UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
LEILA FIGUEIREDO DE BARROS
A AUTORIA NAS PRODUÇÕES DE CRÔNICAS DA OLIMPÍADA DA LÍNGUA
PORTUGUESA: UM OLHAR ENUNCIATIVO-DISCURSIVO
CUIABÁ-MT
2012
LEILA FIGUEIREDO DE BARROS
A AUTORIA NAS PRODUÇÕES DE CRÔNICAS DA OLIMPÍADA DA LÍNGUA
PORTUGUESA: UM OLHAR ENUNCIATIVO-DISCURSIVO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de
Mato Grosso como exigência parcial para a obtenção do
título de mestre em Estudos da Linguagem, sob orientação
da professora Dra. Simone de Jesus Padilha.
CUIABÁ-MT
2012
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte
B277a
Barros, Leila Figueiredo de.
A autoria nas produções de crônicas da Olimpíada da
Língua Portuguesa : um olhar enunciativo-discursivo / Leila
Figueiredo de Barros. – 2012.
167 f. : il. color. ; 30 cm.
Orientadora: Simone de Jesus Padilha.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato
Grosso, Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação
em Estudos de Linguagem, 2012.
Inclui bibliografia.
1. Crônicas – Autoria das produções. 2. Crônicas –
Olimpíada da Língua Portuguesa. 3. Produção de textos –
Alunos. 4. Crônica – Produção escrita. 5. Dialogismo. I. Título.
CDU 808.1:[82-94:371.275]
Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Jordan Antonio de Souza - CRB1/2099
Permitida a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte
iii
iv
Dedico esta dissertação de Mestrado a memória de meu
querido pai, Antonio Nazareth de Barros.
“Neste momento, alguém gostaria de estar conosco e está
ausente, mas as lembranças e sua presença, o som de sua voz
sopra suave na memória, no murmúrio triste de lamento e
saudade”. Você se foi num adeus eterno; mas está aqui
lembrado, presente, eterno!
E a um brilhante professor que tive na graduação em Letras,
José Antonio Marques Pereira, pessoa maravilhosa que me
trouxe os primeiros contatos com os estudos linguísticos,
mostrou que linguística não se restringe apenas em abstrações
da linguagem, mas que todos somos sujeitos ativos e reflexivos
na sociedade. Era um bakhtiniano por natureza, mesmo sem
mencionar a teoria de Bakhtin, se constituía de um discurso
dialógico e interacional. Lembranças eternas! (In memorian)
v
AGRADECIMENTOS
Primeiro agradeço a Deus, que desde o início de minha caminhada, esteve comigo.
“Dia e noite passaram. Vitórias foram conquistadas. Derrotas foram superadas.
Amizades foram criadas. Conhecimentos foram adquiridos. Diante desse diálogo
constante, Vim te louvar, te agradecer e te oferecer, humildemente, a vida, o amor, a
felicidade. Enfim, a vitória deste momento”.
À professora Dra. Simone de Jesus Padilha (UFMT), que me acompanhou durante
este percurso e soube ser, ao mesmo tempo, rigorosa e terna, como convém a
quem aposta no crescimento do outro. Pessoa maravilhosa que nasceu com o dom
de ensinar e contagiar com a sua busca por novos conhecimentos, que contribuiu,
significantemente, para os resultados desta pesquisa.
À professora Dra. Maria Inês Batista Campos (USP) pelas contribuições valiosas
no exame de qualificação e pela credibilidade depositada em meu trabalho.
Obrigada pelos diálogos que me deixou mais consciente, crítica e reflexiva.
À professora Dra. Icléia Rodrigues de Lima e Gomes (UFMT) pelas leituras e
comentários relevantes no exame de qualificação, por me fazer ampliar o olhar nas
questões científicas metodológicas e midiáticas. Obrigada por ter gentilmente aceito
o convite para participar da minha banca.
Aos professores do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem, Ana Antonia,
Sérgio Flores, Solange Papa, Simone Padilha, Maria Rosa, Maria Inês, Cláudia
Graziano, Elias, Danie; os quais tive a honra de poder compartilhar de seus
conhecimentos teóricos, seja durante as disciplinas cursadas, os seminários ou os
colóquios a que assisti. Obrigada pelas interações!
Aos colegas do Grupo de Estudo Rebak — Shirlei, Lezinete, Viviane, Anderson,
Leni, Rute, Eliana, Diego, Angélica, Sebastiana (Tiana), Jefferson, Iara, Neiva,
Dinaura, Thiago, por construirmos uma grande amizade no decorrer desta jornada e
aprendermos juntos um pouco mais sobre Bakhtin.
Aos amigos da Pós-Graduação: Anderson, Ana Regina, Ana Maria, Ana Raquel,
Verônica, Everton, Fernando, Miriã, Perla, Graziane, Juliana, Angelita, Viviane, pelos
diálogos que marcaram nossos encontros e pela amizade que permanece.
Aos meus amigos da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), em especial, a
Coordenadoria de Educação Escolar Indígena - Antonina, Bernadete, Eronilda,
Fátima Resende, Félix, Letícia, Sebastião, Portela, Suelen, (Nana da equipe de
Eventos) pela torcida, compreensão e pelo incentivo.
Aos meus amigos da Escola Estadual Pascoal Ramos, lugar em que trabalhei
grande período da minha vida - Angela Regina, Alfredo, Beatriz, Bárbara, Dilma,
Izabel, João Paulo, Maria Pereira, Marilene, Nana, Neuza,Valdemar, Wilian, pela
força, pelo incentivo e pelo carinho.
vi
Aos Irmãos que são amigos e aos amigos que são como irmãos:
“Agradecer é admitir que houve um momento em que se precisou de alguém: é reconhecer
que um homem jamais poderá lavrar para si o dom de ser auto-suficiente. Ninguém cresce
sozinho, sempre é preciso um olhar de apoio, uma palavra de incentivo, um gesto de
compreensão, uma atitude de amor”.
A vocês,
Angela Regina, Antonina, Beatriz, Dilma, Euzilene, Fabiana, Francis, Henriques,
Izabel, Janisse, Lezinete, Lesliê, Leni, Lourdes, Michella, Sebastiana (Tiana), Shirlei,
Viviane, Wilian.
À meu namorado Jivanildo Novais, pela paciência, compreensão e pelo carinho
dedicado.
Aos meus amigos Anderson e Viviane, mesmo depois de superarmos mais uma
etapa de nossas vidas jamais perderemos o título de sermos eternamente
“Simonetes”. Obrigada por aprendermos juntos. E como dizia Fernando Pessoa: “...
tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Realmente tudo o que passamos valeu
à pena. Obrigada!
À minha grande amiga Lezinete, por rever meu trabalho, comentar, estudar comigo e
apresentar críticas importantíssimas para que eu melhorasse e afinasse meu olhar
como pesquisadora. Lezi, você foi mais que uma amiga, uma verdadeira irmã.
Obrigada!
À minha querida amiga Shirlei, por ouvir minhas angústias, por estudar comigo, por
compartilhar seu conhecimento amplo e teórico, por me fazer compreender o que,
muitas vezes, parecia incompreensível. Você me proporcionou grandes
aprendizagens e me fez também afinar meu olhar como pesquisadora. Obrigada!
Angela Regina Lana Pinto gostaria de encerrar esses agradecimentos com você,
pois sem o seu apoio e suas palavras de incentivo, nada disso existiria, foi você que
acreditou em mim desde o início e me fez acreditar que seria capaz de fazer o
mestrado e de ser pesquisadora. Obrigada!
Aos aqui não nomeados, mas que contribuíram, de alguma forma, com os construtos
desta pesquisa, muito obrigada!
vii
RESUMO
O presente trabalho tem como propósito apresentar nossa pesquisa de Mestrado,
que investigou a autoria nas crônicas produzidas por alunos do 9 o ano do Ensino
Fundamental e 1o ano do Ensino Médio participantes do projeto Olimpíada de Língua
Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF). Para sua realização, selecionamos o
Caderno do professor “A Ocasião faz o escritor”, da 2 a edição do ano de 2010, a fim
de analisarmos qualitativamente a base teórico-metodológica assumida como
modelo didático do gênero crônica e como esse modelo discute e apresenta a
discursividade, e um corpus de dez crônicas finalistas produzidas pelos alunos
participantes do projeto. A Olimpíada originou-se do programa Escrevendo o Futuro,
desenvolvido pela Fundação Itaú Social entre 2002 e 2006. Atualmente, é realizado
em parceria do Ministério da Educação com a Fundação Itaú Social e o Centro de
Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). As
atividades do projeto da Olimpíada ocorrem de maneira distinta, pois, nos anos
ímpares, há formação de professores e, nos pares, realização de um concurso de
produção de textos com alunos de escolas públicas de todo país, cujos gêneros
selecionados são poemas, memórias literárias, crônicas e artigos de opinião. Nesse
contexto, consideramos pertinente analisar como o material da Olimpíada de Língua
Portuguesa encaminha o projeto de ensino para o gênero crônica, uma vez que
estudar um gênero de natureza social híbrida e ver como ele permite versar sobre
aspectos sociais altamente complexos a partir do olhar singular do cotidiano é
relevante para as práticas escolares, além de representar um estudo de materiais
didáticos alternativos que têm adentrado o espaço escolar ultimamente. Nossas
reflexões e análises estão ancoradas na teoria enunciativo-discursiva de abordagem
sócio-histórica do círculo de Bakhtin (1919,1924, 1929, 1952-1953) e na teoria de
ensino-aprendizagem de Vigotski (1934). Além disso, fizemos um breve retrospecto
sobre a produção textual para entendermos o processo de didatização do texto nas
aulas de língua portuguesa e sobre alguns conceitos da escola de Genebra. À luz da
teoria enunciativo-discursiva, buscamos compreender, de um lado, o tratamento
didático do material para a crônica, pois o objetivo desse material é formar um aluno
autor para esse gênero e, de outro lado, a discursividade nas crônicas para que
pudéssemos observar de que forma os alunos constituíram-se como autores. Em
nossa análise, constatamos que o Caderno da Olimpíada dialoga com o discurso
oficial (PCNLP, OCEM, MEC) e as atividades não oportunizam ao aluno uma
formação suficiente para que seja um sujeito-autor de crônica. Essa lacuna pôde ser
observada nas produções, porque, ao analisarmos as produções, os alunos não
conseguiram ser autores de crônica literária, mas de textos diversos, configurando
gêneros outros. Concluímos, ainda, que o material enfoca o gênero crônica como
gênero literário, contudo, acreditamos que a perspectiva discursiva pode possibilitar
aos alunos uma visão mais ampla acerca da crônica, como um objeto do discurso,
que é multifacetado, dada sua natureza híbrida e oportunizando uma formação mais
cidadã ao alunado.
Palavras-chave: Olimpíada, Crônica, Aluno, Autoria, Dialogismo.
viii
ABSTRACT
This present paper aims to show our research Masters, as investigation about the
authorship in the book produced by students in the elementary school in the third
grade and freshman from High School project participants in the Olympics
Portuguese Language Writing the Future (OLPEF). For this achievement, we
selected the teacher's Notebook "The occasion is the writer, " the second edition of
2010 in order to analyze qualitatively the theoretical and methodological base taken
as didactic model of gender and chronic discusses how this model and shows the
discourse, and a corpus from ten finalists chronicles produced by students who
participated in the project. The Olympic is originated from Writing the Future program,
developed by Itaú a Social Foundation between 2002 and 2006. Currently, it is a
partnership of the Ministry of Education with the Itaú Social Foundation and the
Center for Studies and Research in Education, Culture and Community Action
(Cenpec).The activities from the project of the Olympics occur in different ways
because, in odd years, there are teacher training and, in even, is holding a
competition to produce texts with students from public schools in entire country,
whose poems are selected genres, memories literature, essays and opinion pieces.
In this context, we consider as relevant to examine how the material of the
Portuguese Language Olympic forwards the teaching project for the chronic gender,
as a genre studying a hybrid of social nature and see how it allows the social aspects
relate to highly complex from the natural look is relevant to everyday school
practices, and represents a study of alternative learning the tools that have been
received by the schools lately. Our thoughts and analyzes are grounded in the theory
of enunciative-discursive socio-historical approach of the Bakhtin circle (1919.1924,
1929, 1952-1953) and teaching-learning theory of Vygotsky (1934). Besides this, we
present a brief review on the production of texts for understand the process of
didactization from the text in Portuguese language classes and some concepts of the
Geneva school. Under the light of the enunciative-discursive theory, we search to
understand, one side, the didactic material for the chronicle, for the purpose of this
material is to form a student author for this genre and on the other side, the discourse
in the book so in this way we could observe how students established themselves as
real authors. In our analysis, we found that the Book of the Olympics dialogue with
the official (PCNLP, OCEM, MEC) and the activities do not give the students enough
training to be a subject-author of chronic. This gap could be observed in production,
because, by analyzing the productions, students could not be authors of literary
chronicle, but many texts, setting from other genres. We also conclude that the
material has been focused on the genre as a literary chronicle, however, we believe
that the discursive approach can provide students a broader view about the disease,
as an object from discourse, that is multifaceted, because of its hybrid nature and
giving more opportunities and training to students.
Keywords: Olympiad, Story, Student, Author, Dialogism.
ix
RÉSUMÉ
Le présent travail a comme objectif présenter notre recherche en Master qui a
enqueté l'écriture dans les chroniques produites par les élèves du 9ème année du
Collège et le premier année du Lycée, participants du Projet Olympique de Langue
Portugaise “En écrivant l’Avenir” (OLPEF).Pour la réalisation, nous avons
sélectionné le Cahier du Professeur “ L’occasion fait l’ écrivant”, de la deuxième
édition de l’année 2010, avec le but d’évaluer de façon qualitative la base théorique
choisi comme modèle didactique du genre de la chronique et comment ce modèle
se décrit et présent le discurs dans un corpus de dix meilleurs chroniques écrites
par les élèves participants du projet.Ce concurs olympique est originaire du
programme “En écrivant l’Avenir”, développé par la Fondation Itaú Social entre 2002
et 2006.Actuellement, est réalisé par le Ministère de l’Éducation en partenariat avec
la Fundation Itaú Social et le Centre d’Études et Recherches en Éducation, Culture
et Action Communitaire (Cenpec). Les activités du projet Olympique se réalisent de
manière distinguée, dans les années impaires, il y a la préparation de professeurs
et, dans les par, la réalisation d’un concours de production de textes avec les élèves
des écoles publique de tout le pays, auquel les genres sélectionnées sont poèmes,
mémoires littéraires, chroniques et articles d’opinion. Dans ce contexte, nous
considéront important analyser comment le matériel Olympique de Langue
Portugaise directionne le projet d’enseignement pour le genre chronique, une fois
qu’étudier un genre de nature social hybride et voir comment il permet montrer sur
les aspects social extremement complexe a partir du regard singulier du jour à jour
est revelateur pour les pratiques scolaire, en plus, de répresenter de matériels
didactiques alternatives que dernièrement, ont du espace scolaire. Nos reflexions et
analyses sont lié à la théorie énoncé du discurs d’approche social-historique du
cercle de Bakhtin (1919,1924, 1929, 1952-1953) et dans la théorie de
l’enseignement et apprentissage de Vigotski (1934). A part cela, nous avons fait un
bref retrospecto sur la production textuel pour comprendre le processus didactique
du texte dans les cours de langue portugaise et sur quelques concepts de l’école de
Genève. À la lumière de la théorie énoncé discursive, nous cherchons apprendre,
d’une côté, le traitement didactique du matériel pour la cronique, pourtant, l’objectif
de ce matériel est de donner aux élèves une formation d’auteur pour ce genre et,
d’autre côté, le discurs dans le chroniques pour que nous puissions observer dequel
forme les élèves deviennent des auteurs. Dans notre analyse, nous avons constaté
que le Cahier Olympique a un dialogue avec le discurs oficiel (PCNLP, OCEM, MEC)
et les activités ne donnent pas au élève une formation sufisante pour qu’il soit un
sujet-auteur en chronique. Cette lacune peut être observé dans les productions,
parce que, en analisant les productions, les élèves n’ont pas réussi a être des
auteurs de chronique littéraire, mais de textes divers, en résultant ainsi genre
“autres”. Nous avons conclu, bien que le matériel est du genre chronique comme du
genre littéraire, nous croyons que la perpective du discurs peut possibiliter aux
élèves une vision plus vaste par rapport les chroniques, comme un objet du dircurs,
que présent de différentes facettes , donné à sa nature hybride et en donnant
l’opportunité d’une formation plus citoyenne aux étudiants.
Mots Clef: Olympique, Chronique, Élève, Auteur, Dialoguiste
x
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12
CAPÍTULO I .............................................................................................................. 16
O Círculo de Bakhtin e a arte da palavra viva ........................................................... 16
1.1
Ética e estética: para pensar a criação dos discursos ..................................... 18
1.2 O dialogismo e as vozes bakhtinianas: princípios .............................................. 27
1.3 Gêneros discursivos e a autoria .......................................................................... 34
CAPÍTULO II ............................................................................................................. 41
O Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa: Um olhar para a produção escrita 41
2.1 Escrita, diferentes perspectivas através do tempo, dentro dos estudos
linguísticos e da Linguística Aplicada ........................................................................ 43
2.2 A escrita nos PCNLP ........................................................................................... 48
2.3 Escrita e Autoria .................................................................................................. 53
2.4 Teoria Vigotskiana: Um enfoque sócio-histórico ................................................. 57
2.4.1 Vigotski e a escrita ........................................................................................... 60
2.4.2 Bakhtin e Vigotski na releitura da Escola de Didática de Genebra ................... 63
2.4.3.1 Os didáticos genebrinos e o gênero como megainstrumento ........................ 64
2.4.3.2 O gênero como megainstrumento e as capacidades .................................... 65
CAPÍTULO III ............................................................................................................ 68
Metodologia da pesquisa: compreendendo os dados ............................................... 68
3.2 A base metodológica para a coleta dos dados .................................................... 75
3.3 O primeiro corpus: o Caderno “A ocasião faz o escritor” ..................................... 77
3.4 O segundo corpus: as produções de crônicas dos alunos .................................. 79
3.5 A base metodológica para análise dos dados ..................................................... 81
CAPÍTULO IV ............................................................................................................ 83
A Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro: Um Olhar sobre o caderno
de crônicas “A ocasião faz o escritor” ....................................................................... 83
4.1 O Gênero Crônica ............................................................................................... 84
4.2
Da teoria à metodologia do Caderno “A ocasião faz o escritor” ...................... 96
4.3 Análise das Atividades do Caderno “A ocasião faz o escritor” .......................... 108
CAPÍTULO V ........................................................................................................... 130
xi
Um olhar sobre as vozes e a autoria na produção escrita de crônica da Olimpíada de
Língua Portuguesa .................................................................................................. 130
5.1 “O que nos dizem os textos dos alunos?”: apontamentos ................................. 132
5.2 Os textos dos alunos: entre o proposto e o realizado ....................................... 136
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 166
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 174
12
INTRODUÇÃO
A Academia, as diversas instituições de ensino, as Secretarias de Educação,
a partir da década de 80, perceberam uma necessidade de estudar e agregar
conhecimento sobre as políticas públicas educacionais, que apresentam um olhar no
fazer da contemporaneidade. Nesse sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) propõem redimensionamento em torno dos objetos de ensino previstos para a
Língua Portuguesa. Tal documento orienta os professores a compreender que o
ensino de português, por exemplo, não está voltado apenas para o ensino de regras
gramaticais, de produção textual apoiada apenas na tipologia ou mesmo centrar os
estudos em apenas um determinado gênero discursivo, mas que ele está
direcionado para as práticas sociais, nas quais os alunos deverão saber mobilizar
todo conhecimento adquirido na esfera escolar, por considerar que cabe à escola
oportunizar ao aluno uma formação cidadã, autônoma.
É importante salientar que apesar dos esforços envidados pelas políticas
públicas de ensino em prol da melhoria do ensino-aprendizagem da leitura e da
escrita, a escola contemporânea ainda não conseguiu sequer fazer com que os
alunos superassem dificuldades básicas ligadas ao domínio de estruturas mínimas
da língua escrita como normalização, comunicação e textualização quanto mais
dificuldades complexas como a tomada de uma postura dialógica, ancorada na
interação, na compreensão e na resposta ativa, que lhes permitiriam alçarem-se
autores de seus próprios textos.
Acreditamos que a linguagem é a mediadora para as diferentes práticas de
interlocução que o indivíduo estiver inserido. Dessa forma, a escola é o lugar onde
será possível mostrar aos alunos a importância do contexto de produção, recepção e
circulação para a compreensão dos enunciados concretos.
O estudo da natureza dos enunciados e dos gêneros discursivos é,
segundo parece, de importância fundamental para superar as
concepções simplificadas da vida do discurso, do chamado “fluxo
discursivo”, da comunicação, etc., daquelas concepções que ainda
dominam a nossa linguística. Além do mais, o estudo do enunciado
13
como unidade real da comunicação discursiva permitirá compreender
de modo mais correto também a natureza das unidades da língua [...]
o ouvinte ao perceber e compreender o significado do discurso,
ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição
responsiva: concorda ou discorda dele ( total ou parcialmente),
completa-o, aplica-o, prepara-o para usá-lo[...]
(BAKHTIN,2010,
[1952-1953/1979] p. 269-271).
Assim, a comunicação passa por uma unidade real e não como algo
convencional ou abstrato. Em vista disso, dizemos que nosso estudo busca
ressignificar, por meio da linguagem, o encontro do eu com o outro, procurando
compreender as vozes sociais que se fazem presentes nas diferentes relações
dialógicas entre o “eu” e o “outro”, precisamente, nas produções escritas dos alunos
e no material da Olimpíada da Língua Portuguesa, que tomamos como objetos de
investigação.
Ao assumirmos a interação social como concepção de linguagem, buscamos,
nesta pesquisa, analisar o referido material didático destinado a formação de alunos
autores, o qual, em certa medida, atende aos pressupostos dos PCN de Língua
Portuguesa (BRASIL, 1998) e as produções desses alunos, resultados da aplicação
do referido material. Esse material é o Caderno da Olimpíada “A ocasião faz o
escritor” destinado ao professor, cujo propósito é tornar os alunos autores de crônica
literária.
A Olimpíada originou-se do programa Escrevendo o Futuro, desenvolvido pela
Fundação Itaú Social entre 2002 e 2006. Atualmente, é realizado em parceria do
Ministério da Educação com a Fundação Itaú Social e o Centro de Estudos e
Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), cujo investimento
está em torno de 16 milhões e, no ano de 2008, ocorreu a primeira edição dessa
parceria em que seis milhões de alunos participaram. O projeto da Olimpíada é
bianual, quer dizer, nos anos ímpares, há formação de professores e, nos pares,
realização de um concurso de produção de textos dos seguintes gêneros: poemas,
memórias literárias, crônicas e artigos de opinião. Todos elaborados por alunos de
escolas públicas de todo o país. Durante o ano de premiação, os professores
recebem material de apoio para a realização de oficinas com os alunos em sala de
aula. A Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro ( OLPEF) é um
programa que desenvolve formações de educadores presenciais e a distância,
promove um concurso de textos, no qual alunos, professores e escolas são
14
premiados. Os alunos recebem prêmios como ( medalhas, livros e computadores)
por conta de suas produções. Os professores e suas respectivas escolas dos
autores dos textos vencedores também são premiados com os mesmos benefícios.
O Centro de Estudo e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária
(Cenpec) é o responsável pela coordenação técnica do projeto, pela elaboração dos
materiais, pela política de formação dos professores, entre outros. Desse modo, o
Cenpec busca o desenvolvimento de habilidades e competências com foco no
professor e também acredita que, por meio da ampliação do conhecimento por parte
de professores, os quais estarão bem preparados, esses docentes poderão
contribuir para o aprimoramento do ensino da escrita.
Para a elaboração do material da referida Olimpíada, a equipe realizou várias
pesquisas abarcando o que melhor se adequasse à realidade brasileira. Nesse
contexto, escolheram o modelo didático da Escola de gêneros de Genebra que
apresenta várias propostas de sequências didáticas1 para o ensino de atividades
escritas.
Nosso interesse em investigar o referido material e as produções dos alunos
deve-se às práticas cristalizadoras em torno do processo da escrita. Sabemos que a
produção escolar, em boa medida, fica restrita à sala de aula, cujo objetivo é
escrever, exclusivamente, para o professor. Dessa forma, o texto fica marcado pelo
monologismo, uma vez que não há um contexto de produção definido, que possa
orientar o querer dizer do aluno.
Considerando que tal material busca uma prática diferenciada para a
produção de texto, uma vez que o projeto de ensino dos Cadernos da Olimpíada
está organizado com base na metodologia da sequência didática. Essa metodologia
está fundamentada nas ideias didáticas da Escola Didática de Genebra, cujos
principais representantes no Brasil são o genebrino Schneuwly e o espanhol Dolz
(1994, 1996, 1997, 1998, 2001).
Assim, para compreensão de nosso estudo, esta pesquisa está dividida em
cinco capítulos.
1
É um conjunto de atividades ligadas entre si, planejadas para ensinar um conteúdo etapa por etapa.
Esse trabalho almeja que os alunos cheguem gradualmente ao domínio de determinado conteúdo ou
competência. (fonte material Pontos de vista).
15
No capítulo 1, O Círculo de Bakhtin e a arte da palavra viva, são
apresentados conceitos relevantes ao nosso trabalho, dentre eles, ético e estético, o
dialogismo e as vozes bakhtinianas, gêneros discursivos e a autoria.
O capítulo 2, O Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa: Um olhar para a
produção escrita, apresenta um panorama histórico acerca dos estudos da
Linguística e da Linguística Aplicada em relação à produção textual. Posteriormente,
discorremos sobre a teoria de Vigotski e finalizamos nosso estudo com a escola de
Genebra.
No capítulo 3, Metodologia da pesquisa: compreendendo os dados, é o
momento em que expomos o percurso de nossa pesquisa, os objetivos e as
questões de pesquisa, como também nossos corpora.
O capítulo 4, A Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro: Um
olhar sobre o caderno de crônicas “A ocasião faz o escritor”, analisará o material
destinado ao professor para trabalhar e orientar a produção de crônica para o aluno
do 9o ano do Ensino Fundamental e 1o ano do Ensino Médio.
No capítulo 5, Um olhar sobre as vozes e a autoria na produção escrita de
crônica da Olimpíada de Língua Portuguesa, apresentamos a análise das crônicas
dos alunos que participaram da Olimpíada de Língua Portuguesa. Neste capítulo,
buscamos desvelar se os alunos conseguiram alçarem-se autores de suas
produções. E, por fim, apresentamos nossas considerações finais.
16
CAPÍTULO I
O Círculo de Bakhtin e a arte da palavra viva
O enunciado concreto (e não a abstração linguística) nasce, vive e
morre no processo da interação social entre os participantes da
enunciação. Sua forma e significado são determinados
basicamente pela forma e significado e caráter desta interação
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926).
Neste capítulo 1, nosso objetivo é discorrer e refletir sobre alguns conceitos
do círculo de Bakhtin, pertinentes para pensar nosso objeto de pesquisa — a autoria
em textos de crônicas de alunos do ensino fundamental e médio de escolas
públicas, as quais foram escritas para o concurso de produção textual da Olimpíada
de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (2010). No bojo da concepção de
linguagem bakhtiniana, interessa-nos de perto os conceitos de ética e de estética e
de gêneros do discurso, com base nos quais retiramos nossas categorias de análise
como o dialogismo, as vozes e a autoria.
Para pensar a concepção de linguagem do círculo de Bakhtin, partimos de
uma asserção bastante clara presente nos escritos do grupo de que a realidade
fundamental da linguagem é a interação verbal. Por isso, a obra do círculo é
considerada um pensamento inovador e complexo, pois pensa a linguagem do ponto
de vista de seu uso real e não do ponto de vista ideal pensado por muitos
representantes da linguística formal e pelos gramáticos tradicionais.
A construção da concepção de linguagem como um fenômeno de natureza
concreta sustenta-se em contraposição, de certa forma, às proposições da
lingüística e da estilística tradicional, cujos pensamentos acerca da linguagem são
formulados de um ponto de vista abstrato e idealista respectivamente, denominados
pelo círculo de objetivismo abstrato e subjetivismo idealista.
17
A oposição do círculo de Bakhtin a essas duas formas de pensamento
linguístico recai principalmente sobre o fato de, por um lado, os representantes do
objetivismo abstrato desprezarem o papel do falante ao supervalorizar as formas da
língua como um enunciado neutro relacionado a um sistema linguístico autônomo e,
por outro lado, os propositores do subjetivismo idealista subestimarem a natureza
social da interação verbal em prol da expressão individual.
Com base na recusa dos dois tipos de pensamento acima apresentados, de
forma bastante sintética, o círculo de Bakhtin propõe, em contrapartida, uma
abordagem dinâmica e concreta da linguagem, apresentada como um fenômeno
complexo, pois é constituída pela articulação de diferentes pontos de vista: histórico,
sociológico, ético, ideológico e dialógico. Isso porque, a verdade da linguagem é o
seu acontecimento social por meio da interação verbal concretizada em enunciados
reais que respondem valorativamente a outros enunciados passados, presentes e
futuros numa postura responsável. Por isso, em “Marxismo e Filosofia da
Linguagem” (1929), Bakhtin/Volochinov afirmam que a:
[...] a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um
processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua
pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação
verbal, ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que
sua
consciência
desperta
e
começa
a
operar
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929, p. 108).
A radicalidade e a complexidade do pensamento bakhtiniano faz com que o
filósofo seja considerado, hoje, um dos principais pensadores do século XX 2. A
importância desse pensamento acerca da realidade da linguagem fez com que, a
partir do final do século XX, ele fosse considerado referência também para pensar
processos de ensino-aprendizagem em contextos de educação linguística escolar
aqui no Brasil, tanto em âmbito da academia quanto das políticas públicas de ensino
de língua materna. O interesse da academia pelo pensamento do círculo de Bakhtin
provocou as mudanças das políticas públicas de ensino de língua portuguesa,
resultando, inclusive, na elaboração dos documentos oficiais em fins da década de
2
Os escritos do círculo de Bakhtin não nos foram apresentado de forma cronológica, alguns artigos
só foram publicados por volta de vinte anos mais tarde. Existem materiais que alguns comentadores
têm dúvidas sobre sua autoria, se realmente foram escritos por Bakhtin ou por alguns dos seus
amigos do Círculo (Volochinov ou Medvedev).
18
90 (PCN) e a presença dessa concepção de linguagem nos documentos
retroalimentou a pesquisa.
Tendo em vista as inúmeras obras escritas por Bakhtin, para facilitar
posteriormente nossa análise, apresentaremos, neste trabalho, apenas os conceitos
da teoria bakhtiniana pertinentes para pensar os fundamentos desta pesquisa.
1.1 Ética e estética: para pensar a criação dos discursos
As bases da concepção de linguagem bakhtiniana já podem ser encontradas
nas preocupações filosóficas do autor em “Para uma filosofia do ato responsável”
(2010[1919-1924]), em que, ainda muito jovem, ele pensa o agir humano do ponto
de vista da alteridade, da interação constitutiva em que todo sujeito forma sua
identidade. Por estar sempre em todo lugar em relação com outro, dizemos mesmo
que se trata de um processo identitário e não de identidade, que dá ideia de posto e
acabado. É essa noção de agir responsável na alteridade que fundamentará, mais
tarde, o estudo da linguagem dentro de um contexto participativo.
Falar de ética e de estética, na perspectiva bakhtiniana, é pensar o agir do
homem do ponto de vista da condição humana que é ser ao mesmo tempo de ordem
natural e de ordem sócio-histórica. Essa condição dá ao homem o direito a dois
nascimentos, um biológico e outro social. O nascimento biológico permite ao homem
a entrada no mundo natural, mas a entrada na história humana passa pelo
nascimento social.
A vida social do homem implica sua inserção em atividades de interação
organizada em determinados espaços sócio-históricos e ideológicos de atuação
humana a partir das quais o indivíduo desenvolve a capacidade de interação sígnica
(produzir, interpretar, compreender textos e semioses), a qual lhe permite, por sua
vez, sua sociabilidade. A relação é um ponto forte e fundamental no pensamento
bakhtiniano e pelo fato de o domínio do signo coincidir com o ideológico, essa
relação é sempre compreendida e interpretada num horizonte de valores
compartilhados.
Assim, a vida social se constitui na alteridade, pois o vir-a-ser do humano (a
consciência do mundo, do outro e de si mesmo) está fundado na diferença em que o
“eu-para-mim” se constrói a partir do “eu-para-os-outros”, cuja unidade de ligação é
a posição axiológica (valor) (BAKHTIN, 2010[1920-24). Trata-se de um sujeito
19
relacional e a condição de apenas se constituir a partir da relação com os outros,
fundada na postura valorativa, é o que obriga o sujeito a ser responsável, isto é, a
agir deliberadamente. Esse agir-ato pode ser um pensamento, um enunciado, cujo
pronunciamento é uma exigência tendo em vista que, para o autor russo, somente a
natureza não necessita de responsabilidade, pois em seu âmbito não há atos
deliberados, mas acontecimentos imanentes (BAKHTIN, 2010[1919]).
O sujeito não apenas conhece ou desconhece as coisas do mundo, ele as
compreende, as interpreta, as valora, em outras palavras, ele pensa o mundo e o
pensa como necessidade de instauração de um lugar do qual ele responde ao outro.
Assim, o ato de pensar responde a uma necessidade ética, depreendida, aqui, como
o processo, o agir do sujeito no mundo dos acontecimentos da vida (nascer, viver...
morrer), fundamentada em obrigações e deveres concretos e ligada à realidade per
se. (em si).
Do ponto de vista acima explicitado, o ato humano não pode ser
compreendido como algo abstrato, pois se o sujeito se constitui na relação com os
outros e adquire sua capacidade de compreender, interpretar, produzir, valorar
textos a partir da interação organizada socialmente, o ato responsável só pode ser
entendido do ponto de vista concreto relacionado a outros atos de outros sujeitos
concretos, por isso, relacionar ao outro o vivenciado é condição obrigatória de uma
compenetração eficaz e do conhecimento tanto ético quanto estético (BAKHTIN,
2010[1924], p. 25).
Fundamentados em tal perspectiva, o agir humano não se sustenta num
dever abstrato e generalizado (moral) nem na ação individual autárquica, mas
ambas as dimensões se unem e se atualizam no ato singular do sujeito
sociossituado (que age responsavelmente valorando as coisas do mundo e
respondendo aos outros).
Não existem normas morais determinadas e válidas em si, mas
existe o sujeito moral com uma determinada estrutura (não,
obviamente, uma estrutura psicológica ou física), e é sobre ele
que necessitamos nos apoiar: ele saberá em que consiste e
quando deve cumprir o seu dever moral ou, mais precisamente,
o dever (porque não existe um dever especificamente moral)
(BAKHTIN, 2010 [1919], pp. 47-48).
20
O sujeito do ponto de vista do pensamento bakhtiniano ocupa na vida singular
um lugar e um tempo únicos, irrepetíveis, irrevogáveis e insubstituíveis, de onde ele
vê o mundo e os outros, um lugar onde só ele pode pensar e dizer aquilo que pensa,
impensável por ninguém mais, nos termos de Bakhtin “impenetrável da parte de um
outro” (2010[1919-24], p.96). Por isso, o sujeito, cuja existência não tem álibi, livrase do individualismo indiferente e da determinação de um social abstraído pela sua
ação responsável e responsiva situada em um dado domínio da cultura. Assim, os
acontecimentos do mundo são mediados pelo agir situado e valorativo do sujeito que
os significa de uma posição concreta. Sobral, ao refletir sobre a concepção ética de
Bakhtin, observa que
O ponto alto da proposta de Bakhtin é alegar que a validade das
decisões éticas depende não de abstrações, mas da articulação,
junção, entre regras éticas (se assim se pode dizer) e as
circunstâncias concretas da vida concreta, do processo situado de
decisão, do agente: o sujeito, ao agir, deixa por assim dizer uma
“assinatura” em seu ato e se responsabiliza por ele perante a
coletividade de que faz parte (e, em última análise, perante a
humanidade como um todo!) (SOBRAL, 2009, p. 30).
Portanto, não podemos restringir o conceito de ética, nos termos
bakhtinianos, a “agir corretamente” ou a “ter um bom comportamento” de acordo
com as regras sociais pré-estabelecidas, mas pensá-la enquanto uma postura
necessária, uma exigência de agir no mundo na responsabilidade e na diferença, da
qual não conseguimos fugir. Entretanto, no mundo dos acontecimentos da vida,
campo próprio do ato ético, o sujeito está sempre inacabado, pois a uniocorrência
nunca repetível e aberta da vida vivida não comporta solução e fixidez uma vez que
o sujeito está em constante vir-a-ser em um presente construído na memória do
passado naquilo que é pré-dado e na memória do futuro que define as escolhas no
horizonte de possibilidades.
Segundo
Bakhtin
(2010[1920-24]),
o
acabamento
responde
a
uma
necessidade estética de totalidade, a qual só pode ser dada em outro plano — o
plano da realidade criada ou discursiva. Vale a pena assinalar que, apesar de
Bakhtin ter se dedicado a pensar a questão do acabamento estético (arte), todo
discurso envolve alguma espécie de transfiguração do mundo vivido, a qual vai
variar apenas em termos de grau e de tipo (SOBRAL, 2009). Essa compreensão é
importante uma vez que o nosso foco enquanto objeto de análise está voltado para a
21
forma discursiva crônica, a qual tem seu lugar discursivo instaurado entre o literário
e o jornalístico.
No plano do discurso literário, Bakhtin (2010[1920-24]) assinala que o
acontecimento vivido no mundo ético (já em si impregnado por diferentes avaliações
sociais tendo em vista a complexa atmosfera valorativa envolvendo a vida) é
reconstituído em outro plano (o da obra) por meio da atividade estética que cria
objetos artísticos, por isso, o autor afirma que Quando o homem está na arte não
está na vida (BAKHTIN, 2010[1919-24]). É importante ressaltar que, para Bakhtin, a
força propulsora dos atos estéticos, situados no plano da criação discursiva, é a
postura valorativa em face de outras posturas valorativas, em outras palavras, o ato
estético/cultural move-se em um ambiente valorativo intenso de inter-relações
responsivas.
A atividade estética não opera a transfiguração direta da existência em si,
mas é um recorte valorativo dessa existência que é refratado no objeto estético.
Assim, aspectos da vida vivida são isolados e recortados de seu acontecimento
uniocorrente, organizados e reapresentados em um novo plano de sentidos e
valores sígnicos, de maneira refletida, pensada, elaborada, construindo um todo
autocontido e acabado (FARACO, 2005). A tarefa de organizar e reapresentar o
mundo da vida em outro plano discursivo mais elaborado implica outro aspecto
fundamental da concepção de estética bakhtiniana — o olhar de fora — definido por
Bakhtin (2010[1920-24]) como o excedente de visão de que precisamos para
enxergar o todo uma vez que a atividade estética pressupõe duas consciências não
coincidentes.
Quando contemplo no todo um homem situado e fora e diante de
mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não
coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse
outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e
saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode
ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar — a
cabeça, o rosto, e sua expressão —, o mundo atrás dele, toda uma
série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação
de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a
ele. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na
pupila dos nossos olhos (BAKHTIN, 2010[1920-24] p. 21).
Assim, o estar fora do vivido contemplado é condição imprescindível para o
ato de acabamento, uma vez que só podemos enxergar o todo no outro e nunca em
22
nós mesmos. A atividade estética implica dois movimentos importantes, executados
em momentos diferentes e unidos no momento da criação: a empatia e a exotopia.
Para Bakhtin, a compenetração ou empatia é o primeiro momento da atividade
estética e consiste no vivenciamento, no posicionamento do lugar do outro. Ao
exemplificar a realização desse movimento tendo como pivô a contemplação de um
indivíduo que sofre, encontramos a seguinte orientação
Devo adotar o horizonte vital concreto desse indivíduo tal como ele o
vivencia; faltará, nesse horizonte, toda uma série de elementos que
me são acessíveis a partir do meu lugar... sua expressividade
externa é o caminho através do qual eu penetro em seu interior e daí
quase me fundo com ele (BAKHTIN, 2010[1920-24] p. 24).
Bakhtin pensa, então, se a compenetração é suficiente para dar o necessário
acabamento ao outro, o que conclui com uma negativa. A empatia nos leva ao
vivenciamento assimilado em termos de ato ético puro ou patológico (tomar para si
próprio o sofrimento alheio) da questão e sua exteriorização, desse ponto, tem
função apenas comunicativa. O acabamento requer o distanciamento, o afastamento
radical do objeto vivenciado, precisamente, um olhar exotópico.
O processo exotópico se realiza quando, repleto desse olhar do outro, retorno
a mim mesmo e firmemente coloco em ação o excedente de visão que o outro me
proporcionou, atualizando o que penso sobre o mundo e sobre mim. Sem esse
retorno, nós ficaríamos somente no chamado refletir, ou seja, somente
reproduziríamos o já dito, sem refratar (transformar, atualizar), e isso não contribui
para a constituição do outro. A posição exotópica é um lugar a partir do qual o
sujeito enxerga o mundo e seus acontecimentos, o discurso, e que lhe permite certo
deslocamento de sua própria condição neste mundo e a percepção de elementos
não acessíveis quando totalmente próximo dessa condição. Por isso, segundo o
filósofo russo
A atividade estética começa propriamente quando retornamos
a nós mesmos e ao nosso lugar fora da pessoa que sofre,
quando informamos e damos acabamento ao material da
compenetração; [...] [pela via] do sofrimento de um dado
indivíduo [...], que agora tem uma nova função, não mais
comunicativa e sim de acabamento [...] (BAKHTIN, 2010,
[1924] p. 25).
23
Assim, a atividade estética começa quando, situados em contextos precisos e
singulares, contemplamos aspectos e parcelas do conteúdo do mundo vivido e o
transfiguramos a partir do olhar valorativo que lançamos sobre essa realidade
experienciada a qual é trabalhada e plasmada em um material específico, no nosso
caso, o linguístico, criando determinados objetos socioculturais numa dimensão
discursiva (enunciados/gêneros). Portanto, o todo acabado une de forma integrada
e indissolúvel atos éticos (vida, o processo) e estéticos (linguagem, conteúdo) por
meio da posição ativa de um centro valorativo.
Partindo de tal perspectiva, podemos observar que o centro valorativo ou
princípio criativo é fundamental para entender a criação estética (ou gênero
discursivo). Esse princípio é encontrado justamente na relação do autor com o
conteúdo do seu dizer e com o ouvinte, levada a termo em um lugar e tempo únicos,
o que Bakhtin denomina de autoria. Para entender melhor o processo de criação
estética ou discursiva, é interessante refletirmos um pouco sobre os elementos
constituintes dessa relação tripla.
Em relação ao autor, Bakhtin (2010[1920-24]) faz uma distinção entre autorpessoa e autor-criador, cujo entendimento é importante para a compreensão da
criação estética. O filósofo russo observa que não se pode confundir o autor-pessoa
— o escritor, o artista, a pessoa física (o elemento do acontecimento ético e social
da vida) — com o autor criador — uma posição axiológica ativa e estruturadora do
objeto discursivo (o princípio criador). Bakhtin afirma que o autor-pessoa pode ser,
às vezes, importante para entender o autor-criador, mas não é seu determinante.
Este segundo autor (autor-criador) é um elemento constituinte e imanente do todo
estético, uma instância de produção do discurso.
Segundo Faraco (2005), o autor-criador, na perspectiva bakhtiniana, exerce
uma função estético-formal criadora de objetos estéticos/discursivos e sua
característica principal está em materializar certa relação valorativa com o outro e
seu mundo (o conteúdo do objeto [o herói]) (BAKHTIN, 2010[1920-24]) e o ouvinte
(destinatário do objeto) (VOLOCHINOV, 1926), enquanto agente estruturador de
totalidades que une intrinsecamente no objeto estético/discursivo elementos do
contexto sócio-histórico e cultural (o conteúdo) com determinado material e forma (a
linguagem e as formas de concepção baseadas nas formas de interlocução).
Podemos dizer que a atividade criadora é um ir e vir incessante ao “mundo e
suas mazelas” (espaço ético) e um retorno a si mesmo constituindo formas próprias
24
de dizer (espaço estético). Bakhtin em “O autor e a personagem” (2010[1920-24])
observa que não conseguimos compreender o objeto estético/discursivo com base
nas declarações do autor-pessoa acerca do processo de sua criação porque a
posição axiológica, que dá acabamento ao objeto, é ativa, mas não é determinada a
priori, sendo assim, ela não pode ser encontrada em partes do objeto, no conteúdo
ético e social, por exemplo. Dessa forma, onde podemos encontrar o princípio
criador do objeto estético/discursivo? Segundo Bakhtin, ele está no todo do objeto
enformado uma vez que
[...] o autor cria, mas vê sua criação apenas no objeto que ele
enforma, isto é, vê dessa criação apenas o produto em formação e
não o processo interno psicologicamente determinado. São
igualmente assim todos os vivenciamentos ativos: estes vivenciam o
seu objeto e a si mesmos no objeto e não no processo de seu
vivenciamento; vivencia-se o trabalho criador, mas o vivenciamento
não escuta nem vê a si mesmo, escuta e vê tão-somente o produto
que está sendo criado ou o objeto a que ele visa (BAKHTIN,
2010[1920-24, p. 05).
Conforme demonstra a citação, o autor-criador não é o autor empírico e nem
o conteúdo do objeto estético/discursivo é mero reflexo do mundo vivido, pois, se
assim fosse, como observa Sobral (2009), a linguagem seria representação direta da
realidade vivida e o objeto expressão subjetiva do autor, na atividade estética, tratase de mundo e autor discursivo. O autor-pessoa contempla o conteúdo do mundo
social valorado numa posição de fronteira a partir da qual ele escolhe uma
orientação axiológica (autor-criador) à qual entrega a construção do objeto
estético/discursivo. Mais tarde, Bakhtin afirmará que o artista/autor tem o dom da
fala indireta, pois ele age como um dramaturgo que distribui todas as palavras a
vozes dos outros (outras posições sociais valorativas), inclusive a imagem do próprio
autor-criador.
Toda voz autenticamente criadora sempre pode ser apenas uma
segunda voz no discurso. Só a segunda voz — a relação pura —
pode ser até o fim desprovida de objeto, sem abandonar a sombra
substancial figurada. O escritor é aquele que sabe trabalhar a língua
estando fora dela, aquele que tem o dom do falar indireto (BAKHTIN,
2010[1959-61], 315).
25
O trabalhar a linguagem fora dela ou o estar fora, como podemos observar,
retoma a questão do excedente de visão fundamental para engendrar o todo
estético/discursivo a partir da posição ativa de uma instância criadora, que
materializa no objeto estético/discursivo a relação que mantém com o conteúdo do
mundo vivido e com o ouvinte/destinatário em termos do que este outro/destinatário
pensa acerca de sua relação com o conteúdo do objeto. É interessante frisar, assim,
que esse processo de tessitura e de endereçamento corresponde ao que
denominamos anteriormente de autoria, a qual só pode ser encontrada no centro de
organização e de interseção de planos “Os diferentes planos distam em diversos
graus deste centro do autor” (BAKHTIN, 2010[1930-35], p. 370).
Observamos que Bakhtin refere-se a planos (no plural), o que significa que há
outros planos além do conteúdo do objeto estético. Para Bakhtin, todo objeto
estético/discursivo implica um conteúdo, uma forma e um material com que o autor
trabalha. O conteúdo, como já dissemos, diz respeito aos atos éticos e sociais
humanos, a forma diz respeito à maneira de organizar e compor os discursos e o
material, no caso do discurso, é a linguagem.
O objeto discursivo, na concepção bakhtiniana, possui três momentos
articulados: o momento de construção do objeto estético, o momento da forma que
organiza o conteúdo num dado material, orientada pela relação axiológica do autorcriador com o conteúdo e o destinatário e o momento de elaboração do material que
funda o artefato ou a obra exterior. Assim, o primeiro diz respeito às múltiplas teias
de relações valorativas socioculturais manifestas na atividade estética, o segundo é
a forma de composição do conteúdo servindo-se do material enquanto o terceiro diz
respeito ao aparato técnico de realização do objeto estético.
O produto resultante da articulação dos três momentos acima mencionados
constitui o que Bakhtin (2010[1930-35]) denomina de totalidade ou forma
arquitetônica. Em outras palavras, a arquitetônica é o conteúdo valorativamente
estruturado pelo autor-criador numa certa composição realizada num certo material
(FARACO, 2011). Bakhtin distingue, assim, forma arquitetônica de forma
composicional a fim de esclarecer a confusão estabelecida entre as duas por parte
da estética material. Para Bakhtin, as formas arquitetônicas são
[...] as formas dos valores morais e físicos do homem estético, as
formas da natureza enquanto seu ambiente, as formas do
26
acontecimento no seu aspecto de vida particular, social, histórica
etc.; [...] são as formas da existência estética na sua singularidade
(BAKHTIN, 2010[1920-24], p. 25).
Já as formas composicionais são apresentadas como as que
[...] organizam o material [e] têm um caráter teleológico, utilitário,
como que inquieto, e estão sujeitas a uma avaliação puramente
técnica, para determinar quão adequadamente elas realizam a tarefa
arquitetônica (BAKHTIN, 2010[1920-24], p. 25).
Como podemos perceber pelas citações acima, as formas arquitetônicas
determinam a escolha das formas composicionais adequadas à perspectiva em que
o conteúdo do objeto estético está ordenado. O autor russo apresenta como
exemplo a forma da tragédia, forma arquitetônica do caráter trágico de um
acontecimento, que vai procurar a forma dramática (diálogo, desmembramento em
atos, etc.) como sua realização composicional mais adequada. Encontramos
também os exemplos das perspectivas líricas, cômicas, heroicizantes, do tipo e do
caráter como formas arquitetônicas que podem ser realizadas por formas
composicionais que se mostrarem mais adequadas como o poema, o conto, a
novela, romance etc.
O autor russo ressalta, entretanto, ser impossível a forma arquitetônica
realizar-se sem a forma composicional ainda que aquela possa se realizar
composicionalmente de diversas maneiras. Assim, a forma arquitetônica e a forma
composicional ligam-se constitutivamente, integrando a si, as particularidades do
material. Além do problema da enformação do objeto, há também o problema da
apropriação da linguagem e de sua superação no conjunto estético/discursivo.
Bakhtin (2010[1920-24]) diz que todo objeto estético/discursivo precisa sempre
superar o material como um escultor supera a resistência do mármore, por exemplo.
Assim, além de ser preciso se apropriar da linguagem em sua concreticidade,
isto é, em seu uso real, a forma material precisa transpor a língua situada para outro
plano valorativo em que está estruturando uma determinada forma arquitetônica e
composicional. O autor-criador, ao selecionar os elementos do material em termos
fônicos, sintáticos, referenciais, semânticos etc., não o faz do ponto de vista da
gramática, do dicionário, mas dos usos desses elementos nos contextos da vida
(FARACO, 2011). Isso porque a atividade estética implica um autor-criador envolvido
27
com um plano ou projeto discursivo que seleciona, determina, constrói e dá
acabamento a um todo de sentido. Nesse sentido, o autor-criador não alinhava
palavras, frases, estrutura períodos ou até mesmo capítulos aleatoriamente, este
trabalho é orientado pelo projeto discursivo ou querer dizer do autor.
Acreditamos que as correlações entre conteúdo, material e forma e a
distinção e vinculação entre formas arquitetônicas e formas composicionais podem
nos auxiliar a entender a questão da concepção dos gêneros em sua relação com o
enunciado concreto e suas formas de textualização. Além do mais, ainda que
Bakhtin e seu círculo tenham pensado mais a relação ético-estética no discurso
artístico-literário, é interessante observar, conforme pontua Sobral (2009), que todo
discurso implica alguma espécie de transposição do mundo ético, variando apenas o
grau e o tipo.
Mais tarde, Bakhtin e seu círculo vão redimensionar também esse
pensamento acerca da linguagem para discutir sua concepção com a própria
Linguística (1929), para pensá-la como o lugar de encontro das múltiplas e
heterogêneas vozes sociais (1930-34) e para propor a noção de gêneros do discurso
e de enunciado concreto (1952-53). As noções de ética e estética e sua vinculação
constitutiva a partir da relação sociossituada entre um eu e outro nos fundamentarão
para pensar um princípio bastante elevado ao pensamento do círculo de Bakhtin: a
natureza dialógica da linguagem ou simplesmente o dialogismo e suas diferentes
facetas como o conceito de vozes.
1.2 O dialogismo e as vozes bakhtinianas: princípios
Na obra Marxismo e filosofia da linguagem (1929), Bakhtin/Volochinov
expõem de forma bastante sustentada a filosofia da linguagem na concepção do
círculo bakhtiniano, cuja pedra conceitual é o dialogismo. Segundo os autores, o
falante utiliza-se da língua sempre em contextos concretos onde o que importa não
são os formatos linguísticos padronizados, mas o signo sempre mutável, que
acompanha cada situação social em que é utilizado. Por isso, a linguagem não se
constitui apenas em um sistema abstrato, nem tão pouco é monológica e individual,
mas responde a diálogos anteriores e presentes e abre possibilidades para outros
dizeres no devir.
28
Para se conseguir uma visão global da linguagem, Bakhtin vai definir como
porta de entrada para o estudo da linguagem não o conhecimento acerca das regras
sintáticas, léxicas ou normas gramaticais, mas o uso desses elementos em
contextos particulares. Clark e Holquist (1998) apontam que a estratégia adotada por
Bakhtin/Volochinov (1929) para explicar o funcionamento da linguagem do ponto de
vista do uso que dela faz o falante em situações específicas é por em foco o único
traço universal presente na variedade de contextos possíveis: o lugar constituído
pelo falante e seu destinatário. Para os linguistas americanos, essa estratégia
resolve:
[...] a velha e aparentemente intransponível dicotomia entre as
feições obviamente sistemáticas da linguagem, como a sintaxe, a
gramática ou os significados relativamente fixos das palavras, e seus
contextos não sistematizáveis, que interagem com tais aspectos
estáveis em qualquer conversação efetiva, reduzindo as diferenças
entre eles a outro conjunto de diferenças, as quais ocorrem entre
locutores específicos em situações particulares (CLARK; HOLQUIST,
1998, p. 235).
O apontamento dos linguistas americanos demonstra a importância do
contexto extraverbal na perspectiva linguística do círculo. Bakhtin (2010 [1952-53])
explica, por exemplo, que na comunicação cotidiana, as formas comunicativas são
mais diretamente dependentes dos contextos, já a comunicação institucionalizada
possui certa autonomia, em termos, do contexto extraverbal que pode ser
recuperado, por outro lado, por sua plasmação no próprio material verbal.
Para Bakhtin/Volochinov (1926), o contexto extraverbal se explica pela interrelação de três fatores: o espaço comum dos interlocutores (o lugar); o
conhecimento partilhado da situação (a temática); a avaliação comum desta situação
(valoração). Esses elementos não determinam de forma mecânica as formas
comunicativas, mas:
A situação se integra ao enunciado como uma parte constitutiva
essencial da estrutura de sua significação. Consequentemente, um
enunciado concreto [...] compreende duas partes: [1] a parte
percebida ou realizada em palavras e (2) a parte presumida. É nesse
sentido que o enunciado concreto pode ser comparado ao entimema.
[...] Julgamentos de valor presumidos são [...] não emoções
individuais, mas atos sociais regulares e essenciais. Emoções
individuais podem surgir apenas como sobretons acompanhando o
tom básico da avaliação social. O “eu” pode realizar-se verbalmente
29
apenas sobre a base do nós (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926, p. 910).
A citação acima além de nos dar uma ideia de como o contexto extraverbal se
faz presente nas formas comunicativas aponta também para a importância da
valoração social na constituição dos enunciados verbais, que nas interações
cotidianas vai se marcar pelo tom de voz e nas institucionalizadas pelas marcas
estilísticas. É interessante observar que o índice de valor está sempre orientado
para o “outro”, pois, por meio da entonação, as pessoas exprimem um juízo acerca
da temática objetificada no discurso.
Reafirmamos que o Círculo de Bakhtin tinha sempre em vista um pensamento
concreto acerca da linguagem assentada na relação entre um “eu” e um “outro”.
Poderíamos dizer que essa guinada visada pelo círculo dá vida à linguagem, torna-a
humana, pois coloca o homem social no centro da organização e do funcionamento
da linguagem. Esse entendimento baliza a construção do conceito de dialogismo
que, a nosso ver, constitui a arquitetônica do projeto discursivo de quaisquer dizeres,
isso porque nossos discursos estão sempre ligados a outros discursos numa relação
dialógica contínua.
Assim, o dialogismo não deve ser compreendido apenas como referente à
linguagem, mas também aos indivíduos. Ao dizermos isto, estamos considerando
que, ao enunciar, o indivíduo apóia-se em outros discursos para constituir-se, quer
dizer, esse “eu” está constituído por uma coletividade, os “outros”.
A partir dessas ideias, o pensador russo completa que a marca do enunciado
(unidade da comunicação verbal) é a “alternância dos sujeitos do discurso, que cria
limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida
[...]” (BAKHTIN, 2010[1952-53/1979], p. 275). Assim, a cada situação de interação,
ouvimos os discursos respondendo uns aos outros e nisso consiste o dialogismo da
linguagem — resposta aos discursos dos outros. O caráter relacional da linguagem
nos encaminha para outro conceito no que se refere aos diálogos com o outro tendo
em vista a afirmação do autor de que, na comunicação discursiva, “os ecos de
alternância dos sujeitos do discurso e das suas mútuas relações dialógicas se
ouvem nitidamente” (BAKHTIN, 2010[1952-53/1979], p. 299).
Bakhtin (2010[1934-35]) trabalha um conceito muito importante que incide
diretamente na natureza dialógica da linguagem: o de vozes do discurso. Nessa
30
perspectiva, o dialogismo da linguagem é estruturado a partir da articulação de
diferentes vozes instauradas na produção discursiva. A respeito das vozes, o autor
vai defini-las como sentidos sociais, visões de mundo ou pontos de vista
objetificados nos discursos (BAKHTIN, 2010 [1959-61]. As relações dialógicas são
sentidos divididos entre vozes diferentes, isto é, implicam sempre a presença
inerente de outras posições ou sujeitos integrais socioculturalmente situados. Por
isso, para Bakhtin:
[...] não existem palavras sem voz, palavras de ninguém. Em cada
palavra há vozes às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase
impessoais (as vozes dos matizes lexicais, dos estilos, etc.), quase
imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente
(BAKHTIN, 2010[1959-61], p. 330)
Com base na citação acima, podemos afirmar que a alteridade ou outridade
na concepção discursiva bakhtiniana se radicaliza, pois os lugares enunciativos se
desdobram em multiplicidades de vozes ouvidas em um mesmo lugar: o
texto/discurso. A esse respeito, Bakhtin (2010[1959-61]) afirma que pode haver um
número ilimitado de participantes do discurso, pois os sentidos estão divididos em no
mínimo duas vozes e uma terceira em potencial nas criações verbais. Em razão
disso, precisamos aprender a ouvir as vozes dos textos/discursos.
Assim, uma das vozes a se ouvir no texto é a do destinatário suposto, cuja
compreensão responsiva o autor do discurso procura e antecipa através da forma e
do conteúdo do que é dito.
Podemos também ouvir a voz do destinatário real que lê efetivamente o texto.
Ainda que este seja uma instância posterior à escrita, Amorim (2002) observa que
ele também participa da construção do sentido uma vez que o trabalho de
interpretação resulta em um segundo texto em relação ao qual o primeiro poderá
fazer sentido. Além disso, o fato de este destinatário se constituir em uma instância
posterior não o anula enquanto elemento interior do discurso uma vez que a vida de
um texto reside justamente em sua circulação.
Bakhtin também se refere à voz de um supradestinatário. Este se diferencia
do destinatário suposto no que diz respeito ao tempo e ao espaço do texto. O
destinatário suposto insere o texto em um tempo e espaço imediatos, enquanto o
supradestinatário projeta o texto na grande temporalidade imprevisível, futura, em
uma dimensão universalizante onde o texto poderá ser recepcionado e até mesmo
31
reconstruído de outra forma. Bakhtin observa que este supradestinatário funciona
como uma “escapatória para a escuta” uma vez que, sendo a natureza da palavra de
querer sempre ser ouvido, esse supradestinatário funcionaria como um valor, uma
verdade estabelecida (a crença, a verdade da Ciência, etc.). Nisso reside a
importância dessa instância cuja compreensão idealmente verdadeira o autor espera
a fim de fugir da limitação da compreensão imediata.
Outra instância da qual se pode ouvir a voz é o lugar do objeto discursivo.
Isso porque, ele não se torna objeto do discurso pela primeira vez em um dado
enunciado nem um dado autor é o primeiro a falar sobre ele. Para Bakhtin
(2010[1952-53]), o objeto chega ao autor já ressalvado, contestado, valorado e
avaliado de diferentes modos, ou seja, encontra-se impregnado de apreciações
ideológicas de outros lugares discursivos. O objeto discursivo é um palco de
encontro de opiniões, visões de mundo, correntes, teorias etc., por isso, o autor diz
que o discurso é uma arena e o sentido não é um lugar confortável.
Outra voz que precisa ser ouvida, no texto, é da instância do autor-criador.
Bakhtin (2010[1934-35]) insiste que é preciso distinguir a voz do autor representado
no discurso da do autor-criador. Para o filósofo russo, o autor representado (aquele
que relata o acontecimento) faz parte da criação do autor-criador, já este não pode
ser encontrado no que relata o autor representado, mas na tangente do espaçotempo representados, no ponto crucial onde convergem forma e conteúdo do texto,
precisamente na sua própria atividade.
Amorim (2002) pontua que a voz da instância do autor-criador pode ser
encontrada quando se consegue identificar a relação entre o que é dito e a forma
como foi dito uma vez que, como um lugar enunciativo, a voz do autor traz em si
sempre um olhar, um ponto de vista que articula o texto do início ao fim. A autora
ainda acrescenta que essa distinção é condição para o trabalho de análise do texto,
pois, se diante de um discurso, pensa-se que todo o dito está presente no
enunciado, resulta-se em nada para analisar.
Ainda ligadas à configuração do conceito de vozes, deparamo-nos com duas
questões centrais na obra do círculo de Bakhtin: a questão do discurso monológico e
a questão do discurso dialógico. O primeiro pressupõe uma orientação univocal e o
segundo plurivocal. Para se pensar essas questões que poderiam apontar para uma
contradição no pensamento bakhtiniano tendo em vista a condição de possibilidade
32
de todo discurso, Amorim (2002) observa que é preciso visualizar dois níveis de
análise na obra bakhtiniana: um histórico-orgânico e outro composicional.
O primeiro diz respeito à condição de possibilidade de todo discurso que é de
ser constitutivamente dialógico (e aqui o termo monológico não faz sentido), o
segundo refere-se a formas de escrita e composição dos textos, processo pelo qual
as vozes podem se deixar mais ou menos ouvir. Neste nível, a forma como o texto é
escrito e composto pode deixar aflorar mais vozes ou apagar a dimensão de
alteridade do discurso para deixar emergir uma única voz: a do autor. Naquele, a
configuração do discurso é feita de forma que se deixe ouvir mais plenamente a
orquestração de vozes que o estruturam.
Brait (1994, p. 14-15), ao perseguir o conceito de vozes na obra de Bakhtin,
afirma que a bivocalização é um fenômeno comum ao discurso e descarta qualquer
possibilidade de univocalização, por isso, as palavras vindas de outrem “tecem o
discurso individual de forma que as vozes – elaboradas, citadas, assimiladas ou
simplesmente mascaradas – interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a ficar
nas sombras autoritárias de um discurso monologizado”.
Do ponto de vista acima explicitado, as formas de discurso monológico são
importantes no trabalho de análise para auxiliar a entender os discursos dogmáticos,
por exemplo. Amorim (2002, p. 12), ao pensar a questão das vozes e do silêncio no
texto, observa que, sendo os textos sempre híbridos, na análise, “o interessante é
poder identificar em que lugar ele é monológico e em que outro ele é dialógico, e
quais são os efeitos de sentido que essa disposição de vozes produz”.
Dimensionado dessa maneira, evitaríamos reduzir o conceito de vozes à condição
de citatividade como muitas vezes é feito, conforme pontua Brait (1994).
A
intensidade do conceito de vozes, em Bakhtin, reside na tensão interior à palavra do
indivíduo e, conforme sugere Amorim (2002), para ouvi-las, é preciso silenciar todo
diálogo exterior, aspecto que o diferencia de uma abordagem interacionista.
Podemos reafirmar que a realidade da linguagem são os acontecimentos
concretos ligados entre si por relações dialógicas de sentido subjacentes às quais
ouvimos sempre ressonâncias de múltiplas vozes. As relações dialógicas possuem
diferentes graus que devem ser considerados em sua especificidade. Elas podem
ser intencionais quando, por exemplo, confrontamos autores que não se leram, mas
cujos discursos possuem pontos de contatos. Podem ser também não intencionais
na forma de múltiplas vozes que habitam o discurso interno do sujeito, determinando
33
um dialogismo incessante uma vez que os elementos históricos, sociais, culturais e
linguísticos atuam na formação da subjetividade do sujeito e afloram dialogicamente
em suas manifestações discursivas.
Chegamos a um ponto da dimensão de vozes, depreendidas aqui como
percepções de mundo realizadas através do discurso, bastante importante para
pensarmos sobre as formas de transmissão ou assimilação da palavra do outro.
Bakhtin (2010[1934-35], pp. 142-144) define duas posturas ideológicas de
apropriação da palavra alheia: a palavra autoritária e a palavra internamente
persuasiva.
O autor menciona a palavra do pai, da política, da religião, da moral, dos
adultos, dos professores como autoritária, cuja característica é a exigência de
reconhecimento incondicional em detrimento da compreensão e assimilação livre em
nossas próprias palavras. Além disso, essa postura não permite nenhum jogo com o
contexto que a enquadra, adentrando a consciência verbal como uma massa
compacta que exige confirmação ou recusa total.
Já a palavra persuasiva é definida como carente de e avessa à autoridade, às
vezes, desconhecida da opinião pública, da ciência, da crítica. Ela aparece com o
surgimento do trabalho independente e seletivo do pensamento, momento em que
se separa da palavra autoritária imposta e das indiferentes que não nos tocam. A
importância da palavra interiormente persuasiva consiste em despertar o
pensamento para a autonomia e por funcionar num inter-relacionamento tenso e
conflituoso entre o sujeito e as outras palavras persuasivas bem como por não ser
conhecida, está permanentemente aberta a novas revelações semânticas em cada
novo contexto dialógico (BAKHTIN, 2010[1934-35], 145-6). Assim, assumir uma
perspectiva dialógica é poder ensinar e aprender com esse outro, ser dialógico é
apreender o mundo em constantes mudanças, pois vivemos no pensar, agir e fazer
em que nada se conclui por completo, sempre há possibilidade de modificar,
melhorar, relacionar e criar novos sentidos.
Anteriormente, referindo-se à educação linguística, Bakhtin vai afirmar que
O ensino de disciplinas verbais conhece duas modalidades básicas
escolares de transmissão que assimila o discurso de outrem (do
texto, das regras, dos exemplos): “de cor” e “com suas próprias
palavras” [...] Esta segunda modalidade de transmissão escolar da
palavra de outrem “com nossas próprias palavras” inclui toda uma
série de variantes da transmissão que assimila a palavra de outrem
34
em relação ao caráter do texto assimilado e dos objetivos
pedagógicos de sua compreensão e apreciação (BAKHTIN,
2010[1934-5] p. 142).
Gostaríamos de, com base na citação acima, fechar essa seção
questionando-nos sobre como e qual tem sido a forma de recepção da palavra/texto
na escola: “de cor” ou “com suas próprias palavras”?
Se nos basearmos na tradição do discurso pedagógico cuja função
institucional tradicional tem sido transmitir o conhecimento acumulado pela
humanidade às gerações futuras, é bem provável que a primeira forma tenha sido
privilegiada, mas, se pensarmos nas demandas socioculturais para a educação
linguística no contexto atual, que exige flexibilidade e criatividade no trato ético e
crítico com os discursos, concluiremos que um aprendizado “de cor”, modelar,
prescritivo e até mesmo instrumentalizado não dá conta de educar para o nosso
tempo, conforme pontua Rojo (2008, p. 96-97).
A assimilação da palavra do outro “com suas próprias palavras” requer
autores e leitores de textos/discursos com capacidade crítica e responsável para a
resposta ativa, para a compreensão criadora dos discursos dos outros em sua
historicidade e dialogismo constitutivo, para o que a concepção de gêneros
discursivos do círculo de Bakhtin traz importantes contribuições.
1.3 Gêneros discursivos e a autoria
Para pensarmos o conceito de gêneros discursivos na perspectiva de Bakhtin
e seu círculo é importante nunca perdermos de vista o princípio do dialogismo que
traz em sua essência noções de alteridade, responsabilidade, réplicas e apreciações
de valores sociossituadas, bastante exploradas nas seções anteriores. Um ponto de
partida para refletir sobre o conceito de gêneros discursivos é pensar sobre o lugar
de produção destes, apresentado no pensamento bakhtiniano como esferas
específicas de atividade humana.
35
Segundo Bakhtin (2010 [1951-1953/1979], p. 279), cada esfera de atividade
humana produz seus discursos específicos, nos quais mostram as condições e as
finalidades para as quais eles foram constituídos.
Podemos dizer que todo discurso apresenta marcas da esfera de
comunicação à que pertence. Essas esferas podem ser identificadas como espaços
de relações específicas como a escola, a igreja, o trabalho em um jornal, a política, a
família etc., enfim, as organizações socioideológicas e culturais dos grupos
humanos. Dessa maneira, pode-se dizer que só se age na interação e o agir motiva
em determinadas condições o surgimento de certas formas de interação que, com o
tempo, vão se estabilizando relativamente, se modificando de acordo com o fluxo de
atividade
desses
espaços.
A
essas
formas
de
interação
discursiva,
momentaneamente estabilizadas, Bakhtin vai denominar de gêneros discursivos
(2010[1952-53]).
A noção de gênero discursivo é tão importante que Bakhtin e Medvedev
(1928) vão afirmar que a realidade a nós acessível é aquela permitida pelo gênero
discursivo. Os gêneros discursivos funcionam como um filtro através do qual
visualizamos a realidade da vida social. Então, nós apreendemos a linguagem por
meio dos gêneros discursivos, os quais são tão diversos que, às vezes, os
utilizamos sem mesmo pensar em sua existência.
Até mesmo no bate-papo mais descontraído e livre nós moldamos o
nosso discurso por determinadas formas de gênero, às vezes
padronizadas e estereotipadas, às vezes mais flexíveis, plásticas e
criativas (a comunicação cotidiana também dispõe de gêneros
criativos). Esses gêneros nos são dados quase da mesma forma que
nos é dada a língua materna, a qual dominamos livremente até
começarmos o estudo teórico da gramática. A língua materna – sua
composição vocabular e sua estrutura gramatical não chegam ao
nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de
enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos
reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que
nos rodeiam (BAKHTIN, 2010[1952-53/79], p. 282-283).
Para Bakhtin, essa diversidade não é um problema em si, mas é própria da
natureza da linguagem. Ele, na verdade, não estava preocupado com classificação,
dividindo os gêneros discursivos por dois grandes domínios socioculturais —
36
primários e secundários — apenas para uma amostra das duas grandes diferenças
de organização da vida discursiva.
Os gêneros primários seriam os acontecimentos sociais ligados a situações
do cotidiano, estão imersos numa atmosfera socioideológica dispersa e sem
acabamento aparente. São as situações de comunicação discursiva imediata e
flexível, por isso tendem a refletir de forma mais rápida e direta as mudanças sociais.
Já
os
gêneros
secundários
estão
inseridos
em
espaços
de
interação
socioideológicos organizados, ocorrem situações de comunicação cultural “mais
complexa” e ancorada, em sua maioria, na palavra escrita. Essa última constatação,
porém, não pode ser generalizada uma vez que um bilhete para uma diarista
solicitando eficácia nas atividades domésticas do dia não é considerado um gênero
secundário, pois não requer nenhum trabalho de elaboração complexa.
Sobral (2009) faz referência às esferas e aos gêneros discursivos, afirmando,
em seu texto, que as esferas são espaços construídos por meio da vivência sóciohistórica, ideológica, cultural de um povo, enfim, de acordo com o mundo relacional
dos sujeitos. Portanto, os lugares de atuação humana nos remetem ao contexto ou
condições de produção, circulação e recepção dos discursos, pois todas as esferas
da atividade humana, mesmo repletas de diversificações, variações e possibilidades,
estabelecem regras próprias de utilização da língua em seu âmbito.
Conforme pontuamos anteriormente, o autor tem um projeto discursivo a
realizar, mas, por outro lado, esse desígnio vai se concretizar tomando como
referência uma forma de interação pré-dada de acordo com o lugar que ele assume
para enunciar. Sobre isso, Bakhtin (2010 [1952-1953/1979], p. 282) diz que
A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha
de certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela
especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por
considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta
da comunicação discursiva, pela composição pessoal dos seus
participantes. (BAKHTIN, 2010, p. 282)
Podemos retomar aqui, com base na última citação, a questão da autoria em
Bakhtin, que implica uma posição axiológica detentora de um projeto discursivo
endereçado a outros (outros presentes na temática/conteúdo e nos destinatários
presumidos nas respostas futuras). Para Bakhtin “as escolhas dos meios linguísticos
e dos gêneros de discurso é determinada, antes de tudo, pelas tarefas (pela ideia do
37
sujeito do discurso [ou autor]) centradas no objeto e no sentido” (2010[195253/1979], p. 289). Desse modo, entendemos que o eu nunca enuncia de forma
isolada, sua vontade discursiva tem um interlocutor, o qual será projetado em seu
enunciado, seja no esquema de um gênero, seja no projeto individual de discurso
(BAKHTIN, 2010[1952-53/1979]).
Portanto, o querer dizer do autor está orientado à temática e ao destinatário,
os quais influenciarão a escolha do gênero no qual o objeto do discurso e seu
sentido serão materializados. Trata-se de uma relação bilateral, cujas partes estão
intrinsecamente vinculadas, o desígnio autoral precisa de um gênero para se
concretizar, o gênero necessita dessa sua retomada em contextos específicos e
singulares para se atualizar. O gênero funciona como uma ponte entre o conteúdo
da vida vivida e a linguagem constantemente renovada sempre que é utilizada em
discursos concretos.
No ensaio “Os gêneros do discurso” (1952-53), Bakhtin refere-se ao evento
de atualização situada da linguagem como enunciado concreto, definido como a
unidade real da comunicação discursiva. Anteriormente, no ensaio “Discurso na vida
e discurso na arte” (1926), Bakhtin e Volochinov vão afirmar que neste evento já se
encontram implicados o ato de enunciação (o processo) e o enunciado (o produto, o
objeto discursivo resultante). Como o processo de produção e compreensão dos
discursos implica sempre condições sócio-históricas precisas de interação dialógica,
na perspectiva bakhtiniana não se faz distinção entre enunciação e enunciado.
No ensaio de 1952-53, Bakhtin assinala que dois elementos precisamente
determinam o texto como enunciado: a sua intenção discursiva e a realização dessa
intenção, o que remete à presença inerente de um autor, portanto, todo
texto/discurso tem um sujeito, possui um autor.
Dois aspectos importantes para entender essa relação no âmbito dos gêneros
discursivos são a conclusibilidade e a expressividade. O primeiro determina o tom a
ser dado no discurso pelo falante, isso porque o eu, ao enunciar, deverá escolher,
por exemplo, quais recursos lexicais, gramaticais, temáticos e composicionais serão
usados para caracterizar seu enunciado numa dada situação comunicativa. O
segundo diz respeito à, “relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com
o conteúdo do objeto e do sentido do seu enunciado” (BAKHTIN, 2010[195253/1979], p. 289).
38
A conclusibilidade é o processo interno da alternância dos sujeitos do
discurso, quer dizer, é a resposta ativa do “outro” para o “eu”. Esse conceito reafirma
que a natureza dos discursos está relacionada às relações dialógicas, pois todo e
qualquer falante tem um objetivo ao proferir ou ao escrever um texto/enunciado em
uma situação comunicativa. Mas, para que essa resposta seja dada pelo outro, é
necessário que o todo do enunciado tenha alguma conclusibilidade ou acabamento.
Bakhtin (2010[1952-53]) aponta que o acabamento do enunciado, que
favorece a possibilidade de resposta (ou de compreensão responsiva), compreende
três elementos: 1) exauribilidade do objeto e do sentido; 2) projeto de discurso ou
vontade discursiva do autor; 3) formas típicas composicionais e de gênero do
acabamento. Esses elementos revelam que a conclusibilidade é específica e
determinada por características particulares. Para efeito de compreensão desses
três elementos, falaremos brevemente sobre eles.
O primeiro elemento ─ a exauribilidade ─ está relacionado ao tratamento da
temática pelo autor e pelos participantes em uma situação comunicativa. É
interessante pontuar que a exauribilidade está restrita àquilo que o autor projetou
dizer uma vez que as possibilidades da temática são inesgotáveis tendo em vista
estar inserida no fluxo constante da corrente da comunicação discursiva.
O autor imprime ao seu querer dizer sua expressividade, sua orientação
valorativa, e o tratamento exaustivo do objeto e do sentido depende das
possibilidades de acabamento para a temática. Entretanto, em determinados
contextos, certos gêneros da esfera oficial (pedidos, ordens, ofícios) têm uma
natureza padronizada, favorecendo a exauribilidade plena. Já em outras esferas, por
exemplo, a acadêmica (como em uma tese), há um acabamento mínimo suficiente
para suscitar respostas, mas “o objeto é objetivamente inexaurível” (BAKHTIN,
2010[1952-53/1979], p. 281).
Dessa maneira, afirmamos que o tratamento exaustivo semântico-objetal da
temática apenas evidencia que o autor expressou sua apreciação valorativa dentro
dos limites estabelecidos pelo contexto no qual está inserido como também pelo seu
projeto discursivo. Este é o segundo elemento importante para a conclusibilidade.
O projeto discursivo de um autor organiza-se a partir da relação que ele
mantém com a temática e com o que os destinatários pensam acerca dessa relação
em um contexto específico. Nesse sentido, quando nós nos questionamos em saber
o que o autor quis dizer estamos medindo a conclusibilidade do enunciado. A
39
vontade discursiva do autor determina a amplitude e as fronteiras da temática e as
formas estáveis do gênero, no qual seu discurso será construído. Desse modo, os
participantes da comunicação, que são orientados pela situação e pelos discursos
anteriores, “abrangem fácil e rapidamente a intenção discursiva, a vontade
discursiva do falante, e desde o início do discurso percebem o todo do enunciado
em desdobramento” (BAKHTIN, 2010[1952-53/1979], p. 282).
O último elemento ─ formas estáveis do gênero ─ determina a forma como o
autor projetará seu querer dizer em um dado gênero. A escolha do gênero de
discurso acontece em virtude das especificidades da situação concreta da qual o
autor e seus interlocutores participam. Assim, é necessário selecionar o gênero
levando em consideração a esfera da atividade humana, as temáticas que podem
ser ditas para esse contexto como também o perfil dos participantes envolvidos
nessa situação concreta da comunicação discursiva. Essa particularidade do
processo
comunicativo
reafirma
que
nossos
enunciados
possuem
formas
relativamente estáveis e típicas, as quais caracterizam determinados gêneros do
discurso. Segundo Bakhtin (1952-53), essa estabilidade relativa dos gêneros
discursivos é mais facilmente percebida do ponto de vista temático, composicional e
estilístico.
O conteúdo temático, muitas vezes, é confundido com o assunto específico
de um texto, mas, na verdade não é isso, o ponto de vista temático é um domínio de
sentido de que se ocupa o gênero. O autor caracteriza como sendo o conteúdo
presente no enunciado concreto, que reporta sempre à produção de sentidos
referentes a um determinado contexto.
A construção composicional é expressa na obra de Bakhtin como o modo de
organizar, compor, estruturar o conteúdo de um texto/discurso no material
linguístico. A respeito desse elemento do gênero, remetemos às nossas
considerações sobre a questão em seções anteriores.
Não podemos nos esquecer de que a apreciação valorativa do autor sobre a
temática do que pode ser dizível, sobre seus interlocutores podem e vão determinar
a forma composicional e os estilos dos enunciados.
O estilo é apresentado como as escolhas efetuadas nos elementos da língua
de forma adequada ao nosso “querer dizer discursivo”. Bakhtin (1952-53) fala em
estilo de gênero e estilo de autor. O estilo de gênero diz respeito aos elementos
linguísticos — elementos lexicais, estruturas sintáticas, semânticas — que, devido às
40
características da temática do gênero, são costumeiramente mobilizados em sua
produção. Tomamos, por exemplo, a questão da temática e do tempo/espaço nos
gêneros da narrativa que, geralmente, exigem verbos no passado imperfeito para
relatar os acontecimentos anteriores ao tempo da narrativa e no passado perfeito
para os acontecimentos do tempo da narrativa em si.
O estilo não é assim um mero momento técnico ou atualização da gramática,
mas é a unidade de materialização da temática, tendo por base, tal a forma
composicional, a orientação valorativa do autor para os participantes do discurso.
Em outras palavras, o estilo está vinculado ao conteúdo de um discurso e a sua
maneira de organização, não são apenas desvios de normas, conforme pontuam
Bakhtin/Volochinov
“O estilo é o homem”, dizem; mas poderíamos dizer: o estilo é pelo
menos duas pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu
grupo social na forma do seu representante autorizado, o ouvinte o
participante constante na fala interior e exterior de uma pessoa.
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926, p. 17).
Como podemos observar, o estilo é engendrado a partir da posição axiológica
do autor do ponto de vista de um grupo social de que participa e ele implica também
o envolvimento da imagem social de um ouvinte/destinatário. O estilo, portanto,
ultrapassa os meros limites gramaticais e frasais, pois ele vence a resistência desse
material linguístico pela ciência do autor de estar envolvido de forma integrada em
uma atividade de selecionar, determinar, construir e dar acabamento a um todo
discursivo/enunciado concreto. Em suma, o estilo é determinado pelas avaliações
valorativas do autor e do interlocutor (leitor), em função do objeto do discurso.
Podemos dizer que o estilo aponta para um tipo de aliança entre a forma
composicional e a do conteúdo temático. É claro que tudo vai se juntar à inteireza da
experiência de cada sujeito, que aponta para a atitude que deve ser coletivamente
construída e desenvolvida a partir do contato com os dizeres do “outro”. É bem
verdade que nem todos os gêneros retratam o estilo do autor, como é o caso
daqueles gêneros padronizados, que não aceitam modificações em sua forma, a
exemplo da petição e da ata que circulam na esfera jurídica.
Em suma, pensar a linguagem do ponto de vista da linguística enunciativodiscursiva é ver esse fenômeno em sua dinamicidade socioideológica e cultural em
seus contextos de uso para os quais os códigos e as estruturas linguísticas precisam
41
ser flexíveis e adequadas aos desígnios da criação autoral. A nosso ver, a criação
autoral no âmbito dos gêneros discursivos é um elemento importante para pensar a
produção discursiva. Esse, por exemplo, é o nosso interesse neste trabalho por meio
do qual objetivamos analisar a linguagem em uso em processo de ensinoaprendizagem escolar, tendo como foco principal as relações de alunos com a
produção de texto a partir das quais buscaremos entender em que medida os
materiais didáticos da Olimpíada de Língua Portuguesa interferem ou contribuem
para a formação do aluno-autor.
CAPÍTULO II
O Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa: Um olhar para a produção
escrita
[...] não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer
uso do ler e do escrever, saber responder às exigências de leitura e de
escrita que a sociedade faz continuamente [...].
(SOARES, 1998 p. 20)
No capítulo 2, faremos uma breve apresentação das concepções de ensinoaprendizagem de língua materna, tomando como base as proposições teóricas
cognitivas, textuais, socioculturais e discursivas que surgem a partir das viradas
pragmáticas e discursivas nos estudos linguísticos. Nosso objetivo principal é
mostrar as diversas perspectivas da escrita assumidas nessas proposições e suas
refrações nos documentos oficiais, como os PCNLP, e nos materiais didáticos como
os cadernos de sequências didáticas da Olimpíada de Língua Portuguesa
Escrevendo o Futuro.
O ensino de Língua Portuguesa é dividido em: leitura, produção de texto,
gramática, oralidade. Estes conteúdos ora são trabalhados de forma interligada, ora
são tomados como objetos de ensino independentes. Isso pode ser observado nas
aulas e em materiais didáticos, que assumem determinadas perspectivas teóricas
para o ensino da língua materna. Por essa razão, afirmamos que a concepção de
linguagem ─ a interação social ─ levou a mudanças significativas nesses conteúdos
42
da Língua Portuguesa como também os métodos de ensino também foram
repensados e discutidos a partir de outras teorias de ensino-aprendizagem.
No que se refere ao ensino da escrita e leitura, os anos 80 e 90 foram
marcados por grandes transformações na educação, em que vários projetos foram
criados para dar suporte ao professor e avaliar o ensino existente nesse período.
Uma das preocupações, nesse sentido, foi que grande parte dos alunos não
dominava certas capacidades de leitura e escrita fundamentais para participarem
ativamente na sua realidade social. Essa preocupação fez com que esses objetos de
ensino recebessem atenção da Academia, pois os pesquisadores entendiam que
apenas saber ler e escrever não era suficiente para formação do ser cidadão, mas
era preciso saber fazer uso eficaz da leitura e da escrita de forma que respondesse
às expectativas sociais, considerando que a escola objetivava uma formação mais
autônoma, mais cidadã.
Em vista disso, um dos principais objetivos da escola, naquele momento, era
permitir que os objetos de ensino previstos para cada etapa escolar tivessem
relação com a realidade social dos alunos a fim de que eles, em quaisquer práticas
sociais, soubessem fazer usos das práticas de linguagem.
Segundo Rojo (2002, p. 2), as práticas de linguagem são uma
noção de ordem social, que implica a inserção dos interlocutores em
determinados contextos ou situações de produção, a partir dos quais,
tendo a linguagem como mediadora, os agentes sociais estabelecem
diferentes tipos de interação e de interlocução comunicativa, visando
diferentes finalidades comunicativas e a partir de diversificados
lugares enunciativos.
Para
a
participação
plena,
os
alunos
precisarão
ter
experiências,
conhecimento a respeito dessas práticas e, para isso, Geraldi (2006[1984], p. 44)
nos faz uma importante reflexão acerca das nossas práticas:
[...] que tipo de aluno queremos desenvolver: aquele que tem
domínio da língua através do uso diário, concreto fortalecido pelas
interações do cotidiano que domina a língua falada em situações
práticas e concretas ou aquele aluno que sabe analisar e dominar
conceitos a partir dos quais se falam sobre a língua de forma
estrutural.
Nesse sentido, dizemos que o ensino da Língua Portuguesa deve ser
compreendido como um processo contínuo da apropriação de práticas sociais, cuja
43
materialização dá-se por meio de textos orais e escritos que circulam em espaços
públicos e formais.
Ao assumirmos tal posicionamento, objetivamos, neste capítulo, discorrer
sobre o ensino da Língua Portuguesa, sobretudo, a produção textual. Para isso,
discutiremos as influências dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Além disso,
buscaremos relacionar a escrita à noção de autoria como também a escola de
gêneros de Genebra (BUNZEN, 2004) à teoria vigotskiana.
2.1 Escrita, diferentes perspectivas através do tempo, dentro dos estudos
linguísticos e da Linguística Aplicada
Rojo e Cordeiro (2004) e Rojo (2005) afirmam que os processos investigativos
da produção textual e de seu desenvolvimento e aprendizado têm como base teórica
as perspectivas cognitiva e textual.
A abordagem cognitivista de memórias de longo prazo a qual armazena os
esquemas de conhecimento para o processo de produção de texto privilegiou os
processos mentais internos do sujeito, desconsiderando a natureza sociointerativa
da linguagem. Já a abordagem textual buscou, inicialmente, compreender o
processo interacional envolvido na produção textual, em que há sujeitos envolvidos
na sua elaboração. Essas perspectivas teóricas estavam buscando dar outro
tratamento didático para os conteúdos previstos para as aulas de Língua
Portuguesa, pois houve um deslocamento de análise: da frase para o texto, e,
posteriormente, para o texto em seu contexto de uso. Essa mudança de perspectiva
constituiu a virada pragmática nas décadas de 70 e 80. Em outras palavras, a virada
do estudo da linguagem em uso e contextualizada.
A teoria cognitivista, segundo Guimarães (2009, p. 63), centrou seus estudos
nos “mecanismos mentais do sujeito, buscando estabelecer padrões abstratos e
universais para a produção de textos”.
Essa abordagem favoreceu a elaboração de atividades que privilegiavam as
etapas da escrita: contexto, planejamento, edição e revisão de uma produção. Em
vista disso, a etapa do planejamento, da elaboração e da revisão do texto passaram
44
a ter espaço nos estudos e nas atividades em sala de aula (GUIMARÃES, 2009).
São representantes dessa vertente teórica Flower e Hayes (1979; 1980).
A teoria textual está relacionada à Linguística Textual, cujo surgimento deu-se
a partir da década de 60, na Europa e nos Estados Unidos. Os estudiosos dessa
corrente teórica tomaram o texto como objeto de investigação e deram outro
tratamento para a língua, pois passou a ser estudada no texto e não apenas como
estrutura. Os precursores da Linguística de Texto são Weireich (1964; 1976),
Harweg (1968), Isenberg (1970), Lang (1971; 1972), Dressler (1972; 1977), Dijk
(1972;1973), Halliday e Hasan (1973), Petöfi (1972; 1973) entre outros.
Na Linguística Textual, os pesquisadores estavam mais preocupados em
investigar “a constituição, o funcionamento, a produção e a compreensão dos textos
em uso” (BENTES, 2011[2000], p. 251), já que diversos fatores, como linguísticos,
cognitivos, socioculturais, interacionais eram preponderantes para o estabelecimento
de sentido de qualquer texto. Seus principais representantes são Charolles (1987),
Dijk (1992), Beaugrande (1984), Beaugrande & Dressler (1981) e no Brasil temos
Koch (1987; 1988), Fávero e Koch (1983; 1988), Guimarães (1987), Costa Val
(1991), Bastos & Mattos (1986), Bastos (1994), Geraldi (1984; 1991), Ramos (1997).
Acreditamos que os pesquisadores brasileiros contribuíram para que o texto
fizesse parte das aulas de Língua Portuguesa, embora, inicialmente, foi tomado
apenas como suporte para o desenvolvimento de habilidades para a produção
textual (ROJO; CORDEIRO, 2004).
De forma ilustrativa, remete-nos às práticas de produção de texto em que
havia preocupação em estabelecer modelos prototípicos – padronizados - para os
alunos, pois cabia ao professor e aos autores de materiais didáticos fornecerem
modelos
de
estruturas
(introdução,
desenvolvimento,
conclusão)
para
um
determinado tipo de texto, por exemplo, o dissertativo.
Apesar dessa virada pragmática – pelo uso da linguagem -, observamos que
os
textos
ainda
são
tomados
numa
abordagem
estrutural
(introdução,
desenvolvimento, conclusão). Esse modo de ensinar textos na sala de aula com
enfoque nas suas propriedades oferecia:
conceitos e instrumentos que generalizavam as propriedades de
grandes conjuntos de textos (tipos), abstraindo suas especificidades
e propriedades intrínsecas em favor de uma classificação geral
(tipologias), que acabava por preconizar formas globais nem sempre
45
compartilhadas pelos textos classificados (ROJO; CORDEIRO, 2004,
p. 9).
Essa visão para o ensino da escrita é tradicional, pois está fundamentada na
estrutura dos textos e enfatiza-se o domínio da tipologia textual (dissertação,
narração e descrição) para todo e qualquer texto, desconsiderando as diferentes
linguagens que podem ser observadas, por exemplo, em HQs, charges, anúncios e
tirinhas, nos textos orais etc. Além disso, esse enfoque nas propriedades do texto
originou “a gramaticalização dos eixos do uso, passando o texto a ser ‘pretexto’ não
somente para um ensino da gramática normativa, mas também da gramática textual,
na crença de que ‘quem sabe as regras sabe proceder’” (ROJO; CORDEIRO, 2004,
p. 9).
Dessa forma, a prática de produção de texto era simulada, pois havia mais
preocupação com a forma e concordamos com Geraldi (2002[1984], p. 128) que “na
escola não se produzem textos em que o sujeito diz sua palavra, mas simula-se o
uso da modalidade escrita, para que o aluno se exercite no uso da escrita,
preparando-se para de fato usá-la no futuro.” Isso reafirma a questão de que o texto
era visto como objeto de uso, mas não como material de língua viva de ensino. Com
isso, a interlocução no processo de construção de práticas discursivas ficou durante
muito tempo em segundo plano.
Por essa razão, Rojo e Cordeiro (2004, p. 10) tecem crítica à abordagem
textual no que se referem às práticas ligadas ao uso, à produção e à circulação dos
textos por desconsiderar o contexto de produção e de leitura, pois, para o ensino de
leitura objetiva-se a “extração de informações (explícitas e implícitas) mais do que
uma leitura interpretativa, reflexiva e crítica”, já no ensino da produção, os alunos
são guiados “pelas formas e pelos conteúdos mais que pelo contexto e pelas
finalidades dos textos.” Tais práticas receberam críticas, porque condicionaram o
aluno ao levantamento de informações e a repetir estruturas de textos.
Assim, inúmeras discussões na década de 80 e 90 foram realizadas em torno
do enfoque dos textos e de seus usos em sala de aula, pois os pesquisadores
chegaram à conclusão de que era preciso, por conta desse fracasso escolar, outra
perspectiva teórica que possibilitasse aos objetos de ensino da Língua Portuguesa ─
redação, leitura e gramática ─ uma prática direcionada à questão discursiva,
oportunizando aos alunos uma abordagem mais interativa, a fim de que eles, por
46
exemplo, ao produzirem um texto, pudessem se assumir como autores, o que
implica: “ter o que dizer; ter razões para dizer o que tem a dizer, ter para quem dizer;
assumir-se como sujeito que diz para quem diz e escolher estratégias para dizer”
(GERALDI, 1997[1991], p.160-161). Esse posicionamento revela que a produção
textual deve ser uma prática sociossituada, levando os alunos a compreenderem a
importância da situação de produção para uma participação mais autônoma nas
diferentes situações de interlocução.
Essas considerações em torno dos objetos de ensino da Língua Portuguesa
nos revelam que outras correntes teóricas foram incorporadas pela Academia em
suas pesquisas e ações voltadas para a formação do professor, aliando outra
concepção de ensino-aprendizagem (sócio-histórica, de Vigotski, 1930-1934-1935) à
de língua(gem) (como interação social, de Bakhtin/Volochinov,1929), buscando uma
prática sociossituada. Essa prática foi denominada “virada discursiva ou enunciativa”
(ROJO; CORDEIRO, 2004, p. 10).
No
bojo
dessa
virada
paradigmática,
Rojo
(2005)
afirma
que
os
pesquisadores, ao perceberem a incompatibilidade entre as perspectivas teóricas
(sócio-histórica e cognitivista) passaram a realinhar suas pesquisas a fim de evitar
as incongruências entre os pressupostos básicos das duas vertentes teóricas. Isso
porque os conceitos vigotskianos atestam que a aprendizagem do indivíduo dá-se
em espaços sociais a partir da interação entre os participantes em um dado
momento histórico.
Dessa forma, os neo-vigotskianos da escola americana optaram em fazer
releituras do pensamento de Vigotski em prol da ótica sócio-construtivista e dos
construtos cognitivistas. Seus estudos privilegiaram as construções mentais dos
indivíduos, procurando explicar (do ponto de vista sócio-histórico), “a partir da
interação e da linguagem o processo social de construção e gênese dos esquemas
[mentais]” (ROJO, 2005, p. 189). Esse enfoque, segundo Rojo, estuda a “relação
entre
aprendizagem/desenvolvimento,
relação
pensamento/linguagem,
internalização e ZPD (zona proximal de desenvolvimento)” (idem, ibidem).
Já os neo-vigotskianos da escola europeia, por exemplo, a escola de
Genebra, cujos pesquisadores principais são Bronckart, Schneuwly, Dolz, faz
redefinições e releituras do funcionamento da linguagem e suas relações com o
pensamento articuladas com alguns conceitos teóricos do Círculo de Bakhtin, dentre
47
eles citamos a linguagem e suas imbricações ou sua inter-relação com os gêneros
discursivos, interação.
Para Rojo (2005, p. 189), a adoção da perspectiva enunciativo-discursiva de
Bakhtin e sua articulação com os construtos psicológicos de Vigotski fazem com que
essa escola redefina e revise sua definição de linguagem ─ “tomada, então como
discurso ou enunciação, de interação e de discurso interno”.
Essas escolas americana e europeia encontraram espaço no contexto
acadêmico brasileiro, pois os programas e propostas curriculares sofreram várias
mudanças em virtude dessa virada paradigmática.
No Brasil, temos, inicialmente, Geraldi como um dos primeiros pesquisadores
a assumir a concepção de linguagem enquanto interação, a qual sustentou as
redefinições dos objetos de ensino de Língua Portuguesa: leitura, produção textual,
gramática, oralidade. Sua proposta foi apresentada no livro O texto na sala de aula,
publicado em 1984, cuja contribuição pôde ser observada na década de 90, em
relação às mudanças sofridas no currículo escolar de Língua Portuguesa, em que
houve um deslocamento dos eixos do ensino-aprendizagem de língua materna: “de
um ensino normativo [análise da língua e gramática], para um ensino procedimental
[usos da língua escrita, leitura e redação são valorizados] [e] também, uma análise
gramatical ligada a esses usos textuais: as atividades epilinguísticas” (ROJO;
CORDEIRO, 2004, p. 8). Esses eixos foram elaborados com base nas ideias de
Geraldi (1984), que propôs três eixos para as aulas de Língua Portuguesa: a prática
de leitura, a prática de produção de texto e a prática de análise linguística.
Essas reapropriações teóricas de diferentes pesquisadores brasileiros
contribuíram para o redimensionamento do ensino de Língua Portuguesa, pois
pensar a linguagem do ponto de vista de seu uso real permitiu que o ensino fosse
direcionado para uma prática social, reflexiva que vê a sala de aula, assim como as
esferas da comunicação humana, como um lugar de interação verbal. Desse modo,
segundo Rojo e Cordeiro (2004, p. 11), “convoca-se a noção de gêneros (discursivos
ou textuais) como instrumento melhor que o conceito de tipo para favorecer o ensino
de leitura e de produção de textos escritos e, também, orais”.
Por essa razão, os gêneros são tomados como objetos de ensino, o texto é a
unidade de ensino e a concepção de linguagem que baliza essa prática é a
interação. Tal direcionamento está posto nos documentos oficiais, precisamente, nos
48
Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP, BRASIL, 1997,
1998).
Portanto, a virada enunciativo-discursiva favoreceu mudanças na concepção
de língua(gem), pois houve redefinições nos objetos de ensino da Língua
Portuguesa, permitindo, em certa medida, reformulação nas práticas em sala de aula
como também possibilitou que a concepção de ensino-aprendizagem passasse para
a sócio-histórica, assim, o ensino-aprendizado da língua materna vem passando por
reformulações teórico-metodológicas ao longo do século XX.
Na próxima seção, apresentaremos a perspectiva assumida pelos PCNLP em
relação ao ensino da escrita.
2.2 A escrita nos PCNLP3
A publicação do documento oficial Parâmetros Curriculares Nacionais de
Língua Portuguesa representou, na década de 90, um avanço no debate instaurado
por
diferentes
pesquisadores
via
publicações
científicas
(artigos,
teses,
dissertações) e programas de formação continuada de professores no que se refere
ao ensino-aprendizagem de língua materna, por propor mudanças no currículo
escolar desta disciplina. Essa reformulação deveu-se também à virada discursiva,
vivenciada pela Academia durante sua publicação.
Nesse documento, é possível observamos a presença de diferentes
perspectivas teóricas em prol do redimensionamento do ensino de Língua
Portuguesa, tais como: a teoria enunciativo-discursiva do círculo de Bakhtin, a
Análise do Discurso, a Linguística Textual, a Análise da Conversação, a
Sociolinguística (ROJO; CORDEIRO, 2004; ROJO, 2005), que buscam compreender
a linguagem em uso. Além disso, temos a influência do pensamento de Vigotski no
ensino-aprendizagem. Outra questão posta pelos estudiosos da linguagem quanto a
essa diversidade teórica nos documentos é a ausência de um fio coerente, já que se
3
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa foram publicados em 1997 para o 1º e
2º ciclos do Ensino Fundamental I e, em 1998, publicaram-se para o 3º e 4º ciclos do Ensino
Fundamental II. Em nosso trabalho, faremos uso desta última publicação, em virtude do objeto de
estudo está voltado para o 9º ano do Ensino Fundamental II.
49
pode observar algumas imprecisões teóricas, por exemplo, a questão flutuante do
conceito gêneros discursivos e textuais4, entre outras.
Apesar dessas incongruências, os PCNLP representam um “avanço
considerável nas políticas educacionais brasileiras em geral, em particular, nas
políticas linguísticas contra o iletrismo e em favor da cidadania crítica e consciente”
(ROJO, 2000, p. 27). Assim, as orientações apresentadas no documento oficial
encaminham o professor a assumir uma outra concepção de ensino de língua(gem)
a fim de favorecer uma formação mais autônoma e cidadã para os alunos do Ensino
Fundamental, rompendo com o excesso de escolarização das atividades de leitura e
escrita, com o ensino tradicional de língua, centrado em atividades estruturais e
descontextualizadas.
Por isso, a concepção a ser assumida é a da interação verbal, favorecendo
um ensino de língua mais contextualizado, permitindo que as práticas de leitura,
produção e análise linguística sejam orientadas pelas condições de uso e de
reflexão. Para atingir tal intento, os PCNLP fazem algumas ponderações acerca da
linguagem e seu lugar social em nosso cotidiano. Segundo esse documento oficial,
O domínio da linguagem, como atividade discursiva e cognitiva, e o
domínio da língua, como sistema simbólico utilizado por uma
comunidade lingüística, são condições de possibilidade de plena
participação social. Pela linguagem os homens e as mulheres se
comunicam, têm acesso à informação, expressam e defendem
pontos de vista, partilham ou constroem visões de mundo, produzem
cultura. Assim, um projeto educativo comprometido com a
democratização social e cultural atribui à escola a função e a
responsabilidade de contribuir para garantir a todos os alunos o
acesso aos saberes linguísticos necessários para o exercício da
cidadania (BRASIL, 1998, p. 19).
De acordo com esse excerto, a linguagem, nos PCNLP, é entendida como um
trabalho de construção, que passa pelo fazer coletivo e participativo, o qual
evidencia um processo histórico social e cultural.
Nessa concepção, o aluno é
constituído por um processo ativo, que produz discursos e dizeres proficientes e
significativos de acordo com suas práticas diárias. Assim, as produções não devem
existir somente por meio de palavras soltas ou frases isoladas, pelo contrário, deve-
4
Para maiores considerações, ver Figueiredo (2005) sobre a concepção de gêneros textuais e
gêneros discursivos e seus usos nos PCNL e nas aulas de língua portuguesa.
50
se buscar uma prática discursiva que perpasse a contextualização vivida pelo
educando.
Em vista disso, no tocante à prática de produção oral e escrita, os PCNLP
afirmam que, ao longo do Ensino Fundamental, o aluno deve ser capaz de planejar
“sua fala [e escrita] pública usando a linguagem escrita em função das exigências da
situação e dos objetivos estabelecidos” (BRASIL, 1998, p. 5). Para isso, o professor
de Língua Portuguesa deverá levar para sala diferentes textos para que possa
ampliar o conhecimento do aluno e para que ele seja “capaz de interpretar diferentes
textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão de produzir
textos eficazes nas mais variadas situações” (BRASIL, 1998, p. 19).
Para atingir esse objetivo, conforme havíamos apontado anteriormente, são
apresentados dois eixos básicos para o tratamento didático dos conteúdos de
Língua Portuguesa no Ensino Fundamental, conforme o esquema abaixo.
(BRASIL, 1998, p. 35)
De acordo com os PCNLP, esses eixos permitirão que os alunos
compreendam o contexto de produção, recepção, circulação dos enunciados orais e
escritos em um dado momento sócio-histórico. Esse enfoque dos PCNLP visa
desconstruir a prática tradicional quanto ao ensino de textos escritos que, até aquele
momento da publicação do documento, estava, ainda, calcada em propostas de
produção descontextualizadas, em que objetivo maior era observar se o aluno sabia
estruturar seu texto, usar corretamente a língua padrão, usar os mecanismos
coesivos, os operadores argumentativos. Tratava-se de um exercício de redação,
para treino e preparação para exames de vestibulares ou uma atividade profissional.
Além disso, o texto era produzido para ser lido e corrigido apenas pelo professor.
Os conteúdos previstos no eixo uso são a prática de escuta e leitura e a
prática de produção de textos orais e escritos e no eixo reflexão, a prática de
51
análise linguística. Esses eixos possibilitarão aos alunos conhecimento das
especificidades das variadas práticas de linguagem em função da articulação que
estabelecem entre si (BRASIL, 1998). De acordo com as orientações dos PCNLP, a
prática do professor deverá levar em consideração estes objetivos para o ensino
Língua Portuguesa.
No trabalho com os conteúdos previstos nas diferentes práticas, a
escola deverá organizar um conjunto de atividades que possibilitem
ao aluno desenvolver o domínio da expressão oral e escrita em
situações de uso público da linguagem, levando em conta a
situação de produção social e material do texto (lugar social do
locutor em relação ao(s) destinatário(s); destinatário(s) e seu lugar
social; finalidade ou intenção do autor; tempo e lugar material da
produção e do suporte) e selecionar, a partir disso, os gêneros
adequados para a produção do texto [...] (BRASIL, 1998, p. 49)
[grifo nosso).
Nesses objetivos, a prática de produção de textos está alicerçada nos
gêneros, os quais possibilitam aos alunos uma escrita mais real, pois há uma
situação de produção definida, não permitindo que a produção seja um fim em si
mesmo, sem autoria, sem leitores. Aqui, o produtor deverá assumir seu querer dizer,
pois há um projeto discursivo em funcionamento, como já pontuamos, o autor orienta
seu querer dizer em função da temática, dos destinatários, os quais determinam a
escolha do gênero no qual serão materializados seu objeto do discurso e seus
sentidos. Isso reafirma a proposição do Círculo de Bakhtin de que todo e qualquer
falante tem um objetivo ao proferir ou ao escrever um texto/enunciado em uma
situação comunicativa.
Para os PCNLP, nas atividades de produção escrita, o ato de escrever é
complexo, porque o sujeito-autor precisa ser capaz de articular dois planos: o do
conteúdo (o que dizer) e o da expressão (como dizer). Esses dois conceitos são
essenciais para configurar a autoria em uma dada produção. Nessa busca pelo
aluno-autor, há orientações para que, durante as atividades, os alunos sejam
levados a construírem seu conhecimento acerca de um determinado gênero de
forma sistematizada e apropriando-se da forma composicional, do conteúdo
temático, do estilo do gênero e o estilo individual do autor, para que esse futuro
autor possa ter seu próprio estilo, assumindo sua voz em seus discursos
(BRASIL,1998).
52
Essa orientação do documento oficial nos revela que há preocupação com
que o aluno compreenda o funcionamento de um determinado gênero, para que
possa apropriar-se dele e, futuramente, saiba produzir seus enunciados, levando em
consideração a situação de produção a que estiver exposto. Outra preocupação é
que o aluno seja autor de seus discursos, num processo contínuo, pois o professor
precisará mobilizar ações didáticas para ajudar ao aluno a ter consciência de seu
papel social em quanto produtor de textos.
Ao se pensar nas atividades, o professor deverá observar nos textos escritos
as reais necessidades de seus alunos, a fim de que possa ajudá-los nessa atividade
complexa que é a escrita. Dessa forma, o “olhar do educador para o texto do aluno
precisa deslocar-se da correção para a interpretação; do levantamento das faltas
cometidas para a apreciação dos recursos que o aluno já consegue manobrar”
(BRASIL, 1998, p. 77).
Com base nessas orientações dadas pelos PCNLP, podemos afirmar que
esse documento não propõe diretamente a escrita como objeto de ensino, mas
desloca essa proposta para o âmbito dos gêneros na prática de produção de textos
orais e escritos. Essa escolha, a nosso ver, permite um trabalho mais amplo, já que
não se fixa nos processos cognitivos ou textuais, mas nos usos da linguagem nas
situações interlocutivas, em que o contexto sócio-histórico, cultural e ideológico tem
valor significativo para a compreensão dos enunciados orais e escritos. Desse
modo, criam-se melhores condições para que o aluno seja autor de seus discursos
como também compreenda os discursos alheios.
Entendemos que os PCLNP (1998), ao assumirem a existência de um tripé
envolvido na produção textual ─ autor-objeto do discurso-interlocutor, assentam sua
proposição nas relações dialógicas, por acreditar que nelas ocorre uma atitude ativa
e crítica por parte de quem escreveu e também pelos interlocutores, pois nesse
processo ininterrupto entre os sujeitos do discurso, podem-se ultrapassar os limites
de um texto, pois se colocam em evidência o momento de quem escreve e o de
quem interpreta. Dessa forma, já que existem autores e co-autores na construção
dos sentidos, é necessário criar situações autênticas de produção.
Entendemos que os PCLNP (1998) assumem esse discurso por asseverar
que, nas relações dialógicas, ocorre uma atitude ativa e crítica por parte dos
interlocutores, tendo em vista que se podem ultrapassar os limites de um texto, pois
se colocam em evidência o momento de quem escreve e o de quem interpreta.
53
Dessa forma, já que existem autores e co-autores na construção dos sentidos, é
necessário criar situações autênticas de produção.
Na próxima seção, falaremos da escrita e da autoria, procurando
compreender o papel da escola no processo de construção do texto, em que se
busca o aluno-autor.
2.3 Escrita e Autoria
Geraldi (2008[1984]) tem feitos inúmeras críticas, desde os anos 80, quanto
ao ensino da escrita nas escolas, pois, segundo ele, existe apenas simulação, por
isso o pesquisador estabeleceu a dicotomia produção de texto e ensino de redação.
Este último está voltado apenas para o ambiente escolar, quer dizer, o aluno
produz para a escola, já que o leitor é apenas o professor, o detentor do
conhecimento, preparado para corrigir e dizer se o aluno estava preparado ou não
em relação à escrita. Além disso, há cobrança para o domínio da norma culta, como
se isso fosse suficiente para garantir a autonomia na escrita.
A adoção da expressão produção de texto está ligada a dois aspectos
envolvidos no processo de escrever. O primeiro diz respeito às condições de
instrumentos e agentes de produção, além de focalizar o modo como se produz um
texto na escola (GERALDI, 2010[2008]). Nessa perspectiva, há um sujeito do
discurso, que é agente de seu dizer, que possui um projeto discursivo, direcionado
para um determinado interlocutor de uma dada esfera da atividade humana. Isso
assegura que há um sujeito responsável pelo seu querer dizer, pois possui uma
visão de mundo única, particular, que o diferencia de outros sujeitos. Essa questão
nos faz retomar o conceito de que Bakhtin nos apresentou na década de 20, o
sujeito não tem álibi na sua existência, uma vez que ele deve assumir a
responsividade dos enunciados proferidos e escritos por ele perante outros
enunciados. É o ato ético do qual Bakhtin nos fala, da nossa unicidade e
singularidade no mundo, pois somos responsáveis pelos significados que damos aos
nossos enunciados para uma dada situação concreta da qual fazemos parte.
O segundo aspecto remete à noção de texto, assumida para a produção
textual. Segundo Geraldi (2010 [2008], o ensino da escrita a partir de um conjunto de
regras para ser aplicado ou mesmo de suas regularidades composicionais,
temáticas ou estilísticas não são suficientes para dizer que tal texto ocorrerá sempre
54
assim em um contexto sócio-histórico. Para ele, a produção textual envolve as
condições discursivas, pois são as responsáveis pela orientação do querer dizer do
sujeito escritor e são elas que determinam as regularidades do enunciado. Isso
porque o enunciado jamais será resultado de aplicação de regras, de fórmulas préestabelecidas para sua composição (idem).
Nisso reside a escolha dos PCNLP pela expressão produção de texto, a qual
está ligada ao objeto de ensino gêneros, uma vez que
não é possível tratar o
gênero como se fosse algo totalmente estável, pois no processo de didatização será
necessário levar em consideração estes aspectos:
Há que se associarem o querer dizer do locutor, que sempre remete
à relação com seus interlocutores e o estilo próprio do sujeito que
fala, isto é, suas escolhas dentre as estratégias de dizer disponíveis
ou suas elaborações de estratégias novas resultantes da articulação
que realiza entre o disponível e o novo (GERALDI, 2010[2008], p.
168).
Ao assumir essa perspectiva teórica, o professor precisa considerar o projeto
discursivo, a fim de oportunizar uma prática de produção de texto que permita que
seus alunos sejam autores de seus textos e produtores de sentidos e discursos.
Segundo Kleiman (2002, p. 19), ensinar a compreender um texto escrito “é
papel do educador, significa lidar com a complexidade do ato de compreender e a
multiplicidade de processos cognitivos que constituem a atividade em que o leitor se
engaja para construir o sentido de um texto escrito”. Mas, em meios a tantos dizeres,
tantas propostas e opiniões, é sempre necessário reforçar que a constituição de
sujeitos aptos para ler e escrever não depende unicamente do professor, mas
também de como esse aluno é inserido nas relações sociais que se estabelecem
pela interação entre autor e leitor.
Desse modo, para se ensinar a escrever ou a ler um texto de forma que o
aluno consiga interpretar e compreender, faz-se necessário lidar com o
conhecimento que cada sujeito/aluno traz consigo. Quando se permite ao aluno
contato com sua história, com o que aprendeu ao longo de sua existência, ele
poderá compreender a palavra dele e do outro, uma vez que, nas relações sociais
mediadas pela linguagem, todos participantes da comunicação verbal são
importantes na interação. Tal prática é um fator relevante para a elaboração de
textos com autoria.
55
Para Bakhtin, “todo texto tem um sujeito, um autor (que fala, escreve)”.
Todo texto apresenta dois fatores importantíssimos para determinar e tornar um
enunciado: “seu projeto (a intenção) e a execução desse projeto” (2010[1979], p.
330). A inter-relação dinâmica entre esses fatores permite que se compreenda a
discursividade de uma produção, a qual dialoga com outros enunciados, outros
contextos sócio-históricos, outras esferas sociais. Assim, dizemos que o autor se
constrói por meio de um olhar arquitetônico, ou seja, a construção se dá a partir da
ressignificação que o eu faz de seus enunciados concretos e dos “outros” e constituise a partir dessa relação com o outro.
Dessa forma, em concordância com Bakhtin (2003[1979]), acreditamos que a
produção acontece a partir do momento que o autor se coloca fora de si mesmo,
vive um plano diferente daquele que vivemos, para que possa completar-se através
de uma arquitetônica (construção), até formar um todo. O escritor (autor-criador),
inicialmente, ao produzir qualquer texto, deve tornar-se outro em relação a si
mesmo, deve se olhar pelos olhos de outro. Bakhtin (2010[1979], p. 37) aprofunda
a questão:
Não posso vivenciar-me convincentemente por inteiro encerrado em
um objeto externamente limitado, todo visível e tátil, coincidindo
completamente com ele em todos os sentidos, mas não posso
representar o outro de modo diferente: tudo o que conheço do interior
dele e em parte vivencio empaticamente eu lhe insiro na imagem
externa como num recipiente que contem o seu eu, sua vontade, seu
conhecimento; para mim, o outro está reunido e contido por inteiro
em sua imagem externa. Enquanto isso, eu vivencio minha própria
consciência como se ela estivesse a abarcar o mundo, a abrangê-lo
e não alojada nele. A imagem externa pode ser vivenciada como
uma imagem que conclui e esgota o outro, mas eu não a vivencio
como algo que me esgota e me conclui.
Tomando a afirmação de Bakhtin, postulamos que, se na vida só o outro pode
me completar, a exotopia é um conceito crucial para o indivíduo compreender sua
realidade e, assim, poder externá-la de forma a ressignificar o olhar do outro para
essa mesma realidade.
Nesse sentido, cabe à escola oportunizar trabalhos em que os alunos sejam
levados a distanciar-se da palavra alheia e compreender esse discurso para que
possam produzir seus enunciados. Tal prática fará com que eles sejam
considerados autores, uma vez que conseguirão não apenas refletir (ler o texto,
56
extrair dele informações), mas reacentuarão esse querer dizer, ou seja, tomarão a
palavra do outro e, de acordo com seu projeto discursivo, reelaborarão essa palavra
com outros acentos, tornando-a, paulatinamente, palavra própria.
Essa questão nos faz pensar que, na perspectiva bakhtiniana, a linguagem
escrita permite a comunicação além do tempo, uma vez que funciona como
mediadora da cultura e é constituída, historicamente, em função da mediação das
produções humanas as quais vão muito além do tempo presente, no sentido do
“tempo grande”, de que fala Bakhtin. Em vista disso, dizemos que a produção de um
texto será o resultado da enunciação, em que o escritor (aluno-criador) produz seu
texto levando em consideração a situação de produção, para que possa orientar seu
querer dizer aos interlocutores de seu texto.
Nosso posicionamento é corroborado em Bakhtin, pois, segundo ele, a autoria
emerge a partir do momento que alguém se coloca e se posiciona em seu texto,
deixando claro o seu “querer dizer”, dito de outra forma, sua intenção no enunciado
que produz, no qual revela seu estilo em consonância a um gênero escolhido.
Assim, evidencia-se a inter-relação entre o que se falou e o que se produziu
(enunciado produzido e a situação de produção). E nesse vai e vem para escolher
as melhores formas de expressões do que deseja dizer e adaptar ao momento, ou a
situação, faz com que surjam marcas de autoria e o estilo do sujeito que produz. É
claro que tudo está permanentemente ligado ao estilo do gênero.
Já Possenti5 (2002) diz que os indícios de autoria são revelados quando
diversos recursos da língua são estabelecidos de forma pessoal, de acordo com o
gosto de cada pessoa. Para o autor, esses fatos devem produzir, também, efeitos de
autoria. Contudo, é preciso esclarecer que só será autor mediante um contexto
histórico, pois os sentidos só acontecem quando passam por um processo de
historicidade. A noção de autoria para o referido autor retoma a questão de estilo, as
quais se completam e se complementam, pela observação e postura dentro de um
texto, pois só assim a presença do sujeito-autor começa se mostrar por meio das
diferentes marcas e recursos estilísticos.
Observamos que o ensino de produção de texto orientado pela perspectiva
bakhtiniana rompe com o discurso monológico que havia nas produções textuais. O
5
Este pesquisador é estudioso da Análise do Discurso (AD), cujo foco está nos campos do humor e da mídia. Além disso,
também direcionou trabalhos para o ensino da Língua Materna, como exemplo, Por que (não) ensinar gramática na escola
(1996) entre outros.
57
interlocutor do aluno era o professor, não havia outros, uma vez que as propostas de
produção eram vazias, destituídas de sentido. Conforme já observamos, o aluno
escrevia para que seu texto fosse aceito pelo professor e, assim, tirar uma boa nota.
Nesse processo de ensino, ressaltamos também a presença de técnicas de
produção, as quais ainda se fazem presentes em alguns materiais e até mesmo há
professores que ainda acreditam nessas fórmulas para o texto nota 10. Isso faz com
que os alunos sejam conduzidos à reprodução de discursos, seguindo os passos
dos materiais, do professor. É uma prática escolar que elimina a atitude responsiva
ativa deles, pois, em boa medida, esses alunos sabem que não haverá um processo
de troca (diálogo) entre eles e seu interlocutor imediato (professor) (LEAL, 2005).
Em virtude dessa prática pouco produtiva, afirmamos que o processo
dialógico da linguagem é o caminho a ser traçado pela escola para a constituição do
aluno-autor. Assim, ao pensarmos na existência de um sujeito do discurso, o qual
será visto como um sujeito crítico, consciente, que compreende seu papel social na
realidade em que vive e sabe que pode agir sobre ela, em que a linguagem é uma
atividade constitutiva desse agir, teremos um aluno-autor ressignificando seu mundo
social.
Para melhor mostrar a importância da construção de sentidos, por meio da
escrita, vemos a necessidade de dirigirmos algumas palavras sobre um dos
estudiosos que mais discutiu sobre ensino-aprendizagem, considerando a linguagem
como constitutiva da interação. Direcionemos nosso olhar para a teoria de Vigotski
na próxima seção.
2.4 Teoria Vigotskiana: Um enfoque sócio-histórico
As ideias teóricas de Vigotski expressam sua preocupação em agregar
características biológicas e sociais do homem, de forma a elucidar o papel da
linguagem no desenvolvimento social do ser humano e na aprendizagem de seus
processos mentais superiores, o que permitirá ao indivíduo sua inserção no mundo
social e, consequentemente, dominar tudo aquilo que é produzido por esse mundo a
fim de transmitir a outras pessoas, num processo ininterrupto.
Dessa forma, no enfoque sócio-histórico vigotskiano, é necessário levar em
conta “a linguagem como um meio de interação social” (VIGOTSKI, 1998 [1930], p.
58
71). Assim, salienta-se que a linguagem tem como uma das funções primordiais
servir como interação entre o aprendiz e os pares mais avançados nas relações de
aprendizagem e desenvolvimento dos processos mentais superiores.
A linguagem interativa perpassa todos os espaços sociais e seu enfoque deve
possibilitar aos aprendizes compreender seu espaço social, agir sobre ele e
entender que nossas relações sociais são mediadas pelo outro. Tendo em vista que
considera
a
linguagem
como
o
condutor
principal
do
desenvolvimento-
aprendizagem, Vigotski interessava-se por esse binômio.
Em vista disso, o estudioso coloca que há dois tipos de desenvolvimento: o
natural e o social. Para ele, o desenvolvimento natural está vinculado aos processos
elementares do sujeito ─ o desenvolvimento dos orgãos (visão, olfato etc.); mas ele
enfatiza o desenvolvimento social e mental, cujo processo é marcado pelas
questões históricas e culturais e, preferencialmente, pelas evoluções dos processos
de aprendizados. Além disso, Vigotski (1998 [1935], p. 103) coloca que “a relação
entre aprendizado e desenvolvimento permanece [...] obscura” e, por isso, procura
defender um enfoque sócio-histórico nessa inter-relação. Segundo ele, “aprendizado
e desenvolvimento estão inter-relacionados desde o primeiro dia de vida da criança”
(VIGOTSKI, 1998 [1935], p. 110).
Também afirma que essa relação continua durante toda a vida pré- escolar
do aprendiz e, por causa dessa última etapa, ele busca investigar e “ver os
elementos especificamente novos que o aprendizado escolar introduz [no caso], o
aprendizado sistematizado” (VIGOTSKI, 1998 [1935], p. 110). Seu objetivo é
descobrir e entender as relações reais “entre o processo de desenvolvimento e a
capacidade de aprendizado” (idem, p. 111) através da consideração de dois níveis
de desenvolvimento socializado.
Conforme Vigotski, o primeiro nível é designado de nível de desenvolvimento
real. É “o nível de desenvolvimento das funções mentais da criança [e do aprendiz]
que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já
completados” (idem, ibidem). Reforçamos que a zona de desenvolvimento real
(abreviada por ZDR) é apresentada por Vigotski como resultado de capacidades e
conhecimento apropriados pela criança. Geralmente, esse aprendizado é aquele que
o aprendiz já internalizou no seu desenvolvimento mental.
59
O segundo nível é a Zona Proximal de Desenvolvimento (ZPD)6:
a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma
determinar através da solução independente de problemas, e o nível
de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de
problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes (VIGOTSKI, 1998 [1935], p. 112)
A ZPD refere-se ao caminho mental que o sujeito vai percorrer para o
desenvolvimento das funções, antes dessas passarem pelo processo de
amadurecimento real. Entendemos esse conceito afirmando que é aquilo que um
aprendiz é capaz de fazer com a ajuda de uma pessoa. A ZPD pode ser identificada
entre a necessidade de ensino e potencialidade de aprendizagem mediada entre o
sujeito mais experiente para com o menos experiente.
Conforme Vigotski, tanto a criança quanto o adulto possuem uma imensa
capacidade de aprendizagem, mas, para que isso se torne evidente, é de suma
importância que o professor forneça possibilidades de apoio ao educando,
colocando-se como o par mais avançado no processo. Além do docente, podem
existir outros: os próprios colegas, pesquisadores, tutores, professores articuladores,
coordenadores, formadores, pois um pode assessorar o outro de forma significativa
na vida escolar.
Portanto, o desenvolvimento humano se instaura nas relações sociais
interativas e mediadas pela aprendizagem.
Para Vigotski, a aprendizagem é culturalmente construída e passa pelo uso
da linguagem. Com isso, pode-se afirmar que a aprendizagem só pode acontecer
por meio da interação social e pelos usos da linguagem. No que se refere à
aprendizagem, Vigotski afirma que:
[...] a aprendizagem não é, em si mesma, desenvolvimento, [...].
Conduz ao desenvolvimento mental, ativa todo um grupo de
processos de desenvolvimento, e esta ativação não poderia
produzir-se sem aprendizagem. [...] Por isso, a aprendizagem é
um momento intrinsecamente necessário e universal para que se
desenvolvam na criança essas características humanas não
naturais, mas formadas historicamente (VIGOTSKI, 2005 [1935],
p. 115).
Nesta pesquisa utilizaremos o termo Zona Proximal de Desenvolvimento (ZPD) em vez de Zona de Desenvolvimento
Proximal (ZDP), uma vez que concordamos com Rojo (2001) ao afirmar que a força da adjetivação não está centrada no
desenvolvimento, mas na zona de intercessão criada pelo ensino-aprendizagem (ROJO, 2001, p.170).
6
60
O pensador russo coloca em pauta que a aprendizagem vai à frente do
desenvolvimento mental, pois ela tem a característica de potencializar o
desenvolvimento mental do indivíduo. A aprendizagem é efetivamente um produto e
um processo de criação e evolução dinâmica que não estanca os saberes, pois ela
interpenetra o tempo todo em nossas vidas sócio-culturais e institucionalizadas
(familiar, escolar, religiosa, acadêmica, artística etc.).
Desse modo, vale reforçar que os fundamentos da teoria de Vigotski auxiliam
na compreensão do processo de ensino-aprendizagem, pois, quando se tem como
propósito enxergar o aluno em seu âmbito social, em seu contato com o “outro” e
seu grupo social, o papel da interação na construção do conhecimento é primordial
para execução das atividades, por isso, a linguagem é concebida como uma das
funções superiores mentais.
Em vista disso, o pensador russo passa a colocar a linguagem nos seus
estudos, e mais particularmente, a linguagem oral e escrita.
Na próxima seção, falaremos sobre a concepção de Vigotski para a
linguagem escrita.
2.4.1 Vigotski e a escrita
Vigotski aponta que a apropriação da linguagem oral e escrita contribui
consideravelmente para o desenvolvimento social do ser humano, pois a escrita,
assim como a fala, representam novos instrumentos de capacitação do pensamento
do sujeito.
Para o pensador russo, a escrita é um poderoso instrumento para o
aprimoramento dos processos mentais superiores ─ a atenção, a imaginação, o
raciocínio, a percepção, a verbalização etc.
Para desenvolver melhor essa ideia de instrumentos, Vigotski escreveu, em
1930, o texto “O método instrumental em psicologia”. Nesse artigo, Vigotski coloca
como premissa básica de instrumento:
No comportamento do homem que encontramos um grande número
de dispositivos artificiais para dominar seus próprios processos
mentais. Por analogia com dispositivos técnicos estes dispositivos
podem justificadamente e convencionalmente ser chamados de
61
ferramentas psicológicas ou instrumentos (VIGOTSKI, 2004[1930],
p.93).
Conforme o autor, não há distinção entre os termos instrumentos e
ferramentas. Porém, ele diferencia os tipos de ferramentas [instrumentos]:
Ferramentas psicológicas são formações artificiais. Por sua natureza
elas são sociais e não dispositivos orgânicos ou individuais. Eles são
direcionados para o domínio dos processos [mentais] ─ o próprio ou
de outra pessoa ─ assim como os dispositivos técnicos são voltados
para o domínio dos processos da natureza (VIGOTSKI, 2004[1930],
p.93).
Vigotski salienta que o instrumento se desdobra em dois: técnicos e
psicológicos (mentais). Ele compreende que as ferramentas técnicas são aquelas
que possibilitam a modificação do processo de adaptação natural. As mesmas
podem servir para as atividades de interferências no ambiente natural.
Já os instrumentos mentais são as criações artificiais elaboradas nos
coletivos dos seres humanos, cujas funções são para controlar os próprios
processos mentais superiores de um indivíduo ─ descrição, relato, narração ─ ou
para controlar os dos outros ─ a comunicação.
Assim, Vigotski apresenta o conceito de ferramentas psicológicas com a
função de orientar e aprimorar os domínios dos processos mentais, como também
alterar as capacidades dos próprios sujeitos como dos outros envolvidos nos
processos interacionais de uso da linguagem.
Vigotski coloca como exemplo de ferramentas psicológicas:
a linguagem, as diferentes formas de numeração e contagem,
técnicas mnemotécnicas, o simbolismo algébrico, obras de arte,
escrita, esquemas, diagramas, mapas, todos os tipos de signos
convencionais etc. (VIGOTSKI, 2004[1930], p. 94) [grifo nosso].
Pela citação acima, pode-se notar que o psicólogo russo aponta o estudo da
linguagem instrumentalizada nas suas formas matemáticas, gestuais, algébricas,
pictóricas, como também nas verbais faladas e escritas. No que diz respeito à
finalidade de nosso trabalho – a escrita, Vigotski também aponta outros
instrumentos psicológicos da escrita.
62
Na obra “Pensamento e linguagem”, Vigotski disserta sobre as relações entre
pensamento e linguagem, e traça considerações sobre a linguagem oral e escrita e
alguns outros instrumentos imbricados a essa ferramenta psicológica.
Inicialmente, o autor russo aponta que “a natureza multifuncional da
linguagem [...] vem atraindo uma atenção cada vez maior” (VIGOTSKI, 2005, [1934],
p. 177) dos pesquisadores. No caso dele, há um interesse pela linguagem oral e
“outras distinções funcionais importantes na fala. Uma delas é a distinção entre o
diálogo e o monólogo” (idem, ibidem).
Vigotski diz que o instrumento “a fala oral, na maioria dos casos, representa o
diálogo” (idem, ibidem). Ainda, afirma que “o diálogo implica o enunciado imediato,
não-premeditado. Consiste em todos os tipos de respostas e réplicas; é uma cadeia
de reações” (VIGOTSKI, 2005 [1934], p. 179). Assim, ele relaciona o diálogo ao
sentido estrito do termo e também à fala oralizada permeada também pelas
expressões faciais, gestuais, corporais etc.
Em contrapartida ao diálogo, o estudioso russo implica que “a escrita e a fala
interior representam o monólogo” (VIGOTSKI, 2005 [1934], p. 177). Assim, a
linguagem escrita e o discurso (fala) interior são monólogos.
No caso da linguagem escrita, ele aponta que o locutor (quem escreve) é
obrigado a usar uma “forma de fala mais elaborada”, mais precisa e complexa do
que a fala dialogada. Essa forma de fala elaborada é o monólogo, “na verdade, a
forma mais elevada e complexa do desenvolvimento histórico posterior” (VIGOTSKI,
2005[1934], p. 179). Trata-se de uma forma mais organizada, mais sistematizada,
criada ulteriormente nas relações sociais humanas devido às demandas humanas
nas produções socioeconômicas e das instituições.
Essa forma de fala mais sistematizada é explicada pelo uso de dois outros
instrumentos psicológicos importantes:
A escrita [...] e a comunicação só pode ser obtida por meio das
palavras e suas combinações, exigindo que a atividade da fala
assuma formas complexas ─ daí a necessidade de rascunhos. A
evolução do rascunho para a cópia final reflete nosso processo
mental. O planejamento tem um papel importante na escrita, mesmo
quando não fazemos um verdadeiro rascunho. Em geral, dizemos a
nós mesmos o que vamos escrever, o que já constitui um rascunho,
embora apenas em pensamento. Esse rascunho mental é uma fala
interior (VIGOTSKI, 2005[1934], p. 179) [grifo nosso].
63
Portanto, Vigotski esboça outros dois instrumentos psicológicos: o rascunho e
o planejamento. Em outras palavras, outros modos de escrever.
É importante ressaltar que, na obra “Pensamento e linguagem”, observamos
que seus textos finais começam a aparecer outros conceitos como interlocutores,
enunciado, discurso. Estes conceitos, com vimos, foram apresentados de forma
profunda pelo Círculo de Bakhtin e ressignificados pelos pesquisadores da
Universidade de Genebra7.
2.4.2 Bakhtin e Vigotski na releitura da Escola de Didática de Genebra
A fonte documental da nossa pesquisa abrange o material das Olimpíadas de
Língua Portuguesa, cujo subsídio teórico para a prática de produção textual está
baseado em alguns princípios desenvolvidos por pesquisadores de didática de
línguas da Universidade de Genebra. Em vista disso, acreditamos que seja
necessário realizar uma breve contextualização cronológica nos trabalhos dos
pesquisadores genebrinos.
Segundo Rojo e Cordeiro (2004, p. 13), esses pesquisadores, da “equipe de
Didática de Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da
Universidade de Genebra”, são, especialmente, Bernard Schneuwly, Joaquim Dolz,
Jean Paul Bronckart, Glaís Sales Cordeiro etc.
Entre os vários focos de pesquisas desses estudiosos, a produção textual
escrita e oral destaca-se. No caso, a concepção de produção escrita está ligada ao
pensamento teórico de Vigotski (década de 1980) e nas releituras desse autor russo
com um outro: Mikhail Bakhtin (década de 1990).
Os pesquisadores tomam essa releitura para a elaboração de sua teoria
didática de produção, em que os avanços científicos na área buscam mostrar os
gêneros textuais escritos como mediadores no processo de ensino e aprendizagem
da linguagem escrita.
7
É importante frisar que não se tem nenhuma informação acerca de uma provável troca de conhecimento entre o círculo de
Bakhtin e Vigotski. Entretanto, os pontos de aproximação entre os dois podem se dar, a nosso ver, devido ao fato de se
servirem, em boa medida, do mesmo método histórico-sociológico para tratar seus objetos de estudo em seus campos
específicos.
64
2.4.3.1 Os didáticos genebrinos e o gênero como megainstrumento
Schneuwly e sua equipe buscam expandir suas pesquisas na didática da
escrita com objetivo de integrar a teoria sócio-histórica de Vigotski com a teoria
enunciativo-discursiva de Bakhtin e seu círculo. Essa relação entre as teorias está
posta no texto “Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e
ontogenéticas”, publicado em 1994. Nesse texto, aparecem algumas releituras feitas
por Schneuwly sobre o conceito de instrumentos ou ferramentas de Vigotski, junto
aos conceitos de gêneros discursivos primários e secundários de Bakhtin.
Schneuwly elabora, no referido texto, uma premissa básica de que “o gênero
pode ser considerado um instrumento psicológico no sentido vigotskiano do termo”
(SCHNEUWLY, 2004[1994], p. 22). Nesse mesmo texto, ele faz outra releitura de
forma metafórica chamando os gêneros de “mega-instrumentos”:
poderíamos aqui construir uma metáfora: considerar o gênero como
“megainstrumento”, como uma configuração estabilizada de vários
subsistemas semióticos [...] permitindo agir eficazmente numa classe
bem definida de situações de comunicação (SCHNEUWLY,
2004[1994], p. 28).
Schneuwly (2004) compreende o gênero textual como um poderoso
instrumento que possibilita desempenhar uma atividade discursiva sobre a realidade
concreta, como também vê o gênero “mega-instrumento” ser utilizado nas situações
de ensino e aprendizado de língua materna. Ele, também, afirma que o gênero dá
forma às práticas discursivas de produção e compreensão de texto, pois serve de
base para a produção textual escrita.
Diante desse fato, o gênero crônica, o relato oral, a crônica esportiva, o
memorial, dentre outros, são sugeridos como objetos de ensino escolares. Além
disso, Dolz e Schneuwly observam que a categoria de gêneros secundários (de
Bakhtin), gêneros complexos em sua constituição e funcionamento, pode ser usada
no ensino-aprendizagem da linguagem escrita formal (DOLZ, SCHNEUWLY,
2004[1996]).
Por essa razão, os didatas acreditam que os gêneros são objetos de ensino
que podem ajudar no desenvolvimento da escrita como também favorecerem o
ensino da linguagem e de suas capacidades em situação escolar. Isso porque
também são ferramentas de aprendizagem para o aluno na escola.
65
2.4.3.2 O gênero como megainstrumento e as capacidades
Dolz e Schneuwly sustentam, em sua proposta didática, o ensino da oralidade
e da escrita sistematizada por meio do emprego das práticas de linguagem ─ os
gêneros como megainstrumento.
Para os didáticos, as práticas de linguagem são as apropriações interativas
acumuladas nas relações entre os grupos sociais no curso de suas histórias. Ainda,
nos dizeres deles: “É devido a essas mediações comunicativas, que se cristalizam
na forma de gêneros, que as significações sociais são progressivamente
reconstruídas” (DOLZ, SCHNEUWLY, 2004, [1996], p. 51) [grifo nosso]. Gêneros e
práticas de linguagem são também empregados para o desenvolvimento das
capacidades de linguagem e das capacidades de linguagem dominantes.
Dolz e Schneuwly salientam que “a noção de capacidades de linguagem
evoca as aptidões requeridas do aprendiz para a produção de um gênero numa
situação de interação determinada” (DOLZ, SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 52).
Essa noção considera as capacidades requeridas para a produção escrita [e
oral] de gêneros secundários de uso público da linguagem e também aquelas que
poderão ser trabalhadas no ensino da ferramenta psicológica escrita.
Já as capacidades de linguagem dominantes são tomadas pelos didatas
suíços para a organização de um currículo aberto ─ aberto, porque podem ser
incluídos mais gêneros de acordo com a realidade educacional de uma escola e,
mais particularmente, as necessidades dos alunos ─ e estão integradas aos
aspectos tipológicos e domínios sociais de comunicação.
As capacidades dominantes são em número de cinco (05) como também os
domínios e os aspectos tipológicos.
No caso dos aspectos tipológicos, Dolz e Schneuwly colocam cinco: “narrar,
relatar, argumentar, expor e descrever ações” ( 2004[1996], p. 60-61) [grifo nosso].
As duas primeiras tratam dos gêneros de nossa pesquisa. A ordem do narrar
considera o gênero crônica literária. Em contrapartida, a ordem do relatar aponta a
crônica esportiva e social, conforme quadro a seguir.
QUADRO 1: PROPOSTA PROVISÓRIA DE AGRUPAMENTO DE GÊNEROS
66
Domínios de comunicação
Aspectos tipológicos
Capacidades de linguagem dominantes
Cultura literária ficcional
Narrar
Mimeses da ação através da criação da
intriga no domínio do verossímil
Documentação e memorização das ações
históricas
Relatar
Representação pelo discurso de
experiências vividas, situadas no tempo
Exemplos de gêneros orais e escritos
Conto maravilhoso
Como de fadas
Fábula
Lenda
Narrativa de aventura
Narrativa de ficção científica
Narrativa de enigma
Narrativa mítica
Sketch ou história engraçada
Biografia romanceada
Romance
Romance histórico
Novela fantástica
Conto
Crônica literária
Adivinha
Piada
Relato de experiência vivida
Relato de viagem
Diário íntimo
Testemunho
Anedota ou caso
Autobiografia
Curriculum vitae
...
Notícia
Reportagem
Crônica social
Crônica esportiva
...
Histórico
Relato histórico
Ensaio ou perfil biográfico
Biografia
...
Recorte do quadro 1 (DOLZ, SCHNEUWLY, 2004 [1996], p. 60) [grifos nossos].
Conforme o referido quadro, Dolz e Schneuwly indicam cinco domínios
sociais, no caso, “cultura literária funcional; discussão de problemas sociais
controversos; transmissão e construção de saberes; instruções e prescrições e
documentação e memorização das ações históricas” (idem, ibidem) [ênfase
adicionada].
As autoras oscilam entre os dois domínios negritados, com ênfase na ordem
do narrar. Em vista das ordens e dos gêneros, são apresentados cinco capacidades
de linguagem dominantes para a organização curricular de agrupamentos:
67
mimeses de ação através da criação da intriga no domínio do
verossímil; sustentação, refutação e negociação de tomadas de
posição; apresentação textual de diferentes formas dos saberes;
regulação mútua de comportamentos; e representação pelo
discurso de experiências vividas, situadas no tempo (DOLZ,
SCHNEUWLY, 2004 [1996], p. 60-61) [grifo nosso].
Desse modo, a crônica e suas multiformes oscilam entre as capacidades de
narrar e relatar.
No caso do nosso objeto de pesquisa, os materiais didáticos da Olimpíada de
Língua Portuguesa tomam o gênero crônica literária para o desenvolvimento de
atividades de escrita. Além disso, apresentam o gênero crônica esportiva na oficina
4 do referido material didático.
Ainda sobre as capacidades de linguagem, Dolz e Schneuwly distinguem três
delas e fazem este comentário acerca da mobilização do trio de capacidades numa
situação de interação escrita:
adaptar-se às características do contexto e do referente
(capacidades de ação); mobilizar modelos discursivos (capacidades
discursivas); dominar as operações psicolinguísticas e as unidades
linguísticas
(capacidades
linguístico-discursivas)
(DOLZ;
SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 52).
Podem-se comparar as capacidades aos gêneros e suas situações concretas.
As capacidades de ação estão ligadas à orientação discursiva dada pelo locutor
(falante, escrevente) ao seu interlocutor, pois envolvem os parâmetros de finalidade
da comunicação, os participantes (locutor e interlocutor), o conteúdo (assunto), o
espaço social e institucional (o contexto).
As capacidades discursivas tratam do
conteúdo temático e da forma composicional do gênero trabalhado. Já as
capacidades linguístico-discursivas consideram o estilo do gênero (a escolha do
léxico, do léxico técnico do gênero, dos elementos morfológicos).
Com base nesses conceitos explorados pelos genebrinos, Dolz e Schneuwly
dizem que, no processo discursivo, o gênero passa por uma escolha orientada e
definida como: conteúdo, destinatário e a finalidade, e se desenvolve como um
instrumento de mediação que envolve seus aspectos composicionais e linguísticos.
Dessa forma, os pesquisadores querem mostrar a ação discursiva em situação
concreta na utilização da linguagem.
68
Apresentado o percurso histórico do ensino da Língua Portuguesa,
especificamente da produção escrita, em que dialogamos com diferentes
perspectivas teóricas que influenciaram o redimensionamento dos objetos de ensino
da língua materna nas décadas de 80 e 90 e nos anos 2000, apresentaremos, no
próximo capítulo, nossa metodologia de pesquisa.
CAPÍTULO III
Metodologia da pesquisa: compreendendo os dados
O texto só tem vida contatando com o outro texto (contexto). Só no ponto
desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e
prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo. Salientemos que este
contato é um contato dialógico entre textos (enunciados) e não um contato
mecânico de “oposição”, só possível no âmbito de um texto (mas não do
texto e dos contextos) entre os elementos abstratos (os signos no interior do
texto) e necessário apenas na primeira etapa da interpretação (da
interpretação do significado e não do sentido). Por trás desse contato está o
contato entre indivíduos e não entre coisas.
(BAKHTIN, 2010 [1974], p. 401)
Nosso objetivo principal, neste trabalho, é analisar como propostas de ensino
presentes em materiais didáticos alternativos8 do tipo cadernos contribuem para a
formação do aluno-autor. Ao nos referirmos a esses tipos de materiais como
alternativos estamos pensando em sua forma de constituição didática e
funcionamento no âmbito escolar. Trata-se de materiais organizados didática e
pedagogicamente de maneira diferente dos livros didáticos.
Os
cadernos
trazem,
geralmente,
uma
única
proposta
de
ensino-
aprendizagem com foco em um único gênero textual/discursivo, baseada,
principalmente, na ideia de sequência didática da Escola Didática de Genebra. Além
disso, esses cadernos, como no caso dos da Olimpíada de Língua Portuguesa, não
8
Esse termo foi utilizado por Santos (2011) para se referir aos materiais didáticos que não são submetidos à avaliação do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), mas que adentram a escola através de programas subsidiados por
investimentos e parcerias público-privados.
69
são elaborados para constar como material didático regular a ser seguido
anualmente no programa de ensino escolar, mas como uma ferramenta de apoio
pontual.
Essa ideia pode ser confirmada pelo fato de os professores não terem, assim
como o têm com o livro didático, liberdade de escolha do material. Esse material é
enviado bianualmente para cada unidade escolar independente de ter sido solicitado
e em número insuficiente para os professores, e quando o mesmo é utilizado, esse
uso, em sua maioria, restringe-se ao período do concurso de produção textual. Outro
fator que nos levou a tomar esses cadernos como tais é que, apesar de haver uma
orientação político-educacional para que nenhum material didático adentre a escola
sem ser analisado pelo MEC, os mesmos têm acesso irrestrito ao espaço escolar até
mesmo, conforme dissemos anteriormente, sem o consentimento e escolha do
próprio professor.
O caderno enfocado, nesta pesquisa, é “A ocasião faz o escritor”, que objetiva
o ensino-aprendizagem do gênero crônica elaborado pelo Centro de Estudos e
Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (doravante Cenpec) no âmbito
do Programa Olimpíada da Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF).
Considerando este objetivo principal, vamos nos deter sobre esse material didático e
as produções dos alunos da aplicação dele decorrente.
Com vistas a atingir este objetivo, mobilizaremos a teoria Enunciativodiscursiva do círculo de Bakhtin e, como teoria auxiliar, a perspectiva de Vigotski
acerca do ensino-aprendizagem no espaço escolar.
Desse modo, este capítulo objetiva descrever os caminhos trilhados e as
perspectivas assumidas no processo de realização de nossa pesquisa, para melhor
esclarecer os procedimentos adotados na coleta e análise dos dados. O capítulo
está dividido em fundamentação teórica em que apresentamos os conceitos-chave
de nosso trabalho, nossos objetivos específicos e questões orientadoras e a
ancoragem metodológica balizadora deste processo.
3.1 Ancoragem teórico-metodológica para a investigação científica em
Ciências Humanas
Nossa pesquisa insere-se no campo das Ciências Humanas em que toma a
abordagem sócio-histórica para a investigação qualitativa. A adoção dessa
70
abordagem está alinhada aos pressupostos teóricos por nós assumidos ao longo
desta pesquisa uma vez que permite entender os fenômenos a partir de seu
acontecimento histórico como um todo envolvendo ao mesmo tempo o particular e o
social. Essa inter-relação (todo) entre o particular e o social explica-se aqui como
sendo o agir de um sujeito sociossituado.
Tais pressupostos coadunam com o posicionamento de Bakhtin que, em seu
texto
Metodologia
das
Ciências
Humanas
(2003[1974-79]),
traz
subsídios
interessantes para pensar novas posturas em relação à pesquisa. Bakhtin diz que o
estudo do homem, nas ciências humanas, reside em sua especificidade humana de
estar em constante processo de expressão e criação, o que impediria de estudá-lo
fora dos textos que produz sob o risco de não se estar fazendo ciências humanas.
Anteriormente, Bakhtin (2010[1959-61]) já dizia que o texto é o dado primário
de qualquer disciplina em ciências humanas. O autor questiona a possibilidade de
compreender a vida do homem sem considerar os textos de signos criados por ele
ou por criar e essa é uma das razões pela qual o homem não pode ser estudado
como fenômeno ou coisa, mas como o homem social que fala (cria discursos).
Sendo assim, sua ação física deve ser estudada como atitude e inserida em sua
expressão
sígnica
(motivos,
objetivos,
estímulos,
graus
de
assimilação)
constantemente recriada pelo outro. Assim:
Por toda parte há o texto real ou eventual e a sua compreensão. A
investigação se torna interrogação, conversa, isto é, diálogo. Nós não
perguntamos à natureza e ela não nos responde. Colocamos as
perguntas para nós mesmos e de certo modo organizamos a
observação ou a experiência para obtermos a resposta (BAKHTIN,
2010[1959-61], p. 319).
Bakhtin demonstra com isso a diferença entre o objeto das ciências humanas
do das exatas. O objeto daquela é um sujeito que tem voz, por isso o pesquisador
precisa estabelecer um diálogo com ele e não apenas contemplá-lo e dele falar. O
homem não pode ser objeto de uma explicação de uma só consciência, mas ser
compreendido, o que pressupõe duas consciências, dois sujeitos, portanto, uma
orientação dialógica, em que o pesquisador faz parte da própria situação de
pesquisa. A perspectiva dialógica em ciências humanas implica integrar pesquisador
e pesquisado em partes do mesmo processo investigativo. Já nas ciências exatas, o
fazer científico é compreendido como uma forma monológica do saber:
71
[...] o intelecto contempla uma coisa e emite enunciado sobre ela. Aí
só há um sujeito: o cognoscente (contemplador) e falante
(enunciador). A ele só se contrapõe a coisa muda. Qualquer objeto
do saber (incluindo o homem) pode ser percebido e estudado como
coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado
como coisa porque, como sujeito e permanecendo sujeito, não pode
tornar-se mudo; conseqüentemente, o conhecimento que se tem dele
só pode ser dialógico (BAKHTIN, 2010[1974-79], p. 400).
A perspectiva dialógica muda tudo em relação à pesquisa, pois coloca em
jogo, em ciências humanas, não a precisão do conhecimento, mas necessariamente
a profundidade da penetração e a participação do pesquisador e do pesquisado.
Nessa perspectiva, ambos, durante o processo de pesquisa, passam por constantes
transformações, ressignificações, aprendizagem e desenvolvimento por meio da
interação pela linguagem (os textos sígnicos), cujo estudo começa obrigatoriamente
pela compreensão.
A forma dialógica de fazer pesquisa pressupõe dois movimentos principais: a
aproximação e o distanciamento.
A aproximação consiste em compreender o sujeito, o objeto da pesquisa, em
seus próprios termos, ou como diz Bakhtin entrar em empatia com o outro “[...] ver
axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele”
(BAKHTIN, 2010 [1920-1924], p. 23). A aproximação faz parte de uma etapa
imprescindível do trabalho para que o pesquisador consiga situar o lugar do seu
sujeito-objeto pesquisado bem como compreender seu próprio lugar no contexto da
pesquisa. Entretanto, não se espera desse movimento a repetição do outro e sim
ponto de partida para a sua complementação.
Nisso está implicado outro movimento: o de distanciamento, que pressupõe o
retorno do pesquisador ao seu próprio lugar (base teórica, seus valores, suas
concepções de mundo etc.). Essa movimentação entre lugares (contextos)
diferentes fundamenta um conceito importante para a atividade de pesquisa —
exotopia (BAKHTIN, 1920-1924), que consiste em
depois de ter retornado ao meu lugar [do pesquisador] contemplar o
horizonte dele [do pesquisado] com o excedente de visão que desse
meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um
ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do
72
meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento
(BAKHTIN, 2010 [1922-1924], p. 23).
Assim, essa dupla movimentação de lugares sempre envolve uma postura
alteritária entre duas consciências (eu e um outro), no mínimo. A análise do
pesquisador deve completar o horizonte do sujeito-objeto investigado, dando-lhe
novo sentido, construído apenas do lugar singular que ocupa o pesquisador com
seus valores e pontos de vista. Sendo assim, a diferença de lugares constitui
condição para a compreensão do sujeito/contexto pesquisado.
Vale ressaltar que o eu e o outro é fundamental para o desenvolvimento da
nossa pesquisa, já que os outros são os alunos participantes da OLPEF e os autores
do projeto de ensino, sujeitos da pesquisa, presentes nos discursos materializados
nos textos por nós tomados como unidades de análise — o Caderno “A ocasião faz
o escritor” e as crônicas produzidas pelos alunos.
Sobral (2005), ao comentar o texto de Bakhtin sobre o fazer pesquisa em
ciências humanas, diz que
toda pesquisa implica, em princípio, um conhecimento e um
desconhecimento; conhecimento no sentido de impressões advindas
do fenômeno, condição da pesquisa, pois se não tem idéia do que
procura ao construir seu objeto, o pesquisador não o pode procurar,
e desconhecimento, no sentido de que o pesquisador não percebe,
nesse momento, aspectos do objeto que não se dão imediatamente
ao olhar, porque, se já sabe tudo do objeto, o pesquisador não tem
uma pesquisa a fazer. (SOBRAL, 2005. p. 115).
No processo de fazer pesquisa dialógica, os sentidos nascem do confronto
das diferentes vozes sociais que emergem da relação do pesquisador com seu outro
ou outros. E esses sentidos só são dados ao pesquisador na forma de textosdiscursos, construídos nas fronteiras de duas (ou mais) consciências replicantes (no
sentido de respostas). Para permitir essas diversas vozes falarem, os outros são
inscritos no contexto da pesquisa, mas sem sua anulação. Pois, assim como diz
Sobral (2005), nos termos bakhtinianos:
o agir do sujeito é um conhecer em vários planos que une processo
(o agir no mundo), produto (a teorização) e valoração (o estético) nos
termos de sua responsabilidade inalienável de sujeito humano, de
sua falta de escapatória, de sua inevitável condição de ser lançado
no mundo e ter ainda assim de dar contas de como nele agiu
(SOBRAL, 2005, p.118).
73
Conforme se pode depreender, o agir do pesquisador é um ato ético e
responsável, assinado do lugar singular que este assume no contexto sócio-histórico
preciso da pesquisa. Nisso consiste um dos pontos importantes dos movimentos de
aproximação e de distanciamento no processo de fazer ciências humanas.
É necessário pensarmos que qualquer texto precisa estar articulado no
processo autoral, em que o autor criador mantém uma inter-relação com o objeto
discursivo e seu interlocutor, integrados no elemento discursivo. Dessa assertiva
pode-se depreender que estamos no âmbito das relações discursivas que não se
restringem às formas de diálogo face a face, mas estão inseridas nas correntes
discursivas.
Tomamos,
nesta
pesquisa,
as
relações
dialógicas
e
seus
desdobramentos nas formas de vozes sociais e criação autoral como fundamentos
para nos debruçar sobre as produções de crônicas dos alunos investigados na
OLPEF (2010).
Em
conformidade
com
a
orientação
teórico-metodológica
assumida,
entendemos que não basta em uma pesquisa dialógica apenas coletar os dados,
descrevê-los, falar deles, mas colocar nosso excedente de visão em prática, isto é,
dialogizar com os dados e ouvir as vozes que se sobressaem, pois o pesquisador,
em ciências humanas, precisa além de observar de fora, saber também ouvir os
dizeres e transformá-los em palavras próprias. Assim, a relação entre pesquisador e
pesquisado estabelece-se sempre no discurso. Fora dessa relação dialógica não há
sentido, uma vez que estamos sempre mergulhados em contextos discursivos sóciohistoricamente constituídos.
Além disso, a construção do sentido por meio das relações dialógicas é
sempre um contínuo, constantemente reformulado pela compreensão criadora do
outro. Amorim (2001) pensa essa reflexão do ponto de vista do labor do pesquisador
que, a cada etapa, implica sempre um novo olhar, um reconstruir, porque:
Compreender não deve excluir a possibilidade de uma modificação
de seu próprio ponto de vista. O ato de compreensão supõe um
combate onde o que está em jogo reside numa modificação e num
enriquecimento recíprocos (AMORIM, 2001, p. 192).
No movimento próprio do fazer científico, pensamos que a construção de
sentido da pesquisa está em um plano discurso ininterrupto e é preciso vê-la na
74
alteridade, uma vez que, para produzirmos um texto, precisamos, além do
conhecimento das formas relativamente estáveis dos gêneros do discurso, do
contato direto com o outro, de modo participativo, e este contato sempre nos
modifica. É por isso que Amorim (2001) afirma que o texto de pesquisa em ciências
humanas se tece entre o lógico e o dialógico, entre a diferença e a alteridade. A
compreensão dessa forma de relação passa pelo entendimento da criação autoral
uma vez que:
Buscar os destinatários é buscar as instâncias criadoras. Aqueles
que, por oposição ou por acordo, compõem com o autor um diálogo
permanente que atravessa o texto e constitui sua tensão de base. É
também buscar as escolhas do autor: aqueles a quem ele escolheu
responder e aqueles a quem ele escolheu não responder [...]
(AMORIM, 2001, p. 16).
Desse modo, entendemos que a linguagem são relações dialógicas e fora
disso não existe possibilidade de sentido porque essas relações implicam sempre
um ato de compreensão ativa em um processo de interação em que estão
envolvidos no mínimo um autor, um objeto discursivo e um destinatário. Assim, o
discurso é sempre direcionado e espera uma compreensão na forma de resposta
ativa.
Tais elementos são bastante pertinentes para refletirmos sobre como o
material didático por nós analisado propõe o ensino-aprendizagem da prática
discursiva do gênero crônica e de que forma os alunos apropriam-se da palavra do
outro (do material didático) para construir seu próprio texto-discurso.
Tendo em vista nossa fundamentação teórica e nosso objetivo principal,
estabelecemos como categorias de análise os conceitos de dialogismo, vozes e
autoria na perspectiva bakhtiniana. Tomamos por objeto de pesquisa a criação
autoral dos alunos finalistas do concurso da OLPEF (2010), na categoria crônica,
construída na interação com a proposta didática para o referido gênero.
Para orientar melhor nossos procedimentos de pesquisa, elaboramos os
seguintes objetivos de pesquisa:
1) Analisar o encaminhamento didático do Caderno “A ocasião faz o escritor” e os
efeitos de sentidos provocados no espaço escolar.
75
2) Observar se as vozes9 que perpassam os discursos dos alunos demonstram
autonomia no diálogo com o outro.
3) Analisar se os alunos conseguem alçar-se autores de suas crônicas para a
OLPEF.
Tais objetivos servem-nos de guia para alcançarmos as seguintes questões
de pesquisa:
1) De que forma o Caderno “A ocasião faz o escritor”, da OLPEF, encaminha a
proposta de formação de autores de crônica no espaço escolar?
2) Quais vozes os alunos mobilizam nas produções discursivas das crônicas?
3) Como a autoria se constituiu nas crônicas produzidas pelos alunos participantes
da OLPEF?
Na próxima etapa, apresentaremos os procedimentos metodológicos
utilizados em nossa pesquisa para a coleta e análise de dados.
3.2 A base metodológica para a coleta dos dados
Em consonância com a abordagem em um contexto sócio-histórico assumida,
para o tratamento dos dados optamos pela investigação de natureza qualitativa
numa perspectiva dialógica para a coleta, seleção e análise dos dados. Demo (2004)
observa que uma das características encontradas pelo pesquisador dessa
metodologia é a imprecisão dos conceitos, começando pelo de qualidade, para o
qual o autor sugere pensá-lo como “intensidade” e não como extensão. Assim, na
pesquisa qualitativa, é importante perceber o fenômeno, observar sequências,
contextos, validar, interpretar, realçar valores, opiniões e atitudes.
9
O termo vozes é utilizado no sentido metafórico, pois na “teoria enunciativo-discursiva de Bakhtin, o conceito de vozes diz
respeito à presença do outro como princípio constitutivo da produção e funcionamento discursivo. Compreende o processo
real de representação da fala social de outrem no discurso e também diz respeito a um processo constitutivo da produção
discursiva”. (SANTOS, S. N. A discursividade no caderno ―Ponto de Vista, da olimpíada da língua portuguesa escrevendo
o futuro, 2011 p. 30-31)
76
A metodologia de investigação qualitativa tem sido bastante utilizada de forma
articulada com a abordagem sócio-histórica no campo de pesquisa em ciências
humanas. Isso porque ao tomar como sujeito-objeto o homem social que fala, as
ciências humanas elegem o texto como o dado primário para a investigação.
Entretanto, o objetivo não é o texto em si, mas a compreensão do comportamento a
partir da perspectiva dos sujeitos envolvidos e, por meio deles, o contexto de
interação.
Pelas razões acima descritas, uma investigação qualitativa com enfoque
sócio-histórico recusa a criação artificial de situação de pesquisa, mas busca a
situação no seu processo de desenvolvimento porque objetiva compreender os
fenômenos em toda sua complexidade e em acontecimento histórico.
É nesse sentido que se diz que os estudos qualitativos adotam uma
perspectiva de totalidade em que todos os componentes da situação e suas interrelações e influências recíprocas são considerados (FREITAS, 2002). Essa
orientação é fundamentada anteriormente por Bodgan e Biklen (1994) para os quais,
em investigação qualitativa, o pesquisador vai a campo com uma preocupação
inicial, um objetivo central e questões orientadoras. A compreensão desses
elementos implica uma aproximação no contexto da pesquisa a fim de se familiarizar
com a situação e os sujeitos a serem estudados.
Para tal compreensão, o pesquisador vai ao local em que acontecem os fatos
de interesse na pesquisa, observa-os, recolhe material produzido no local
relacionado a eles. Isso é o que os autores definem como trabalhar com dados
qualitativos, os quais são:
[...] ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas, locais,
conversas, e de complexo tratamento estatístico. As questões a
investigar não se estabelecem mediante a operacionalização de
variáveis, sendo, outrossim, formuladas com o objetivo de investigar
fenômenos em toda sua complexidade e em contexto natural [...]
Privilegiam, essencialmente, a compreensão dos comportamentos a
partir da perspectiva dos sujeitos da investigação (BODGAN;
BIKLEN, 1994, p. 16)
Assim, articulada à descrição minuciosa de textos ou imagens construídos no
contexto de pesquisa estabelecem-se uma explicação, interpretação e análise dos
dados em toda sua riqueza, respeitando a forma como eles foram registrados
77
porque, neste tipo de investigação, nada pode ser trivial e tudo tem potencial para se
tornar elemento importante para compreender melhor o objeto pesquisado.
A nosso ver, a investigação qualitativa de abordagem sócio-histórica é a
metodologia mais adequada para pensarmos nossos dados e o objeto de pesquisa
tendo em vista nossos objetivos, questões e preocupações subjacentes, por isso a
inserção de nosso trabalho nesse campo de pesquisa. Essa metodologia também é
coerente com a estratégia de investigação adotada que é a pesquisa documental,
com base na qual tomamos duas fontes para a seleção dos corpora: o Caderno “A
ocasião faz o escritor” e as produções de crônicas dos alunos finalistas da OLPEF.
Na próxima etapa, vamos apresentar os dois corpora por nós constituídos e
os procedimentos adotados em tratamento — a coleta e a seleção.
3. 3 O primeiro corpus: o Caderno “A ocasião faz o escritor”
A fim de situar o leitor, o Caderno “A ocasião faz o escritor” faz parte da
coletânea de materiais didáticos produzidos pela OLPEF com o objetivo de fomentar
e subsidiar o trabalho de língua portuguesa tendo os gêneros textuais 10 como objeto
de ensino-aprendizagem. Além do Caderno com foco no gênero crônica, por nós
aqui analisado, o Programa elaborou também o Caderno poesias, de memórias e de
artigo de opinião. Da forma como foram divididos os materiais, todas as séries
escolares são contempladas pelo Programa, que adota a estratégia do concurso de
produção textual, aplicado sempre nos anos pares, cujo fito é atrair alunos para o
mundo da escrita e professores para a formação na perspectiva dos gêneros
textuais11.
Em termos gerais, a sequência didática constitui-se em um procedimento
metodológico que envolve atividades variadas, organizadas de forma sistemática em
torno de um objeto de ensino. Essa sistematização é subdividida em etapas que os
autores denominam de apresentação da situação, produção inicial, módulos e
10
A perspectiva dos gêneros textuais é assumida pelo material analisado por nós. Entretanto, a perspectiva por nós
assumida é a discursiva, conforme os referenciais teóricos por nós assumidos. Nesse trabalho, não vamos nos deter sobre
essa questão uma vez que se trata de uma discussão sobre a qual, muitas vezes, não há nenhum consenso na academia,
haja visto os trabalhos apresentados em diferentes encontros e seminários, como o SIGET (Simpósio Internacional de
Gêneros Textuais).
11 O Caderno “A ocasião faz o escritor” (crônica) volta-se para alunos do 9º Ensino Fundamental e 1ª série do Ensino Médio;
o Caderno “Poetas da Escola” (poesias) para os 5º e 6º anos do Ensino Fundamental e o Caderno “Se bem me lembro...”
(memórias literárias) para 7º e 8º anos do Ensino Fundamental e o Caderno “Pontos de Vista” (artigo de opinião) para as 2ª
e 3ª séries do Ensino Médio.
78
produção final. Segundo Barbosa (2001), a sequência didática supõe um caminho
indutivo no percurso do qual o aluno é levado à manipulação, ao uso, à reflexão e à
apropriação dos elementos que constitui um gênero. A intenção é levar o aluno do
complexo (produção inicial) para o simples (discretização dos elementos do gênero)
e de volta para o complexo (produção final). Nosso interesse por esse Programa
insere-se no contexto maior do projeto de pesquisa (Programa de Pesquisa do Perfil
circulação e uso do livro didático de Língua Portuguesa (LDP-Properfil), cujas ações
no âmbito do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem são
orientadas por Padilha (2004).
A partir do ano de 2008, com a institucionalização da OLPEF, o grupo de
pesquisa passa a se interessar pelos materiais do tipo Cadernos elaborados por
esse Programa a fim de responder à ausência de avaliação institucional desses
materiais presentes em todas as escolas públicas do país, além de pensar se o
montante de investimento público-privado feito no Programa e a amplitude de suas
ações alcançam os seus fins principais. Como parte das ações desse grupo de
pesquisa com esse enfoque já foi desenvolvido um trabalho de mestrado e três
encontram-se em andamento.
Em relação à nossa escolha pelo Caderno “A ocasião faz o escritor”,
percebemos que a crônica é, muitas vezes, tratada no espaço escolar de forma
simplificada e fragmentada, com o objetivo de formar o leitor. Considerando o baixo
número de materiais didáticos voltados para o ensino-aprendizagem da produção
escrita do gênero crônica, e levando em conta o fato de se tratar de um gênero
híbrido que carrega estilos e formas variadas com um potencial imenso de reflexões,
achamos altamente pertinente analisar como o material encaminha o projeto de
ensino e, se dessa forma, favorece a formação do aluno-autor.
Para coleta e seleção de dados do Caderno, servimo-nos de duas versões
desse documento: uma impressa e outra digital. O acesso ao documento impresso
desta pesquisa foi nos dado por nossa orientadora, que também é a docente
formadora do Programa no Estado de Mato Grosso. A versão digital do documento
foi acessada no site da comunidade virtual do Programa12.
Na próxima seção, apresentamos o processo de escolha, coleta e seleção do
segundo corpus.
12
Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro: www.escrevendoofuturo.org.br; www.escrevendo.cenpec.org.br
79
3.4 O segundo corpus: as produções de crônicas dos alunos
Nosso segundo corpus é constituído pelas produções de crônicas de alunos
finalistas da OLPEF (2010). O enfoque em produções de crônicas de alunos em
contexto escolar pode nos permitir entender a interferência das práticas pedagógicas
na formação do aluno-autor. Além disso, é interessante estudar um gênero de
natureza social híbrida como o é a crônica e ver como ele permite versar sobre
aspectos sociais altamente complexos a partir do olhar singular do cotidiano. Este
gênero nos mostra a importância do olhar coletivo, da presença da voz do outro em
nossos discursos.
Vale ressaltar ainda que falar em crônica nos permite aproximar de um
gênero que, muitas vezes, tem sido tomado de forma inapropriada no espaço
escolar. Assim, muitas vezes o estudo da crônica fica restrito a leituras focadas na
temática e nas questões gramaticais, não sendo o mesmo tomado como gênero
discursivo. Diante disso e da presença ainda insuficiente de estudos brasileiros
voltados para a crônica como objeto de ensino-aprendizagem escolar, a nossa
escolha pretende ampliar a compreensão desse objeto ainda pouco estudado pelos
alunos em dinâmicas escolares.
Os dados referentes às produções de crônicas dos alunos foram coletados no
site da comunidade virtual do Programa que as disponibiliza em arquivo pdf. O
Programa também publica esses textos finalistas em um livro ao qual não tivemos
acesso. Para a coleta e escolha de dados, selecionamos um corpus com 150 textos
de crônicas.
Após uma leitura cuidadosa do corpus, selecionamos dele dez textos que
mais se aproximaram da prática discursiva do gênero crônica, já aqueles textos, cuja
autoria estava colada (revozeada) nos textos exemplares em crônica fornecidos pelo
projeto de ensino, foram descartados.
É interessante observar que as crônicas finalistas por nós coletadas já
passaram por pelo menos quatro seleções: a melhor da sala, da escola, do
município e do estado. Era de pressupor, então, que os alunos, nessa etapa,
tivessem mais familiaridade com a prática discursiva do gênero, o mesmo podendo
ser estendido aos professores. A presença maciça de textos com autoria colada nos
80
textos exemplares no gênero fornecidos pelo projeto de ensino nos serve para
refletir sobre a dimensão que adquire o material didático em seu processo de
produção.
Para não restringirmos os dados da pesquisa a uma determinada localidade,
a escolha dos dez textos também foi feita de acordo com as cinco regiões
participantes, contemplando cada região com dois textos, o que em percentual
equivale a 20% por região. Ao organizar a composição do corpus das produções da
forma como está apresentada no gráfico abaixo pretendíamos nos servir de uma
amostra, cujos dados fossem representativos das cinco regiões do Brasil: Centro
Oeste, Sul, Norte, Sudeste e Nordeste.
Gráfico 1: Percentual de participantes por região do corpus selecionado.
Assim, nosso corpus de pesquisa foi constituído das melhores crônicas
finalistas do concurso de produção textual da OLPEF. Para fazermos essa seleção
observamos, principalmente, como os alunos mobilizavam conhecimento de mundo
e da cultura e os integravam aos seus discursos, sem nos ater tanto à adequação
gramatical por não acreditarmos ser esse o critério definidor de um bom texto.
Na seção a seguir, apresentamos os corpora constituídos a partir da coleta e
seleção dos dados.
81
3.5 A base metodológica para análise dos dados
Para proceder à análise dos dados de forma a responder nossas questões de
pesquisa e atingir nossos objetivos propostos realizamos os procedimentos a seguir.
Em relação aos dados do Caderno “A ocasião faz o escritor” havíamos
definido como preocupação subjacente analisar como o encaminhamento didático
do projeto de ensino favorecia a formação do aluno-autor, isto é, a assunção da
autoria do aprendiz do gênero crônica. Para isso, fizemos uma leitura cuidadosa de
todo o projeto de ensino e levantamos a quantidade de oficinas e de atividades. A
sequência didática do gênero crônica no Caderno “A ocasião faz o escritor” está
organizada em 11 oficinas, que compreende 39 atividades.
De posse dessas informações e sem perder de vista nosso objetivo principal
de investigar as contribuições do projeto de ensino em prol da formação do alunoautor, tomamos para análise atividades que tematizam de alguma forma elementos
propícios para pensar a construção de sentidos no gênero crônica e, subjacente a
isso, a autoria do aluno. Partindo do pressuposto de que os aspectos linguísticodiscursivos constituem pistas altamente importantes para conhecer aqueles
elementos, decidimos tomar como amostra para análise algumas atividades de
didatização dos aspectos linguístico-discursivos do gênero crônica.
Em relação às produções, durante o processo e análise dos dados,
observamos a adequação discursiva dos textos e não a adequação linguística.13
Nesse procedimento, olhávamos os textos dos alunos tentando encontrar as marcas
de autoria, para isso, o estilo mostrou-se bastante pertinente. Observávamos
também até que ponto os alunos atendiam aos elementos presentes nos critérios de
avaliação do próprio Caderno.
No que diz respeito à preocupação com a autoria, consideramos textos com
autoria aqueles em que podíamos sentir uma orientação discursiva bastante clara e
reflexiva, que buscaram, além das normas gramaticais, trazer as vozes que fazem
pensar a realidade do cotidiano; vozes que não só reproduziam dizeres alheios, mas
13
Entendemos que a adequação linguística está interligada com a adequação discursiva. A divisão
aqui assumida deve-se ao nosso foco neste trabalho de investigar se os alunos conseguem ser
autores de crônicas. Para atingir esse objetivo, nosso olhar está direcionado para a situação de
produção e para o estilo do gênero. Estes elementos caracterizam adequação discursiva.
82
que conseguiam mostrar o teor da crônica com originalidade e representatividade
estilística, sem abandonar as questões críticas e criativas do gênero. Ancorados no
método qualitativo de perspectiva dialógica, buscamos um olhar mais reflexivo, para
que pudéssemos entender como a discursividade foi construída pelos alunos. Por
isso, levantamos elementos que nos permitissem entender a orquestração das
vozes que compunham os textos dos alunos finalistas da OLPEF.
Aqui, trata-se apenas de uma amostra dos elementos que foram privilegiados
na escrita da crônica e seus desdobramentos. Esses elementos nos serviram para
pensar se o aluno alçou-se autor do seu próprio discurso.
No próximo capítulo, procederemos à análise do Caderno “A Ocasião faz o
escritor”, material selecionado para orientação de produção de textos, e
posteriormente, analisaremos de forma detalhada as crônicas dos alunos finalistas
participantes do segundo concurso da OLPEF (2010).
83
CAPÍTULO IV
A Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro: Um Olhar sobre o caderno
de crônicas “A ocasião faz o escritor”
[...] (a crônica) para muitos pode servir de caminho não
apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a
literatura. Por meio dos assuntos, da composição solta, do
ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se
ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque
elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo
de ser mais natural.
(Antonio Candido)
No capítulo 4, pretendemos apresentar como está constituído o projeto de
ensino do gênero crônica no Caderno “A ocasião faz o escritor”. Para isso, antes,
pensaremos um pouco sobre a constituição do gênero crônica tomada do ponto de
vista historiográfico, literário e, por fim, discursivo. Para entender a proposta de
ensino da crônica presente no Caderno, apresentamos a base teórica e
metodológica que lhe dá fundamento, a Escola Didática de Genebra, para, nas
próximas seções, fazermos uma análise mais detalhada de como a sequência
didática está organizada internamente e quais são os elementos do gênero
privilegiados em seu processo de didatização.
O Caderno destinado ao ensino do gênero crônica do Programa Olimpíada de
Língua Portuguesa: Escrevendo o Futuro, A ocasião faz o escritor, traz um título que
nos remete para a observação de situações cotidianas, nas quais a interação é o
ponto norteador para a formação dialógica, na constituição do sujeito-autor. Esse
movimento dialógico é importante para nosso trabalho, pois perfaz um dos nossos
focos, constituindo parte de nosso objetivo nesta pesquisa: o de analisar o projeto
didático do referido Caderno e seus efeitos de sentidos suscitados na esfera escolar,
onde circula o Caderno.
Dessa forma, para analisarmos o Caderno A ocasião faz o escritor, das
orientações aos professores às atividades dirigidas aos alunos, apresentaremos
algumas definições propostas por críticos literários e linguistas aplicados acerca
desse gênero. Nosso intuito é entender as aproximações e os distanciamentos entre
84
alguns conceitos em relação à crônica, a fim de entendermos qual perspectiva o
material assume para orientar a prática do professor e dos alunos.
Nesse diálogo com os conceitos advindos da Literatura e da Linguística
Aplicada, detalharemos alguns deles, por considerarmos que se trata de um gênero
multifacetado, o qual, conforme pontua Candido, na epígrafe, permite uma
construção solta, livre, o que já impede, de certa forma, uma classificação rígida em
determinado tipo. Do ponto de vista bakhtiniano, sob uma perspectiva sóciohistórica, é difícil estabelecermos um modelo de gênero prévio, o que podemos, na
verdade, é levantar alguns aspectos que estiveram/estão presentes em suas
manifestações concretas e, desse apanhado, fazermos alguns apontamentos.
Feita a historicidade do gênero (origem, conceito), descreveremos, nas
seções seguintes, o Caderno de crônicas, a fim de observar e analisar as
orientações apresentadas teoricamente no material de apoio ao professor e de que
forma auxiliam na construção de uma prática ativa do desenvolvimento dos alunosautores, participantes do concurso. Além disso, analisaremos as atividades do
Caderno para compreendermos como as atividades colaboram para a formação dos
alunos-autores.
4.1 O Gênero Crônica
A crônica pode ser considerada um gênero híbrido, presente na literatura e no
jornalismo. Ela foge da característica comum aos outros gêneros do discurso
jornalístico, por conta da sua linguagem que oscila passando entre língua formal e a
informal. Dessa forma, não podemos restringir nosso estudo apenas para o
conteúdo temático, mas devemos observar também o estilo do cronista, dada a
flutuação que ocorre no uso da língua nas crônicas.
A crônica surge como um relato de acontecimentos históricos, registrados por
ordem cronológica nos moldes da historiografia medieval. Apresentava uma visão
mais geral (acontecimentos de uma nação de um povo) ou mais particular (fatos
ligados à vida de um rei), assim como podia destacar fatos mais relevantes ou
secundários, geralmente, ligados à nobreza. A partir de Fernão Lopes, no século
XVI, é que a crônica começou a tomar uma perspectiva individual ou interpretativoartística. Podemos visualizar mesmo esse aspecto até em crônicas do século XV
85
como no trecho da Crônica da Guiné, abaixo transcrito, do cronista medieval
português, Gomes Eanes de Zurara, o qual incide sobre o momento da distribuição
dos africanos capturados pelos portugueses:
Mas, para seu dó ser mais acrescentado, sobrevieram aqueles que
tinham cárrego da partilha e começaram de os apartarem uns dos
outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei,
somente cada um caía onde o a sorte levava.
Ó poderosa Fortuna, que andas a desandar com tuas rodas,
compassando as cousas do mundo como te praz! E sequer põem
ante os olhos daquesta gente miserável algum conhecimento das
cousas postumeiras, por que possam receber alguma consolação em
meio de sua grande tristeza! E vós outros, que vos trabalhais desta
partilha, esguardai com piedade sobre tanta miséria e vede como se
apertam uns com os outros, que apenas os podeis deslegar! ¿Quem
poderia acabar aquela partição sem mui grande trabalho? — ca,
tanto que os tinham postos em uma parte, os filhos, que viam os
padres na outra, alevantavam-se rijamente e iam-se para eles; as
madres apertavam os outros filhos nos braços e lançavam com eles
de bruços, recebendo feridas com pouca piedade de suas carnes,
por lhe não serem tirados (Eanes de Zurara. Crônica da Guiné apud
R. LAPA, 1940, pp. 50-54).
Neste pequeno excerto da Crônica da Guiné, podemos perceber que Zurara,
apesar de não criticar o expansionismo conquistador português, deixa transparecer
uma nota de humanismo diante da cena de distribuição da leva de africanos que,
capturados nas expedições, foram levados a Portugal e distribuídos como “mercês”
entre nobres portugueses. Notamos no relato de distribuição uma interpretação
artística da cena mostrada como dolorosa ao retratar os africanos sendo
organizados em lotes e separados de seus filhos e amigos com brutalidade.
A crítica costuma apontar que o pensamento crítico na crônica surgiu com a
imprensa periódica (folhetins e jornais), no século XIX. Entretanto, a esse respeito é
preciso cautela, pois as crônicas de Fernão Lopes, escritas no século XVI, já trazem
em si notas não apenas interpretativas, mas também críticas, acerca dos
acontecimentos relatados, como bem demonstra um trecho por nós selecionado da
Crônica de D. Pedro I, em que o cronista retrata o momento do castigo dos
assassinos de Inês de Castro:
A maneira de sua morte, sendo dita pelo miúdo, seria mui estranha e
crua de contar, ca mandou tirar o coração pelos peitos a Pero
Coelho, e a Àlvaro Gonçalves pelas espáduas; e quais palavras
ouve, e aquele que lho tirava, que tal ofício havia pouco em costume,
seria bem dorida cousa d’ouvir, enfim mandou-os queimar; e tudo
feito ante os paços onde ele pousava, de guisa que comendo olhava
quanto mandava fazer.
86
Muito perdeu el-Rei de sua boa fama por tal escambo como este, o
qual foi havido em Portugal e em Castela por mui grande mal,
dizendo todolos bons que o ouviam, que os Reis erravam mui muito
indo contra suas verdades, pois que estes cavaleiros estavam sobre
segurança acoutados em seus reinos (Fernão Lopes. Crônica de D.
Pedro I, apud CAMPOS, 1921, pp. 57-59).
Podemos
notar
que
Fernão
Lopes
deixa
transparecer,
ainda
que
indiretamente “dizendo todolos bons que o ouviam”, certa apreciação negativa
acerca da atitude de D. Pedro I, o que denota, portanto, uma crítica ao
comportamento do rei. Voltando à idade moderna, a presença da crônica nos jornais
iniciou com um pequeno texto de abertura que falava de maneira geral dos
acontecimentos do dia. Em seguida, passou a assumir um espaço nos folhetins
(coluna da primeira página do periódico) e, por fim, adentrou de vez o Jornalismo e a
Literatura.
De acordo com Sá (1987), a crônica, assim como o jornal, nasce, cresce,
envelhece e morre em vinte e quatro horas. Pelo fato dessa veia jornalística imprimir
fugacidade e um traço popular que se opõem ao caráter dos gêneros literários,
talvez a crítica a considere como um gênero menor. Coutinho (1995), ao contrário,
aponta que o fato de a crônica estar ligada ao jornalismo não a desmerece
literariamente. Isso porque, segundo ele, o jornalismo tem no fato o seu objetivo
primeiro, enquanto a crônica só toma o fato como pretexto para o autor imprimir sua
imaginação criadora, visando somente o prazer estético e não a informação, o
ensinamento, a orientação. O autor pontua ainda que o prazer estético, muitas
vezes, decorre da leitura da crônica em livros e não necessariamente em jornais, a
exemplo da obra de Fernando Sabino, Rubem Braga, entre outros.
Segundo Sá (idem), no Brasil, a crônica surgiu com Pero Vaz de Caminha, no
retrato que fez ao Rei de Portugal da terra descoberta, mobilizando uma forma
subjetiva para apresentação dos índios, dos costumes, do momento de confronto
entre cultura europeia e primitiva. Caminha relata a terra descoberta de maneira que
se assemelha mais a um cronista do que a um historiador.
A crônica se refere a um gênero literário, que, num primeiro momento, era um
"relato cronológico dos fatos sucedidos em qualquer lugar”
14
, buscando enfatizar
uma narração de episódios históricos. Era a chamada "crônica histórica" (como a
medieval), que apresenta uma relação mútua com o tempo e a memória,
14
Trecho escrito por Afrânio Coutinho, “A literatura no Brasil” – Volume III – RJ. São José 1964.
87
evidenciada pela própria origem grega da palavra, Chronos, que significa tempo.
Então, a crônica, desde sua origem, é um "relato em permanente relação com o
tempo, de onde tira como memória escrita, sua matéria principal, o que fica do
vivido".15
Com o passar do tempo, a crônica tomou novos rumos, pois não existia
somente para a história, mas com o surgimento da imprensa, do jornal, da TV, enfim,
a partir dos variados avanços dos meios de comunicação, a crônica começou a ser
vislumbrada como “folhetim”. Sobre isso, vejamos os dizeres de João R. Faria, no
prefácio de crônicas escolhidas de José de Alencar, que diz o seguinte:
Naqueles tempos, a crônica chamava-se folhetim e não tinha as
características que tem hoje. Era um texto mais longo, publicado
geralmente aos domingos no rodapé da primeira página do jornal, e
seu primeiro objetivo era comentar e passar em revista os principais
fatos da semana, fossem eles alegres ou tristes, sérios ou banais,
econômicos ou políticos, sociais ou culturais. O resultado, para dar
um exemplo, é que num único folhetim podiam estar, lado a lado,
notícias sobre a guerra da Criméia, uma apreciação do espetáculo
lírico que acabara de estrear, críticas às especulações na Bolsa e a
descrição de um baile no Cassino.16
Dessa maneira, a crônica perpassava por vários tons da escrita, de forma a
organizar composicionalmente o que queria dizer, tendo em vista que os temas
propostos, até hoje, não necessariamente precisam seguir um único olhar ou forma
exata. Os títulos podem ressaltar uma variedade de fatos, tanto para expor, narrar,
descrever ou argumentar.
O autor de crônicas, necessariamente, apresenta-se como sintético, tem
rapidez nas ideias e possui habilidades para construir e reconstruir sentidos. Tudo
passa pelo real e ficcional. De forma que seu texto diz muito, falando pouco sobre o
mesmo assunto. O gênero crônica apresenta um diálogo constante entre locutor e
interlocutor, que expõe características peculiares marcadas por momentos formais e
informais, entre níveis cultos e coloquiais. Com isso, podem-se quebrar os
estereótipos que separam os dizeres da vida real e das aventuras ficcionais,
discursos de cunho jornalístico e literário e, a partir desse contexto, evidenciam-se
Texto de Davi Arrigucci Jr, “Fragmentos sobre a crônica”, Folha de S.Paulo, 1987.
João Roberto Faria, no prefácio (Alencar conversa com os seus leitores) de "Crônicas escolhidas - José de Alencar" - São
Paulo: Ed. Ática e Folha de S. Paulo, 1995
15
16
88
circunstâncias ligadas à espontaneidade, ou seja, o cronista apresenta em seus
enunciados uma forma mais livre no dizer.
Como afirma Candido (1997), é pretexto para pequenas criações ficcionais
que, por vezes, poesia e prosa confundam-se. A partir disso, vê-se que, quando o
cronista registra o acontecimento, interpreta-o num contexto maior, deixa marcas de
seu estilo individual, no qual ultrapassa as questões padronizadas, podendo assumir
um texto plurissignificativo. Esse aspecto faz da crônica um material diferenciado,
que vai além da efemeridade de um periódico para compor algo mais completo e
inovador, pois perpassa pelo estilo, forma composicional de cada escritor e o “querer
dizer”, relacionado ao tempo, momento e circunstâncias vividos pelo autor.
A crônica atinge os valores éticos sem perder seu valor estético, ou seja, o
cronista consegue capturar com seu toque de lirismo e trazer à tona reflexões
tocantes às condições humanas. Antonio Candido diz que
Na crônica, "Tudo é vida, tudo é motivo de experiência e reflexão, ou
simplesmente de divertimento, de esquecimento momentâneo de nós
mesmos a troco do sonho ou da piada que nos transporta ao mundo
da imaginação. Para voltarmos mais maduros à vida...” 17.
Como se vê no excerto acima, a crônica liga-se aos eventos da vida e é,
muitas vezes, motivada para gerar novas experiências e amadurecimento para o
cotidiano. Mesmo que a crônica seja revestida por um tom literário, ela deixa de lado
a métrica rigorosa dos “poetas parnasianos” e assume, em grande parte, sua
posição a favor e ao encontro da cultura. A crônica adotou um estilo peculiar, em
que a liberdade de tom sobrepõe-se a um simples relato e passa a compor um
panorama vivo de situações e comportamentos da vida cotidiana.
Candido (1981) salienta que um dos valores da crônica está em mostrar a
oralidade na escrita, na quebra de normas e na aproximação com os elementos
mais naturais do nosso tempo. Candido (idem) compreende que a crônica, por meio
de uma simples conversa cotidiana, consegue expressar coisas sérias de cunho
social, já que procura entrar na vida íntima (privada) das pessoas para gerar uma
Antonio Candido, no ensaio "A vida ao rés-do-chão”, p. 13. In: CANDIDO, A.et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas
transformações no Brasil. Campinas: Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
17
89
reflexão sobre a prática social. Para ele, a crônica consegue recuperar com
simplicidade, leveza, rapidez o cotidiano e, assim, por meio da humanização, leva o
leitor a enxergar a realidade do jeito que ela é, possibilitando que recupere uma
dimensão de tudo que o rodeia.
Consideramos interessantes os apontamentos de Campos sobre releituras de
Candido, para a qual
O fato de a crônica não ter a pretensão de durar, porque se abriga
num veículo transitório, faz com que seus escritores assumam a
perspectiva não daqueles que escrevem do alto da montanha, mas
do simples rés-do-chão.
(CAMPOS, 2002 p. 78)
Dessa forma, compreendemos que, mesmo pelo fato da crônica durar pouco
tempo e ser considerada por alguns autores como gênero menor, isso não faz dela
um gênero pior ou melhor que os outros, mas sim nos faz pensar como a crônica é
rica e ampla de possibilidades dialógicas, interagindo em múltiplos contextos com
variados grupos sociais.
Para Rubem Braga (1980), o que importa são os pequenos momentos que
também fazem parte da condição de cada ser humano. Por isso, ele afirma: “A
verdade não é o tempo que passa, a verdade é o instante”. Conforme o autor, os
instantes são breves, onde se esconde a complexidade das nossas dores e alegrias.
Em outras palavras, a pressa de viver desenvolve no cronista uma sensibilidade
especial, que o predispõe a captar com maior intensidade os sinais da vida que
muitas vezes deixamos escapar. Ele vê na crônica uma forma de devolver a cada
ser humano o que a realidade, muitas vezes, nos sufoca e não nos permite
visualizar na vida cotidiana. Campos (2002) afirma que
Essas explicações acabam por afirmar que o cronista moderno é o
narrador da história escrita na contemporaneidade. Com a
modernização das sociedades, as relações de troca recíproca de
experiências se fragilizaram e as prioridades se aglutinaram ao redor
das meras vivências.
(CAMPOS, 2002, p. 80)
Concordamos com Campos quando afirma que o cronista moderno é o
narrador da história escrita na contemporaneidade, e pensamos que toda crônica
90
não deve ficar restrita somente às meras vivências dos interlocutores, mas buscar
uma reflexão sócio-histórica que agrega arte, vida, ciência, criatividade, humor,
política e muito mais. Pois a crônica não pode ficar restrita somente a um
determinado foco, ela precisa circular de forma que contemple as demandas sociais
e culturais. A esse respeito, Campos completa que
A narrativa nem tem fim e nem promete explicações. A conclusão
parece estar sempre em aberto, pois a própria vida é suscetível de
novo prolongamento. O cronista é também um historiador, um
intérprete que apresenta e recria um acontecimento, alguém que
narra e vive sob o primado do cotidiano (CAMPOS, p. 80)
Assim, entendemos que o cronista, ao construir seu texto, tem sempre
liberdade para construir novos dizeres livremente, mobilizar novas vozes sociais,
vozes que entrecruzam no texto, não são dizeres passivos, mas são vozes que
respondem, questionam, refletem, renovam a cada instante o dizer do outro de
forma a construir ou desconstruir o já dito muitas vezes.
Por isso, na crônica encontramos liberdade de tom (estilo), pois nenhum ser
humano pensa da mesma forma e a configuração e o funcionamento desse gênero
permitem plasmar e refratar a “arena de vozes” que constituem as manifestações
discursivas em crônica. A crônica é um gênero que acompanha de forma bastante
satisfatória o fluxo contínuo e rápido do tempo dos acontecimentos na
contemporaneidade e consegue refletir bem a grande incompletude humana. Assim
são as crônicas, não há como padronizá-las, uma vez que as mesmas apresentam
pontos diferentes em sua abordagem.
Bakhtin nos diz que os gêneros são fenômenos de pluralidade, múltiplos e
jamais podem ser vistos como algo passível de classificação, como se pode
observar em algumas classificações recorrentes para a crônica: crônica literária,
jornalística, crônica esportiva etc. Acreditamos que é possível romper com tal
classificação, se pensarmos na possibilidade de entender o projeto discursivo do
cronista e, assim, refletir sobre as diferentes perspectivas que a vida cotidiana
assume em uma determinada crônica. Partindo dessa proposição, ao analisarmos o
Caderno de crônicas produzido para a Olimpíada de Língua Portuguesa, buscamos
identificar qual a perspectiva assumida pelo material para o ensino da crônica.
As autoras Laginesta e Pereira (2010) afirmam que o Caderno foi pensado
para atender as necessidades do professor. Para isso, há uma série de oficinas e de
91
atividades escolares elaboradas para os alunos participarem da Olimpíada da
Língua Portuguesa e, assim, eles serão levados a aperfeiçoarem seu conhecimento
em relação ao texto escrito e, ao mesmo tempo, desenvolver suas habilidades para
serem autores de crônica. Com base no trabalho do grupo de Genebra para o
ensino-aprendizagem dos gêneros, a organização do Caderno se dá via sequência
didática.
Para as autoras, a participação dos alunos no projeto da Olimpíada
demonstra que o trabalho com a escrita é desafiador, uma vez que escrever faz
parte de um ato consciente. Espera-se que, por meio da sequência didática, o aluno
(participante da Olimpíada), subsidiado pelo professor, consiga ver a escrita como
um instrumento imprescindível para a formação do cidadão e fomentador de novos
conhecimentos. Elas acreditam que produzir textos é um exercício complexo que
requer aprendizagem a longo tempo. Mas a equipe organizadora do Caderno arrisca
e confia que, por meio de várias sequências didáticas, o aluno pode acelerar a
construção do conhecimento em relação ao gênero Crônica.
Desse modo, entendemos que as autoras, nas orientações dadas aos
professores, de um lado, objetivam a formação deles, pois a sequência didática
constitui-se em uma ferramenta para aliar teoria e prática, pois há uma organização
que permite a esses professores compreenderem o gênero em si e também abre
possibilidades para entenderem a importância do contexto sócio-histórico para o
ensino da produção escrita. De outro lado, essa sequência é o ponto de partida para
os alunos tornarem-se autores autônomos, uma vez que já conheceram o
funcionamento do gênero crônica. Assim, podemos dizer que essa maneira de
ensinar o gênero seja uma das diferenciações da proposta.
Para melhor situar o leitor sobre como é conceituada a crônica pelo Caderno,
discorreremos brevemente como essa apresentação é realizada. As autoras do
Caderno de crônica colocam, na seção Introdução, a qual dará início ao conceito do
referido gênero, esta pergunta: O que é crônica? Para suscitarem respostas, fazem,
primeiramente, algumas perguntas básicas como podemos visualizar no trecho
abaixo:
92
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.17.
Após esses questionamentos sobre a constituição do gênero crônica, a
equipe responsável apresenta uma crônica do escritor Ivan Ângelo, em que as
respostas das questões anteriores estão direcionadas para o texto do cronista,
conforme o excerto abaixo.
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.17.
Após a apresentação da crônica de Ivan Ângelo, as autoras fazem um breve
retrospecto da história do gênero, em que elas expõem como a crônica foi
apresentada no Brasil, de que forma ela influenciou a vida cotidiana e uma pequena
explicação de como serão tratadas as oficinas (tempo, organização, material
disponível com acompanhamento de coletânea de crônicas em CD- ROM).
Os
comentadores do material apresentam que o professor deve estabelecer com o
aluno maior contato com o gênero crônica. É enfatizada, em todas as oficinas, a
93
importância da preparação tanto do aluno como do professor na formação de
autores de textos socialmente eficazes em favor da proficiência e da cidadania.
Na análise do material, observamos que as autoras tecem comentários sobre
o contexto de produção das crônicas alicerçado à noção literária, pois fazem alusão
às crônicas literárias. As autoras falam sobre a produção de crônicas literárias,
procurando apresentar características que lhes são inerentes, como “recursos
literários e estilo pessoal”, “retrato de situações humanas atemporais”, os temas
estão relacionados à ética, relacionamento humano, relação entre grupos
econômicos, sociais e políticos, os personagens podem ser reais ou fictícias. Tudo
isso para que os professores consigam diferenciar essas crônicas de outras para
ensinarem, posteriormente, a seus alunos, participantes do projeto. Após essa breve
explicação, as autoras direcionam seu discurso para uma noção mais ampla, sem
especificar o tipo de crônica, conforme o excerto abaixo.
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.22.
Entendemos que o material apoia-se, neste instante, em duas noções para
compreender a crônica. A primeira diz respeito à literariedade, pois o tratamento
94
didático sinaliza para uma visão pragmática, isto é, a crônica é descrita pelas suas
marcas literárias, pelos recursos linguísticos e estruturais, os quais determinam a
crônica como sendo pertencente à esfera literária.
A segunda noção está atrelada na tentativa do material em assumir uma
prática discursiva para a crônica, pois, em boa medida, nas atividades, há um
esforço em se trabalhar a tríade do gênero crônica (estilo, conteúdo temático e
forma composicional). Entretanto, como já dissemos, este material está ancorado na
escola de Genebra, cuja abordagem é textual, pois os pesquisadores genebrinos,
em especial Jean Paul Bronckart, renomeia o gênero discursivo como gênero
textual.
Essas duas noções nos fazem pensar que o tratamento didático dispensado
ao gênero crônica oscilou entre algumas esferas de produção do referido gênero,
em que a literária foi a mais destacada, conforme a tabela abaixo.
Autor
Papeis sociais
Título da Crônica
Fronteiras entre as
Esferas de
Produção
Ivan Ângelo
Fernando
Sabino
Joaquim Manuel
de Macedo
José Alencar
Paulo Mendes
Campos
Tostão
Maria Prata
Carlos
Heitor
Cony
Rachel
de
Queiroz
Armando
Nogueira
Affonso Romano
de Sant’Anna
Ferreira Gullar
Arnaldo
Jabor
Jornalista e cronista
Cronista, romancista, contista,
editor e documentarista
Escritor e cronista
Sobre a crônica
A última crônica
Jornalística impressa
Literária
A rua do ouvidor
Literária
Escritor e cronista
Escritor e cronista
Falemos das flores
Ser brotinho
Literária
Literária
Jogador, médico, comentarista
esportivo e colunista
Escritor e cronista
Jornalística/literária
Jornalista, escritor
Conformados e
realistas
Quem tem medo da
mortadela
Do Rock
Escritor e cronista
A arte de ser avó
Literária
Repórter, redator, colunista,
Peladas
Escritor e cronista
Variações em torno
da paixão
Sobre o amor
Jornalística/esportiva/
literária
Literária
Escritor e cronista
Cineasta, roteirista, diretor de
cinema e TV, produtor
cinematográfico, dramaturgo,crít
Amor
Literária
Jornalística/Literária
Literária
Jornalística/literária
95
Machado de
Assis
Moacir Scliar
Rubem Braga
Luis Fernando
Verissimo
Milton Hatoum
ico, jornalista, escritor, cronista
Escritor e cronista
Um caso de burro
Literária
Escritor e cronista
Escritor e cronista
Escritor e cronista
Cobrança
O cajueiro
A bola
Literária
Literária
Literária
Jornalista, professor, escritor e
cronista
São Paulo: as
pessoas de tantos
lugares
Jornalística/literária
Quadro 2: Levantamento das crônicas selecionadas para o Caderno
Os dados desse quadro reafirmam algumas informações presentes no
Caderno “Na Ponta do Lápis” (doravante NPL) do Cenpec. Este material é uma
publicação complementar em que vários especialistas tecem comentários sobre as
produções dos alunos referentes a todos os gêneros contemplados na Olimpíada de
Língua Portuguesa. Neste caderno, observamos que autora Cloris Porto Torquato
conduz os professores a categorizar a crônica como um gênero pertencente à esfera
literária, embora reconheça seu hibridismo, por oscilar entre a esfera literária e
jornalística. Segundo a autora, “Distinta das notícias jornalísticas por ter um caráter
literário, a crônica caracteriza-se como um gênero híbrido e complexo” (CENPEC,
NPL, nº 15, 2010, p. 20). A própria avaliadora em outros momentos do seu texto “O
cotidiano em foco” assume a crônica como das artes verbais, da literatura. Conforme
a avaliadora:
Embora tenha herdado do jornalismo a variedade de assuntos, o
apego ao cotidiano e a aparência de simplicidade, a crônica, por ser
um gênero literário, partilha de uma característica da literatura: é
uma tentativa de apreender a vida, de recortar um momento vivido (já
que o todo da vida não pode ser condensado nem fixado, porque
está em processo, em acontecimento), para tentar refletir sobre
e compreender as ações, os acontecimentos, os costumes, as
emoções, os pensamentos, as crenças; enfim, o ser humano e a
vida (CENPEC, NPL nº 15, 2010, p. 21) [grifo nosso].
Essas ponderações apontam que o material acredita quea esfera literária seja
o lugar de produção da crônica. Talvez esse direcionamento deva-se às relações
96
dialógicas estabelecidas com dois outros materiais da Olimpíada de Língua
Portuguesa pertencentes à esfera literária: memórias literárias e poemas.
Na próxima seção, apresentaremos a organização da sequência didática
pensada para o ensino do gênero crônica.
4.2
Da teoria à metodologia do Caderno “A ocasião faz o escritor”
O Caderno da Olimpíada, “A ocasião faz o escritor”, trouxe, em parte, grandes
avanços significativos para o processo de ensino-aprendizagem da escrita, uma vez
que
muitos livros
didáticos costumam trazer apenas poucas explicações
fragmentadas para definir crônicas, ou seja, pequenos trechos que, pela sua
simplificação, não proporcionam aprendizagem ao aluno, somente localização e
decodificação de conteúdo, o que, muitas vezes, compromete a compreensão do
gênero. Essa prática é um trabalho com a escrita sem função, visto que aparece
praticamente “destituído de qualquer valor interacional, sem autoria e sem recepção”
(ANTUNES, 2003, p. 26).
Os alunos escrevem sem estabelecer diálogos com outros textos e com
outros leitores. Outra prática comum é não fazer uso do discurso alheio, neste caso,
citações e aspas costumam aparecer pouco nas produções escritas escolares. Essa
prática, digamos, silencia o dialogismo que é constitutivo da linguagem. Assim, a
escrita seria uma atividade com a linguagem em que, infelizmente, “não há um
sujeito que diz, mas um aluno que devolve a palavra que lhe foi dita pela escola”
(GERALDI, 2006 [1984], p. 127).
Essa prática nos mostra como as atividades de produção de escrita
costumam ser trabalhadas e, em boa medida, mesmo hoje, encontramos alguns
materiais que abordam com superficialidade os gêneros propostos para a prática de
produção de texto.
Em contrapartida, nos últimos tempos, tem-se falado e pesquisado muito
sobre a prática de produção de texto, em que os gêneros são tomados como objetos
de ensino. De acordo com as teorias que apresentamos nos capítulos anteriores
deste trabalho, percebemos que a proposta do Caderno de crônica alinha sua
construção didático-pedagógica com a didática de ensino de língua materna da
97
“Escola de gêneros de Genebra” que, por sua vez, dialoga com a teoria vigotskiana
e com o círculo de Bakhtin.
De maneira geral, conforme já citamos alhures, a Escola Didática de
Genebra, representada por Schneuwly (2004[1994]), toma o gênero como um
instrumento ligado ao processo semiótico, o qual dá subsídio e possibilita a
comunicação. Já na visão de Vigotski (1930), a aprendizagem dos usos da língua
sai do social para o individual e acontecerá por meio das interações sociais e
culturais.
De acordo com o que foi detalhado no capítulo dois desta pesquisa, Vigotski
mostra que é necessária uma avaliação da Zona Proximal do desenvolvimento
(ZPD) do aluno, a partir de suas produções, antes de qualquer intervenção, pois o
texto produzido pelo aluno, seja oral ou escrito, dá suporte para que se identifiquem
os recursos linguísticos que ele já domina e os que ainda precisa dominar. A partir
disso, pode indicar os conteúdos que ainda precisam ser tematizados dentro de uma
análise constituída linguisticamente.
Dolz e Schneuwly (2004[1996]) dizem que os gêneros são vistos como
“megainstrumentos”, necessários para as atividades de escrita, e, por meio desses
instrumentos, são organizados os textos forjados ao longo da história.
Além de perceberem que o trabalho com o gênero é importantíssimo para a
construção de um aluno autor, as produtoras do material deixam evidente, na página
9, que um dos objetivos do livro enviado ao professor é “reduzir o “iletrismo” e o
fracasso escolar”. Com isso, afirmam que o fracasso escolar ocorre por conta das
questões problemáticas ligadas à escrita. Sabemos que essa afirmação não pode
ser absoluta, já que existem outros fatores contribuintes para o insucesso escolar,
como: famílias desestruturadas ou total ausência delas; diversas condições sóciohistórico-culturais, má formação de professores ou falta de formação continuada,
condições precárias das escolas, ensino precário nas séries iniciais responsável
pela aquisição da escrita e alfabetização dos alunos, e muitas outras situações que
podem limitar as possibilidades de aprendizagem, cerceando o desenvolvimento
intelectual do aluno.
Por essa razão, objetivamos observar e analisar em que medida as
orientações apresentadas teoricamente no material de apoio ao professor viabilizam
a formação de autores proficientes para produzirem textos no gênero crônica, e de
que maneira as atividades propostas nesse material, “Caderno de orientação para o
98
professor”, auxiliam na construção de uma prática ativa do desenvolvimento do
adolescente que participa do concurso.
Para compreendermos as orientações dadas no Caderno, fizemos o
levantamento geral da proposta, para isso, procuramos seguir a ordem em que os
elementos são apresentados na sequência didática. Devemos reiterar que a
intenção do programa em organizar, no Caderno, contextos que satisfaçam
pressupostos tanto práticos como teóricos, está voltada para o ensino-aprendizagem
do gênero e, ao mesmo tempo, para a formação do professor sobre o trabalho com
gêneros textuais mediante uma sequência didática.
Iniciamos a apresentação do Caderno “A ocasião faz o escritor” pela capa,
uma vez que ela é “a porta de entrada” para o trabalho com o gênero crônica, pois
cativa os participantes do projeto a pensar em serem autores através da participação
na Olimpíada de Língua Portuguesa, como podemos observar abaixo.
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, capa.
Na capa acima, encontramos a imagem de um jovem escritor, isso nos faz
pensar que só pelo fato do aluno participar do evento “Olimpíada de Língua
Portuguesa escrevendo o futuro”, ele de fato será responsável pelo seu futuro e será
um autor.
99
As cores dispostas na capa buscam representar toda motivação do aluno em
participar do evento. A luminária que remete a um globo terrestre nos faz inferir que
se trata dos caminhos possíveis que esse futuro autor alcançará, como também
podemos dizer que esse mundo será o objeto de seu discurso, uma vez que o
material do cronista é o cotidiano das pessoas. Já os círculos coloridos podem
sugerir as diversas ideias que surgirão ao longo das oficinas e de seu fazer
enquanto cronista.
Observamos ainda que a capa é emblemática e nos faz pensar em uma visão
de escritor à moda antiga, tradicional, com postura bem comportada, em que o aluno
usa óculos, terno e gravata. De maneira geral, a roupa remete ao figurino europeu
do início do século XX, num contexto em que os burgueses representavam pessoas
“chiques”, além do mais, a sociedade de aparência qualificava ou desqualificava
homens e mulheres pela vestimenta. Diante disso, pensamos que os alunos que
estão participando da Olimpíada são bem diferentes dessa imagem. Percebemos
que a capa talvez ainda vislumbre um aluno bem preparado, letrado e tradicional,
como se fosse um aluno “genebrino”, digamos.
Essa imagem nos faz lembrar, também, a figura do poeta português Fernando
Pessoa, também considerado modelo europeu.
Este poeta é considerado um
grande escritor, dada a sua habilidade com a escrita e dos diversos papéis que
assumiu para escrever seus textos.
Assim, podemos dizer que a proposta do
material visa à formação de um aluno-autor, espelhando-se em modelos de início do
século passado.
A seguir, apresentaremos a organização interna do Caderno no que tange ao
encaminhamento didático do projeto de ensino que favorece a formação do alunoautor, isto é, a assunção da autoria do aprendiz do gênero crônica. Para isso,
fizemos uma leitura cuidadosa de todo o projeto de ensino e levantamos a
quantidade de oficinas e de atividades.
A sequência didática do gênero crônica no Caderno “A ocasião faz o escritor”
está organizada em 11 oficinas, que compreende 39 atividades. Abaixo, no quadro
1, apresentamos quais são essas oficinas e seus objetivos.
Sequência didática do gênero crônica no Caderno “A ocasião faz o escritor”, da OLPEF
N. Oficinas
01
Título
É hora de combinar
Objetivos

Falar sobre a Olimpíada de Língua Portuguesa
Escrevendo o Futuro e a forma de participar dela;

Estabelecer contato com o gênero crônica;

Ler uma crônica de Fernando Sabino.
100
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
Tempo, tempo, tempo

Aproximar os alunos do gênero crônica;

Possibilitar-lhes que identifiquem a diversidade de estilo
e linguagem entre autores de épocas diferentes;

Distinguir o tom de lirismo, ironia, humor;

Ler crônicas escritas nos séculos XIX, XX e XXI.
Primeiras linhas

Produzir a primeira escrita de uma crônica;

Encorajar os alunos a continuar aprendendo a escrever
crônicas.
Histórias do cotidiano

Explorar os elementos constitutivos de uma crônica e os
recursos literários utilizados pelo autor;

Empregar as figuras de linguagem;

Conhecer expressões próprias do mundo do futebol e
também as diferentes formas de se tratar o tema “amor”, tendo
como cenário a cidade;

Ler uma crônica de Armando Nogueira e outra de Paulo
Mendes Campos.
Uma prosa bem afiada

Conhecer mais a vida e a obra de Machado de Assis;

Ouvir, ler e analisar uma crônica de Machado de Assis,
identificando personagens, cenário, tempo, tom e recursos
literários.
Trocando em miúdos

Refletir sobre a diferença entre notícias e crônica;

Identificar os recursos de estilo e linguagem numa
crônica de Moacyr Scliar.
Merece uma crônica

Retomar as crônicas trabalhadas até o momento e
analisar tema, situação escolhida, tom do texto e foco narrativo;

Escolher fatos, situações ou notícias que serão foco da
crônica e obter informações sobre eles;

Escrever uma crônica como exercício preparatório à
realização do produto final.
Olhos atentos no dia a dia

Apurar o olhar para o lugar onde se vive;

Esclarecer dúvidas a respeito do foco narrativo e de
como iniciar uma crônica;

Apreender as semelhanças entre o ato de escolher um
assunto para uma foto e ação de escolher um tema para ser
retratado em uma crônica.
Muitos olhares, muitas ideias 
Produzir coletivamente uma crônica, escolhendo uma
situação do cotidiano da cidade;

Confrontar a produção coletiva com os elementos do
gênero crônica;

Reescrever, ainda coletivamente, o texto da crônica para
aperfeiçoá-lo.
Ofício de cronista

Retomar os elementos constitutivos da crônica, com
base nas ideias de Ivan Ângelo;

Escrever, individualmente, a primeira versão de uma
crônica.
Assim fica melhor

Fazer o aprimoramento e a reescrita do texto;

Além disso, no final, há um quadro-síntese para você
utilizar para avaliação da crônica.
Quadro 3: Organização da sequência didática do gênero crônica
De acordo com o quadro acima, a sequência didática do gênero crônica está
organizada em onze oficinas. Essas oficinas ao longo do material apresentam três
objetivos. O primeiro é fazer com que professores e alunos conheçam o Programa
das Olimpíadas, o segundo objetivo é orientar os professores para aplicação do
material em sala de aula e o terceiro, é mostrar que é possível ter diversos módulos
101
e atividades nas sequências didáticas para um gênero a partir das suas dimensões
ensináveis. Nesses módulos, observamos que diferentes objetivos são mobilizados
para que alunos e professores compreendam o gênero crônica.
Considerando essas informações, se faz necessário descrever como essas
oficinas estão organizadas no Caderno para que possamos, posteriormente, analisar
o tratamento didático dado ao gênero crônica nessa sequência didática. Para esse
intento, fizemos levantamento das seções internas do Caderno em relação às
oficinas. No quadro a seguir, apresentamos a estrutura dessas oficinas.
Oficinas
Organização interna das oficinas
Oficina 1
É hora de combinar
Objetivos
Prepare-se!
Material
1ª etapa: Uma classe motivada
Boxe explicativo: a importância de participar
Atividades
2ª etapa: A descoberta de uma crônica
Atividades
Boxe explicativo: sobre suportes, olhares e palavras
3ª etapa: A arte da crônica com Fernando Sabino
Boxe explicativo: Atenção
Atividades
Boxe explicativo: Buscando sentido
Boxe explicativo: Há palavras que o vento não leva
Oficina 2
Tempo, tempo, tempo...
Objetivos
Prepare-se!
Material
O processo para identificar assunto, personagens,
ideias e emoções provocadas
Atividades
Quadro-síntese de análise
Os recursos de uma crônica
Boxe de Sugestão
Oficina 3
Primeiras linhas
Objetivos
Prepare-se!
Material
1ª etapa: Elementos que as crônicas têm em comum
Atividades
2ª etapa: A escolha de um assunto, de uma situação,
e o tom da narrativa
Atividades
3ª etapa: O valor da primeira escrita
4ª etapa: Análise da primeira escrita
Boxe explicativo: Atenção
Boxe de Sugestão
Hora de os alunos pesquisarem: atividade extra
Oficina 4
Histórias do cotidiano
Objetivos
Prepare-se!
Material
1ª etapa: Os recursos do cronista
Atividades
2ª etapa: O mundo do futebol
Atividades
3ª etapa: Um cronista que tem futebol nas veias
Atividades
4ª etapa: “Conversando” com Armando Nogueira
102
Atividades
Boxe explicativo: Sobre “Peladas”
5ª etapa: O mundo amoroso
Boxe explicativo: Sobre “O amor acaba”
Boxe de Sugestão
Boxe de Atenção
O bruxo do Cosme Velho: atividade extra
Oficina 5
Uma prosa bem afiada
Objetivos
Prepare-se!
Material
1ª etapa: Machado de Assis, o cronista
Boxe explicativo: Lembrete
Atividades
2ª etapa: O confronto título-texto
Atividades
3ª etapa: O que Machado queria mesmo dizer?
Atividades
Boxe explicativo: “Um caso de burro”
Atividades
Oficina 6
Trocando em miúdos
Objetivos
Prepare-se!
Material
1ª etapa: Da notícia à crônica
Atividades
2ª etapa: conversando sobre crônica
Atividades
3ª etapa: Recursos discursivos e linguísticos
Atividades
Boxe explicativo: Sobre “Cobrança”
4ª etapa: Faça um desafio à turma
Atividades
Boxe explicativo: Estratégia de leitura
Oficina 7
Merece uma crônica
Objetivos
Prepare-se!
Material
1ª etapa: Os mestres da crônica
Atividades
Quadro-síntese: Diferentes maneiras de dizer
2ª etapa: O material da crônica
Atividades
3ª etapa: O começo da produção textual
Atividades
Boxe explicativo: Lembrete
Oficina 8
Olhos atentos no dia a dia
Objetivos
Prepare-se!
Material
1ª etapa: Habilidades para iniciar uma crônica
Atividades
2ª etapa: Habilidades para definir o foco narrativo de
uma crônica
Atividades
3ª etapa: Entre fatos e fotos
Atividades
4ª etapa: Alunos fotografam o dia a dia
Atividades
5ª etapa: Planejamento e escrita da crônica inspirada
na foto
Atividades
6ª etapa: Lendo imagens
Atividades
Oficina 9
Muitos olhares, muitas ideias
Objetivos
Prepare-se!
Material
1ª etapa: Preparação para a escrita coletiva
103
Atividades
2ª etapa: Escolha e exploração do tema e da situação
Atividades
Boxe exemplo: Notícia
3ª etapa: A escrita coletiva
Atividades
Boxe explicativo: Atenção
4ª etapa: O aperfeiçoamento do texto e a criação do
título
Atividades
Oficina 10
Ofício de cronista
Objetivos
Prepare-se!
Material
1ª etapa: Inspirando-se com Ivan Ângelo
Atividades
2ª etapa: escrevendo crônica
Atividades
Boxe explicativo: lembrete
Oficina 11
Assim fica melhor
Prepare-se!
Material
1ª etapa: Aprimoramento coletivo
Boxe explicativo: Atenção
Atividades
2ª etapa: Reescrita individual
Atividades
Boxe explicativo: Atenção
3ª etapa: Exposição ao público
Anexo
Critérios de avaliação para o gênero crônica
Quadro 4: Organização das seções didáticas das Oficinas
Nesse quadro, é possível dizermos que há repetição de algumas seções ao
longo do Caderno, por exemplo, Objetivos, Prepare-se! e Material. Estas seções
visam auxiliar o professor, pois são postas informações para ele saber conduzir as
atividades durante as aulas e quais materiais serão necessários para aplicar a
sequência didática ou mesmo ampliá-los, conforme a necessidade da turma. Além
disso, as oficinas, com exceção da Oficina 2, são divididas em etapas. Essa
subdivisão no trabalho é característica da sequência didática, pois cada etapa, de
certa maneira, visa ampliar conceitos ou mesmo retomar alguns módulos de
atividades, no intuito de potencializar o aprendizado. Tomando as informações do
quadro anterior, acreditamos ser pertinente explicar, em linhas gerais, essas etapas
da sequência didática ao longo das 11 Oficinas.
Na Oficina de número 1, intitulada “É hora de combinar”, há três etapas para o
ensino da crônica. Na primeira, o discurso autoral motiva os professores em relação
ao ensino do gênero como também pede a eles que falem sobre o projeto e
direciona seu fazer em sala de aula, para que o projeto tenha um bom resultado. Na
visão das autoras, o responsável pela aplicação e sucesso da Olimpíada de Língua
Portuguesa é o professor, como observamos nestes trechos:
104
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 26-27.
A segunda etapa visa apresentar a crônica por meio de questões que levem
os alunos a refletirem sobre o suporte no qual esse gênero é veiculado e o assunto a
ser tratado na crônica.
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 28.
A última etapa sugere que o professor leve diferentes crônicas para sala de
aula para que os alunos apreendam o gênero, por meio da leitura e discussão a
partir de um roteiro dado ao professor para explorá-lo. Trata-se de um trabalho de
escuta.
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 28.
105
A Oficina 2 “Tempo, tempo, tempo” visa aproximar o gênero crônica dos
alunos, para isso é sugerido ao professor que imprima as crônicas presentes no CDRom para levar para sala de aula. Após leitura, os alunos deverão observar a
linguagem, os assuntos, as personagens, o estilo do autor etc. Tudo isso para que o
aluno fique preparado para produzir sua crônica.
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 36, 39.
A Oficina 3 “Primeiras linhas” apresenta quatro etapas. Na primeira etapa, a
proposta encaminha para a observação de elementos que a crônica tem em comum,
por exemplo, local de publicação e o estilo do gênero. Na segunda, a ênfase está
no tom da escrita e na temática a ser escolhida pelos alunos. Já a terceira está
relacionada à primeira escrita, em que o objetivo é oferecer subsídio para o
professor corrigir as redações dos alunos. A última apresenta parâmetros para a
correção. Além disso, há dois boxes explicativos: um alerta sobre a necessidade de
levar a primeira produção, caso o aluno seja um semifinalista da Olimpíada e, no
outro, há sugestões de como o professor deve proceder na devolutiva do texto
corrigido. Ao final dessa etapa, sugere-se que os alunos façam uma pesquisa acerca
dos assuntos: bola e amor para a próxima aula.
A 4a Oficina “Histórias do Cotidiano” está dividida em cinco etapas. A primeira
etapa está voltada para apresentação de sugestões de trabalho com as figuras de
linguagem, pois o discurso autoral afirma que são recursos do cronista. Para isso, o
professor deverá confeccionar um cartaz e afixar no mural com as figuras.
Na segunda, pede-se para que o professor focalize nesta oficina a temática
do futebol e, para isso, oferece sugestões de trabalho, por exemplo, explorar o
significado de algumas palavras no jargão futebolístico. Na terceira, o propósito é
106
explorar uma crônica esportiva, para isso, há atividades voltadas para o
conhecimento de mundo sobre o cronista Armando Nogueira, posteriormente,
atividades que exploraram o texto sobre ele e uma crônica produzida por ele.
Na quarta etapa, o foco está no texto de Armando Nogueira, pois orientam
levar os alunos a refletirem sobre diferentes aspectos da crônica ouvida na etapa
anterior. Na última etapa, apresenta-se outra crônica de Paulo Mendes Campos,
seguida de sua análise. Há dois boxes explicativos, um dá sugestão e o outro chama
atenção do aluno para que ele não se esqueça de fazer anotações no diário. Como
última atividade, solicita-se ao aluno que faça pesquisa sobre Machado de Assis
(vida e obra) e suas crônicas sobre cidade e seu cotidiano.
A Oficina 5 “Uma prosa bem afiada” tem três etapas. Na primeira, o aluno
deverá ler crônicas diversas para depois focalizar em Machado de Assis. Na
segunda, há orientações para que se explore o título de uma crônica escrita por
Machado de Assis. Na última, há atividades direcionadas para a crônica ouvida “Um
caso de burro”.
Na Oficina de número 6, “Trocando em miúdos”, segue-se a subdivisão em
etapas para explorar a distinção entre notícia e crônica. Na primeira etapa, explorase o autor Moacyr Scliar. Na segunda, os alunos deverão ler a crônica produzida por
Scliar e, na terceira etapa, o foco está nos recursos de estilo e linguagem e há
também uma análise da crônica “Cobrança”, lida anteriormente. Na última atividade,
propõe-se que os alunos reflitam sobre a situação apresentada na crônica lida e
produzam seu texto, observando os tipos de discurso apresentados.
Na Oficina 7 “Merece uma crônica”, as autoras retomam, na primeira etapa,
todas as crônicas e autores já comentados anteriormente no Caderno. Na segunda,
o propósito é fazer com que os alunos façam pesquisa sobre assuntos novos para
serem motes para suas crônicas e a última etapa é destinada para a produção da
crônica. No fragmento abaixo, observamos as orientações das autoras:
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 86.
107
A Oficina de número 8, intitulada, “Olhos atentos no dia a dia”, é marcada pela
apresentação de seis etapas, com a seguinte distribuição: etapa 1: escrita coletiva
do primeiro parágrafo de uma crônica, cujo objetivo é desenvolver habilidades dos
alunos para iniciar uma crônica, para isso, há um quadro com sugestões para esse
início de texto. Na etapa 2, atividades voltadas para escolha do foco narrativo. Já na
etapa 3, o propósito das atividades é para que os alunos apurem seu olhar para a
realidade a partir de uma observação conduzida e depois leiam uma crônica. As
etapas 4, 5 e 6 estão interligadas, pois os alunos farão sua produção com base nas
imagens selecionadas pelos alunos na etapa 4.
Já na Oficina de número 9, “Muitos olhares, muitas ideias”, há quatro etapas
para a produção da crônica. Na primeira etapa, os alunos retomarão conceitos sobre
a situação de produção e dos elementos da crônica para a escrita coletiva. Na
segunda, atividades voltadas para a exploração do tema e da situação de produção,
pois, na etapa 3, eles farão a produção. Para isso, o professor é orientado a seguir
um roteiro de questões para ajudar os alunos na elaboração do texto. Na última
etapa, o professor é orientado a fazer o trabalho de reescrita dos textos após
correção e a pensar o título da crônica com os alunos.
A Oficina 10, intitulada “Ofício de cronista”, apresenta duas etapas que estão
interligadas, pois, na primeira, os alunos terão contato com a crônica de Ivan Ângelo,
para, na segunda, escreverem a crônica. Para as autoras, o professor desempenha
papel importante nesse processo.
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 36, 39.
Para fecharmos nossa descrição geral, a Oficina 11 “Assim fica melhor” trata
do processo da reescrita. Na etapa 1, a reescrita será coletiva, para isso, o professor
deverá levar questões para que os alunos falem sobre suas crônicas de acordo com
o roteiro pré-estabelecido. Além disso, colocou-se um texto modelo para mostrar
108
como foi o processo de sua reescrita. Na segunda etapa, a reescrita será individual,
para isso, o aluno deverá fazer uso do roteiro de revisão da crônica posta na página
seguinte, e a última etapa será a exposição da crônica para a comunidade escolar.
No final dessa oficina, foram colocados critérios de avaliação para o gênero trabalho.
Na seção seguinte, apresentamos a análise de algumas atividades presentes
nessas Oficinas.
4.3 Análise das Atividades do Caderno “A ocasião faz o escritor”
Tomando as informações da tabela e a descrição realizada anteriormente das
Oficinas, faremos análise de algumas atividades que são pertinentes para o nosso
objetivo de trabalho, uma vez que pretendemos saber como é encaminhamento da
proposta das autoras do Caderno “A ocasião faz o escritor” para a formação de
autores de crônica no espaço escolar.
Para esse intento, apresentamos a tabela de número 3, sobre os tipos de
atividades desenvolvidas nas Oficinas.
109
Tipos de atividades
Situação de produção: apresentamos, neste item,
atividades que exploram elementos como autor, leitor,
suporte, finalidade, título e temática da produção.
Conjunto de tematizações enfocadas nas atividades do
Caderno “A ocasião faz o escritor”
Atividade apresentação do projeto de escrita e de motivação
para sua realização;
Definição do gênero crônica;
Leitura de mobilização dos conhecimentos prévios e
apreciação afetiva acerca dos elementos da situação de
produção do gênero;
Leitura com foco no reconhecimento da situação de produção
do gênero;
Leitura com foco na apreciação temática;
Leitura de (re) conhecimento das principais características do
gênero;
Escuta e interpretação de uma crônica de Armando Nogueira
por meio de estratégias de antecipação de informações;
Leitura ou escuta de uma crônica de Paulo Mendes Campos
com foco no reconhecimento do autor;
Leitura de antecipação de hipóteses sobre conteúdo da crônica
de Paulo Mendes Campos;
Leitura de exploração do título de uma crônica de Machado de
Assis, de Moacyr Scliar;
Checagem de antecipação do conteúdo da crônica a partir da
leitura prévia do título de uma crônica de Machado de Assis;
Diferenciar notícia de crônica;
Formas de circulação da crônica produzida pelo aluno.
Alimentação temática: organizamos, neste tópico, as
atividades que apresentam diferentes estratégias de
busca e seleção de informações para fundamentar a
produção de texto.
Elementos básicos da narrativa: dispomos, neste
item, aquelas atividades que tematizam elementos
como espaço-tempo do texto, personagens, enredo,
foco narrativo, formas de introdução do texto narrativo.
Sugestões de leitura em diferentes suportes (jornal, revista,
internet, livros);
Sugestões de pesquisa em diferentes sites de banco de textos;
Estratégias de levantamento de assunto, de escolha de
situação e de estilo narrativo;
Levantamento de informações e acontecimentos para a
produção de crônica;
Exercícios de fotografar imagens cotidianas para fundamentar
a produção da crônica;
Escolha do conteúdo e da situação com base nos textos
exemplares em crônica fornecidos para estudo;
Leitura de identificação do espaço-tempo do gênero;
Leitura de identificação dos elementos básicos da narrativa;
Leitura de apreciação afetiva dos personagens da crônica de
Armando Nogueira;
Leitura de identificação e de (re) conhecimento dos elementos
narrativos de uma crônica de Armando Nogueira; de Paulo
Mendes Campos; de Machado de Assis;
Análise da crônica de Armando Nogueira, de Machado de
Assis com foco nos elementos básicos da narrativa;
Estudo do foco narrativo voltado para as formas de introdução
do discurso das personagens (discurso direto, indireto, indireto
livre e misto);
Síntese dos elementos constitutivos da crônica como base de
orientação para a produção escrita do aluno;
Leitura de uma crônica metalingüística para retomar elementos
característicos da crônica.
110
Estilo do autor: apresentamos, neste tópico, atividades
voltadas para exploração do estilo pessoal do autor.
Elementos linguístico-textuais: classificamos, neste
item, atividades voltadas o estudo do vocabulário,
expressões e conhecimento de aspectos da gramática,
figuras de linguagem.
Produção oral: caracterizamos este tópico com
temáticas voltadas para o uso oral da linguagem.
Produção escrita: agrupamos, neste tópico, atividades
voltadas para o exercício da produção escrita coletiva e
individual.
Reescrita: organizamos, neste item, as atividades que
envolvem atividades de reescrita orientadas coletiva e
individualmente.
Leitura de identificação do estilo do autor com base em textos
escolhidos pelos alunos;
Interpretação do estilo de Armando Nogueira com base na
leitura de uma crônica;
Exploração de recursos linguísticos utilizados por Armando
Nogueira;
Análise do estilo de Paulo Mendes Campos na crônica
apresentada para leitura;
Breve apresentação da vida e estilo literário de Machado de
Assis;
Retomada das situações e dos estilos dos cronistas estudados;
Explorar recursos e estilo de linguagem em uma crônica de
Moacyr Scliar;
Busca do significado de termos e palavras no dicionário;
Estudo do jargão futebolístico comparando-o com expressões
do cotidiano com base em palavras retiradas do dicionário;
Reconhecimento de figuras de linguagem com base em
exemplos descontextualizados
Discussão escolar sobre a importância da escrita coletiva;
Debate coletivo sobre o processo de escolha do conteúdo, da
situação, dos elementos básicos da narrativa para compor a
crônica dos alunos.
Produção escrita inicial para diagnóstico;
Produção individual orientada por um roteiro de elementos
básicos da narrativa;
Produção coletiva de elementos da crônica (introdução, adoção
de foco narrativo e seleção do espaço-tempo narrativo;
Produção de uma crônica baseada nas imagens fotografadas,
com ênfase nos elementos narrativos;
Produção coletiva orientada por roteiro de elementos básicos
da narrativa;
Produção individual final da crônica
Análise da produção escrita inicial;
Ensaio de reflexão sobre o processo de tomadas de decisão
entre o fotografar o cotidiano e o retratar na crônica;
Exercício de aperfeiçoamento da crônica com ênfase na
construção do título, na adequação temática e linguísticotextual (coerência, vocabulário, redundância).
Reescrita coletiva com ênfase no aperfeiçoamento da produção
individual do aluno;
Reescrita individual
Quadro 5: Tipos de atividades e suas tematizações
Auxiliados pelo levantamento acima apresentado, observamos que a situação
de produção é plasmada no Caderno em vários momentos, apresentando uma
incidência de 13 vezes. Em segundo lugar, ficam os elementos básicos da narrativa
que se desdobram em 10 ocorrências, a alimentação temática e a produção escrita
empatam com 6 ocorrências cada.
Em seguida, a reescrita com 05 incidências e
111
encerram com produção oral e elementos linguístico-textuais com 02 incidências
cada. Esses elementos antecipam, em termos, o que de fato está sendo privilegiado
na didatização da crônica, ou seja, situação de produção, elementos da narrativa,
atividades de reescrita.
Iniciemos pela Oficina 1:
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.26.
Para início de trabalho, as autoras do Caderno propõem como atividade ativar
o conhecimento prévio do aluno sobre a crônica, pois julgam ser o melhor caminho
para abordar o gênero. Essa concepção de ensino está embasada na perspectiva
interacionista, coerente com a proposta de didatização dos pesquisadores de
Genebra. As questões da atividade ativam o conhecimento de mundo do aluno
sobre o gênero e, ao mesmo tempo, esperam que os alunos antecipem informações
relativas ao conteúdo temático da crônica a partir de diferentes suportes.
Para efetivação plena dessa atividade, os alunos precisam saber o contexto
de produção e, além disso, saber de antemão o que é uma crônica, pois se trata de
um texto mais ou menos próximo do relato oral que, até certo ponto, o alunado pode
associar a outros textos da ordem do narrar, por exemplo, conto etc.
A outra atividade pensada para abordar o gênero também direciona para um
conhecimento de mundo anterior, pois os alunos precisarão escolher entre vários
gêneros presentes no material disponibilizado (jornal, revista, livro) uma crônica para
ser lida e apresentada, posteriormente, aos colegas. Nesta atividade, as
112
propriedades do texto e de conteúdo serão mobilizadas pelo aluno para que este
consiga encontrar um texto no gênero crônica no suporte oferecido.
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.28.
Em relação à atividade, consideramos que essas questões iniciais, embora
sejam pertinentes para a aproximação da crônica, precisam ser repensadas,
precisamente as perguntas formuladas, uma vez que o leitor contemporâneo das
escolas públicas tem pouco contato com a crônica na esfera impressa e televisiva e,
muitas vezes, o aluno nem sempre reconhece o gênero em primeira instância. Como
sugestão de atividade, em virtude dessa situação por nós posta, seria o professor
levar as crônicas previamente escolhidas por ele ou auxiliar os alunos durante a
busca nos referidos suportes. Nesse auxílio, o professor comentaria brevemente
sobre a situação de produção e circulação para que os alunos compreendam os
caminhos que levam um texto a estar presente em um suporte específico.
Dando continuidade a essa oficina na terceira etapa, o propósito é fazer com
que o aluno fale sobre o autor Fernando Sabino. As autoras sugerem que o
professor pense em questões para explorar a crônica desse autor, a fim de saber o
que alunos antecipem seu conhecimento sobre o cronista.
No primeiro momento, o aluno deve falar o que sabe e, após leitura do texto
informativo sobre Fernando Sabino, ter mais informações do autor para fazer outra
atividade.
113
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.30
A atividade seguinte explora o título, cujo objetivo é fazer com que o aluno
reflita sobre a importância da elaboração de um título para sua crônica. Mas
podemos dizer também que essa atividade busca antecipar conhecimento do aluno
em relação aos conteúdos previstos no texto a ser lido, formular hipóteses sobre o
que vai ser lido. Trata-se de uma estratégia cognitiva de leitura. Em vista disso, as
autoras elaboraram 4 questões de apreciação para o título de “A última crônica”.
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a
produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 31.
A próxima atividade pretende sensibilizar os alunos em relação à temática
apresentada pela crônica de Fernando Sabino, intitulada “A última crônica”. Essa
atividade favorece o desenvolvimento da habilidade de percepção para a realidade
cotidiana do aluno.
114
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 31.
Na Oficina 2, localizamos uma atividade que propõe aos alunos identificar,
com base nas crônicas lidas, a situação de produção, circulação e recepção. Ainda
nela, temos um quadro que tematiza o contexto sócio-histórico da crônica literária de
1878 a 2009. Essa atividade demonstra ao professor e ao aluno que o gênero não é
um texto protótipo, pois sofre influências da evolução das relações sociais. Essa
atividade mostra-se bastante relevante, pois possibilita aos interlocutores do
Caderno compreenderem que o gênero crônica não pode ser tratado de forma fixa,
modular.
115
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 38.
Ressaltamos que, no boxe explicativo sugestões, na comanda 2, as autoras
sugerem o uso dos paradidáticos da biblioteca, no caso, os paradidáticos ofertados
pelo FNDE/PNBE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação/Programa
Nacional de Biblioteca na Escola). Em nossa experiência como professora e
coordenadora, notamos nas escolas estaduais a não utilização desse material e, por
isso, acreditamos importante a orientação das autoras. Além disso, pensamos que é
uma maneira interessante de integrar o trabalho da OLPEF com o PNBE, nas
bibliotecas escolares, pouco utilizadas. Outros meios de pesquisa sugeridos são:
jornais, revistas e sites de internet.
116
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 39.
A Oficina 3 inicia a produção escrita do aluno e solicita a identificação de
elementos sobre a orientação do discurso (dados do autor, conteúdo temático, o
veículo em que foi publicado o gênero, o tipo de leitor, o estilo do gênero).
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.42.
Ainda na primeira etapa, é brevemente descrita a forma composicional e o
estilo do gênero.
117
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a
produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 43.
Nas atividades acima, observamos que as autoras, para evidenciarem a
forma composicional e o estilo do gênero, reconvertem a noção dos elementos de
um texto narrativo para a crônica: cenário, foco narrativo, enredo, personagens,
desfecho. Em nosso entendimento, essas dimensões da ordem do narrar que são
mobilizadas durante as atividades para caracterizar a crônica, em certa medida,
contribuem para as tentativas de domínio do gênero tendo em vista que, talvez, as
autoras considerem os trabalhos anteriores com textos narrativos nas aulas de
Língua Portuguesa ao longo do Ensino Fundamental. Trata-se de uma transferência
de domínios de uma ordem para outra, como por exemplo, o domínio de alguns
elementos dos estilos do tipo narrativo (tempos verbais, advérbios de tempo,
pronomes, figuras de linguagem etc.) para o estilo dos gêneros do relatar e narrar.
Entretanto acreditamos que essas características não podem ser tomadas
como sendo totalmente do referido gênero, pois, muitas vezes, podemos ter uma
crônica apenas com diálogo, em que o foco narrativo se ausenta. Isso nos faz
pensar que o material elege a tipologia para nortear o estudo do gênero crônica.
Com base no estudo desses elementos, o aluno deverá produzir sua primeira
crônica na etapa 2.
118
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção
de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 44.
Na Oficina 4, “Histórias do cotidiano”, aparecem no próprio título algumas
controversas, ou seja, pelo título esperávamos encontrar textos e ações que
permitissem maior interação com a prática cotidiana, mas encontramos um estudo
sistemático de elementos linguístico–textuais, tais como as atividades voltadas ao
estilo do gênero – léxicos do jargão futebolístico, da linguagem cotidiana – para o
estudo do vocabulário, expressões e conhecimento de aspectos da gramática. Outra
dimensão de estilo trabalhada são os elementos semânticos, como as figuras de
linguagem.
Embora essas atividades estejam previstas nos objetivos da Oficina 4, para
nós, soa como incoerente, por não oportunizar aos alunos questões discursivas, que
levassem o aluno a refletir sobre o cotidiano, pois a temática da crônica, como bem
pontuaram as autoras do material, focaliza as situações do homem comum, da sua
vida cotidiana. Por isso, acreditamos que há essa incoerência, pelo não tratamento
exaustivo da discursividade, mas dos elementos linguístico-textuais. Conforme
podemos visualizar a seguir:
119
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor:
caderno do professor: orientação para a produção de textos.
São Paulo: Cenpec, 2010, p. 51-53.
120
Em nosso entendimento, esse tratamento didático apresenta uma
lacuna, pois não há um trabalho sistematizado para o objeto de ensino eleito na
atividade, exemplo são as figuras de linguagem. Tal encaminhamento didático
liga-se às relações dialógicas do campo editorial, uma vez que o processo é
similar ao que os autores de livros didáticos, de alguma forma, apresentam na
didatização desse objeto de ensino. Este é apresentado de forma fragmentada,
em que a abordagem assumida é a transmissiva. Trata-se de uma prática
cristalizada nas situações escolares de ensino-aprendizagem da língua
portuguesa.
Além disso, temos outra prática docente bastante comum: a produção
textual de cartaz para fixação de conteúdos. Em certa medida, evidencia-se
que o Caderno operacionaliza o estudo das figuras de linguagem de forma
simples, de forma transmissiva, não havendo uma abordagem mais estética
para uso dessas figuras para a crônica literária. Este gênero, como pontuamos,
mescla a literatura com o jornalismo. Assim, seria fundamental que houvesse a
proposição de atividades voltadas para uso dessas figuras no texto, pois elas
estabelecem outros sentidos nos enunciados escritos.
Outro fato que nos chamou atenção é o trabalho com dois gêneros
crônicas: a esportiva e a literária. Em nosso entendimento, são gêneros
diferentes, pois Dolz e Schneuwly (2004[1996], p. 60) apresentam no quadro I
proposta provisória de agrupamentos de gêneros na ordem do relatar “crônica
social, crônica esportiva”. Já a crônica literária está na ordem do narrar. Por
consequência, mudam-se os estilos, as formas composicionais, os conteúdos
temáticos e as condições concretas de produção, circulação e recepção dos
discursos escritos. Em outros dizeres, muda-se o gênero discursivo. Assim,
podemos dizer que esse tratamento didático dado à crônica precisa ser melhor
definido pelo Caderno para eliminar essas falhas, embora saibamos que pela
proposta da escola de Genebra deve-se levar diferentes gêneros para sala de
aula. Mas se a proposta é fazer com que os alunos tornem-se autores de
crônicas, em pouco tempo, é necessário reformular a proposta para não
permitir que os alunos fiquem confusos quanto às características da crônica
literária.
121
Em corroboração com os autores, entendemos que a crônica “Peladas”,
de Armando Nogueira, presente no Caderno, p. 51, representa um exemplar do
gênero crônica esportiva, o qual é diferente da crônica literária, intitulada “O
amor acaba”, de Paulo Mendes de Campos.
Em nosso olhar, as diferenças entre os gêneros notícia e crônica
apresentadas na Oficina 6 poderiam ser reconduzidas entre as diferenças entre
dois gêneros apresentados anteriormente: a crônica literária e a esportiva. Isso
porque acreditamos que os discentes podem distinguir o gênero crônica
esportiva por causa do domínio do conteúdo temático, muito familiar, de vários
outros gêneros primários de seu domínio, tal como o relato oral ou relato
esportivo de uma partida futebolística. Assim, a produção de uma crônica
literária pode ficar comprometida, pois não há um trabalho dirigido específico
para esse gênero.
Na Oficina 08, gostaríamos de destacar que a proposta dos alunos
fotografarem o dia a dia é bastante relevante para uma produção de crônica
envolvendo a prática cotidiana. Essa proposta vai possibilitar a eles a
contemplar o outro em um momento singular de suas vidas. Dessa forma, os
alunos vão aos poucos compreendendo os caminhos pelos quais um cronista
passa para produzir seus textos. É procurar nas atividades mais simples,
cotidianas, encontrar algo para dizer, para ressignificar, dar um novo olhar para
aquilo que nos parece ser tão banal.
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a
produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.99.
122
Ainda na Oficina 08, observamos que a atividade tão rica centrou-se
apenas, mais uma vez, nos elementos básicos da narrativa, contemplando a
escrita com o foco voltado para as formas de introdução do texto narrativo, e
esquecendo-se
de
privilegiar
atividades
direcionadas
para
aspectos
discursivos, que contribuíram para compreensão do gênero crônica literária e
auxiliariam os alunos na produção.
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a
produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.99.
Podemos
perceber
que
é
recorrente
nas
Oficinas,
para
explicar/exemplificar o gênero, as autoras respaldarem-se em crônicas escritas
por grandes nomes da literatura brasileira, o cânone, digamos: Machado de
Assis, Fernando Sabino, Moacyr Scliar, entre outros. Considerando que desde
o início do Caderno ocorre uma preocupação em se apresentar o gênero
através das regularidades do conjunto que rege a crônica, as autoras
pretendem fornecer um modelo didático “mais estável” do gênero. Nesse
sentido, percebemos que a proposta é buscar descrever a função ou a
materialização do texto por meio de unidades estáveis que compõem o gênero,
procurando evidenciar no material os tipos de elementos contidos em uma
crônica. Daí os elementos da narrativa entram em evidência.
Essa estabilidade aconteceu por dois caminhos ao longo do Caderno. O
primeiro foi ao elaborarem-se atividades voltadas para forma composicional,
123
pois as autoras privilegiaram comandas direcionadas para os elementos do
texto narrativo. Esses elementos, segundo as autoras, estão presentes em toda
e qualquer crônica, por considerar que o gênero pertence à ordem do narrar.
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a
produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 30, 43, 54.
Outro caminho assumido pelas autoras foi o estilo do gênero crônica e
do autor. Para elas, a crônica possui alguns tons na escrita que favorecem o
reconhecimento de tal gênero em relação a outros, como também diferencia de
124
um autor para outro. Nossa percepção para o estilo individual e do gênero foi
orientada pelas questões presentes no material. Dessa forma, nos trechos das
atividades identificamos que o primeiro e terceiro exemplos marcam o estilo do
gênero e o segundo, o estilo individual.
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a
produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 37, 43, 56
Em nosso entendimento, considerando o foco dado pelas autoras ao
longo do material, pensamos que o caminho a ser delineado para didatizar a
crônica enquanto gênero, a fim de possibilitar sua regularidade seja adotar esta
sequência: primeiramente, definir a esfera de produção, circulação e recepção
e, por conseguinte, o gênero e sua designação a ser didatizado (crônica
literária, esportiva etc.). Outra maneira é estabelecer relações dialógicas com o
documento oficial brasileiro (PCNLP), pois o Caderno trabalha com a etapa
final do Ensino Fundamental.
Tal encaminhamento dado por nós deve-se porque observamos que o
Caderno estabelece relações dialógicas com o discurso oficial constituído na
década de 1990, em particular, aqueles dos PCN de Língua Portuguesa 3º e 4º
125
ciclos, quer dizer, a proposta do material, ao escolher a crônica como objeto de
ensino, segue as orientações dadas por esse documento oficial, pois esse
gênero está previsto como prática de escrita, conforme o quadro abaixo para a
produção textual:
GÊNEROS SUGERIDOS PARA A PRÁTICA DE PRODUÇÃO DE TEXTOS ORAIS E
ESCRITOS
LINGUAGEM ORAL
LITERÁRIOS
DE IMPRENSA
DE DIVULGAÇÃO
CIENTÍFICA



Canção
Textos
Dramáticos







Notícia
Entrevista
Debate
Depoimento
Exposição
Seminário
Debate
LINGUAGEM ESCRITA
LITERÁRIOS
DE IMPRENSA
DE DIVULGAÇÃO
CIENTÍFICA









Crônica
Conto
Poema
Notícia
Artigo
Carta do leitor
Entrevista
Relatório de
experiências
Esquema e
resumo de
artigos ou
verbetes de
enciclopédia
Quadro 6: (BRASIL, 1998, p. 57) [ênfase adicionada].
Em vista dos gêneros elencados acima, as autoras respondem com
concordância ao discurso oficial delineando a crônica da esfera literária como
cerne de sua proposta e também respondem à proposta de Genebra, pois no
agrupamento de gêneros, a crônica também é vista como um objeto de ensino
e está organizada de acordo com os domínios de comunicação e seus
aspectos tipológicos: Cultura literária ficcional/Narrar (crônica literária) e
Documentação e memorização das ações históricas/Relatar (crônica social e
esportiva). Além disso, as autoras respondem a discursos alhures (passados,
já ditos) pelo documento oficial, pois escolheram a crônica como objeto de
ensino para sua proposta didática e levaram em conta a classificação posta
pelos PCNLP, pois a crônica está posta na esfera literária. Trata-se de uma
126
compreensão ativa responsiva, pois as autoras concordam com os PCNLP,
respondendo-o após uma década de sua publicação (1998).
No que se refere ao Ensino Médio, as OCEM dizem que:
o perfil que se traça para o alunado do ensino médio, na
disciplina Língua Portuguesa, prevê que o aluno, ao longo de
sua formação, deva:
conviver, de forma não só crítica mas também lúdica, com
situações de produção e leitura de textos, atualizados em
diferentes suportes e sistemas de linguagem – escrito, oral,
imagético, digital, etc. –, de modo que conheça – use e
compreenda – a multiplicidade de linguagens que ambientam
as práticas [...] em nossa sociedade, geradas nas (e pelas)
diferentes esferas das atividades sociais – literária, científica,
publicitária, religiosa, jurídica, burocrática, cultural, política,
econômica, midiática, esportiva, etc; (BRASIL, 2006, p. 32)
grifo nosso
Desse modo, professor e aluno poderiam não apenas conhecer a
crônica na sua tríade constitutiva, mas perceber que ela é uma modalidade
artística da palavra, e com ela pode-se perceber e observar várias
possibilidades de construções, as quais poderiam, de forma mais efetiva,
contribuir para a concretização da proposta em favor de escritores cidadãos.
Esses dados nos possibilitam voltarmos às páginas iniciais de
apresentação do Caderno. Lá há está afirmação: “Só o fato de participar desse
projeto já é importante para se tomar consciência do desafio que é a escrita.
Entretanto, o real desafio do ensino da produção escrita é bem maior [...]”
(LAGINESTRA; PEREIRA, 2010, p.13). Essa fala nos permite dizer que é
necessário que a proposta didática do Caderno reveja os módulos de
atividades para favorecer a prática de escrita do aluno, pois o ensino da
produção vai requerer do professor formação necessária para ensinar qualquer
gênero.
Por isso não basta focalizar apenas a forma composicional do gênero ou
mesmo centrar os estudos somente no estilo, é preciso organizar as atividades
de forma que os aspectos estrutural, composicional, textual, estilístico
funcionem como um passaporte para o entendimento da dimensão discursiva,
dos efeitos de sentido que esse todo organizado pode provocar no seu alunoleitor. Apesar de as atividades incidirem bastante sobre o estilo individual do
127
autor, nem sempre esse aspecto é pontuado de forma clara para o aluno. Não
há um encaminhamento que permita a apreensão desses elementos de forma
sistemática, mas referências, localização, identificação, o que, a nosso ver, não
contribui para o conhecimento e posterior autonomia do aluno na sua própria
produção.
Bakhtin diz que a autoria se produz pela inter-relação, levando em conta
a atitude valorativa de um participante em relação ao outro. Assim, a relação de
autoria pede certo distanciamento entre interlocutor e autor-criador. Movimento
este que não pode estar fora de uma interação. É por meio desse dialogismo
interacional que o autor criador traz ao mundo do discurso seu texto, numa
compreensão responsiva, sempre criadora e ativa. Ainda sob essa perspectiva
sócio-histórica e dialógica da linguagem, de acordo com Bakhtin (2010 [19521953/1979] p. 290), o interlocutor deve deixar de ser considerado um elemento
passivo no ato da interação para ser considerado um agente, da mesma forma
que é o locutor, tendo em vista que quando nos deparamos com um enunciado
(seja ele escrito ou oral), assumimos uma atitude responsiva ativa.
Outro ponto do Caderno refere-se à orientação dada para a correção
das crônicas. Na parte final, as autoras apresentam alguns critérios de
avaliação dos textos, priorizando os aspectos enfatizados nas atividades da
sequência. Em relação a esses critérios, tal como na apreciação valorativa, na
maneira como se estabelece o valor de pontuação, podemos notar que o tema
tem valor de (1,5), a adequação ao gênero está subdividido com dois itens
(adequação discursiva e adequação linguística); cada um obtendo pontuação
de (2,5) totalizando (5,0) pontos). As marcas de autoria receberam peso (2,0) e
a avaliação se encerra com as convenções da escrita com valor de (1,5). Como
podemos visualizar no quadro abaixo:
128
LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a
produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.127.
Embora as autoras tenham mostrado anteriormente que os critérios
referem-se à forma como os gêneros textuais estão definidos no caderno,
“Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF), notamos que
os descritores deixam transparecer maior apreciação pelos fatores linguísticos
(apresentados com 3 descritores): “Os marcadores de tempo e espaço
contribuem para caracterizar a situação tratada?; Os articuladores textuais são
apropriados ao tipo de crônica escolhido pelo autor?; Os recursos de
linguagem estão adequados ao tom visado (irônico, humorístico, lírico ou
crítico)?”, em detrimento dos aspectos discursivos (apresentados com 2
descritores): “A situação de produção própria da crônica se manifesta no
texto?; A organização geral do texto está de acordo com o tipo de crônica
escolhido (política, cultural, esportiva...)”.
As autoras expressam que é necessária a utilização dos recursos
linguísticos e discursivos para que o aluno (leitor-autor) produza melhor.
Entretanto, no âmbito da proposta didática em análise, o entendimento da
129
crônica como uma temática de transformação que pode facilitar e nortear a
compreensão e a produção escrita do aluno encontra, em alguns momentos do
material, pequenos equívocos, pois se o caderno é para orientar tanto
professor
e
aluno
na
prática
da
escrita
e,
consequentemente,
o
desenvolvimento do cidadão crítico, então, ainda é preciso propor mais,
proporcionar a eles a construção de novas apreciações que forneçam
subsídios para a constituição da autoria pelos alunos.
Desse modo, professor e aluno poderiam não apenas conhecer a
crônica na sua tríade constitutiva, mas perceber que ela é uma modalidade
artística da palavra, e com ela pode-se perceber e observar várias
possibilidades de construções, as quais poderiam, de forma mais efetiva,
contribuir para a concretização da proposta em favor de escritores cidadãos.
130
CAPÍTULO V
Um olhar sobre as vozes e a autoria na produção escrita de crônica da
Olimpíada de Língua Portuguesa
No capítulo anterior, fizemos a análise do Caderno dirigido ao professor,
material que apresenta encaminhamentos metodológicos para orientar o
desenvolvimento das atividades relativas ao ensino-aprendizagem da crônica
para a participação dos alunos na Olimpíada de Língua Portuguesa.
Neste capítulo 5, apresentaremos a descrição de dez crônicas escritas
por alunos do 9o ano do Ensino Fundamental e 1o ano do Ensino Médio de
escolas públicas do Brasil que participaram como finalistas da Olimpíada de
Língua Portuguesa do ano de 2010. Nosso objetivo é levantar quais vozes os
alunos mobilizam em suas produções discursivas e em que medida a autoria
possa estar presente nessas produções.
O corpus composto por dez crônicas é representativo das cinco regiões
do Brasil, sendo contemplados dois textos por região. Após uma leitura
cuidadosa de um corpus de 150 crônicas finalistas do concurso, selecionamos
dez18 textos que mais se aproximaram da prática discursiva do gênero crônica,
já aqueles textos cuja autoria estava “colada” (revozeada) nos textos
exemplares em crônica fornecidos pelo projeto de ensino foram descartados.
Apresentamos, no quadro abaixo, a proveniência regional e o título das
crônicas selecionadas e que serão foco de nossa análise neste capítulo.
Crônicas produzidas pelos alunos na OLPEF (2010)
18
Amostra
Região
Título das crônicas
Exemplo 1
Sudeste
Até na igreja, Evaristo?
Exemplo 2
Sudeste
As cidades
Exemplo 3
Sul
Belezas da Cidade Mel
No tocante aos dez textos selecionados aparece um cabeçalho contendo alguns dados pessoais dos discentes
como: nome completo do aluno, município, Estado, nome da instituição escolar, e nome completo do professor. Os
textos não definem idade, ano, nem etapas do ensino médio ou do fundamental dos participantes.
131
Exemplo 4
Sul
Espetáculo
Exemplo 5
Centro Oeste
Exemplo 6
Centro Oeste
Que barulho é esse?
Exemplo 7
Nordeste
O armário
Exemplo 8
Nordeste
Exemplo 9
Norte
Exemplo10
Norte
Descoberta Inocente
O relógio não parou
Castelo Branco agora é feira
O galho, o suspiro e o pulo
Quadro 7: As crônicas selecionadas e sua representatividade regional
Nosso objetivo, ao estabelecer esse critério de escolha, era não
restringir o alcance de nossa pesquisa a apenas uma determinada localidade.
É interessante observar que as crônicas finalistas por nós coletadas já
passaram por pelo menos quatro seleções: a melhor da sala, da escola, do
município e do estado. Era de pressupor, então, que os alunos, nessa etapa,
tivessem mais familiaridade com a prática discursiva do gênero, o mesmo
podendo ser estendido aos professores. A presença maciça de textos com
autoria “colada” nos textos exemplares no gênero fornecidos pelo projeto de
ensino nos serviu para refletirmos sobre a dimensão que adquire o material
didático em seu processo de circulação e recepção.
Na próxima seção, apresentaremos alguns apontamentos sobre um
Caderno, recém-lançado pela coordenação das Olimpíadas, intitulado “O que
nos dizem os textos dos alunos?”, material este que reúne análises de
especialistas nos gêneros didatizados pela Olimpíada de Língua Portuguesa
com base nas produções dos alunos participantes do concurso. Trazer para
este trabalho os resultados de uma análise crítica dos textos produzidos pelos
alunos, feita pelo próprio programa, parece bastante salutar, já que iremos
proceder também a uma leitura crítica dos textos.
132
5.1 “O que nos dizem os textos dos alunos?”: apontamentos
O material “O que nos dizem os textos dos alunos?” foi organizado por
Egon de Oliveira Rangel (Cenpec) e resulta do trabalho de análise de quatro
especialistas, cada um com foco em um gênero específico, convidados pelo
organizador para realizar um levantamento sobre o perfil das produções dos
alunos participantes do concurso da OLPEF que conseguiram chegar à fase
estadual da competição no ano de 2010. Esse levantamento foi realizado com
base em uma amostra com uma média de 385 textos de cada gênero
contemplado no concurso, a saber, o poema, as memórias literárias, a crônica
literária e o artigo de opinião.
O material está composto de sete partes distintas, a primeira — a
introdução —, e a sexta — a conclusão —, são escritas pelo organizador do
material, Egon de Oliveira Rangel (Cenpec). Do segundo ao quinto tópico são
apresentadas as análises das amostras das produções selecionadas,
efetuadas por diferentes pesquisadores.
Na introdução, o organizador informa que o objetivo do material é
apresentar um panorama das contribuições do concurso no que se refere à
produção escrita dos alunos participantes, com base no levantamento dos
conhecimentos efetivamente apreendidos pelos alunos e, a partir disso,
apontar ao professor quais aspectos requerem maior investimento de sua parte
a fim de elevar a qualidade das produções provenientes da aplicação das
propostas didáticas da OLPEF.
A segunda parte é dedicada à análise das produções em poema na
OLPEF sob assinatura da professora Ana Elvira Gebara (UNIC SUL). Na
terceira, encontramos a análise das produções em memórias, cuja responsável
é a professora Elizabeth Marcuschi (UFPE). Na quarta, a análise é apresentada
pela professora Cloris Porto Torquato (UEPG) e recai sobre as produções em
crônica, foco de nossa pesquisa. Na quinta, temos o perfil dos textos em artigo
de opinião, levantado pela professora Ana Luiza Marcondes Garcia (PUC/SP).
A autora do texto-base elaborado a partir da análise de 383 crônicas dos
participantes da 2a edição da OLPEF, Cloris Torquato, traz alguns
133
apontamentos importantes que podem nos auxiliar na análise do conjunto de
crônicas por nós selecionadas para compor nosso corpus de pesquisa. Com
base em sua análise, podemos observar que os alunos estão conseguindo
apreender alguns conhecimentos relacionados ao uso do gênero de forma
positiva, mas ainda têm muito que avançar. Os problemas detectados pela
analista relacionados à produção da crônica apresentam-se em quatro ordens:
adequação temática, adequação do foco narrativo, construção de sentido
(tom/estilo) e convenções da escrita/questões gramaticais.
Torquato aponta que, no geral, os alunos conseguiram trazer para seus
textos a presença do cotidiano ainda que os recortes dos temas nele buscados
não tenham sido eficientes. Segundo a autora, o foco narrativo em um
acontecimento corriqueiro é substituído, na maioria das vezes, por relatos
descritivos de exaltação dos lugares apresentados. As ações são retratadas
como fatos e cenários e a insistência descritiva em várias direções faz com que
o aluno perca o foco em um aspecto preciso bem como o aprofundamento
necessário para gerar reflexão, emoção e encantamento, aspectos típicos da
crônica.
Em relação ao ponto de vista adotado para fazer a observação do
acontecimento selecionado para compor a crônica, a autora aponta que muitos
textos da amostra apresentaram com eficácia e, algumas vezes, criticidade, as
observações realizadas e até mesmo realizaram movimentos tão bem
explicitados que permitiam ao leitor o vivenciamento da situação, servindo-se,
para
isso,
de
elementos
linguísticos
adequados
para
demonstrar
o
deslocamento no espaço e no tempo. Nota-se até mesmo a presença de
estratégias narrativas um pouco mais complexas como as de se servir de um
narrador não onisciente que precisa interpretar ou supor fatos não apreensíveis
completamente do lugar assumido para observar. Outros, porém, incorreram
em inverossimilhança, ou seja, o ponto de observação adotado pelo aluno não
era capaz de abarcar o campo de visão apresentado no cenário e no conteúdo
do texto.
Os alunos tiveram sucesso em utilizar a norma culta adequadamente
sem quebrar a linguagem do dia a dia e também mantiveram uma linguagem
regional com diferentes variedades linguísticas algumas vezes de forma
134
consciente e outras nem tanto. A autora chama atenção para o fato de alguns
textos apresentarem incorreções gramaticais que as atividades de reescrita e
revisão propostas poderiam sanar.
A autora observa que a maioria dos textos não consegue transpor o
cotidiano para o campo da ficção de forma adequada devido ao fato de os
textos apresentarem-se mais como relatos descritivos de cenas vividas ou
observadas do que necessariamente um enredo narrativo assentado em um
conflito ou tensão de base e um desfecho. Assim, os textos carecem de
ficcionalidade e literariedade, elementos cruciais em uma crônica literária. O
que podemos depreender dessa afirmação é que o movimento de
distanciamento, necessário em qualquer ato de criação, principalmente
estética, não foi assimilado pelos alunos que ainda ficaram presos à
proximidade, à empatia, ao vivenciamento do acontecimento no mundo ético.
Há também, aqui, indícios de que a expectativa do programa é que a crônica
fosse compreendida, sobretudo, como gênero literário.
Um achado importante da analista das crônicas diz respeito às
dificuldades dos alunos em assumir uma tonalidade (tom) específica para seus
textos. Para a autora, a construção do tom do texto está ligada aos efeitos de
sentido que se quer produzir no destinatário e esse trabalho requer a maestria
na manipulação dos recursos linguístico-estilísticos, a nosso ver, próprios do
gênero e do querer dizer do autor. Entretanto, esse trabalho de articulação
entre projeto de dizer e escolhas estilísticas adequadas não está bem
apreendido pelos alunos, problema, segundo Torquato, decorrente da falta de
conhecimento específico, por parte desse aluno, dos elementos da situação de
produção a exemplo de uma definição precisa do seu próprio querer dizer e do
perfil de seu público-leitor.
A nosso ver, a questão acima pontuada é muito importante para
pensarmos acerca da autoria dos textos produzidos na escola. Se a própria
analista aponta que o cronista, ao escrever, leva em conta o perfil de públicoleitor de um jornal ou mesmo de um caderno deste, de um blog, de uma
revista, como fazer para que as transposições didáticas não se afastem tanto
das esferas de produção, circulação e recepção originais do gênero a ponto de
deixar a cargo unicamente do aluno a tarefa de representar, supor ou, para
135
utilizar o termo mais próprio, “inventar” para si um público-leitor? Não
estaríamos colocando em xeque a especificidade do gênero em nome da
ficcionalização? E não estaríamos correndo o risco de cairmos novamente em
propostas de produções de texto como mero exercício escolar? Há que se
pensar essa questão uma vez que a própria análise aponta que esse problema
incide justamente sobre a autonomia autoral do aluno, ou seja, este não sabe
bem o que pretende ao escrever nem para quem o faz precisamente.
O organizador observa, em suas conclusões, que a compreensão da
situação de comunicação circunscrita à proposta da OLPEF é um desafio para
o aluno porque este precisa articular de forma adequada os três principais
destinatários dos seus textos: a comunidade escolar (o professor, os colegas
de turma, etc.), a comissão julgadora e as situações sociais nas quais o gênero
é utilizado. Como o próprio organizador afirma que os alunos não têm
conseguido fazer essa articulação adequada, a nosso ver, bastante complexa
mesmo, de forma a ajustar a orientação valorativa do texto, conjecturamos que
se a proposta se aproximasse o máximo possível das situações de produção
original do gênero, talvez a proposta didática criasse melhores condições para
o sucesso dos alunos.
A iniciativa dos organizadores em disponibilizar ao professor esse tipo
de material é um passo importante, pois, por meio dele, é possível visualizar
um panorama das problemáticas enfrentadas pelos professores e alunos ao
aplicar a proposta didática. Entretanto, a nosso ver, detectar os problemas nas
produções dos alunos e deixar a resolução dos mesmos unicamente a cargo
do professor não é nada produtivo. Fazer sugestões pedagógicas sem a
contrapartida prática de um encaminhamento de ação didático-pedagógico
específica não ajuda na superação dos problemas. Há que se pensar se não
existem gargalhos em outras frentes da proposta como nos cursos de formação
e nos próprios materiais didáticos. Se a proposta é formar alunos e também os
professores em uma determinada perspectiva, é preciso dar conta dessas
questões.
Feito o giro pelo material, já Torquato demonstra que a maioria dos
textos produzidos com base na proposta do material didático “A ocasião faz o
escritor” (2010), da OLPEF, não constitui em si uma crônica, mas relatos
136
descritivos das experiências vivenciadas pelos próprios alunos ou por eles
observadas. A autora também deixa transparecer que as fontes dessas
dificuldades dos alunos, em sua maioria, estão ligadas a ineficácia de
estratégias pedagógicas adotadas em sala de aula pelo professor, observação
essa confirmada em um trecho de sua conclusão que representa a própria voz
do professor: “E como posso trabalhar com todos esses aspectos ao mesmo
tempo?” (TORQUATO, 2011, p. 47). Nós, apesar de não desprezarmos as
suposições da autora, continuamos a interrogar se seriam apenas esses os
fatores que distanciam as produções dos alunos do gênero foco da intervenção
didática. Esses são alguns dos questionamentos que pensamos serem
importantes para darmos início a nossa análise, na próxima seção.
5.2 Os textos dos alunos: entre o proposto e o realizado
Nesta seção, faremos a análise dos textos elaborados pelos alunos que
foram finalistas de 2010 da Olimpíada de Língua Portuguesa escrevendo o
futuro - A ocasião faz o escritor, que traz como proposta didática, conforme já
assinalamos várias vezes, o ensino-aprendizagem da crônica. Nosso objetivo,
nesta etapa, é responder à nossa segunda questão de pesquisa: Quais vozes
os alunos mobilizam nas produções discursivas das crônicas? Vamos tomar
primeiro para análise os dois textos selecionados da região sudeste, o primeiro
versando sobre a temática do futebol e o segundo sobre imigração e
desigualdade social.
- Região Sudeste
Exemplo 1: Até na igreja, Evaristo?
Aluno: C. E.S. – MG
137
No texto acima, o aluno-autor traz o cotidiano do lugar onde vive de uma
forma peculiar. Ele consegue filtrar esse cotidiano para o texto e traçar, de
certa forma, um perfil cultural da população local representando e contrapondo
em um tom humorado duas forças sociais que caracterizam o comportamento
138
local: o amor pelo futebol e o compromisso religioso. A descrição do cenário ou
espaço local complementa, articulada às ações, o ambiente sociocultural e nos
leva a supor que a vida, naquele local, acontece de forma pacata e interiorana,
não obstante o aluno more em uma grande capital, o que nos faz cogitar se o
local retratado é mesmo o lugar onde vive o autor ou se trata de um lugar
totalmente ficcional.
Para representar as duas forças sociais em torno das quais gira a
unidade da narrativa, o aluno-autor busca representar o sofrimento do
personagem Evaristo em relação a seu compromisso sagrado com o jogo de
seu time e a presença na igreja para assistir a uma missa.
Esse conflito traz à tona duas vozes sociais. A primeira diz respeito ao
mundo do futebol, do torcedor fiel a seu time, pois deixa de lado quaisquer
atividades para assistir ao jogo. A segunda é a religiosidade, característica
ímpar do povo brasileiro.
Assim, entendemos que o aluno-autor, ao refratar o tema por esse
ângulo, nos sinaliza que o cotidiano do homem simples, talvez, esteja atrelado
a isso: assistir a um jogo, ir à igreja. Para mostrar isso, são mobilizados
diferentes recursos linguísticos no texto a fim de que o leitor perceba as
sensações vivenciadas pelo personagem principal.
Chama-nos atenção o fato de ele usar períodos curtos e longos, para
dar sensação de movimento, de indecisão. Ao lermos o texto, percebemos que
o tom dado pelo aluno-autor favoreceu sua produção.
Religioso como ele só e fanático como ele era, não poderia
deixar de participar dos dois compromissos. Assim ele teve
uma grande ideia: levaria seu radinho de pilhas à igreja,
sentaria no último banco e usaria uma jaqueta com capuz onde
colocaria seu radinho.
A partir desse momento, a ansiedade contagiava Evaristo, que
a todo momento olhava o relógio na expectativa da hora do
jogo. (Aluno participante da Olimpíada- MG)
Outro
recurso
são
os
sinais
de
pontuação.
Estes
marcaram
discursivamente o ponto de vista do personagem, uma vez que esse recurso foi
139
mobilizado de forma consciente, pois há um querer dizer para a apresentação
dessas forças sociais.
Ao lado de castanheiras, latidos de cães, choros de crianças,
gritos de vendedores ambulantes...
— Atenção! Hoje haverá missa especial para os moradores às
18 horas. Contamos com a presença de todos! (Aluno
participante da Olimpíada- MG)
Outro fato que nos chamou atenção foi o uso da onomatopeia
“GOOOL!”. Esse recurso foi usado corretamente pelo aluno-autor em sua
produção. Esses recursos nos mostram que ele conseguiu assimilar as
informações dadas pelo professor e pelas atividades pensadas. Reforçamos
nosso ponto de vista em relação ao tom assumido no texto. O tom da escrita
vai em direção ao humor, pois o leitor é surpreendido na parte final do texto ao
se deparar com o padre e Evaristo saindo da Igreja aos pulos para comemorar
a vitória do time.
Embora alguns recursos tenham sido mobilizados corretamente a favor
do projeto discursivo do aluno-autor, percebemos que o estilo do gênero não foi
alcançado. Tal afirmação deve-se à falta de leveza, da plasticidade necessária
à crônica. Apesar do aluno-autor usar a sequência narrativa, característica
importante para os gêneros da ordem do narrar, ela não foi suficiente para
dizermos que temos uma crônica literária.
A crônica literária ocupa o espaço do entretenimento, da reflexão mais
leve e o cronista, ao escrever, busca emocionar e envolver seus leitores, de
forma a convidá-los a refletir, de modo simples, sobre determinada situação do
cotidiano. No texto, ora em análise, percebemos que o enfoque principal do
aluno-autor é provocar o riso por meio da junção e tensão de comportamentos
estereotipados como o fanático por futebol e o beato em um único sujeito.
Entretanto, a forma como o aluno-autor conduz o texto e lhe dá desfecho final
não nos permite depreender nada além do riso pelo riso. Não conseguimos
enxergar por trás da trama narrada qualquer orientação provocativa de reflexão
acerca desses tipos sociais na constituição do cotidiano local.
140
Observamos também que o discurso do aluno-autor está preso a uma
ação, movida pela necessidade ética do personagem, pois este foi à igreja
pensando como estaria a partida de futebol. Nesse processo, há um querer
dizer do sujeito-autor, que se materializa em seu objeto do discurso, neste
caso, sua crônica, em que o personagem não se conforma em perder uma
partida de futebol para ir assistir à missa, como podemos ver abaixo:
“E agora? O que fazer? O jogo está marcado para o mesmo
horário da missa!”, pensou ele. Religioso como ele só e
fanático como ele era, não poderia deixar de participar dos dois
compromissos. (Aluno participante da Olimpíada- MG).
Dessa forma, o texto é construído dentro de uma arquitetônica que
envolve o querer dizer desse locutor, pensamento do mundo que está em sua
volta, da temática, que envolve e transparece o estilo do autor, compondo um
todo de sentido que não diz respeito somente a ele, mas também enfatiza a
presença do destinatário, seus leitores da esfera escolar, em cumprimento as
exigências trabalhadas em sala de aula.
Entretanto, a estética literária,
digamos, fica em segundo plano, ou inexiste de fato. Falta, portanto, um
trabalho consciencioso sobre a língua, sobre o material e, portanto, sobre a
forma.
Passemos, agora, à segunda crônica, em que a autora traz como
reflexão para o seu texto as contradições sociais da cidade onde vive sob o
olhar do imigrante recém-chegado.
Exemplo 02: As cidades
Aluna: D. C. J. S - RJ
141
Pela temática e o estilo escolhido, podemos perceber que o intuito da
autora era criar uma crônica social por meio da qual, percebe-se, quer provocar
uma reflexão crítica acerca das contradições sociais. Narrado em primeira
pessoa, notamos que o texto possui unidade de ação, cujo enredo gira em
torno da chegada e travessia da personagem focada pelo narrador na cidade
do Rio de Janeiro até o ponto em que tem ápice a ação: a chegada à favela
Rocinha. A travessia entre os dois mundos da cidade é o tempo da narrativa e
o espaço onde se desenrola a ação, por sinal, bastante delineados no texto.
O autor não retrata muito bem o cenário palco da ação, referindo-se a
ele por alusões “belezas naturais, arquitetônica da cidade, praias”, em vez do
foco no espaço, prefere voltar seu olhar para o comportamento psicológico da
personagem “sonhadora, determinada, curiosa, deslumbrada, encantada”, o
que aponta para a busca de impressão de um tom intimista ao texto, numa
tentativa de aproximação do estilo de Clarice Lispector, com a qual a alunaautora dialoga no processo de construção da personagem “Maria”.
Tendo como ponto de partida a obra “A hora da estrela”, de Clarice
Lispector, cuja personagem Macabéa, ignorante, limitada em termos de
vivência e conhecimento, vive uma vida pobre e cheia de ilusões, aspectos que
a levam para uma morte bestial, o aluno-autor traz para o seu texto uma visão
142
sociocultural acerca do imigrante nordestino. Ao adjetivar a prima “nordestina”,
antecipa possíveis valorações do leitor acerca de sua personagem “Não vá
pensando que ela é como a personagem “Macabéa” e “nós conversamos muito
pela internet”. Com isso, demonstra que “Maria” não só tem conhecimento, a
supor por suas reflexões no confronto com a vida da favela, mas está
conectada no mundo virtual, atividade que exige algum grau de letramento.
A referência à obra de Clarice Lispector pode também se fazer presente
na crônica do autor não apenas para atender ao seu projeto discursivo, embora
sua mobilização tenha sentido no todo do texto, mas para demonstrar erudição
e provar ao seu destinatário-avaliador que houve um trabalho de pesquisa, de
leitura e um esforço posterior em estabelecer relações no processo de
alimentação temática do texto. Outro aspecto importante a ser pontuado é a
tentativa do autor em tomar distância do vivido, podemos perceber que o autorpessoa é uma menina, mas o narrador é um menino “Isso aqui é um mundo,
primo!”, o que demonstra um esforço em transfigurar o mundo retratado.
Podemos observar que o discurso que tece o texto é a voz do cidadão
comum, morador do local, cujo olhar sobre a contradição social é de reação
crítica e esperança e ao mesmo tempo de desânimo. O tom de crítica e de
esperança está assimilado na voz do imigrante recém-chegado que na tensão
com a situação estabelecida desvela possibilidades. Neste momento, ouvimos
a voz da Constituição Cidadã “Pena que essas pessoas não sabem que
podem...” e a voz do conhecimento que confrontam com o estado de
passividade e complacência da população.
Por meio de nossa análise, pudemos perceber que a aluna deixa
transparecer que assimilou algumas técnicas da criação ficcional, que procura
responder às orientações do material didático, trazendo para o seu texto todos
os ingredientes que as autoras da proposta fornecem para se escrever uma
boa crônica. Entretanto, conforme se pode notar pela leitura do texto, a
articulação entre o conteúdo, a forma e o estilo ainda não se encontra bem
acabada, não convence o leitor.
Falta, no texto, o olhar atento, minucioso, sensível aos pormenores,
capaz de aguçar a curiosidade do leitor, além da linguagem literária não se
fazer presente efetivamente, por isso, não sensibiliza. O projeto discursivo do
143
aluno-autor de provocar a reflexão crítica falha pela falta de um todo acabado
em que as partes inter-relacionadas demonstrem essa orientação. Assim,
podemos ter uma narração escolar, uma crônica jornalística, mas não literária.
Outro fator que nos chama atenção são as formas de valoração da
aluna-autora, pois nos mostra uma escrita que privilegia a realidade da vida
social, mesmo que em alguns momentos nos parece restringir somente ao
processo de globalização e imigração e também a responder à banca
avaliadora. Para nós, o endereçamento desse discurso em que as mazelas e
malefícios da cidade grande são postos revela o agir ético do sujeito autor.
Entretanto, a visão estética mostrou-se insuficiente, pois não percebemos as
particularidades da autora em seu querer dizer que traz singularidade do
referido gênero, mas cria uma escrita destinada a responder ao material.
A seguir, vamos analisar as crônicas 3 e 4 do corpus, escolhidas da
região Sul. A primeira intitula-se Belezas da Cidade Mel, escrita por um aluno
de Içara/SC, e a segunda, Espetáculo, pertence a uma aluna de Joinville/SC.
Trata-se de dois textos cujos projetos são produzir uma crônica social sobre o
lugar onde vivem os autores. Mas cada lugar é apresentado por uma entrada
diferente, no primeiro, o lugar se mostra pelo olhar inquieto do observador
voltado para várias direções, no segundo, o aluno-autor preferiu unir a
diversidade local em um palco de encontro da população, um centro de evento
onde acontece um festival de dança tradicional. Vejamos os textos.
Região Sul
Exemplo 03: Belezas da Cidade Mel
Aluno: J.T.I – SC
144
Conforme podemos perceber, o objetivo do texto é emocionar o leitor por
meio da exaltação da realidade local, orientação apreendida por meio do
excesso de adjetivação positiva acerca do lugar, das pessoas, dos costumes
etc. O autor, para realizar seu projeto, esforça-se por dar um tom lírico ao seu
texto, lançando mão de recursos como sinestesia “nossa terra pura, doce e
amendoada”, metáfora “As pessoas vivem... na união da boa terra, no ventre
quente do amor”, ritmo “a fumaça brumosa... flutua levemente até pender
graciosa”. Entretanto, o resultado parece forçado e não emociona o leitor,
talvez pela insistência excessiva em convencê-lo das belezas do lugar por um
145
caminho menos indicado: o abuso da descrição que desorienta o foco da ação
e impede o aprofundamento.
Assim, o autor não consegue imprimir no texto uma unidade de ação e
seu olhar volta-se a todo instante para um lado e para o outro sem conseguir
se deter, analisar, perscrutar, vasculhar um aspecto, um comportamento, um
acontecimento, uma ação qualquer. Apesar de apresentar uma linguagem
formal e ao mesmo tempo simples em trechos em que se possa perceber
incoerência ou falta de nexo com o projeto discursivo, o excesso de
informações faz com que o leitor não consiga apreender muito bem o querer
dizer do autor, aspecto que contribui para que o texto não provoque nenhum
tipo de reflexão, ou emoção.
É possível também apreender, de certa forma, para quem o aluno está
escrevendo e a imagem que representa desse interlocutor. O leitor do texto não
faz ideia do lugar de que fala o autor, por isso sua preocupação em apresentar
um relato o mais amplo possível desse local. Com base nisso, percebe-se que
o autor projeta seu texto para um público mais amplo, além das fronteiras da
escola. Mas o aluno conta também com um interlocutor mais especializado, a
perceber pela forma como se preocupa em utilizar, conscientemente, conforme
apontamos anteriormente, recursos da linguagem literária condizente com o
tom visado em seu texto — o lírico —, orientação posta nas atividades do
Caderno e como critério de avaliação do texto pela comissão julgadora.
A voz que alinha o texto do começo ao fim é a visão ufanista e
idealizada do lugar. É interessante observar o movimento do aluno-autor de
aproximar essa visão idealizada da cidade do discurso tradicional romanceado
acerca da figura feminina em nossa sociedade. Assim, o lugar é a mãe que
alimenta “Da nossa terra pura, doce e amendoada nascem os frutos valorosos,
alimentados no seio caloroso de Içara”; que aquece “As pessoas vivem
saciadas e ditosas aqui, na união da boa terra, no ventre quente do amor”; e é
a irmã “areia que conforta seu suor e suas lágrimas em seus doces e
carinhosos sulcos”. Desse modo, uma voz ufanista interpenetra-se com uma
voz romanceada acerca da mulher para nos apresentar uma visão idealizada
do lugar.
146
O ético está presentificado na mostra do contexto social, da vida diária
de cada ser humano, como podemos ver no trecho abaixo:
O café neste momento ferve e borbulha quente e úmido, como
nossos corações ávidos por amor. O suor dos dias de trabalho
nas lavouras escorrega da face cansada e penetra com
suavidade no solo, metamorfoseando-se lentamente no mel
puro [...].(Aluna participante da Olimpíada- SC)
A preocupação com o trabalho das pessoas reflete as questões éticas
mostrando as problemáticas da vida social, o agir de cada pessoa no mundo
para enfrentar essas precariedades que aparecem desde o nascer até o morrer
de cada ser humano. No excerto acima, a preocupação com a lavoura, o
trabalho no campo, as formas de subsistência familiar, o cansaço das pessoas
com o trabalho pesado.
A visão estética ocorre no próprio dizer singular da aluna quando
expressa
“mel puro, que existe só aqui, neste lugar de encantamentos,
belezas e terna magia, rotulada a cidade mais doce do Brasil”.
(Aluna participante da Olimpíada- SC)
No dizer acima, percebemos a própria forma do dizer do locutor, que
contempla a terra natal como doce, mágica e pura. Tudo isso dentro de uma
concepção transfigurada a partir de um olhar valorativo que a aluna autora
lançou sobre a realidade da região que vive. Apesar de ela unir o conteúdo, a
linguagem e o estilo da crônica, ela não produziu crônica literária, pois ficou
presa à descrição do processo de tal forma que foge do contexto da crônica,
passando apenas pelo simples ato de detalhamento do ambiente local e
enfatizando as características básicas das narrativas apreendidas pelo material
da olimpíada.
Do ponto de vista temático, podemos pontuar que o autor consegue
trazer o cotidiano do lugar onde vive para o texto, mas não consegue
transfigurá-lo conforme seu projeto discursivo. A sensação é que, para o autor,
muitos aspectos de sua cidade merecem uma crônica, por isso, o esforço em
retratá-los todos, mas nada vale a pena um tratamento singular e profundo.
Passemos agora a observar o texto 4, Espetáculo, a fim de perscrutar como
essas questões se fazem presentes nele.
147
Exemplo 04: Espetáculo
Aluna: T.S – SC
O texto se apresenta de forma bem singular, narrado em primeira
pessoa. Diferentemente do texto anterior, a autora, apesar de também realizar
um percurso diversificado em diferentes direções da vida do lugar, esse
apanhado geral do cotidiano local, em forma de reflexão, converge para um
único centro de atenção: um acontecimento artístico-cultural que congrega toda
a cidade. Podemos dizer que a temática do texto é a vida artístico-cultural de
uma cidade e o objetivo da autora é provocar uma reflexão acerca da
capacidade de a arte unir as pessoas “Penso na cidade unida, como uma
grande corrente, todos pela mesma causa: a dança”.
Para a autora, a vida, nesse micro espaço-tempo da cidade, reverbera: é
notícia nos meios de comunicação, é motivo de festa nas ruas, desperta
amizades, amores, lástimas e tristezas, é fonte de riquezas econômicas e
148
culturais, é referência para perseverança e superação e até válvula de
transformação da realidade:
[...]as pessoas que estejam na cadeia ou nas ruas, se tivessem
presenciado algo de tanta sensibilidade como o nosso festival
de Dança, se encantariam e poderiam saber que a vida pode
ser bela, e talvez fizessem dela algo bem melhor do que é na
realidade. [...] um espetáculo desses nunca, jamais, deveria ser
perdido por alguém que tem essa oportunidade única de
cultura. (Aluna participante da Olimpíada- SC)
No trecho acima, a dança pode ser um agente transformador de
realidades capaz de mudar a visão de mundo e os valores das pessoas. Esse
enfoque reflexivo em direção à vida artístico-cultural do lugar afasta o texto da
simples descrição de lugares comuns do cotidiano da cidade e volta-o para
elementos do ambiente sociocultural e artístico do povo. Como o objetivo é a
reflexão poética acerca do tipo de arte que desperta o lugar, a autora quer
impressionar, recorrendo a recursos linguísticos como as comparações e as
metáforas, embora nem sempre alcançando um tom de literariedade.
A autora entende a proposta e consegue desdobrar a temática com certa
autonomia sem se prender às prescrições do material. Assim, apesar de em
seu texto não se presentificar todas as características de uma narrativa,
conforme orientam os autores da proposta didática, o texto consegue nos dar
uma amostra da vida do lugar onde vive o autor não do ponto de vista de um
personagem, de um cenário, de uma tensão entre um conflito e seu desfecho,
mas por meio de uma reflexão acerca de um acontecimento que marca e
constitui a vida local. O próprio título Espetáculo nos antecipa essa orientação,
a valoração está voltada para um acontecimento que é visto como espetáculo,
aqui, depreendido como uma apresentação artística, mas também como algo
grandioso, eloquente pela importância que tem para os moradores da cidade.
As vozes dos moradores da cidade são enfatizadas em diversas
instancias para contextualizar o momento da dança, as histórias de superação,
sensibilidade entre a realidade e a ficção, são vozes que extravasam as
limitações humanas para mostrar que independente de serem pessoas pobres
ou ricas, todos podem superar as dificuldades e vencer por meio da dança.
149
Do ponto de vista ético, a preocupação passa pela questão social como:
“Penso no trabalho árduo das pessoas no cotidiano, nos sons das fábricas
funcionando a pleno vapor, na correria para pegar um ônibus”, preocupação
que passa pelo desenvolvimento econômico que, segundo a autora, traz
avanços, mas também desafia a humanidade de maneira desenfreada
causando precariedades no desenvolvimento humano, são mazelas que
infelizmente acompanham a humanidade junto ao progresso, mostrando o
desenvolvimento humano, num contexto econômico, social e político como
podemos verificar no trecho abaixo:
Penso no bem que faz à cidade, tanto no nível econômico
quanto no cultural, e vejo que é mais do que apenas um festival
para divertir-nos, mas sim um espetáculo fascinante que nos
ensina mais do que possamos imaginar.
(Aluna participante da Olimpíada- SC)
Outro ponto enfatizado pela aluna autora é seu desejo e prazer pela
dança. Esse enfoque revela uma visão estética que possibilita a criação de
objetos artísticos, no caso deste texto, o enfoque destinado à dança e a cultura:
“Penso que um espetáculo desses nunca, jamais, deveria ser
perdido por alguém que tem essa oportunidade única de
cultura”. (Aluna participante da Olimpíada- SC)
Apesar de ser um texto interessante e criativo, a forma composicional, a
temática e o estilo se misturam sem dar um acabamento necessário ao texto.
Falar de aspectos estéticos sem transfigurá-los esteticamente, utilizando os
recursos da língua, é o que ocorre. Vale ressaltar ainda que o texto, em certa
medida, a autora não privilegiou as características da crônica, mas traz para a
escrita uma adequação linguística tipológica, preenchida com aspectos
descritivos e narrativos.
Vamos observar agora os textos da região Centro Oeste, intitulados
“Descoberta inocente” e “Que barulho é esse?”. O primeiro texto é de uma
aluna de Sinop e tematiza a grandeza econômica do lugar, o outro é de um
aluno de Campo Novo dos Parecis e versa sobre a restrição de lazer de
cidades interioranas, ambos do Estado de Mato Grosso.
150
Região Centro Oeste
Exemplo 05: Descoberta inocente
Aluna: M. C. A. C – MT
Neste texto, o autor responde à proposta do material em termos do que
merece uma crônica. Para ele, merece uma crônica o rápido desenvolvimento
econômico de sua cidade que cresce no ritmo e compasso de desenvolvimento
da criança. O mundo, para o autor, está na vida produtiva da cidade, aspecto
incompreendido pela personagem criança, cujo olhar anseia pelo crescimento
cultural ausente, mas, posteriormente, entendido pela personagem adulta para
a qual vale a pena abrir mão da contemplação sensível (vida cultural): “A
cidade ainda não parou para admirar sua grandiosidade, mas agora o homem
já entende”, em prol do crescimento econômico “carregar nos ombros a tarefa
de desenvolver uma cidade juntas”.
O texto é curto e sintético, mas, no transcurso da ação, vemos aflorar a
visão de mundo do autor atrelada, conforme se depreende do texto, à cultura
151
local desenvolvimentista “a cidade continua crescendo”, capitalista “exportando
mais do que a agricultura pode oferecer” e liberal “aprende a caminhar por si
própria. Entretanto, essa voz progressista que tece o texto em um tom de
elevação e elogio ao desenvolvimento econômico local, interpenetrada pelas
visões capitalistas e liberais, confronta-se com outra voz “a sócio-ambientalista”
que denuncia a exploração desenfreada da terra e a preocupação única com o
lucro “exportando mais do que a agricultura pode oferecer”. Aqui, podemos
observar a tensão dessas duas vozes interna à própria palavra nos dando uma
amostra da arena em que se dá o discurso.
No que diz respeito aos aspectos formais, apesar de o texto não
apresentar qualquer incorreção gramatical ou relacionada às convenções da
escrita e marcações do discurso, o autor não consegue imprimir um estilo
articulado ao objetivo visado, até mesmo porque não conseguimos depreender
muito bem se este objetivo é impressionar o leitor com o potencial econômico
do lugar ou emocioná-lo por meio da exaltação local.
O aluno-autor se reporta ao agronegócio, buscando mostrar os avanços
econômicos da região, e mostra-se preocupado com o progresso e a vida
cotidiana das pessoas. Assim, o agir ético desse aluno-autor responde, em
certa medida, a seu mundo social, pois há compreensão das mudanças
sofridas pelos moradores dessa região.
A visão estética se constitui pela outra orientação discursiva que o
aluno-autor faz em relação a sua região, pois o sujeito-autor não perde a
oportunidade de mostrar as belezas e prazer por viver no local, assim, a
valoração estética aparece pela forma singular de enxergar o lugar onde vive.
Assim, não sabemos se estamos diante de uma reportagem turística ou
de um relato descritivo do cenário local porque o autor até consegue organizar
no espaço e no tempo o que observou, mas não dá conta de imprimir nessa
organização uma unidade de ação nem um tom capaz de provocar apreciação
artística no leitor. Passemos para o próximo texto “Que barulho é esse?”.
Exemplo 06: Que barulho é esse?
Aluno: B.H - MT
152
O texto acima, já pelo título, instiga o leitor, aguçando sua curiosidade. O
enredo, conduzido por um narrador em primeira pessoa, está muito bem
estruturado e bastante amarrado a uma unidade de ação qual seja: uma cidade
pacata e interiorana, que tem seu cotidiano modificado por uma visita
inesperada, a chegada de uma máquina locomotiva de diversão, a relação da
população com o objeto e o desfecho inesperado e bem humorado.
Assim, o tema proposto “O lugar onde vivo” é muito bem recortado e
desdobrado pelo olhar peculiar do autor que não só nos apresenta um
acontecimento singular e único no cotidiano da cidade em que vive, mas
transfigura-o para o texto de forma bem humorada e crítica: a restrição de
opção de lazer faz com que os moradores da cidade se entusiasmem com
qualquer tipo de diversão e cria condições fáceis de exploração da população.
Essa orientação valorativa para o acontecimento aponta que o objetivo
principal do autor é provocar o humor, servindo-se dessa limitação do lugar,
entretanto, podemos apreender também um desejo de provocar reflexão sobre
essa questão.
A linguagem utilizada reflete o estilo da prosa cotidiana, da contação de
causos, de estórias da tradição oral, apresentando uma seleção lexical
bastante adequada ao tom humorístico visado “surge do além uma espécie de
153
trem com rodas, uma “maria-fumaça”, “pessoas de todas as idades pagavam
para andar naquela geringonça”, “como era novidade, também experimentei”,
“bendito trenzinho”. O estilo nos aponta para a voz que estrutura o texto que é
a da tradição da cultura popular, voz essa que povoa e predomina no cotidiano
das pequenas cidades brasileiras.
É a observação do lugar do ponto de vista da cultura popular que faz
com que o texto, diferente da maior parte do corpus, não apresente ao leitor um
cenário assentado na descrição física da paisagem natural local, mas esse
lugar onde se desenrola a ação é construído do ponto de vista sociocultural:
cidade pacata, interiorana, carente de lazer e habitada por pessoas desejosas
por novidades, inclusive o próprio narrador. A praça, como característico das
cidades interioranas brasileiras, é o ponto de encontro dos moradores, e de
onde ecoam os acontecimentos do texto.
A temática retratada é transposta para o texto de forma muito singular,
mas a forma como o autor a interpreta e apresenta faz com que pensemos não
apenas no lugar de vivência dele, mas também em tantas outras cidades do
interior do Brasil. Nesse sentido, a partir da reflexão proposta no texto é
possível até mesmo generalizar a situação apresentada.
Em termos de escrita, não é possível encontrar qualquer inadequação
gramatical ou equívoco em suas convenções. O texto é sucinto, mas consegue
atrair o leitor do começo ao fim, pois cria um ambiente de curiosidade e
suspense em todo o desenrolar da ação e, quando o leitor menos espera,
surpreende-se com um desfecho crítico e bem humorado. Entretanto, apesar
de muito bem escrito e humorado, o texto aproxima-se mais dos causos e
anedotas populares do que de uma crônica literária, que exige uma linguagem
mais bem trabalhada, uma interpretação do acontecimento mais bem
elaborada.
Vejamos agora como estão organizados os propósitos dos textos da
região Nordeste. O primeiro é um texto de um aluno da cidade de São
Sebastião de Lagoa de Roça, na Paraíba, e explora, de forma humorada, o
ambiente do lugar por meio da representação de estereótipos local. O segundo
é de uma aluna de Regeneração, no Piauí, e a temática recortada é a questão
154
do desenvolvimento sociocultural e econômico do lugar visto sob a tensão de
olhares e lugares diferentes.
Região Nordeste
Exemplo 07: O armário
Aluno: F. M. S. - PB
Na crônica acima, o autor apresenta um linguagem bastante
diversificada pela qual demonstram detalhes que buscam envolver o público de
maneira divertida, toda a história gira em torno de um armário, são conflitos,
informações indevidas, constrangimentos, mal entendidos. O texto se reporta
de forma significativa a um aspecto circunstancial do cotidiano local: a vida que
155
corre solta nos espaços públicos como a rua e o lavatório. Desses espaços,
ecoam as vozes que povoam o lugar onde vive o aluno. O texto é plurilíngue,
pois, apesar de se servir de uma linguagem formal, própria da cultura letrada,
para desenvolver o enredo, o narrador mobiliza em seu texto muitas
expressões e estruturas da fala popular e regional, especificamente a
nordestina, que plasmam de forma mais singular as vozes sociais presentes no
ambiente sociocultural do lugar.
Expressões como “paus d’água”, “lambiam os beiços”, “morder o
calcanhar”, “espichavam o pescoço”, “qüiproquó”, “o veneno esguichava”, “feios
fuzuês” nos dão, em certa medida, uma imagem delineada do comportamento
de tipos sociais do lugar. O plurilinguismo e as vozes sociais tramadas no texto
apresentam
tipos
estereotipados
como
as
fofoqueiras
“as
mulheres
mexeriqueiras”; os maridos complacentes “Não era novidade o fato de os
maridos de tais mulheres estarem envolvidos, isso banalizava a situação”; os
curiosos “uma população tão viciada em cotidianos barracos” e as carpideiras
“começaram então a entoar cantos ‘veloríficos’, envolvidos em estrondosos
berros”. Todas essas vozes só nos são acessíveis pelas lentes do narrador
observador.
O que torna o texto mais interessante é o diálogo do aluno-autor com
uma visão sócio-cultural acerca do comportamento das mulheres do local — as
fofoqueiras. As poucas descrições feitas do lugar atreladas aos tipos sociais
são suficientes para captarmos uma cidadezinha do interior nordestino com seu
“lavatório comunitário”, palco de encontro das “línguas afiadas”, da “turma da
fofoca”, onde “em vários sentidos, lavavam roupa suja”, aspectos que dão vida
à narrativa. A voz autoral vai articulando e compondo o texto de forma a deixar
evidente por meio da escolha do conteúdo, do léxico e da forma composicional
suspense o objetivo principal de provocar o humor. É essa voz que trama as
outras e funciona como um porta-voz da comunidade local.
Tal voz do aluno-narrador quer fazer-se observador atento e distanciado
daquele comportamento, refratando o episódio do ponto de vista dos tipos em
um tom que mistura desprezo, zombaria irônica e humor. Entretanto, o mesmo
não consegue se eximir e acaba confessando que também faz parte da turma
dos curiosos viciados em cotidianos barracos “Eu, de lado, deixei o almoço,
156
quando me impressionei com a rapidez que a turma da fofoca largou a roupa e
correu atrás do que acontecera”, mais à frente, o narrador quer justificar seu
próprio comportamento “Como bom integrante da comunidade, também fui
observar o fato”, visto como “deliciosas confusões”.
Assim,
deixa-nos
escapar
sua
atitude
complacente
com
o
comportamento dos tipos sociais da comunidade local, vista como uma “mega
família” e aqui vemos aflorar mais uma voz “a dos meios de comunicação de
massa” que é assimilada e utilizada para explicar o comportamento local e a
própria atitude de complacência do narrador.
Condizente com o tom humorístico e misterioso predominante no texto, o
aluno-autor cria um ambiente de expectativa e suspense do começo ao fim “—
Terá um monte de ladrões invadindo a casa da Tia Bia?” [...] era a “alma da Tia
Bia [...] um negócio de madeira pontiaguda que lembrava um caixão”. O
discurso envolve o leitor e o instiga a chegar até o fim para desvendar o grande
mistério em torno do qual se constrói o enredo. Nesse texto, o aluno-autor olha
tudo que está a sua volta e traduz o que sente, pensa e vê em arranjos
singulares, através do olhar apurado e particular que constrói uma unidade de
ação bastante articulada a partir do qual faz uma radiografia do dia a dia das
pessoas que vivem naquele local.
Assim, encontramos nessa crônica um processo de tomada de decisão
em que o aluno agrega elementos entre o fotografar o cotidiano e o narrar de
maneira que deixa transparecer que assimilou algumas técnicas da criação do
contexto ficcional, buscando dar respostas a algumas orientações do material
didático, mas é um texto que pelo emprego da linguagem, pelo plurilinguismo,
seria o que mais se aproxima da linguagem literária, incluindo a voz da cultura
popular, de forma leve e engraçada. Assim como no texto seis “Que barulho é
esse”, um enredo bem humorado e construído em torno de uma unidade de
ação bastante precisa, o desfecho inusitado e risível faz com que o texto se
apresente bem acabado, não como uma crônica literária, mas como uma
anedota ou um causo popular. Vejamos o texto seguinte.
Exemplo 08: O relógio não parou
Aluna: J. F. F. M.- PI
157
No texto acima, a aluna-autora escolhe um enfoque em primeira pessoa
para relatar, a partir de uma observação inicial, sua reação acerca do que
presenciou. Apenas o primeiro parágrafo do texto estrutura-se no tipo narração,
mais próprio da crônica literária, os outros parágrafos estão todos organizados
no tipo relato, mesclados com a descrição, não necessariamente de uma
experiência pessoal vivida da autora, mas do cenário do lugar tentando abarcálo em um apanhado geral. No trecho narrativo, predomina a estrutura do
discurso indireto para enquadrar a voz do outro, o que aponta para um trabalho
de análise desse discurso e não de transfiguração do mesmo em um plano
literário. Já os trechos descritivos e de relatos estão, em boa parte, assentados
em sentenças comparativas e adversativas que servem para cotejar e
contrapor elementos diferentes.
O tema “O lugar onde vivo” é desdobrado no texto por meio do recorte
efetuado na temática do desenvolvimento sociocultural e econômico do lugar,
uma cidadezinha do interior nordestino, a partir da tensão entre o olhar do
morador nativo com o do morador migrante. O cenário do lugar nos é dado pela
comparação entre a realidade local e a de cidades desenvolvidas. No texto, há
sempre dois mundos em confronto onde uma voz interiorana luta com a uma
voz urbanizada, progressista e desenvolvimentista, a voz da cultura popular
tensiona com a erudita/letrada. Isso porque, trata-se de uma cidade pacata
158
que, apesar de já se ressentir dos problemas das cidades grandes como a
violência, mantém um ritmo mais próximo da vida rural. O comércio local é
pouco desenvolvido, o cenário sociocultural ainda está ligado a tradições
populares manifestadas na música, “o pagode do Zabé Fulô”, e na dança,
“dança do boi” e a paisagem é bastante natural.
O texto constrói-se todo em cima da reação da aluna-autora em face do
olhar do “estranho” migrante sobre o lugar: “De repente, ouvi daquelas duas
pessoas que, pelo sotaque, reconheci que não eram da minha terra. Diziam,
em tom de zombaria, que aqui o relógio não parou”. Diante do comentário
zombeteiro do migrante, a autora reage em tom de indignação: “Quase não
consegui receber o dinheiro, tamanha a minha vontade de sair de perto delas”,
essa orientação valorativa está também antecipada no próprio título do texto
em forma de resposta negativa ao outro — o migrante — “O relógio não parou”.
A partir de então, a autora investe em um relato comparativo entre o
cenário local com os de cidades desenvolvidas, principalmente da região
sudeste, em um tom bastante indignado, refratado na escolha de sentenças
adversativas, comparativas e asserções imperativas, “se não existe [isso]... das
grandes capitais, tem [isso]”, “É certo que... mas não é por isso”, “Todos devem
ficar sabendo...”, “Aqui o relógio continua funcionando, sim!”, com o intuito
principal de convencer seu leitor acerca do desenvolvimento de sua cidade. O
argumento lançado pelo autor é de que se trata de ritmos de desenvolvimento
diferentes, adequados às realidades socioculturais e econômicas a que se
aplicam.
Podemos notar no raciocínio da autora um pensamento relacional, pois,
apesar do tom indignado, ela demonstra, no processo comparativo, que
conhece ritmos de cidades desenvolvidas e que não os despreza por completo,
mas
também
não
aceita
sua
colocação
como
parâmetro
para
o
desenvolvimento de sua cidade, uma realidade diferente. Em virtude de a
reação da autora não estar direcionada a um acontecimento em si, mas para
um posicionamento valorativo do outro sobre o lugar onde vive, tal reação
acontece não apenas em forma de resposta indignada, mas também crítica
desse tipo de avaliação sobre as cidades pequenas.
159
Não podemos afirmar que estamos diante de um enredo bem construído
com unidade de ação assentada em um conflito de base e um desfecho, pois,
com exceção do início narrativo, o texto é praticamente construído em cima do
relato e da descrição da vida e da paisagem do lugar por meio de sentenças
comparativas e adversativas com o objetivo principal de convencer o leitor. Não
há nenhum elemento que aponte para a presença de literariedade, aspectos
inusitados e singulares capazes de desencadear no leitor alguma emoção,
sensibilidade, surpresa, reflexão ou até mesmo convicção, uma vez que o
argumento apresentado pelo autor pode ser visto mais como uma constatação
bastante visível — cidades pequenas e grandes possuem ritmos diferentes — e
não de uma demonstração elaborada. Por isso, a nosso ver, não temos uma
crônica literária nem mesmo social, mas um relato descritivo mesclado com
uma orientação argumentativa.
Para finalizar esta etapa, vamos nos voltar agora sobre os textos
escolhidos da região Norte. Da cidade de Eirunepé, no Amazonas, uma aluna
escreve sobre o lugar onde vive por meio do retrato da vida que se passa na
feira. De Rondon do Pará, no Pará, outro aluno tenta representar a vida local
através de um retrato de um dia de criança neste lugar.
Região Norte
Exemplo 9- Castelo Branco agora é feira
Aluna: T. L. A. S.- AM
160
No texto acima, observamos que a aluna-autora, ao discursar sobre o
tema dado, nos apresenta sua cidade, com um tom bastante descritivo, pois
busca mostrar que a cidade passou por mudanças, precisamente, a praça, pois
este local era ponto de encontro de todas as pessoas da cidade. Além disso,
percebemos que não houve linearidade durante a discussão do tema, pois se
perde o foco a partir do momento que a autora mostra as atividades
profissionais realizadas ao redor da praça, por exemplo, os mototáxis, a feira
como também as perdas das pessoas em relação à destruição da praça. Desse
modo, a aluna-autora não conseguiu refletir sobre o lugar onde vive devido a
esse tom descritivo, apoiado no relato dos acontecimentos. Em outras
161
palavras, a crônica Castelo Branco agora é feira se restringe apenas ao
cotidiano do comércio local.
Esse tom não contribuiu para que houvesse conflito e um desfecho
inesperado, que suscitasse nos leitores questionamentos, quer dizer,
contrapalavras. Apesar de a autora tentar mobilizar as vozes dos envolvidos
diretamente com a situação exposta pela crônica, essas vozes não foram
suficientes para permitir o diálogo entre leitor-texto-autora.
Também percebemos que a praça talvez seja a indicação da memória
do personagem histórico ou da imagem do político, como foi enfatizada a figura
de Castelo Branco, um dos representantes políticos da história brasileira,
primeiro presidente do regime militar. Desse modo, o texto mostra várias vozes
sociais dentro de um mesmo espaço, ou seja, vários lugares dentro do mesmo
espaço são visíveis duas temporalidades, o passado representado pela
memória de Castelo Branco e o presente que nos revela, mais precisamente,
o cotidiano e o movimento de homens e mulheres simples, pobres, codificados
na figura de pequenos comerciantes, vendedores ambulantes entre outros
como podemos observar abaixo:
[...] como dizem os mais antigos da cidade, é hoje um ponto de
vendas para feirantes, mototáxis loucos por clientes,
estacionamento de bicicletas cargueiras que ficam juntas num
cantinho à beira da rua, à espera de cargas.
[...]” O que fizeram com minha estátua que um dia foi alvo de
admiração?” É a voz de Castelo Branco trazida pelo vento que
logo desaparece.
Observo a mulher que chega, se aproxima dos jerimuns
amontoados sobre a calçada e pergunta:
— Quanto custa?
Antes que o vendedor pudesse responder, um homem
aparentando seus sessenta anos, usando óculos escuros e
boné preto, interrompe:
— Presta, não, minha filha, esses das cascas vermelhas eu
conheço, já plantei muito. (Aluno participante da OlimpíadaAM)
Entendemos que o projeto discursivo da aluna-autora, de certa forma,
estava orientado para falar da ausência da praça e a consequência da sua
falta, mas como já pontuamos, esse querer dizer não foi bem realizado, pois a
visão estética para a realidade retratada ficou apegada à reprodução das vozes
162
desses personagens, que ilustram os moradores da cidade. Isso demonstra
que o recorte temático dado não ajudou na estabilização do texto enquanto
crônica literária, uma vez que a autora buscou mobilizar apenas diferentes
recursos linguísticos (verbos discendi “pergunta”, os tempos verbais: presente
do indicativo e pretérito perfeito “o que um dia foi uma praça os namorados”, “a
feirinha vai aos poucos”, perguntas retóricas “será que nossa Eirunepé não
ficaria melhor do outro lado do rio”, e textuais (a estrutura narrativa:
personagens, diálogo, cenário, narrador observador, tempo), para caracterizar
sua produção como um texto da ordem do narrar. Passemos ao próximo texto.
Exemplo 10: O Galho, o suspiro e o pulo
Aluno: A. R. M. V. - PA
No texto acima, o aluno-autor parte de seu cotidiano para apresentar sua
reflexão em relação à temática dada. Nele, há um detalhamento excessivo no
que se refere às brincadeiras realizadas durante a infância.
Esse recorte
temático já nos sinaliza que o sujeito-autor não compreendeu efetivamente o
tema dado, pois deu ênfase à sua infância, como bem pontuado no título de
seu texto “O galho, o suspiro e o pulo”, quer dizer, são suas memórias
saudosistas desse período:
163
De todas as brincadeiras que inventamos aquela de que mais
gostamos é mesmo pega-pega e pular de galho em galho.
Somos verdadeiros macacos, habilidosos e brincalhões,
pulamos cheios de artimanhas sem errar o galho escolhido.
(Aluno participante da Olimpíada- PA)
O detalhamento revela um tom descritivo, pois o foco do sujeito-autor foi
reavivar suas memórias e isso nos revela também outro tom, neste caso,
afetivo, como neste caso, “a tristeza estampada nos seus rostos mostra o
descontentamento inevitável, protestos e gritos são ouvidos lá de baixo [...]”.
Em nosso entendimento, o aluno, ao descrever com detalhes, não
deixou transparecer seu estilo de autor, tendo em vista que a espontaneidade
da escrita ficou comprometida pelo fato de não permitir diálogo entre autorobjeto do discurso-leitor. Talvez o texto não deixe transparecer uma crônica
porque tenha faltado mostrar melhor um acontecimento cotidiano, uma
reflexão, em outras palavras, mostrar uma perspectiva única, singular, que
pudesse recorrer à literalidade e à ficção, pois entendemos que a relação
dialógica entre o autor, o objeto e seu interlocutor, não acontece do nada.
Observamos que aluno-autor mobiliza em seu enunciado as brincadeiras
de criança. Entendemos que a voz social presente são as memórias de uma
criança, que enaltece as brincadeiras simples, cuja única preocupação era
criar novas brincadeiras, viver a infância em todos seus sentidos. Assim, há
uma temporalidade nesse enunciado, pois o aluno-autor de forma sutil faz um
contraste do que seja viver a infância num passado distante, para aquilo que é
vivenciado hoje pelas crianças.
As análises das crônicas nos mostraram que a produção de textos exige
melhores articulações entre situação, relação entre interlocutores, temática,
estilo do gênero e estilo próprio do autor, isto é, o “querer dizer” do locutor
precisa estar claro para o próprio autor a fim de que ele possa suscitar
reflexões em seus leitores.
Ao longo da análise, pudemos observar que os alunos-autores não
conseguiram imprimir em seus textos o estilo do gênero, algo que marcasse
sua produção como sendo uma crônica literária. Essa questão nos faz pensar
nas dificuldades que esses sujeitos-autores sentiram para produzir seus textos,
164
pois precisavam dar um recorte ao tema dado e, ao mesmo tempo, levar o
leitor a refletir e, além disso, dar conta dos recursos linguísticos e saber
mobilizá-los adequadamente em virtude do projeto discursivo.
Nas crônicas analisadas, percebemos que muitos textos dos alunos
finalistas ficaram restritos a informações sobre as cidades, afastando-se do
gênero proposto no evento: a crônica. Salientamos que eles buscaram trazer a
voz do narrador em primeira e terceira pessoa a fim de tentaram estabelecer
intimidade com o leitor, mas, em alguns textos, não ficou claro esse processo
dialógico.
Desse modo, mesmo com algumas tentativas de mostrar a singularidade
dialógica, as produções aproximaram-se mais ora do gênero escolar relato de
observação ou experiência vivida, ora de causos populares. A nosso ver, uma
explicação, talvez plausível, seria a semelhança do primeiro com as descrições
escolares e a convivência com o segundo em suas experiências na cultura
popular do cotidiano de suas "comunidades e famílias." Verifica-se que o foco
está em modelos prototípicos, em que os alunos se prenderam no processo de
descrever e relatar, não enfatizando com leveza o cotidiano e seus vários
enfoques, mas apresentando narrativas com interesse de moralizar, de passar
para seus leitores a concepção de certo e errado, e a questão literária acaba
ficando ausente nos textos. Assim, reafirmamos que a crônica não é um
trabalho que pretende ensinar como as pessoas devam se portar, vestir ou
viver. Pelo contrário, a crônica narra de maneira simples e de forma eventual o
cotidiano do homem, analisa comportamentos e modos de vida.
Com relação aos textos que caracterizamos como descritivos,
percebemos que faltaram aos alunos o olhar atento para o que realmente é
diferencial, acontecimentos que, sem dúvida, poderiam fazer a diferença em
uma dada situação. Eles não capturaram, nas coisas mais simples inusitadas
da vida, o acontecimento que definitivamente poderia ser o elemento de
interação entre o ser humano e seus feitos na vida. É importante ressaltar que
o interessante na crônica é pegar algo banal, sem interesse e transformar em
algo revelador e único na existência humana. Também pela tentativa de
abraçar o todo, falar de tudo sobre “o lugar onde vive”, o aluno- autor deixa de
165
narrar um momento importante para descrever uma visão ampla e geral de
tudo que se vê a sua frente (TORQUATO, 2010).
Talvez tenha faltado o refinamento do olhar do aluno para observar
melhor o cotidiano e pensar melhor na questão da literatura, pois sentimos que
os alunos das amostras escolhidas por nós não produziram uma crônica
propriamente, mas permaneceram nas superficialidades do relato, da tipologia
descritiva e em nenhum momento expressaram o tom de uma crônica literária,
gênero este proposto pelo Caderno da Olimpíada.
166
CONSIDERAÇÕES FINAIS
"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o
irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que
permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também
abençoar uma vida que não foi abençoada."
(Clarice Lispector)
Nossa pesquisa se insere nos pressupostos da teoria enunciativodiscursivo do círculo de Bakhtin e na abordagem sócio-histórica de Vigotski.
Tentamos compreender, primeiramente, as ideias do círculo de Bakhtin
no que tange à linguagem e suas interações dialógicas, as quais estão
interligadas aos conceitos de ético e estético, vozes e gênero discursivo. Com
isso, adquirimos maiores subsídios para ancorar nossas reflexões teóricas
sobre as produções dos alunos.
Após termos construído esse quadro teórico, direcionamos nosso olhar
para as décadas de 80 e 90, pois nesse período houve redimensionamento no
ensino de língua portuguesa no que se refere a seus objetos de ensino:
gramática, oralidade, leitura e produção textual. No tocante à produção textual,
buscamos compreender as teorias que foram mais largamente usadas em
materiais didáticos e também na prática do professor, neste caso, a cognitiva e
a textual. Procuramos expor que a perspectiva cognitiva empreendeu
pesquisas a fim de estabelecer padrões abstratos e universais para a produção
de textos, em vista disso, desenvolveram etapas para o processo da escrita,
por exemplo, contexto, planejamento, edição e revisão de uma produção. Estas
etapas tiveram espaço nas salas de aulas e materiais didáticos, pois se
buscava um formato padrão para orientar a escrita, assim, surgiram técnicas de
escrita, por exemplo, o planejamento para escrever uma redação entre outras
técnicas.
Já a abordagem textual pertencente à Linguística Textual buscou
ampliar as discussões em relação ao texto. Num primeiro momento, buscaram
romper com os estudos centrados apenas na oração isolada e passam levar
167
em consideração o texto em si, mas, nesse início, o texto ainda era visto
apenas como estrutura, pois as análises feitas eram baseadas em trechos
retirados do texto, assim, essas análises tinham uma abordagem mais
estrutural, embora tivesse um contexto específico de produção, como expomos
no capítulo II desta pesquisa.
Outra influência direta dessa teoria foi o fato de os textos serem vistos
como protótipos, que tinham começo, meio e fim (introdução, desenvolvimento
e conclusão). Esse procedimento guiou o ensino de produção de texto. Embora
essa teoria tenha favorecido a entrada dos textos na sala de aula, ela ainda
não havia proporcionado, ainda, a autonomia do aluno, já que ele estava preso
a uma visão monologal, pois produzia apenas para um interlocutor específico, o
professor, e buscava tirar nota 10 para ser aprovado, principalmente, nos
exames vestibulares.
Em vista dessa abordagem, os pesquisadores na década de 90 iniciam
um movimento a fim de modificar essa visão, pois eles querem que a escola
favoreça a uma formação mais cidadã, mais autônoma e, para isso, ancoramse em outras teorias, neste caso, assumem a concepção de linguagem como
interação social, pois aqui há necessidade de uma prática mais sociossituada a
fim de mostrar ao aluno que as diversas práticas sociais que ele vivencia são
guiadas pela linguagem, e para o ensino-aprendizagem, a sócio-histórica de
Vigotski (1930-1934-1935).
Em vista disso, os documentos oficiais (1997,
1998) PCNLP do Ensino Fundamental I e II apregoam que a concepção de
linguagem a ser assumida é a linguagem como interação social e os gêneros
discursivos devem ser os objetos de ensino. Dessa forma, as práticas de
linguagem realizadas em sala de aula devem responder ativamente a essas
orientações.
Também é importante salientar que recorremos à teoria vigotskiana para
observarmos os enfoques sócio-históricos formulados por ele e as questões
acerca do ensino-aprendizagem; posteriormente, também estudamos o modelo
didático da Escola de Genebra, uma vez que o Material da Olimpíada está
ancorado nessa Escola.
Compreender esses caminhos pelos quais passou o ensino de produção
textual foi importante para que pudéssemos fazer nossas apreciações em
168
relação aos nossos objetos de pesquisa, pois, inicialmente, nosso objetivo era,
apenas, analisar se os alunos alçaram-se autores na produção de crônicas no
projeto da Olimpíada de Língua Portuguesa. Mas, para a realização eficaz de
nossa pesquisa, compreendemos ser necessário direcionar nossos olhares
para o Caderno dirigido ao professor para o preparo desse aluno participante
da referida Olimpíada. Sabemos que a Olimpíada de Língua Portuguesa realiza
hoje não apenas produções textuais voltadas para o gênero crônica, mas
desenvolve um trabalho que contempla outros gêneros, a saber: artigo de
opinião, memória, poema.
Além disso, nossa escolha pelo gênero crônica justificou-se pelo fato de
as crônicas serem vistas como literatura menor e, consequentemente na
escola, elas são trabalhadas de maneira rápida e fragmentada. Por conta
disso, resolvemos desenvolver nossa pesquisa pensando em desvelar a
autoria num contexto de produções de crônicas.
Feita a apresentação desses caminhos por nós traçado, nosso propósito
é responder às questões de pesquisa. No decorrer de nossa pesquisa,
analisamos dois corpora fundamentais para nosso trabalho, o primeiro corpus
buscou analisar o material de forma a observar o encaminhamento didático do
Caderno “A ocasião faz o escritor” e os efeitos de sentidos provocados no
espaço escolar. Mediante tal objetivo orientamos nossa investigação pela
seguinte questão:
1) De que forma o Caderno “a ocasião faz o escritor”, OLPEF encaminha a
proposta de formação de autores de crônica no espaço escolar?
Inicialmente, objetivamos compreender a crônica enquanto gênero
discursivo e literário. Por isso, historicizamos a fim de entender como ela se
constituiu ao longo dos séculos. Percebemos, mediante nossa pesquisa, que
há um olhar para a crônica no sentido histórico, quando ela ainda era vista
como um relato de acontecimentos históricos e, posteriormente, passa a ser
vista como uma mescla de literário e jornalístico, com o surgimento da
imprensa.
169
Assim, após a leitura do material didático da Olimpíada, verificamos que
o tipo de gênero solicitado pelo material é a crônica literária, embora haja
outras crônicas, por exemplo, a jornalística, a esportiva. Por conta disso,
mapeamos o caderno para compreender a organização interna das 11 oficinas
e seus objetivos, para observar se havia repetição de seções e como estavam
organizadas. Desse modo, observamos que há uma repetição destas seções:
objetivos, material para orientar a prática do professor.
Durante a análise, observamos que o material encaminha as atividades
para as questões dos elementos do texto narrativo, para a questão da situação
de produção, também há momentos para os elementos linguístico-discursivos.
Mas estes, a nosso ver, ainda se mostram incipientes, pois não foram
trabalhados de forma mais elaborada. Assim, observamos que há um diálogo
com as instâncias oficiais, os PCNLP, as OCEM, MEC (Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação/Programa Nacional de Biblioteca na Escola).
Essas relações dialógicas mostram que o material está ligado a essas
instâncias, uma vez que também contribuem com orientações e verbas.
Um outro fator relevante sobre o material que observamos é o diálogo
com a Escola de Genebra, uma vez que o material segue as diretrizes da
sequência didática, mas acreditamos que, para este gênero, talvez esse não
seja o melhor caminho, pois acaba restringindo o ensino da crônica de forma
modular, não favorecendo a autonomia dos alunos, contribuindo para que eles
sejam autores de suas crônicas. Assim, é necessário pensar em atividades
mais abertas, mais plurais por considerar que o gênero crônica permite essa
abertura. Caso a sequência didática permitisse ao professor e ao aluno
vislumbrar a pluralidade que o gênero crônica traz, sem enquadramento num
modelo específico, o trabalho, seria, pensamos, bem mais produtivo.
Nosso ponto de vista está apoiado na perspectiva bakhtiniana, pois
entendemos a crônica como um gênero discursivo, constituído por diferentes
vozes, estilos, que a torna um gênero singular em relação aos outros da ordem
do narrar. Essa singularidade coloca em evidência as postulações feitas por
Bakhtin acerca da diversidade dos gêneros, os quais se diferenciam e
ampliam-se na medida em que a própria esfera de atividade humana se
complexifica. Desse modo, ao assumirmos a postura discursiva para a crônica
170
literária, ao invés de vê-la apenas pelo eixo literário, conforme a abordagem do
material, teremos um melhor resultado nas produções finais dos alunos, uma
vez que estes poderão visualizar a crônica não apenas como um gênero
literário, mas como um objeto do discurso, que é multifacetado, dada sua
natureza híbrida. Essa postura favorece a uma formação mais cidadã, pois o
alunado compreenderia o funcionamento discursivo da crônica, já que a escola
não tem função social de formar autores literários.
Após termos analisado o Caderno, para entendermos a proposta de
produção da crônica, passamos para as produções dos alunos. Inicialmente,
analisamos um caderno destinado aos professores “o que nos dizem os textos
dos alunos?” em que especialistas da área expõem sua análise em relação às
produções dos alunos nos diferentes gêneros previstos na Olimpíada. O
importante da leitura desse material foi compreendermos as produções que
iríamos analisar até mesmo para perceber se de fato aquilo que foi apontado
pelos especialistas ocorreu nas produções que escolhemos para analisar.
No decorrer da análise tentamos responder nossa segunda questão de
pesquisa:
2) Quais vozes os alunos mobilizam nas produções discursivas das
crônicas?
Durante a análise dos textos dos alunos, percebemos que os alunos
tiveram muita dificuldade em refratar o tema dado, o que fez com que não
conseguissem produzir de fato uma crônica literária, conforme era o objetivo do
caderno. Assim, ora produziram um texto escolar, exemplo, uma narração, ora
uma crônica esportiva, ora uma crônica jornalística, ora uma anedota ou um
causo popular, às vezes, não dava para definir se era um relato, ou se era uma
descrição.
Essa mescla, talvez, seja por ser o texto mais próximo de sua realidade,
são textos que fazem parte de seu mundo social e talvez porque foi o mais
enfatizado durante a preparação para a escrita desse texto. Mas também há
momentos que os alunos-autores buscaram dialogar com outros textos, com as
171
informações recebidas ao longo da preparação da redação, há textos bem
escritos, sem inadequação gramatical.
Com relação às vozes mobilizadas nos textos, notamos que os alunos
deixam claro a voz do destinatário real, aquele que efetivamente lê o texto,
visando uma instância posterior à escrita. Em outras palavras, escrevem para a
equipe avaliadora da Olimpíada e, além de ecoarem as vozes, esperam
ansiosamente por respostas.
Outra instância que percebemos nas vozes é o lugar do objeto
discursivo, pois nenhum enunciado e nenhum autor é o primeiro a falar sobre o
assunto abordado nas crônicas dos alunos. As temáticas já foram exploradas
em outros textos, algumas, inclusive, no próprio material da Olimpíada. Os
textos estão impregnados de apreciações ideológicas de outros lugares
discursivos, ou melhor, de outras pessoas, por exemplo, (o professor,
comunidade local e escolar, grupos políticos, familiares, visões de mundo), em
alguns textos, ainda apareceram muito a voz do autor-pessoa, cheio de suas
experiências pessoais, emotivas e a voz do autor-criador ficou um tanto
afastada do texto, em algumas instâncias da escrita dos alunos. Talvez tenha
faltado essa voz que traz um olhar do início ao fim de forma articulada, alguns
textos deixaram transparecer tudo o que queriam dizer sem proporcionar ao
leitor uma reflexão sobre o que já estava escrito, sem despertar nenhuma
novidade no texto. Pensamos que o ético suplantou o estético nesse processo.
Desse modo, pensamos que conseguir ou não ser autor vai depender
das interações dialógicas, de forma que toda a pessoa que escreve busque
interagir com o leitor de maneira a responder e dialogar com as vozes que nos
norteiam, uma vez que não somos solitários e nem autônomos na linguagem.
Diante do exposto, partimos para responder nossa terceira questão de
pesquisa.
3) Como a autoria se apresentou nas crônicas produzidas pelos alunos
participantes da OLPEF?
Tendo em vista os textos por nós analisados, entendemos e afirmamos
que os alunos são autores, mas não de crônicas literárias, conforme o material
172
orientou a produção. Essa não autoria para o gênero solicitado deve-se à falta
de experiência suficiente para que eles produzissem a crônica literária, o
tratamento didático dispensado no material, a nosso ver, não foi suficiente para
favorecer a produção de uma crônica literária. A própria mescla de diferentes
gêneros crônica literária, esportiva, jornalística não contribuiu. Talvez seria
interessante realizar atividades direcionadas mais para a crônica literária,
buscando atividades que levassem o aluno a compreender a literariedade do
gênero, pois há mescla de literatura e jornalismo, para, posteriormente, eles
produzirem. Ou, ao contrário, o trabalho poderia ser de abertura para o mais
variados formatos de crônicas, como já assinalamos.
Assim, para dar mais ênfase a nossa terceira resposta de pesquisa, se
em conformidade a teoria bakhtiniana, o aluno conseguiu ser autor ou não,
ancoramos nos dizeres de Bakhtin (2010[1959-1961]p.316) que coloca o
seguinte: “Ver e compreender o autor [...] significa ver e compreender outra
consciência, a consciência do outro e seu mundo, isto é, outro sujeito. Em certa
medida, a compreensão é sempre dialógica”. Nesse sentido, entendemos que
só atingiram o patamar de autoria aqueles que foram capazes de fazer da voz
do interlocutor seu próprio dizer de modo a dar vida para a fala do outro,
encontrando sua própria palavra, seu jeito singular e criativo.
O que nos resta questionar se por meio da Olimpíada houve um avanço
nas produções escritas de aluno em sala de aula, mas só nos arriscamos dizer
que a iniciativa já é um caminho, mas ainda é preciso que as equipes de
elaboração do material pensem no gênero crônica como uma possibilidade de
oferecer ao leitor / ouvinte a oportunidade de comungar com o processo criativo
e inovador.
Por fim, todo o processo criativo vai depender não somente do autor,
mas também das vozes dos outros que façam levar o aluno a pensar e
transformar tudo o que aprende em suas próprias palavras de forma
significativa para si e para que o outro entenda a necessidade de ser criativo e
dialógico em contato com a outra palavra.
O autor necessita recuperar os sentidos da palavra alheia, de maneira a
evidenciar seus próprios anseios, de um jeito único que não fique parado em
uma só consciência ou uma só voz. Isso porque a palavra é um fator
173
integrador, que envolve um conjunto de momentos e situações únicas,
irrepetíveis e vale salientar que nos constituímos também pela valoração
estética, nas próprias formas de dizer e agir na sociedade.
Acreditamos que tanto a equipe organizadora da Olimpíada, quanto
professores e alunos precisam alçar voos maiores, para dizer de fato que, na
produção de crônicas da Olimpíada, constituíram-se alunos definitivamente
autores no gênero crônica com foco na discursividade.
Entretanto, percebemos em algumas produções a possibilidade de que
qualquer pessoa pode ser autor de seu dizer. Mas, para isso, é necessário que
haja um grupo de trabalho com boa formação e preparo, para orientar as
atividades de escrita, em que os gêneros não sejam vistos apenas como
modelos prontos e acabados, mas precisam de um trabalho apurado em que
diferentes aspectos devem ser focalizados para permitir que o aluno seja autor
de seu dizer. Assim como na vida, nas práticas sociais, em que nos deparamos
com a multiplicidade de fatos, situações, pessoas, pontos de vista, assim é na
arte, quando nos deparamos com a heterogeneidade das composições,
infinitamente a serem criadas. Fora disso, é mero exercício escolar.
174
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