D E S T A Q U E AZUL E J O PO RTUG UÊ S 21 Azulejo português aplaudido no mundo É APRECIADO NÃO SÓ PELA SUA ORIGINALIDADE MAS TAMBÉM PELO DIÁLOGO QUE ESTABELECE COM AS RESTANTES ARTES. COM MAIS DE 500 ANOS DE HISTÓRIA, O AZULEJO PORTUGUÊS AINDA CONSEGUE ARRANCAR OLHARES DE ADMIRAÇÃO E INSPIRAR CRIADORES E ARTISTAS NACIONAIS E INTERNACIONAIS. Texto: Mariana Albuquerque Fotos: Rui Oliveira Basta um olhar mais atento para constatar que, de facto, está por toda a parte… a contar histórias dos séculos passados e a refletir a evolução da própria sociedade. O azulejo português tem vindo a despertar o interesse crescente de arquitetos e criadores (não só a nível nacional) e, à semelhança do que aconteceu com o fado e com o cante alentejano (já co n s i d e ra d o s P a t r i m ó n i o Mundial) está a caminho da UNESCO. De acordo com a Secretaria de Estado da Cultura, a elaboração da candidatura é da responsabilidade da Direção-Geral do Património Cultural, em parceria com o Laboratório Nacional de Engenharia Civil e a Comissão Nacional da UNESCO. Para os especialistas, não há tempo a perder. Há que apelar – tal como sublinhou a historiadora de arte Maria José Goulão – “à salvaguarda patrimonial deste espólio” porque, na verdade, Portugal não inventou o azulejo (ao contrário do que muitos pensam) mas conferiu-lhe “características muitos específicas, que são, também, o espelho daquilo que nós somos, da nossa abertura ao mundo”. UMA HISTÓRIA COM MAIS DE CINCO SÉCULOS Interessa, por isso, fazer uma breve viagem pela história deste original elemento de revestimento arquitetónico no nosso país. Apesar de ser erradamente associada ao termo ‘azul’, a palavra azulejo é de origem árabe, derivando de ‘al zulaycha’ ou ‘zuléija’, que tanto significa ‘pequena pedra polida’ como ‘ladrilho’. Segundo explica José Meco na obra “O Azulejo em Portugal”, a palavra deverá ter surgido “nos centros cerâmicos da Andaluzia, de origem muçulmana, donde foi adotada pela língua castelhana”. “A sua assimilação pela língua portuguesa deu-se provavelmente através das importações de azulejaria andaluza no final do século XV, aparecendo já referenciada na documentação nacional do início do século seguinte”, revela o especialista na temática. Durante muito tempo, o início da produção nacional de azulejos foi, assim, apontado para o século XVI. Contudo, novos estudos provam que a presença de oficinas de produção de loiça cerâmica e ladrilhos em Portugal deverá ser anterior, obrigando-nos a recuar aos séculos XIV e XV. “Foram encontrados vestígios de azulejos em escavações arqueológicas relativamente recentes, na Baixa de Lisboa, que, estudados pelos especialistas, indicam que possamos falar do início da produção nessa altura”, informou Maria José Goulão. No século XVI deu-se uma forte corrente de importação dos chamados azulejos hispano-árabes (com influências da produção cerâmica do mundo islâmico) de Sevilha, das oficinas de Triana (criadas por artesãos e artífices de origem árabe que se estabeleceram em solo ibérico). Ao estilo artístico desenvolvido entre os séculos XII e XVI nos reinos cristãos da Península Ibérica (que incorporam influências, elementos ou materais de estilo ibero-muçulmano) dá-se o nome de arte mudéjar. Mas voltemos às exportações para território português. As encomendas eram feitas, de um modo geral, por pessoas cosmopolitas, de classes privilegiadas (clero e nobreza). Um bom exemplo será – notou a historiadora e docente na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto – o do bispo D. Jorge de Almeida, que importou uma grande Intervenção de conservação e restauro de azulejos realizada, no verão, por alunos da Católica Porto em Ovar REVISTAVIVA, OUTUBRO 2015 D E S T A Q U E remessa de azulejos hispanoárabes para revestir toda a Sé Velha de Coimbra. Nesta altura, além do interior dos edifícios, também as fontes, muretes de jardins, chaminés e casas de fresco surgiam revestidas com esta peça de cerâmica. Mas é no período barroco (nos séculos XVII e XVIII), com a criação de oficinas por todo o país, que a produção nacional conhece o seu maior desenvolvimento. As peças, essas, são já de tipologias AZUL E J O PO RTUG UÊ S e características distintas, uma vez que, no século XVI, a introdução de uma nova técnica de fazer cerâmica – intitulada Majólica – abre novos horizontes, consistindo na cobertura do azulejo com um esmalte branco, onde podem ser pintados motivos sem que as cores se misturem. Com o fim da Guerra da Restauração, em 1668, assiste-se a um reatar das relações políticas e comerciais com Espanha, França e os Países Baixos, surgindo uma nova influência na produção de azulejos (desta vez holandesa), associada à predominante utilização das composições em azul e branco. Os painéis transpõem para os azulejos cenas de gravuras da época executados tendo em atenção o enquadramento a que se destinam. Com o passar do tempo, outras influências económicas, sociais e culturais vã o m o l d a n d o o a z u l e j o português. É por isso que, para Maria José Goulão, estes elementos não podem ser apreciados apenas do ponto de vista estético, uma vez que refletem também o próprio evoluir tecnológico. A portuense Igreja do Carmo, apesar de ter sido construída na segunda metade do século XVIII, durante o período barroco, tem uma particularidade: os azulejos que vemos na sua fachada lateral são bastante mais recentes (datam de 1912), apresentando um desenho de Silvestre Silvestri. Surpreendido? Pois bem, a explicação é simples: no século XIX, iniciase, em termos estéticos, um período de revivalismo, “de apreço pela estética do passado, 23 com o retorno aos grandes temas da cultura medieval”. “Aquele revestimento azulejar não é barroco. Corresponde a um historicismo: essa ideia REVISTAVIVA, OUTUBRO 2015 24 de recuperar estilos históricos do passado”, esclareceu a docente, acrescentando que o mesmo se verifica no famoso painel da estação de São Bento, da autoria de Jorge Colaço. Segundo José Meco, a obra, realizada em 1915 na Fábrica de Sacavém, representa a evolução dos transportes ao longo dos séculos. “É uma das obras mais representativas da corrente nacionalista e historicista do azulejo português da primeira metade do século XX”, sublinhou. De referir que, no norte do país, há três fábricas que, no século XIX, foram pioneiras na produção de azulejos em grande escala: a do Carvalhinho, das Devesas e de Massarelos, numa altura em que estas peças de cerâmica passaram a revestir as fachadas dos prédios de habitação, conferindo-lhes impermeabilidade e um aspeto mais ‘alegre’. ELEMENTO PRESENTE NA ARTE URBANA No século XX, o azulejo entrou na arte urbana, sendo utilizado em vários espaços da modernidade, nomeadamente em aeroportos, estações de metro e viadutos. De acordo com Maria José Goulão, há um “novo interesse” nestes elementos por parte dos grandes artistas e arquitetos portugueses. É o caso da dupla Siza Vieira e Souto de Moura, nos projetos das estações de metro do Porto. “Mesmo não sendo atraídos pelo lado mais barroco, exótico e ornamental do azulejo, entenderam que as pequenas cambiantes de luz, relevo e textura o transformam num excelente dinamizador de superfícies”, salientou, destacando igualmente as composições da autoria de Maria Keil, responsável pelos revestimentos de azulejo do metropolitano de Lisboa e da Avenida Infante Santo. Aliás, para José Meco, esta última obra (produzida na Fábrica Viúva Lamego e aplicada em 1959) é “uma das mais representativas da azulejaria moderna portuguesa, tanto pela excelente integração do painel no suporte arquitetónico, como pela elaboração formal da decoração, tratada com notável plasticidade através das múltiplas variações das formas geométricas utilizadas”. D E S T A Q U E Painel de azulejos de Júlio Resende, na estação de metro do Bolhão “OVAR, CIDADE-MUSEU VIVO DO AZULEJO” A riquíssima coleção de azulejos que revestem as fachadas de muitos edifícios de Ovar valeu-lhe o epíteto de Cidade-Museu do Azulejo, atribuído por Rafael Salinas Calado (primeiro diretor do Museu Nacional do Azulejo, em Lisboa). E para fazer jus ao título conquistado, um grupo de alunos de Conservação e Restauro da Escola das Artes da Católica Porto realizou, recentemente, uma intervenção de conservação nos painéis da estação ferroviária local. ORGULHO QUE ‘SE SENTE NA PELE’ E se o património azulejar português tem características tão específicas (que têm conquistado aplausos internacionais), por que não homenageá-lo? Esta foi a questão colocada por Catarina Furtado (engenheira do ambiente), Cristina Barradas (designer de moda) e Ana Ventura (ilustradora), criadoras da Tiled, marca que já lançou duas coleções de roupa feminina inspiradas no azulejo nacional. A ideia, essa, começou a desenhar-se há mais tempo, mas as primeiras peças foram apresentadas em meados de 2014. As dinamizadoras do projeto vivem em Lisboa mas utilizam uma base de dados, constantemente atualizada, com imagens de azulejos, de finais do século XIX e do século XX, de todo o país. Aliás, a segunda coleção da marca partiu de um padrão avistado na rua do Bonfim, no Porto. Os padrões apresentados nas peças, produzidas no norte do país, não correspondem às fotografias recolhidas, mas sim ao resultado do tratamento digital que lhes é dado. E as criações não se esgotam numa estação do ano específica. “São 27 Fotos: Herberto Smith AZUL E J O PO RTUG UÊ S peças atuais, que podem ser vestidas em qualquer altura e em qualquer parte do globo”, esclareceu Catarina Furtado. Nos dois primeiros trabalhos, foram utilizadas duas matérias-primas diferentes: “o tencel e o polyester com acabamento seda”. No entanto, até ao final do ano, haverá novidades, com o lançamento de uma linha de homem, que contará com novos materiais. E se, no início, o objetivo da Tiled consistia apenas em “transportar para peças de vestuário os magníficos padrões de azulejos que existem espalhados pelas fachadas de norte a sul do país”, rapidamente o trio percebeu que o projeto poderia ir mais além e “contribuir para a salvaguarda do património azulejar de Portugal”. Nesse sentido, a marca firmou uma parceria com o Programa de Investigação e Salvaguarda do Azulejo de Lisboa e, em cada peça de roupa, há uma etiqueta com a imagem do azulejo inspirador e um enquadramento histórico desse património. Além disso, colabora igualmente com o Museu Nacional do Azulejo, para o qual desenvolve peças exclusi- vas com azulejos da sua coleção permanente. Segundo reconheceu a engenheira do ambiente, a recetividade do público tem sido surpreendente. “O azulejo é algo muito específico e diferente, mas tanto os portugueses como os estrangeiros gostam da ideia e da forma como transportamos este ícone do nosso país para as peças de vestuário”, reconheceu. Por isso, não estranhe se, um dia, enquanto passeia calmamente no estrangeiro, identificar na roupa de alguém o padrão azulejar da fachada de um prédio da sua rua. Poderá não ser coincidência. REVISTAVIVA, OUTUBRO 2015