comunidade de ofícios, ou como se denominou posteriormente na Espanha, gremios, e em Portugal, corporação de ofício (expressão utilizada neste trabalho), representava mais 86 Desde o século X, mas principalmente a partir do século XII, ocorre uma verdadeira revolução industrial na Idade Média, a ponto desse tema ser objeto de obra de Jean Gimpel (2001: pp. 261-267), que relaciona diversas invenções no período; como exemplo, a criação do moinho de cerveja na Europa no século X, moinhos para ferro, casca de carvalho, cânhamo e de marés; a chaminé e a artilharia com catapulta no século XI; no século XII, temos a obtenção do álcool por destilação, moinho de vento, bússola, navios à vela sem remos, descoberta do ácido nítrico, barragens nos rios, abóbadas de ogivas, escada de caracol, vitral, martelo de joalheiro, catapulta, apuração entre os monges beneditinos cistercienses da criação dos carneiros por cruzamentos, etc.; no século XIII, temos ainda a invenção do botão, carrinho de mão, macaco-elevador, tear horizontal para dois operários, bússola com uma escala de referência dividida em 360º, comportas com dobradiça fechadas automaticamente pelo fluxo do mar, moinho para torcer a seda, cálculo da latitude de Paris, emprego do carvão na indústria, espelho de vidro, mecanismo de relógio com pesos e rodas, difusão da roda de fiar, etc.; no século XIV, há a invenção dos foles hidráulicos, da bússola portátil com tampa de vidro, moinho para cimento, canhão, pontes prefabricadas e articuladas, torno para madeira, descoberta da fundição, moinho de vento com telhado giratório, altos-fornos, ampulhetas, mostrador de relógios, garfos, instrumento de cordas com teclado fixo, etc.; no século XV, surgiu a primeira arma de fogo portátil, dissecação de cadáveres, emprego de pólvora para explosão destrutiva, caravela, canhão com alça, caracteres de imprensa móveis, etc. 87 Coornaert (1941: p. 23) nos diz que apenas em meados do século XVIII as antigas comunidades de ofícios começaram a ser chamadas de corporações na França; essa denominação é proveniente da Inglaterra e relaciona-se com corpo administrativo ou grupamentos econômicos. 79 do que um organismo especializado por profissão, mas um grupamento que englobava várias profissões relacionadas umas com as outras, quer por circunstância econômica, quer por circunstância histórica, quer por vontade fortuita. A corporação de ofício se formava pela reunião de pessoas que atuavam no setor profissional próprio e, nessa comunidade, o trabalho era repartido entre o local de trabalho e o local em que permanecia o mestre responsável pelo trabalho. A corporação de ofício era dirigida por uma Juranda88, direção colegiada da corporação que, como diz o termo, era escolhida entre os pares que prestavam juramento de zelo ao grupo. Havia ainda, na corporação de ofício, o associativismo relativo à confraria, de cunho religioso intrarelacionado com o cotidiano, a crença (cristianismo) e os afazeres89. Houve mais de um tipo de corporação de ofício: uma auto-organizada pelos mestres e seus ajudantes e formada a partir da própria atividade necessária desde antes do desenvolvimento das cidades, mas nelas estruturada em torno da atividade do mestre, como as de fundidores, curtidores, marceneiros, etc.. Outras, com apoio para formação e funcionamento do próprio poder municipal, como aquelas relacionadas com interesse público mais próximo (corporações das atividades ligadas à alimentação, construção e atividades de perigo – cirurgiões, boticários, etc.). E outras, ainda, formadas pelos interesses do comércio com produtos de ampla necessidade ou aceitação nas cidades mais ativas, como as relacionadas com tecidos. Mas também houve um tipo especial de corporação, que possuía um ofício não artesanal, mas intelectual, que merece uma atenção pela importância que representou e representa até hoje, qual seja, a universidade. 1- Uma corporação especial: a universidade A universidade corresponde a uma criação européia medieval formada a partir do século XI. Tratava-se de uma instituição de ensino superior com a “agregação de várias escolas específicas, destinadas à formação de especialistas titulados” (Larousse Cultural, 1998: pp. 5837-5838). A primeira universidade, formada em Bolonha, teve seu núcleo inicial com a faculdade de Direito em 1088, e possuía um aspecto laico que logo veio a se antepor à universidade de Paris, iniciada menos de setenta anos depois, e que só se 88 O Dicionário Houaiss da língua portuguesa não possui esse termo; mas a Grande Enciclopédia Larousse Cultural o trata por Juranda, em português. 89 Utilizamos-nos, mais uma vez, da linha do trabalho de Ellul (1999: pp. 225-230) para esta análise. 80 laicizou no século XIII. A universidade de Bolonha nasceu sob o apoio da administração municipal e era sustentada tanto pelo governo municipal como pelo pagamento dos estudantes. Logo após Bolonha e Paris, também surgiram universidades em Pádua, Nápoles, Siena, Oxford, Cambridge, Heidelberg, etc.. Uma de suas características era a autonomia universitária, nascida de movimento corporativo de autodefesa dos professores e alunos; possuíam freqüência de milhares de alunos e centenas de professores; consistiam centros de cosmopolitismo cultural, com direção própria, mas apoio de reis, bispos, imperadores ou papas. Le Goff, em Un Autre Moyen Âge (1999: pp. 197-208), destaca que da mesma forma que as corporações, as universidades se utilizavam do monopólio, no caso escolar, mais precisamente o monopólio da entrega das colações de grau. Conseguiram se estruturar com autonomia jurídica, o que serviu de base conceitual para o apoio a Bolonha dos poderes públicos, a partir do reconhecimento do imperador germânico Barba-Roxa90, pelo édito Authentica Habita. Nessa linha, o rei Felipe Augusto concedeu autonomia jurídica à universidade de Paris em 1200, reconhecimento esse que só foi completamente formalizado pelo papado em 1231. Como destaca Le Goff, a universidade, como toda corporação, controlava a atividade escolar, e os poderes públicos tinham tal controle como útil, pois tratava-se de uma organização de ordem profissional inserida no contexto da ordem pública. Sob tal prisma, as universidades eram vistas como a organização corporativa denominada universidade, e possuidora, como corporação, de privilégios especiais aos seus participantes, como, por exemplo, a isenção de seus membros de participarem do serviço militar. Da mesma forma que as corporações de ofícios, possuíam as obrigações de supervisão interna, assim como de controle de qualidade, de atendimento das condições de trabalho, pagamento pelos serviços e regulação dos estipêndios, termos de regulamentos internos com as obrigações de respeito e serviço, função das chefias, etc.. Mas as corporações das universidades possuíam uma característica que as distinguiam, além da questão intelectual, das demais corporações: era a constante relação (muitas vezes conflituosa) e colaboração dos poderes públicos. É que a maior parte das demais corporações possuía, por suas direções, nesse caso os mestres, uma independência 90 Frederico I, imperador de 1155 a 1190, morto durante a III Cruzada. 81 econômica efetiva para com os poderes públicos, em face da natural atividade dessas corporações (a venda e a compra dos produtos e a forma de relacionamento com o público); tais artesãos e mestres que viviam nas cidades tinham, historicamente de forma recente, conquistado a liberdade diante do senhorio feudal pelo trabalho na cidade. Mas os mestres universitários possuíam geralmente, por força de sua formação cultural e origem menos humilde do que a dos artesãos em geral, um tipo de percebimento pelos trabalhos mais diversificados: de um lado, recebiam pelo seu trabalho dos estudantes para quem lecionavam, e nesse pagamento incluíam-se também presentes na época dos exames; de outro lado e, principalmente, percebiam remuneração dos setores que apoiavam a universidade, quer pelos auxílios eclesiásticos, quer pelas autoridades das cidades, dos príncipes e soberanos. Tal situação distinguia também a corporação da universidade das demais corporações pela ausência de auto-recrutamento (usual na vida da grande maioria das outras corporações). No caso da universidade, havia um número de cadeiras a serem preenchidas por alunos que as utilizavam em razão de um quadro aberto pelo financiamento da universidade pelas autoridades públicas ou oficiais; embora tais auxílios representassem uma forma importante de subsistência dos mestres, também representavam uma abertura para influências exteriores na instituição, o que resultava potencialmente em crises de relacionamento91. Entretanto, a relação entre a universidade e os poderes públicos apresentava aspectos positivos, com a utilização da universidade no aperfeiçoamento da administração pública; com o desenvolvimento e aprimoramento das atividades afins; com a cooperação dada pelas faculdades de Medicina, muito úteis no período da peste negra; ou com a atuação correspondente de outros setores da universidade para a melhoria da urbanização; além da utilização dos conhecimentos de ciência política e econômica, por exemplo, pelos poderes reais. Da mesma forma, os quadros universitários eclesiásticos foram muito utilizados pela Igreja, quer pela estruturação de formas teológicas aplicadas, quer pela burocracia papal. 91 Como exemplos dessas interferências, temos conflitos surgidos na universidade de Louvin, sobre a interpretação dada pelo dirigente de Louvin à bula papal de Eugênio IV, no século XV, sobre formas de suspensão na nomeação de professores, e a interferência do representante do poder local na escolha de becas negras na universidade de Paris. 82 Le Goff ainda destaca as universidades como um grupo econômico de consumidores (1999: pp. 200-201), ainda que não produtor de bens concretos, como por exemplo, a universidade de Oxford que possuía, por volta de 1380, cerca de um mil e quinhentos universitários, em uma cidade que possuía cerca de cinco mil habitantes usuais. Tal volume de pessoas representava um estímulo ao comércio, mas também representava problemas para a acomodação e convívio de tantos alunos (não produtores de bens), pois tal fato desequilibrava o cotidiano e o atendimento às necessidades urbanas, levando-se em conta ainda um número não pequeno de alunos pobres. Vale destacar que os alunos universitários possuíam vários privilégios econômicos, como a isenção de taxas, pedágios, impostos, etc. Cabe observar que o recrutamento dos mestres universitários era feito tendo em vista a competência dos candidatos, os interesses locais em sua especialidade, e a política de atuação pretendida pela direção universitária responsável pela arregimentação dos lentes. O trabalho era extenso, com muitas horas de estudo e aulas durante o dia, incluindo-se os serviços religiosos e a atenção aos alunos, sob o prisma material, de formação moral e, inclusive, da prática religiosa. Desde o século XII, o ensino correspondia a uma carreira, ocorrendo mudanças de mestres para outras universidades em função de público mais numeroso, remuneração maior ou mesmo motivos pessoais, não havendo óbices para professores “estrangeiros”. A duração dos estudos variava de acordo com as matérias e as localidades; por exemplo, um doutorado em Orléans demorava cerca de dez anos: os exames finais eram feitos privativamente, comportando uma explicação de texto escolhido por um dos mestres doutores, com a discussão com tais mestres compostos em forma de júri; a licença obtida autorizava a docência, licencia docendi (cf. BasdevantGaudemet e Gaudemet, 2003: p. 117). 2- Corporação de ofício: o ateliê O ateliê era o lugar em que se elaboravam as produções artesanais e, ao mesmo tempo, o lugar em que se vendiam os produtos ali produzidos. O ofício era dirigido por um mestre que era o proprietário das ferramentas e do material de trabalho (matéria prima) e era ele próprio, o mestre, parte da corporação. Para ser mestre, eram necessárias geralmente quatro condições: primeiro, completar o tempo de aprendizagem (pelo menos 83 três anos); depois, completar um trabalho de difícil execução determinado pela Juranda; ainda, depositar o valor correspondente ao exercício do direito de mestre junto ao Tesouro Real e, por fim, oferecer um banquete para a corporação. Vale destacar que o número de ateliês (ofícios) em determinada comunidade era fixo, não podendo ser aumentado. O mestre só assumia esse posto no caso de vacância; os mestres é que recebiam os ganhos dos trabalhos vendidos, mas fiscalizavam os trabalhos e pagavam os salários dos demais que trabalhavam sob suas ordens (companheiros ou oficiais, também jornaleiros e aprendizes – que moravam e comiam às expensas do mestre) e tinham que aplicar o preço de acordo com o que se entendia por justa medida; isso representava um valor de ganho modesto. A aprendizagem relacionava-se com um tipo de contrato perante alguns mestres jurados ou jurandos (membros da Juranda), em que o mestre retirava o aprendiz (geralmente entre dez e doze anos de idade, embora pudesse se iniciar com 8 ou até 16 ou 17 anos) da casa de seus pais, assumindo o pátrio poder com o compromisso de ensinar-lhe o ofício e dar-lhe o sustento. Os pais do aprendiz geralmente pagavam um valor por esse aprendizado; o mestre podia atuar, então, até com poder de aplicar sanções ao aprendiz (“o mestre tem o aprendiz para seu pão e seu pote” 92 - cf. Lefranc, 1957: p. 126), mas esse poder não poderia ultrapassar limites do bom senso. Essa característica familiar possuía também aspectos empresariais, pois o aprendiz poderia ser cedido a um outro mestre confrade, além de constar como ativo sucessório no caso de falecimento do mestre adotante. A forma da relação entre o aprendiz e o mestre se baseava na característica medieval da dupla noção de “fidelidade-proteção” (como, por exemplo, o senhor feudal e o vassalo). As corporações procuravam limitar as vagas de aprendizes, tendo em conta o círculo restrito das funções e das corporações (cf. Curtis Giordani, 1987: p. 210). Uma vez terminado o período de aprendizado, o aprendiz era levado pelo mestre até os membros da juranda e declarava, sob juramento, que havia completado seu aprendizado. O mestre também deveria confirmar tal situação de término sob juramento, ocorrendo em seguida a declaração de que aquele aprendiz passava a companheiro. Vale notar que, para o início do aprendizado, era dada a preferência a um texto escrito com testemunhas e, para início da 92 «le maître tient à l’apprendit à son pain et à son pot». 84 atividade como companheiro (ou oficial ou jornaleiro), era dada preferência ao contrato verbal. Companheiros ou oficiais, também conhecidos como jornaleiros em função da forma de contratação, eram trabalhadores que completavam o período da aprendizagem e, embora não tivessem obtido o cargo de mestre, continuavam trabalhando indeterminadamente no ateliê do mestre, geralmente como assalariados; eram considerados como de segunda categoria e não possuíam influência direta nas deliberações da corporação; seus salários e jornadas eram acertados individualmente com os mestres. A promoção ao cargo de mestre por companheiros (jornaleiros ou oficiais) era possível, mas as despesas e as possibilidades efetivas dessa promoção não permitiam facilmente que ela acontecesse. Isso, entretanto, era mais factível até a metade do século XIII, mas daí em diante o corpo de mestres passa a ser muito restrito por força da estabilidade de cargos e sua importância na comunidade. Assim, passam a ser criadas dificuldades impostas pelos estatutos das corporações: como exemplo, os custos para acesso ao cargo de mestre se tornam muito altos, passa a constar nos regulamentos a proibição de um companheiro permanecer em uma cidade por mais de dez anos, estabelecese a proibição de companheiro se casar com a filha do mestre, etc.. Assim, a partir do final do século XIII, na França, ocorre uma separação entre os mestres e os companheiros (jornaleiros ou oficiais), sendo a razão principal o fato de as corporações darem oportunidade aos filhos dos mestres passarem a mestres sem necessidade do trabalho de alto grau de dificuldade, antes exigido pelas Jurandas. Diante disso, os companheiros (jornaleiros ou oficiais) passaram a ter organização própria, associações independentes da corporação de ofício, iniciando um outro tipo de competição e rivalidade com os antigos ateliês, enquanto os aprendizes continuaram a conviver com os mestres nas corporações, porém regulados por fixação de números menores, tendo as Jurandas passado a restringir ainda mais os números dos que compunham as corporações. Temos aqui um texto do século XV em que é retratada a admissão de um companheiro no cargo de mestre costureiro em Paris (Curtis Giordani, 1987: p. 212): Ouvido o pedido de Henrique de Herelle, natural do país da Holanda, e segundo o que João de Serain, Ricardo Jumel, Guilherme Marchant e Guilherme Poignant, jurados de ofício dos costureiros da cidade de Paris, testemunharam e afirmaram, a saber: ser o dito Henrique homem casado, de boa vida e nomeada, instalado em Paris, e ter feito perante eles da maneira acostumada, na presença do procurador do 85 rei, a sua obra-prima: recebemo-lo por mestre e oficial do dito ofício de costura e alfaiate, para praticá-lo e guardar segundo os regulamentos do dito ofício, pagando 10 soldos de Paris ao rei e o direito dos ditos jurados; depois do que dele recebemos o juramento acostumado... 3- A Juranda As Jurandas, também chamadas de conselho de homens prudentes (conseil des prud’hommes), foram formadas com a estruturação formal das corporações de ofício; eram compostas por mestres e eram escolhidos os seus membros entre eles. Possuíam os membros das jurandas os títulos de jurados, ou síndicos, ou guardas, etc.. Em geral, o mandato à função de jurado na direção da corporação correspondia a um ano e era assumido com um juramento de respeito aos estatutos da corporação, defesa de seus interesses, respeito aos credos, etc.. A Juranda possuía poder disciplinar sobre todos os membros da corporação, de supervisão da aprendizagem, de promoção ao cargo de mestre, de verificação dos preços e da qualidade do trabalho de cada ateliê, além de representar a corporação perante as autoridades e sob o aspecto judicial. Poderia ainda promover entre seus membros a confissão de culpa, aplicar sanções morais e de cunho administrativo, além de reportar irregularidades aos juízos senhoriais ou reais ofícios. 4- A Confraria A Confraria, embora tivesse uma característica de associação religiosa com feitio social e até influência política, possuía, desde sua origem, uma inter-relação com a corporação de ofício: é que o trabalho nos ateliês, desde sua formação anterior às cidades (quando ainda interligadas aos feudos), utilizava-se da proteção de “santos padroeiros” adotados, e a atividade religiosa e social era toda concebida em função dos patronos religiosos. Desse modo, à medida que os ofícios se organizaram nas cidades, continuaram a manter essa relação de confrades do mesmo ideal religioso. Assim, embora a confraria não fosse da corporação, era imanente a ela; os membros das corporações de ofício eram agrupados em confrarias, devendo executar os deveres religiosos e sociais, que passavam a ser da própria corporação, como, por exemplo, as festas religiosas, os cerimoniais relativos à devoção, promoção das missas relativas aos eventos de santos patronos, procissões, ajuda a promoções de caridade (órfãos, viúvas, miseráveis), etc. 86 Continuando a citar Ellul (1999: pp. 228-229), a confraria se exprimia pela vontade de união e integração ao meio urbano e pela via natural daquele ambiente: a religião, sendo que tinha a boa vontade das autoridades políticas e religiosas. O elemento econômico era ausente na confraria, pois nela estava contido o elemento de associação humana que inexistia no trabalho cotidiano em si; afinal, o ofício era uma organização econômica da profissão, mas a confraria representava uma personagem montada por irmãos nomeados por seus co-irmãos, não necessariamente da forma hierárquica existente na atividade profissional no ateliê. Mas era possível que essas confrarias tivessem mais ou menos densidade política quando, por exemplo, pertencessem a ofícios mais pobres, como tecelões, e pudessem se antagonizar com aquelas em que participassem os burgueses dirigentes da administração municipal; nesse contexto, as confrarias vieram a representar setores distintos na comunidade e, no final do século XIII, algumas delas passaram a ser observadas com reserva pelos poderes locais. Demurger (2003: pp. 108-111) lembra que as confrarias representaram a principal forma associativa do final da Idade Média e destaca alguns nomes de confraria: fraternidade, companhia, caridade (na Normandia), escola (em Veneza). Distingue três grandes tipos: as confrarias penitenciais, de cunho restrito aos penitentes ou que adotavam a autoflagelação (mais presentes na Europa meridional); as confrarias de caridade, que atuavam junto às ações urbanas sociais; e as mais numerosas, as confrarias de devoção, com santo protetor, ligadas às atividades de homenagens religiosas, que atuavam também junto às exéquias, missas e aniversários e possuíam relação direta com as corporações profissionais, com quem também compartilhavam as características de auxílio-mútuo entre os membros corporativos. As confrarias possuíam formas de auto-sustento e orçamento próprio a partir de cotizações anuais e semanais de seus membros, a par de arrecadar fundos nas festas promovidas aos santos. Também havia lugares (Paris, por exemplo) em que, para cada venda de bem produzido pela corporação, uma pequena parcela de seu valor era encaminhada para a confraria correspondente; as confrarias também recebiam multas por descumprimento de regras, como faltar na procissão do santo padroeiro, sair da missa antes do fim, recusa de velar o corpo de um companheiro, etc. 87 5 - Tipos de ofícios Os tipos de ofícios correspondiam a uma característica proveniente da destinação pretendida: havia a predominância daqueles mais voltados ao interesse comercial, e neles estavam os padeiros, açougueiros, comerciantes de vinho, merceeiros, e aqueles voltados ao interesse industrial, como os ferreiros, carpinteiros, seleiros, etc. Como exemplos de tipos de ofícios artesanais, vamos escolher duas profissões descritas por Brizon (1921: pp.104-131): os que trabalhavam basicamente com as pedras e aqueles que trabalhavam com o metal. Em função da construção das catedrais, símbolos do período medieval, o trabalho dos construtores se apresentava como muito importante. Os pedreiros (francmaçons) tinham uma característica interessante: o anonimato – isso porque atuavam de forma coletiva nessas construções, e faziam segredo da transmissão em segredo das técnicas do uso das pedras e das madeiras para tais construções. Atuavam em conjunto entre várias regiões e eram chamados por bispos, príncipes ou reis para seu mister; instalavam-se em vilas provisórias construídas por eles, geralmente ao pé da obra da catedral a ser construída, e ali permaneciam por longo período de tempo, só se mudando quando a parte da catedral encomendada estava erguida, ou faltasse dinheiro para continuar a obra, ou então quando havia necessidade de um grupo iniciar outra obra em outro local. Tais trabalhos, entretanto, não eram completos, mas por partes: assim, geralmente um grupo iniciava a obra pelas muradas e bases; se houvesse falta de dinheiro, esse grupo emigrava; depois de um tempo (até dez ou vinte anos depois), um outro grupo iniciava a construção das torres, e assim por diante. Houve pouquíssimos casos de um mesmo grupo iniciar e terminar uma obra completa. Outro tipo de trabalho de importância no período medieval era aquele relativo aos metais. Geralmente esses artesãos trabalhavam com o bronze e o estanho, como placas de tumbas, pés de candelabros, vasos de metais; nesta especialidade, o artesanato de sinos passou a significar a organização de uma pequena indústria manufatureira, incrementada pela construção de muitas igrejas a partir do século XIII. Assim, por exemplo, em Paris, surgiu um forno para refundição dos sinos, em que havia cerca de cento e vinte trabalhadores, que recebiam salários e refeição ao chegar, para almoçar e após o trabalho do dia. Esse tipo de artesanato de metais também foi sendo organizado em 88 corporações para a construção de armas e armaduras para combates e torneios, possuindo muitos detalhamentos e especificidades, que correspondiam a vestes metálicas de cavaleiros e de cavalos, além de alegorias, estribos, proteção de selas, etc.. Os artesãos de canhões (corporação de artilheiros) só se organizam no século XV. Merece destaque aqui um tipo de trabalho que logo significou a presença do comerciante burguês à frente do empreendimento, predomínio esse conseguido contra o senhorio feudal por força dos lugares rurais em que se situavam as minas; ali eram extraídos os minérios e iniciada a preparação dos metais. Eram locais geralmente montanhosos, com tecnologias e trabalhos específicos, e estrutura própria. À medida que foi sendo necessário mais ferro simples ou fundido para peças de moinho, máquinas (aumento de armamentos, ampliação da construção de navios, além dos sinos das igrejas, etc.), os comerciantes passaram a organizar o trabalho nas minas de forma mais racional e produtiva. Eram organizados grupos de trabalhadores que cavavam poços profundos e daí formavam galerias horizontais, com a utilização de ferramentas como esquadria, fio-deprumo e bússola; eram utilizados operários com picaretas e carregadores que se alternavam. O minério retirado era triturado por máquinas e, em seguida, lavado e depois refinado em diversos tipos de fundições. Tudo era feito de forma a não perder tempo. As regulamentações do serviço expedidas pelos responsáveis pela mina descrevem o tipo de exigências aos trabalhadores, conforme partes de textos de regulamentos de minas nas regiões de Lyon e Beaujolais (cf. Heers, 1965: p. 105): Que todos os operários de martelo serão obrigados a fazer inteiramente o seu turno todos os dias, tal como ultimamente se acostumaram a fazer. E serão todos reunidos juntos um pouco antes da hora do dito turno diante das entradas das montanhas, onde pegarão nas suas velas, e entrarão de uma só vez por ordem do interior das ditas montanhas. E se houver algum que lá não esteja a essa hora com eles e venha depois, não terá qualquer vela e não entrará na dita montanha no dito dia; perderá assim o seu turno, que lhe será abatido no salário.” “Quando os ditos operários estiverem dentro da dita montanha, terão de esperar o outro turno que deve vir depois deles, e não se mexerão dos seus postos até o outro turno ter vindo e entrado, na dita montanha, sob pena de perderem o dito turno.” “Que cada um dos ditos operários esteja sempre munido para o seu labor de um martelo e de uma dúzia de segures93 que lhe serão entregues na forja de tal maneira que, por falta dos ditos martelo e segures, não haja motivo para cessar o trabalho nem perder tempo.” 93 Segures correspondem a machadinhas próprias para esse tipo de serviço. 89 III – Os regramentos das corporações As corporações de ofício tinham, cada uma ao seu modo, estatutos regulamentando o trabalho e a produção de forma detalhada ou nem tanto; tais regulamentos possuíam origem no costume e passaram a ser redigidos principalmente em meados do século XIII. Essas regulamentações possuíam especificidades e precisão, sendo certo que tais regulamentos eram essenciais para a apreciação judicial pelo juizado senhorial ou real em caso de conflito. Temos aqui uma tradução de parte do texto de estatuto dos ourives de Paris (1261), extraído do Livre des Métiers, d’Éttienne Boileau94, apud Fourquin (1969: pp. 289290): A- Dos Ourives. 1. É para os ourives de Paris que querem fazer parte do conjunto de nosso trabalho: 2. Nós ourives só podemos trabalhar ouro em Paris ou em seus arredores (...); 3. Nós ourives só podemos trabalhar em Paris com a prata que seja boa como a moeda de prata (esterlins); 4. Nós ourives só podemos ter um aprendiz estrangeiro (...); quando for de linhagem estrangeira por parte de mãe, será possível tê-los sem limites...; 5. Nós ourives não podemos ter aprendiz particular ou estrangeiro com menos de dez anos (...); 6. Nós ourives não podemos abrir de noite, a não ser para trabalho do rei, da rainha, de seus filhos, seus irmãos ou do bispo; ...95 Extraído da História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman (1986: p. 56), vale também transcrever trecho do estatuto da corporação de ofício de couros brancos, do século XIV, em Londres: [1] ... se qualquer pessoa do dito ofício sofrer de pobreza pela idade, ou porque não possa trabalhar... terá toda semana 7 dinheiros para seu sustento, se for homem de boa reputação. [2] E nenhum estrangeiro trabalhará no dito ofício ... se não for aprendiz, ou homem admitido à cidadania de dito lugar. 94 O Livre des Métiers, de Éttienne Boileau, foi editado pela primeira vez em meados do século XIII, por ordem de S. Luís (rei Luís IX): infelizmente não se conseguiu uma cópia integral do texto para este trabalho. 95 Transcrevemos aqui o texto traduzido acima e escrito em francês antigo: “A Des Orfreves: 1. Il est a Paris Orfrevres qui veut et qui faire le set, pour que il oevre ad us et as coustumes du mestier, qui text sunt: 2. Nus Orfevres ne puet ouvrer d’or a Paris, qu’il ne soit a la touche de Paris ou mieudres: laquele touche passe touz les ors de quoi en oevre en nulle terre. 3. Nus Orfevres ne puet ouvrer a Paris d’argent, que il ne soit ausi bons come esterlins ou mieudres. 4. Nus Orfevres ne puet avoir que un aprentis estrange; mès de son lignage ou du lignage de sa fame, soit de loing, soit de près, en puet il avoir tant come il li plaist. 5. Nus Orfevres ne puet avoir aprentis privez ne estrange, a mains de 10 ans, se li aprentis n’est tex qu’il sache gaingnier 100 s. l’an, et son despens de boivre et de mangier. 6. Nus Orfevres ne puet ouvrer de nuit, se ce n’est a l’euvre lou Roy, la Roine, leur anfans, leus freres, et l’evesque de Paris». 90 [3] E ninguém tomará o aprendiz de outrem para seu trabalho durante o aprendizado, a menos que seja com a permissão de seu mestre. E se alguém do dito ofício tiver em sua casa trabalho que não possa completar... os demais do mesmo ofício o ajudarão para que o dito trabalho não se perca. [4] E se qualquer aprendiz se comportar impropriamente para com seu mestre, e agir de forma rebelde para com ele, ninguém do dito ofício lhe dará trabalho, até que tenha feito as reparações perante o alcaide e os intendentes. [5] Também a boa gente do mesmo ofício uma vez por ano escolherá dois homens para serem supervisores do trabalho e de todas as outras coisas relacionadas com as transações daquele ano, pessoas que serão apresentadas ao alcaide e intendentes... prestando perante eles o juramento de indagar e pesquisar, e apresentar lealmente ao dito alcaide e intendentes os erros que encontrarem no dito comércio, sem poupar ninguém, por amizade ou ódio. Todas as peles falsas e mal trabalhadas serão denunciadas. [6] Ninguém que não tenha sido aprendiz e não tenha concluído seu termos de aprendizado do dito ofício poderá exercer o mesmo. Há ainda um trecho da Historia General del Trabalho, dirigida por LouisHenri Parias (1965: pp. 164-165) em que se observa o regulamento dos paneleiros96 de estanho de Paris (com base também no Livre des Métiers); ali constava a liberdade para ser paneleiro de estanho, desde que fizesse uma obra reconhecida de alto nível e cumprisse as obrigações necessárias. Também consta ali a proibição ao trabalho noturno, assim como a proibição de trabalho nos dias festivos, a não ser que houvesse feira naquele dia, sob pena de multa a ser paga ao tesouro real (havia no estatuto um comentário sobre o malefício do trabalho sob a claridade noturna). No texto também havia regulamento sobre a obrigação de obra de boa qualidade sob pena de multa, assim como proibição da venda de produtos daquele artesanato de panelas de estanho por estranhos, também com multa a ser paga ao tesouro real; também determinava que dois mestres jurados da corporação, como membros da burguesia, deveriam ser indicados para atuarem na administração da cidade de Paris. Vemos, nestes exemplos, a preocupação de limitação de espaço geográfico e da atividade profissional, próprios para a especificação do monopólio da atividade profissional; da mesma forma, tendo em conta o monopólio, fica evidente a preocupação da exclusividade da região demarcada para os habitantes do lugar, o que denota também preocupação com a manutenção restrita dos conhecimentos exigidos para a atividade profissional; também se nota uma restrição, ainda que incipiente, com a utilização de crianças para o trabalho corporativo, além do aspecto da jornada, a par da preocupação 96 O termo paneleiro é de português no Brasil, pois em Portugal tem outro sentido; em espanhol é olleiro; em francês, poêlier. 91 assistencialista para com os idosos, de cunho misericordioso. Tais preocupações revelam a sociedade daquele momento histórico europeu, profundamente influenciada pelo sentimento religioso e de hierarquia social, embora já com a presença da burguesia na administração das cidades. 1- Regulamentos de trabalho Constava nos regulamentos de atividades dos que trabalhavam nos ofícios os termos da fixação da hora de abertura do ateliê, o número das horas de trabalho (que geralmente correspondiam a dez horas diárias), os salários dos companheiros (jornaleiros) e dos aprendizes, os dias de feriado em razão das festas religiosas e aquelas da confraria; havia em torno de cento e cinqüenta dias por ano de folga de trabalho; também nos regulamentos havia proibição de manifestações hostis dos que trabalhavam para a corporação. Transcrevemos aqui parte de um regulamento para companheiros curtidores (moços surradores) de Paris, conforme Jacques Heers (1965: p. 96): Que nenhum moço que ganhe o seu pão no dito ofício faça coisa alguma ao sábado, em honra de Nossa Senhora, depois de ter tocado na Nossa Senhora de Paris a terceira badalada das vésperas. Que ditos moços, em todas as vigílias das outras festas de Nossa Senhora, dos apóstolos, festas anuais e quaisquer outras festas em que o vulgo da cidade folga, possam deixar o seu labor à terceira badalada das vésperas como acaba de ser dito. Que eles não partam para o trabalho desde a Páscoa até ao dia de S. Remígio senão ao sol-nascente e regressem ao sol-poente; e do dia de S. Remígio até à Páscoa, a uma tal hora, quer de manhã quer à tarde, que se possa distinguir um tornes de um parisis (trata-se de duas moedas que apenas diferiam pelas suas gravuras). 2- Regulamentos da produção: Os regulamentos de produção estabeleciam a qualidade das matérias-primas utilizadas, além da natureza e o nome dos utensílios empregados em cada ateliê, com a demarcação do trabalho executado em cada setor produtivo; o mestre não poderia ficar criando inovações nos produtos, devendo sempre estar disponível o produto da melhor qualidade possível. Havia um rigoroso controle de qualidade e penalidades severas para quem reincidisse na apresentação de mercadoria defeituosa, como, por exemplo, o confisco da mercadoria, coação física e até expulsão da corporação. O preço era estabelecido como 92 justo e fixado; o controle sobre a observância de todas as regras estabelecidas era efetuado pelo representante da Juranda e pelo público comprador, que poderia apresentar queixa às autoridades. IV – O contexto das corporações de ofício Ainda nos utilizando de Ellul (1999: pp. 229-230), vemos que o sistema corporativo possuía muitas vantagens: uma, a manutenção de uma boa qualidade dos produtos colocados à venda; duas, a presença de uma segurança de que era praticamente inexistente a fraude ou maquiagem dos produtos oferecidos; três, a de que os preços oferecidos, assim como os salários pagos, não possuíam oscilação acentuada; quarta, é que praticamente não ocorria uma luta de classes diante da parcimônia de benefícios, do sistema praticamente igualitário de tratamento e da comunhão da vida no dia-a-dia entre o mestre e os trabalhadores. Entretanto, o sistema corporativo também possuía inconvenientes, como a estagnação econômica, a falta de estímulo ao progresso tecnológico e a existência de política de monopólios que, por sua vez, traziam duas conseqüências principais: os preços sofriam o resultado do monopólio existente e, embora muitas vezes fossem considerados elevados, assim continuavam a ser mantidos; e a especialização do trabalho era restrita e não criativa; por exemplo, se uma corporação produzia um tipo de produto, qualquer outro tipo de produto diferente, mas próximo daquele, era excluído, pela concepção de que outro ateliê é que deveria produzir essa forma diferente. A concepção do trabalho e da produção das corporações de ofício decorria do contexto histórico, cultural e econômico predominante na maioria das regiões, pelo menos até meados do século XIII e o início do século XIV. Nesse período, portanto, a economia não era o dado essencial de preocupação da sociedade medieval; o pensamento e as atitudes tinham como princípio o mínimo necessário para a vida social, e não o aumento do nível de vida; o exercício de uma profissão não existia para ganhar dinheiro, mas para atender uma vocação dada por Deus; o trabalho era uma responsabilidade cristã, e não necessariamente o ganha-pão. Na vida social o auxílio mútuo dominava a conduta, 93 excluindo-se a concorrência comercial e buscando-se a união entre os mestres (também já chamados de patrões) e os trabalhadores. Também cabe lembrar novamente que as corporações de ofício tinham uma característica geral de monopólio, em defesa de seus interesses e atividades; afinal, a concorrência era algo inaceitável que deveria ser combatida. Nesse aspecto, o impedimento de estrangeiros ou forasteiros de assumirem postos de trabalho era algo usual e até uma das formas de proteção ao aperfeiçoamento das técnicas alcançadas nas localidades, pois não havia legislação de proteção à autoria ou à tecnologia obtida. Essa situação, do artífice artesanal, imagem clássica do homem da cidade que produzia pouco, mas dono do ofício e oficina, da matéria prima e de seus produtos, também responsável pela manutenção de seus oficiais e aprendizes, vendendo diretamente para sua freguesia habitual, era numerosa e até influente em termos de poder econômico urbano. Entretanto, alguns burgueses, moradores das cidades, mercadores com atividade comercial ativa (organizados em guildas, por exemplo), logo perceberam a importância da fabricação de algumas mercadorias, principalmente ligadas ao trabalho têxtil que, acima de tudo, proporcionavam uma renda maior e características que destoavam daquela estrutura clássica do trabalho artesanal. Tal situação começou a existir e a modificar as relações anteriores principalmente na região de Flandres e também em algumas cidades italianas, notadamente na Toscana. Essa situação é retratada por Heers (1965: pp. 86-88), mostrando várias mudanças no setor do trabalho ocorridas na produção artesanal, notadamente na produção de tecidos, em função de mercadorias lucrativas: a) Os trabalhos realizados no setor têxtil possuíam uma grande diversidade de atividades artesanais, ocasionando uma divisão muito grande de atribuições e responsabilidades, cada uma diminuta em si, mas com ampla alternatividade; eram impossíveis de serem atendidos concomitantemente por poucos artesãos, seus oficiais e aprendizes, porém mais próprios a serem coordenados por uma chefia pragmática, com condições de se entrosar com outros interesses e profissões afins. b) Havia necessidade de acumulação concomitante de muitos valores (capital) para a compra, muitas vezes longínqua, de matérias primas, assim como a venda de tecidos também podia ser feita em feiras de outras cidades. Assim, eram os mercadores hábeis para 94 adquirirem lãs de boa qualidade e, com esta matéria prima, passarem a fabricar inicialmente panos de lã e, depois, de seda. Da mesma forma, além da matéria prima com qualidade, a compra de corantes vindos de longa distância, muito importantes para artigos de luxo, eram matérias de acesso muito mais fácil aos comerciantes de panos, o que facilitava o seu acesso à fabricação dos tecidos. c) A força política dos mercadores sobre a administração da cidade aumentou, notadamente naquelas cidades que foram se tornando centros de produção de tecidos. Assim, passaram esses mercadores a assumir os postos de mestres nas atividades mais lucrativas e, por terem também influência política, passaram a ter domínio sobre o trabalho, quer promovendo concorrência de salários baixos para os contratados, quer podendo controlar ainda mais o cotidiano do trabalho e sua exploração, com a anuência dos poderes locais do qual faziam parte (como o exemplo do uso do relógio que veremos mais à frente). 1- Aspectos do cotidiano corporativo: a produção Apresentamos aqui, a título de exemplo, a situação relativa à produção de tecidos no período que se inicia no século XIII, usando como base texto de Jacques Heers (1965: pp. 74-84). Esse autor destaca que o tecido de lã e depois, o tecido da seda, são representantes da atividade industrial urbana na Idade Média ocidental; e tal indústria se iniciou na região de Flandres (Países Baixos e Norte da França), ampliando-se mais tarde para a região da Itália (a seda). A característica desse trabalho é a dispersão das atividades, a par da especialização dos seus trabalhadores. O trabalho começava com a chegada da lã na forma bruta (geralmente da Inglaterra), terminando com a comercialização de tecidos tingidos, com ornamentos e marcados com selo de chumbo das autoridades; realizavam-se várias operações e a respectiva divisão de trabalho típicas do período, marcadas pela rigorosa fiscalização do trabalho e do produto. Toda a operação se iniciava pela escolha das lãs de boa qualidade, tendo em vista a durabilidade, pelo que se destacava a escolha da lã tosquiada de animais vivos. Geralmente mulheres faziam o trabalho de desembaraçar e separar as fibras à mão, retirando-se os nós e as pontas, separando as lãs por qualidade; tais lãs passavam para as mãos dos batedores que as estendiam em bancadas de vime trançado ou outra madeira e batiam nelas com varas; as impurezas (pedrinhas, pedaços de fibras enlaçadas) caíam para 95 fora das peneiras; o material batido (peneirado), flocos de lã, era enviado para penteadeiras (geralmente mulheres) que usavam avental de couro, se utilizavam de pente de ferro que era aquecido até ficar como em brasa e, desse modo, despregavam e esticavam as fibras de lã; do resultado dessa atividade ainda eram retiradas pela trabalhadora as fibras quebradas, nós e poeiras coladas no material que, pronto, passava a ser considerado de boa qualidade. Foi inventado, em meados do século XIII, um processo mecânico de penteadura para tecidos de menor qualidade denominada cardadura (cardas: pequenos dentes de ferro), que formava tecidos com fibras mais curtas, provocada pela quebradura dos fios resultantes desse processo; antes e depois do processo de penteação havia a lavagem da lã, com vários banhos de água quente e fria sucessivamente, além de muitas vezes utilizarem o processo de untarem com gordura de boa qualidade as lãs para ficarem menos secas e mais leves. Após esse processo, as lãs eram enviadas às fiandeiras para a confecção dos fios mais longos e contínuos por meio de fusos de madeira torneada e rocas de madeira flexível; extraíam-se os fios retorcidos (menos apertado e liso) ou mais felpudos (veloso). Na mesma época da invenção da cardadura também foi inventada a roda de fiar (uso de pedal para acionar a roda e deixar as mãos livres para torcer os fios), que demorou muito tempo para ser aceita pelas autoridades municipais. O tear era inicialmente vertical, mas depois se tornou horizontal. Era um cavalete de madeira (para tecidos largos eram utilizadas melhores lãs); o trabalhador sentava-se em um banco; Heers explica (1965: p.80): ... o tecelão devia manobrar um pedal que, através de um mecanismo de cordas e roldanas, levantava um liço, delgada vareta passada sob os fios pares do urdume97; lançava logo a seguir por baixo destes fios a lançadeira, pequeno receptáculo de madeira contendo uma bobina carregada com o fio de trama. Levantava em seguida o outro liço, o dos fios ímpares, e lançava de novo a lançadeira. Para os melhores panos, só se intervertiam os liços depois de se ter lançado várias lançadeiras e, portanto, introduzido de cada vez vários fios de trama. Nos teares mais largos trabalhavam dois obreiros, um para introduzir o fio de trama, o outro para o receber e o estender. Enfim, pentes, ou ros no Norte, conservavam constante o afastamento dos fios do urdume para melhor se passar a lançadeira e apertar cuidadosamente, contra a fazenda já tecida, o fio de trama que acaba de ser colocado. 97 “conjunto de fios rigorosamente paralelos, (...) geralmente muito apertados e muito sólidos, do mesmo cumprimento que a futura peça de pano. A preparação deste urdume chamava-se urdidura; era confiada quer a algum familiar ou aprendiz instalado no fundo da oficina, quer a obreiras especializadas, as urdideiras.”(Heers, 1965: p. 79). 96 O resultado desse trabalho era marcado indicando o tipo, a origem e a qualidade do produto e era verificado por fiscais; tal tecido ainda era limpo e lavado, passando por uma última rodada de batidas de madeiras (varas), além de outra untada (geralmente de manteiga). No século XIII ainda, foi criado um moinho de água com martelos de madeira para bater o pano, processo esse que, por não ser manual, demorou muito tempo para ser aceito. Esses tecidos eram vendidos na forma crua ou encaminhados aos tintureiros. Todo esse quadro de especialização e divisão detalhada do trabalho com a lã foi utilizado muitos anos depois nas cidades que passaram a trabalhar a seda, principalmente na região italiana (Luca, Florença, etc.), com o acréscimo de invenções mecânicas posteriores (ainda nos utilizamos de Heers, 1965: p. 84). A matéria principal era o casulo da seda, que era aquecido na água à base de quatro ou cinco concomitantemente para cada trabalhadora, que tinha por escopo desenrolar os fios e torná-los um fio mais forte; tal fio era torcido por moinho, geralmente movido hidraulicamente, de aspecto complexo: no século XIV essas máquinas tinham em torno de trezentos fusos; tais fios eram cozidos e desembaraçados da goma original, colocados em jarras de barro por várias horas e fervidos com água com ácidos; depois eram removidos para o moinho que fazia a urdidura, ocorrendo operações mais complexas do que as de tecido de lã. Para isso foram inventadas máquinas (teares) que eram guardadas como segredos, tal a variedade e qualidade do que produziam com a seda (e que tinham como modelo a forma oriental de tratamento e acabamento desses tecidos). Os fios de seda eram tingidos antes do processo de tecelagem, e os corantes eram de qualidade superior e mais caros (garança, pastel, cremex, o pau-brasil, etc.). 2- Aspectos das condições de trabalho O trabalho das corporações de ofício do tipo inicial nas cidades era, como já visto, entremeado de auxílio-mútuo, com pouco aprendizes e companheiros (oficiais ou jornaleiros) em cada ateliê, com muitos feriados santos e atividades da fraternidade cristã (as confrarias), com convivência domiciliar e pedagógica entre mestres, companheiros e aprendizes, com vida modesta e sem competição, com trabalho geralmente à luz do dia, em 97 torno de dez horas por dia, em oficinas assemelhadas a quartos de casas simples, tudo de forma tranqüila e comunitária. À medida que o número de pessoas e a complexidade econômica e social se avolumou nas cidades, a vida no ateliê foi afetada e, portanto, nas corporações também, pois a maior importância dos produtos vendidos e daqueles que os vendiam redundou em maior importância na hierarquia social e maior integração desses mestres com os setores da burguesia que já representavam a direção política das cidades. Daí a maior competição, a adoção dos privilégios na escolha dos mestres (descendência familiar), o início de um processo de exclusão na relação social das cidades, o início dos confrontos de interesses dentro das corporações de ofício, com a saída de companheiros (oficiais ou jornaleiros) e a criação de novas associações com esse pessoal retirado da ascensão social interna da corporação. A maior importância dos mestres os levou a conviver com as direções dos estamentos comerciais e as direções municipais, passando eles a atuar conjuntamente, em função de seus interesses. O exemplo do setor têxtil, embora apresentado em algumas regiões, mostra a nova dinâmica social e o início da utilização do trabalho sob outra condição, o que mais tarde vai sendo adotado com maior freqüência. Temos nesse setor têxtil um dos maiores problemas nas condições do trabalho obreiro que vale ser observado como um novo paradigma de como era tratado quem trabalhava, paradigma esse que encontramos até os dias de hoje. Para o trabalho realizado no setor têxtil, diante do grande número de pessoas requisitadas para uma atividade tão dividida em atribuições e com tantos trabalhos a serem executados, foram recrutados trabalhadores vindos do campo e, portanto, estranhos à cidade; geralmente vinham trabalhar sem a família e ficavam, pois, longe de sua vida familiar rural e, portanto, sem o apoio comunitário que antes possuíam. Passaram esses obreiros a se constituir no que seria uma plebe urbana, distinta do povo da cidade; não possuíam direitos locais, não participavam de associações religiosas ou confrarias, não tinham o convívio urbano corriqueiro dos que ali habitavam normalmente e tampouco participavam de festejos ou competições. Sequer tinham o sobrenome que era dado àqueles que tinham uma profissão, mas eram conhecidos apenas pelo nome de batismo e por sua procedência – a localidade de onde vinham. 98 Os locais de moradia desses trabalhadores não eram no centro ou dentro da cidade, lugar em que moravam os mestres, os comerciantes, os artesãos, os companheiros, os clérigos, etc.; eles moravam na periferia dessas cidades, além e em volta dos muros de limite e proteção urbana. Heers (1965: pp. 93-95) destaca que as mulheres que fiavam ou escolhiam a lã não possuíam qualquer material próprio, recebendo por empréstimos dos comerciantes que as contratavam as tesouras, pentes e demais utensílios; algumas poucas trabalhavam em oficinas dos proprietários, mas, a maioria, em suas próprias casas. Os mestres que atuavam nesse processo eram proprietários da oficina e possuíam de um a três teares; por vezes alguns contratavam uns poucos companheiros para o serviço de preparar o urdume e lidar com as urdideiras, e com eles ou sem os companheiros, atuavam no processo até a limpeza, o batimento e a fiação do tecido: mantinham-se como mestres, embora inseridos no processo de produção têxtil dirigido pelo comerciante, que lhes fornecia lotes de fios e pentes especiais. Eram os comerciantes que dominavam o processo para obter o material para venda, os mestres não podiam nesse processo tingir as fazendas e promover a venda dos tecidos; suas funções de mestre eram limitadas à contratação de companheiros e à posse de um certo número de teares em suas oficinas. Os salários dos contratados, mestres ou não, eram controlados pelos comerciantes, que também influenciavam na direção administrativa da cidade. Todos, incluindo-se os mestres tecelões, eram pagos por tarefa cumprida e os estatutos estipulavam o valor de cada tipo de trabalho assim como as multas por defeitos na fabricação; o setor têxtil era geralmente muito mal remunerado. Também a jornada de trabalho era controlada pelos comerciantes, que se aproveitavam dos estatutos das corporações ou da fiscalização da administração municipal; entretanto, todos na comunidade urbana, inclusive os comerciantes e suas associações, veneravam seus santos, razão por que o trabalho não era realizado em dias santos, santos de veneração local ou da cristandade como um todo (como o Natal, Semana da Paixão, etc.), além de ocorrer uma situação de jornada especial durante toda a quaresma. Havia uma preocupação com relação à produção e, em função disso, a jornada era observada como fator de regulação produtiva: assim, quando pouca a venda, para que se evitasse produção excedente, havia redução do horário de trabalho e, em caso 99 contrário, necessária uma produção maior, maior jornada, sempre com a preocupação para evitar-se o trabalho à noite, em razão do risco de incêndio causado pelas velas acesas. O trabalho no setor de tecido de lã iniciava-se pela manhã com o toque do sino, na torre própria ou da igreja local; ela também tocava ao meio-dia e na hora do reinício do trabalho à tarde; o final do trabalho coincidia com o toque do sino relativo às missas da nona e ao toque de véspera. Aqui vale a pena tratar do relógio e o que ele simbolizou a partir desse momento na Idade Média. 3- O relógio e sua relação com o trabalho O relógio mecânico surgiu na Europa ocidental durante a Idade Média, no século XIV (inventado por Giovanni di Dondi)98 e representa o grande cume tecnológico da revolução industrial medieval. Até ali a Europa ocidental possuía um duplo sistema de horas: as horas temporárias e as horas canônicas, em número de 7. As horas canônicas regulavam a vida monástica. Num convento, o sino dos ofícios (as horas) tocava 7 vezes em 24 horas. Em quase todos os países da Europa o dia estava dividido em 2 vezes 12 horas. (Gimpel, 2001: p. 170). Na região italiana, principalmente próximo à Pádua, havia o costume de se procurar saber as vinte e quatro horas do dia e esse invento possibilitou que logo o relógio mecânico estivesse ali em 1344, e daí por diante, nas principais torres das principais cidades européias. Em Paris, o relógio colocado por Carlos V unificou as horas reais e as das igrejas em 1370, por decreto. O relógio mecânico demarcou o tempo como finito, de uso do homem, delimitador da vida e da morte, e fez com que o tempo passasse a significar dinheiro, pois quanto mais se produzia mais se ganhava. S. Bernardo, transmitindo as novas idéias, disse: “Não há nada mais precioso do que o tempo”99 (cf. Le Goff, 1999: p. 77). Esse uso do tempo afetou o trabalho, pois também motivou sua racionalização e utilização para os fins procurados: mais ganhos. Essa racionalização proporcionou nova forma de pensar com bases objetivas, o que veio a redundar no futuro cartesianismo. 98 No mesmo período em que, na China, o relógio parecido com o europeu (ali criado no século XI e guardado com todos os segredos possíveis) foi perdido em razão de seus zeladores (a corte da dinastia Chin) terem sido expulsos de Pequim (século XIII) e não haver mais quem consertasse ou reconstruísse tal relógio. 99 Rien n’est plus précieux que les temps. 100 Esse relógio mecânico passou a ser parte da paisagem urbana quando colocado nas torres ligadas aos centros de comércio (como em Bruges, hoje pertencente à Bélgica, por exemplo), construídas pelas associações comerciais e com apoio dos mestres principais das cidades; ou então, foram sendo colocados nas torres das igrejas, com apoio dos clérigos que se integravam politicamente aos poderes locais. Tais relógios representavam o conhecimento do tempo e sua importância para a cidade: muito menos para saber-se a hora correta da missa, marcada pelos sinos, mas muito mais para saber-se o horário de entrada e saída do trabalho. Afinal, com o relógio na praça principal da cidade, todos sabiam quem estava atrasado para chegar ao trabalho e quem saíra antes da hora do trabalho – a comunidade vigiando a vida da ida e volta dos que tinham algum horário. Isso resultou em incômodos e até revoltas: por fim, o uso acumulado do tempo do trabalho significa uma alteração na forma da exploração do trabalho. O saber da hora de quem trabalhava passou a ser um uso mantido até hoje100. V - Os conflitos relativos ao trabalho Lefranc (1957: pp. 130-131) destaca serem os primeiros conflitos entre corporações movidos pelo ciúme. As relações passaram a ter um estreito espírito de particularismo: dos artesãos de uma cidade para com os outros de outras regiões, de mestres de um dos ateliês para com os dos outros ateliês, da forma e da jornada do trabalho entre eles, ocorrendo acusações de estarem sendo afetados os domínios de suas atribuições. Como exemplo, temos questões suscitadas perante a justiça municipal entre alfaiate e vendedor de roupas usadas: pode uma roupa usada ser vendida com uma roupa nova integrando o conjunto? Também tais rivalidades ocorriam no setor de alimentação, na área de bijuteria, etc. As rusgas eram tantas que o rei Felipe, o Belo, no início do século XIV, chegou a suprimir as corporações sob sua jurisdição, voltando atrás dois anos depois e passando a interferir mais proximamente nas relações corporativas, o que trouxe para próximo do poder público a fiscalização sobre as instituições artesanais. 100 O poeta Noel Rosa, no século XX, veio nos dizer: “Quando o apito da fábrica de tecidos vem ferir os meus ouvidos, eu me lembro de você...” 101 Mas os conflitos que promoveram grandes alterações e repercussões históricas não foram aqueles movidos pelo ciúme, foram aqueles irrompidos das questões sociais, por força dos problemas surgidos nos confrontos de interesses mais complexos oriundos das formas econômicas de apropriação da força de trabalho e da forma da utilização do trabalho humano. Ellul (1999: pp. 316-317) destaca que as crises econômicas são acompanhadas de crises sociais e, em certos casos, a crise social é que provoca a crise econômica, como o que ocorreu na região de Flandres; ou então, ao inverso, a crise econômica é que provoca a crise social, como o que ocorreu na chamada sublevação de Jacquerie; ou ainda, ocorrem crises sociais e econômicas sem se conseguir extrair qual a causa primeira. Resta evidente, no entanto, que as crises econômicas conduziram a um aprofundamento do contraste entre ricos e pobres, com os ricos cada vez mais ricos diante do início de um capitalismo comercial, e com os pobres em situação pior do que aquela vivida durante o período medieval até o século XIV. Em função do aumento desse fosso social, iniciam-se conflitos com a forma de movimentos revolucionários, e ocorrem por grande parte da Europa ocidental, desde pequenas arruaças, até verdadeiras revoluções locais. Dessa maneira, houve revoltas importantes que envolveram questões ligadas a trabalhadores ou a falta de trabalho em Florença, em Paris, em Gand, no sudeste da Inglaterra e Londres, Países Baixos e Flandres, Espanha, etc.. Essa multiplicidade de insatisfações manifestadas em anos sucessivos, por volta dos meados do século XIV, relaciona-se com a nova repartição das riquezas, a Guerra dos Cem Anos, crises financeiras e políticas desde o âmbito municipal ao centro do poder real, revoltas religiosas, tudo acompanhado de uma grande miséria, quer no campo, quer nas cidades. Houve, do lado senhorial, várias revoltas também, tendo em conta a centralização do poder e sua absolutização, com o correspondente declínio do poderio do senhor feudal, como a reação feudal contra Felipe, o Belo, em 1314-1319, ou a tentativa de retomada dos privilégios dos grandes senhores feudais no início do reino de Luís XI. Interessa-nos aqui, porém, destacar os movimentos obreiros, pelo que deve ser observado o século XIII e a região de Flandres em primeiro lugar. Como já visto exemplificadamente acima, quando descrevemos a situação do trabalho nas atividades 102 têxteis, a direção da indústria da tecelagem estruturou-se acima dos interesses corporativos. Tratava-se de uma indústria de cunho exportador em que os ganhos das vendas para o exterior davam os ditames para toda a produção, sua renda e seus pagamentos pelos trabalhos executados; e esses trabalhos eram pagos pelos negociantes têxteis de forma unilateral, geralmente in natura, utilizando-se a concorrência de um tipo de exército de mão de obra esfaimado, vindo do campo, sem ao menos o amparo que as corporações de ofício possuíam pelas confrarias e a auto-ajuda. Essas condições de trabalho na produção de tecidos levaram às revoltas surgidas já no início do século XIV, revoltas essas contra o domínio econômico da burguesia que também manobrava o poder municipal, asfixiando as alternativas de atendimento aos reclamos em relação aos problemas existentes. Tal aristocracia burguesa tinha apoio da realeza francesa, mas não do Conde de Flandres, por força de questões políticas de autonomia regional. Ocorreram assim sublevações de trabalhadores contra a direção da burguesia que dominava as cidades da região, bem como contra a armada real francesa, tendo havido massacres, com fugas e expatriações de trabalhadores daquela região. No entorno dessa crise estava a instabilidade das moedas, o controle político da região pela realeza francesa, a distorção dos preços e salários, a grande exploração da mão de obra, o peso dos impostos, a fome, epidemias, a falta de sensibilidade política dos representantes reais franceses, aspectos de extremismo religioso com repercussão ideológica, surgimento de lideranças carismáticas, etc. (Ellul, 1999: pp. 318-319). A situação de revolta na região de Flandres também ocorria assemelhadamente em diversos pontos da Europa, com a explosão revoltosa da população excluída, aparecimento de líderes carismáticos organizadores dos levantes, a burguesia dominante local como a principal adversária e, nessas revoltas, a inclusão da marginalidade (bandidos, aproveitadores, etc.) também revoltada com a sua situação. Em um primeiro momento houve vários sucessos para os revoltosos, mas, em seguida, houve cruéis repressões. Coornaert (1941: pp. 75-77) observa rebeliões no setor têxtil a partir de 1225 na região de Flandres e Hainaut, além de Douai e Rouen, em que oficiais e aprendizes se organizaram em coalizações próprias e promoveram paralisações e desordens, o que resultou na expulsão de muitos da região. Surgiram outras rebeliões sucessivas e 103 espalhadas, como aquela, a partir de 1280, em Ypres, com reflexo no trabalho do campo ao redor, e que redundou em uma repressão impiedosa, com centenas de condenados à expulsão perpétua do lugar. Na mesma época, ocorreram sublevações em Bruges, Douai, Tournai, além de revoltas similares em Provins, Rouan, Caen e Orleans. Também ocorreram, no mesmo período, revoltas nas cidades de Colônia e Worms, além de Viena. Por volta do ano de1292, ocorreu uma revolta importante em Reims, semelhante a que surgira pouco antes em Béziers e Tolouse, além de Blois. Vale destacar que tais revoltas ocorrem sempre em reação à situação de péssimas condições de trabalho. Demurger (2003: pp. 104-105) aponta que a rebelião em Provins, em 1281, ocorreu em razão do prolongamento da jornada e teve como clímax o assassinato do responsável pela direção da cidade. Os episódios relativos a Gand e Amiens, por volta de 1355, relacionaram-se diretamente com o uso de relógio central como elemento do coerção e mudança de hábitos dos trabalhadores. Também surgiram conflitos institucionais no âmbito das cidades e das corporações, mais precisamente em torno das rivalidades provenientes do fosso que se formou entre as profissões chamadas de artes maiores (panificadores, ourives, etc.), com acesso próximo ao poder, e aquelas chamadas de artes menores (curtidores, ferreiros, etc.); ou, como se dizia em Florença, do popolo grosso; ou ainda, entre o chamado patriciado nobiliárquico e as corporações, ainda que de artes maiores. Desde esse período, diante dos problemas conflituais apontados, inicia-se, principalmente na França, o movimento dos companheiros (compagnonnages), entidades formadas por trabalhadores e oficiais de corporações (companheiros), excluídos das vantagens corporativas (a partir do momento em que os mestres inviabilizaram a ascensão hierárquica nas corporações por interesse familiar, etc.). Esses grupos formavam associações de trabalhadores visando ao auxílio-mútuo e defesa entre diversas cidades; procuravam buscar trabalho para seus membros, autoproteção em face da exploração dos mestres corporativos que participavam dos poderes municipais, além de atender trabalhadores em desemprego, quer ajudando para atendimento à saúde, quer arrumando moradias, alimentação, etc.. Tais associações geralmente eram mantidas em segredo e tinham como característica ritos de entrada e cerimônias religiosas. 104 Mas também se inicia um tipo de conflito que coloca em questão as próprias corporações como instituições existentes nas cidades, como o episódio ocorrido na construção da igreja de Santa Maria del Fiore, em Florença: durante a construção, os pedreiros da corporação de ofício local promovem um movimento exigindo um determinado valor para o prosseguimento da obra; o construtor, não aceitando a forma e o preço estipulado, rompe com a corporação dos pedreiros e monta, sob sua coordenação, um sistema de implantação das pedras no templo e oferece, a um preço estipulado por ele mesmo, com apoio dos financiadores da obra, trabalho para aqueles que, embora não pedreiros, aceitassem colocar as pedras no sistema de colocação proposto. Esse episódio, a par de alterar a forma de construir (de interesse para a história da arquitetura), representa, ainda que de forma iniciante e minoritária, um novo formato de contratação de mão de obra no século XIV, em que se modifica a forma de trabalho e o processo de contratação de trabalho, sob outro modo de relação laboral. VI - A interferência real nas corporações À medida que o poder real se centraliza e absolutiza, passa a ocorrer uma maior influência desse poder: não só no prisma político institucional, nas relações com a Igreja e nas relações com o senhorio feudal, mas também nas relações corporativas, o que vai formando um quadro de intervenção política e jurídica do poder central sobre a vida cotidiana do trabalho nas corporações de ofício. A intervenção centralizadora do rei tinha o apoio efetivo da burguesia, diante de sua aliança econômica e política com a centralização, e com a respectiva restrição aos poderes senhoriais regionais, o que permitia uma maior autonomia e liberdade de ação econômica por parte dessa classe ascendente. Como nos destaca Coornaert (1941:101-102), desde o rei francês Felipe, o Belo, foi inaugurada uma política ativa de interferência direta do poder real sobre as relações corporativas de trabalho; assim, os reis que o sucederam (Felipe VI, João, o Bom, Carlos V e Carlos VI) passaram a autorizar a criação de novas corporações de ofício, suprimir suas confrarias (principalmente por seu caráter intimamente ligado à Igreja), alterar as jurandas para substituí-las por agentes (fiscais) reais, tudo visando à intromissão do poder real sobre todos os tipos de relações sociais. 105 Desde o início do século XIV, em Paris, por exemplo, vê-se a intromissão real sobre as corporações: os reis do período designaram o responsável da cidade (prévot de Paris) como o supervisor das atividades panificadoras, além de também supervisionar outras atividades corporativas, como a dos carpinteiros. Em meados do século XIV, o poder real retira, nas regiões em que possui maior influência direta (de Tournai e Amiens à Carcassone e Nîmes), a jurisdição dos juízos ordinários locais sobre as relações de trabalho corporativas, passando à jurisdição real esses casos. Além disso, por seus agentes, impõe o formato de interesse real aos estatutos corporativos, estabelece para eles os membros da juranda ou o conselho de homens prudentes (conseil des prud’hommes), supervisiona suas eleições internas, preside assembléias, outorga selos de marca nos tecidos, supervisiona a escolha de novos mestres, fiscaliza as relações internas de trabalho nos ateliês, abre ramos novos de corporações, etc. Observa-se ainda, nesse período, a instalação pela via real de procedimentos administrativos para o cotidiano corporativo, como a instalação de comunidades, regularização de regulamentos corporativos, eleição dos jurados relacionados aos conselhos de homens prudentes, bem como a formação dos mestres. Essa situação transforma as corporações, de autônomas a parte subordinada da administração real, alterando até sua estruturação jurídica: o autor em questão chega a denominar como semi-pública ou quase pública a natureza jurídica das corporações afetadas. Exemplifica tal fato com uma ordenança real francesa de Felipe, o Belo, de 1313, em que, ao editar regras de aspecto monetário, dispôs para que, nas cidades do reino, não houvesse assembléias corporativas autônomas em que os mestres escolhessem os membros da Juranda (ou membros do conselho de homens prudentes), determinando firme execução dessa ordem. Ainda relaciona a importante ordenança real de 1330 e sua regulamentação de 1332, por Felipe VI, em que foi fixada a duração e o preço da jornada de trabalho por todo o reino para a atividade de curtidor, fixando ainda o mesmo tipo de estatuto para essa função profissional. Após o ápice da tragédia da peste negra, foi reduzida em um terço a população da Europa, o que redundou em se tornar precária a mão de obra artesanal, acarretando aumento do preço do trabalho manual. Logo em seguida, em 1351, o rei francês João, o Bom, editou uma ordenança geral fixando um valor máximo a ser pago pelos trabalhos artesanais de cada tipo de função, além de fixar o número e o tipo de função 106 para o trabalho nas corporações de ofício e fixar formas estatutárias corporativas. Nesta mesma época, Eduardo III, na Inglaterra (1349), com o pretexto imediato também da peste negra (cf. Marx, 1994: p. 308), editou lei fixando limites salariais e de jornada de trabalho, que veio a ser novamente regulada em 1496. Segadas Vianna, nas Instituições de Direito do Trabalho (1997: p. 31), destaca ainda a forte intervenção no direito regulamentar das corporações pelo poder real espanhol quando as Cortes de Valladolid, em 1351, estabeleceram jornada de trabalho, no período de manutenção solar, com intervalos para alimentação, com ampliação da liberdade de aprendizagem, além de édito das Cortes de Toro proibir o penhor dos instrumentos de trabalho e a prisão do trabalhador por dívida. 107 CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM OLHAR EM PERSPECTIVA Após nossos olhares indagador, panorâmico e de aproximação, vale a pena finalizarmos este trabalho com um olhar em perspectiva sobre o período medieval escolhido. Propomos, então, uma breve análise como nossas considerações finais. Logo no início, foi feita menção à preocupação industrialista e oitocentista da História do Direito do Trabalho, tendo em conta a revolução industrial e o capitalismo como bases para a situação econômica e social existentes para a formação desse ramo do Direito. Retomando a questão, Nascimento (1981: p. 4), nessa linha, é enfático: O direito do trabalho surgiu como conseqüência da questão social que foi precedida da Revolução Industrial do século XVIII e da reação humanista que se propôs a garantir ou preservar a dignidade do ser humano ocupado no trabalho das indústrias que, com o desenvolvimento da ciência, deram nova fisionomia ao processo de produção de bens na Europa e em outros continentes. A necessidade de dotar a ordem jurídica de uma disciplina para reger as relações individuais e coletivas de trabalho cresceu no envolvimento das “coisas novas” e das “idéias novas”... O autor citado, na mesma ótica de muitos outros, vê o Direito do Trabalho como resultado da necessidade de obter-se uma estrutura jurídica própria para atender as situações decorrentes das relações individuais e coletivas do trabalho por força da decorrência da Revolução Industrial. Dessa forma, visualiza o Estado moderno como o propiciador da implementação de um ambiente de bem-estar social, com o acomodamento das tensões e conflitos sociais, tudo de forma circunscrita a um período de tempo e a uma concepção econômica – após a Revolução Industrial. Tal postura, entretanto, é certamente segmentada. Seria possível vermos a História do Direito do Trabalho como a análise de fatos em forma compartimentada, pela qual, por exemplo, a explicação para determinados conceitos e princípios existentes no Direito do Trabalho possuem somente causas ligadas a um determinado evento econômico e social? Werneck Sodré (1968: pp.11-12) faz-nos lembrar lei da lógica de Hegel pela qual as “simples mudanças na quantidade, depois de certo grau, acarretam diferenças na qualidade”. Esse autor destaca que muitos operários, funcionando concomitantemente sob o comando do mesmo capital, no mesmo espaço, no mesmo campo de trabalho, se acharem melhor, para produzir o mesmo gênero de mercadorias, eis o histórico ponto de partida da produção capitalista. É assim que, em seu início, a manufatura propriamente dita apenas se distingue dos ofícios da Idade Média pelo maior número de operários explorados simultaneamente. A oficina do chefe de 108 corporação não faz senão alargar as suas dimensões. A diferença começa por ser puramente quantitativa. (p.12) Observar a história do Direito do Trabalho sob um prisma isolado, isto é, a partir do oitocentismo e do capitalismo industrial, deixando de lado ou para trás, sem liames maiores do que informações de um passado longínquo, toda a formação do trabalho sob um prisma de autonomia e liberdade obtida sobre a servidão, a partir do período medieval relativo à Idade Média baixa principalmente, e daí em diante, todo o período econômico mercantil da Europa, representa um ranço positivista se olharmos epistemologicamente. E aqui lembramos a figura do Barão de Münchhausen, aquele célebre contador de histórias fantásticas, que era capaz de retirar a si mesmo do pântano apoiandose no próprio puxão de sua cabeleira e mover-se do lugar por ele mesmo, contada por Löwy na análise que faz do positivismo (1996: pp. 17-57). Aliás, a visão concentrada e compartimentada da História do Direito do Trabalho, com a postura de que era essencial para ela apenas o período da Revolução Industrial a partir do oitocentismo que, por sinal, se relaciona com a época em que as ciências humanas se estruturam e são reconhecidas como tais, representa uma afirmação com uma ambigüidade problemática. Vejamos: a) de um lado, um autonomismo auto-afirmativo do Direito do Trabalho, como ciência autônoma do Direito. Tal discurso autonomista fez-se importante no início do século XX, como forma de montagem de limites e importância do ramo então novel que representava, tudo fazendo para se mostrar autóctone do Direito Civil, como um ramo próprio de ciência jurídica sem relações ou amarras passadas. Daí, a desconsideração para com o período anterior à Revolução Industrial e principalmente a Idade Média. b) de outro lado, um viés triste, mas ligado com o ranço de nosso passado escravagista: aquele em que o Direito do Trabalho era visto como um direito novo e de menor importância, quase desligado do Direito, que representava uma simples linha auxiliar assistencialista do Estado para uma grande parcela da população excluída ou quase excluída, constituída de trabalhadores, que estavam muito longe do que representava o poder e a importância para a classe dominante. Tal concepção teve um apelo considerável, principalmente para um setor jurídico preconceituoso, que foi se tornando, contudo, com o tempo e a afirmação do Estado Democrático de Direito, totalmente destoante e minoritário. 109 Em razão disso, torna-se claro que a concepção segmentada da História do Direito do Trabalho não se justifica funcionalmente. Do mesmo modo que a economia vê a utilização e a forma do trabalho, no estágio do corporativismo, sob um aspecto quantitativo preparatório do salto qualitativo da expropriação da força do trabalho no capitalismo, nós que estudamos o Direito do Trabalho não podemos nos furtar a procurar entender a formação anterior em que se enquadrava o trabalho, sob a forma corporativa, com suas concomitantes e/ou posteriores modificações a partir do capitalismo mercantil. Afinal, a luta empreendida pela jornada do trabalho a partir do século XIX, também foi, em seu tempo e em sua forma, empreendida pelos aprendizes e oficiais das corporações de ofício, como visto por meio do olhar realizado pelo presente trabalho. A luta contra as péssimas condições de trabalho existentes desde o século XIX foi analisada pela História do Direito do Trabalho; as mesmas condições também foram o objeto da luta dos menos aquinhoados das corporações e dos excluídos delas nos episódios das revoltas relativas às condições de trabalho, jornadas e salários, como aquelas dos trabalhadores dos tecidos de lã em Flandres e nas cidades italianas (século XIV), além das demais rebeliões apontadas em nosso texto. Qual a principal identidade nessas lutas? A luta do homem por dignidade e respeito à sua condição humana no trabalho, quando afetado, ainda no período da corporação e nos primórdios da manufaturas, precedendo o trabalho industrial. Por óbvio que essas situações merecem um olhar indagador e de ligação histórica. Como exemplo metodológico, a Teoria Geral do Estado, que representa um ramo recente da ciência do Direito, ao promover seus antecedentes históricos não omite, e não poderia mesmo ignorar, a importância da formação, estruturação e jurisdicização da sociedade humana, observando com peculiar interesse o Império Romano, o Sacro Império Romano-Germânico do Ocidente e, nele, o período carolíngio, além da alta e, depois, baixa Idade Média, até passar a observar o Estado renascentista. Ali não se tem como ponto de partida apenas o final da Idade Média, com os estados gerais de Felipe, o Belo, mas procura-se analisar os primórdios das feições que vieram a ser tomadas pelo Estado moderno. 110 Um outro exemplo relaciona-se ao Direito Processual: também um ramo relativamente recente do Direito, o tratamento histórico a ele dado por importantes juristas enfatiza o estudo do Direito Processual a partir das tragédias gregas, tendo em conta que nelas são contadas o surgimento da prova testemunhal e circunstancial para a comprovação dos fatos no processo ou procedimento; além disso, destaca os momentos quando são narradas, nessas obras, a superação da fase mística da apuração dos fatos pelo Oráculo de Delfos. Assim, dá-se importância aos aspectos informativos e formativos dos métodos procedimentais, ao invés de fixar-se a História do Direito Processual no momento em que a ciência processual toma importância, nos meados do século XIX, entre outros motivos, por força da obra de Oscar Bülow na Alemanha. Logo, consideramos que também a História do Direito do Trabalho não pode se situar isoladamente, utilizando-se apenas dos paradigmas do período após a Revolução Industrial. Toda a tradição da forma de tratamento dada pelas classes dominantes (econômica e política) das sociedades ocidentais pesa historicamente sobre a cultura nas relações do trabalho, assim como as formas de postura, subordinação e relacionamento perante a classe dominante daqueles que trabalham, quer pelo uso das mãos, quer pelo uso do intelecto, desde a Idade Média. E esses tratamentos de corpos sociais, e depois de classes, iniciaram-se principalmente na Idade Média baixa, por sua vez, com as reminiscências históricas da escravidão e da servidão. Sob este prisma, o trabalho das corporações de ofício nas cidades medievais, em sua fase de renascimento político e econômico, tem uma característica de formação de atitudes defensivas, quer se protegendo em corporações e confrarias contra os econômica e politicamente mais fortes, quer formando monopólios circunscritos para suas produções ou contra outras cidades ou contra o surgimento de corporações que pudessem afetar sua produção. Essa defesa representa uma atitude humana de autopreservação e mesmo de humano (e indesejável) egoísmo; depois da Revolução Industrial, atitudes como essas foram reutilizadas com métodos similares, como nos momentos em que, pelos sindicatos, se pretendia impedir o trabalho para quem não fosse sindicalizado, nas chamadas cláusulas de closed shop ou union shop; ou outras atitudes de preservacionismo extremado e monopolismo da ação sindical. 111 De outro lado, contemporaneamente tem se visto uma outra forma de monopolismo, de cunho anti-sindical, praticado por empresas de grande porte, notadamente nos Estados Unidos da América do Norte. Ali, em nova versão dos antigos yellow dog contracts, são contratadas empresas para o combate de ação sindical. Elas agem visando a inviabilizar qualquer tipo de atuação sindical, quer pressionando e intimidando os trabalhadores das empresas a não se sindicalizarem, quer oferecendo tudo o que é tipo de apoio à empresa durante quaisquer movimentos reivindicatórios. Por exemplo, providência de empregados fura-greves, fornecimento de refeições para os empregados que não fizerem greve e demais atos que impeçam totalmente a atividade sindical nas empresas e impossibilitem qualquer concretização de medidas de defesa dos trabalhadores pela forma coletiva (e, por óbvio, individual). É o emprego do monopólio interno das relações de trabalho, sem possibilidade de alternativas para os trabalhadores às condições oferecidas pelas empresas. Também vale lembrar que as corporações de ofício foram abolidas com a prevalência econômica do capitalismo: na Inglaterra, desde um processo iniciado com Eduardo VI (1549) e completado pelos Combination Acts de 1799 e 1800; e, na França, com a revolução burguesa (Lei Le Chapelier), o que veio a influenciar a legislação de muitos países. Mas, no início século XIX, surgiram, sob a influência da tradição histórica e cultural do tempo medieval, confrarias secretas de trabalhadores para auxílio-mútuo e organização de féretros, até sob o pretexto de coleções de selos; serviam, no entanto, para a troca de informações sobre condições de trabalho. Foram o início da organização de movimentos de protestos que, com o tempo, passaram a se constituir em novos tipos (ou sob novas condições qualitativas) de corporações: os sindicatos. Podemos ainda destacar, como objeto histórico com influência jurídica notória, a adoção de documento sistemático e estrutural, de forma a organizar, manter e equilibrar o cotidiano do trabalho: os estatutos corporativos. Como vimos, tais estatutos eram peça jurídica importante tanto interna, ao regular a vida das corporações, estabelecendo critérios de ingresso, fiscalização, punição, promoção e de auxílio, quanto externamente, nas fiscalizações dos emissários municipais ou régios, e perante os juízos de costume ou reais. Tais estatutos corporativos, tanto das corporações de mercadores (guildas), como das corporações de ofício, representam a reminiscência histórica presente 112 nos regulamentos empresariais posteriores, bem como nos regulamentos de pessoal da empresa, assim como dos regulamentos sindicais. Aliás, repercutem até nas regulamentações modernas resultantes das negociações coletivas, como o acordo ou convenção coletiva de trabalho. Esses estatutos podem significar até um antepassado do Direito Coletivo do Trabalho, como chega a considerar Émile Coornaert (1941: p. 64). Outro aspecto a ser considerado refere-se ao momento em que se dá a maior concentração do poder real sobre a sociedade, mais precisamente na Idade Média baixa: é o período em que há uma intervenção efetiva do Estado, com o absolutismo nascente, sobre as relações de trabalho. E esse Estado concentrado nas mãos do rei está aliado à burguesia, que investe nessa relação e obtém retornos polpudos. Atendendo aos interesses da burguesia e da utilização absoluta do poder, o rei passa a interferir nas corporações e associações de oficiais, bem como sobre o trabalho temporário. O motivo principal, certamente, além da intromissão absoluta do poder real, é o lucro pela menor remuneração de quem trabalhava, mas houve motivos incidentais muito importantes como a peste negra, outras epidemias, as crises financeiras no período da guerra dos Cem Anos, etc. Tal intervenção, com decretos reais em diversas nações, estabelecendo horários de trabalho e valores limitados a salários de aprendizes e oficiais, representa uma intromissão do Estado sobre as relações de trabalho; e a intromissão do Estado sobre jornada de trabalho e salários possui uma identidade muito grande com os paradigmas do Direito do Trabalho que temos hoje, ainda que as relações de trabalho tivessem uma característica não capitalista industrial, mas representassem o início de um capitalismo mercantil. Há ainda outra questão relacionada à atualidade, a situação da jornada do trabalho: em função das novas formas de trabalho, ocorre atualmente uma preocupação do Direito do Trabalho com as chamadas jornadas part-time, decorrentes do trabalho parcial, com cobrança sob o aspecto produtivo, ou ainda a retomada do trabalho doméstico sob a situação virtual em que se encontra o trabalhador em permanente contato com a empresa. São situações que se encontram em similaridade, diante do confronto de novas situações de controle e produção, com o trabalho artesanal na Idade Média, em que as tecelãs produziam em seus locais residenciais, que deveriam ter vidros de janelas voltados para a rua, para que outras pessoas, principalmente os fiscais dos comerciantes, pudessem fiscalizar o trabalho, o ritmo, a dedicação e a qualidade dos fios e tecidos que elas manipulavam. Assim como a 113 introdução do relógio nas praças das cidades, fato que alterou a forma da cobrança de pontualidade sobre a jornada e que afetou a vida dos trabalhadores do século XIV, a ponto de surgirem rebeliões de protesto e indignação. Sobre a intervenção do poder real sobre as relações de trabalho, destaca-se ainda a intervenção do braço do rei sobre a organização das corporações de ofício, transformando as corporações em correias de transmissão da presença do rei na comunidade local, quer pela escolha dos jurandos (prud’hommes), quer pela intromissão na regulamentação interna, modelando os estatutos corporativos, quer determinando o sistema de trabalho a ser produzido no local em que se estabelece a corporação, etc. Tal situação, de influência do Estado sobre a vida corporativa de trabalhadores, foi legislada pela própria Consolidação das Leis do Trabalho, sob os auspícios do ditador Getúlio Vargas, e continuou predominando por muito tempo. Será que não há relações a serem feitas? Pois claro que tais relações se tornam importantes para a análise do Direito do Trabalho. Temos ainda o aspecto da anarquia e da hierarquia: como visto no olhar apresentado, a sociedade medieval era anárquica, por ausência de centralização de poder, existindo uma descentralização dos poderes em diversos âmbitos e locais. Mas, concomitantemente, ocorria uma estrutura hierárquica de poder, em que as relações se davam pela submissão à autoridade superior, e assim por diante, num encadeamento de tipos de vassalos e suseranos em praticamente todas as formas sociais de convívio, do poder político e religioso ao convívio corporativo. Essa situação perdurou, inclusive, durante o início da centralização de poder real no final da Idade Média. Embora não idêntica, tal situação passou a ser arremedada com a contemporânea situação política e social do mundo: a queda do muro de Berlim, que representa o final do século XX de um lado, e a mudança do Estado contemporâneo, em que o capitalismo financeiro não precisa mais de fronteiras nacionais para salvaguardar suas riquezas, com a conseqüente diminuição do poder do Estado, de outro lado. Complementou-se assim a descentralização do poder no mundo de hoje, iniciada com a “revolução” das comunicações, que teve como corolário a utilização do mundo virtual. Tal descentralização de poder representou um fortalecimento internacional do capital financeiro e das corporações empresariais interligadas a esse capital. Passou a ser visto tal fortalecimento como uma recriação (ou “em farsa ou em tragédia”) de feudos, de tipo econômico, sofrendo a influência de poder 114 local e todas as repercussões corporativas similares pela existência desse tipo de poder descentralizado nas relações do trabalho. Agora, há uma nova característica de hierarquiaanarquia: a par da horizontalidade, há o discurso de que a lei social deve ser colocada de lado para atender à criação de frentes de trabalho, e trabalho sem amarras, mas totalmente subordinados ao mercado e à concorrência. A visão da estrutura feudal certamente auxilia a análise deste momento histórico por que passamos no mundo trabalhista. Paralelamente a essa descentralização, estendeu-se, no microcosmo das empresas, uma nova forma de relação de trabalho e subordinação: ao invés de chefias verticais, instalou-se o método japonês (toyotismo) da relação horizontal das atividades produtivas. Tal modelo possui características semelhantes à forma geral de organização existente no mundo empresarial, qual seja, a descentralização e a horizontalização produtiva. Esse sistema se utiliza de grupos, que atuam, são responsabilizados e se responsabilizam pessoalmente, porém de forma coletiva. Assim, a equipe, o grupo, a turma, é que responde para a organização empresarial, e não a pessoa individual do empregado: este se responsabiliza no plano pessoal com o grupo apenas, e responde ao grupo por sua atuação, produção, ausências, etc.. Se o trabalhador falha, é o grupo que responderá pela falha, mas é ele também que cobrará do trabalhador a falha e o prejuízo material e moral do grupo. Alterou-se, portanto, a forma de subordinação e ampliou-se a possibilidade da cobrança do trabalho: não mais o indivíduo subjetivo de forma direta é cobrado pela chefia, mas é do o coletivo que se cobra e se exige. Por óbvio que tais relações de supressão da importância do indivíduo em função do coletivo restrito possuem inúmeras similaridades com as corporações de ofício medievais, em que o indivíduo só era aceito como parte do grupo. Mostra-se importante, mais uma vez, destacar a validade do conhecimento histórico sobre o trabalho e o trabalhador da Idade Média para melhor compreender e analisar situações contemporâneas. São inúmeras as situações que poderiam ser desdobradas aqui sobre relações do trabalho e importância do conhecimento do período medieval, mas optamos pela exemplificação e não pelo esgotamento do assunto, até pela forma analítica do presente texto. Deve, porém, ainda, ser ressaltado um aspecto metodológico: é a utilização do painel genérico histórico sobre um período da Idade Média, adotado no interior desta dissertação. A adoção dessa visão geral de um momento histórico medieval se fez necessária como um 115 critério da análise, que deve se pautar por uma observação mais ampla do quadro geral em que a figura do trabalho se situa. E aqui a proposta objetiva é que, para se estudar a História do Direito do Trabalho, não se pode circunscrever o fato nele mesmo, apenas se observando o fenômeno oferecido. Deve-se, para analisar a História do Direito, assim como do Direito do Trabalho em qualquer questão escolhida, ter em perspectiva o contexto mais geral em que se situa o fenômeno que se pretende analisar: trata-se de uma visão sincrônica. Afinal, como entender a confraria no trabalho medieval sem saber a fundamental concepção da cristandade naquele período? Como entender o papel da juranda sem conhecer a estrutura hierárquica medieval? Como se aprofundar no conhecimento das mudanças ocorridas nas relações de trabalho das corporações sem saber o papel da burguesia ascendente nas cidades e sua relação com o poder real? Como entender melhor o texto escrito das regulamentações corporativas, sem saber da influência do direito canônico escrito nas instituições medievais? Como observar de forma mais completa a ampliação dos ajustes comerciais e termos de liberdade de ação e responsabilidade nas cidades, sem saber da importância do contratualismo, validado pelo tomismo, e o subjetivismo, intimamente ligado ao pensamento nominalista? Mas há também a necessidade de uma visão diacrônica: é a utilização em perspectiva histórica dos diversos momentos por que passou o fenômeno social e jurídico objeto do estudo, para que não se afete a sua melhor compreensão científica e que se faça de forma mais detalhada a ilação de suas variáveis. E este texto tem o escopo de incitação ao estudo de períodos históricos anteriores ao oitocentismo, na busca de novos planos de compreensão da importância do trabalho humano e na valorização de sua dignidade. 116 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982. BASDEVANT-GAUDEMET, Brigitte e GAUDEMET Jean. Introdution Historique au Droit. Paris: LGDJ, 2003. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? São Paulo: Cortez Editora, 2000. ARNOLD-FOSTER, H. O. A History of England. London: Cassell and Company, 1928. AZEVEDO, Luiz Carlos de. Introdução à História do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. BARRET, François. Histoire du Travail. Paris: Presses Universitaires de France, 1963. BASCHET, Jerôme. La civilisation féodale. Paris: Éditions Flammarion, 2004. BLOCH, Marc. La société féodale. Paris: Éditions Albin Michel, 2002. BOURIN, Monique e DURAND, Robert. Vivre au village au Moyen Âge. 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