UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM LEILA FIGUEIREDO DE BARROS A AUTORIA NAS PRODUÇÕES DE CRÔNICAS DA OLIMPÍADA DA LÍNGUA PORTUGUESA: UM OLHAR ENUNCIATIVO-DISCURSIVO CUIABÁ-MT 2012 LEILA FIGUEIREDO DE BARROS A AUTORIA NAS PRODUÇÕES DE CRÔNICAS DA OLIMPÍADA DA LÍNGUA PORTUGUESA: UM OLHAR ENUNCIATIVO-DISCURSIVO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como exigência parcial para a obtenção do título de mestre em Estudos da Linguagem, sob orientação da professora Dra. Simone de Jesus Padilha. CUIABÁ-MT 2012 Dados Internacionais de Catalogação na Fonte B277a Barros, Leila Figueiredo de. A autoria nas produções de crônicas da Olimpíada da Língua Portuguesa : um olhar enunciativo-discursivo / Leila Figueiredo de Barros. – 2012. 167 f. : il. color. ; 30 cm. Orientadora: Simone de Jesus Padilha. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, 2012. Inclui bibliografia. 1. Crônicas – Autoria das produções. 2. Crônicas – Olimpíada da Língua Portuguesa. 3. Produção de textos – Alunos. 4. Crônica – Produção escrita. 5. Dialogismo. I. Título. CDU 808.1:[82-94:371.275] Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Jordan Antonio de Souza - CRB1/2099 Permitida a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte iii iv Dedico esta dissertação de Mestrado a memória de meu querido pai, Antonio Nazareth de Barros. “Neste momento, alguém gostaria de estar conosco e está ausente, mas as lembranças e sua presença, o som de sua voz sopra suave na memória, no murmúrio triste de lamento e saudade”. Você se foi num adeus eterno; mas está aqui lembrado, presente, eterno! E a um brilhante professor que tive na graduação em Letras, José Antonio Marques Pereira, pessoa maravilhosa que me trouxe os primeiros contatos com os estudos linguísticos, mostrou que linguística não se restringe apenas em abstrações da linguagem, mas que todos somos sujeitos ativos e reflexivos na sociedade. Era um bakhtiniano por natureza, mesmo sem mencionar a teoria de Bakhtin, se constituía de um discurso dialógico e interacional. Lembranças eternas! (In memorian) v AGRADECIMENTOS Primeiro agradeço a Deus, que desde o início de minha caminhada, esteve comigo. “Dia e noite passaram. Vitórias foram conquistadas. Derrotas foram superadas. Amizades foram criadas. Conhecimentos foram adquiridos. Diante desse diálogo constante, Vim te louvar, te agradecer e te oferecer, humildemente, a vida, o amor, a felicidade. Enfim, a vitória deste momento”. À professora Dra. Simone de Jesus Padilha (UFMT), que me acompanhou durante este percurso e soube ser, ao mesmo tempo, rigorosa e terna, como convém a quem aposta no crescimento do outro. Pessoa maravilhosa que nasceu com o dom de ensinar e contagiar com a sua busca por novos conhecimentos, que contribuiu, significantemente, para os resultados desta pesquisa. À professora Dra. Maria Inês Batista Campos (USP) pelas contribuições valiosas no exame de qualificação e pela credibilidade depositada em meu trabalho. Obrigada pelos diálogos que me deixou mais consciente, crítica e reflexiva. À professora Dra. Icléia Rodrigues de Lima e Gomes (UFMT) pelas leituras e comentários relevantes no exame de qualificação, por me fazer ampliar o olhar nas questões científicas metodológicas e midiáticas. Obrigada por ter gentilmente aceito o convite para participar da minha banca. Aos professores do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem, Ana Antonia, Sérgio Flores, Solange Papa, Simone Padilha, Maria Rosa, Maria Inês, Cláudia Graziano, Elias, Danie; os quais tive a honra de poder compartilhar de seus conhecimentos teóricos, seja durante as disciplinas cursadas, os seminários ou os colóquios a que assisti. Obrigada pelas interações! Aos colegas do Grupo de Estudo Rebak — Shirlei, Lezinete, Viviane, Anderson, Leni, Rute, Eliana, Diego, Angélica, Sebastiana (Tiana), Jefferson, Iara, Neiva, Dinaura, Thiago, por construirmos uma grande amizade no decorrer desta jornada e aprendermos juntos um pouco mais sobre Bakhtin. Aos amigos da Pós-Graduação: Anderson, Ana Regina, Ana Maria, Ana Raquel, Verônica, Everton, Fernando, Miriã, Perla, Graziane, Juliana, Angelita, Viviane, pelos diálogos que marcaram nossos encontros e pela amizade que permanece. Aos meus amigos da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), em especial, a Coordenadoria de Educação Escolar Indígena - Antonina, Bernadete, Eronilda, Fátima Resende, Félix, Letícia, Sebastião, Portela, Suelen, (Nana da equipe de Eventos) pela torcida, compreensão e pelo incentivo. Aos meus amigos da Escola Estadual Pascoal Ramos, lugar em que trabalhei grande período da minha vida - Angela Regina, Alfredo, Beatriz, Bárbara, Dilma, Izabel, João Paulo, Maria Pereira, Marilene, Nana, Neuza,Valdemar, Wilian, pela força, pelo incentivo e pelo carinho. vi Aos Irmãos que são amigos e aos amigos que são como irmãos: “Agradecer é admitir que houve um momento em que se precisou de alguém: é reconhecer que um homem jamais poderá lavrar para si o dom de ser auto-suficiente. Ninguém cresce sozinho, sempre é preciso um olhar de apoio, uma palavra de incentivo, um gesto de compreensão, uma atitude de amor”. A vocês, Angela Regina, Antonina, Beatriz, Dilma, Euzilene, Fabiana, Francis, Henriques, Izabel, Janisse, Lezinete, Lesliê, Leni, Lourdes, Michella, Sebastiana (Tiana), Shirlei, Viviane, Wilian. À meu namorado Jivanildo Novais, pela paciência, compreensão e pelo carinho dedicado. Aos meus amigos Anderson e Viviane, mesmo depois de superarmos mais uma etapa de nossas vidas jamais perderemos o título de sermos eternamente “Simonetes”. Obrigada por aprendermos juntos. E como dizia Fernando Pessoa: “... tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Realmente tudo o que passamos valeu à pena. Obrigada! À minha grande amiga Lezinete, por rever meu trabalho, comentar, estudar comigo e apresentar críticas importantíssimas para que eu melhorasse e afinasse meu olhar como pesquisadora. Lezi, você foi mais que uma amiga, uma verdadeira irmã. Obrigada! À minha querida amiga Shirlei, por ouvir minhas angústias, por estudar comigo, por compartilhar seu conhecimento amplo e teórico, por me fazer compreender o que, muitas vezes, parecia incompreensível. Você me proporcionou grandes aprendizagens e me fez também afinar meu olhar como pesquisadora. Obrigada! Angela Regina Lana Pinto gostaria de encerrar esses agradecimentos com você, pois sem o seu apoio e suas palavras de incentivo, nada disso existiria, foi você que acreditou em mim desde o início e me fez acreditar que seria capaz de fazer o mestrado e de ser pesquisadora. Obrigada! Aos aqui não nomeados, mas que contribuíram, de alguma forma, com os construtos desta pesquisa, muito obrigada! vii RESUMO O presente trabalho tem como propósito apresentar nossa pesquisa de Mestrado, que investigou a autoria nas crônicas produzidas por alunos do 9 o ano do Ensino Fundamental e 1o ano do Ensino Médio participantes do projeto Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF). Para sua realização, selecionamos o Caderno do professor “A Ocasião faz o escritor”, da 2 a edição do ano de 2010, a fim de analisarmos qualitativamente a base teórico-metodológica assumida como modelo didático do gênero crônica e como esse modelo discute e apresenta a discursividade, e um corpus de dez crônicas finalistas produzidas pelos alunos participantes do projeto. A Olimpíada originou-se do programa Escrevendo o Futuro, desenvolvido pela Fundação Itaú Social entre 2002 e 2006. Atualmente, é realizado em parceria do Ministério da Educação com a Fundação Itaú Social e o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). As atividades do projeto da Olimpíada ocorrem de maneira distinta, pois, nos anos ímpares, há formação de professores e, nos pares, realização de um concurso de produção de textos com alunos de escolas públicas de todo país, cujos gêneros selecionados são poemas, memórias literárias, crônicas e artigos de opinião. Nesse contexto, consideramos pertinente analisar como o material da Olimpíada de Língua Portuguesa encaminha o projeto de ensino para o gênero crônica, uma vez que estudar um gênero de natureza social híbrida e ver como ele permite versar sobre aspectos sociais altamente complexos a partir do olhar singular do cotidiano é relevante para as práticas escolares, além de representar um estudo de materiais didáticos alternativos que têm adentrado o espaço escolar ultimamente. Nossas reflexões e análises estão ancoradas na teoria enunciativo-discursiva de abordagem sócio-histórica do círculo de Bakhtin (1919,1924, 1929, 1952-1953) e na teoria de ensino-aprendizagem de Vigotski (1934). Além disso, fizemos um breve retrospecto sobre a produção textual para entendermos o processo de didatização do texto nas aulas de língua portuguesa e sobre alguns conceitos da escola de Genebra. À luz da teoria enunciativo-discursiva, buscamos compreender, de um lado, o tratamento didático do material para a crônica, pois o objetivo desse material é formar um aluno autor para esse gênero e, de outro lado, a discursividade nas crônicas para que pudéssemos observar de que forma os alunos constituíram-se como autores. Em nossa análise, constatamos que o Caderno da Olimpíada dialoga com o discurso oficial (PCNLP, OCEM, MEC) e as atividades não oportunizam ao aluno uma formação suficiente para que seja um sujeito-autor de crônica. Essa lacuna pôde ser observada nas produções, porque, ao analisarmos as produções, os alunos não conseguiram ser autores de crônica literária, mas de textos diversos, configurando gêneros outros. Concluímos, ainda, que o material enfoca o gênero crônica como gênero literário, contudo, acreditamos que a perspectiva discursiva pode possibilitar aos alunos uma visão mais ampla acerca da crônica, como um objeto do discurso, que é multifacetado, dada sua natureza híbrida e oportunizando uma formação mais cidadã ao alunado. Palavras-chave: Olimpíada, Crônica, Aluno, Autoria, Dialogismo. viii ABSTRACT This present paper aims to show our research Masters, as investigation about the authorship in the book produced by students in the elementary school in the third grade and freshman from High School project participants in the Olympics Portuguese Language Writing the Future (OLPEF). For this achievement, we selected the teacher's Notebook "The occasion is the writer, " the second edition of 2010 in order to analyze qualitatively the theoretical and methodological base taken as didactic model of gender and chronic discusses how this model and shows the discourse, and a corpus from ten finalists chronicles produced by students who participated in the project. The Olympic is originated from Writing the Future program, developed by Itaú a Social Foundation between 2002 and 2006. Currently, it is a partnership of the Ministry of Education with the Itaú Social Foundation and the Center for Studies and Research in Education, Culture and Community Action (Cenpec).The activities from the project of the Olympics occur in different ways because, in odd years, there are teacher training and, in even, is holding a competition to produce texts with students from public schools in entire country, whose poems are selected genres, memories literature, essays and opinion pieces. In this context, we consider as relevant to examine how the material of the Portuguese Language Olympic forwards the teaching project for the chronic gender, as a genre studying a hybrid of social nature and see how it allows the social aspects relate to highly complex from the natural look is relevant to everyday school practices, and represents a study of alternative learning the tools that have been received by the schools lately. Our thoughts and analyzes are grounded in the theory of enunciative-discursive socio-historical approach of the Bakhtin circle (1919.1924, 1929, 1952-1953) and teaching-learning theory of Vygotsky (1934). Besides this, we present a brief review on the production of texts for understand the process of didactization from the text in Portuguese language classes and some concepts of the Geneva school. Under the light of the enunciative-discursive theory, we search to understand, one side, the didactic material for the chronicle, for the purpose of this material is to form a student author for this genre and on the other side, the discourse in the book so in this way we could observe how students established themselves as real authors. In our analysis, we found that the Book of the Olympics dialogue with the official (PCNLP, OCEM, MEC) and the activities do not give the students enough training to be a subject-author of chronic. This gap could be observed in production, because, by analyzing the productions, students could not be authors of literary chronicle, but many texts, setting from other genres. We also conclude that the material has been focused on the genre as a literary chronicle, however, we believe that the discursive approach can provide students a broader view about the disease, as an object from discourse, that is multifaceted, because of its hybrid nature and giving more opportunities and training to students. Keywords: Olympiad, Story, Student, Author, Dialogism. ix RÉSUMÉ Le présent travail a comme objectif présenter notre recherche en Master qui a enqueté l'écriture dans les chroniques produites par les élèves du 9ème année du Collège et le premier année du Lycée, participants du Projet Olympique de Langue Portugaise “En écrivant l’Avenir” (OLPEF).Pour la réalisation, nous avons sélectionné le Cahier du Professeur “ L’occasion fait l’ écrivant”, de la deuxième édition de l’année 2010, avec le but d’évaluer de façon qualitative la base théorique choisi comme modèle didactique du genre de la chronique et comment ce modèle se décrit et présent le discurs dans un corpus de dix meilleurs chroniques écrites par les élèves participants du projet.Ce concurs olympique est originaire du programme “En écrivant l’Avenir”, développé par la Fondation Itaú Social entre 2002 et 2006.Actuellement, est réalisé par le Ministère de l’Éducation en partenariat avec la Fundation Itaú Social et le Centre d’Études et Recherches en Éducation, Culture et Action Communitaire (Cenpec). Les activités du projet Olympique se réalisent de manière distinguée, dans les années impaires, il y a la préparation de professeurs et, dans les par, la réalisation d’un concours de production de textes avec les élèves des écoles publique de tout le pays, auquel les genres sélectionnées sont poèmes, mémoires littéraires, chroniques et articles d’opinion. Dans ce contexte, nous considéront important analyser comment le matériel Olympique de Langue Portugaise directionne le projet d’enseignement pour le genre chronique, une fois qu’étudier un genre de nature social hybride et voir comment il permet montrer sur les aspects social extremement complexe a partir du regard singulier du jour à jour est revelateur pour les pratiques scolaire, en plus, de répresenter de matériels didactiques alternatives que dernièrement, ont du espace scolaire. Nos reflexions et analyses sont lié à la théorie énoncé du discurs d’approche social-historique du cercle de Bakhtin (1919,1924, 1929, 1952-1953) et dans la théorie de l’enseignement et apprentissage de Vigotski (1934). A part cela, nous avons fait un bref retrospecto sur la production textuel pour comprendre le processus didactique du texte dans les cours de langue portugaise et sur quelques concepts de l’école de Genève. À la lumière de la théorie énoncé discursive, nous cherchons apprendre, d’une côté, le traitement didactique du matériel pour la cronique, pourtant, l’objectif de ce matériel est de donner aux élèves une formation d’auteur pour ce genre et, d’autre côté, le discurs dans le chroniques pour que nous puissions observer dequel forme les élèves deviennent des auteurs. Dans notre analyse, nous avons constaté que le Cahier Olympique a un dialogue avec le discurs oficiel (PCNLP, OCEM, MEC) et les activités ne donnent pas au élève une formation sufisante pour qu’il soit un sujet-auteur en chronique. Cette lacune peut être observé dans les productions, parce que, en analisant les productions, les élèves n’ont pas réussi a être des auteurs de chronique littéraire, mais de textes divers, en résultant ainsi genre “autres”. Nous avons conclu, bien que le matériel est du genre chronique comme du genre littéraire, nous croyons que la perpective du discurs peut possibiliter aux élèves une vision plus vaste par rapport les chroniques, comme un objet du dircurs, que présent de différentes facettes , donné à sa nature hybride et en donnant l’opportunité d’une formation plus citoyenne aux étudiants. Mots Clef: Olympique, Chronique, Élève, Auteur, Dialoguiste x SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12 CAPÍTULO I .............................................................................................................. 16 O Círculo de Bakhtin e a arte da palavra viva ........................................................... 16 1.1 Ética e estética: para pensar a criação dos discursos ..................................... 18 1.2 O dialogismo e as vozes bakhtinianas: princípios .............................................. 27 1.3 Gêneros discursivos e a autoria .......................................................................... 34 CAPÍTULO II ............................................................................................................. 41 O Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa: Um olhar para a produção escrita 41 2.1 Escrita, diferentes perspectivas através do tempo, dentro dos estudos linguísticos e da Linguística Aplicada ........................................................................ 43 2.2 A escrita nos PCNLP ........................................................................................... 48 2.3 Escrita e Autoria .................................................................................................. 53 2.4 Teoria Vigotskiana: Um enfoque sócio-histórico ................................................. 57 2.4.1 Vigotski e a escrita ........................................................................................... 60 2.4.2 Bakhtin e Vigotski na releitura da Escola de Didática de Genebra ................... 63 2.4.3.1 Os didáticos genebrinos e o gênero como megainstrumento ........................ 64 2.4.3.2 O gênero como megainstrumento e as capacidades .................................... 65 CAPÍTULO III ............................................................................................................ 68 Metodologia da pesquisa: compreendendo os dados ............................................... 68 3.2 A base metodológica para a coleta dos dados .................................................... 75 3.3 O primeiro corpus: o Caderno “A ocasião faz o escritor” ..................................... 77 3.4 O segundo corpus: as produções de crônicas dos alunos .................................. 79 3.5 A base metodológica para análise dos dados ..................................................... 81 CAPÍTULO IV ............................................................................................................ 83 A Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro: Um Olhar sobre o caderno de crônicas “A ocasião faz o escritor” ....................................................................... 83 4.1 O Gênero Crônica ............................................................................................... 84 4.2 Da teoria à metodologia do Caderno “A ocasião faz o escritor” ...................... 96 4.3 Análise das Atividades do Caderno “A ocasião faz o escritor” .......................... 108 CAPÍTULO V ........................................................................................................... 130 xi Um olhar sobre as vozes e a autoria na produção escrita de crônica da Olimpíada de Língua Portuguesa .................................................................................................. 130 5.1 “O que nos dizem os textos dos alunos?”: apontamentos ................................. 132 5.2 Os textos dos alunos: entre o proposto e o realizado ....................................... 136 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 166 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 174 12 INTRODUÇÃO A Academia, as diversas instituições de ensino, as Secretarias de Educação, a partir da década de 80, perceberam uma necessidade de estudar e agregar conhecimento sobre as políticas públicas educacionais, que apresentam um olhar no fazer da contemporaneidade. Nesse sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) propõem redimensionamento em torno dos objetos de ensino previstos para a Língua Portuguesa. Tal documento orienta os professores a compreender que o ensino de português, por exemplo, não está voltado apenas para o ensino de regras gramaticais, de produção textual apoiada apenas na tipologia ou mesmo centrar os estudos em apenas um determinado gênero discursivo, mas que ele está direcionado para as práticas sociais, nas quais os alunos deverão saber mobilizar todo conhecimento adquirido na esfera escolar, por considerar que cabe à escola oportunizar ao aluno uma formação cidadã, autônoma. É importante salientar que apesar dos esforços envidados pelas políticas públicas de ensino em prol da melhoria do ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, a escola contemporânea ainda não conseguiu sequer fazer com que os alunos superassem dificuldades básicas ligadas ao domínio de estruturas mínimas da língua escrita como normalização, comunicação e textualização quanto mais dificuldades complexas como a tomada de uma postura dialógica, ancorada na interação, na compreensão e na resposta ativa, que lhes permitiriam alçarem-se autores de seus próprios textos. Acreditamos que a linguagem é a mediadora para as diferentes práticas de interlocução que o indivíduo estiver inserido. Dessa forma, a escola é o lugar onde será possível mostrar aos alunos a importância do contexto de produção, recepção e circulação para a compreensão dos enunciados concretos. O estudo da natureza dos enunciados e dos gêneros discursivos é, segundo parece, de importância fundamental para superar as concepções simplificadas da vida do discurso, do chamado “fluxo discursivo”, da comunicação, etc., daquelas concepções que ainda dominam a nossa linguística. Além do mais, o estudo do enunciado 13 como unidade real da comunicação discursiva permitirá compreender de modo mais correto também a natureza das unidades da língua [...] o ouvinte ao perceber e compreender o significado do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele ( total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-o para usá-lo[...] (BAKHTIN,2010, [1952-1953/1979] p. 269-271). Assim, a comunicação passa por uma unidade real e não como algo convencional ou abstrato. Em vista disso, dizemos que nosso estudo busca ressignificar, por meio da linguagem, o encontro do eu com o outro, procurando compreender as vozes sociais que se fazem presentes nas diferentes relações dialógicas entre o “eu” e o “outro”, precisamente, nas produções escritas dos alunos e no material da Olimpíada da Língua Portuguesa, que tomamos como objetos de investigação. Ao assumirmos a interação social como concepção de linguagem, buscamos, nesta pesquisa, analisar o referido material didático destinado a formação de alunos autores, o qual, em certa medida, atende aos pressupostos dos PCN de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998) e as produções desses alunos, resultados da aplicação do referido material. Esse material é o Caderno da Olimpíada “A ocasião faz o escritor” destinado ao professor, cujo propósito é tornar os alunos autores de crônica literária. A Olimpíada originou-se do programa Escrevendo o Futuro, desenvolvido pela Fundação Itaú Social entre 2002 e 2006. Atualmente, é realizado em parceria do Ministério da Educação com a Fundação Itaú Social e o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), cujo investimento está em torno de 16 milhões e, no ano de 2008, ocorreu a primeira edição dessa parceria em que seis milhões de alunos participaram. O projeto da Olimpíada é bianual, quer dizer, nos anos ímpares, há formação de professores e, nos pares, realização de um concurso de produção de textos dos seguintes gêneros: poemas, memórias literárias, crônicas e artigos de opinião. Todos elaborados por alunos de escolas públicas de todo o país. Durante o ano de premiação, os professores recebem material de apoio para a realização de oficinas com os alunos em sala de aula. A Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro ( OLPEF) é um programa que desenvolve formações de educadores presenciais e a distância, promove um concurso de textos, no qual alunos, professores e escolas são 14 premiados. Os alunos recebem prêmios como ( medalhas, livros e computadores) por conta de suas produções. Os professores e suas respectivas escolas dos autores dos textos vencedores também são premiados com os mesmos benefícios. O Centro de Estudo e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) é o responsável pela coordenação técnica do projeto, pela elaboração dos materiais, pela política de formação dos professores, entre outros. Desse modo, o Cenpec busca o desenvolvimento de habilidades e competências com foco no professor e também acredita que, por meio da ampliação do conhecimento por parte de professores, os quais estarão bem preparados, esses docentes poderão contribuir para o aprimoramento do ensino da escrita. Para a elaboração do material da referida Olimpíada, a equipe realizou várias pesquisas abarcando o que melhor se adequasse à realidade brasileira. Nesse contexto, escolheram o modelo didático da Escola de gêneros de Genebra que apresenta várias propostas de sequências didáticas1 para o ensino de atividades escritas. Nosso interesse em investigar o referido material e as produções dos alunos deve-se às práticas cristalizadoras em torno do processo da escrita. Sabemos que a produção escolar, em boa medida, fica restrita à sala de aula, cujo objetivo é escrever, exclusivamente, para o professor. Dessa forma, o texto fica marcado pelo monologismo, uma vez que não há um contexto de produção definido, que possa orientar o querer dizer do aluno. Considerando que tal material busca uma prática diferenciada para a produção de texto, uma vez que o projeto de ensino dos Cadernos da Olimpíada está organizado com base na metodologia da sequência didática. Essa metodologia está fundamentada nas ideias didáticas da Escola Didática de Genebra, cujos principais representantes no Brasil são o genebrino Schneuwly e o espanhol Dolz (1994, 1996, 1997, 1998, 2001). Assim, para compreensão de nosso estudo, esta pesquisa está dividida em cinco capítulos. 1 É um conjunto de atividades ligadas entre si, planejadas para ensinar um conteúdo etapa por etapa. Esse trabalho almeja que os alunos cheguem gradualmente ao domínio de determinado conteúdo ou competência. (fonte material Pontos de vista). 15 No capítulo 1, O Círculo de Bakhtin e a arte da palavra viva, são apresentados conceitos relevantes ao nosso trabalho, dentre eles, ético e estético, o dialogismo e as vozes bakhtinianas, gêneros discursivos e a autoria. O capítulo 2, O Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa: Um olhar para a produção escrita, apresenta um panorama histórico acerca dos estudos da Linguística e da Linguística Aplicada em relação à produção textual. Posteriormente, discorremos sobre a teoria de Vigotski e finalizamos nosso estudo com a escola de Genebra. No capítulo 3, Metodologia da pesquisa: compreendendo os dados, é o momento em que expomos o percurso de nossa pesquisa, os objetivos e as questões de pesquisa, como também nossos corpora. O capítulo 4, A Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro: Um olhar sobre o caderno de crônicas “A ocasião faz o escritor”, analisará o material destinado ao professor para trabalhar e orientar a produção de crônica para o aluno do 9o ano do Ensino Fundamental e 1o ano do Ensino Médio. No capítulo 5, Um olhar sobre as vozes e a autoria na produção escrita de crônica da Olimpíada de Língua Portuguesa, apresentamos a análise das crônicas dos alunos que participaram da Olimpíada de Língua Portuguesa. Neste capítulo, buscamos desvelar se os alunos conseguiram alçarem-se autores de suas produções. E, por fim, apresentamos nossas considerações finais. 16 CAPÍTULO I O Círculo de Bakhtin e a arte da palavra viva O enunciado concreto (e não a abstração linguística) nasce, vive e morre no processo da interação social entre os participantes da enunciação. Sua forma e significado são determinados basicamente pela forma e significado e caráter desta interação (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926). Neste capítulo 1, nosso objetivo é discorrer e refletir sobre alguns conceitos do círculo de Bakhtin, pertinentes para pensar nosso objeto de pesquisa — a autoria em textos de crônicas de alunos do ensino fundamental e médio de escolas públicas, as quais foram escritas para o concurso de produção textual da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (2010). No bojo da concepção de linguagem bakhtiniana, interessa-nos de perto os conceitos de ética e de estética e de gêneros do discurso, com base nos quais retiramos nossas categorias de análise como o dialogismo, as vozes e a autoria. Para pensar a concepção de linguagem do círculo de Bakhtin, partimos de uma asserção bastante clara presente nos escritos do grupo de que a realidade fundamental da linguagem é a interação verbal. Por isso, a obra do círculo é considerada um pensamento inovador e complexo, pois pensa a linguagem do ponto de vista de seu uso real e não do ponto de vista ideal pensado por muitos representantes da linguística formal e pelos gramáticos tradicionais. A construção da concepção de linguagem como um fenômeno de natureza concreta sustenta-se em contraposição, de certa forma, às proposições da lingüística e da estilística tradicional, cujos pensamentos acerca da linguagem são formulados de um ponto de vista abstrato e idealista respectivamente, denominados pelo círculo de objetivismo abstrato e subjetivismo idealista. 17 A oposição do círculo de Bakhtin a essas duas formas de pensamento linguístico recai principalmente sobre o fato de, por um lado, os representantes do objetivismo abstrato desprezarem o papel do falante ao supervalorizar as formas da língua como um enunciado neutro relacionado a um sistema linguístico autônomo e, por outro lado, os propositores do subjetivismo idealista subestimarem a natureza social da interação verbal em prol da expressão individual. Com base na recusa dos dois tipos de pensamento acima apresentados, de forma bastante sintética, o círculo de Bakhtin propõe, em contrapartida, uma abordagem dinâmica e concreta da linguagem, apresentada como um fenômeno complexo, pois é constituída pela articulação de diferentes pontos de vista: histórico, sociológico, ético, ideológico e dialógico. Isso porque, a verdade da linguagem é o seu acontecimento social por meio da interação verbal concretizada em enunciados reais que respondem valorativamente a outros enunciados passados, presentes e futuros numa postura responsável. Por isso, em “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (1929), Bakhtin/Volochinov afirmam que a: [...] a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal, ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929, p. 108). A radicalidade e a complexidade do pensamento bakhtiniano faz com que o filósofo seja considerado, hoje, um dos principais pensadores do século XX 2. A importância desse pensamento acerca da realidade da linguagem fez com que, a partir do final do século XX, ele fosse considerado referência também para pensar processos de ensino-aprendizagem em contextos de educação linguística escolar aqui no Brasil, tanto em âmbito da academia quanto das políticas públicas de ensino de língua materna. O interesse da academia pelo pensamento do círculo de Bakhtin provocou as mudanças das políticas públicas de ensino de língua portuguesa, resultando, inclusive, na elaboração dos documentos oficiais em fins da década de 2 Os escritos do círculo de Bakhtin não nos foram apresentado de forma cronológica, alguns artigos só foram publicados por volta de vinte anos mais tarde. Existem materiais que alguns comentadores têm dúvidas sobre sua autoria, se realmente foram escritos por Bakhtin ou por alguns dos seus amigos do Círculo (Volochinov ou Medvedev). 18 90 (PCN) e a presença dessa concepção de linguagem nos documentos retroalimentou a pesquisa. Tendo em vista as inúmeras obras escritas por Bakhtin, para facilitar posteriormente nossa análise, apresentaremos, neste trabalho, apenas os conceitos da teoria bakhtiniana pertinentes para pensar os fundamentos desta pesquisa. 1.1 Ética e estética: para pensar a criação dos discursos As bases da concepção de linguagem bakhtiniana já podem ser encontradas nas preocupações filosóficas do autor em “Para uma filosofia do ato responsável” (2010[1919-1924]), em que, ainda muito jovem, ele pensa o agir humano do ponto de vista da alteridade, da interação constitutiva em que todo sujeito forma sua identidade. Por estar sempre em todo lugar em relação com outro, dizemos mesmo que se trata de um processo identitário e não de identidade, que dá ideia de posto e acabado. É essa noção de agir responsável na alteridade que fundamentará, mais tarde, o estudo da linguagem dentro de um contexto participativo. Falar de ética e de estética, na perspectiva bakhtiniana, é pensar o agir do homem do ponto de vista da condição humana que é ser ao mesmo tempo de ordem natural e de ordem sócio-histórica. Essa condição dá ao homem o direito a dois nascimentos, um biológico e outro social. O nascimento biológico permite ao homem a entrada no mundo natural, mas a entrada na história humana passa pelo nascimento social. A vida social do homem implica sua inserção em atividades de interação organizada em determinados espaços sócio-históricos e ideológicos de atuação humana a partir das quais o indivíduo desenvolve a capacidade de interação sígnica (produzir, interpretar, compreender textos e semioses), a qual lhe permite, por sua vez, sua sociabilidade. A relação é um ponto forte e fundamental no pensamento bakhtiniano e pelo fato de o domínio do signo coincidir com o ideológico, essa relação é sempre compreendida e interpretada num horizonte de valores compartilhados. Assim, a vida social se constitui na alteridade, pois o vir-a-ser do humano (a consciência do mundo, do outro e de si mesmo) está fundado na diferença em que o “eu-para-mim” se constrói a partir do “eu-para-os-outros”, cuja unidade de ligação é a posição axiológica (valor) (BAKHTIN, 2010[1920-24). Trata-se de um sujeito 19 relacional e a condição de apenas se constituir a partir da relação com os outros, fundada na postura valorativa, é o que obriga o sujeito a ser responsável, isto é, a agir deliberadamente. Esse agir-ato pode ser um pensamento, um enunciado, cujo pronunciamento é uma exigência tendo em vista que, para o autor russo, somente a natureza não necessita de responsabilidade, pois em seu âmbito não há atos deliberados, mas acontecimentos imanentes (BAKHTIN, 2010[1919]). O sujeito não apenas conhece ou desconhece as coisas do mundo, ele as compreende, as interpreta, as valora, em outras palavras, ele pensa o mundo e o pensa como necessidade de instauração de um lugar do qual ele responde ao outro. Assim, o ato de pensar responde a uma necessidade ética, depreendida, aqui, como o processo, o agir do sujeito no mundo dos acontecimentos da vida (nascer, viver... morrer), fundamentada em obrigações e deveres concretos e ligada à realidade per se. (em si). Do ponto de vista acima explicitado, o ato humano não pode ser compreendido como algo abstrato, pois se o sujeito se constitui na relação com os outros e adquire sua capacidade de compreender, interpretar, produzir, valorar textos a partir da interação organizada socialmente, o ato responsável só pode ser entendido do ponto de vista concreto relacionado a outros atos de outros sujeitos concretos, por isso, relacionar ao outro o vivenciado é condição obrigatória de uma compenetração eficaz e do conhecimento tanto ético quanto estético (BAKHTIN, 2010[1924], p. 25). Fundamentados em tal perspectiva, o agir humano não se sustenta num dever abstrato e generalizado (moral) nem na ação individual autárquica, mas ambas as dimensões se unem e se atualizam no ato singular do sujeito sociossituado (que age responsavelmente valorando as coisas do mundo e respondendo aos outros). Não existem normas morais determinadas e válidas em si, mas existe o sujeito moral com uma determinada estrutura (não, obviamente, uma estrutura psicológica ou física), e é sobre ele que necessitamos nos apoiar: ele saberá em que consiste e quando deve cumprir o seu dever moral ou, mais precisamente, o dever (porque não existe um dever especificamente moral) (BAKHTIN, 2010 [1919], pp. 47-48). 20 O sujeito do ponto de vista do pensamento bakhtiniano ocupa na vida singular um lugar e um tempo únicos, irrepetíveis, irrevogáveis e insubstituíveis, de onde ele vê o mundo e os outros, um lugar onde só ele pode pensar e dizer aquilo que pensa, impensável por ninguém mais, nos termos de Bakhtin “impenetrável da parte de um outro” (2010[1919-24], p.96). Por isso, o sujeito, cuja existência não tem álibi, livrase do individualismo indiferente e da determinação de um social abstraído pela sua ação responsável e responsiva situada em um dado domínio da cultura. Assim, os acontecimentos do mundo são mediados pelo agir situado e valorativo do sujeito que os significa de uma posição concreta. Sobral, ao refletir sobre a concepção ética de Bakhtin, observa que O ponto alto da proposta de Bakhtin é alegar que a validade das decisões éticas depende não de abstrações, mas da articulação, junção, entre regras éticas (se assim se pode dizer) e as circunstâncias concretas da vida concreta, do processo situado de decisão, do agente: o sujeito, ao agir, deixa por assim dizer uma “assinatura” em seu ato e se responsabiliza por ele perante a coletividade de que faz parte (e, em última análise, perante a humanidade como um todo!) (SOBRAL, 2009, p. 30). Portanto, não podemos restringir o conceito de ética, nos termos bakhtinianos, a “agir corretamente” ou a “ter um bom comportamento” de acordo com as regras sociais pré-estabelecidas, mas pensá-la enquanto uma postura necessária, uma exigência de agir no mundo na responsabilidade e na diferença, da qual não conseguimos fugir. Entretanto, no mundo dos acontecimentos da vida, campo próprio do ato ético, o sujeito está sempre inacabado, pois a uniocorrência nunca repetível e aberta da vida vivida não comporta solução e fixidez uma vez que o sujeito está em constante vir-a-ser em um presente construído na memória do passado naquilo que é pré-dado e na memória do futuro que define as escolhas no horizonte de possibilidades. Segundo Bakhtin (2010[1920-24]), o acabamento responde a uma necessidade estética de totalidade, a qual só pode ser dada em outro plano — o plano da realidade criada ou discursiva. Vale a pena assinalar que, apesar de Bakhtin ter se dedicado a pensar a questão do acabamento estético (arte), todo discurso envolve alguma espécie de transfiguração do mundo vivido, a qual vai variar apenas em termos de grau e de tipo (SOBRAL, 2009). Essa compreensão é importante uma vez que o nosso foco enquanto objeto de análise está voltado para a 21 forma discursiva crônica, a qual tem seu lugar discursivo instaurado entre o literário e o jornalístico. No plano do discurso literário, Bakhtin (2010[1920-24]) assinala que o acontecimento vivido no mundo ético (já em si impregnado por diferentes avaliações sociais tendo em vista a complexa atmosfera valorativa envolvendo a vida) é reconstituído em outro plano (o da obra) por meio da atividade estética que cria objetos artísticos, por isso, o autor afirma que Quando o homem está na arte não está na vida (BAKHTIN, 2010[1919-24]). É importante ressaltar que, para Bakhtin, a força propulsora dos atos estéticos, situados no plano da criação discursiva, é a postura valorativa em face de outras posturas valorativas, em outras palavras, o ato estético/cultural move-se em um ambiente valorativo intenso de inter-relações responsivas. A atividade estética não opera a transfiguração direta da existência em si, mas é um recorte valorativo dessa existência que é refratado no objeto estético. Assim, aspectos da vida vivida são isolados e recortados de seu acontecimento uniocorrente, organizados e reapresentados em um novo plano de sentidos e valores sígnicos, de maneira refletida, pensada, elaborada, construindo um todo autocontido e acabado (FARACO, 2005). A tarefa de organizar e reapresentar o mundo da vida em outro plano discursivo mais elaborado implica outro aspecto fundamental da concepção de estética bakhtiniana — o olhar de fora — definido por Bakhtin (2010[1920-24]) como o excedente de visão de que precisamos para enxergar o todo uma vez que a atividade estética pressupõe duas consciências não coincidentes. Quando contemplo no todo um homem situado e fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar — a cabeça, o rosto, e sua expressão —, o mundo atrás dele, toda uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos (BAKHTIN, 2010[1920-24] p. 21). Assim, o estar fora do vivido contemplado é condição imprescindível para o ato de acabamento, uma vez que só podemos enxergar o todo no outro e nunca em 22 nós mesmos. A atividade estética implica dois movimentos importantes, executados em momentos diferentes e unidos no momento da criação: a empatia e a exotopia. Para Bakhtin, a compenetração ou empatia é o primeiro momento da atividade estética e consiste no vivenciamento, no posicionamento do lugar do outro. Ao exemplificar a realização desse movimento tendo como pivô a contemplação de um indivíduo que sofre, encontramos a seguinte orientação Devo adotar o horizonte vital concreto desse indivíduo tal como ele o vivencia; faltará, nesse horizonte, toda uma série de elementos que me são acessíveis a partir do meu lugar... sua expressividade externa é o caminho através do qual eu penetro em seu interior e daí quase me fundo com ele (BAKHTIN, 2010[1920-24] p. 24). Bakhtin pensa, então, se a compenetração é suficiente para dar o necessário acabamento ao outro, o que conclui com uma negativa. A empatia nos leva ao vivenciamento assimilado em termos de ato ético puro ou patológico (tomar para si próprio o sofrimento alheio) da questão e sua exteriorização, desse ponto, tem função apenas comunicativa. O acabamento requer o distanciamento, o afastamento radical do objeto vivenciado, precisamente, um olhar exotópico. O processo exotópico se realiza quando, repleto desse olhar do outro, retorno a mim mesmo e firmemente coloco em ação o excedente de visão que o outro me proporcionou, atualizando o que penso sobre o mundo e sobre mim. Sem esse retorno, nós ficaríamos somente no chamado refletir, ou seja, somente reproduziríamos o já dito, sem refratar (transformar, atualizar), e isso não contribui para a constituição do outro. A posição exotópica é um lugar a partir do qual o sujeito enxerga o mundo e seus acontecimentos, o discurso, e que lhe permite certo deslocamento de sua própria condição neste mundo e a percepção de elementos não acessíveis quando totalmente próximo dessa condição. Por isso, segundo o filósofo russo A atividade estética começa propriamente quando retornamos a nós mesmos e ao nosso lugar fora da pessoa que sofre, quando informamos e damos acabamento ao material da compenetração; [...] [pela via] do sofrimento de um dado indivíduo [...], que agora tem uma nova função, não mais comunicativa e sim de acabamento [...] (BAKHTIN, 2010, [1924] p. 25). 23 Assim, a atividade estética começa quando, situados em contextos precisos e singulares, contemplamos aspectos e parcelas do conteúdo do mundo vivido e o transfiguramos a partir do olhar valorativo que lançamos sobre essa realidade experienciada a qual é trabalhada e plasmada em um material específico, no nosso caso, o linguístico, criando determinados objetos socioculturais numa dimensão discursiva (enunciados/gêneros). Portanto, o todo acabado une de forma integrada e indissolúvel atos éticos (vida, o processo) e estéticos (linguagem, conteúdo) por meio da posição ativa de um centro valorativo. Partindo de tal perspectiva, podemos observar que o centro valorativo ou princípio criativo é fundamental para entender a criação estética (ou gênero discursivo). Esse princípio é encontrado justamente na relação do autor com o conteúdo do seu dizer e com o ouvinte, levada a termo em um lugar e tempo únicos, o que Bakhtin denomina de autoria. Para entender melhor o processo de criação estética ou discursiva, é interessante refletirmos um pouco sobre os elementos constituintes dessa relação tripla. Em relação ao autor, Bakhtin (2010[1920-24]) faz uma distinção entre autorpessoa e autor-criador, cujo entendimento é importante para a compreensão da criação estética. O filósofo russo observa que não se pode confundir o autor-pessoa — o escritor, o artista, a pessoa física (o elemento do acontecimento ético e social da vida) — com o autor criador — uma posição axiológica ativa e estruturadora do objeto discursivo (o princípio criador). Bakhtin afirma que o autor-pessoa pode ser, às vezes, importante para entender o autor-criador, mas não é seu determinante. Este segundo autor (autor-criador) é um elemento constituinte e imanente do todo estético, uma instância de produção do discurso. Segundo Faraco (2005), o autor-criador, na perspectiva bakhtiniana, exerce uma função estético-formal criadora de objetos estéticos/discursivos e sua característica principal está em materializar certa relação valorativa com o outro e seu mundo (o conteúdo do objeto [o herói]) (BAKHTIN, 2010[1920-24]) e o ouvinte (destinatário do objeto) (VOLOCHINOV, 1926), enquanto agente estruturador de totalidades que une intrinsecamente no objeto estético/discursivo elementos do contexto sócio-histórico e cultural (o conteúdo) com determinado material e forma (a linguagem e as formas de concepção baseadas nas formas de interlocução). Podemos dizer que a atividade criadora é um ir e vir incessante ao “mundo e suas mazelas” (espaço ético) e um retorno a si mesmo constituindo formas próprias 24 de dizer (espaço estético). Bakhtin em “O autor e a personagem” (2010[1920-24]) observa que não conseguimos compreender o objeto estético/discursivo com base nas declarações do autor-pessoa acerca do processo de sua criação porque a posição axiológica, que dá acabamento ao objeto, é ativa, mas não é determinada a priori, sendo assim, ela não pode ser encontrada em partes do objeto, no conteúdo ético e social, por exemplo. Dessa forma, onde podemos encontrar o princípio criador do objeto estético/discursivo? Segundo Bakhtin, ele está no todo do objeto enformado uma vez que [...] o autor cria, mas vê sua criação apenas no objeto que ele enforma, isto é, vê dessa criação apenas o produto em formação e não o processo interno psicologicamente determinado. São igualmente assim todos os vivenciamentos ativos: estes vivenciam o seu objeto e a si mesmos no objeto e não no processo de seu vivenciamento; vivencia-se o trabalho criador, mas o vivenciamento não escuta nem vê a si mesmo, escuta e vê tão-somente o produto que está sendo criado ou o objeto a que ele visa (BAKHTIN, 2010[1920-24, p. 05). Conforme demonstra a citação, o autor-criador não é o autor empírico e nem o conteúdo do objeto estético/discursivo é mero reflexo do mundo vivido, pois, se assim fosse, como observa Sobral (2009), a linguagem seria representação direta da realidade vivida e o objeto expressão subjetiva do autor, na atividade estética, tratase de mundo e autor discursivo. O autor-pessoa contempla o conteúdo do mundo social valorado numa posição de fronteira a partir da qual ele escolhe uma orientação axiológica (autor-criador) à qual entrega a construção do objeto estético/discursivo. Mais tarde, Bakhtin afirmará que o artista/autor tem o dom da fala indireta, pois ele age como um dramaturgo que distribui todas as palavras a vozes dos outros (outras posições sociais valorativas), inclusive a imagem do próprio autor-criador. Toda voz autenticamente criadora sempre pode ser apenas uma segunda voz no discurso. Só a segunda voz — a relação pura — pode ser até o fim desprovida de objeto, sem abandonar a sombra substancial figurada. O escritor é aquele que sabe trabalhar a língua estando fora dela, aquele que tem o dom do falar indireto (BAKHTIN, 2010[1959-61], 315). 25 O trabalhar a linguagem fora dela ou o estar fora, como podemos observar, retoma a questão do excedente de visão fundamental para engendrar o todo estético/discursivo a partir da posição ativa de uma instância criadora, que materializa no objeto estético/discursivo a relação que mantém com o conteúdo do mundo vivido e com o ouvinte/destinatário em termos do que este outro/destinatário pensa acerca de sua relação com o conteúdo do objeto. É interessante frisar, assim, que esse processo de tessitura e de endereçamento corresponde ao que denominamos anteriormente de autoria, a qual só pode ser encontrada no centro de organização e de interseção de planos “Os diferentes planos distam em diversos graus deste centro do autor” (BAKHTIN, 2010[1930-35], p. 370). Observamos que Bakhtin refere-se a planos (no plural), o que significa que há outros planos além do conteúdo do objeto estético. Para Bakhtin, todo objeto estético/discursivo implica um conteúdo, uma forma e um material com que o autor trabalha. O conteúdo, como já dissemos, diz respeito aos atos éticos e sociais humanos, a forma diz respeito à maneira de organizar e compor os discursos e o material, no caso do discurso, é a linguagem. O objeto discursivo, na concepção bakhtiniana, possui três momentos articulados: o momento de construção do objeto estético, o momento da forma que organiza o conteúdo num dado material, orientada pela relação axiológica do autorcriador com o conteúdo e o destinatário e o momento de elaboração do material que funda o artefato ou a obra exterior. Assim, o primeiro diz respeito às múltiplas teias de relações valorativas socioculturais manifestas na atividade estética, o segundo é a forma de composição do conteúdo servindo-se do material enquanto o terceiro diz respeito ao aparato técnico de realização do objeto estético. O produto resultante da articulação dos três momentos acima mencionados constitui o que Bakhtin (2010[1930-35]) denomina de totalidade ou forma arquitetônica. Em outras palavras, a arquitetônica é o conteúdo valorativamente estruturado pelo autor-criador numa certa composição realizada num certo material (FARACO, 2011). Bakhtin distingue, assim, forma arquitetônica de forma composicional a fim de esclarecer a confusão estabelecida entre as duas por parte da estética material. Para Bakhtin, as formas arquitetônicas são [...] as formas dos valores morais e físicos do homem estético, as formas da natureza enquanto seu ambiente, as formas do 26 acontecimento no seu aspecto de vida particular, social, histórica etc.; [...] são as formas da existência estética na sua singularidade (BAKHTIN, 2010[1920-24], p. 25). Já as formas composicionais são apresentadas como as que [...] organizam o material [e] têm um caráter teleológico, utilitário, como que inquieto, e estão sujeitas a uma avaliação puramente técnica, para determinar quão adequadamente elas realizam a tarefa arquitetônica (BAKHTIN, 2010[1920-24], p. 25). Como podemos perceber pelas citações acima, as formas arquitetônicas determinam a escolha das formas composicionais adequadas à perspectiva em que o conteúdo do objeto estético está ordenado. O autor russo apresenta como exemplo a forma da tragédia, forma arquitetônica do caráter trágico de um acontecimento, que vai procurar a forma dramática (diálogo, desmembramento em atos, etc.) como sua realização composicional mais adequada. Encontramos também os exemplos das perspectivas líricas, cômicas, heroicizantes, do tipo e do caráter como formas arquitetônicas que podem ser realizadas por formas composicionais que se mostrarem mais adequadas como o poema, o conto, a novela, romance etc. O autor russo ressalta, entretanto, ser impossível a forma arquitetônica realizar-se sem a forma composicional ainda que aquela possa se realizar composicionalmente de diversas maneiras. Assim, a forma arquitetônica e a forma composicional ligam-se constitutivamente, integrando a si, as particularidades do material. Além do problema da enformação do objeto, há também o problema da apropriação da linguagem e de sua superação no conjunto estético/discursivo. Bakhtin (2010[1920-24]) diz que todo objeto estético/discursivo precisa sempre superar o material como um escultor supera a resistência do mármore, por exemplo. Assim, além de ser preciso se apropriar da linguagem em sua concreticidade, isto é, em seu uso real, a forma material precisa transpor a língua situada para outro plano valorativo em que está estruturando uma determinada forma arquitetônica e composicional. O autor-criador, ao selecionar os elementos do material em termos fônicos, sintáticos, referenciais, semânticos etc., não o faz do ponto de vista da gramática, do dicionário, mas dos usos desses elementos nos contextos da vida (FARACO, 2011). Isso porque a atividade estética implica um autor-criador envolvido 27 com um plano ou projeto discursivo que seleciona, determina, constrói e dá acabamento a um todo de sentido. Nesse sentido, o autor-criador não alinhava palavras, frases, estrutura períodos ou até mesmo capítulos aleatoriamente, este trabalho é orientado pelo projeto discursivo ou querer dizer do autor. Acreditamos que as correlações entre conteúdo, material e forma e a distinção e vinculação entre formas arquitetônicas e formas composicionais podem nos auxiliar a entender a questão da concepção dos gêneros em sua relação com o enunciado concreto e suas formas de textualização. Além do mais, ainda que Bakhtin e seu círculo tenham pensado mais a relação ético-estética no discurso artístico-literário, é interessante observar, conforme pontua Sobral (2009), que todo discurso implica alguma espécie de transposição do mundo ético, variando apenas o grau e o tipo. Mais tarde, Bakhtin e seu círculo vão redimensionar também esse pensamento acerca da linguagem para discutir sua concepção com a própria Linguística (1929), para pensá-la como o lugar de encontro das múltiplas e heterogêneas vozes sociais (1930-34) e para propor a noção de gêneros do discurso e de enunciado concreto (1952-53). As noções de ética e estética e sua vinculação constitutiva a partir da relação sociossituada entre um eu e outro nos fundamentarão para pensar um princípio bastante elevado ao pensamento do círculo de Bakhtin: a natureza dialógica da linguagem ou simplesmente o dialogismo e suas diferentes facetas como o conceito de vozes. 1.2 O dialogismo e as vozes bakhtinianas: princípios Na obra Marxismo e filosofia da linguagem (1929), Bakhtin/Volochinov expõem de forma bastante sustentada a filosofia da linguagem na concepção do círculo bakhtiniano, cuja pedra conceitual é o dialogismo. Segundo os autores, o falante utiliza-se da língua sempre em contextos concretos onde o que importa não são os formatos linguísticos padronizados, mas o signo sempre mutável, que acompanha cada situação social em que é utilizado. Por isso, a linguagem não se constitui apenas em um sistema abstrato, nem tão pouco é monológica e individual, mas responde a diálogos anteriores e presentes e abre possibilidades para outros dizeres no devir. 28 Para se conseguir uma visão global da linguagem, Bakhtin vai definir como porta de entrada para o estudo da linguagem não o conhecimento acerca das regras sintáticas, léxicas ou normas gramaticais, mas o uso desses elementos em contextos particulares. Clark e Holquist (1998) apontam que a estratégia adotada por Bakhtin/Volochinov (1929) para explicar o funcionamento da linguagem do ponto de vista do uso que dela faz o falante em situações específicas é por em foco o único traço universal presente na variedade de contextos possíveis: o lugar constituído pelo falante e seu destinatário. Para os linguistas americanos, essa estratégia resolve: [...] a velha e aparentemente intransponível dicotomia entre as feições obviamente sistemáticas da linguagem, como a sintaxe, a gramática ou os significados relativamente fixos das palavras, e seus contextos não sistematizáveis, que interagem com tais aspectos estáveis em qualquer conversação efetiva, reduzindo as diferenças entre eles a outro conjunto de diferenças, as quais ocorrem entre locutores específicos em situações particulares (CLARK; HOLQUIST, 1998, p. 235). O apontamento dos linguistas americanos demonstra a importância do contexto extraverbal na perspectiva linguística do círculo. Bakhtin (2010 [1952-53]) explica, por exemplo, que na comunicação cotidiana, as formas comunicativas são mais diretamente dependentes dos contextos, já a comunicação institucionalizada possui certa autonomia, em termos, do contexto extraverbal que pode ser recuperado, por outro lado, por sua plasmação no próprio material verbal. Para Bakhtin/Volochinov (1926), o contexto extraverbal se explica pela interrelação de três fatores: o espaço comum dos interlocutores (o lugar); o conhecimento partilhado da situação (a temática); a avaliação comum desta situação (valoração). Esses elementos não determinam de forma mecânica as formas comunicativas, mas: A situação se integra ao enunciado como uma parte constitutiva essencial da estrutura de sua significação. Consequentemente, um enunciado concreto [...] compreende duas partes: [1] a parte percebida ou realizada em palavras e (2) a parte presumida. É nesse sentido que o enunciado concreto pode ser comparado ao entimema. [...] Julgamentos de valor presumidos são [...] não emoções individuais, mas atos sociais regulares e essenciais. Emoções individuais podem surgir apenas como sobretons acompanhando o tom básico da avaliação social. O “eu” pode realizar-se verbalmente 29 apenas sobre a base do nós (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926, p. 910). A citação acima além de nos dar uma ideia de como o contexto extraverbal se faz presente nas formas comunicativas aponta também para a importância da valoração social na constituição dos enunciados verbais, que nas interações cotidianas vai se marcar pelo tom de voz e nas institucionalizadas pelas marcas estilísticas. É interessante observar que o índice de valor está sempre orientado para o “outro”, pois, por meio da entonação, as pessoas exprimem um juízo acerca da temática objetificada no discurso. Reafirmamos que o Círculo de Bakhtin tinha sempre em vista um pensamento concreto acerca da linguagem assentada na relação entre um “eu” e um “outro”. Poderíamos dizer que essa guinada visada pelo círculo dá vida à linguagem, torna-a humana, pois coloca o homem social no centro da organização e do funcionamento da linguagem. Esse entendimento baliza a construção do conceito de dialogismo que, a nosso ver, constitui a arquitetônica do projeto discursivo de quaisquer dizeres, isso porque nossos discursos estão sempre ligados a outros discursos numa relação dialógica contínua. Assim, o dialogismo não deve ser compreendido apenas como referente à linguagem, mas também aos indivíduos. Ao dizermos isto, estamos considerando que, ao enunciar, o indivíduo apóia-se em outros discursos para constituir-se, quer dizer, esse “eu” está constituído por uma coletividade, os “outros”. A partir dessas ideias, o pensador russo completa que a marca do enunciado (unidade da comunicação verbal) é a “alternância dos sujeitos do discurso, que cria limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida [...]” (BAKHTIN, 2010[1952-53/1979], p. 275). Assim, a cada situação de interação, ouvimos os discursos respondendo uns aos outros e nisso consiste o dialogismo da linguagem — resposta aos discursos dos outros. O caráter relacional da linguagem nos encaminha para outro conceito no que se refere aos diálogos com o outro tendo em vista a afirmação do autor de que, na comunicação discursiva, “os ecos de alternância dos sujeitos do discurso e das suas mútuas relações dialógicas se ouvem nitidamente” (BAKHTIN, 2010[1952-53/1979], p. 299). Bakhtin (2010[1934-35]) trabalha um conceito muito importante que incide diretamente na natureza dialógica da linguagem: o de vozes do discurso. Nessa 30 perspectiva, o dialogismo da linguagem é estruturado a partir da articulação de diferentes vozes instauradas na produção discursiva. A respeito das vozes, o autor vai defini-las como sentidos sociais, visões de mundo ou pontos de vista objetificados nos discursos (BAKHTIN, 2010 [1959-61]. As relações dialógicas são sentidos divididos entre vozes diferentes, isto é, implicam sempre a presença inerente de outras posições ou sujeitos integrais socioculturalmente situados. Por isso, para Bakhtin: [...] não existem palavras sem voz, palavras de ninguém. Em cada palavra há vozes às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais (as vozes dos matizes lexicais, dos estilos, etc.), quase imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente (BAKHTIN, 2010[1959-61], p. 330) Com base na citação acima, podemos afirmar que a alteridade ou outridade na concepção discursiva bakhtiniana se radicaliza, pois os lugares enunciativos se desdobram em multiplicidades de vozes ouvidas em um mesmo lugar: o texto/discurso. A esse respeito, Bakhtin (2010[1959-61]) afirma que pode haver um número ilimitado de participantes do discurso, pois os sentidos estão divididos em no mínimo duas vozes e uma terceira em potencial nas criações verbais. Em razão disso, precisamos aprender a ouvir as vozes dos textos/discursos. Assim, uma das vozes a se ouvir no texto é a do destinatário suposto, cuja compreensão responsiva o autor do discurso procura e antecipa através da forma e do conteúdo do que é dito. Podemos também ouvir a voz do destinatário real que lê efetivamente o texto. Ainda que este seja uma instância posterior à escrita, Amorim (2002) observa que ele também participa da construção do sentido uma vez que o trabalho de interpretação resulta em um segundo texto em relação ao qual o primeiro poderá fazer sentido. Além disso, o fato de este destinatário se constituir em uma instância posterior não o anula enquanto elemento interior do discurso uma vez que a vida de um texto reside justamente em sua circulação. Bakhtin também se refere à voz de um supradestinatário. Este se diferencia do destinatário suposto no que diz respeito ao tempo e ao espaço do texto. O destinatário suposto insere o texto em um tempo e espaço imediatos, enquanto o supradestinatário projeta o texto na grande temporalidade imprevisível, futura, em uma dimensão universalizante onde o texto poderá ser recepcionado e até mesmo 31 reconstruído de outra forma. Bakhtin observa que este supradestinatário funciona como uma “escapatória para a escuta” uma vez que, sendo a natureza da palavra de querer sempre ser ouvido, esse supradestinatário funcionaria como um valor, uma verdade estabelecida (a crença, a verdade da Ciência, etc.). Nisso reside a importância dessa instância cuja compreensão idealmente verdadeira o autor espera a fim de fugir da limitação da compreensão imediata. Outra instância da qual se pode ouvir a voz é o lugar do objeto discursivo. Isso porque, ele não se torna objeto do discurso pela primeira vez em um dado enunciado nem um dado autor é o primeiro a falar sobre ele. Para Bakhtin (2010[1952-53]), o objeto chega ao autor já ressalvado, contestado, valorado e avaliado de diferentes modos, ou seja, encontra-se impregnado de apreciações ideológicas de outros lugares discursivos. O objeto discursivo é um palco de encontro de opiniões, visões de mundo, correntes, teorias etc., por isso, o autor diz que o discurso é uma arena e o sentido não é um lugar confortável. Outra voz que precisa ser ouvida, no texto, é da instância do autor-criador. Bakhtin (2010[1934-35]) insiste que é preciso distinguir a voz do autor representado no discurso da do autor-criador. Para o filósofo russo, o autor representado (aquele que relata o acontecimento) faz parte da criação do autor-criador, já este não pode ser encontrado no que relata o autor representado, mas na tangente do espaçotempo representados, no ponto crucial onde convergem forma e conteúdo do texto, precisamente na sua própria atividade. Amorim (2002) pontua que a voz da instância do autor-criador pode ser encontrada quando se consegue identificar a relação entre o que é dito e a forma como foi dito uma vez que, como um lugar enunciativo, a voz do autor traz em si sempre um olhar, um ponto de vista que articula o texto do início ao fim. A autora ainda acrescenta que essa distinção é condição para o trabalho de análise do texto, pois, se diante de um discurso, pensa-se que todo o dito está presente no enunciado, resulta-se em nada para analisar. Ainda ligadas à configuração do conceito de vozes, deparamo-nos com duas questões centrais na obra do círculo de Bakhtin: a questão do discurso monológico e a questão do discurso dialógico. O primeiro pressupõe uma orientação univocal e o segundo plurivocal. Para se pensar essas questões que poderiam apontar para uma contradição no pensamento bakhtiniano tendo em vista a condição de possibilidade 32 de todo discurso, Amorim (2002) observa que é preciso visualizar dois níveis de análise na obra bakhtiniana: um histórico-orgânico e outro composicional. O primeiro diz respeito à condição de possibilidade de todo discurso que é de ser constitutivamente dialógico (e aqui o termo monológico não faz sentido), o segundo refere-se a formas de escrita e composição dos textos, processo pelo qual as vozes podem se deixar mais ou menos ouvir. Neste nível, a forma como o texto é escrito e composto pode deixar aflorar mais vozes ou apagar a dimensão de alteridade do discurso para deixar emergir uma única voz: a do autor. Naquele, a configuração do discurso é feita de forma que se deixe ouvir mais plenamente a orquestração de vozes que o estruturam. Brait (1994, p. 14-15), ao perseguir o conceito de vozes na obra de Bakhtin, afirma que a bivocalização é um fenômeno comum ao discurso e descarta qualquer possibilidade de univocalização, por isso, as palavras vindas de outrem “tecem o discurso individual de forma que as vozes – elaboradas, citadas, assimiladas ou simplesmente mascaradas – interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a ficar nas sombras autoritárias de um discurso monologizado”. Do ponto de vista acima explicitado, as formas de discurso monológico são importantes no trabalho de análise para auxiliar a entender os discursos dogmáticos, por exemplo. Amorim (2002, p. 12), ao pensar a questão das vozes e do silêncio no texto, observa que, sendo os textos sempre híbridos, na análise, “o interessante é poder identificar em que lugar ele é monológico e em que outro ele é dialógico, e quais são os efeitos de sentido que essa disposição de vozes produz”. Dimensionado dessa maneira, evitaríamos reduzir o conceito de vozes à condição de citatividade como muitas vezes é feito, conforme pontua Brait (1994). A intensidade do conceito de vozes, em Bakhtin, reside na tensão interior à palavra do indivíduo e, conforme sugere Amorim (2002), para ouvi-las, é preciso silenciar todo diálogo exterior, aspecto que o diferencia de uma abordagem interacionista. Podemos reafirmar que a realidade da linguagem são os acontecimentos concretos ligados entre si por relações dialógicas de sentido subjacentes às quais ouvimos sempre ressonâncias de múltiplas vozes. As relações dialógicas possuem diferentes graus que devem ser considerados em sua especificidade. Elas podem ser intencionais quando, por exemplo, confrontamos autores que não se leram, mas cujos discursos possuem pontos de contatos. Podem ser também não intencionais na forma de múltiplas vozes que habitam o discurso interno do sujeito, determinando 33 um dialogismo incessante uma vez que os elementos históricos, sociais, culturais e linguísticos atuam na formação da subjetividade do sujeito e afloram dialogicamente em suas manifestações discursivas. Chegamos a um ponto da dimensão de vozes, depreendidas aqui como percepções de mundo realizadas através do discurso, bastante importante para pensarmos sobre as formas de transmissão ou assimilação da palavra do outro. Bakhtin (2010[1934-35], pp. 142-144) define duas posturas ideológicas de apropriação da palavra alheia: a palavra autoritária e a palavra internamente persuasiva. O autor menciona a palavra do pai, da política, da religião, da moral, dos adultos, dos professores como autoritária, cuja característica é a exigência de reconhecimento incondicional em detrimento da compreensão e assimilação livre em nossas próprias palavras. Além disso, essa postura não permite nenhum jogo com o contexto que a enquadra, adentrando a consciência verbal como uma massa compacta que exige confirmação ou recusa total. Já a palavra persuasiva é definida como carente de e avessa à autoridade, às vezes, desconhecida da opinião pública, da ciência, da crítica. Ela aparece com o surgimento do trabalho independente e seletivo do pensamento, momento em que se separa da palavra autoritária imposta e das indiferentes que não nos tocam. A importância da palavra interiormente persuasiva consiste em despertar o pensamento para a autonomia e por funcionar num inter-relacionamento tenso e conflituoso entre o sujeito e as outras palavras persuasivas bem como por não ser conhecida, está permanentemente aberta a novas revelações semânticas em cada novo contexto dialógico (BAKHTIN, 2010[1934-35], 145-6). Assim, assumir uma perspectiva dialógica é poder ensinar e aprender com esse outro, ser dialógico é apreender o mundo em constantes mudanças, pois vivemos no pensar, agir e fazer em que nada se conclui por completo, sempre há possibilidade de modificar, melhorar, relacionar e criar novos sentidos. Anteriormente, referindo-se à educação linguística, Bakhtin vai afirmar que O ensino de disciplinas verbais conhece duas modalidades básicas escolares de transmissão que assimila o discurso de outrem (do texto, das regras, dos exemplos): “de cor” e “com suas próprias palavras” [...] Esta segunda modalidade de transmissão escolar da palavra de outrem “com nossas próprias palavras” inclui toda uma série de variantes da transmissão que assimila a palavra de outrem 34 em relação ao caráter do texto assimilado e dos objetivos pedagógicos de sua compreensão e apreciação (BAKHTIN, 2010[1934-5] p. 142). Gostaríamos de, com base na citação acima, fechar essa seção questionando-nos sobre como e qual tem sido a forma de recepção da palavra/texto na escola: “de cor” ou “com suas próprias palavras”? Se nos basearmos na tradição do discurso pedagógico cuja função institucional tradicional tem sido transmitir o conhecimento acumulado pela humanidade às gerações futuras, é bem provável que a primeira forma tenha sido privilegiada, mas, se pensarmos nas demandas socioculturais para a educação linguística no contexto atual, que exige flexibilidade e criatividade no trato ético e crítico com os discursos, concluiremos que um aprendizado “de cor”, modelar, prescritivo e até mesmo instrumentalizado não dá conta de educar para o nosso tempo, conforme pontua Rojo (2008, p. 96-97). A assimilação da palavra do outro “com suas próprias palavras” requer autores e leitores de textos/discursos com capacidade crítica e responsável para a resposta ativa, para a compreensão criadora dos discursos dos outros em sua historicidade e dialogismo constitutivo, para o que a concepção de gêneros discursivos do círculo de Bakhtin traz importantes contribuições. 1.3 Gêneros discursivos e a autoria Para pensarmos o conceito de gêneros discursivos na perspectiva de Bakhtin e seu círculo é importante nunca perdermos de vista o princípio do dialogismo que traz em sua essência noções de alteridade, responsabilidade, réplicas e apreciações de valores sociossituadas, bastante exploradas nas seções anteriores. Um ponto de partida para refletir sobre o conceito de gêneros discursivos é pensar sobre o lugar de produção destes, apresentado no pensamento bakhtiniano como esferas específicas de atividade humana. 35 Segundo Bakhtin (2010 [1951-1953/1979], p. 279), cada esfera de atividade humana produz seus discursos específicos, nos quais mostram as condições e as finalidades para as quais eles foram constituídos. Podemos dizer que todo discurso apresenta marcas da esfera de comunicação à que pertence. Essas esferas podem ser identificadas como espaços de relações específicas como a escola, a igreja, o trabalho em um jornal, a política, a família etc., enfim, as organizações socioideológicas e culturais dos grupos humanos. Dessa maneira, pode-se dizer que só se age na interação e o agir motiva em determinadas condições o surgimento de certas formas de interação que, com o tempo, vão se estabilizando relativamente, se modificando de acordo com o fluxo de atividade desses espaços. A essas formas de interação discursiva, momentaneamente estabilizadas, Bakhtin vai denominar de gêneros discursivos (2010[1952-53]). A noção de gênero discursivo é tão importante que Bakhtin e Medvedev (1928) vão afirmar que a realidade a nós acessível é aquela permitida pelo gênero discursivo. Os gêneros discursivos funcionam como um filtro através do qual visualizamos a realidade da vida social. Então, nós apreendemos a linguagem por meio dos gêneros discursivos, os quais são tão diversos que, às vezes, os utilizamos sem mesmo pensar em sua existência. Até mesmo no bate-papo mais descontraído e livre nós moldamos o nosso discurso por determinadas formas de gênero, às vezes padronizadas e estereotipadas, às vezes mais flexíveis, plásticas e criativas (a comunicação cotidiana também dispõe de gêneros criativos). Esses gêneros nos são dados quase da mesma forma que nos é dada a língua materna, a qual dominamos livremente até começarmos o estudo teórico da gramática. A língua materna – sua composição vocabular e sua estrutura gramatical não chegam ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam (BAKHTIN, 2010[1952-53/79], p. 282-283). Para Bakhtin, essa diversidade não é um problema em si, mas é própria da natureza da linguagem. Ele, na verdade, não estava preocupado com classificação, dividindo os gêneros discursivos por dois grandes domínios socioculturais — 36 primários e secundários — apenas para uma amostra das duas grandes diferenças de organização da vida discursiva. Os gêneros primários seriam os acontecimentos sociais ligados a situações do cotidiano, estão imersos numa atmosfera socioideológica dispersa e sem acabamento aparente. São as situações de comunicação discursiva imediata e flexível, por isso tendem a refletir de forma mais rápida e direta as mudanças sociais. Já os gêneros secundários estão inseridos em espaços de interação socioideológicos organizados, ocorrem situações de comunicação cultural “mais complexa” e ancorada, em sua maioria, na palavra escrita. Essa última constatação, porém, não pode ser generalizada uma vez que um bilhete para uma diarista solicitando eficácia nas atividades domésticas do dia não é considerado um gênero secundário, pois não requer nenhum trabalho de elaboração complexa. Sobral (2009) faz referência às esferas e aos gêneros discursivos, afirmando, em seu texto, que as esferas são espaços construídos por meio da vivência sóciohistórica, ideológica, cultural de um povo, enfim, de acordo com o mundo relacional dos sujeitos. Portanto, os lugares de atuação humana nos remetem ao contexto ou condições de produção, circulação e recepção dos discursos, pois todas as esferas da atividade humana, mesmo repletas de diversificações, variações e possibilidades, estabelecem regras próprias de utilização da língua em seu âmbito. Conforme pontuamos anteriormente, o autor tem um projeto discursivo a realizar, mas, por outro lado, esse desígnio vai se concretizar tomando como referência uma forma de interação pré-dada de acordo com o lugar que ele assume para enunciar. Sobre isso, Bakhtin (2010 [1952-1953/1979], p. 282) diz que A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela composição pessoal dos seus participantes. (BAKHTIN, 2010, p. 282) Podemos retomar aqui, com base na última citação, a questão da autoria em Bakhtin, que implica uma posição axiológica detentora de um projeto discursivo endereçado a outros (outros presentes na temática/conteúdo e nos destinatários presumidos nas respostas futuras). Para Bakhtin “as escolhas dos meios linguísticos e dos gêneros de discurso é determinada, antes de tudo, pelas tarefas (pela ideia do 37 sujeito do discurso [ou autor]) centradas no objeto e no sentido” (2010[195253/1979], p. 289). Desse modo, entendemos que o eu nunca enuncia de forma isolada, sua vontade discursiva tem um interlocutor, o qual será projetado em seu enunciado, seja no esquema de um gênero, seja no projeto individual de discurso (BAKHTIN, 2010[1952-53/1979]). Portanto, o querer dizer do autor está orientado à temática e ao destinatário, os quais influenciarão a escolha do gênero no qual o objeto do discurso e seu sentido serão materializados. Trata-se de uma relação bilateral, cujas partes estão intrinsecamente vinculadas, o desígnio autoral precisa de um gênero para se concretizar, o gênero necessita dessa sua retomada em contextos específicos e singulares para se atualizar. O gênero funciona como uma ponte entre o conteúdo da vida vivida e a linguagem constantemente renovada sempre que é utilizada em discursos concretos. No ensaio “Os gêneros do discurso” (1952-53), Bakhtin refere-se ao evento de atualização situada da linguagem como enunciado concreto, definido como a unidade real da comunicação discursiva. Anteriormente, no ensaio “Discurso na vida e discurso na arte” (1926), Bakhtin e Volochinov vão afirmar que neste evento já se encontram implicados o ato de enunciação (o processo) e o enunciado (o produto, o objeto discursivo resultante). Como o processo de produção e compreensão dos discursos implica sempre condições sócio-históricas precisas de interação dialógica, na perspectiva bakhtiniana não se faz distinção entre enunciação e enunciado. No ensaio de 1952-53, Bakhtin assinala que dois elementos precisamente determinam o texto como enunciado: a sua intenção discursiva e a realização dessa intenção, o que remete à presença inerente de um autor, portanto, todo texto/discurso tem um sujeito, possui um autor. Dois aspectos importantes para entender essa relação no âmbito dos gêneros discursivos são a conclusibilidade e a expressividade. O primeiro determina o tom a ser dado no discurso pelo falante, isso porque o eu, ao enunciar, deverá escolher, por exemplo, quais recursos lexicais, gramaticais, temáticos e composicionais serão usados para caracterizar seu enunciado numa dada situação comunicativa. O segundo diz respeito à, “relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do objeto e do sentido do seu enunciado” (BAKHTIN, 2010[195253/1979], p. 289). 38 A conclusibilidade é o processo interno da alternância dos sujeitos do discurso, quer dizer, é a resposta ativa do “outro” para o “eu”. Esse conceito reafirma que a natureza dos discursos está relacionada às relações dialógicas, pois todo e qualquer falante tem um objetivo ao proferir ou ao escrever um texto/enunciado em uma situação comunicativa. Mas, para que essa resposta seja dada pelo outro, é necessário que o todo do enunciado tenha alguma conclusibilidade ou acabamento. Bakhtin (2010[1952-53]) aponta que o acabamento do enunciado, que favorece a possibilidade de resposta (ou de compreensão responsiva), compreende três elementos: 1) exauribilidade do objeto e do sentido; 2) projeto de discurso ou vontade discursiva do autor; 3) formas típicas composicionais e de gênero do acabamento. Esses elementos revelam que a conclusibilidade é específica e determinada por características particulares. Para efeito de compreensão desses três elementos, falaremos brevemente sobre eles. O primeiro elemento ─ a exauribilidade ─ está relacionado ao tratamento da temática pelo autor e pelos participantes em uma situação comunicativa. É interessante pontuar que a exauribilidade está restrita àquilo que o autor projetou dizer uma vez que as possibilidades da temática são inesgotáveis tendo em vista estar inserida no fluxo constante da corrente da comunicação discursiva. O autor imprime ao seu querer dizer sua expressividade, sua orientação valorativa, e o tratamento exaustivo do objeto e do sentido depende das possibilidades de acabamento para a temática. Entretanto, em determinados contextos, certos gêneros da esfera oficial (pedidos, ordens, ofícios) têm uma natureza padronizada, favorecendo a exauribilidade plena. Já em outras esferas, por exemplo, a acadêmica (como em uma tese), há um acabamento mínimo suficiente para suscitar respostas, mas “o objeto é objetivamente inexaurível” (BAKHTIN, 2010[1952-53/1979], p. 281). Dessa maneira, afirmamos que o tratamento exaustivo semântico-objetal da temática apenas evidencia que o autor expressou sua apreciação valorativa dentro dos limites estabelecidos pelo contexto no qual está inserido como também pelo seu projeto discursivo. Este é o segundo elemento importante para a conclusibilidade. O projeto discursivo de um autor organiza-se a partir da relação que ele mantém com a temática e com o que os destinatários pensam acerca dessa relação em um contexto específico. Nesse sentido, quando nós nos questionamos em saber o que o autor quis dizer estamos medindo a conclusibilidade do enunciado. A 39 vontade discursiva do autor determina a amplitude e as fronteiras da temática e as formas estáveis do gênero, no qual seu discurso será construído. Desse modo, os participantes da comunicação, que são orientados pela situação e pelos discursos anteriores, “abrangem fácil e rapidamente a intenção discursiva, a vontade discursiva do falante, e desde o início do discurso percebem o todo do enunciado em desdobramento” (BAKHTIN, 2010[1952-53/1979], p. 282). O último elemento ─ formas estáveis do gênero ─ determina a forma como o autor projetará seu querer dizer em um dado gênero. A escolha do gênero de discurso acontece em virtude das especificidades da situação concreta da qual o autor e seus interlocutores participam. Assim, é necessário selecionar o gênero levando em consideração a esfera da atividade humana, as temáticas que podem ser ditas para esse contexto como também o perfil dos participantes envolvidos nessa situação concreta da comunicação discursiva. Essa particularidade do processo comunicativo reafirma que nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas, as quais caracterizam determinados gêneros do discurso. Segundo Bakhtin (1952-53), essa estabilidade relativa dos gêneros discursivos é mais facilmente percebida do ponto de vista temático, composicional e estilístico. O conteúdo temático, muitas vezes, é confundido com o assunto específico de um texto, mas, na verdade não é isso, o ponto de vista temático é um domínio de sentido de que se ocupa o gênero. O autor caracteriza como sendo o conteúdo presente no enunciado concreto, que reporta sempre à produção de sentidos referentes a um determinado contexto. A construção composicional é expressa na obra de Bakhtin como o modo de organizar, compor, estruturar o conteúdo de um texto/discurso no material linguístico. A respeito desse elemento do gênero, remetemos às nossas considerações sobre a questão em seções anteriores. Não podemos nos esquecer de que a apreciação valorativa do autor sobre a temática do que pode ser dizível, sobre seus interlocutores podem e vão determinar a forma composicional e os estilos dos enunciados. O estilo é apresentado como as escolhas efetuadas nos elementos da língua de forma adequada ao nosso “querer dizer discursivo”. Bakhtin (1952-53) fala em estilo de gênero e estilo de autor. O estilo de gênero diz respeito aos elementos linguísticos — elementos lexicais, estruturas sintáticas, semânticas — que, devido às 40 características da temática do gênero, são costumeiramente mobilizados em sua produção. Tomamos, por exemplo, a questão da temática e do tempo/espaço nos gêneros da narrativa que, geralmente, exigem verbos no passado imperfeito para relatar os acontecimentos anteriores ao tempo da narrativa e no passado perfeito para os acontecimentos do tempo da narrativa em si. O estilo não é assim um mero momento técnico ou atualização da gramática, mas é a unidade de materialização da temática, tendo por base, tal a forma composicional, a orientação valorativa do autor para os participantes do discurso. Em outras palavras, o estilo está vinculado ao conteúdo de um discurso e a sua maneira de organização, não são apenas desvios de normas, conforme pontuam Bakhtin/Volochinov “O estilo é o homem”, dizem; mas poderíamos dizer: o estilo é pelo menos duas pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu grupo social na forma do seu representante autorizado, o ouvinte o participante constante na fala interior e exterior de uma pessoa. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926, p. 17). Como podemos observar, o estilo é engendrado a partir da posição axiológica do autor do ponto de vista de um grupo social de que participa e ele implica também o envolvimento da imagem social de um ouvinte/destinatário. O estilo, portanto, ultrapassa os meros limites gramaticais e frasais, pois ele vence a resistência desse material linguístico pela ciência do autor de estar envolvido de forma integrada em uma atividade de selecionar, determinar, construir e dar acabamento a um todo discursivo/enunciado concreto. Em suma, o estilo é determinado pelas avaliações valorativas do autor e do interlocutor (leitor), em função do objeto do discurso. Podemos dizer que o estilo aponta para um tipo de aliança entre a forma composicional e a do conteúdo temático. É claro que tudo vai se juntar à inteireza da experiência de cada sujeito, que aponta para a atitude que deve ser coletivamente construída e desenvolvida a partir do contato com os dizeres do “outro”. É bem verdade que nem todos os gêneros retratam o estilo do autor, como é o caso daqueles gêneros padronizados, que não aceitam modificações em sua forma, a exemplo da petição e da ata que circulam na esfera jurídica. Em suma, pensar a linguagem do ponto de vista da linguística enunciativodiscursiva é ver esse fenômeno em sua dinamicidade socioideológica e cultural em seus contextos de uso para os quais os códigos e as estruturas linguísticas precisam 41 ser flexíveis e adequadas aos desígnios da criação autoral. A nosso ver, a criação autoral no âmbito dos gêneros discursivos é um elemento importante para pensar a produção discursiva. Esse, por exemplo, é o nosso interesse neste trabalho por meio do qual objetivamos analisar a linguagem em uso em processo de ensinoaprendizagem escolar, tendo como foco principal as relações de alunos com a produção de texto a partir das quais buscaremos entender em que medida os materiais didáticos da Olimpíada de Língua Portuguesa interferem ou contribuem para a formação do aluno-autor. CAPÍTULO II O Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa: Um olhar para a produção escrita [...] não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente [...]. (SOARES, 1998 p. 20) No capítulo 2, faremos uma breve apresentação das concepções de ensinoaprendizagem de língua materna, tomando como base as proposições teóricas cognitivas, textuais, socioculturais e discursivas que surgem a partir das viradas pragmáticas e discursivas nos estudos linguísticos. Nosso objetivo principal é mostrar as diversas perspectivas da escrita assumidas nessas proposições e suas refrações nos documentos oficiais, como os PCNLP, e nos materiais didáticos como os cadernos de sequências didáticas da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro. O ensino de Língua Portuguesa é dividido em: leitura, produção de texto, gramática, oralidade. Estes conteúdos ora são trabalhados de forma interligada, ora são tomados como objetos de ensino independentes. Isso pode ser observado nas aulas e em materiais didáticos, que assumem determinadas perspectivas teóricas para o ensino da língua materna. Por essa razão, afirmamos que a concepção de linguagem ─ a interação social ─ levou a mudanças significativas nesses conteúdos 42 da Língua Portuguesa como também os métodos de ensino também foram repensados e discutidos a partir de outras teorias de ensino-aprendizagem. No que se refere ao ensino da escrita e leitura, os anos 80 e 90 foram marcados por grandes transformações na educação, em que vários projetos foram criados para dar suporte ao professor e avaliar o ensino existente nesse período. Uma das preocupações, nesse sentido, foi que grande parte dos alunos não dominava certas capacidades de leitura e escrita fundamentais para participarem ativamente na sua realidade social. Essa preocupação fez com que esses objetos de ensino recebessem atenção da Academia, pois os pesquisadores entendiam que apenas saber ler e escrever não era suficiente para formação do ser cidadão, mas era preciso saber fazer uso eficaz da leitura e da escrita de forma que respondesse às expectativas sociais, considerando que a escola objetivava uma formação mais autônoma, mais cidadã. Em vista disso, um dos principais objetivos da escola, naquele momento, era permitir que os objetos de ensino previstos para cada etapa escolar tivessem relação com a realidade social dos alunos a fim de que eles, em quaisquer práticas sociais, soubessem fazer usos das práticas de linguagem. Segundo Rojo (2002, p. 2), as práticas de linguagem são uma noção de ordem social, que implica a inserção dos interlocutores em determinados contextos ou situações de produção, a partir dos quais, tendo a linguagem como mediadora, os agentes sociais estabelecem diferentes tipos de interação e de interlocução comunicativa, visando diferentes finalidades comunicativas e a partir de diversificados lugares enunciativos. Para a participação plena, os alunos precisarão ter experiências, conhecimento a respeito dessas práticas e, para isso, Geraldi (2006[1984], p. 44) nos faz uma importante reflexão acerca das nossas práticas: [...] que tipo de aluno queremos desenvolver: aquele que tem domínio da língua através do uso diário, concreto fortalecido pelas interações do cotidiano que domina a língua falada em situações práticas e concretas ou aquele aluno que sabe analisar e dominar conceitos a partir dos quais se falam sobre a língua de forma estrutural. Nesse sentido, dizemos que o ensino da Língua Portuguesa deve ser compreendido como um processo contínuo da apropriação de práticas sociais, cuja 43 materialização dá-se por meio de textos orais e escritos que circulam em espaços públicos e formais. Ao assumirmos tal posicionamento, objetivamos, neste capítulo, discorrer sobre o ensino da Língua Portuguesa, sobretudo, a produção textual. Para isso, discutiremos as influências dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Além disso, buscaremos relacionar a escrita à noção de autoria como também a escola de gêneros de Genebra (BUNZEN, 2004) à teoria vigotskiana. 2.1 Escrita, diferentes perspectivas através do tempo, dentro dos estudos linguísticos e da Linguística Aplicada Rojo e Cordeiro (2004) e Rojo (2005) afirmam que os processos investigativos da produção textual e de seu desenvolvimento e aprendizado têm como base teórica as perspectivas cognitiva e textual. A abordagem cognitivista de memórias de longo prazo a qual armazena os esquemas de conhecimento para o processo de produção de texto privilegiou os processos mentais internos do sujeito, desconsiderando a natureza sociointerativa da linguagem. Já a abordagem textual buscou, inicialmente, compreender o processo interacional envolvido na produção textual, em que há sujeitos envolvidos na sua elaboração. Essas perspectivas teóricas estavam buscando dar outro tratamento didático para os conteúdos previstos para as aulas de Língua Portuguesa, pois houve um deslocamento de análise: da frase para o texto, e, posteriormente, para o texto em seu contexto de uso. Essa mudança de perspectiva constituiu a virada pragmática nas décadas de 70 e 80. Em outras palavras, a virada do estudo da linguagem em uso e contextualizada. A teoria cognitivista, segundo Guimarães (2009, p. 63), centrou seus estudos nos “mecanismos mentais do sujeito, buscando estabelecer padrões abstratos e universais para a produção de textos”. Essa abordagem favoreceu a elaboração de atividades que privilegiavam as etapas da escrita: contexto, planejamento, edição e revisão de uma produção. Em vista disso, a etapa do planejamento, da elaboração e da revisão do texto passaram 44 a ter espaço nos estudos e nas atividades em sala de aula (GUIMARÃES, 2009). São representantes dessa vertente teórica Flower e Hayes (1979; 1980). A teoria textual está relacionada à Linguística Textual, cujo surgimento deu-se a partir da década de 60, na Europa e nos Estados Unidos. Os estudiosos dessa corrente teórica tomaram o texto como objeto de investigação e deram outro tratamento para a língua, pois passou a ser estudada no texto e não apenas como estrutura. Os precursores da Linguística de Texto são Weireich (1964; 1976), Harweg (1968), Isenberg (1970), Lang (1971; 1972), Dressler (1972; 1977), Dijk (1972;1973), Halliday e Hasan (1973), Petöfi (1972; 1973) entre outros. Na Linguística Textual, os pesquisadores estavam mais preocupados em investigar “a constituição, o funcionamento, a produção e a compreensão dos textos em uso” (BENTES, 2011[2000], p. 251), já que diversos fatores, como linguísticos, cognitivos, socioculturais, interacionais eram preponderantes para o estabelecimento de sentido de qualquer texto. Seus principais representantes são Charolles (1987), Dijk (1992), Beaugrande (1984), Beaugrande & Dressler (1981) e no Brasil temos Koch (1987; 1988), Fávero e Koch (1983; 1988), Guimarães (1987), Costa Val (1991), Bastos & Mattos (1986), Bastos (1994), Geraldi (1984; 1991), Ramos (1997). Acreditamos que os pesquisadores brasileiros contribuíram para que o texto fizesse parte das aulas de Língua Portuguesa, embora, inicialmente, foi tomado apenas como suporte para o desenvolvimento de habilidades para a produção textual (ROJO; CORDEIRO, 2004). De forma ilustrativa, remete-nos às práticas de produção de texto em que havia preocupação em estabelecer modelos prototípicos – padronizados - para os alunos, pois cabia ao professor e aos autores de materiais didáticos fornecerem modelos de estruturas (introdução, desenvolvimento, conclusão) para um determinado tipo de texto, por exemplo, o dissertativo. Apesar dessa virada pragmática – pelo uso da linguagem -, observamos que os textos ainda são tomados numa abordagem estrutural (introdução, desenvolvimento, conclusão). Esse modo de ensinar textos na sala de aula com enfoque nas suas propriedades oferecia: conceitos e instrumentos que generalizavam as propriedades de grandes conjuntos de textos (tipos), abstraindo suas especificidades e propriedades intrínsecas em favor de uma classificação geral (tipologias), que acabava por preconizar formas globais nem sempre 45 compartilhadas pelos textos classificados (ROJO; CORDEIRO, 2004, p. 9). Essa visão para o ensino da escrita é tradicional, pois está fundamentada na estrutura dos textos e enfatiza-se o domínio da tipologia textual (dissertação, narração e descrição) para todo e qualquer texto, desconsiderando as diferentes linguagens que podem ser observadas, por exemplo, em HQs, charges, anúncios e tirinhas, nos textos orais etc. Além disso, esse enfoque nas propriedades do texto originou “a gramaticalização dos eixos do uso, passando o texto a ser ‘pretexto’ não somente para um ensino da gramática normativa, mas também da gramática textual, na crença de que ‘quem sabe as regras sabe proceder’” (ROJO; CORDEIRO, 2004, p. 9). Dessa forma, a prática de produção de texto era simulada, pois havia mais preocupação com a forma e concordamos com Geraldi (2002[1984], p. 128) que “na escola não se produzem textos em que o sujeito diz sua palavra, mas simula-se o uso da modalidade escrita, para que o aluno se exercite no uso da escrita, preparando-se para de fato usá-la no futuro.” Isso reafirma a questão de que o texto era visto como objeto de uso, mas não como material de língua viva de ensino. Com isso, a interlocução no processo de construção de práticas discursivas ficou durante muito tempo em segundo plano. Por essa razão, Rojo e Cordeiro (2004, p. 10) tecem crítica à abordagem textual no que se referem às práticas ligadas ao uso, à produção e à circulação dos textos por desconsiderar o contexto de produção e de leitura, pois, para o ensino de leitura objetiva-se a “extração de informações (explícitas e implícitas) mais do que uma leitura interpretativa, reflexiva e crítica”, já no ensino da produção, os alunos são guiados “pelas formas e pelos conteúdos mais que pelo contexto e pelas finalidades dos textos.” Tais práticas receberam críticas, porque condicionaram o aluno ao levantamento de informações e a repetir estruturas de textos. Assim, inúmeras discussões na década de 80 e 90 foram realizadas em torno do enfoque dos textos e de seus usos em sala de aula, pois os pesquisadores chegaram à conclusão de que era preciso, por conta desse fracasso escolar, outra perspectiva teórica que possibilitasse aos objetos de ensino da Língua Portuguesa ─ redação, leitura e gramática ─ uma prática direcionada à questão discursiva, oportunizando aos alunos uma abordagem mais interativa, a fim de que eles, por 46 exemplo, ao produzirem um texto, pudessem se assumir como autores, o que implica: “ter o que dizer; ter razões para dizer o que tem a dizer, ter para quem dizer; assumir-se como sujeito que diz para quem diz e escolher estratégias para dizer” (GERALDI, 1997[1991], p.160-161). Esse posicionamento revela que a produção textual deve ser uma prática sociossituada, levando os alunos a compreenderem a importância da situação de produção para uma participação mais autônoma nas diferentes situações de interlocução. Essas considerações em torno dos objetos de ensino da Língua Portuguesa nos revelam que outras correntes teóricas foram incorporadas pela Academia em suas pesquisas e ações voltadas para a formação do professor, aliando outra concepção de ensino-aprendizagem (sócio-histórica, de Vigotski, 1930-1934-1935) à de língua(gem) (como interação social, de Bakhtin/Volochinov,1929), buscando uma prática sociossituada. Essa prática foi denominada “virada discursiva ou enunciativa” (ROJO; CORDEIRO, 2004, p. 10). No bojo dessa virada paradigmática, Rojo (2005) afirma que os pesquisadores, ao perceberem a incompatibilidade entre as perspectivas teóricas (sócio-histórica e cognitivista) passaram a realinhar suas pesquisas a fim de evitar as incongruências entre os pressupostos básicos das duas vertentes teóricas. Isso porque os conceitos vigotskianos atestam que a aprendizagem do indivíduo dá-se em espaços sociais a partir da interação entre os participantes em um dado momento histórico. Dessa forma, os neo-vigotskianos da escola americana optaram em fazer releituras do pensamento de Vigotski em prol da ótica sócio-construtivista e dos construtos cognitivistas. Seus estudos privilegiaram as construções mentais dos indivíduos, procurando explicar (do ponto de vista sócio-histórico), “a partir da interação e da linguagem o processo social de construção e gênese dos esquemas [mentais]” (ROJO, 2005, p. 189). Esse enfoque, segundo Rojo, estuda a “relação entre aprendizagem/desenvolvimento, relação pensamento/linguagem, internalização e ZPD (zona proximal de desenvolvimento)” (idem, ibidem). Já os neo-vigotskianos da escola europeia, por exemplo, a escola de Genebra, cujos pesquisadores principais são Bronckart, Schneuwly, Dolz, faz redefinições e releituras do funcionamento da linguagem e suas relações com o pensamento articuladas com alguns conceitos teóricos do Círculo de Bakhtin, dentre 47 eles citamos a linguagem e suas imbricações ou sua inter-relação com os gêneros discursivos, interação. Para Rojo (2005, p. 189), a adoção da perspectiva enunciativo-discursiva de Bakhtin e sua articulação com os construtos psicológicos de Vigotski fazem com que essa escola redefina e revise sua definição de linguagem ─ “tomada, então como discurso ou enunciação, de interação e de discurso interno”. Essas escolas americana e europeia encontraram espaço no contexto acadêmico brasileiro, pois os programas e propostas curriculares sofreram várias mudanças em virtude dessa virada paradigmática. No Brasil, temos, inicialmente, Geraldi como um dos primeiros pesquisadores a assumir a concepção de linguagem enquanto interação, a qual sustentou as redefinições dos objetos de ensino de Língua Portuguesa: leitura, produção textual, gramática, oralidade. Sua proposta foi apresentada no livro O texto na sala de aula, publicado em 1984, cuja contribuição pôde ser observada na década de 90, em relação às mudanças sofridas no currículo escolar de Língua Portuguesa, em que houve um deslocamento dos eixos do ensino-aprendizagem de língua materna: “de um ensino normativo [análise da língua e gramática], para um ensino procedimental [usos da língua escrita, leitura e redação são valorizados] [e] também, uma análise gramatical ligada a esses usos textuais: as atividades epilinguísticas” (ROJO; CORDEIRO, 2004, p. 8). Esses eixos foram elaborados com base nas ideias de Geraldi (1984), que propôs três eixos para as aulas de Língua Portuguesa: a prática de leitura, a prática de produção de texto e a prática de análise linguística. Essas reapropriações teóricas de diferentes pesquisadores brasileiros contribuíram para o redimensionamento do ensino de Língua Portuguesa, pois pensar a linguagem do ponto de vista de seu uso real permitiu que o ensino fosse direcionado para uma prática social, reflexiva que vê a sala de aula, assim como as esferas da comunicação humana, como um lugar de interação verbal. Desse modo, segundo Rojo e Cordeiro (2004, p. 11), “convoca-se a noção de gêneros (discursivos ou textuais) como instrumento melhor que o conceito de tipo para favorecer o ensino de leitura e de produção de textos escritos e, também, orais”. Por essa razão, os gêneros são tomados como objetos de ensino, o texto é a unidade de ensino e a concepção de linguagem que baliza essa prática é a interação. Tal direcionamento está posto nos documentos oficiais, precisamente, nos 48 Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP, BRASIL, 1997, 1998). Portanto, a virada enunciativo-discursiva favoreceu mudanças na concepção de língua(gem), pois houve redefinições nos objetos de ensino da Língua Portuguesa, permitindo, em certa medida, reformulação nas práticas em sala de aula como também possibilitou que a concepção de ensino-aprendizagem passasse para a sócio-histórica, assim, o ensino-aprendizado da língua materna vem passando por reformulações teórico-metodológicas ao longo do século XX. Na próxima seção, apresentaremos a perspectiva assumida pelos PCNLP em relação ao ensino da escrita. 2.2 A escrita nos PCNLP3 A publicação do documento oficial Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa representou, na década de 90, um avanço no debate instaurado por diferentes pesquisadores via publicações científicas (artigos, teses, dissertações) e programas de formação continuada de professores no que se refere ao ensino-aprendizagem de língua materna, por propor mudanças no currículo escolar desta disciplina. Essa reformulação deveu-se também à virada discursiva, vivenciada pela Academia durante sua publicação. Nesse documento, é possível observamos a presença de diferentes perspectivas teóricas em prol do redimensionamento do ensino de Língua Portuguesa, tais como: a teoria enunciativo-discursiva do círculo de Bakhtin, a Análise do Discurso, a Linguística Textual, a Análise da Conversação, a Sociolinguística (ROJO; CORDEIRO, 2004; ROJO, 2005), que buscam compreender a linguagem em uso. Além disso, temos a influência do pensamento de Vigotski no ensino-aprendizagem. Outra questão posta pelos estudiosos da linguagem quanto a essa diversidade teórica nos documentos é a ausência de um fio coerente, já que se 3 Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa foram publicados em 1997 para o 1º e 2º ciclos do Ensino Fundamental I e, em 1998, publicaram-se para o 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental II. Em nosso trabalho, faremos uso desta última publicação, em virtude do objeto de estudo está voltado para o 9º ano do Ensino Fundamental II. 49 pode observar algumas imprecisões teóricas, por exemplo, a questão flutuante do conceito gêneros discursivos e textuais4, entre outras. Apesar dessas incongruências, os PCNLP representam um “avanço considerável nas políticas educacionais brasileiras em geral, em particular, nas políticas linguísticas contra o iletrismo e em favor da cidadania crítica e consciente” (ROJO, 2000, p. 27). Assim, as orientações apresentadas no documento oficial encaminham o professor a assumir uma outra concepção de ensino de língua(gem) a fim de favorecer uma formação mais autônoma e cidadã para os alunos do Ensino Fundamental, rompendo com o excesso de escolarização das atividades de leitura e escrita, com o ensino tradicional de língua, centrado em atividades estruturais e descontextualizadas. Por isso, a concepção a ser assumida é a da interação verbal, favorecendo um ensino de língua mais contextualizado, permitindo que as práticas de leitura, produção e análise linguística sejam orientadas pelas condições de uso e de reflexão. Para atingir tal intento, os PCNLP fazem algumas ponderações acerca da linguagem e seu lugar social em nosso cotidiano. Segundo esse documento oficial, O domínio da linguagem, como atividade discursiva e cognitiva, e o domínio da língua, como sistema simbólico utilizado por uma comunidade lingüística, são condições de possibilidade de plena participação social. Pela linguagem os homens e as mulheres se comunicam, têm acesso à informação, expressam e defendem pontos de vista, partilham ou constroem visões de mundo, produzem cultura. Assim, um projeto educativo comprometido com a democratização social e cultural atribui à escola a função e a responsabilidade de contribuir para garantir a todos os alunos o acesso aos saberes linguísticos necessários para o exercício da cidadania (BRASIL, 1998, p. 19). De acordo com esse excerto, a linguagem, nos PCNLP, é entendida como um trabalho de construção, que passa pelo fazer coletivo e participativo, o qual evidencia um processo histórico social e cultural. Nessa concepção, o aluno é constituído por um processo ativo, que produz discursos e dizeres proficientes e significativos de acordo com suas práticas diárias. Assim, as produções não devem existir somente por meio de palavras soltas ou frases isoladas, pelo contrário, deve- 4 Para maiores considerações, ver Figueiredo (2005) sobre a concepção de gêneros textuais e gêneros discursivos e seus usos nos PCNL e nas aulas de língua portuguesa. 50 se buscar uma prática discursiva que perpasse a contextualização vivida pelo educando. Em vista disso, no tocante à prática de produção oral e escrita, os PCNLP afirmam que, ao longo do Ensino Fundamental, o aluno deve ser capaz de planejar “sua fala [e escrita] pública usando a linguagem escrita em função das exigências da situação e dos objetivos estabelecidos” (BRASIL, 1998, p. 5). Para isso, o professor de Língua Portuguesa deverá levar para sala diferentes textos para que possa ampliar o conhecimento do aluno e para que ele seja “capaz de interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão de produzir textos eficazes nas mais variadas situações” (BRASIL, 1998, p. 19). Para atingir esse objetivo, conforme havíamos apontado anteriormente, são apresentados dois eixos básicos para o tratamento didático dos conteúdos de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental, conforme o esquema abaixo. (BRASIL, 1998, p. 35) De acordo com os PCNLP, esses eixos permitirão que os alunos compreendam o contexto de produção, recepção, circulação dos enunciados orais e escritos em um dado momento sócio-histórico. Esse enfoque dos PCNLP visa desconstruir a prática tradicional quanto ao ensino de textos escritos que, até aquele momento da publicação do documento, estava, ainda, calcada em propostas de produção descontextualizadas, em que objetivo maior era observar se o aluno sabia estruturar seu texto, usar corretamente a língua padrão, usar os mecanismos coesivos, os operadores argumentativos. Tratava-se de um exercício de redação, para treino e preparação para exames de vestibulares ou uma atividade profissional. Além disso, o texto era produzido para ser lido e corrigido apenas pelo professor. Os conteúdos previstos no eixo uso são a prática de escuta e leitura e a prática de produção de textos orais e escritos e no eixo reflexão, a prática de 51 análise linguística. Esses eixos possibilitarão aos alunos conhecimento das especificidades das variadas práticas de linguagem em função da articulação que estabelecem entre si (BRASIL, 1998). De acordo com as orientações dos PCNLP, a prática do professor deverá levar em consideração estes objetivos para o ensino Língua Portuguesa. No trabalho com os conteúdos previstos nas diferentes práticas, a escola deverá organizar um conjunto de atividades que possibilitem ao aluno desenvolver o domínio da expressão oral e escrita em situações de uso público da linguagem, levando em conta a situação de produção social e material do texto (lugar social do locutor em relação ao(s) destinatário(s); destinatário(s) e seu lugar social; finalidade ou intenção do autor; tempo e lugar material da produção e do suporte) e selecionar, a partir disso, os gêneros adequados para a produção do texto [...] (BRASIL, 1998, p. 49) [grifo nosso). Nesses objetivos, a prática de produção de textos está alicerçada nos gêneros, os quais possibilitam aos alunos uma escrita mais real, pois há uma situação de produção definida, não permitindo que a produção seja um fim em si mesmo, sem autoria, sem leitores. Aqui, o produtor deverá assumir seu querer dizer, pois há um projeto discursivo em funcionamento, como já pontuamos, o autor orienta seu querer dizer em função da temática, dos destinatários, os quais determinam a escolha do gênero no qual serão materializados seu objeto do discurso e seus sentidos. Isso reafirma a proposição do Círculo de Bakhtin de que todo e qualquer falante tem um objetivo ao proferir ou ao escrever um texto/enunciado em uma situação comunicativa. Para os PCNLP, nas atividades de produção escrita, o ato de escrever é complexo, porque o sujeito-autor precisa ser capaz de articular dois planos: o do conteúdo (o que dizer) e o da expressão (como dizer). Esses dois conceitos são essenciais para configurar a autoria em uma dada produção. Nessa busca pelo aluno-autor, há orientações para que, durante as atividades, os alunos sejam levados a construírem seu conhecimento acerca de um determinado gênero de forma sistematizada e apropriando-se da forma composicional, do conteúdo temático, do estilo do gênero e o estilo individual do autor, para que esse futuro autor possa ter seu próprio estilo, assumindo sua voz em seus discursos (BRASIL,1998). 52 Essa orientação do documento oficial nos revela que há preocupação com que o aluno compreenda o funcionamento de um determinado gênero, para que possa apropriar-se dele e, futuramente, saiba produzir seus enunciados, levando em consideração a situação de produção a que estiver exposto. Outra preocupação é que o aluno seja autor de seus discursos, num processo contínuo, pois o professor precisará mobilizar ações didáticas para ajudar ao aluno a ter consciência de seu papel social em quanto produtor de textos. Ao se pensar nas atividades, o professor deverá observar nos textos escritos as reais necessidades de seus alunos, a fim de que possa ajudá-los nessa atividade complexa que é a escrita. Dessa forma, o “olhar do educador para o texto do aluno precisa deslocar-se da correção para a interpretação; do levantamento das faltas cometidas para a apreciação dos recursos que o aluno já consegue manobrar” (BRASIL, 1998, p. 77). Com base nessas orientações dadas pelos PCNLP, podemos afirmar que esse documento não propõe diretamente a escrita como objeto de ensino, mas desloca essa proposta para o âmbito dos gêneros na prática de produção de textos orais e escritos. Essa escolha, a nosso ver, permite um trabalho mais amplo, já que não se fixa nos processos cognitivos ou textuais, mas nos usos da linguagem nas situações interlocutivas, em que o contexto sócio-histórico, cultural e ideológico tem valor significativo para a compreensão dos enunciados orais e escritos. Desse modo, criam-se melhores condições para que o aluno seja autor de seus discursos como também compreenda os discursos alheios. Entendemos que os PCLNP (1998), ao assumirem a existência de um tripé envolvido na produção textual ─ autor-objeto do discurso-interlocutor, assentam sua proposição nas relações dialógicas, por acreditar que nelas ocorre uma atitude ativa e crítica por parte de quem escreveu e também pelos interlocutores, pois nesse processo ininterrupto entre os sujeitos do discurso, podem-se ultrapassar os limites de um texto, pois se colocam em evidência o momento de quem escreve e o de quem interpreta. Dessa forma, já que existem autores e co-autores na construção dos sentidos, é necessário criar situações autênticas de produção. Entendemos que os PCLNP (1998) assumem esse discurso por asseverar que, nas relações dialógicas, ocorre uma atitude ativa e crítica por parte dos interlocutores, tendo em vista que se podem ultrapassar os limites de um texto, pois se colocam em evidência o momento de quem escreve e o de quem interpreta. 53 Dessa forma, já que existem autores e co-autores na construção dos sentidos, é necessário criar situações autênticas de produção. Na próxima seção, falaremos da escrita e da autoria, procurando compreender o papel da escola no processo de construção do texto, em que se busca o aluno-autor. 2.3 Escrita e Autoria Geraldi (2008[1984]) tem feitos inúmeras críticas, desde os anos 80, quanto ao ensino da escrita nas escolas, pois, segundo ele, existe apenas simulação, por isso o pesquisador estabeleceu a dicotomia produção de texto e ensino de redação. Este último está voltado apenas para o ambiente escolar, quer dizer, o aluno produz para a escola, já que o leitor é apenas o professor, o detentor do conhecimento, preparado para corrigir e dizer se o aluno estava preparado ou não em relação à escrita. Além disso, há cobrança para o domínio da norma culta, como se isso fosse suficiente para garantir a autonomia na escrita. A adoção da expressão produção de texto está ligada a dois aspectos envolvidos no processo de escrever. O primeiro diz respeito às condições de instrumentos e agentes de produção, além de focalizar o modo como se produz um texto na escola (GERALDI, 2010[2008]). Nessa perspectiva, há um sujeito do discurso, que é agente de seu dizer, que possui um projeto discursivo, direcionado para um determinado interlocutor de uma dada esfera da atividade humana. Isso assegura que há um sujeito responsável pelo seu querer dizer, pois possui uma visão de mundo única, particular, que o diferencia de outros sujeitos. Essa questão nos faz retomar o conceito de que Bakhtin nos apresentou na década de 20, o sujeito não tem álibi na sua existência, uma vez que ele deve assumir a responsividade dos enunciados proferidos e escritos por ele perante outros enunciados. É o ato ético do qual Bakhtin nos fala, da nossa unicidade e singularidade no mundo, pois somos responsáveis pelos significados que damos aos nossos enunciados para uma dada situação concreta da qual fazemos parte. O segundo aspecto remete à noção de texto, assumida para a produção textual. Segundo Geraldi (2010 [2008], o ensino da escrita a partir de um conjunto de regras para ser aplicado ou mesmo de suas regularidades composicionais, temáticas ou estilísticas não são suficientes para dizer que tal texto ocorrerá sempre 54 assim em um contexto sócio-histórico. Para ele, a produção textual envolve as condições discursivas, pois são as responsáveis pela orientação do querer dizer do sujeito escritor e são elas que determinam as regularidades do enunciado. Isso porque o enunciado jamais será resultado de aplicação de regras, de fórmulas préestabelecidas para sua composição (idem). Nisso reside a escolha dos PCNLP pela expressão produção de texto, a qual está ligada ao objeto de ensino gêneros, uma vez que não é possível tratar o gênero como se fosse algo totalmente estável, pois no processo de didatização será necessário levar em consideração estes aspectos: Há que se associarem o querer dizer do locutor, que sempre remete à relação com seus interlocutores e o estilo próprio do sujeito que fala, isto é, suas escolhas dentre as estratégias de dizer disponíveis ou suas elaborações de estratégias novas resultantes da articulação que realiza entre o disponível e o novo (GERALDI, 2010[2008], p. 168). Ao assumir essa perspectiva teórica, o professor precisa considerar o projeto discursivo, a fim de oportunizar uma prática de produção de texto que permita que seus alunos sejam autores de seus textos e produtores de sentidos e discursos. Segundo Kleiman (2002, p. 19), ensinar a compreender um texto escrito “é papel do educador, significa lidar com a complexidade do ato de compreender e a multiplicidade de processos cognitivos que constituem a atividade em que o leitor se engaja para construir o sentido de um texto escrito”. Mas, em meios a tantos dizeres, tantas propostas e opiniões, é sempre necessário reforçar que a constituição de sujeitos aptos para ler e escrever não depende unicamente do professor, mas também de como esse aluno é inserido nas relações sociais que se estabelecem pela interação entre autor e leitor. Desse modo, para se ensinar a escrever ou a ler um texto de forma que o aluno consiga interpretar e compreender, faz-se necessário lidar com o conhecimento que cada sujeito/aluno traz consigo. Quando se permite ao aluno contato com sua história, com o que aprendeu ao longo de sua existência, ele poderá compreender a palavra dele e do outro, uma vez que, nas relações sociais mediadas pela linguagem, todos participantes da comunicação verbal são importantes na interação. Tal prática é um fator relevante para a elaboração de textos com autoria. 55 Para Bakhtin, “todo texto tem um sujeito, um autor (que fala, escreve)”. Todo texto apresenta dois fatores importantíssimos para determinar e tornar um enunciado: “seu projeto (a intenção) e a execução desse projeto” (2010[1979], p. 330). A inter-relação dinâmica entre esses fatores permite que se compreenda a discursividade de uma produção, a qual dialoga com outros enunciados, outros contextos sócio-históricos, outras esferas sociais. Assim, dizemos que o autor se constrói por meio de um olhar arquitetônico, ou seja, a construção se dá a partir da ressignificação que o eu faz de seus enunciados concretos e dos “outros” e constituise a partir dessa relação com o outro. Dessa forma, em concordância com Bakhtin (2003[1979]), acreditamos que a produção acontece a partir do momento que o autor se coloca fora de si mesmo, vive um plano diferente daquele que vivemos, para que possa completar-se através de uma arquitetônica (construção), até formar um todo. O escritor (autor-criador), inicialmente, ao produzir qualquer texto, deve tornar-se outro em relação a si mesmo, deve se olhar pelos olhos de outro. Bakhtin (2010[1979], p. 37) aprofunda a questão: Não posso vivenciar-me convincentemente por inteiro encerrado em um objeto externamente limitado, todo visível e tátil, coincidindo completamente com ele em todos os sentidos, mas não posso representar o outro de modo diferente: tudo o que conheço do interior dele e em parte vivencio empaticamente eu lhe insiro na imagem externa como num recipiente que contem o seu eu, sua vontade, seu conhecimento; para mim, o outro está reunido e contido por inteiro em sua imagem externa. Enquanto isso, eu vivencio minha própria consciência como se ela estivesse a abarcar o mundo, a abrangê-lo e não alojada nele. A imagem externa pode ser vivenciada como uma imagem que conclui e esgota o outro, mas eu não a vivencio como algo que me esgota e me conclui. Tomando a afirmação de Bakhtin, postulamos que, se na vida só o outro pode me completar, a exotopia é um conceito crucial para o indivíduo compreender sua realidade e, assim, poder externá-la de forma a ressignificar o olhar do outro para essa mesma realidade. Nesse sentido, cabe à escola oportunizar trabalhos em que os alunos sejam levados a distanciar-se da palavra alheia e compreender esse discurso para que possam produzir seus enunciados. Tal prática fará com que eles sejam considerados autores, uma vez que conseguirão não apenas refletir (ler o texto, 56 extrair dele informações), mas reacentuarão esse querer dizer, ou seja, tomarão a palavra do outro e, de acordo com seu projeto discursivo, reelaborarão essa palavra com outros acentos, tornando-a, paulatinamente, palavra própria. Essa questão nos faz pensar que, na perspectiva bakhtiniana, a linguagem escrita permite a comunicação além do tempo, uma vez que funciona como mediadora da cultura e é constituída, historicamente, em função da mediação das produções humanas as quais vão muito além do tempo presente, no sentido do “tempo grande”, de que fala Bakhtin. Em vista disso, dizemos que a produção de um texto será o resultado da enunciação, em que o escritor (aluno-criador) produz seu texto levando em consideração a situação de produção, para que possa orientar seu querer dizer aos interlocutores de seu texto. Nosso posicionamento é corroborado em Bakhtin, pois, segundo ele, a autoria emerge a partir do momento que alguém se coloca e se posiciona em seu texto, deixando claro o seu “querer dizer”, dito de outra forma, sua intenção no enunciado que produz, no qual revela seu estilo em consonância a um gênero escolhido. Assim, evidencia-se a inter-relação entre o que se falou e o que se produziu (enunciado produzido e a situação de produção). E nesse vai e vem para escolher as melhores formas de expressões do que deseja dizer e adaptar ao momento, ou a situação, faz com que surjam marcas de autoria e o estilo do sujeito que produz. É claro que tudo está permanentemente ligado ao estilo do gênero. Já Possenti5 (2002) diz que os indícios de autoria são revelados quando diversos recursos da língua são estabelecidos de forma pessoal, de acordo com o gosto de cada pessoa. Para o autor, esses fatos devem produzir, também, efeitos de autoria. Contudo, é preciso esclarecer que só será autor mediante um contexto histórico, pois os sentidos só acontecem quando passam por um processo de historicidade. A noção de autoria para o referido autor retoma a questão de estilo, as quais se completam e se complementam, pela observação e postura dentro de um texto, pois só assim a presença do sujeito-autor começa se mostrar por meio das diferentes marcas e recursos estilísticos. Observamos que o ensino de produção de texto orientado pela perspectiva bakhtiniana rompe com o discurso monológico que havia nas produções textuais. O 5 Este pesquisador é estudioso da Análise do Discurso (AD), cujo foco está nos campos do humor e da mídia. Além disso, também direcionou trabalhos para o ensino da Língua Materna, como exemplo, Por que (não) ensinar gramática na escola (1996) entre outros. 57 interlocutor do aluno era o professor, não havia outros, uma vez que as propostas de produção eram vazias, destituídas de sentido. Conforme já observamos, o aluno escrevia para que seu texto fosse aceito pelo professor e, assim, tirar uma boa nota. Nesse processo de ensino, ressaltamos também a presença de técnicas de produção, as quais ainda se fazem presentes em alguns materiais e até mesmo há professores que ainda acreditam nessas fórmulas para o texto nota 10. Isso faz com que os alunos sejam conduzidos à reprodução de discursos, seguindo os passos dos materiais, do professor. É uma prática escolar que elimina a atitude responsiva ativa deles, pois, em boa medida, esses alunos sabem que não haverá um processo de troca (diálogo) entre eles e seu interlocutor imediato (professor) (LEAL, 2005). Em virtude dessa prática pouco produtiva, afirmamos que o processo dialógico da linguagem é o caminho a ser traçado pela escola para a constituição do aluno-autor. Assim, ao pensarmos na existência de um sujeito do discurso, o qual será visto como um sujeito crítico, consciente, que compreende seu papel social na realidade em que vive e sabe que pode agir sobre ela, em que a linguagem é uma atividade constitutiva desse agir, teremos um aluno-autor ressignificando seu mundo social. Para melhor mostrar a importância da construção de sentidos, por meio da escrita, vemos a necessidade de dirigirmos algumas palavras sobre um dos estudiosos que mais discutiu sobre ensino-aprendizagem, considerando a linguagem como constitutiva da interação. Direcionemos nosso olhar para a teoria de Vigotski na próxima seção. 2.4 Teoria Vigotskiana: Um enfoque sócio-histórico As ideias teóricas de Vigotski expressam sua preocupação em agregar características biológicas e sociais do homem, de forma a elucidar o papel da linguagem no desenvolvimento social do ser humano e na aprendizagem de seus processos mentais superiores, o que permitirá ao indivíduo sua inserção no mundo social e, consequentemente, dominar tudo aquilo que é produzido por esse mundo a fim de transmitir a outras pessoas, num processo ininterrupto. Dessa forma, no enfoque sócio-histórico vigotskiano, é necessário levar em conta “a linguagem como um meio de interação social” (VIGOTSKI, 1998 [1930], p. 58 71). Assim, salienta-se que a linguagem tem como uma das funções primordiais servir como interação entre o aprendiz e os pares mais avançados nas relações de aprendizagem e desenvolvimento dos processos mentais superiores. A linguagem interativa perpassa todos os espaços sociais e seu enfoque deve possibilitar aos aprendizes compreender seu espaço social, agir sobre ele e entender que nossas relações sociais são mediadas pelo outro. Tendo em vista que considera a linguagem como o condutor principal do desenvolvimento- aprendizagem, Vigotski interessava-se por esse binômio. Em vista disso, o estudioso coloca que há dois tipos de desenvolvimento: o natural e o social. Para ele, o desenvolvimento natural está vinculado aos processos elementares do sujeito ─ o desenvolvimento dos orgãos (visão, olfato etc.); mas ele enfatiza o desenvolvimento social e mental, cujo processo é marcado pelas questões históricas e culturais e, preferencialmente, pelas evoluções dos processos de aprendizados. Além disso, Vigotski (1998 [1935], p. 103) coloca que “a relação entre aprendizado e desenvolvimento permanece [...] obscura” e, por isso, procura defender um enfoque sócio-histórico nessa inter-relação. Segundo ele, “aprendizado e desenvolvimento estão inter-relacionados desde o primeiro dia de vida da criança” (VIGOTSKI, 1998 [1935], p. 110). Também afirma que essa relação continua durante toda a vida pré- escolar do aprendiz e, por causa dessa última etapa, ele busca investigar e “ver os elementos especificamente novos que o aprendizado escolar introduz [no caso], o aprendizado sistematizado” (VIGOTSKI, 1998 [1935], p. 110). Seu objetivo é descobrir e entender as relações reais “entre o processo de desenvolvimento e a capacidade de aprendizado” (idem, p. 111) através da consideração de dois níveis de desenvolvimento socializado. Conforme Vigotski, o primeiro nível é designado de nível de desenvolvimento real. É “o nível de desenvolvimento das funções mentais da criança [e do aprendiz] que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados” (idem, ibidem). Reforçamos que a zona de desenvolvimento real (abreviada por ZDR) é apresentada por Vigotski como resultado de capacidades e conhecimento apropriados pela criança. Geralmente, esse aprendizado é aquele que o aprendiz já internalizou no seu desenvolvimento mental. 59 O segundo nível é a Zona Proximal de Desenvolvimento (ZPD)6: a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VIGOTSKI, 1998 [1935], p. 112) A ZPD refere-se ao caminho mental que o sujeito vai percorrer para o desenvolvimento das funções, antes dessas passarem pelo processo de amadurecimento real. Entendemos esse conceito afirmando que é aquilo que um aprendiz é capaz de fazer com a ajuda de uma pessoa. A ZPD pode ser identificada entre a necessidade de ensino e potencialidade de aprendizagem mediada entre o sujeito mais experiente para com o menos experiente. Conforme Vigotski, tanto a criança quanto o adulto possuem uma imensa capacidade de aprendizagem, mas, para que isso se torne evidente, é de suma importância que o professor forneça possibilidades de apoio ao educando, colocando-se como o par mais avançado no processo. Além do docente, podem existir outros: os próprios colegas, pesquisadores, tutores, professores articuladores, coordenadores, formadores, pois um pode assessorar o outro de forma significativa na vida escolar. Portanto, o desenvolvimento humano se instaura nas relações sociais interativas e mediadas pela aprendizagem. Para Vigotski, a aprendizagem é culturalmente construída e passa pelo uso da linguagem. Com isso, pode-se afirmar que a aprendizagem só pode acontecer por meio da interação social e pelos usos da linguagem. No que se refere à aprendizagem, Vigotski afirma que: [...] a aprendizagem não é, em si mesma, desenvolvimento, [...]. Conduz ao desenvolvimento mental, ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento, e esta ativação não poderia produzir-se sem aprendizagem. [...] Por isso, a aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário e universal para que se desenvolvam na criança essas características humanas não naturais, mas formadas historicamente (VIGOTSKI, 2005 [1935], p. 115). Nesta pesquisa utilizaremos o termo Zona Proximal de Desenvolvimento (ZPD) em vez de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), uma vez que concordamos com Rojo (2001) ao afirmar que a força da adjetivação não está centrada no desenvolvimento, mas na zona de intercessão criada pelo ensino-aprendizagem (ROJO, 2001, p.170). 6 60 O pensador russo coloca em pauta que a aprendizagem vai à frente do desenvolvimento mental, pois ela tem a característica de potencializar o desenvolvimento mental do indivíduo. A aprendizagem é efetivamente um produto e um processo de criação e evolução dinâmica que não estanca os saberes, pois ela interpenetra o tempo todo em nossas vidas sócio-culturais e institucionalizadas (familiar, escolar, religiosa, acadêmica, artística etc.). Desse modo, vale reforçar que os fundamentos da teoria de Vigotski auxiliam na compreensão do processo de ensino-aprendizagem, pois, quando se tem como propósito enxergar o aluno em seu âmbito social, em seu contato com o “outro” e seu grupo social, o papel da interação na construção do conhecimento é primordial para execução das atividades, por isso, a linguagem é concebida como uma das funções superiores mentais. Em vista disso, o pensador russo passa a colocar a linguagem nos seus estudos, e mais particularmente, a linguagem oral e escrita. Na próxima seção, falaremos sobre a concepção de Vigotski para a linguagem escrita. 2.4.1 Vigotski e a escrita Vigotski aponta que a apropriação da linguagem oral e escrita contribui consideravelmente para o desenvolvimento social do ser humano, pois a escrita, assim como a fala, representam novos instrumentos de capacitação do pensamento do sujeito. Para o pensador russo, a escrita é um poderoso instrumento para o aprimoramento dos processos mentais superiores ─ a atenção, a imaginação, o raciocínio, a percepção, a verbalização etc. Para desenvolver melhor essa ideia de instrumentos, Vigotski escreveu, em 1930, o texto “O método instrumental em psicologia”. Nesse artigo, Vigotski coloca como premissa básica de instrumento: No comportamento do homem que encontramos um grande número de dispositivos artificiais para dominar seus próprios processos mentais. Por analogia com dispositivos técnicos estes dispositivos podem justificadamente e convencionalmente ser chamados de 61 ferramentas psicológicas ou instrumentos (VIGOTSKI, 2004[1930], p.93). Conforme o autor, não há distinção entre os termos instrumentos e ferramentas. Porém, ele diferencia os tipos de ferramentas [instrumentos]: Ferramentas psicológicas são formações artificiais. Por sua natureza elas são sociais e não dispositivos orgânicos ou individuais. Eles são direcionados para o domínio dos processos [mentais] ─ o próprio ou de outra pessoa ─ assim como os dispositivos técnicos são voltados para o domínio dos processos da natureza (VIGOTSKI, 2004[1930], p.93). Vigotski salienta que o instrumento se desdobra em dois: técnicos e psicológicos (mentais). Ele compreende que as ferramentas técnicas são aquelas que possibilitam a modificação do processo de adaptação natural. As mesmas podem servir para as atividades de interferências no ambiente natural. Já os instrumentos mentais são as criações artificiais elaboradas nos coletivos dos seres humanos, cujas funções são para controlar os próprios processos mentais superiores de um indivíduo ─ descrição, relato, narração ─ ou para controlar os dos outros ─ a comunicação. Assim, Vigotski apresenta o conceito de ferramentas psicológicas com a função de orientar e aprimorar os domínios dos processos mentais, como também alterar as capacidades dos próprios sujeitos como dos outros envolvidos nos processos interacionais de uso da linguagem. Vigotski coloca como exemplo de ferramentas psicológicas: a linguagem, as diferentes formas de numeração e contagem, técnicas mnemotécnicas, o simbolismo algébrico, obras de arte, escrita, esquemas, diagramas, mapas, todos os tipos de signos convencionais etc. (VIGOTSKI, 2004[1930], p. 94) [grifo nosso]. Pela citação acima, pode-se notar que o psicólogo russo aponta o estudo da linguagem instrumentalizada nas suas formas matemáticas, gestuais, algébricas, pictóricas, como também nas verbais faladas e escritas. No que diz respeito à finalidade de nosso trabalho – a escrita, Vigotski também aponta outros instrumentos psicológicos da escrita. 62 Na obra “Pensamento e linguagem”, Vigotski disserta sobre as relações entre pensamento e linguagem, e traça considerações sobre a linguagem oral e escrita e alguns outros instrumentos imbricados a essa ferramenta psicológica. Inicialmente, o autor russo aponta que “a natureza multifuncional da linguagem [...] vem atraindo uma atenção cada vez maior” (VIGOTSKI, 2005, [1934], p. 177) dos pesquisadores. No caso dele, há um interesse pela linguagem oral e “outras distinções funcionais importantes na fala. Uma delas é a distinção entre o diálogo e o monólogo” (idem, ibidem). Vigotski diz que o instrumento “a fala oral, na maioria dos casos, representa o diálogo” (idem, ibidem). Ainda, afirma que “o diálogo implica o enunciado imediato, não-premeditado. Consiste em todos os tipos de respostas e réplicas; é uma cadeia de reações” (VIGOTSKI, 2005 [1934], p. 179). Assim, ele relaciona o diálogo ao sentido estrito do termo e também à fala oralizada permeada também pelas expressões faciais, gestuais, corporais etc. Em contrapartida ao diálogo, o estudioso russo implica que “a escrita e a fala interior representam o monólogo” (VIGOTSKI, 2005 [1934], p. 177). Assim, a linguagem escrita e o discurso (fala) interior são monólogos. No caso da linguagem escrita, ele aponta que o locutor (quem escreve) é obrigado a usar uma “forma de fala mais elaborada”, mais precisa e complexa do que a fala dialogada. Essa forma de fala elaborada é o monólogo, “na verdade, a forma mais elevada e complexa do desenvolvimento histórico posterior” (VIGOTSKI, 2005[1934], p. 179). Trata-se de uma forma mais organizada, mais sistematizada, criada ulteriormente nas relações sociais humanas devido às demandas humanas nas produções socioeconômicas e das instituições. Essa forma de fala mais sistematizada é explicada pelo uso de dois outros instrumentos psicológicos importantes: A escrita [...] e a comunicação só pode ser obtida por meio das palavras e suas combinações, exigindo que a atividade da fala assuma formas complexas ─ daí a necessidade de rascunhos. A evolução do rascunho para a cópia final reflete nosso processo mental. O planejamento tem um papel importante na escrita, mesmo quando não fazemos um verdadeiro rascunho. Em geral, dizemos a nós mesmos o que vamos escrever, o que já constitui um rascunho, embora apenas em pensamento. Esse rascunho mental é uma fala interior (VIGOTSKI, 2005[1934], p. 179) [grifo nosso]. 63 Portanto, Vigotski esboça outros dois instrumentos psicológicos: o rascunho e o planejamento. Em outras palavras, outros modos de escrever. É importante ressaltar que, na obra “Pensamento e linguagem”, observamos que seus textos finais começam a aparecer outros conceitos como interlocutores, enunciado, discurso. Estes conceitos, com vimos, foram apresentados de forma profunda pelo Círculo de Bakhtin e ressignificados pelos pesquisadores da Universidade de Genebra7. 2.4.2 Bakhtin e Vigotski na releitura da Escola de Didática de Genebra A fonte documental da nossa pesquisa abrange o material das Olimpíadas de Língua Portuguesa, cujo subsídio teórico para a prática de produção textual está baseado em alguns princípios desenvolvidos por pesquisadores de didática de línguas da Universidade de Genebra. Em vista disso, acreditamos que seja necessário realizar uma breve contextualização cronológica nos trabalhos dos pesquisadores genebrinos. Segundo Rojo e Cordeiro (2004, p. 13), esses pesquisadores, da “equipe de Didática de Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra”, são, especialmente, Bernard Schneuwly, Joaquim Dolz, Jean Paul Bronckart, Glaís Sales Cordeiro etc. Entre os vários focos de pesquisas desses estudiosos, a produção textual escrita e oral destaca-se. No caso, a concepção de produção escrita está ligada ao pensamento teórico de Vigotski (década de 1980) e nas releituras desse autor russo com um outro: Mikhail Bakhtin (década de 1990). Os pesquisadores tomam essa releitura para a elaboração de sua teoria didática de produção, em que os avanços científicos na área buscam mostrar os gêneros textuais escritos como mediadores no processo de ensino e aprendizagem da linguagem escrita. 7 É importante frisar que não se tem nenhuma informação acerca de uma provável troca de conhecimento entre o círculo de Bakhtin e Vigotski. Entretanto, os pontos de aproximação entre os dois podem se dar, a nosso ver, devido ao fato de se servirem, em boa medida, do mesmo método histórico-sociológico para tratar seus objetos de estudo em seus campos específicos. 64 2.4.3.1 Os didáticos genebrinos e o gênero como megainstrumento Schneuwly e sua equipe buscam expandir suas pesquisas na didática da escrita com objetivo de integrar a teoria sócio-histórica de Vigotski com a teoria enunciativo-discursiva de Bakhtin e seu círculo. Essa relação entre as teorias está posta no texto “Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e ontogenéticas”, publicado em 1994. Nesse texto, aparecem algumas releituras feitas por Schneuwly sobre o conceito de instrumentos ou ferramentas de Vigotski, junto aos conceitos de gêneros discursivos primários e secundários de Bakhtin. Schneuwly elabora, no referido texto, uma premissa básica de que “o gênero pode ser considerado um instrumento psicológico no sentido vigotskiano do termo” (SCHNEUWLY, 2004[1994], p. 22). Nesse mesmo texto, ele faz outra releitura de forma metafórica chamando os gêneros de “mega-instrumentos”: poderíamos aqui construir uma metáfora: considerar o gênero como “megainstrumento”, como uma configuração estabilizada de vários subsistemas semióticos [...] permitindo agir eficazmente numa classe bem definida de situações de comunicação (SCHNEUWLY, 2004[1994], p. 28). Schneuwly (2004) compreende o gênero textual como um poderoso instrumento que possibilita desempenhar uma atividade discursiva sobre a realidade concreta, como também vê o gênero “mega-instrumento” ser utilizado nas situações de ensino e aprendizado de língua materna. Ele, também, afirma que o gênero dá forma às práticas discursivas de produção e compreensão de texto, pois serve de base para a produção textual escrita. Diante desse fato, o gênero crônica, o relato oral, a crônica esportiva, o memorial, dentre outros, são sugeridos como objetos de ensino escolares. Além disso, Dolz e Schneuwly observam que a categoria de gêneros secundários (de Bakhtin), gêneros complexos em sua constituição e funcionamento, pode ser usada no ensino-aprendizagem da linguagem escrita formal (DOLZ, SCHNEUWLY, 2004[1996]). Por essa razão, os didatas acreditam que os gêneros são objetos de ensino que podem ajudar no desenvolvimento da escrita como também favorecerem o ensino da linguagem e de suas capacidades em situação escolar. Isso porque também são ferramentas de aprendizagem para o aluno na escola. 65 2.4.3.2 O gênero como megainstrumento e as capacidades Dolz e Schneuwly sustentam, em sua proposta didática, o ensino da oralidade e da escrita sistematizada por meio do emprego das práticas de linguagem ─ os gêneros como megainstrumento. Para os didáticos, as práticas de linguagem são as apropriações interativas acumuladas nas relações entre os grupos sociais no curso de suas histórias. Ainda, nos dizeres deles: “É devido a essas mediações comunicativas, que se cristalizam na forma de gêneros, que as significações sociais são progressivamente reconstruídas” (DOLZ, SCHNEUWLY, 2004, [1996], p. 51) [grifo nosso]. Gêneros e práticas de linguagem são também empregados para o desenvolvimento das capacidades de linguagem e das capacidades de linguagem dominantes. Dolz e Schneuwly salientam que “a noção de capacidades de linguagem evoca as aptidões requeridas do aprendiz para a produção de um gênero numa situação de interação determinada” (DOLZ, SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 52). Essa noção considera as capacidades requeridas para a produção escrita [e oral] de gêneros secundários de uso público da linguagem e também aquelas que poderão ser trabalhadas no ensino da ferramenta psicológica escrita. Já as capacidades de linguagem dominantes são tomadas pelos didatas suíços para a organização de um currículo aberto ─ aberto, porque podem ser incluídos mais gêneros de acordo com a realidade educacional de uma escola e, mais particularmente, as necessidades dos alunos ─ e estão integradas aos aspectos tipológicos e domínios sociais de comunicação. As capacidades dominantes são em número de cinco (05) como também os domínios e os aspectos tipológicos. No caso dos aspectos tipológicos, Dolz e Schneuwly colocam cinco: “narrar, relatar, argumentar, expor e descrever ações” ( 2004[1996], p. 60-61) [grifo nosso]. As duas primeiras tratam dos gêneros de nossa pesquisa. A ordem do narrar considera o gênero crônica literária. Em contrapartida, a ordem do relatar aponta a crônica esportiva e social, conforme quadro a seguir. QUADRO 1: PROPOSTA PROVISÓRIA DE AGRUPAMENTO DE GÊNEROS 66 Domínios de comunicação Aspectos tipológicos Capacidades de linguagem dominantes Cultura literária ficcional Narrar Mimeses da ação através da criação da intriga no domínio do verossímil Documentação e memorização das ações históricas Relatar Representação pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo Exemplos de gêneros orais e escritos Conto maravilhoso Como de fadas Fábula Lenda Narrativa de aventura Narrativa de ficção científica Narrativa de enigma Narrativa mítica Sketch ou história engraçada Biografia romanceada Romance Romance histórico Novela fantástica Conto Crônica literária Adivinha Piada Relato de experiência vivida Relato de viagem Diário íntimo Testemunho Anedota ou caso Autobiografia Curriculum vitae ... Notícia Reportagem Crônica social Crônica esportiva ... Histórico Relato histórico Ensaio ou perfil biográfico Biografia ... Recorte do quadro 1 (DOLZ, SCHNEUWLY, 2004 [1996], p. 60) [grifos nossos]. Conforme o referido quadro, Dolz e Schneuwly indicam cinco domínios sociais, no caso, “cultura literária funcional; discussão de problemas sociais controversos; transmissão e construção de saberes; instruções e prescrições e documentação e memorização das ações históricas” (idem, ibidem) [ênfase adicionada]. As autoras oscilam entre os dois domínios negritados, com ênfase na ordem do narrar. Em vista das ordens e dos gêneros, são apresentados cinco capacidades de linguagem dominantes para a organização curricular de agrupamentos: 67 mimeses de ação através da criação da intriga no domínio do verossímil; sustentação, refutação e negociação de tomadas de posição; apresentação textual de diferentes formas dos saberes; regulação mútua de comportamentos; e representação pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo (DOLZ, SCHNEUWLY, 2004 [1996], p. 60-61) [grifo nosso]. Desse modo, a crônica e suas multiformes oscilam entre as capacidades de narrar e relatar. No caso do nosso objeto de pesquisa, os materiais didáticos da Olimpíada de Língua Portuguesa tomam o gênero crônica literária para o desenvolvimento de atividades de escrita. Além disso, apresentam o gênero crônica esportiva na oficina 4 do referido material didático. Ainda sobre as capacidades de linguagem, Dolz e Schneuwly distinguem três delas e fazem este comentário acerca da mobilização do trio de capacidades numa situação de interação escrita: adaptar-se às características do contexto e do referente (capacidades de ação); mobilizar modelos discursivos (capacidades discursivas); dominar as operações psicolinguísticas e as unidades linguísticas (capacidades linguístico-discursivas) (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 52). Podem-se comparar as capacidades aos gêneros e suas situações concretas. As capacidades de ação estão ligadas à orientação discursiva dada pelo locutor (falante, escrevente) ao seu interlocutor, pois envolvem os parâmetros de finalidade da comunicação, os participantes (locutor e interlocutor), o conteúdo (assunto), o espaço social e institucional (o contexto). As capacidades discursivas tratam do conteúdo temático e da forma composicional do gênero trabalhado. Já as capacidades linguístico-discursivas consideram o estilo do gênero (a escolha do léxico, do léxico técnico do gênero, dos elementos morfológicos). Com base nesses conceitos explorados pelos genebrinos, Dolz e Schneuwly dizem que, no processo discursivo, o gênero passa por uma escolha orientada e definida como: conteúdo, destinatário e a finalidade, e se desenvolve como um instrumento de mediação que envolve seus aspectos composicionais e linguísticos. Dessa forma, os pesquisadores querem mostrar a ação discursiva em situação concreta na utilização da linguagem. 68 Apresentado o percurso histórico do ensino da Língua Portuguesa, especificamente da produção escrita, em que dialogamos com diferentes perspectivas teóricas que influenciaram o redimensionamento dos objetos de ensino da língua materna nas décadas de 80 e 90 e nos anos 2000, apresentaremos, no próximo capítulo, nossa metodologia de pesquisa. CAPÍTULO III Metodologia da pesquisa: compreendendo os dados O texto só tem vida contatando com o outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo. Salientemos que este contato é um contato dialógico entre textos (enunciados) e não um contato mecânico de “oposição”, só possível no âmbito de um texto (mas não do texto e dos contextos) entre os elementos abstratos (os signos no interior do texto) e necessário apenas na primeira etapa da interpretação (da interpretação do significado e não do sentido). Por trás desse contato está o contato entre indivíduos e não entre coisas. (BAKHTIN, 2010 [1974], p. 401) Nosso objetivo principal, neste trabalho, é analisar como propostas de ensino presentes em materiais didáticos alternativos8 do tipo cadernos contribuem para a formação do aluno-autor. Ao nos referirmos a esses tipos de materiais como alternativos estamos pensando em sua forma de constituição didática e funcionamento no âmbito escolar. Trata-se de materiais organizados didática e pedagogicamente de maneira diferente dos livros didáticos. Os cadernos trazem, geralmente, uma única proposta de ensino- aprendizagem com foco em um único gênero textual/discursivo, baseada, principalmente, na ideia de sequência didática da Escola Didática de Genebra. Além disso, esses cadernos, como no caso dos da Olimpíada de Língua Portuguesa, não 8 Esse termo foi utilizado por Santos (2011) para se referir aos materiais didáticos que não são submetidos à avaliação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), mas que adentram a escola através de programas subsidiados por investimentos e parcerias público-privados. 69 são elaborados para constar como material didático regular a ser seguido anualmente no programa de ensino escolar, mas como uma ferramenta de apoio pontual. Essa ideia pode ser confirmada pelo fato de os professores não terem, assim como o têm com o livro didático, liberdade de escolha do material. Esse material é enviado bianualmente para cada unidade escolar independente de ter sido solicitado e em número insuficiente para os professores, e quando o mesmo é utilizado, esse uso, em sua maioria, restringe-se ao período do concurso de produção textual. Outro fator que nos levou a tomar esses cadernos como tais é que, apesar de haver uma orientação político-educacional para que nenhum material didático adentre a escola sem ser analisado pelo MEC, os mesmos têm acesso irrestrito ao espaço escolar até mesmo, conforme dissemos anteriormente, sem o consentimento e escolha do próprio professor. O caderno enfocado, nesta pesquisa, é “A ocasião faz o escritor”, que objetiva o ensino-aprendizagem do gênero crônica elaborado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (doravante Cenpec) no âmbito do Programa Olimpíada da Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF). Considerando este objetivo principal, vamos nos deter sobre esse material didático e as produções dos alunos da aplicação dele decorrente. Com vistas a atingir este objetivo, mobilizaremos a teoria Enunciativodiscursiva do círculo de Bakhtin e, como teoria auxiliar, a perspectiva de Vigotski acerca do ensino-aprendizagem no espaço escolar. Desse modo, este capítulo objetiva descrever os caminhos trilhados e as perspectivas assumidas no processo de realização de nossa pesquisa, para melhor esclarecer os procedimentos adotados na coleta e análise dos dados. O capítulo está dividido em fundamentação teórica em que apresentamos os conceitos-chave de nosso trabalho, nossos objetivos específicos e questões orientadoras e a ancoragem metodológica balizadora deste processo. 3.1 Ancoragem teórico-metodológica para a investigação científica em Ciências Humanas Nossa pesquisa insere-se no campo das Ciências Humanas em que toma a abordagem sócio-histórica para a investigação qualitativa. A adoção dessa 70 abordagem está alinhada aos pressupostos teóricos por nós assumidos ao longo desta pesquisa uma vez que permite entender os fenômenos a partir de seu acontecimento histórico como um todo envolvendo ao mesmo tempo o particular e o social. Essa inter-relação (todo) entre o particular e o social explica-se aqui como sendo o agir de um sujeito sociossituado. Tais pressupostos coadunam com o posicionamento de Bakhtin que, em seu texto Metodologia das Ciências Humanas (2003[1974-79]), traz subsídios interessantes para pensar novas posturas em relação à pesquisa. Bakhtin diz que o estudo do homem, nas ciências humanas, reside em sua especificidade humana de estar em constante processo de expressão e criação, o que impediria de estudá-lo fora dos textos que produz sob o risco de não se estar fazendo ciências humanas. Anteriormente, Bakhtin (2010[1959-61]) já dizia que o texto é o dado primário de qualquer disciplina em ciências humanas. O autor questiona a possibilidade de compreender a vida do homem sem considerar os textos de signos criados por ele ou por criar e essa é uma das razões pela qual o homem não pode ser estudado como fenômeno ou coisa, mas como o homem social que fala (cria discursos). Sendo assim, sua ação física deve ser estudada como atitude e inserida em sua expressão sígnica (motivos, objetivos, estímulos, graus de assimilação) constantemente recriada pelo outro. Assim: Por toda parte há o texto real ou eventual e a sua compreensão. A investigação se torna interrogação, conversa, isto é, diálogo. Nós não perguntamos à natureza e ela não nos responde. Colocamos as perguntas para nós mesmos e de certo modo organizamos a observação ou a experiência para obtermos a resposta (BAKHTIN, 2010[1959-61], p. 319). Bakhtin demonstra com isso a diferença entre o objeto das ciências humanas do das exatas. O objeto daquela é um sujeito que tem voz, por isso o pesquisador precisa estabelecer um diálogo com ele e não apenas contemplá-lo e dele falar. O homem não pode ser objeto de uma explicação de uma só consciência, mas ser compreendido, o que pressupõe duas consciências, dois sujeitos, portanto, uma orientação dialógica, em que o pesquisador faz parte da própria situação de pesquisa. A perspectiva dialógica em ciências humanas implica integrar pesquisador e pesquisado em partes do mesmo processo investigativo. Já nas ciências exatas, o fazer científico é compreendido como uma forma monológica do saber: 71 [...] o intelecto contempla uma coisa e emite enunciado sobre ela. Aí só há um sujeito: o cognoscente (contemplador) e falante (enunciador). A ele só se contrapõe a coisa muda. Qualquer objeto do saber (incluindo o homem) pode ser percebido e estudado como coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado como coisa porque, como sujeito e permanecendo sujeito, não pode tornar-se mudo; conseqüentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico (BAKHTIN, 2010[1974-79], p. 400). A perspectiva dialógica muda tudo em relação à pesquisa, pois coloca em jogo, em ciências humanas, não a precisão do conhecimento, mas necessariamente a profundidade da penetração e a participação do pesquisador e do pesquisado. Nessa perspectiva, ambos, durante o processo de pesquisa, passam por constantes transformações, ressignificações, aprendizagem e desenvolvimento por meio da interação pela linguagem (os textos sígnicos), cujo estudo começa obrigatoriamente pela compreensão. A forma dialógica de fazer pesquisa pressupõe dois movimentos principais: a aproximação e o distanciamento. A aproximação consiste em compreender o sujeito, o objeto da pesquisa, em seus próprios termos, ou como diz Bakhtin entrar em empatia com o outro “[...] ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele” (BAKHTIN, 2010 [1920-1924], p. 23). A aproximação faz parte de uma etapa imprescindível do trabalho para que o pesquisador consiga situar o lugar do seu sujeito-objeto pesquisado bem como compreender seu próprio lugar no contexto da pesquisa. Entretanto, não se espera desse movimento a repetição do outro e sim ponto de partida para a sua complementação. Nisso está implicado outro movimento: o de distanciamento, que pressupõe o retorno do pesquisador ao seu próprio lugar (base teórica, seus valores, suas concepções de mundo etc.). Essa movimentação entre lugares (contextos) diferentes fundamenta um conceito importante para a atividade de pesquisa — exotopia (BAKHTIN, 1920-1924), que consiste em depois de ter retornado ao meu lugar [do pesquisador] contemplar o horizonte dele [do pesquisado] com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do 72 meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento (BAKHTIN, 2010 [1922-1924], p. 23). Assim, essa dupla movimentação de lugares sempre envolve uma postura alteritária entre duas consciências (eu e um outro), no mínimo. A análise do pesquisador deve completar o horizonte do sujeito-objeto investigado, dando-lhe novo sentido, construído apenas do lugar singular que ocupa o pesquisador com seus valores e pontos de vista. Sendo assim, a diferença de lugares constitui condição para a compreensão do sujeito/contexto pesquisado. Vale ressaltar que o eu e o outro é fundamental para o desenvolvimento da nossa pesquisa, já que os outros são os alunos participantes da OLPEF e os autores do projeto de ensino, sujeitos da pesquisa, presentes nos discursos materializados nos textos por nós tomados como unidades de análise — o Caderno “A ocasião faz o escritor” e as crônicas produzidas pelos alunos. Sobral (2005), ao comentar o texto de Bakhtin sobre o fazer pesquisa em ciências humanas, diz que toda pesquisa implica, em princípio, um conhecimento e um desconhecimento; conhecimento no sentido de impressões advindas do fenômeno, condição da pesquisa, pois se não tem idéia do que procura ao construir seu objeto, o pesquisador não o pode procurar, e desconhecimento, no sentido de que o pesquisador não percebe, nesse momento, aspectos do objeto que não se dão imediatamente ao olhar, porque, se já sabe tudo do objeto, o pesquisador não tem uma pesquisa a fazer. (SOBRAL, 2005. p. 115). No processo de fazer pesquisa dialógica, os sentidos nascem do confronto das diferentes vozes sociais que emergem da relação do pesquisador com seu outro ou outros. E esses sentidos só são dados ao pesquisador na forma de textosdiscursos, construídos nas fronteiras de duas (ou mais) consciências replicantes (no sentido de respostas). Para permitir essas diversas vozes falarem, os outros são inscritos no contexto da pesquisa, mas sem sua anulação. Pois, assim como diz Sobral (2005), nos termos bakhtinianos: o agir do sujeito é um conhecer em vários planos que une processo (o agir no mundo), produto (a teorização) e valoração (o estético) nos termos de sua responsabilidade inalienável de sujeito humano, de sua falta de escapatória, de sua inevitável condição de ser lançado no mundo e ter ainda assim de dar contas de como nele agiu (SOBRAL, 2005, p.118). 73 Conforme se pode depreender, o agir do pesquisador é um ato ético e responsável, assinado do lugar singular que este assume no contexto sócio-histórico preciso da pesquisa. Nisso consiste um dos pontos importantes dos movimentos de aproximação e de distanciamento no processo de fazer ciências humanas. É necessário pensarmos que qualquer texto precisa estar articulado no processo autoral, em que o autor criador mantém uma inter-relação com o objeto discursivo e seu interlocutor, integrados no elemento discursivo. Dessa assertiva pode-se depreender que estamos no âmbito das relações discursivas que não se restringem às formas de diálogo face a face, mas estão inseridas nas correntes discursivas. Tomamos, nesta pesquisa, as relações dialógicas e seus desdobramentos nas formas de vozes sociais e criação autoral como fundamentos para nos debruçar sobre as produções de crônicas dos alunos investigados na OLPEF (2010). Em conformidade com a orientação teórico-metodológica assumida, entendemos que não basta em uma pesquisa dialógica apenas coletar os dados, descrevê-los, falar deles, mas colocar nosso excedente de visão em prática, isto é, dialogizar com os dados e ouvir as vozes que se sobressaem, pois o pesquisador, em ciências humanas, precisa além de observar de fora, saber também ouvir os dizeres e transformá-los em palavras próprias. Assim, a relação entre pesquisador e pesquisado estabelece-se sempre no discurso. Fora dessa relação dialógica não há sentido, uma vez que estamos sempre mergulhados em contextos discursivos sóciohistoricamente constituídos. Além disso, a construção do sentido por meio das relações dialógicas é sempre um contínuo, constantemente reformulado pela compreensão criadora do outro. Amorim (2001) pensa essa reflexão do ponto de vista do labor do pesquisador que, a cada etapa, implica sempre um novo olhar, um reconstruir, porque: Compreender não deve excluir a possibilidade de uma modificação de seu próprio ponto de vista. O ato de compreensão supõe um combate onde o que está em jogo reside numa modificação e num enriquecimento recíprocos (AMORIM, 2001, p. 192). No movimento próprio do fazer científico, pensamos que a construção de sentido da pesquisa está em um plano discurso ininterrupto e é preciso vê-la na 74 alteridade, uma vez que, para produzirmos um texto, precisamos, além do conhecimento das formas relativamente estáveis dos gêneros do discurso, do contato direto com o outro, de modo participativo, e este contato sempre nos modifica. É por isso que Amorim (2001) afirma que o texto de pesquisa em ciências humanas se tece entre o lógico e o dialógico, entre a diferença e a alteridade. A compreensão dessa forma de relação passa pelo entendimento da criação autoral uma vez que: Buscar os destinatários é buscar as instâncias criadoras. Aqueles que, por oposição ou por acordo, compõem com o autor um diálogo permanente que atravessa o texto e constitui sua tensão de base. É também buscar as escolhas do autor: aqueles a quem ele escolheu responder e aqueles a quem ele escolheu não responder [...] (AMORIM, 2001, p. 16). Desse modo, entendemos que a linguagem são relações dialógicas e fora disso não existe possibilidade de sentido porque essas relações implicam sempre um ato de compreensão ativa em um processo de interação em que estão envolvidos no mínimo um autor, um objeto discursivo e um destinatário. Assim, o discurso é sempre direcionado e espera uma compreensão na forma de resposta ativa. Tais elementos são bastante pertinentes para refletirmos sobre como o material didático por nós analisado propõe o ensino-aprendizagem da prática discursiva do gênero crônica e de que forma os alunos apropriam-se da palavra do outro (do material didático) para construir seu próprio texto-discurso. Tendo em vista nossa fundamentação teórica e nosso objetivo principal, estabelecemos como categorias de análise os conceitos de dialogismo, vozes e autoria na perspectiva bakhtiniana. Tomamos por objeto de pesquisa a criação autoral dos alunos finalistas do concurso da OLPEF (2010), na categoria crônica, construída na interação com a proposta didática para o referido gênero. Para orientar melhor nossos procedimentos de pesquisa, elaboramos os seguintes objetivos de pesquisa: 1) Analisar o encaminhamento didático do Caderno “A ocasião faz o escritor” e os efeitos de sentidos provocados no espaço escolar. 75 2) Observar se as vozes9 que perpassam os discursos dos alunos demonstram autonomia no diálogo com o outro. 3) Analisar se os alunos conseguem alçar-se autores de suas crônicas para a OLPEF. Tais objetivos servem-nos de guia para alcançarmos as seguintes questões de pesquisa: 1) De que forma o Caderno “A ocasião faz o escritor”, da OLPEF, encaminha a proposta de formação de autores de crônica no espaço escolar? 2) Quais vozes os alunos mobilizam nas produções discursivas das crônicas? 3) Como a autoria se constituiu nas crônicas produzidas pelos alunos participantes da OLPEF? Na próxima etapa, apresentaremos os procedimentos metodológicos utilizados em nossa pesquisa para a coleta e análise de dados. 3.2 A base metodológica para a coleta dos dados Em consonância com a abordagem em um contexto sócio-histórico assumida, para o tratamento dos dados optamos pela investigação de natureza qualitativa numa perspectiva dialógica para a coleta, seleção e análise dos dados. Demo (2004) observa que uma das características encontradas pelo pesquisador dessa metodologia é a imprecisão dos conceitos, começando pelo de qualidade, para o qual o autor sugere pensá-lo como “intensidade” e não como extensão. Assim, na pesquisa qualitativa, é importante perceber o fenômeno, observar sequências, contextos, validar, interpretar, realçar valores, opiniões e atitudes. 9 O termo vozes é utilizado no sentido metafórico, pois na “teoria enunciativo-discursiva de Bakhtin, o conceito de vozes diz respeito à presença do outro como princípio constitutivo da produção e funcionamento discursivo. Compreende o processo real de representação da fala social de outrem no discurso e também diz respeito a um processo constitutivo da produção discursiva”. (SANTOS, S. N. A discursividade no caderno ―Ponto de Vista, da olimpíada da língua portuguesa escrevendo o futuro, 2011 p. 30-31) 76 A metodologia de investigação qualitativa tem sido bastante utilizada de forma articulada com a abordagem sócio-histórica no campo de pesquisa em ciências humanas. Isso porque ao tomar como sujeito-objeto o homem social que fala, as ciências humanas elegem o texto como o dado primário para a investigação. Entretanto, o objetivo não é o texto em si, mas a compreensão do comportamento a partir da perspectiva dos sujeitos envolvidos e, por meio deles, o contexto de interação. Pelas razões acima descritas, uma investigação qualitativa com enfoque sócio-histórico recusa a criação artificial de situação de pesquisa, mas busca a situação no seu processo de desenvolvimento porque objetiva compreender os fenômenos em toda sua complexidade e em acontecimento histórico. É nesse sentido que se diz que os estudos qualitativos adotam uma perspectiva de totalidade em que todos os componentes da situação e suas interrelações e influências recíprocas são considerados (FREITAS, 2002). Essa orientação é fundamentada anteriormente por Bodgan e Biklen (1994) para os quais, em investigação qualitativa, o pesquisador vai a campo com uma preocupação inicial, um objetivo central e questões orientadoras. A compreensão desses elementos implica uma aproximação no contexto da pesquisa a fim de se familiarizar com a situação e os sujeitos a serem estudados. Para tal compreensão, o pesquisador vai ao local em que acontecem os fatos de interesse na pesquisa, observa-os, recolhe material produzido no local relacionado a eles. Isso é o que os autores definem como trabalhar com dados qualitativos, os quais são: [...] ricos em pormenores descritivos relativamente a pessoas, locais, conversas, e de complexo tratamento estatístico. As questões a investigar não se estabelecem mediante a operacionalização de variáveis, sendo, outrossim, formuladas com o objetivo de investigar fenômenos em toda sua complexidade e em contexto natural [...] Privilegiam, essencialmente, a compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação (BODGAN; BIKLEN, 1994, p. 16) Assim, articulada à descrição minuciosa de textos ou imagens construídos no contexto de pesquisa estabelecem-se uma explicação, interpretação e análise dos dados em toda sua riqueza, respeitando a forma como eles foram registrados 77 porque, neste tipo de investigação, nada pode ser trivial e tudo tem potencial para se tornar elemento importante para compreender melhor o objeto pesquisado. A nosso ver, a investigação qualitativa de abordagem sócio-histórica é a metodologia mais adequada para pensarmos nossos dados e o objeto de pesquisa tendo em vista nossos objetivos, questões e preocupações subjacentes, por isso a inserção de nosso trabalho nesse campo de pesquisa. Essa metodologia também é coerente com a estratégia de investigação adotada que é a pesquisa documental, com base na qual tomamos duas fontes para a seleção dos corpora: o Caderno “A ocasião faz o escritor” e as produções de crônicas dos alunos finalistas da OLPEF. Na próxima etapa, vamos apresentar os dois corpora por nós constituídos e os procedimentos adotados em tratamento — a coleta e a seleção. 3. 3 O primeiro corpus: o Caderno “A ocasião faz o escritor” A fim de situar o leitor, o Caderno “A ocasião faz o escritor” faz parte da coletânea de materiais didáticos produzidos pela OLPEF com o objetivo de fomentar e subsidiar o trabalho de língua portuguesa tendo os gêneros textuais 10 como objeto de ensino-aprendizagem. Além do Caderno com foco no gênero crônica, por nós aqui analisado, o Programa elaborou também o Caderno poesias, de memórias e de artigo de opinião. Da forma como foram divididos os materiais, todas as séries escolares são contempladas pelo Programa, que adota a estratégia do concurso de produção textual, aplicado sempre nos anos pares, cujo fito é atrair alunos para o mundo da escrita e professores para a formação na perspectiva dos gêneros textuais11. Em termos gerais, a sequência didática constitui-se em um procedimento metodológico que envolve atividades variadas, organizadas de forma sistemática em torno de um objeto de ensino. Essa sistematização é subdividida em etapas que os autores denominam de apresentação da situação, produção inicial, módulos e 10 A perspectiva dos gêneros textuais é assumida pelo material analisado por nós. Entretanto, a perspectiva por nós assumida é a discursiva, conforme os referenciais teóricos por nós assumidos. Nesse trabalho, não vamos nos deter sobre essa questão uma vez que se trata de uma discussão sobre a qual, muitas vezes, não há nenhum consenso na academia, haja visto os trabalhos apresentados em diferentes encontros e seminários, como o SIGET (Simpósio Internacional de Gêneros Textuais). 11 O Caderno “A ocasião faz o escritor” (crônica) volta-se para alunos do 9º Ensino Fundamental e 1ª série do Ensino Médio; o Caderno “Poetas da Escola” (poesias) para os 5º e 6º anos do Ensino Fundamental e o Caderno “Se bem me lembro...” (memórias literárias) para 7º e 8º anos do Ensino Fundamental e o Caderno “Pontos de Vista” (artigo de opinião) para as 2ª e 3ª séries do Ensino Médio. 78 produção final. Segundo Barbosa (2001), a sequência didática supõe um caminho indutivo no percurso do qual o aluno é levado à manipulação, ao uso, à reflexão e à apropriação dos elementos que constitui um gênero. A intenção é levar o aluno do complexo (produção inicial) para o simples (discretização dos elementos do gênero) e de volta para o complexo (produção final). Nosso interesse por esse Programa insere-se no contexto maior do projeto de pesquisa (Programa de Pesquisa do Perfil circulação e uso do livro didático de Língua Portuguesa (LDP-Properfil), cujas ações no âmbito do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem são orientadas por Padilha (2004). A partir do ano de 2008, com a institucionalização da OLPEF, o grupo de pesquisa passa a se interessar pelos materiais do tipo Cadernos elaborados por esse Programa a fim de responder à ausência de avaliação institucional desses materiais presentes em todas as escolas públicas do país, além de pensar se o montante de investimento público-privado feito no Programa e a amplitude de suas ações alcançam os seus fins principais. Como parte das ações desse grupo de pesquisa com esse enfoque já foi desenvolvido um trabalho de mestrado e três encontram-se em andamento. Em relação à nossa escolha pelo Caderno “A ocasião faz o escritor”, percebemos que a crônica é, muitas vezes, tratada no espaço escolar de forma simplificada e fragmentada, com o objetivo de formar o leitor. Considerando o baixo número de materiais didáticos voltados para o ensino-aprendizagem da produção escrita do gênero crônica, e levando em conta o fato de se tratar de um gênero híbrido que carrega estilos e formas variadas com um potencial imenso de reflexões, achamos altamente pertinente analisar como o material encaminha o projeto de ensino e, se dessa forma, favorece a formação do aluno-autor. Para coleta e seleção de dados do Caderno, servimo-nos de duas versões desse documento: uma impressa e outra digital. O acesso ao documento impresso desta pesquisa foi nos dado por nossa orientadora, que também é a docente formadora do Programa no Estado de Mato Grosso. A versão digital do documento foi acessada no site da comunidade virtual do Programa12. Na próxima seção, apresentamos o processo de escolha, coleta e seleção do segundo corpus. 12 Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro: www.escrevendoofuturo.org.br; www.escrevendo.cenpec.org.br 79 3.4 O segundo corpus: as produções de crônicas dos alunos Nosso segundo corpus é constituído pelas produções de crônicas de alunos finalistas da OLPEF (2010). O enfoque em produções de crônicas de alunos em contexto escolar pode nos permitir entender a interferência das práticas pedagógicas na formação do aluno-autor. Além disso, é interessante estudar um gênero de natureza social híbrida como o é a crônica e ver como ele permite versar sobre aspectos sociais altamente complexos a partir do olhar singular do cotidiano. Este gênero nos mostra a importância do olhar coletivo, da presença da voz do outro em nossos discursos. Vale ressaltar ainda que falar em crônica nos permite aproximar de um gênero que, muitas vezes, tem sido tomado de forma inapropriada no espaço escolar. Assim, muitas vezes o estudo da crônica fica restrito a leituras focadas na temática e nas questões gramaticais, não sendo o mesmo tomado como gênero discursivo. Diante disso e da presença ainda insuficiente de estudos brasileiros voltados para a crônica como objeto de ensino-aprendizagem escolar, a nossa escolha pretende ampliar a compreensão desse objeto ainda pouco estudado pelos alunos em dinâmicas escolares. Os dados referentes às produções de crônicas dos alunos foram coletados no site da comunidade virtual do Programa que as disponibiliza em arquivo pdf. O Programa também publica esses textos finalistas em um livro ao qual não tivemos acesso. Para a coleta e escolha de dados, selecionamos um corpus com 150 textos de crônicas. Após uma leitura cuidadosa do corpus, selecionamos dele dez textos que mais se aproximaram da prática discursiva do gênero crônica, já aqueles textos, cuja autoria estava colada (revozeada) nos textos exemplares em crônica fornecidos pelo projeto de ensino, foram descartados. É interessante observar que as crônicas finalistas por nós coletadas já passaram por pelo menos quatro seleções: a melhor da sala, da escola, do município e do estado. Era de pressupor, então, que os alunos, nessa etapa, tivessem mais familiaridade com a prática discursiva do gênero, o mesmo podendo ser estendido aos professores. A presença maciça de textos com autoria colada nos 80 textos exemplares no gênero fornecidos pelo projeto de ensino nos serve para refletir sobre a dimensão que adquire o material didático em seu processo de produção. Para não restringirmos os dados da pesquisa a uma determinada localidade, a escolha dos dez textos também foi feita de acordo com as cinco regiões participantes, contemplando cada região com dois textos, o que em percentual equivale a 20% por região. Ao organizar a composição do corpus das produções da forma como está apresentada no gráfico abaixo pretendíamos nos servir de uma amostra, cujos dados fossem representativos das cinco regiões do Brasil: Centro Oeste, Sul, Norte, Sudeste e Nordeste. Gráfico 1: Percentual de participantes por região do corpus selecionado. Assim, nosso corpus de pesquisa foi constituído das melhores crônicas finalistas do concurso de produção textual da OLPEF. Para fazermos essa seleção observamos, principalmente, como os alunos mobilizavam conhecimento de mundo e da cultura e os integravam aos seus discursos, sem nos ater tanto à adequação gramatical por não acreditarmos ser esse o critério definidor de um bom texto. Na seção a seguir, apresentamos os corpora constituídos a partir da coleta e seleção dos dados. 81 3.5 A base metodológica para análise dos dados Para proceder à análise dos dados de forma a responder nossas questões de pesquisa e atingir nossos objetivos propostos realizamos os procedimentos a seguir. Em relação aos dados do Caderno “A ocasião faz o escritor” havíamos definido como preocupação subjacente analisar como o encaminhamento didático do projeto de ensino favorecia a formação do aluno-autor, isto é, a assunção da autoria do aprendiz do gênero crônica. Para isso, fizemos uma leitura cuidadosa de todo o projeto de ensino e levantamos a quantidade de oficinas e de atividades. A sequência didática do gênero crônica no Caderno “A ocasião faz o escritor” está organizada em 11 oficinas, que compreende 39 atividades. De posse dessas informações e sem perder de vista nosso objetivo principal de investigar as contribuições do projeto de ensino em prol da formação do alunoautor, tomamos para análise atividades que tematizam de alguma forma elementos propícios para pensar a construção de sentidos no gênero crônica e, subjacente a isso, a autoria do aluno. Partindo do pressuposto de que os aspectos linguísticodiscursivos constituem pistas altamente importantes para conhecer aqueles elementos, decidimos tomar como amostra para análise algumas atividades de didatização dos aspectos linguístico-discursivos do gênero crônica. Em relação às produções, durante o processo e análise dos dados, observamos a adequação discursiva dos textos e não a adequação linguística.13 Nesse procedimento, olhávamos os textos dos alunos tentando encontrar as marcas de autoria, para isso, o estilo mostrou-se bastante pertinente. Observávamos também até que ponto os alunos atendiam aos elementos presentes nos critérios de avaliação do próprio Caderno. No que diz respeito à preocupação com a autoria, consideramos textos com autoria aqueles em que podíamos sentir uma orientação discursiva bastante clara e reflexiva, que buscaram, além das normas gramaticais, trazer as vozes que fazem pensar a realidade do cotidiano; vozes que não só reproduziam dizeres alheios, mas 13 Entendemos que a adequação linguística está interligada com a adequação discursiva. A divisão aqui assumida deve-se ao nosso foco neste trabalho de investigar se os alunos conseguem ser autores de crônicas. Para atingir esse objetivo, nosso olhar está direcionado para a situação de produção e para o estilo do gênero. Estes elementos caracterizam adequação discursiva. 82 que conseguiam mostrar o teor da crônica com originalidade e representatividade estilística, sem abandonar as questões críticas e criativas do gênero. Ancorados no método qualitativo de perspectiva dialógica, buscamos um olhar mais reflexivo, para que pudéssemos entender como a discursividade foi construída pelos alunos. Por isso, levantamos elementos que nos permitissem entender a orquestração das vozes que compunham os textos dos alunos finalistas da OLPEF. Aqui, trata-se apenas de uma amostra dos elementos que foram privilegiados na escrita da crônica e seus desdobramentos. Esses elementos nos serviram para pensar se o aluno alçou-se autor do seu próprio discurso. No próximo capítulo, procederemos à análise do Caderno “A Ocasião faz o escritor”, material selecionado para orientação de produção de textos, e posteriormente, analisaremos de forma detalhada as crônicas dos alunos finalistas participantes do segundo concurso da OLPEF (2010). 83 CAPÍTULO IV A Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro: Um Olhar sobre o caderno de crônicas “A ocasião faz o escritor” [...] (a crônica) para muitos pode servir de caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura. Por meio dos assuntos, da composição solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. (Antonio Candido) No capítulo 4, pretendemos apresentar como está constituído o projeto de ensino do gênero crônica no Caderno “A ocasião faz o escritor”. Para isso, antes, pensaremos um pouco sobre a constituição do gênero crônica tomada do ponto de vista historiográfico, literário e, por fim, discursivo. Para entender a proposta de ensino da crônica presente no Caderno, apresentamos a base teórica e metodológica que lhe dá fundamento, a Escola Didática de Genebra, para, nas próximas seções, fazermos uma análise mais detalhada de como a sequência didática está organizada internamente e quais são os elementos do gênero privilegiados em seu processo de didatização. O Caderno destinado ao ensino do gênero crônica do Programa Olimpíada de Língua Portuguesa: Escrevendo o Futuro, A ocasião faz o escritor, traz um título que nos remete para a observação de situações cotidianas, nas quais a interação é o ponto norteador para a formação dialógica, na constituição do sujeito-autor. Esse movimento dialógico é importante para nosso trabalho, pois perfaz um dos nossos focos, constituindo parte de nosso objetivo nesta pesquisa: o de analisar o projeto didático do referido Caderno e seus efeitos de sentidos suscitados na esfera escolar, onde circula o Caderno. Dessa forma, para analisarmos o Caderno A ocasião faz o escritor, das orientações aos professores às atividades dirigidas aos alunos, apresentaremos algumas definições propostas por críticos literários e linguistas aplicados acerca desse gênero. Nosso intuito é entender as aproximações e os distanciamentos entre 84 alguns conceitos em relação à crônica, a fim de entendermos qual perspectiva o material assume para orientar a prática do professor e dos alunos. Nesse diálogo com os conceitos advindos da Literatura e da Linguística Aplicada, detalharemos alguns deles, por considerarmos que se trata de um gênero multifacetado, o qual, conforme pontua Candido, na epígrafe, permite uma construção solta, livre, o que já impede, de certa forma, uma classificação rígida em determinado tipo. Do ponto de vista bakhtiniano, sob uma perspectiva sóciohistórica, é difícil estabelecermos um modelo de gênero prévio, o que podemos, na verdade, é levantar alguns aspectos que estiveram/estão presentes em suas manifestações concretas e, desse apanhado, fazermos alguns apontamentos. Feita a historicidade do gênero (origem, conceito), descreveremos, nas seções seguintes, o Caderno de crônicas, a fim de observar e analisar as orientações apresentadas teoricamente no material de apoio ao professor e de que forma auxiliam na construção de uma prática ativa do desenvolvimento dos alunosautores, participantes do concurso. Além disso, analisaremos as atividades do Caderno para compreendermos como as atividades colaboram para a formação dos alunos-autores. 4.1 O Gênero Crônica A crônica pode ser considerada um gênero híbrido, presente na literatura e no jornalismo. Ela foge da característica comum aos outros gêneros do discurso jornalístico, por conta da sua linguagem que oscila passando entre língua formal e a informal. Dessa forma, não podemos restringir nosso estudo apenas para o conteúdo temático, mas devemos observar também o estilo do cronista, dada a flutuação que ocorre no uso da língua nas crônicas. A crônica surge como um relato de acontecimentos históricos, registrados por ordem cronológica nos moldes da historiografia medieval. Apresentava uma visão mais geral (acontecimentos de uma nação de um povo) ou mais particular (fatos ligados à vida de um rei), assim como podia destacar fatos mais relevantes ou secundários, geralmente, ligados à nobreza. A partir de Fernão Lopes, no século XVI, é que a crônica começou a tomar uma perspectiva individual ou interpretativoartística. Podemos visualizar mesmo esse aspecto até em crônicas do século XV 85 como no trecho da Crônica da Guiné, abaixo transcrito, do cronista medieval português, Gomes Eanes de Zurara, o qual incide sobre o momento da distribuição dos africanos capturados pelos portugueses: Mas, para seu dó ser mais acrescentado, sobrevieram aqueles que tinham cárrego da partilha e começaram de os apartarem uns dos outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde o a sorte levava. Ó poderosa Fortuna, que andas a desandar com tuas rodas, compassando as cousas do mundo como te praz! E sequer põem ante os olhos daquesta gente miserável algum conhecimento das cousas postumeiras, por que possam receber alguma consolação em meio de sua grande tristeza! E vós outros, que vos trabalhais desta partilha, esguardai com piedade sobre tanta miséria e vede como se apertam uns com os outros, que apenas os podeis deslegar! ¿Quem poderia acabar aquela partição sem mui grande trabalho? — ca, tanto que os tinham postos em uma parte, os filhos, que viam os padres na outra, alevantavam-se rijamente e iam-se para eles; as madres apertavam os outros filhos nos braços e lançavam com eles de bruços, recebendo feridas com pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados (Eanes de Zurara. Crônica da Guiné apud R. LAPA, 1940, pp. 50-54). Neste pequeno excerto da Crônica da Guiné, podemos perceber que Zurara, apesar de não criticar o expansionismo conquistador português, deixa transparecer uma nota de humanismo diante da cena de distribuição da leva de africanos que, capturados nas expedições, foram levados a Portugal e distribuídos como “mercês” entre nobres portugueses. Notamos no relato de distribuição uma interpretação artística da cena mostrada como dolorosa ao retratar os africanos sendo organizados em lotes e separados de seus filhos e amigos com brutalidade. A crítica costuma apontar que o pensamento crítico na crônica surgiu com a imprensa periódica (folhetins e jornais), no século XIX. Entretanto, a esse respeito é preciso cautela, pois as crônicas de Fernão Lopes, escritas no século XVI, já trazem em si notas não apenas interpretativas, mas também críticas, acerca dos acontecimentos relatados, como bem demonstra um trecho por nós selecionado da Crônica de D. Pedro I, em que o cronista retrata o momento do castigo dos assassinos de Inês de Castro: A maneira de sua morte, sendo dita pelo miúdo, seria mui estranha e crua de contar, ca mandou tirar o coração pelos peitos a Pero Coelho, e a Àlvaro Gonçalves pelas espáduas; e quais palavras ouve, e aquele que lho tirava, que tal ofício havia pouco em costume, seria bem dorida cousa d’ouvir, enfim mandou-os queimar; e tudo feito ante os paços onde ele pousava, de guisa que comendo olhava quanto mandava fazer. 86 Muito perdeu el-Rei de sua boa fama por tal escambo como este, o qual foi havido em Portugal e em Castela por mui grande mal, dizendo todolos bons que o ouviam, que os Reis erravam mui muito indo contra suas verdades, pois que estes cavaleiros estavam sobre segurança acoutados em seus reinos (Fernão Lopes. Crônica de D. Pedro I, apud CAMPOS, 1921, pp. 57-59). Podemos notar que Fernão Lopes deixa transparecer, ainda que indiretamente “dizendo todolos bons que o ouviam”, certa apreciação negativa acerca da atitude de D. Pedro I, o que denota, portanto, uma crítica ao comportamento do rei. Voltando à idade moderna, a presença da crônica nos jornais iniciou com um pequeno texto de abertura que falava de maneira geral dos acontecimentos do dia. Em seguida, passou a assumir um espaço nos folhetins (coluna da primeira página do periódico) e, por fim, adentrou de vez o Jornalismo e a Literatura. De acordo com Sá (1987), a crônica, assim como o jornal, nasce, cresce, envelhece e morre em vinte e quatro horas. Pelo fato dessa veia jornalística imprimir fugacidade e um traço popular que se opõem ao caráter dos gêneros literários, talvez a crítica a considere como um gênero menor. Coutinho (1995), ao contrário, aponta que o fato de a crônica estar ligada ao jornalismo não a desmerece literariamente. Isso porque, segundo ele, o jornalismo tem no fato o seu objetivo primeiro, enquanto a crônica só toma o fato como pretexto para o autor imprimir sua imaginação criadora, visando somente o prazer estético e não a informação, o ensinamento, a orientação. O autor pontua ainda que o prazer estético, muitas vezes, decorre da leitura da crônica em livros e não necessariamente em jornais, a exemplo da obra de Fernando Sabino, Rubem Braga, entre outros. Segundo Sá (idem), no Brasil, a crônica surgiu com Pero Vaz de Caminha, no retrato que fez ao Rei de Portugal da terra descoberta, mobilizando uma forma subjetiva para apresentação dos índios, dos costumes, do momento de confronto entre cultura europeia e primitiva. Caminha relata a terra descoberta de maneira que se assemelha mais a um cronista do que a um historiador. A crônica se refere a um gênero literário, que, num primeiro momento, era um "relato cronológico dos fatos sucedidos em qualquer lugar” 14 , buscando enfatizar uma narração de episódios históricos. Era a chamada "crônica histórica" (como a medieval), que apresenta uma relação mútua com o tempo e a memória, 14 Trecho escrito por Afrânio Coutinho, “A literatura no Brasil” – Volume III – RJ. São José 1964. 87 evidenciada pela própria origem grega da palavra, Chronos, que significa tempo. Então, a crônica, desde sua origem, é um "relato em permanente relação com o tempo, de onde tira como memória escrita, sua matéria principal, o que fica do vivido".15 Com o passar do tempo, a crônica tomou novos rumos, pois não existia somente para a história, mas com o surgimento da imprensa, do jornal, da TV, enfim, a partir dos variados avanços dos meios de comunicação, a crônica começou a ser vislumbrada como “folhetim”. Sobre isso, vejamos os dizeres de João R. Faria, no prefácio de crônicas escolhidas de José de Alencar, que diz o seguinte: Naqueles tempos, a crônica chamava-se folhetim e não tinha as características que tem hoje. Era um texto mais longo, publicado geralmente aos domingos no rodapé da primeira página do jornal, e seu primeiro objetivo era comentar e passar em revista os principais fatos da semana, fossem eles alegres ou tristes, sérios ou banais, econômicos ou políticos, sociais ou culturais. O resultado, para dar um exemplo, é que num único folhetim podiam estar, lado a lado, notícias sobre a guerra da Criméia, uma apreciação do espetáculo lírico que acabara de estrear, críticas às especulações na Bolsa e a descrição de um baile no Cassino.16 Dessa maneira, a crônica perpassava por vários tons da escrita, de forma a organizar composicionalmente o que queria dizer, tendo em vista que os temas propostos, até hoje, não necessariamente precisam seguir um único olhar ou forma exata. Os títulos podem ressaltar uma variedade de fatos, tanto para expor, narrar, descrever ou argumentar. O autor de crônicas, necessariamente, apresenta-se como sintético, tem rapidez nas ideias e possui habilidades para construir e reconstruir sentidos. Tudo passa pelo real e ficcional. De forma que seu texto diz muito, falando pouco sobre o mesmo assunto. O gênero crônica apresenta um diálogo constante entre locutor e interlocutor, que expõe características peculiares marcadas por momentos formais e informais, entre níveis cultos e coloquiais. Com isso, podem-se quebrar os estereótipos que separam os dizeres da vida real e das aventuras ficcionais, discursos de cunho jornalístico e literário e, a partir desse contexto, evidenciam-se Texto de Davi Arrigucci Jr, “Fragmentos sobre a crônica”, Folha de S.Paulo, 1987. João Roberto Faria, no prefácio (Alencar conversa com os seus leitores) de "Crônicas escolhidas - José de Alencar" - São Paulo: Ed. Ática e Folha de S. Paulo, 1995 15 16 88 circunstâncias ligadas à espontaneidade, ou seja, o cronista apresenta em seus enunciados uma forma mais livre no dizer. Como afirma Candido (1997), é pretexto para pequenas criações ficcionais que, por vezes, poesia e prosa confundam-se. A partir disso, vê-se que, quando o cronista registra o acontecimento, interpreta-o num contexto maior, deixa marcas de seu estilo individual, no qual ultrapassa as questões padronizadas, podendo assumir um texto plurissignificativo. Esse aspecto faz da crônica um material diferenciado, que vai além da efemeridade de um periódico para compor algo mais completo e inovador, pois perpassa pelo estilo, forma composicional de cada escritor e o “querer dizer”, relacionado ao tempo, momento e circunstâncias vividos pelo autor. A crônica atinge os valores éticos sem perder seu valor estético, ou seja, o cronista consegue capturar com seu toque de lirismo e trazer à tona reflexões tocantes às condições humanas. Antonio Candido diz que Na crônica, "Tudo é vida, tudo é motivo de experiência e reflexão, ou simplesmente de divertimento, de esquecimento momentâneo de nós mesmos a troco do sonho ou da piada que nos transporta ao mundo da imaginação. Para voltarmos mais maduros à vida...” 17. Como se vê no excerto acima, a crônica liga-se aos eventos da vida e é, muitas vezes, motivada para gerar novas experiências e amadurecimento para o cotidiano. Mesmo que a crônica seja revestida por um tom literário, ela deixa de lado a métrica rigorosa dos “poetas parnasianos” e assume, em grande parte, sua posição a favor e ao encontro da cultura. A crônica adotou um estilo peculiar, em que a liberdade de tom sobrepõe-se a um simples relato e passa a compor um panorama vivo de situações e comportamentos da vida cotidiana. Candido (1981) salienta que um dos valores da crônica está em mostrar a oralidade na escrita, na quebra de normas e na aproximação com os elementos mais naturais do nosso tempo. Candido (idem) compreende que a crônica, por meio de uma simples conversa cotidiana, consegue expressar coisas sérias de cunho social, já que procura entrar na vida íntima (privada) das pessoas para gerar uma Antonio Candido, no ensaio "A vida ao rés-do-chão”, p. 13. In: CANDIDO, A.et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. 17 89 reflexão sobre a prática social. Para ele, a crônica consegue recuperar com simplicidade, leveza, rapidez o cotidiano e, assim, por meio da humanização, leva o leitor a enxergar a realidade do jeito que ela é, possibilitando que recupere uma dimensão de tudo que o rodeia. Consideramos interessantes os apontamentos de Campos sobre releituras de Candido, para a qual O fato de a crônica não ter a pretensão de durar, porque se abriga num veículo transitório, faz com que seus escritores assumam a perspectiva não daqueles que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão. (CAMPOS, 2002 p. 78) Dessa forma, compreendemos que, mesmo pelo fato da crônica durar pouco tempo e ser considerada por alguns autores como gênero menor, isso não faz dela um gênero pior ou melhor que os outros, mas sim nos faz pensar como a crônica é rica e ampla de possibilidades dialógicas, interagindo em múltiplos contextos com variados grupos sociais. Para Rubem Braga (1980), o que importa são os pequenos momentos que também fazem parte da condição de cada ser humano. Por isso, ele afirma: “A verdade não é o tempo que passa, a verdade é o instante”. Conforme o autor, os instantes são breves, onde se esconde a complexidade das nossas dores e alegrias. Em outras palavras, a pressa de viver desenvolve no cronista uma sensibilidade especial, que o predispõe a captar com maior intensidade os sinais da vida que muitas vezes deixamos escapar. Ele vê na crônica uma forma de devolver a cada ser humano o que a realidade, muitas vezes, nos sufoca e não nos permite visualizar na vida cotidiana. Campos (2002) afirma que Essas explicações acabam por afirmar que o cronista moderno é o narrador da história escrita na contemporaneidade. Com a modernização das sociedades, as relações de troca recíproca de experiências se fragilizaram e as prioridades se aglutinaram ao redor das meras vivências. (CAMPOS, 2002, p. 80) Concordamos com Campos quando afirma que o cronista moderno é o narrador da história escrita na contemporaneidade, e pensamos que toda crônica 90 não deve ficar restrita somente às meras vivências dos interlocutores, mas buscar uma reflexão sócio-histórica que agrega arte, vida, ciência, criatividade, humor, política e muito mais. Pois a crônica não pode ficar restrita somente a um determinado foco, ela precisa circular de forma que contemple as demandas sociais e culturais. A esse respeito, Campos completa que A narrativa nem tem fim e nem promete explicações. A conclusão parece estar sempre em aberto, pois a própria vida é suscetível de novo prolongamento. O cronista é também um historiador, um intérprete que apresenta e recria um acontecimento, alguém que narra e vive sob o primado do cotidiano (CAMPOS, p. 80) Assim, entendemos que o cronista, ao construir seu texto, tem sempre liberdade para construir novos dizeres livremente, mobilizar novas vozes sociais, vozes que entrecruzam no texto, não são dizeres passivos, mas são vozes que respondem, questionam, refletem, renovam a cada instante o dizer do outro de forma a construir ou desconstruir o já dito muitas vezes. Por isso, na crônica encontramos liberdade de tom (estilo), pois nenhum ser humano pensa da mesma forma e a configuração e o funcionamento desse gênero permitem plasmar e refratar a “arena de vozes” que constituem as manifestações discursivas em crônica. A crônica é um gênero que acompanha de forma bastante satisfatória o fluxo contínuo e rápido do tempo dos acontecimentos na contemporaneidade e consegue refletir bem a grande incompletude humana. Assim são as crônicas, não há como padronizá-las, uma vez que as mesmas apresentam pontos diferentes em sua abordagem. Bakhtin nos diz que os gêneros são fenômenos de pluralidade, múltiplos e jamais podem ser vistos como algo passível de classificação, como se pode observar em algumas classificações recorrentes para a crônica: crônica literária, jornalística, crônica esportiva etc. Acreditamos que é possível romper com tal classificação, se pensarmos na possibilidade de entender o projeto discursivo do cronista e, assim, refletir sobre as diferentes perspectivas que a vida cotidiana assume em uma determinada crônica. Partindo dessa proposição, ao analisarmos o Caderno de crônicas produzido para a Olimpíada de Língua Portuguesa, buscamos identificar qual a perspectiva assumida pelo material para o ensino da crônica. As autoras Laginesta e Pereira (2010) afirmam que o Caderno foi pensado para atender as necessidades do professor. Para isso, há uma série de oficinas e de 91 atividades escolares elaboradas para os alunos participarem da Olimpíada da Língua Portuguesa e, assim, eles serão levados a aperfeiçoarem seu conhecimento em relação ao texto escrito e, ao mesmo tempo, desenvolver suas habilidades para serem autores de crônica. Com base no trabalho do grupo de Genebra para o ensino-aprendizagem dos gêneros, a organização do Caderno se dá via sequência didática. Para as autoras, a participação dos alunos no projeto da Olimpíada demonstra que o trabalho com a escrita é desafiador, uma vez que escrever faz parte de um ato consciente. Espera-se que, por meio da sequência didática, o aluno (participante da Olimpíada), subsidiado pelo professor, consiga ver a escrita como um instrumento imprescindível para a formação do cidadão e fomentador de novos conhecimentos. Elas acreditam que produzir textos é um exercício complexo que requer aprendizagem a longo tempo. Mas a equipe organizadora do Caderno arrisca e confia que, por meio de várias sequências didáticas, o aluno pode acelerar a construção do conhecimento em relação ao gênero Crônica. Desse modo, entendemos que as autoras, nas orientações dadas aos professores, de um lado, objetivam a formação deles, pois a sequência didática constitui-se em uma ferramenta para aliar teoria e prática, pois há uma organização que permite a esses professores compreenderem o gênero em si e também abre possibilidades para entenderem a importância do contexto sócio-histórico para o ensino da produção escrita. De outro lado, essa sequência é o ponto de partida para os alunos tornarem-se autores autônomos, uma vez que já conheceram o funcionamento do gênero crônica. Assim, podemos dizer que essa maneira de ensinar o gênero seja uma das diferenciações da proposta. Para melhor situar o leitor sobre como é conceituada a crônica pelo Caderno, discorreremos brevemente como essa apresentação é realizada. As autoras do Caderno de crônica colocam, na seção Introdução, a qual dará início ao conceito do referido gênero, esta pergunta: O que é crônica? Para suscitarem respostas, fazem, primeiramente, algumas perguntas básicas como podemos visualizar no trecho abaixo: 92 LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.17. Após esses questionamentos sobre a constituição do gênero crônica, a equipe responsável apresenta uma crônica do escritor Ivan Ângelo, em que as respostas das questões anteriores estão direcionadas para o texto do cronista, conforme o excerto abaixo. LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.17. Após a apresentação da crônica de Ivan Ângelo, as autoras fazem um breve retrospecto da história do gênero, em que elas expõem como a crônica foi apresentada no Brasil, de que forma ela influenciou a vida cotidiana e uma pequena explicação de como serão tratadas as oficinas (tempo, organização, material disponível com acompanhamento de coletânea de crônicas em CD- ROM). Os comentadores do material apresentam que o professor deve estabelecer com o aluno maior contato com o gênero crônica. É enfatizada, em todas as oficinas, a 93 importância da preparação tanto do aluno como do professor na formação de autores de textos socialmente eficazes em favor da proficiência e da cidadania. Na análise do material, observamos que as autoras tecem comentários sobre o contexto de produção das crônicas alicerçado à noção literária, pois fazem alusão às crônicas literárias. As autoras falam sobre a produção de crônicas literárias, procurando apresentar características que lhes são inerentes, como “recursos literários e estilo pessoal”, “retrato de situações humanas atemporais”, os temas estão relacionados à ética, relacionamento humano, relação entre grupos econômicos, sociais e políticos, os personagens podem ser reais ou fictícias. Tudo isso para que os professores consigam diferenciar essas crônicas de outras para ensinarem, posteriormente, a seus alunos, participantes do projeto. Após essa breve explicação, as autoras direcionam seu discurso para uma noção mais ampla, sem especificar o tipo de crônica, conforme o excerto abaixo. LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.22. Entendemos que o material apoia-se, neste instante, em duas noções para compreender a crônica. A primeira diz respeito à literariedade, pois o tratamento 94 didático sinaliza para uma visão pragmática, isto é, a crônica é descrita pelas suas marcas literárias, pelos recursos linguísticos e estruturais, os quais determinam a crônica como sendo pertencente à esfera literária. A segunda noção está atrelada na tentativa do material em assumir uma prática discursiva para a crônica, pois, em boa medida, nas atividades, há um esforço em se trabalhar a tríade do gênero crônica (estilo, conteúdo temático e forma composicional). Entretanto, como já dissemos, este material está ancorado na escola de Genebra, cuja abordagem é textual, pois os pesquisadores genebrinos, em especial Jean Paul Bronckart, renomeia o gênero discursivo como gênero textual. Essas duas noções nos fazem pensar que o tratamento didático dispensado ao gênero crônica oscilou entre algumas esferas de produção do referido gênero, em que a literária foi a mais destacada, conforme a tabela abaixo. Autor Papeis sociais Título da Crônica Fronteiras entre as Esferas de Produção Ivan Ângelo Fernando Sabino Joaquim Manuel de Macedo José Alencar Paulo Mendes Campos Tostão Maria Prata Carlos Heitor Cony Rachel de Queiroz Armando Nogueira Affonso Romano de Sant’Anna Ferreira Gullar Arnaldo Jabor Jornalista e cronista Cronista, romancista, contista, editor e documentarista Escritor e cronista Sobre a crônica A última crônica Jornalística impressa Literária A rua do ouvidor Literária Escritor e cronista Escritor e cronista Falemos das flores Ser brotinho Literária Literária Jogador, médico, comentarista esportivo e colunista Escritor e cronista Jornalística/literária Jornalista, escritor Conformados e realistas Quem tem medo da mortadela Do Rock Escritor e cronista A arte de ser avó Literária Repórter, redator, colunista, Peladas Escritor e cronista Variações em torno da paixão Sobre o amor Jornalística/esportiva/ literária Literária Escritor e cronista Cineasta, roteirista, diretor de cinema e TV, produtor cinematográfico, dramaturgo,crít Amor Literária Jornalística/Literária Literária Jornalística/literária 95 Machado de Assis Moacir Scliar Rubem Braga Luis Fernando Verissimo Milton Hatoum ico, jornalista, escritor, cronista Escritor e cronista Um caso de burro Literária Escritor e cronista Escritor e cronista Escritor e cronista Cobrança O cajueiro A bola Literária Literária Literária Jornalista, professor, escritor e cronista São Paulo: as pessoas de tantos lugares Jornalística/literária Quadro 2: Levantamento das crônicas selecionadas para o Caderno Os dados desse quadro reafirmam algumas informações presentes no Caderno “Na Ponta do Lápis” (doravante NPL) do Cenpec. Este material é uma publicação complementar em que vários especialistas tecem comentários sobre as produções dos alunos referentes a todos os gêneros contemplados na Olimpíada de Língua Portuguesa. Neste caderno, observamos que autora Cloris Porto Torquato conduz os professores a categorizar a crônica como um gênero pertencente à esfera literária, embora reconheça seu hibridismo, por oscilar entre a esfera literária e jornalística. Segundo a autora, “Distinta das notícias jornalísticas por ter um caráter literário, a crônica caracteriza-se como um gênero híbrido e complexo” (CENPEC, NPL, nº 15, 2010, p. 20). A própria avaliadora em outros momentos do seu texto “O cotidiano em foco” assume a crônica como das artes verbais, da literatura. Conforme a avaliadora: Embora tenha herdado do jornalismo a variedade de assuntos, o apego ao cotidiano e a aparência de simplicidade, a crônica, por ser um gênero literário, partilha de uma característica da literatura: é uma tentativa de apreender a vida, de recortar um momento vivido (já que o todo da vida não pode ser condensado nem fixado, porque está em processo, em acontecimento), para tentar refletir sobre e compreender as ações, os acontecimentos, os costumes, as emoções, os pensamentos, as crenças; enfim, o ser humano e a vida (CENPEC, NPL nº 15, 2010, p. 21) [grifo nosso]. Essas ponderações apontam que o material acredita quea esfera literária seja o lugar de produção da crônica. Talvez esse direcionamento deva-se às relações 96 dialógicas estabelecidas com dois outros materiais da Olimpíada de Língua Portuguesa pertencentes à esfera literária: memórias literárias e poemas. Na próxima seção, apresentaremos a organização da sequência didática pensada para o ensino do gênero crônica. 4.2 Da teoria à metodologia do Caderno “A ocasião faz o escritor” O Caderno da Olimpíada, “A ocasião faz o escritor”, trouxe, em parte, grandes avanços significativos para o processo de ensino-aprendizagem da escrita, uma vez que muitos livros didáticos costumam trazer apenas poucas explicações fragmentadas para definir crônicas, ou seja, pequenos trechos que, pela sua simplificação, não proporcionam aprendizagem ao aluno, somente localização e decodificação de conteúdo, o que, muitas vezes, compromete a compreensão do gênero. Essa prática é um trabalho com a escrita sem função, visto que aparece praticamente “destituído de qualquer valor interacional, sem autoria e sem recepção” (ANTUNES, 2003, p. 26). Os alunos escrevem sem estabelecer diálogos com outros textos e com outros leitores. Outra prática comum é não fazer uso do discurso alheio, neste caso, citações e aspas costumam aparecer pouco nas produções escritas escolares. Essa prática, digamos, silencia o dialogismo que é constitutivo da linguagem. Assim, a escrita seria uma atividade com a linguagem em que, infelizmente, “não há um sujeito que diz, mas um aluno que devolve a palavra que lhe foi dita pela escola” (GERALDI, 2006 [1984], p. 127). Essa prática nos mostra como as atividades de produção de escrita costumam ser trabalhadas e, em boa medida, mesmo hoje, encontramos alguns materiais que abordam com superficialidade os gêneros propostos para a prática de produção de texto. Em contrapartida, nos últimos tempos, tem-se falado e pesquisado muito sobre a prática de produção de texto, em que os gêneros são tomados como objetos de ensino. De acordo com as teorias que apresentamos nos capítulos anteriores deste trabalho, percebemos que a proposta do Caderno de crônica alinha sua construção didático-pedagógica com a didática de ensino de língua materna da 97 “Escola de gêneros de Genebra” que, por sua vez, dialoga com a teoria vigotskiana e com o círculo de Bakhtin. De maneira geral, conforme já citamos alhures, a Escola Didática de Genebra, representada por Schneuwly (2004[1994]), toma o gênero como um instrumento ligado ao processo semiótico, o qual dá subsídio e possibilita a comunicação. Já na visão de Vigotski (1930), a aprendizagem dos usos da língua sai do social para o individual e acontecerá por meio das interações sociais e culturais. De acordo com o que foi detalhado no capítulo dois desta pesquisa, Vigotski mostra que é necessária uma avaliação da Zona Proximal do desenvolvimento (ZPD) do aluno, a partir de suas produções, antes de qualquer intervenção, pois o texto produzido pelo aluno, seja oral ou escrito, dá suporte para que se identifiquem os recursos linguísticos que ele já domina e os que ainda precisa dominar. A partir disso, pode indicar os conteúdos que ainda precisam ser tematizados dentro de uma análise constituída linguisticamente. Dolz e Schneuwly (2004[1996]) dizem que os gêneros são vistos como “megainstrumentos”, necessários para as atividades de escrita, e, por meio desses instrumentos, são organizados os textos forjados ao longo da história. Além de perceberem que o trabalho com o gênero é importantíssimo para a construção de um aluno autor, as produtoras do material deixam evidente, na página 9, que um dos objetivos do livro enviado ao professor é “reduzir o “iletrismo” e o fracasso escolar”. Com isso, afirmam que o fracasso escolar ocorre por conta das questões problemáticas ligadas à escrita. Sabemos que essa afirmação não pode ser absoluta, já que existem outros fatores contribuintes para o insucesso escolar, como: famílias desestruturadas ou total ausência delas; diversas condições sóciohistórico-culturais, má formação de professores ou falta de formação continuada, condições precárias das escolas, ensino precário nas séries iniciais responsável pela aquisição da escrita e alfabetização dos alunos, e muitas outras situações que podem limitar as possibilidades de aprendizagem, cerceando o desenvolvimento intelectual do aluno. Por essa razão, objetivamos observar e analisar em que medida as orientações apresentadas teoricamente no material de apoio ao professor viabilizam a formação de autores proficientes para produzirem textos no gênero crônica, e de que maneira as atividades propostas nesse material, “Caderno de orientação para o 98 professor”, auxiliam na construção de uma prática ativa do desenvolvimento do adolescente que participa do concurso. Para compreendermos as orientações dadas no Caderno, fizemos o levantamento geral da proposta, para isso, procuramos seguir a ordem em que os elementos são apresentados na sequência didática. Devemos reiterar que a intenção do programa em organizar, no Caderno, contextos que satisfaçam pressupostos tanto práticos como teóricos, está voltada para o ensino-aprendizagem do gênero e, ao mesmo tempo, para a formação do professor sobre o trabalho com gêneros textuais mediante uma sequência didática. Iniciamos a apresentação do Caderno “A ocasião faz o escritor” pela capa, uma vez que ela é “a porta de entrada” para o trabalho com o gênero crônica, pois cativa os participantes do projeto a pensar em serem autores através da participação na Olimpíada de Língua Portuguesa, como podemos observar abaixo. LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, capa. Na capa acima, encontramos a imagem de um jovem escritor, isso nos faz pensar que só pelo fato do aluno participar do evento “Olimpíada de Língua Portuguesa escrevendo o futuro”, ele de fato será responsável pelo seu futuro e será um autor. 99 As cores dispostas na capa buscam representar toda motivação do aluno em participar do evento. A luminária que remete a um globo terrestre nos faz inferir que se trata dos caminhos possíveis que esse futuro autor alcançará, como também podemos dizer que esse mundo será o objeto de seu discurso, uma vez que o material do cronista é o cotidiano das pessoas. Já os círculos coloridos podem sugerir as diversas ideias que surgirão ao longo das oficinas e de seu fazer enquanto cronista. Observamos ainda que a capa é emblemática e nos faz pensar em uma visão de escritor à moda antiga, tradicional, com postura bem comportada, em que o aluno usa óculos, terno e gravata. De maneira geral, a roupa remete ao figurino europeu do início do século XX, num contexto em que os burgueses representavam pessoas “chiques”, além do mais, a sociedade de aparência qualificava ou desqualificava homens e mulheres pela vestimenta. Diante disso, pensamos que os alunos que estão participando da Olimpíada são bem diferentes dessa imagem. Percebemos que a capa talvez ainda vislumbre um aluno bem preparado, letrado e tradicional, como se fosse um aluno “genebrino”, digamos. Essa imagem nos faz lembrar, também, a figura do poeta português Fernando Pessoa, também considerado modelo europeu. Este poeta é considerado um grande escritor, dada a sua habilidade com a escrita e dos diversos papéis que assumiu para escrever seus textos. Assim, podemos dizer que a proposta do material visa à formação de um aluno-autor, espelhando-se em modelos de início do século passado. A seguir, apresentaremos a organização interna do Caderno no que tange ao encaminhamento didático do projeto de ensino que favorece a formação do alunoautor, isto é, a assunção da autoria do aprendiz do gênero crônica. Para isso, fizemos uma leitura cuidadosa de todo o projeto de ensino e levantamos a quantidade de oficinas e de atividades. A sequência didática do gênero crônica no Caderno “A ocasião faz o escritor” está organizada em 11 oficinas, que compreende 39 atividades. Abaixo, no quadro 1, apresentamos quais são essas oficinas e seus objetivos. Sequência didática do gênero crônica no Caderno “A ocasião faz o escritor”, da OLPEF N. Oficinas 01 Título É hora de combinar Objetivos Falar sobre a Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro e a forma de participar dela; Estabelecer contato com o gênero crônica; Ler uma crônica de Fernando Sabino. 100 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 Tempo, tempo, tempo Aproximar os alunos do gênero crônica; Possibilitar-lhes que identifiquem a diversidade de estilo e linguagem entre autores de épocas diferentes; Distinguir o tom de lirismo, ironia, humor; Ler crônicas escritas nos séculos XIX, XX e XXI. Primeiras linhas Produzir a primeira escrita de uma crônica; Encorajar os alunos a continuar aprendendo a escrever crônicas. Histórias do cotidiano Explorar os elementos constitutivos de uma crônica e os recursos literários utilizados pelo autor; Empregar as figuras de linguagem; Conhecer expressões próprias do mundo do futebol e também as diferentes formas de se tratar o tema “amor”, tendo como cenário a cidade; Ler uma crônica de Armando Nogueira e outra de Paulo Mendes Campos. Uma prosa bem afiada Conhecer mais a vida e a obra de Machado de Assis; Ouvir, ler e analisar uma crônica de Machado de Assis, identificando personagens, cenário, tempo, tom e recursos literários. Trocando em miúdos Refletir sobre a diferença entre notícias e crônica; Identificar os recursos de estilo e linguagem numa crônica de Moacyr Scliar. Merece uma crônica Retomar as crônicas trabalhadas até o momento e analisar tema, situação escolhida, tom do texto e foco narrativo; Escolher fatos, situações ou notícias que serão foco da crônica e obter informações sobre eles; Escrever uma crônica como exercício preparatório à realização do produto final. Olhos atentos no dia a dia Apurar o olhar para o lugar onde se vive; Esclarecer dúvidas a respeito do foco narrativo e de como iniciar uma crônica; Apreender as semelhanças entre o ato de escolher um assunto para uma foto e ação de escolher um tema para ser retratado em uma crônica. Muitos olhares, muitas ideias Produzir coletivamente uma crônica, escolhendo uma situação do cotidiano da cidade; Confrontar a produção coletiva com os elementos do gênero crônica; Reescrever, ainda coletivamente, o texto da crônica para aperfeiçoá-lo. Ofício de cronista Retomar os elementos constitutivos da crônica, com base nas ideias de Ivan Ângelo; Escrever, individualmente, a primeira versão de uma crônica. Assim fica melhor Fazer o aprimoramento e a reescrita do texto; Além disso, no final, há um quadro-síntese para você utilizar para avaliação da crônica. Quadro 3: Organização da sequência didática do gênero crônica De acordo com o quadro acima, a sequência didática do gênero crônica está organizada em onze oficinas. Essas oficinas ao longo do material apresentam três objetivos. O primeiro é fazer com que professores e alunos conheçam o Programa das Olimpíadas, o segundo objetivo é orientar os professores para aplicação do material em sala de aula e o terceiro, é mostrar que é possível ter diversos módulos 101 e atividades nas sequências didáticas para um gênero a partir das suas dimensões ensináveis. Nesses módulos, observamos que diferentes objetivos são mobilizados para que alunos e professores compreendam o gênero crônica. Considerando essas informações, se faz necessário descrever como essas oficinas estão organizadas no Caderno para que possamos, posteriormente, analisar o tratamento didático dado ao gênero crônica nessa sequência didática. Para esse intento, fizemos levantamento das seções internas do Caderno em relação às oficinas. No quadro a seguir, apresentamos a estrutura dessas oficinas. Oficinas Organização interna das oficinas Oficina 1 É hora de combinar Objetivos Prepare-se! Material 1ª etapa: Uma classe motivada Boxe explicativo: a importância de participar Atividades 2ª etapa: A descoberta de uma crônica Atividades Boxe explicativo: sobre suportes, olhares e palavras 3ª etapa: A arte da crônica com Fernando Sabino Boxe explicativo: Atenção Atividades Boxe explicativo: Buscando sentido Boxe explicativo: Há palavras que o vento não leva Oficina 2 Tempo, tempo, tempo... Objetivos Prepare-se! Material O processo para identificar assunto, personagens, ideias e emoções provocadas Atividades Quadro-síntese de análise Os recursos de uma crônica Boxe de Sugestão Oficina 3 Primeiras linhas Objetivos Prepare-se! Material 1ª etapa: Elementos que as crônicas têm em comum Atividades 2ª etapa: A escolha de um assunto, de uma situação, e o tom da narrativa Atividades 3ª etapa: O valor da primeira escrita 4ª etapa: Análise da primeira escrita Boxe explicativo: Atenção Boxe de Sugestão Hora de os alunos pesquisarem: atividade extra Oficina 4 Histórias do cotidiano Objetivos Prepare-se! Material 1ª etapa: Os recursos do cronista Atividades 2ª etapa: O mundo do futebol Atividades 3ª etapa: Um cronista que tem futebol nas veias Atividades 4ª etapa: “Conversando” com Armando Nogueira 102 Atividades Boxe explicativo: Sobre “Peladas” 5ª etapa: O mundo amoroso Boxe explicativo: Sobre “O amor acaba” Boxe de Sugestão Boxe de Atenção O bruxo do Cosme Velho: atividade extra Oficina 5 Uma prosa bem afiada Objetivos Prepare-se! Material 1ª etapa: Machado de Assis, o cronista Boxe explicativo: Lembrete Atividades 2ª etapa: O confronto título-texto Atividades 3ª etapa: O que Machado queria mesmo dizer? Atividades Boxe explicativo: “Um caso de burro” Atividades Oficina 6 Trocando em miúdos Objetivos Prepare-se! Material 1ª etapa: Da notícia à crônica Atividades 2ª etapa: conversando sobre crônica Atividades 3ª etapa: Recursos discursivos e linguísticos Atividades Boxe explicativo: Sobre “Cobrança” 4ª etapa: Faça um desafio à turma Atividades Boxe explicativo: Estratégia de leitura Oficina 7 Merece uma crônica Objetivos Prepare-se! Material 1ª etapa: Os mestres da crônica Atividades Quadro-síntese: Diferentes maneiras de dizer 2ª etapa: O material da crônica Atividades 3ª etapa: O começo da produção textual Atividades Boxe explicativo: Lembrete Oficina 8 Olhos atentos no dia a dia Objetivos Prepare-se! Material 1ª etapa: Habilidades para iniciar uma crônica Atividades 2ª etapa: Habilidades para definir o foco narrativo de uma crônica Atividades 3ª etapa: Entre fatos e fotos Atividades 4ª etapa: Alunos fotografam o dia a dia Atividades 5ª etapa: Planejamento e escrita da crônica inspirada na foto Atividades 6ª etapa: Lendo imagens Atividades Oficina 9 Muitos olhares, muitas ideias Objetivos Prepare-se! Material 1ª etapa: Preparação para a escrita coletiva 103 Atividades 2ª etapa: Escolha e exploração do tema e da situação Atividades Boxe exemplo: Notícia 3ª etapa: A escrita coletiva Atividades Boxe explicativo: Atenção 4ª etapa: O aperfeiçoamento do texto e a criação do título Atividades Oficina 10 Ofício de cronista Objetivos Prepare-se! Material 1ª etapa: Inspirando-se com Ivan Ângelo Atividades 2ª etapa: escrevendo crônica Atividades Boxe explicativo: lembrete Oficina 11 Assim fica melhor Prepare-se! Material 1ª etapa: Aprimoramento coletivo Boxe explicativo: Atenção Atividades 2ª etapa: Reescrita individual Atividades Boxe explicativo: Atenção 3ª etapa: Exposição ao público Anexo Critérios de avaliação para o gênero crônica Quadro 4: Organização das seções didáticas das Oficinas Nesse quadro, é possível dizermos que há repetição de algumas seções ao longo do Caderno, por exemplo, Objetivos, Prepare-se! e Material. Estas seções visam auxiliar o professor, pois são postas informações para ele saber conduzir as atividades durante as aulas e quais materiais serão necessários para aplicar a sequência didática ou mesmo ampliá-los, conforme a necessidade da turma. Além disso, as oficinas, com exceção da Oficina 2, são divididas em etapas. Essa subdivisão no trabalho é característica da sequência didática, pois cada etapa, de certa maneira, visa ampliar conceitos ou mesmo retomar alguns módulos de atividades, no intuito de potencializar o aprendizado. Tomando as informações do quadro anterior, acreditamos ser pertinente explicar, em linhas gerais, essas etapas da sequência didática ao longo das 11 Oficinas. Na Oficina de número 1, intitulada “É hora de combinar”, há três etapas para o ensino da crônica. Na primeira, o discurso autoral motiva os professores em relação ao ensino do gênero como também pede a eles que falem sobre o projeto e direciona seu fazer em sala de aula, para que o projeto tenha um bom resultado. Na visão das autoras, o responsável pela aplicação e sucesso da Olimpíada de Língua Portuguesa é o professor, como observamos nestes trechos: 104 LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 26-27. A segunda etapa visa apresentar a crônica por meio de questões que levem os alunos a refletirem sobre o suporte no qual esse gênero é veiculado e o assunto a ser tratado na crônica. LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 28. A última etapa sugere que o professor leve diferentes crônicas para sala de aula para que os alunos apreendam o gênero, por meio da leitura e discussão a partir de um roteiro dado ao professor para explorá-lo. Trata-se de um trabalho de escuta. LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 28. 105 A Oficina 2 “Tempo, tempo, tempo” visa aproximar o gênero crônica dos alunos, para isso é sugerido ao professor que imprima as crônicas presentes no CDRom para levar para sala de aula. Após leitura, os alunos deverão observar a linguagem, os assuntos, as personagens, o estilo do autor etc. Tudo isso para que o aluno fique preparado para produzir sua crônica. LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 36, 39. A Oficina 3 “Primeiras linhas” apresenta quatro etapas. Na primeira etapa, a proposta encaminha para a observação de elementos que a crônica tem em comum, por exemplo, local de publicação e o estilo do gênero. Na segunda, a ênfase está no tom da escrita e na temática a ser escolhida pelos alunos. Já a terceira está relacionada à primeira escrita, em que o objetivo é oferecer subsídio para o professor corrigir as redações dos alunos. A última apresenta parâmetros para a correção. Além disso, há dois boxes explicativos: um alerta sobre a necessidade de levar a primeira produção, caso o aluno seja um semifinalista da Olimpíada e, no outro, há sugestões de como o professor deve proceder na devolutiva do texto corrigido. Ao final dessa etapa, sugere-se que os alunos façam uma pesquisa acerca dos assuntos: bola e amor para a próxima aula. A 4a Oficina “Histórias do Cotidiano” está dividida em cinco etapas. A primeira etapa está voltada para apresentação de sugestões de trabalho com as figuras de linguagem, pois o discurso autoral afirma que são recursos do cronista. Para isso, o professor deverá confeccionar um cartaz e afixar no mural com as figuras. Na segunda, pede-se para que o professor focalize nesta oficina a temática do futebol e, para isso, oferece sugestões de trabalho, por exemplo, explorar o significado de algumas palavras no jargão futebolístico. Na terceira, o propósito é 106 explorar uma crônica esportiva, para isso, há atividades voltadas para o conhecimento de mundo sobre o cronista Armando Nogueira, posteriormente, atividades que exploraram o texto sobre ele e uma crônica produzida por ele. Na quarta etapa, o foco está no texto de Armando Nogueira, pois orientam levar os alunos a refletirem sobre diferentes aspectos da crônica ouvida na etapa anterior. Na última etapa, apresenta-se outra crônica de Paulo Mendes Campos, seguida de sua análise. Há dois boxes explicativos, um dá sugestão e o outro chama atenção do aluno para que ele não se esqueça de fazer anotações no diário. Como última atividade, solicita-se ao aluno que faça pesquisa sobre Machado de Assis (vida e obra) e suas crônicas sobre cidade e seu cotidiano. A Oficina 5 “Uma prosa bem afiada” tem três etapas. Na primeira, o aluno deverá ler crônicas diversas para depois focalizar em Machado de Assis. Na segunda, há orientações para que se explore o título de uma crônica escrita por Machado de Assis. Na última, há atividades direcionadas para a crônica ouvida “Um caso de burro”. Na Oficina de número 6, “Trocando em miúdos”, segue-se a subdivisão em etapas para explorar a distinção entre notícia e crônica. Na primeira etapa, explorase o autor Moacyr Scliar. Na segunda, os alunos deverão ler a crônica produzida por Scliar e, na terceira etapa, o foco está nos recursos de estilo e linguagem e há também uma análise da crônica “Cobrança”, lida anteriormente. Na última atividade, propõe-se que os alunos reflitam sobre a situação apresentada na crônica lida e produzam seu texto, observando os tipos de discurso apresentados. Na Oficina 7 “Merece uma crônica”, as autoras retomam, na primeira etapa, todas as crônicas e autores já comentados anteriormente no Caderno. Na segunda, o propósito é fazer com que os alunos façam pesquisa sobre assuntos novos para serem motes para suas crônicas e a última etapa é destinada para a produção da crônica. No fragmento abaixo, observamos as orientações das autoras: LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 86. 107 A Oficina de número 8, intitulada, “Olhos atentos no dia a dia”, é marcada pela apresentação de seis etapas, com a seguinte distribuição: etapa 1: escrita coletiva do primeiro parágrafo de uma crônica, cujo objetivo é desenvolver habilidades dos alunos para iniciar uma crônica, para isso, há um quadro com sugestões para esse início de texto. Na etapa 2, atividades voltadas para escolha do foco narrativo. Já na etapa 3, o propósito das atividades é para que os alunos apurem seu olhar para a realidade a partir de uma observação conduzida e depois leiam uma crônica. As etapas 4, 5 e 6 estão interligadas, pois os alunos farão sua produção com base nas imagens selecionadas pelos alunos na etapa 4. Já na Oficina de número 9, “Muitos olhares, muitas ideias”, há quatro etapas para a produção da crônica. Na primeira etapa, os alunos retomarão conceitos sobre a situação de produção e dos elementos da crônica para a escrita coletiva. Na segunda, atividades voltadas para a exploração do tema e da situação de produção, pois, na etapa 3, eles farão a produção. Para isso, o professor é orientado a seguir um roteiro de questões para ajudar os alunos na elaboração do texto. Na última etapa, o professor é orientado a fazer o trabalho de reescrita dos textos após correção e a pensar o título da crônica com os alunos. A Oficina 10, intitulada “Ofício de cronista”, apresenta duas etapas que estão interligadas, pois, na primeira, os alunos terão contato com a crônica de Ivan Ângelo, para, na segunda, escreverem a crônica. Para as autoras, o professor desempenha papel importante nesse processo. LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 36, 39. Para fecharmos nossa descrição geral, a Oficina 11 “Assim fica melhor” trata do processo da reescrita. Na etapa 1, a reescrita será coletiva, para isso, o professor deverá levar questões para que os alunos falem sobre suas crônicas de acordo com o roteiro pré-estabelecido. Além disso, colocou-se um texto modelo para mostrar 108 como foi o processo de sua reescrita. Na segunda etapa, a reescrita será individual, para isso, o aluno deverá fazer uso do roteiro de revisão da crônica posta na página seguinte, e a última etapa será a exposição da crônica para a comunidade escolar. No final dessa oficina, foram colocados critérios de avaliação para o gênero trabalho. Na seção seguinte, apresentamos a análise de algumas atividades presentes nessas Oficinas. 4.3 Análise das Atividades do Caderno “A ocasião faz o escritor” Tomando as informações da tabela e a descrição realizada anteriormente das Oficinas, faremos análise de algumas atividades que são pertinentes para o nosso objetivo de trabalho, uma vez que pretendemos saber como é encaminhamento da proposta das autoras do Caderno “A ocasião faz o escritor” para a formação de autores de crônica no espaço escolar. Para esse intento, apresentamos a tabela de número 3, sobre os tipos de atividades desenvolvidas nas Oficinas. 109 Tipos de atividades Situação de produção: apresentamos, neste item, atividades que exploram elementos como autor, leitor, suporte, finalidade, título e temática da produção. Conjunto de tematizações enfocadas nas atividades do Caderno “A ocasião faz o escritor” Atividade apresentação do projeto de escrita e de motivação para sua realização; Definição do gênero crônica; Leitura de mobilização dos conhecimentos prévios e apreciação afetiva acerca dos elementos da situação de produção do gênero; Leitura com foco no reconhecimento da situação de produção do gênero; Leitura com foco na apreciação temática; Leitura de (re) conhecimento das principais características do gênero; Escuta e interpretação de uma crônica de Armando Nogueira por meio de estratégias de antecipação de informações; Leitura ou escuta de uma crônica de Paulo Mendes Campos com foco no reconhecimento do autor; Leitura de antecipação de hipóteses sobre conteúdo da crônica de Paulo Mendes Campos; Leitura de exploração do título de uma crônica de Machado de Assis, de Moacyr Scliar; Checagem de antecipação do conteúdo da crônica a partir da leitura prévia do título de uma crônica de Machado de Assis; Diferenciar notícia de crônica; Formas de circulação da crônica produzida pelo aluno. Alimentação temática: organizamos, neste tópico, as atividades que apresentam diferentes estratégias de busca e seleção de informações para fundamentar a produção de texto. Elementos básicos da narrativa: dispomos, neste item, aquelas atividades que tematizam elementos como espaço-tempo do texto, personagens, enredo, foco narrativo, formas de introdução do texto narrativo. Sugestões de leitura em diferentes suportes (jornal, revista, internet, livros); Sugestões de pesquisa em diferentes sites de banco de textos; Estratégias de levantamento de assunto, de escolha de situação e de estilo narrativo; Levantamento de informações e acontecimentos para a produção de crônica; Exercícios de fotografar imagens cotidianas para fundamentar a produção da crônica; Escolha do conteúdo e da situação com base nos textos exemplares em crônica fornecidos para estudo; Leitura de identificação do espaço-tempo do gênero; Leitura de identificação dos elementos básicos da narrativa; Leitura de apreciação afetiva dos personagens da crônica de Armando Nogueira; Leitura de identificação e de (re) conhecimento dos elementos narrativos de uma crônica de Armando Nogueira; de Paulo Mendes Campos; de Machado de Assis; Análise da crônica de Armando Nogueira, de Machado de Assis com foco nos elementos básicos da narrativa; Estudo do foco narrativo voltado para as formas de introdução do discurso das personagens (discurso direto, indireto, indireto livre e misto); Síntese dos elementos constitutivos da crônica como base de orientação para a produção escrita do aluno; Leitura de uma crônica metalingüística para retomar elementos característicos da crônica. 110 Estilo do autor: apresentamos, neste tópico, atividades voltadas para exploração do estilo pessoal do autor. Elementos linguístico-textuais: classificamos, neste item, atividades voltadas o estudo do vocabulário, expressões e conhecimento de aspectos da gramática, figuras de linguagem. Produção oral: caracterizamos este tópico com temáticas voltadas para o uso oral da linguagem. Produção escrita: agrupamos, neste tópico, atividades voltadas para o exercício da produção escrita coletiva e individual. Reescrita: organizamos, neste item, as atividades que envolvem atividades de reescrita orientadas coletiva e individualmente. Leitura de identificação do estilo do autor com base em textos escolhidos pelos alunos; Interpretação do estilo de Armando Nogueira com base na leitura de uma crônica; Exploração de recursos linguísticos utilizados por Armando Nogueira; Análise do estilo de Paulo Mendes Campos na crônica apresentada para leitura; Breve apresentação da vida e estilo literário de Machado de Assis; Retomada das situações e dos estilos dos cronistas estudados; Explorar recursos e estilo de linguagem em uma crônica de Moacyr Scliar; Busca do significado de termos e palavras no dicionário; Estudo do jargão futebolístico comparando-o com expressões do cotidiano com base em palavras retiradas do dicionário; Reconhecimento de figuras de linguagem com base em exemplos descontextualizados Discussão escolar sobre a importância da escrita coletiva; Debate coletivo sobre o processo de escolha do conteúdo, da situação, dos elementos básicos da narrativa para compor a crônica dos alunos. Produção escrita inicial para diagnóstico; Produção individual orientada por um roteiro de elementos básicos da narrativa; Produção coletiva de elementos da crônica (introdução, adoção de foco narrativo e seleção do espaço-tempo narrativo; Produção de uma crônica baseada nas imagens fotografadas, com ênfase nos elementos narrativos; Produção coletiva orientada por roteiro de elementos básicos da narrativa; Produção individual final da crônica Análise da produção escrita inicial; Ensaio de reflexão sobre o processo de tomadas de decisão entre o fotografar o cotidiano e o retratar na crônica; Exercício de aperfeiçoamento da crônica com ênfase na construção do título, na adequação temática e linguísticotextual (coerência, vocabulário, redundância). Reescrita coletiva com ênfase no aperfeiçoamento da produção individual do aluno; Reescrita individual Quadro 5: Tipos de atividades e suas tematizações Auxiliados pelo levantamento acima apresentado, observamos que a situação de produção é plasmada no Caderno em vários momentos, apresentando uma incidência de 13 vezes. Em segundo lugar, ficam os elementos básicos da narrativa que se desdobram em 10 ocorrências, a alimentação temática e a produção escrita empatam com 6 ocorrências cada. Em seguida, a reescrita com 05 incidências e 111 encerram com produção oral e elementos linguístico-textuais com 02 incidências cada. Esses elementos antecipam, em termos, o que de fato está sendo privilegiado na didatização da crônica, ou seja, situação de produção, elementos da narrativa, atividades de reescrita. Iniciemos pela Oficina 1: LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.26. Para início de trabalho, as autoras do Caderno propõem como atividade ativar o conhecimento prévio do aluno sobre a crônica, pois julgam ser o melhor caminho para abordar o gênero. Essa concepção de ensino está embasada na perspectiva interacionista, coerente com a proposta de didatização dos pesquisadores de Genebra. As questões da atividade ativam o conhecimento de mundo do aluno sobre o gênero e, ao mesmo tempo, esperam que os alunos antecipem informações relativas ao conteúdo temático da crônica a partir de diferentes suportes. Para efetivação plena dessa atividade, os alunos precisam saber o contexto de produção e, além disso, saber de antemão o que é uma crônica, pois se trata de um texto mais ou menos próximo do relato oral que, até certo ponto, o alunado pode associar a outros textos da ordem do narrar, por exemplo, conto etc. A outra atividade pensada para abordar o gênero também direciona para um conhecimento de mundo anterior, pois os alunos precisarão escolher entre vários gêneros presentes no material disponibilizado (jornal, revista, livro) uma crônica para ser lida e apresentada, posteriormente, aos colegas. Nesta atividade, as 112 propriedades do texto e de conteúdo serão mobilizadas pelo aluno para que este consiga encontrar um texto no gênero crônica no suporte oferecido. LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.28. Em relação à atividade, consideramos que essas questões iniciais, embora sejam pertinentes para a aproximação da crônica, precisam ser repensadas, precisamente as perguntas formuladas, uma vez que o leitor contemporâneo das escolas públicas tem pouco contato com a crônica na esfera impressa e televisiva e, muitas vezes, o aluno nem sempre reconhece o gênero em primeira instância. Como sugestão de atividade, em virtude dessa situação por nós posta, seria o professor levar as crônicas previamente escolhidas por ele ou auxiliar os alunos durante a busca nos referidos suportes. Nesse auxílio, o professor comentaria brevemente sobre a situação de produção e circulação para que os alunos compreendam os caminhos que levam um texto a estar presente em um suporte específico. Dando continuidade a essa oficina na terceira etapa, o propósito é fazer com que o aluno fale sobre o autor Fernando Sabino. As autoras sugerem que o professor pense em questões para explorar a crônica desse autor, a fim de saber o que alunos antecipem seu conhecimento sobre o cronista. No primeiro momento, o aluno deve falar o que sabe e, após leitura do texto informativo sobre Fernando Sabino, ter mais informações do autor para fazer outra atividade. 113 LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.30 A atividade seguinte explora o título, cujo objetivo é fazer com que o aluno reflita sobre a importância da elaboração de um título para sua crônica. Mas podemos dizer também que essa atividade busca antecipar conhecimento do aluno em relação aos conteúdos previstos no texto a ser lido, formular hipóteses sobre o que vai ser lido. Trata-se de uma estratégia cognitiva de leitura. Em vista disso, as autoras elaboraram 4 questões de apreciação para o título de “A última crônica”. LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 31. A próxima atividade pretende sensibilizar os alunos em relação à temática apresentada pela crônica de Fernando Sabino, intitulada “A última crônica”. Essa atividade favorece o desenvolvimento da habilidade de percepção para a realidade cotidiana do aluno. 114 LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 31. Na Oficina 2, localizamos uma atividade que propõe aos alunos identificar, com base nas crônicas lidas, a situação de produção, circulação e recepção. Ainda nela, temos um quadro que tematiza o contexto sócio-histórico da crônica literária de 1878 a 2009. Essa atividade demonstra ao professor e ao aluno que o gênero não é um texto protótipo, pois sofre influências da evolução das relações sociais. Essa atividade mostra-se bastante relevante, pois possibilita aos interlocutores do Caderno compreenderem que o gênero crônica não pode ser tratado de forma fixa, modular. 115 LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 38. Ressaltamos que, no boxe explicativo sugestões, na comanda 2, as autoras sugerem o uso dos paradidáticos da biblioteca, no caso, os paradidáticos ofertados pelo FNDE/PNBE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação/Programa Nacional de Biblioteca na Escola). Em nossa experiência como professora e coordenadora, notamos nas escolas estaduais a não utilização desse material e, por isso, acreditamos importante a orientação das autoras. Além disso, pensamos que é uma maneira interessante de integrar o trabalho da OLPEF com o PNBE, nas bibliotecas escolares, pouco utilizadas. Outros meios de pesquisa sugeridos são: jornais, revistas e sites de internet. 116 LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 39. A Oficina 3 inicia a produção escrita do aluno e solicita a identificação de elementos sobre a orientação do discurso (dados do autor, conteúdo temático, o veículo em que foi publicado o gênero, o tipo de leitor, o estilo do gênero). LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.42. Ainda na primeira etapa, é brevemente descrita a forma composicional e o estilo do gênero. 117 LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 43. Nas atividades acima, observamos que as autoras, para evidenciarem a forma composicional e o estilo do gênero, reconvertem a noção dos elementos de um texto narrativo para a crônica: cenário, foco narrativo, enredo, personagens, desfecho. Em nosso entendimento, essas dimensões da ordem do narrar que são mobilizadas durante as atividades para caracterizar a crônica, em certa medida, contribuem para as tentativas de domínio do gênero tendo em vista que, talvez, as autoras considerem os trabalhos anteriores com textos narrativos nas aulas de Língua Portuguesa ao longo do Ensino Fundamental. Trata-se de uma transferência de domínios de uma ordem para outra, como por exemplo, o domínio de alguns elementos dos estilos do tipo narrativo (tempos verbais, advérbios de tempo, pronomes, figuras de linguagem etc.) para o estilo dos gêneros do relatar e narrar. Entretanto acreditamos que essas características não podem ser tomadas como sendo totalmente do referido gênero, pois, muitas vezes, podemos ter uma crônica apenas com diálogo, em que o foco narrativo se ausenta. Isso nos faz pensar que o material elege a tipologia para nortear o estudo do gênero crônica. Com base no estudo desses elementos, o aluno deverá produzir sua primeira crônica na etapa 2. 118 LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 44. Na Oficina 4, “Histórias do cotidiano”, aparecem no próprio título algumas controversas, ou seja, pelo título esperávamos encontrar textos e ações que permitissem maior interação com a prática cotidiana, mas encontramos um estudo sistemático de elementos linguístico–textuais, tais como as atividades voltadas ao estilo do gênero – léxicos do jargão futebolístico, da linguagem cotidiana – para o estudo do vocabulário, expressões e conhecimento de aspectos da gramática. Outra dimensão de estilo trabalhada são os elementos semânticos, como as figuras de linguagem. Embora essas atividades estejam previstas nos objetivos da Oficina 4, para nós, soa como incoerente, por não oportunizar aos alunos questões discursivas, que levassem o aluno a refletir sobre o cotidiano, pois a temática da crônica, como bem pontuaram as autoras do material, focaliza as situações do homem comum, da sua vida cotidiana. Por isso, acreditamos que há essa incoerência, pelo não tratamento exaustivo da discursividade, mas dos elementos linguístico-textuais. Conforme podemos visualizar a seguir: 119 LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 51-53. 120 Em nosso entendimento, esse tratamento didático apresenta uma lacuna, pois não há um trabalho sistematizado para o objeto de ensino eleito na atividade, exemplo são as figuras de linguagem. Tal encaminhamento didático liga-se às relações dialógicas do campo editorial, uma vez que o processo é similar ao que os autores de livros didáticos, de alguma forma, apresentam na didatização desse objeto de ensino. Este é apresentado de forma fragmentada, em que a abordagem assumida é a transmissiva. Trata-se de uma prática cristalizada nas situações escolares de ensino-aprendizagem da língua portuguesa. Além disso, temos outra prática docente bastante comum: a produção textual de cartaz para fixação de conteúdos. Em certa medida, evidencia-se que o Caderno operacionaliza o estudo das figuras de linguagem de forma simples, de forma transmissiva, não havendo uma abordagem mais estética para uso dessas figuras para a crônica literária. Este gênero, como pontuamos, mescla a literatura com o jornalismo. Assim, seria fundamental que houvesse a proposição de atividades voltadas para uso dessas figuras no texto, pois elas estabelecem outros sentidos nos enunciados escritos. Outro fato que nos chamou atenção é o trabalho com dois gêneros crônicas: a esportiva e a literária. Em nosso entendimento, são gêneros diferentes, pois Dolz e Schneuwly (2004[1996], p. 60) apresentam no quadro I proposta provisória de agrupamentos de gêneros na ordem do relatar “crônica social, crônica esportiva”. Já a crônica literária está na ordem do narrar. Por consequência, mudam-se os estilos, as formas composicionais, os conteúdos temáticos e as condições concretas de produção, circulação e recepção dos discursos escritos. Em outros dizeres, muda-se o gênero discursivo. Assim, podemos dizer que esse tratamento didático dado à crônica precisa ser melhor definido pelo Caderno para eliminar essas falhas, embora saibamos que pela proposta da escola de Genebra deve-se levar diferentes gêneros para sala de aula. Mas se a proposta é fazer com que os alunos tornem-se autores de crônicas, em pouco tempo, é necessário reformular a proposta para não permitir que os alunos fiquem confusos quanto às características da crônica literária. 121 Em corroboração com os autores, entendemos que a crônica “Peladas”, de Armando Nogueira, presente no Caderno, p. 51, representa um exemplar do gênero crônica esportiva, o qual é diferente da crônica literária, intitulada “O amor acaba”, de Paulo Mendes de Campos. Em nosso olhar, as diferenças entre os gêneros notícia e crônica apresentadas na Oficina 6 poderiam ser reconduzidas entre as diferenças entre dois gêneros apresentados anteriormente: a crônica literária e a esportiva. Isso porque acreditamos que os discentes podem distinguir o gênero crônica esportiva por causa do domínio do conteúdo temático, muito familiar, de vários outros gêneros primários de seu domínio, tal como o relato oral ou relato esportivo de uma partida futebolística. Assim, a produção de uma crônica literária pode ficar comprometida, pois não há um trabalho dirigido específico para esse gênero. Na Oficina 08, gostaríamos de destacar que a proposta dos alunos fotografarem o dia a dia é bastante relevante para uma produção de crônica envolvendo a prática cotidiana. Essa proposta vai possibilitar a eles a contemplar o outro em um momento singular de suas vidas. Dessa forma, os alunos vão aos poucos compreendendo os caminhos pelos quais um cronista passa para produzir seus textos. É procurar nas atividades mais simples, cotidianas, encontrar algo para dizer, para ressignificar, dar um novo olhar para aquilo que nos parece ser tão banal. LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.99. 122 Ainda na Oficina 08, observamos que a atividade tão rica centrou-se apenas, mais uma vez, nos elementos básicos da narrativa, contemplando a escrita com o foco voltado para as formas de introdução do texto narrativo, e esquecendo-se de privilegiar atividades direcionadas para aspectos discursivos, que contribuíram para compreensão do gênero crônica literária e auxiliariam os alunos na produção. LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.99. Podemos perceber que é recorrente nas Oficinas, para explicar/exemplificar o gênero, as autoras respaldarem-se em crônicas escritas por grandes nomes da literatura brasileira, o cânone, digamos: Machado de Assis, Fernando Sabino, Moacyr Scliar, entre outros. Considerando que desde o início do Caderno ocorre uma preocupação em se apresentar o gênero através das regularidades do conjunto que rege a crônica, as autoras pretendem fornecer um modelo didático “mais estável” do gênero. Nesse sentido, percebemos que a proposta é buscar descrever a função ou a materialização do texto por meio de unidades estáveis que compõem o gênero, procurando evidenciar no material os tipos de elementos contidos em uma crônica. Daí os elementos da narrativa entram em evidência. Essa estabilidade aconteceu por dois caminhos ao longo do Caderno. O primeiro foi ao elaborarem-se atividades voltadas para forma composicional, 123 pois as autoras privilegiaram comandas direcionadas para os elementos do texto narrativo. Esses elementos, segundo as autoras, estão presentes em toda e qualquer crônica, por considerar que o gênero pertence à ordem do narrar. LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 30, 43, 54. Outro caminho assumido pelas autoras foi o estilo do gênero crônica e do autor. Para elas, a crônica possui alguns tons na escrita que favorecem o reconhecimento de tal gênero em relação a outros, como também diferencia de 124 um autor para outro. Nossa percepção para o estilo individual e do gênero foi orientada pelas questões presentes no material. Dessa forma, nos trechos das atividades identificamos que o primeiro e terceiro exemplos marcam o estilo do gênero e o segundo, o estilo individual. LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 37, 43, 56 Em nosso entendimento, considerando o foco dado pelas autoras ao longo do material, pensamos que o caminho a ser delineado para didatizar a crônica enquanto gênero, a fim de possibilitar sua regularidade seja adotar esta sequência: primeiramente, definir a esfera de produção, circulação e recepção e, por conseguinte, o gênero e sua designação a ser didatizado (crônica literária, esportiva etc.). Outra maneira é estabelecer relações dialógicas com o documento oficial brasileiro (PCNLP), pois o Caderno trabalha com a etapa final do Ensino Fundamental. Tal encaminhamento dado por nós deve-se porque observamos que o Caderno estabelece relações dialógicas com o discurso oficial constituído na década de 1990, em particular, aqueles dos PCN de Língua Portuguesa 3º e 4º 125 ciclos, quer dizer, a proposta do material, ao escolher a crônica como objeto de ensino, segue as orientações dadas por esse documento oficial, pois esse gênero está previsto como prática de escrita, conforme o quadro abaixo para a produção textual: GÊNEROS SUGERIDOS PARA A PRÁTICA DE PRODUÇÃO DE TEXTOS ORAIS E ESCRITOS LINGUAGEM ORAL LITERÁRIOS DE IMPRENSA DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA Canção Textos Dramáticos Notícia Entrevista Debate Depoimento Exposição Seminário Debate LINGUAGEM ESCRITA LITERÁRIOS DE IMPRENSA DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA Crônica Conto Poema Notícia Artigo Carta do leitor Entrevista Relatório de experiências Esquema e resumo de artigos ou verbetes de enciclopédia Quadro 6: (BRASIL, 1998, p. 57) [ênfase adicionada]. Em vista dos gêneros elencados acima, as autoras respondem com concordância ao discurso oficial delineando a crônica da esfera literária como cerne de sua proposta e também respondem à proposta de Genebra, pois no agrupamento de gêneros, a crônica também é vista como um objeto de ensino e está organizada de acordo com os domínios de comunicação e seus aspectos tipológicos: Cultura literária ficcional/Narrar (crônica literária) e Documentação e memorização das ações históricas/Relatar (crônica social e esportiva). Além disso, as autoras respondem a discursos alhures (passados, já ditos) pelo documento oficial, pois escolheram a crônica como objeto de ensino para sua proposta didática e levaram em conta a classificação posta pelos PCNLP, pois a crônica está posta na esfera literária. Trata-se de uma 126 compreensão ativa responsiva, pois as autoras concordam com os PCNLP, respondendo-o após uma década de sua publicação (1998). No que se refere ao Ensino Médio, as OCEM dizem que: o perfil que se traça para o alunado do ensino médio, na disciplina Língua Portuguesa, prevê que o aluno, ao longo de sua formação, deva: conviver, de forma não só crítica mas também lúdica, com situações de produção e leitura de textos, atualizados em diferentes suportes e sistemas de linguagem – escrito, oral, imagético, digital, etc. –, de modo que conheça – use e compreenda – a multiplicidade de linguagens que ambientam as práticas [...] em nossa sociedade, geradas nas (e pelas) diferentes esferas das atividades sociais – literária, científica, publicitária, religiosa, jurídica, burocrática, cultural, política, econômica, midiática, esportiva, etc; (BRASIL, 2006, p. 32) grifo nosso Desse modo, professor e aluno poderiam não apenas conhecer a crônica na sua tríade constitutiva, mas perceber que ela é uma modalidade artística da palavra, e com ela pode-se perceber e observar várias possibilidades de construções, as quais poderiam, de forma mais efetiva, contribuir para a concretização da proposta em favor de escritores cidadãos. Esses dados nos possibilitam voltarmos às páginas iniciais de apresentação do Caderno. Lá há está afirmação: “Só o fato de participar desse projeto já é importante para se tomar consciência do desafio que é a escrita. Entretanto, o real desafio do ensino da produção escrita é bem maior [...]” (LAGINESTRA; PEREIRA, 2010, p.13). Essa fala nos permite dizer que é necessário que a proposta didática do Caderno reveja os módulos de atividades para favorecer a prática de escrita do aluno, pois o ensino da produção vai requerer do professor formação necessária para ensinar qualquer gênero. Por isso não basta focalizar apenas a forma composicional do gênero ou mesmo centrar os estudos somente no estilo, é preciso organizar as atividades de forma que os aspectos estrutural, composicional, textual, estilístico funcionem como um passaporte para o entendimento da dimensão discursiva, dos efeitos de sentido que esse todo organizado pode provocar no seu alunoleitor. Apesar de as atividades incidirem bastante sobre o estilo individual do 127 autor, nem sempre esse aspecto é pontuado de forma clara para o aluno. Não há um encaminhamento que permita a apreensão desses elementos de forma sistemática, mas referências, localização, identificação, o que, a nosso ver, não contribui para o conhecimento e posterior autonomia do aluno na sua própria produção. Bakhtin diz que a autoria se produz pela inter-relação, levando em conta a atitude valorativa de um participante em relação ao outro. Assim, a relação de autoria pede certo distanciamento entre interlocutor e autor-criador. Movimento este que não pode estar fora de uma interação. É por meio desse dialogismo interacional que o autor criador traz ao mundo do discurso seu texto, numa compreensão responsiva, sempre criadora e ativa. Ainda sob essa perspectiva sócio-histórica e dialógica da linguagem, de acordo com Bakhtin (2010 [19521953/1979] p. 290), o interlocutor deve deixar de ser considerado um elemento passivo no ato da interação para ser considerado um agente, da mesma forma que é o locutor, tendo em vista que quando nos deparamos com um enunciado (seja ele escrito ou oral), assumimos uma atitude responsiva ativa. Outro ponto do Caderno refere-se à orientação dada para a correção das crônicas. Na parte final, as autoras apresentam alguns critérios de avaliação dos textos, priorizando os aspectos enfatizados nas atividades da sequência. Em relação a esses critérios, tal como na apreciação valorativa, na maneira como se estabelece o valor de pontuação, podemos notar que o tema tem valor de (1,5), a adequação ao gênero está subdividido com dois itens (adequação discursiva e adequação linguística); cada um obtendo pontuação de (2,5) totalizando (5,0) pontos). As marcas de autoria receberam peso (2,0) e a avaliação se encerra com as convenções da escrita com valor de (1,5). Como podemos visualizar no quadro abaixo: 128 LAGINESTRA, M. A.; PEREIRA, M. I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2010, p.127. Embora as autoras tenham mostrado anteriormente que os critérios referem-se à forma como os gêneros textuais estão definidos no caderno, “Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF), notamos que os descritores deixam transparecer maior apreciação pelos fatores linguísticos (apresentados com 3 descritores): “Os marcadores de tempo e espaço contribuem para caracterizar a situação tratada?; Os articuladores textuais são apropriados ao tipo de crônica escolhido pelo autor?; Os recursos de linguagem estão adequados ao tom visado (irônico, humorístico, lírico ou crítico)?”, em detrimento dos aspectos discursivos (apresentados com 2 descritores): “A situação de produção própria da crônica se manifesta no texto?; A organização geral do texto está de acordo com o tipo de crônica escolhido (política, cultural, esportiva...)”. As autoras expressam que é necessária a utilização dos recursos linguísticos e discursivos para que o aluno (leitor-autor) produza melhor. Entretanto, no âmbito da proposta didática em análise, o entendimento da 129 crônica como uma temática de transformação que pode facilitar e nortear a compreensão e a produção escrita do aluno encontra, em alguns momentos do material, pequenos equívocos, pois se o caderno é para orientar tanto professor e aluno na prática da escrita e, consequentemente, o desenvolvimento do cidadão crítico, então, ainda é preciso propor mais, proporcionar a eles a construção de novas apreciações que forneçam subsídios para a constituição da autoria pelos alunos. Desse modo, professor e aluno poderiam não apenas conhecer a crônica na sua tríade constitutiva, mas perceber que ela é uma modalidade artística da palavra, e com ela pode-se perceber e observar várias possibilidades de construções, as quais poderiam, de forma mais efetiva, contribuir para a concretização da proposta em favor de escritores cidadãos. 130 CAPÍTULO V Um olhar sobre as vozes e a autoria na produção escrita de crônica da Olimpíada de Língua Portuguesa No capítulo anterior, fizemos a análise do Caderno dirigido ao professor, material que apresenta encaminhamentos metodológicos para orientar o desenvolvimento das atividades relativas ao ensino-aprendizagem da crônica para a participação dos alunos na Olimpíada de Língua Portuguesa. Neste capítulo 5, apresentaremos a descrição de dez crônicas escritas por alunos do 9o ano do Ensino Fundamental e 1o ano do Ensino Médio de escolas públicas do Brasil que participaram como finalistas da Olimpíada de Língua Portuguesa do ano de 2010. Nosso objetivo é levantar quais vozes os alunos mobilizam em suas produções discursivas e em que medida a autoria possa estar presente nessas produções. O corpus composto por dez crônicas é representativo das cinco regiões do Brasil, sendo contemplados dois textos por região. Após uma leitura cuidadosa de um corpus de 150 crônicas finalistas do concurso, selecionamos dez18 textos que mais se aproximaram da prática discursiva do gênero crônica, já aqueles textos cuja autoria estava “colada” (revozeada) nos textos exemplares em crônica fornecidos pelo projeto de ensino foram descartados. Apresentamos, no quadro abaixo, a proveniência regional e o título das crônicas selecionadas e que serão foco de nossa análise neste capítulo. Crônicas produzidas pelos alunos na OLPEF (2010) 18 Amostra Região Título das crônicas Exemplo 1 Sudeste Até na igreja, Evaristo? Exemplo 2 Sudeste As cidades Exemplo 3 Sul Belezas da Cidade Mel No tocante aos dez textos selecionados aparece um cabeçalho contendo alguns dados pessoais dos discentes como: nome completo do aluno, município, Estado, nome da instituição escolar, e nome completo do professor. Os textos não definem idade, ano, nem etapas do ensino médio ou do fundamental dos participantes. 131 Exemplo 4 Sul Espetáculo Exemplo 5 Centro Oeste Exemplo 6 Centro Oeste Que barulho é esse? Exemplo 7 Nordeste O armário Exemplo 8 Nordeste Exemplo 9 Norte Exemplo10 Norte Descoberta Inocente O relógio não parou Castelo Branco agora é feira O galho, o suspiro e o pulo Quadro 7: As crônicas selecionadas e sua representatividade regional Nosso objetivo, ao estabelecer esse critério de escolha, era não restringir o alcance de nossa pesquisa a apenas uma determinada localidade. É interessante observar que as crônicas finalistas por nós coletadas já passaram por pelo menos quatro seleções: a melhor da sala, da escola, do município e do estado. Era de pressupor, então, que os alunos, nessa etapa, tivessem mais familiaridade com a prática discursiva do gênero, o mesmo podendo ser estendido aos professores. A presença maciça de textos com autoria “colada” nos textos exemplares no gênero fornecidos pelo projeto de ensino nos serviu para refletirmos sobre a dimensão que adquire o material didático em seu processo de circulação e recepção. Na próxima seção, apresentaremos alguns apontamentos sobre um Caderno, recém-lançado pela coordenação das Olimpíadas, intitulado “O que nos dizem os textos dos alunos?”, material este que reúne análises de especialistas nos gêneros didatizados pela Olimpíada de Língua Portuguesa com base nas produções dos alunos participantes do concurso. Trazer para este trabalho os resultados de uma análise crítica dos textos produzidos pelos alunos, feita pelo próprio programa, parece bastante salutar, já que iremos proceder também a uma leitura crítica dos textos. 132 5.1 “O que nos dizem os textos dos alunos?”: apontamentos O material “O que nos dizem os textos dos alunos?” foi organizado por Egon de Oliveira Rangel (Cenpec) e resulta do trabalho de análise de quatro especialistas, cada um com foco em um gênero específico, convidados pelo organizador para realizar um levantamento sobre o perfil das produções dos alunos participantes do concurso da OLPEF que conseguiram chegar à fase estadual da competição no ano de 2010. Esse levantamento foi realizado com base em uma amostra com uma média de 385 textos de cada gênero contemplado no concurso, a saber, o poema, as memórias literárias, a crônica literária e o artigo de opinião. O material está composto de sete partes distintas, a primeira — a introdução —, e a sexta — a conclusão —, são escritas pelo organizador do material, Egon de Oliveira Rangel (Cenpec). Do segundo ao quinto tópico são apresentadas as análises das amostras das produções selecionadas, efetuadas por diferentes pesquisadores. Na introdução, o organizador informa que o objetivo do material é apresentar um panorama das contribuições do concurso no que se refere à produção escrita dos alunos participantes, com base no levantamento dos conhecimentos efetivamente apreendidos pelos alunos e, a partir disso, apontar ao professor quais aspectos requerem maior investimento de sua parte a fim de elevar a qualidade das produções provenientes da aplicação das propostas didáticas da OLPEF. A segunda parte é dedicada à análise das produções em poema na OLPEF sob assinatura da professora Ana Elvira Gebara (UNIC SUL). Na terceira, encontramos a análise das produções em memórias, cuja responsável é a professora Elizabeth Marcuschi (UFPE). Na quarta, a análise é apresentada pela professora Cloris Porto Torquato (UEPG) e recai sobre as produções em crônica, foco de nossa pesquisa. Na quinta, temos o perfil dos textos em artigo de opinião, levantado pela professora Ana Luiza Marcondes Garcia (PUC/SP). A autora do texto-base elaborado a partir da análise de 383 crônicas dos participantes da 2a edição da OLPEF, Cloris Torquato, traz alguns 133 apontamentos importantes que podem nos auxiliar na análise do conjunto de crônicas por nós selecionadas para compor nosso corpus de pesquisa. Com base em sua análise, podemos observar que os alunos estão conseguindo apreender alguns conhecimentos relacionados ao uso do gênero de forma positiva, mas ainda têm muito que avançar. Os problemas detectados pela analista relacionados à produção da crônica apresentam-se em quatro ordens: adequação temática, adequação do foco narrativo, construção de sentido (tom/estilo) e convenções da escrita/questões gramaticais. Torquato aponta que, no geral, os alunos conseguiram trazer para seus textos a presença do cotidiano ainda que os recortes dos temas nele buscados não tenham sido eficientes. Segundo a autora, o foco narrativo em um acontecimento corriqueiro é substituído, na maioria das vezes, por relatos descritivos de exaltação dos lugares apresentados. As ações são retratadas como fatos e cenários e a insistência descritiva em várias direções faz com que o aluno perca o foco em um aspecto preciso bem como o aprofundamento necessário para gerar reflexão, emoção e encantamento, aspectos típicos da crônica. Em relação ao ponto de vista adotado para fazer a observação do acontecimento selecionado para compor a crônica, a autora aponta que muitos textos da amostra apresentaram com eficácia e, algumas vezes, criticidade, as observações realizadas e até mesmo realizaram movimentos tão bem explicitados que permitiam ao leitor o vivenciamento da situação, servindo-se, para isso, de elementos linguísticos adequados para demonstrar o deslocamento no espaço e no tempo. Nota-se até mesmo a presença de estratégias narrativas um pouco mais complexas como as de se servir de um narrador não onisciente que precisa interpretar ou supor fatos não apreensíveis completamente do lugar assumido para observar. Outros, porém, incorreram em inverossimilhança, ou seja, o ponto de observação adotado pelo aluno não era capaz de abarcar o campo de visão apresentado no cenário e no conteúdo do texto. Os alunos tiveram sucesso em utilizar a norma culta adequadamente sem quebrar a linguagem do dia a dia e também mantiveram uma linguagem regional com diferentes variedades linguísticas algumas vezes de forma 134 consciente e outras nem tanto. A autora chama atenção para o fato de alguns textos apresentarem incorreções gramaticais que as atividades de reescrita e revisão propostas poderiam sanar. A autora observa que a maioria dos textos não consegue transpor o cotidiano para o campo da ficção de forma adequada devido ao fato de os textos apresentarem-se mais como relatos descritivos de cenas vividas ou observadas do que necessariamente um enredo narrativo assentado em um conflito ou tensão de base e um desfecho. Assim, os textos carecem de ficcionalidade e literariedade, elementos cruciais em uma crônica literária. O que podemos depreender dessa afirmação é que o movimento de distanciamento, necessário em qualquer ato de criação, principalmente estética, não foi assimilado pelos alunos que ainda ficaram presos à proximidade, à empatia, ao vivenciamento do acontecimento no mundo ético. Há também, aqui, indícios de que a expectativa do programa é que a crônica fosse compreendida, sobretudo, como gênero literário. Um achado importante da analista das crônicas diz respeito às dificuldades dos alunos em assumir uma tonalidade (tom) específica para seus textos. Para a autora, a construção do tom do texto está ligada aos efeitos de sentido que se quer produzir no destinatário e esse trabalho requer a maestria na manipulação dos recursos linguístico-estilísticos, a nosso ver, próprios do gênero e do querer dizer do autor. Entretanto, esse trabalho de articulação entre projeto de dizer e escolhas estilísticas adequadas não está bem apreendido pelos alunos, problema, segundo Torquato, decorrente da falta de conhecimento específico, por parte desse aluno, dos elementos da situação de produção a exemplo de uma definição precisa do seu próprio querer dizer e do perfil de seu público-leitor. A nosso ver, a questão acima pontuada é muito importante para pensarmos acerca da autoria dos textos produzidos na escola. Se a própria analista aponta que o cronista, ao escrever, leva em conta o perfil de públicoleitor de um jornal ou mesmo de um caderno deste, de um blog, de uma revista, como fazer para que as transposições didáticas não se afastem tanto das esferas de produção, circulação e recepção originais do gênero a ponto de deixar a cargo unicamente do aluno a tarefa de representar, supor ou, para 135 utilizar o termo mais próprio, “inventar” para si um público-leitor? Não estaríamos colocando em xeque a especificidade do gênero em nome da ficcionalização? E não estaríamos correndo o risco de cairmos novamente em propostas de produções de texto como mero exercício escolar? Há que se pensar essa questão uma vez que a própria análise aponta que esse problema incide justamente sobre a autonomia autoral do aluno, ou seja, este não sabe bem o que pretende ao escrever nem para quem o faz precisamente. O organizador observa, em suas conclusões, que a compreensão da situação de comunicação circunscrita à proposta da OLPEF é um desafio para o aluno porque este precisa articular de forma adequada os três principais destinatários dos seus textos: a comunidade escolar (o professor, os colegas de turma, etc.), a comissão julgadora e as situações sociais nas quais o gênero é utilizado. Como o próprio organizador afirma que os alunos não têm conseguido fazer essa articulação adequada, a nosso ver, bastante complexa mesmo, de forma a ajustar a orientação valorativa do texto, conjecturamos que se a proposta se aproximasse o máximo possível das situações de produção original do gênero, talvez a proposta didática criasse melhores condições para o sucesso dos alunos. A iniciativa dos organizadores em disponibilizar ao professor esse tipo de material é um passo importante, pois, por meio dele, é possível visualizar um panorama das problemáticas enfrentadas pelos professores e alunos ao aplicar a proposta didática. Entretanto, a nosso ver, detectar os problemas nas produções dos alunos e deixar a resolução dos mesmos unicamente a cargo do professor não é nada produtivo. Fazer sugestões pedagógicas sem a contrapartida prática de um encaminhamento de ação didático-pedagógico específica não ajuda na superação dos problemas. Há que se pensar se não existem gargalhos em outras frentes da proposta como nos cursos de formação e nos próprios materiais didáticos. Se a proposta é formar alunos e também os professores em uma determinada perspectiva, é preciso dar conta dessas questões. Feito o giro pelo material, já Torquato demonstra que a maioria dos textos produzidos com base na proposta do material didático “A ocasião faz o escritor” (2010), da OLPEF, não constitui em si uma crônica, mas relatos 136 descritivos das experiências vivenciadas pelos próprios alunos ou por eles observadas. A autora também deixa transparecer que as fontes dessas dificuldades dos alunos, em sua maioria, estão ligadas a ineficácia de estratégias pedagógicas adotadas em sala de aula pelo professor, observação essa confirmada em um trecho de sua conclusão que representa a própria voz do professor: “E como posso trabalhar com todos esses aspectos ao mesmo tempo?” (TORQUATO, 2011, p. 47). Nós, apesar de não desprezarmos as suposições da autora, continuamos a interrogar se seriam apenas esses os fatores que distanciam as produções dos alunos do gênero foco da intervenção didática. Esses são alguns dos questionamentos que pensamos serem importantes para darmos início a nossa análise, na próxima seção. 5.2 Os textos dos alunos: entre o proposto e o realizado Nesta seção, faremos a análise dos textos elaborados pelos alunos que foram finalistas de 2010 da Olimpíada de Língua Portuguesa escrevendo o futuro - A ocasião faz o escritor, que traz como proposta didática, conforme já assinalamos várias vezes, o ensino-aprendizagem da crônica. Nosso objetivo, nesta etapa, é responder à nossa segunda questão de pesquisa: Quais vozes os alunos mobilizam nas produções discursivas das crônicas? Vamos tomar primeiro para análise os dois textos selecionados da região sudeste, o primeiro versando sobre a temática do futebol e o segundo sobre imigração e desigualdade social. - Região Sudeste Exemplo 1: Até na igreja, Evaristo? Aluno: C. E.S. – MG 137 No texto acima, o aluno-autor traz o cotidiano do lugar onde vive de uma forma peculiar. Ele consegue filtrar esse cotidiano para o texto e traçar, de certa forma, um perfil cultural da população local representando e contrapondo em um tom humorado duas forças sociais que caracterizam o comportamento 138 local: o amor pelo futebol e o compromisso religioso. A descrição do cenário ou espaço local complementa, articulada às ações, o ambiente sociocultural e nos leva a supor que a vida, naquele local, acontece de forma pacata e interiorana, não obstante o aluno more em uma grande capital, o que nos faz cogitar se o local retratado é mesmo o lugar onde vive o autor ou se trata de um lugar totalmente ficcional. Para representar as duas forças sociais em torno das quais gira a unidade da narrativa, o aluno-autor busca representar o sofrimento do personagem Evaristo em relação a seu compromisso sagrado com o jogo de seu time e a presença na igreja para assistir a uma missa. Esse conflito traz à tona duas vozes sociais. A primeira diz respeito ao mundo do futebol, do torcedor fiel a seu time, pois deixa de lado quaisquer atividades para assistir ao jogo. A segunda é a religiosidade, característica ímpar do povo brasileiro. Assim, entendemos que o aluno-autor, ao refratar o tema por esse ângulo, nos sinaliza que o cotidiano do homem simples, talvez, esteja atrelado a isso: assistir a um jogo, ir à igreja. Para mostrar isso, são mobilizados diferentes recursos linguísticos no texto a fim de que o leitor perceba as sensações vivenciadas pelo personagem principal. Chama-nos atenção o fato de ele usar períodos curtos e longos, para dar sensação de movimento, de indecisão. Ao lermos o texto, percebemos que o tom dado pelo aluno-autor favoreceu sua produção. Religioso como ele só e fanático como ele era, não poderia deixar de participar dos dois compromissos. Assim ele teve uma grande ideia: levaria seu radinho de pilhas à igreja, sentaria no último banco e usaria uma jaqueta com capuz onde colocaria seu radinho. A partir desse momento, a ansiedade contagiava Evaristo, que a todo momento olhava o relógio na expectativa da hora do jogo. (Aluno participante da Olimpíada- MG) Outro recurso são os sinais de pontuação. Estes marcaram discursivamente o ponto de vista do personagem, uma vez que esse recurso foi 139 mobilizado de forma consciente, pois há um querer dizer para a apresentação dessas forças sociais. Ao lado de castanheiras, latidos de cães, choros de crianças, gritos de vendedores ambulantes... — Atenção! Hoje haverá missa especial para os moradores às 18 horas. Contamos com a presença de todos! (Aluno participante da Olimpíada- MG) Outro fato que nos chamou atenção foi o uso da onomatopeia “GOOOL!”. Esse recurso foi usado corretamente pelo aluno-autor em sua produção. Esses recursos nos mostram que ele conseguiu assimilar as informações dadas pelo professor e pelas atividades pensadas. Reforçamos nosso ponto de vista em relação ao tom assumido no texto. O tom da escrita vai em direção ao humor, pois o leitor é surpreendido na parte final do texto ao se deparar com o padre e Evaristo saindo da Igreja aos pulos para comemorar a vitória do time. Embora alguns recursos tenham sido mobilizados corretamente a favor do projeto discursivo do aluno-autor, percebemos que o estilo do gênero não foi alcançado. Tal afirmação deve-se à falta de leveza, da plasticidade necessária à crônica. Apesar do aluno-autor usar a sequência narrativa, característica importante para os gêneros da ordem do narrar, ela não foi suficiente para dizermos que temos uma crônica literária. A crônica literária ocupa o espaço do entretenimento, da reflexão mais leve e o cronista, ao escrever, busca emocionar e envolver seus leitores, de forma a convidá-los a refletir, de modo simples, sobre determinada situação do cotidiano. No texto, ora em análise, percebemos que o enfoque principal do aluno-autor é provocar o riso por meio da junção e tensão de comportamentos estereotipados como o fanático por futebol e o beato em um único sujeito. Entretanto, a forma como o aluno-autor conduz o texto e lhe dá desfecho final não nos permite depreender nada além do riso pelo riso. Não conseguimos enxergar por trás da trama narrada qualquer orientação provocativa de reflexão acerca desses tipos sociais na constituição do cotidiano local. 140 Observamos também que o discurso do aluno-autor está preso a uma ação, movida pela necessidade ética do personagem, pois este foi à igreja pensando como estaria a partida de futebol. Nesse processo, há um querer dizer do sujeito-autor, que se materializa em seu objeto do discurso, neste caso, sua crônica, em que o personagem não se conforma em perder uma partida de futebol para ir assistir à missa, como podemos ver abaixo: “E agora? O que fazer? O jogo está marcado para o mesmo horário da missa!”, pensou ele. Religioso como ele só e fanático como ele era, não poderia deixar de participar dos dois compromissos. (Aluno participante da Olimpíada- MG). Dessa forma, o texto é construído dentro de uma arquitetônica que envolve o querer dizer desse locutor, pensamento do mundo que está em sua volta, da temática, que envolve e transparece o estilo do autor, compondo um todo de sentido que não diz respeito somente a ele, mas também enfatiza a presença do destinatário, seus leitores da esfera escolar, em cumprimento as exigências trabalhadas em sala de aula. Entretanto, a estética literária, digamos, fica em segundo plano, ou inexiste de fato. Falta, portanto, um trabalho consciencioso sobre a língua, sobre o material e, portanto, sobre a forma. Passemos, agora, à segunda crônica, em que a autora traz como reflexão para o seu texto as contradições sociais da cidade onde vive sob o olhar do imigrante recém-chegado. Exemplo 02: As cidades Aluna: D. C. J. S - RJ 141 Pela temática e o estilo escolhido, podemos perceber que o intuito da autora era criar uma crônica social por meio da qual, percebe-se, quer provocar uma reflexão crítica acerca das contradições sociais. Narrado em primeira pessoa, notamos que o texto possui unidade de ação, cujo enredo gira em torno da chegada e travessia da personagem focada pelo narrador na cidade do Rio de Janeiro até o ponto em que tem ápice a ação: a chegada à favela Rocinha. A travessia entre os dois mundos da cidade é o tempo da narrativa e o espaço onde se desenrola a ação, por sinal, bastante delineados no texto. O autor não retrata muito bem o cenário palco da ação, referindo-se a ele por alusões “belezas naturais, arquitetônica da cidade, praias”, em vez do foco no espaço, prefere voltar seu olhar para o comportamento psicológico da personagem “sonhadora, determinada, curiosa, deslumbrada, encantada”, o que aponta para a busca de impressão de um tom intimista ao texto, numa tentativa de aproximação do estilo de Clarice Lispector, com a qual a alunaautora dialoga no processo de construção da personagem “Maria”. Tendo como ponto de partida a obra “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, cuja personagem Macabéa, ignorante, limitada em termos de vivência e conhecimento, vive uma vida pobre e cheia de ilusões, aspectos que a levam para uma morte bestial, o aluno-autor traz para o seu texto uma visão 142 sociocultural acerca do imigrante nordestino. Ao adjetivar a prima “nordestina”, antecipa possíveis valorações do leitor acerca de sua personagem “Não vá pensando que ela é como a personagem “Macabéa” e “nós conversamos muito pela internet”. Com isso, demonstra que “Maria” não só tem conhecimento, a supor por suas reflexões no confronto com a vida da favela, mas está conectada no mundo virtual, atividade que exige algum grau de letramento. A referência à obra de Clarice Lispector pode também se fazer presente na crônica do autor não apenas para atender ao seu projeto discursivo, embora sua mobilização tenha sentido no todo do texto, mas para demonstrar erudição e provar ao seu destinatário-avaliador que houve um trabalho de pesquisa, de leitura e um esforço posterior em estabelecer relações no processo de alimentação temática do texto. Outro aspecto importante a ser pontuado é a tentativa do autor em tomar distância do vivido, podemos perceber que o autorpessoa é uma menina, mas o narrador é um menino “Isso aqui é um mundo, primo!”, o que demonstra um esforço em transfigurar o mundo retratado. Podemos observar que o discurso que tece o texto é a voz do cidadão comum, morador do local, cujo olhar sobre a contradição social é de reação crítica e esperança e ao mesmo tempo de desânimo. O tom de crítica e de esperança está assimilado na voz do imigrante recém-chegado que na tensão com a situação estabelecida desvela possibilidades. Neste momento, ouvimos a voz da Constituição Cidadã “Pena que essas pessoas não sabem que podem...” e a voz do conhecimento que confrontam com o estado de passividade e complacência da população. Por meio de nossa análise, pudemos perceber que a aluna deixa transparecer que assimilou algumas técnicas da criação ficcional, que procura responder às orientações do material didático, trazendo para o seu texto todos os ingredientes que as autoras da proposta fornecem para se escrever uma boa crônica. Entretanto, conforme se pode notar pela leitura do texto, a articulação entre o conteúdo, a forma e o estilo ainda não se encontra bem acabada, não convence o leitor. Falta, no texto, o olhar atento, minucioso, sensível aos pormenores, capaz de aguçar a curiosidade do leitor, além da linguagem literária não se fazer presente efetivamente, por isso, não sensibiliza. O projeto discursivo do 143 aluno-autor de provocar a reflexão crítica falha pela falta de um todo acabado em que as partes inter-relacionadas demonstrem essa orientação. Assim, podemos ter uma narração escolar, uma crônica jornalística, mas não literária. Outro fator que nos chama atenção são as formas de valoração da aluna-autora, pois nos mostra uma escrita que privilegia a realidade da vida social, mesmo que em alguns momentos nos parece restringir somente ao processo de globalização e imigração e também a responder à banca avaliadora. Para nós, o endereçamento desse discurso em que as mazelas e malefícios da cidade grande são postos revela o agir ético do sujeito autor. Entretanto, a visão estética mostrou-se insuficiente, pois não percebemos as particularidades da autora em seu querer dizer que traz singularidade do referido gênero, mas cria uma escrita destinada a responder ao material. A seguir, vamos analisar as crônicas 3 e 4 do corpus, escolhidas da região Sul. A primeira intitula-se Belezas da Cidade Mel, escrita por um aluno de Içara/SC, e a segunda, Espetáculo, pertence a uma aluna de Joinville/SC. Trata-se de dois textos cujos projetos são produzir uma crônica social sobre o lugar onde vivem os autores. Mas cada lugar é apresentado por uma entrada diferente, no primeiro, o lugar se mostra pelo olhar inquieto do observador voltado para várias direções, no segundo, o aluno-autor preferiu unir a diversidade local em um palco de encontro da população, um centro de evento onde acontece um festival de dança tradicional. Vejamos os textos. Região Sul Exemplo 03: Belezas da Cidade Mel Aluno: J.T.I – SC 144 Conforme podemos perceber, o objetivo do texto é emocionar o leitor por meio da exaltação da realidade local, orientação apreendida por meio do excesso de adjetivação positiva acerca do lugar, das pessoas, dos costumes etc. O autor, para realizar seu projeto, esforça-se por dar um tom lírico ao seu texto, lançando mão de recursos como sinestesia “nossa terra pura, doce e amendoada”, metáfora “As pessoas vivem... na união da boa terra, no ventre quente do amor”, ritmo “a fumaça brumosa... flutua levemente até pender graciosa”. Entretanto, o resultado parece forçado e não emociona o leitor, talvez pela insistência excessiva em convencê-lo das belezas do lugar por um 145 caminho menos indicado: o abuso da descrição que desorienta o foco da ação e impede o aprofundamento. Assim, o autor não consegue imprimir no texto uma unidade de ação e seu olhar volta-se a todo instante para um lado e para o outro sem conseguir se deter, analisar, perscrutar, vasculhar um aspecto, um comportamento, um acontecimento, uma ação qualquer. Apesar de apresentar uma linguagem formal e ao mesmo tempo simples em trechos em que se possa perceber incoerência ou falta de nexo com o projeto discursivo, o excesso de informações faz com que o leitor não consiga apreender muito bem o querer dizer do autor, aspecto que contribui para que o texto não provoque nenhum tipo de reflexão, ou emoção. É possível também apreender, de certa forma, para quem o aluno está escrevendo e a imagem que representa desse interlocutor. O leitor do texto não faz ideia do lugar de que fala o autor, por isso sua preocupação em apresentar um relato o mais amplo possível desse local. Com base nisso, percebe-se que o autor projeta seu texto para um público mais amplo, além das fronteiras da escola. Mas o aluno conta também com um interlocutor mais especializado, a perceber pela forma como se preocupa em utilizar, conscientemente, conforme apontamos anteriormente, recursos da linguagem literária condizente com o tom visado em seu texto — o lírico —, orientação posta nas atividades do Caderno e como critério de avaliação do texto pela comissão julgadora. A voz que alinha o texto do começo ao fim é a visão ufanista e idealizada do lugar. É interessante observar o movimento do aluno-autor de aproximar essa visão idealizada da cidade do discurso tradicional romanceado acerca da figura feminina em nossa sociedade. Assim, o lugar é a mãe que alimenta “Da nossa terra pura, doce e amendoada nascem os frutos valorosos, alimentados no seio caloroso de Içara”; que aquece “As pessoas vivem saciadas e ditosas aqui, na união da boa terra, no ventre quente do amor”; e é a irmã “areia que conforta seu suor e suas lágrimas em seus doces e carinhosos sulcos”. Desse modo, uma voz ufanista interpenetra-se com uma voz romanceada acerca da mulher para nos apresentar uma visão idealizada do lugar. 146 O ético está presentificado na mostra do contexto social, da vida diária de cada ser humano, como podemos ver no trecho abaixo: O café neste momento ferve e borbulha quente e úmido, como nossos corações ávidos por amor. O suor dos dias de trabalho nas lavouras escorrega da face cansada e penetra com suavidade no solo, metamorfoseando-se lentamente no mel puro [...].(Aluna participante da Olimpíada- SC) A preocupação com o trabalho das pessoas reflete as questões éticas mostrando as problemáticas da vida social, o agir de cada pessoa no mundo para enfrentar essas precariedades que aparecem desde o nascer até o morrer de cada ser humano. No excerto acima, a preocupação com a lavoura, o trabalho no campo, as formas de subsistência familiar, o cansaço das pessoas com o trabalho pesado. A visão estética ocorre no próprio dizer singular da aluna quando expressa “mel puro, que existe só aqui, neste lugar de encantamentos, belezas e terna magia, rotulada a cidade mais doce do Brasil”. (Aluna participante da Olimpíada- SC) No dizer acima, percebemos a própria forma do dizer do locutor, que contempla a terra natal como doce, mágica e pura. Tudo isso dentro de uma concepção transfigurada a partir de um olhar valorativo que a aluna autora lançou sobre a realidade da região que vive. Apesar de ela unir o conteúdo, a linguagem e o estilo da crônica, ela não produziu crônica literária, pois ficou presa à descrição do processo de tal forma que foge do contexto da crônica, passando apenas pelo simples ato de detalhamento do ambiente local e enfatizando as características básicas das narrativas apreendidas pelo material da olimpíada. Do ponto de vista temático, podemos pontuar que o autor consegue trazer o cotidiano do lugar onde vive para o texto, mas não consegue transfigurá-lo conforme seu projeto discursivo. A sensação é que, para o autor, muitos aspectos de sua cidade merecem uma crônica, por isso, o esforço em retratá-los todos, mas nada vale a pena um tratamento singular e profundo. Passemos agora a observar o texto 4, Espetáculo, a fim de perscrutar como essas questões se fazem presentes nele. 147 Exemplo 04: Espetáculo Aluna: T.S – SC O texto se apresenta de forma bem singular, narrado em primeira pessoa. Diferentemente do texto anterior, a autora, apesar de também realizar um percurso diversificado em diferentes direções da vida do lugar, esse apanhado geral do cotidiano local, em forma de reflexão, converge para um único centro de atenção: um acontecimento artístico-cultural que congrega toda a cidade. Podemos dizer que a temática do texto é a vida artístico-cultural de uma cidade e o objetivo da autora é provocar uma reflexão acerca da capacidade de a arte unir as pessoas “Penso na cidade unida, como uma grande corrente, todos pela mesma causa: a dança”. Para a autora, a vida, nesse micro espaço-tempo da cidade, reverbera: é notícia nos meios de comunicação, é motivo de festa nas ruas, desperta amizades, amores, lástimas e tristezas, é fonte de riquezas econômicas e 148 culturais, é referência para perseverança e superação e até válvula de transformação da realidade: [...]as pessoas que estejam na cadeia ou nas ruas, se tivessem presenciado algo de tanta sensibilidade como o nosso festival de Dança, se encantariam e poderiam saber que a vida pode ser bela, e talvez fizessem dela algo bem melhor do que é na realidade. [...] um espetáculo desses nunca, jamais, deveria ser perdido por alguém que tem essa oportunidade única de cultura. (Aluna participante da Olimpíada- SC) No trecho acima, a dança pode ser um agente transformador de realidades capaz de mudar a visão de mundo e os valores das pessoas. Esse enfoque reflexivo em direção à vida artístico-cultural do lugar afasta o texto da simples descrição de lugares comuns do cotidiano da cidade e volta-o para elementos do ambiente sociocultural e artístico do povo. Como o objetivo é a reflexão poética acerca do tipo de arte que desperta o lugar, a autora quer impressionar, recorrendo a recursos linguísticos como as comparações e as metáforas, embora nem sempre alcançando um tom de literariedade. A autora entende a proposta e consegue desdobrar a temática com certa autonomia sem se prender às prescrições do material. Assim, apesar de em seu texto não se presentificar todas as características de uma narrativa, conforme orientam os autores da proposta didática, o texto consegue nos dar uma amostra da vida do lugar onde vive o autor não do ponto de vista de um personagem, de um cenário, de uma tensão entre um conflito e seu desfecho, mas por meio de uma reflexão acerca de um acontecimento que marca e constitui a vida local. O próprio título Espetáculo nos antecipa essa orientação, a valoração está voltada para um acontecimento que é visto como espetáculo, aqui, depreendido como uma apresentação artística, mas também como algo grandioso, eloquente pela importância que tem para os moradores da cidade. As vozes dos moradores da cidade são enfatizadas em diversas instancias para contextualizar o momento da dança, as histórias de superação, sensibilidade entre a realidade e a ficção, são vozes que extravasam as limitações humanas para mostrar que independente de serem pessoas pobres ou ricas, todos podem superar as dificuldades e vencer por meio da dança. 149 Do ponto de vista ético, a preocupação passa pela questão social como: “Penso no trabalho árduo das pessoas no cotidiano, nos sons das fábricas funcionando a pleno vapor, na correria para pegar um ônibus”, preocupação que passa pelo desenvolvimento econômico que, segundo a autora, traz avanços, mas também desafia a humanidade de maneira desenfreada causando precariedades no desenvolvimento humano, são mazelas que infelizmente acompanham a humanidade junto ao progresso, mostrando o desenvolvimento humano, num contexto econômico, social e político como podemos verificar no trecho abaixo: Penso no bem que faz à cidade, tanto no nível econômico quanto no cultural, e vejo que é mais do que apenas um festival para divertir-nos, mas sim um espetáculo fascinante que nos ensina mais do que possamos imaginar. (Aluna participante da Olimpíada- SC) Outro ponto enfatizado pela aluna autora é seu desejo e prazer pela dança. Esse enfoque revela uma visão estética que possibilita a criação de objetos artísticos, no caso deste texto, o enfoque destinado à dança e a cultura: “Penso que um espetáculo desses nunca, jamais, deveria ser perdido por alguém que tem essa oportunidade única de cultura”. (Aluna participante da Olimpíada- SC) Apesar de ser um texto interessante e criativo, a forma composicional, a temática e o estilo se misturam sem dar um acabamento necessário ao texto. Falar de aspectos estéticos sem transfigurá-los esteticamente, utilizando os recursos da língua, é o que ocorre. Vale ressaltar ainda que o texto, em certa medida, a autora não privilegiou as características da crônica, mas traz para a escrita uma adequação linguística tipológica, preenchida com aspectos descritivos e narrativos. Vamos observar agora os textos da região Centro Oeste, intitulados “Descoberta inocente” e “Que barulho é esse?”. O primeiro texto é de uma aluna de Sinop e tematiza a grandeza econômica do lugar, o outro é de um aluno de Campo Novo dos Parecis e versa sobre a restrição de lazer de cidades interioranas, ambos do Estado de Mato Grosso. 150 Região Centro Oeste Exemplo 05: Descoberta inocente Aluna: M. C. A. C – MT Neste texto, o autor responde à proposta do material em termos do que merece uma crônica. Para ele, merece uma crônica o rápido desenvolvimento econômico de sua cidade que cresce no ritmo e compasso de desenvolvimento da criança. O mundo, para o autor, está na vida produtiva da cidade, aspecto incompreendido pela personagem criança, cujo olhar anseia pelo crescimento cultural ausente, mas, posteriormente, entendido pela personagem adulta para a qual vale a pena abrir mão da contemplação sensível (vida cultural): “A cidade ainda não parou para admirar sua grandiosidade, mas agora o homem já entende”, em prol do crescimento econômico “carregar nos ombros a tarefa de desenvolver uma cidade juntas”. O texto é curto e sintético, mas, no transcurso da ação, vemos aflorar a visão de mundo do autor atrelada, conforme se depreende do texto, à cultura 151 local desenvolvimentista “a cidade continua crescendo”, capitalista “exportando mais do que a agricultura pode oferecer” e liberal “aprende a caminhar por si própria. Entretanto, essa voz progressista que tece o texto em um tom de elevação e elogio ao desenvolvimento econômico local, interpenetrada pelas visões capitalistas e liberais, confronta-se com outra voz “a sócio-ambientalista” que denuncia a exploração desenfreada da terra e a preocupação única com o lucro “exportando mais do que a agricultura pode oferecer”. Aqui, podemos observar a tensão dessas duas vozes interna à própria palavra nos dando uma amostra da arena em que se dá o discurso. No que diz respeito aos aspectos formais, apesar de o texto não apresentar qualquer incorreção gramatical ou relacionada às convenções da escrita e marcações do discurso, o autor não consegue imprimir um estilo articulado ao objetivo visado, até mesmo porque não conseguimos depreender muito bem se este objetivo é impressionar o leitor com o potencial econômico do lugar ou emocioná-lo por meio da exaltação local. O aluno-autor se reporta ao agronegócio, buscando mostrar os avanços econômicos da região, e mostra-se preocupado com o progresso e a vida cotidiana das pessoas. Assim, o agir ético desse aluno-autor responde, em certa medida, a seu mundo social, pois há compreensão das mudanças sofridas pelos moradores dessa região. A visão estética se constitui pela outra orientação discursiva que o aluno-autor faz em relação a sua região, pois o sujeito-autor não perde a oportunidade de mostrar as belezas e prazer por viver no local, assim, a valoração estética aparece pela forma singular de enxergar o lugar onde vive. Assim, não sabemos se estamos diante de uma reportagem turística ou de um relato descritivo do cenário local porque o autor até consegue organizar no espaço e no tempo o que observou, mas não dá conta de imprimir nessa organização uma unidade de ação nem um tom capaz de provocar apreciação artística no leitor. Passemos para o próximo texto “Que barulho é esse?”. Exemplo 06: Que barulho é esse? Aluno: B.H - MT 152 O texto acima, já pelo título, instiga o leitor, aguçando sua curiosidade. O enredo, conduzido por um narrador em primeira pessoa, está muito bem estruturado e bastante amarrado a uma unidade de ação qual seja: uma cidade pacata e interiorana, que tem seu cotidiano modificado por uma visita inesperada, a chegada de uma máquina locomotiva de diversão, a relação da população com o objeto e o desfecho inesperado e bem humorado. Assim, o tema proposto “O lugar onde vivo” é muito bem recortado e desdobrado pelo olhar peculiar do autor que não só nos apresenta um acontecimento singular e único no cotidiano da cidade em que vive, mas transfigura-o para o texto de forma bem humorada e crítica: a restrição de opção de lazer faz com que os moradores da cidade se entusiasmem com qualquer tipo de diversão e cria condições fáceis de exploração da população. Essa orientação valorativa para o acontecimento aponta que o objetivo principal do autor é provocar o humor, servindo-se dessa limitação do lugar, entretanto, podemos apreender também um desejo de provocar reflexão sobre essa questão. A linguagem utilizada reflete o estilo da prosa cotidiana, da contação de causos, de estórias da tradição oral, apresentando uma seleção lexical bastante adequada ao tom humorístico visado “surge do além uma espécie de 153 trem com rodas, uma “maria-fumaça”, “pessoas de todas as idades pagavam para andar naquela geringonça”, “como era novidade, também experimentei”, “bendito trenzinho”. O estilo nos aponta para a voz que estrutura o texto que é a da tradição da cultura popular, voz essa que povoa e predomina no cotidiano das pequenas cidades brasileiras. É a observação do lugar do ponto de vista da cultura popular que faz com que o texto, diferente da maior parte do corpus, não apresente ao leitor um cenário assentado na descrição física da paisagem natural local, mas esse lugar onde se desenrola a ação é construído do ponto de vista sociocultural: cidade pacata, interiorana, carente de lazer e habitada por pessoas desejosas por novidades, inclusive o próprio narrador. A praça, como característico das cidades interioranas brasileiras, é o ponto de encontro dos moradores, e de onde ecoam os acontecimentos do texto. A temática retratada é transposta para o texto de forma muito singular, mas a forma como o autor a interpreta e apresenta faz com que pensemos não apenas no lugar de vivência dele, mas também em tantas outras cidades do interior do Brasil. Nesse sentido, a partir da reflexão proposta no texto é possível até mesmo generalizar a situação apresentada. Em termos de escrita, não é possível encontrar qualquer inadequação gramatical ou equívoco em suas convenções. O texto é sucinto, mas consegue atrair o leitor do começo ao fim, pois cria um ambiente de curiosidade e suspense em todo o desenrolar da ação e, quando o leitor menos espera, surpreende-se com um desfecho crítico e bem humorado. Entretanto, apesar de muito bem escrito e humorado, o texto aproxima-se mais dos causos e anedotas populares do que de uma crônica literária, que exige uma linguagem mais bem trabalhada, uma interpretação do acontecimento mais bem elaborada. Vejamos agora como estão organizados os propósitos dos textos da região Nordeste. O primeiro é um texto de um aluno da cidade de São Sebastião de Lagoa de Roça, na Paraíba, e explora, de forma humorada, o ambiente do lugar por meio da representação de estereótipos local. O segundo é de uma aluna de Regeneração, no Piauí, e a temática recortada é a questão 154 do desenvolvimento sociocultural e econômico do lugar visto sob a tensão de olhares e lugares diferentes. Região Nordeste Exemplo 07: O armário Aluno: F. M. S. - PB Na crônica acima, o autor apresenta um linguagem bastante diversificada pela qual demonstram detalhes que buscam envolver o público de maneira divertida, toda a história gira em torno de um armário, são conflitos, informações indevidas, constrangimentos, mal entendidos. O texto se reporta de forma significativa a um aspecto circunstancial do cotidiano local: a vida que 155 corre solta nos espaços públicos como a rua e o lavatório. Desses espaços, ecoam as vozes que povoam o lugar onde vive o aluno. O texto é plurilíngue, pois, apesar de se servir de uma linguagem formal, própria da cultura letrada, para desenvolver o enredo, o narrador mobiliza em seu texto muitas expressões e estruturas da fala popular e regional, especificamente a nordestina, que plasmam de forma mais singular as vozes sociais presentes no ambiente sociocultural do lugar. Expressões como “paus d’água”, “lambiam os beiços”, “morder o calcanhar”, “espichavam o pescoço”, “qüiproquó”, “o veneno esguichava”, “feios fuzuês” nos dão, em certa medida, uma imagem delineada do comportamento de tipos sociais do lugar. O plurilinguismo e as vozes sociais tramadas no texto apresentam tipos estereotipados como as fofoqueiras “as mulheres mexeriqueiras”; os maridos complacentes “Não era novidade o fato de os maridos de tais mulheres estarem envolvidos, isso banalizava a situação”; os curiosos “uma população tão viciada em cotidianos barracos” e as carpideiras “começaram então a entoar cantos ‘veloríficos’, envolvidos em estrondosos berros”. Todas essas vozes só nos são acessíveis pelas lentes do narrador observador. O que torna o texto mais interessante é o diálogo do aluno-autor com uma visão sócio-cultural acerca do comportamento das mulheres do local — as fofoqueiras. As poucas descrições feitas do lugar atreladas aos tipos sociais são suficientes para captarmos uma cidadezinha do interior nordestino com seu “lavatório comunitário”, palco de encontro das “línguas afiadas”, da “turma da fofoca”, onde “em vários sentidos, lavavam roupa suja”, aspectos que dão vida à narrativa. A voz autoral vai articulando e compondo o texto de forma a deixar evidente por meio da escolha do conteúdo, do léxico e da forma composicional suspense o objetivo principal de provocar o humor. É essa voz que trama as outras e funciona como um porta-voz da comunidade local. Tal voz do aluno-narrador quer fazer-se observador atento e distanciado daquele comportamento, refratando o episódio do ponto de vista dos tipos em um tom que mistura desprezo, zombaria irônica e humor. Entretanto, o mesmo não consegue se eximir e acaba confessando que também faz parte da turma dos curiosos viciados em cotidianos barracos “Eu, de lado, deixei o almoço, 156 quando me impressionei com a rapidez que a turma da fofoca largou a roupa e correu atrás do que acontecera”, mais à frente, o narrador quer justificar seu próprio comportamento “Como bom integrante da comunidade, também fui observar o fato”, visto como “deliciosas confusões”. Assim, deixa-nos escapar sua atitude complacente com o comportamento dos tipos sociais da comunidade local, vista como uma “mega família” e aqui vemos aflorar mais uma voz “a dos meios de comunicação de massa” que é assimilada e utilizada para explicar o comportamento local e a própria atitude de complacência do narrador. Condizente com o tom humorístico e misterioso predominante no texto, o aluno-autor cria um ambiente de expectativa e suspense do começo ao fim “— Terá um monte de ladrões invadindo a casa da Tia Bia?” [...] era a “alma da Tia Bia [...] um negócio de madeira pontiaguda que lembrava um caixão”. O discurso envolve o leitor e o instiga a chegar até o fim para desvendar o grande mistério em torno do qual se constrói o enredo. Nesse texto, o aluno-autor olha tudo que está a sua volta e traduz o que sente, pensa e vê em arranjos singulares, através do olhar apurado e particular que constrói uma unidade de ação bastante articulada a partir do qual faz uma radiografia do dia a dia das pessoas que vivem naquele local. Assim, encontramos nessa crônica um processo de tomada de decisão em que o aluno agrega elementos entre o fotografar o cotidiano e o narrar de maneira que deixa transparecer que assimilou algumas técnicas da criação do contexto ficcional, buscando dar respostas a algumas orientações do material didático, mas é um texto que pelo emprego da linguagem, pelo plurilinguismo, seria o que mais se aproxima da linguagem literária, incluindo a voz da cultura popular, de forma leve e engraçada. Assim como no texto seis “Que barulho é esse”, um enredo bem humorado e construído em torno de uma unidade de ação bastante precisa, o desfecho inusitado e risível faz com que o texto se apresente bem acabado, não como uma crônica literária, mas como uma anedota ou um causo popular. Vejamos o texto seguinte. Exemplo 08: O relógio não parou Aluna: J. F. F. M.- PI 157 No texto acima, a aluna-autora escolhe um enfoque em primeira pessoa para relatar, a partir de uma observação inicial, sua reação acerca do que presenciou. Apenas o primeiro parágrafo do texto estrutura-se no tipo narração, mais próprio da crônica literária, os outros parágrafos estão todos organizados no tipo relato, mesclados com a descrição, não necessariamente de uma experiência pessoal vivida da autora, mas do cenário do lugar tentando abarcálo em um apanhado geral. No trecho narrativo, predomina a estrutura do discurso indireto para enquadrar a voz do outro, o que aponta para um trabalho de análise desse discurso e não de transfiguração do mesmo em um plano literário. Já os trechos descritivos e de relatos estão, em boa parte, assentados em sentenças comparativas e adversativas que servem para cotejar e contrapor elementos diferentes. O tema “O lugar onde vivo” é desdobrado no texto por meio do recorte efetuado na temática do desenvolvimento sociocultural e econômico do lugar, uma cidadezinha do interior nordestino, a partir da tensão entre o olhar do morador nativo com o do morador migrante. O cenário do lugar nos é dado pela comparação entre a realidade local e a de cidades desenvolvidas. No texto, há sempre dois mundos em confronto onde uma voz interiorana luta com a uma voz urbanizada, progressista e desenvolvimentista, a voz da cultura popular tensiona com a erudita/letrada. Isso porque, trata-se de uma cidade pacata 158 que, apesar de já se ressentir dos problemas das cidades grandes como a violência, mantém um ritmo mais próximo da vida rural. O comércio local é pouco desenvolvido, o cenário sociocultural ainda está ligado a tradições populares manifestadas na música, “o pagode do Zabé Fulô”, e na dança, “dança do boi” e a paisagem é bastante natural. O texto constrói-se todo em cima da reação da aluna-autora em face do olhar do “estranho” migrante sobre o lugar: “De repente, ouvi daquelas duas pessoas que, pelo sotaque, reconheci que não eram da minha terra. Diziam, em tom de zombaria, que aqui o relógio não parou”. Diante do comentário zombeteiro do migrante, a autora reage em tom de indignação: “Quase não consegui receber o dinheiro, tamanha a minha vontade de sair de perto delas”, essa orientação valorativa está também antecipada no próprio título do texto em forma de resposta negativa ao outro — o migrante — “O relógio não parou”. A partir de então, a autora investe em um relato comparativo entre o cenário local com os de cidades desenvolvidas, principalmente da região sudeste, em um tom bastante indignado, refratado na escolha de sentenças adversativas, comparativas e asserções imperativas, “se não existe [isso]... das grandes capitais, tem [isso]”, “É certo que... mas não é por isso”, “Todos devem ficar sabendo...”, “Aqui o relógio continua funcionando, sim!”, com o intuito principal de convencer seu leitor acerca do desenvolvimento de sua cidade. O argumento lançado pelo autor é de que se trata de ritmos de desenvolvimento diferentes, adequados às realidades socioculturais e econômicas a que se aplicam. Podemos notar no raciocínio da autora um pensamento relacional, pois, apesar do tom indignado, ela demonstra, no processo comparativo, que conhece ritmos de cidades desenvolvidas e que não os despreza por completo, mas também não aceita sua colocação como parâmetro para o desenvolvimento de sua cidade, uma realidade diferente. Em virtude de a reação da autora não estar direcionada a um acontecimento em si, mas para um posicionamento valorativo do outro sobre o lugar onde vive, tal reação acontece não apenas em forma de resposta indignada, mas também crítica desse tipo de avaliação sobre as cidades pequenas. 159 Não podemos afirmar que estamos diante de um enredo bem construído com unidade de ação assentada em um conflito de base e um desfecho, pois, com exceção do início narrativo, o texto é praticamente construído em cima do relato e da descrição da vida e da paisagem do lugar por meio de sentenças comparativas e adversativas com o objetivo principal de convencer o leitor. Não há nenhum elemento que aponte para a presença de literariedade, aspectos inusitados e singulares capazes de desencadear no leitor alguma emoção, sensibilidade, surpresa, reflexão ou até mesmo convicção, uma vez que o argumento apresentado pelo autor pode ser visto mais como uma constatação bastante visível — cidades pequenas e grandes possuem ritmos diferentes — e não de uma demonstração elaborada. Por isso, a nosso ver, não temos uma crônica literária nem mesmo social, mas um relato descritivo mesclado com uma orientação argumentativa. Para finalizar esta etapa, vamos nos voltar agora sobre os textos escolhidos da região Norte. Da cidade de Eirunepé, no Amazonas, uma aluna escreve sobre o lugar onde vive por meio do retrato da vida que se passa na feira. De Rondon do Pará, no Pará, outro aluno tenta representar a vida local através de um retrato de um dia de criança neste lugar. Região Norte Exemplo 9- Castelo Branco agora é feira Aluna: T. L. A. S.- AM 160 No texto acima, observamos que a aluna-autora, ao discursar sobre o tema dado, nos apresenta sua cidade, com um tom bastante descritivo, pois busca mostrar que a cidade passou por mudanças, precisamente, a praça, pois este local era ponto de encontro de todas as pessoas da cidade. Além disso, percebemos que não houve linearidade durante a discussão do tema, pois se perde o foco a partir do momento que a autora mostra as atividades profissionais realizadas ao redor da praça, por exemplo, os mototáxis, a feira como também as perdas das pessoas em relação à destruição da praça. Desse modo, a aluna-autora não conseguiu refletir sobre o lugar onde vive devido a esse tom descritivo, apoiado no relato dos acontecimentos. Em outras 161 palavras, a crônica Castelo Branco agora é feira se restringe apenas ao cotidiano do comércio local. Esse tom não contribuiu para que houvesse conflito e um desfecho inesperado, que suscitasse nos leitores questionamentos, quer dizer, contrapalavras. Apesar de a autora tentar mobilizar as vozes dos envolvidos diretamente com a situação exposta pela crônica, essas vozes não foram suficientes para permitir o diálogo entre leitor-texto-autora. Também percebemos que a praça talvez seja a indicação da memória do personagem histórico ou da imagem do político, como foi enfatizada a figura de Castelo Branco, um dos representantes políticos da história brasileira, primeiro presidente do regime militar. Desse modo, o texto mostra várias vozes sociais dentro de um mesmo espaço, ou seja, vários lugares dentro do mesmo espaço são visíveis duas temporalidades, o passado representado pela memória de Castelo Branco e o presente que nos revela, mais precisamente, o cotidiano e o movimento de homens e mulheres simples, pobres, codificados na figura de pequenos comerciantes, vendedores ambulantes entre outros como podemos observar abaixo: [...] como dizem os mais antigos da cidade, é hoje um ponto de vendas para feirantes, mototáxis loucos por clientes, estacionamento de bicicletas cargueiras que ficam juntas num cantinho à beira da rua, à espera de cargas. [...]” O que fizeram com minha estátua que um dia foi alvo de admiração?” É a voz de Castelo Branco trazida pelo vento que logo desaparece. Observo a mulher que chega, se aproxima dos jerimuns amontoados sobre a calçada e pergunta: — Quanto custa? Antes que o vendedor pudesse responder, um homem aparentando seus sessenta anos, usando óculos escuros e boné preto, interrompe: — Presta, não, minha filha, esses das cascas vermelhas eu conheço, já plantei muito. (Aluno participante da OlimpíadaAM) Entendemos que o projeto discursivo da aluna-autora, de certa forma, estava orientado para falar da ausência da praça e a consequência da sua falta, mas como já pontuamos, esse querer dizer não foi bem realizado, pois a visão estética para a realidade retratada ficou apegada à reprodução das vozes 162 desses personagens, que ilustram os moradores da cidade. Isso demonstra que o recorte temático dado não ajudou na estabilização do texto enquanto crônica literária, uma vez que a autora buscou mobilizar apenas diferentes recursos linguísticos (verbos discendi “pergunta”, os tempos verbais: presente do indicativo e pretérito perfeito “o que um dia foi uma praça os namorados”, “a feirinha vai aos poucos”, perguntas retóricas “será que nossa Eirunepé não ficaria melhor do outro lado do rio”, e textuais (a estrutura narrativa: personagens, diálogo, cenário, narrador observador, tempo), para caracterizar sua produção como um texto da ordem do narrar. Passemos ao próximo texto. Exemplo 10: O Galho, o suspiro e o pulo Aluno: A. R. M. V. - PA No texto acima, o aluno-autor parte de seu cotidiano para apresentar sua reflexão em relação à temática dada. Nele, há um detalhamento excessivo no que se refere às brincadeiras realizadas durante a infância. Esse recorte temático já nos sinaliza que o sujeito-autor não compreendeu efetivamente o tema dado, pois deu ênfase à sua infância, como bem pontuado no título de seu texto “O galho, o suspiro e o pulo”, quer dizer, são suas memórias saudosistas desse período: 163 De todas as brincadeiras que inventamos aquela de que mais gostamos é mesmo pega-pega e pular de galho em galho. Somos verdadeiros macacos, habilidosos e brincalhões, pulamos cheios de artimanhas sem errar o galho escolhido. (Aluno participante da Olimpíada- PA) O detalhamento revela um tom descritivo, pois o foco do sujeito-autor foi reavivar suas memórias e isso nos revela também outro tom, neste caso, afetivo, como neste caso, “a tristeza estampada nos seus rostos mostra o descontentamento inevitável, protestos e gritos são ouvidos lá de baixo [...]”. Em nosso entendimento, o aluno, ao descrever com detalhes, não deixou transparecer seu estilo de autor, tendo em vista que a espontaneidade da escrita ficou comprometida pelo fato de não permitir diálogo entre autorobjeto do discurso-leitor. Talvez o texto não deixe transparecer uma crônica porque tenha faltado mostrar melhor um acontecimento cotidiano, uma reflexão, em outras palavras, mostrar uma perspectiva única, singular, que pudesse recorrer à literalidade e à ficção, pois entendemos que a relação dialógica entre o autor, o objeto e seu interlocutor, não acontece do nada. Observamos que aluno-autor mobiliza em seu enunciado as brincadeiras de criança. Entendemos que a voz social presente são as memórias de uma criança, que enaltece as brincadeiras simples, cuja única preocupação era criar novas brincadeiras, viver a infância em todos seus sentidos. Assim, há uma temporalidade nesse enunciado, pois o aluno-autor de forma sutil faz um contraste do que seja viver a infância num passado distante, para aquilo que é vivenciado hoje pelas crianças. As análises das crônicas nos mostraram que a produção de textos exige melhores articulações entre situação, relação entre interlocutores, temática, estilo do gênero e estilo próprio do autor, isto é, o “querer dizer” do locutor precisa estar claro para o próprio autor a fim de que ele possa suscitar reflexões em seus leitores. Ao longo da análise, pudemos observar que os alunos-autores não conseguiram imprimir em seus textos o estilo do gênero, algo que marcasse sua produção como sendo uma crônica literária. Essa questão nos faz pensar nas dificuldades que esses sujeitos-autores sentiram para produzir seus textos, 164 pois precisavam dar um recorte ao tema dado e, ao mesmo tempo, levar o leitor a refletir e, além disso, dar conta dos recursos linguísticos e saber mobilizá-los adequadamente em virtude do projeto discursivo. Nas crônicas analisadas, percebemos que muitos textos dos alunos finalistas ficaram restritos a informações sobre as cidades, afastando-se do gênero proposto no evento: a crônica. Salientamos que eles buscaram trazer a voz do narrador em primeira e terceira pessoa a fim de tentaram estabelecer intimidade com o leitor, mas, em alguns textos, não ficou claro esse processo dialógico. Desse modo, mesmo com algumas tentativas de mostrar a singularidade dialógica, as produções aproximaram-se mais ora do gênero escolar relato de observação ou experiência vivida, ora de causos populares. A nosso ver, uma explicação, talvez plausível, seria a semelhança do primeiro com as descrições escolares e a convivência com o segundo em suas experiências na cultura popular do cotidiano de suas "comunidades e famílias." Verifica-se que o foco está em modelos prototípicos, em que os alunos se prenderam no processo de descrever e relatar, não enfatizando com leveza o cotidiano e seus vários enfoques, mas apresentando narrativas com interesse de moralizar, de passar para seus leitores a concepção de certo e errado, e a questão literária acaba ficando ausente nos textos. Assim, reafirmamos que a crônica não é um trabalho que pretende ensinar como as pessoas devam se portar, vestir ou viver. Pelo contrário, a crônica narra de maneira simples e de forma eventual o cotidiano do homem, analisa comportamentos e modos de vida. Com relação aos textos que caracterizamos como descritivos, percebemos que faltaram aos alunos o olhar atento para o que realmente é diferencial, acontecimentos que, sem dúvida, poderiam fazer a diferença em uma dada situação. Eles não capturaram, nas coisas mais simples inusitadas da vida, o acontecimento que definitivamente poderia ser o elemento de interação entre o ser humano e seus feitos na vida. É importante ressaltar que o interessante na crônica é pegar algo banal, sem interesse e transformar em algo revelador e único na existência humana. Também pela tentativa de abraçar o todo, falar de tudo sobre “o lugar onde vive”, o aluno- autor deixa de 165 narrar um momento importante para descrever uma visão ampla e geral de tudo que se vê a sua frente (TORQUATO, 2010). Talvez tenha faltado o refinamento do olhar do aluno para observar melhor o cotidiano e pensar melhor na questão da literatura, pois sentimos que os alunos das amostras escolhidas por nós não produziram uma crônica propriamente, mas permaneceram nas superficialidades do relato, da tipologia descritiva e em nenhum momento expressaram o tom de uma crônica literária, gênero este proposto pelo Caderno da Olimpíada. 166 CONSIDERAÇÕES FINAIS "Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada." (Clarice Lispector) Nossa pesquisa se insere nos pressupostos da teoria enunciativodiscursivo do círculo de Bakhtin e na abordagem sócio-histórica de Vigotski. Tentamos compreender, primeiramente, as ideias do círculo de Bakhtin no que tange à linguagem e suas interações dialógicas, as quais estão interligadas aos conceitos de ético e estético, vozes e gênero discursivo. Com isso, adquirimos maiores subsídios para ancorar nossas reflexões teóricas sobre as produções dos alunos. Após termos construído esse quadro teórico, direcionamos nosso olhar para as décadas de 80 e 90, pois nesse período houve redimensionamento no ensino de língua portuguesa no que se refere a seus objetos de ensino: gramática, oralidade, leitura e produção textual. No tocante à produção textual, buscamos compreender as teorias que foram mais largamente usadas em materiais didáticos e também na prática do professor, neste caso, a cognitiva e a textual. Procuramos expor que a perspectiva cognitiva empreendeu pesquisas a fim de estabelecer padrões abstratos e universais para a produção de textos, em vista disso, desenvolveram etapas para o processo da escrita, por exemplo, contexto, planejamento, edição e revisão de uma produção. Estas etapas tiveram espaço nas salas de aulas e materiais didáticos, pois se buscava um formato padrão para orientar a escrita, assim, surgiram técnicas de escrita, por exemplo, o planejamento para escrever uma redação entre outras técnicas. Já a abordagem textual pertencente à Linguística Textual buscou ampliar as discussões em relação ao texto. Num primeiro momento, buscaram romper com os estudos centrados apenas na oração isolada e passam levar 167 em consideração o texto em si, mas, nesse início, o texto ainda era visto apenas como estrutura, pois as análises feitas eram baseadas em trechos retirados do texto, assim, essas análises tinham uma abordagem mais estrutural, embora tivesse um contexto específico de produção, como expomos no capítulo II desta pesquisa. Outra influência direta dessa teoria foi o fato de os textos serem vistos como protótipos, que tinham começo, meio e fim (introdução, desenvolvimento e conclusão). Esse procedimento guiou o ensino de produção de texto. Embora essa teoria tenha favorecido a entrada dos textos na sala de aula, ela ainda não havia proporcionado, ainda, a autonomia do aluno, já que ele estava preso a uma visão monologal, pois produzia apenas para um interlocutor específico, o professor, e buscava tirar nota 10 para ser aprovado, principalmente, nos exames vestibulares. Em vista dessa abordagem, os pesquisadores na década de 90 iniciam um movimento a fim de modificar essa visão, pois eles querem que a escola favoreça a uma formação mais cidadã, mais autônoma e, para isso, ancoramse em outras teorias, neste caso, assumem a concepção de linguagem como interação social, pois aqui há necessidade de uma prática mais sociossituada a fim de mostrar ao aluno que as diversas práticas sociais que ele vivencia são guiadas pela linguagem, e para o ensino-aprendizagem, a sócio-histórica de Vigotski (1930-1934-1935). Em vista disso, os documentos oficiais (1997, 1998) PCNLP do Ensino Fundamental I e II apregoam que a concepção de linguagem a ser assumida é a linguagem como interação social e os gêneros discursivos devem ser os objetos de ensino. Dessa forma, as práticas de linguagem realizadas em sala de aula devem responder ativamente a essas orientações. Também é importante salientar que recorremos à teoria vigotskiana para observarmos os enfoques sócio-históricos formulados por ele e as questões acerca do ensino-aprendizagem; posteriormente, também estudamos o modelo didático da Escola de Genebra, uma vez que o Material da Olimpíada está ancorado nessa Escola. Compreender esses caminhos pelos quais passou o ensino de produção textual foi importante para que pudéssemos fazer nossas apreciações em 168 relação aos nossos objetos de pesquisa, pois, inicialmente, nosso objetivo era, apenas, analisar se os alunos alçaram-se autores na produção de crônicas no projeto da Olimpíada de Língua Portuguesa. Mas, para a realização eficaz de nossa pesquisa, compreendemos ser necessário direcionar nossos olhares para o Caderno dirigido ao professor para o preparo desse aluno participante da referida Olimpíada. Sabemos que a Olimpíada de Língua Portuguesa realiza hoje não apenas produções textuais voltadas para o gênero crônica, mas desenvolve um trabalho que contempla outros gêneros, a saber: artigo de opinião, memória, poema. Além disso, nossa escolha pelo gênero crônica justificou-se pelo fato de as crônicas serem vistas como literatura menor e, consequentemente na escola, elas são trabalhadas de maneira rápida e fragmentada. Por conta disso, resolvemos desenvolver nossa pesquisa pensando em desvelar a autoria num contexto de produções de crônicas. Feita a apresentação desses caminhos por nós traçado, nosso propósito é responder às questões de pesquisa. No decorrer de nossa pesquisa, analisamos dois corpora fundamentais para nosso trabalho, o primeiro corpus buscou analisar o material de forma a observar o encaminhamento didático do Caderno “A ocasião faz o escritor” e os efeitos de sentidos provocados no espaço escolar. Mediante tal objetivo orientamos nossa investigação pela seguinte questão: 1) De que forma o Caderno “a ocasião faz o escritor”, OLPEF encaminha a proposta de formação de autores de crônica no espaço escolar? Inicialmente, objetivamos compreender a crônica enquanto gênero discursivo e literário. Por isso, historicizamos a fim de entender como ela se constituiu ao longo dos séculos. Percebemos, mediante nossa pesquisa, que há um olhar para a crônica no sentido histórico, quando ela ainda era vista como um relato de acontecimentos históricos e, posteriormente, passa a ser vista como uma mescla de literário e jornalístico, com o surgimento da imprensa. 169 Assim, após a leitura do material didático da Olimpíada, verificamos que o tipo de gênero solicitado pelo material é a crônica literária, embora haja outras crônicas, por exemplo, a jornalística, a esportiva. Por conta disso, mapeamos o caderno para compreender a organização interna das 11 oficinas e seus objetivos, para observar se havia repetição de seções e como estavam organizadas. Desse modo, observamos que há uma repetição destas seções: objetivos, material para orientar a prática do professor. Durante a análise, observamos que o material encaminha as atividades para as questões dos elementos do texto narrativo, para a questão da situação de produção, também há momentos para os elementos linguístico-discursivos. Mas estes, a nosso ver, ainda se mostram incipientes, pois não foram trabalhados de forma mais elaborada. Assim, observamos que há um diálogo com as instâncias oficiais, os PCNLP, as OCEM, MEC (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação/Programa Nacional de Biblioteca na Escola). Essas relações dialógicas mostram que o material está ligado a essas instâncias, uma vez que também contribuem com orientações e verbas. Um outro fator relevante sobre o material que observamos é o diálogo com a Escola de Genebra, uma vez que o material segue as diretrizes da sequência didática, mas acreditamos que, para este gênero, talvez esse não seja o melhor caminho, pois acaba restringindo o ensino da crônica de forma modular, não favorecendo a autonomia dos alunos, contribuindo para que eles sejam autores de suas crônicas. Assim, é necessário pensar em atividades mais abertas, mais plurais por considerar que o gênero crônica permite essa abertura. Caso a sequência didática permitisse ao professor e ao aluno vislumbrar a pluralidade que o gênero crônica traz, sem enquadramento num modelo específico, o trabalho, seria, pensamos, bem mais produtivo. Nosso ponto de vista está apoiado na perspectiva bakhtiniana, pois entendemos a crônica como um gênero discursivo, constituído por diferentes vozes, estilos, que a torna um gênero singular em relação aos outros da ordem do narrar. Essa singularidade coloca em evidência as postulações feitas por Bakhtin acerca da diversidade dos gêneros, os quais se diferenciam e ampliam-se na medida em que a própria esfera de atividade humana se complexifica. Desse modo, ao assumirmos a postura discursiva para a crônica 170 literária, ao invés de vê-la apenas pelo eixo literário, conforme a abordagem do material, teremos um melhor resultado nas produções finais dos alunos, uma vez que estes poderão visualizar a crônica não apenas como um gênero literário, mas como um objeto do discurso, que é multifacetado, dada sua natureza híbrida. Essa postura favorece a uma formação mais cidadã, pois o alunado compreenderia o funcionamento discursivo da crônica, já que a escola não tem função social de formar autores literários. Após termos analisado o Caderno, para entendermos a proposta de produção da crônica, passamos para as produções dos alunos. Inicialmente, analisamos um caderno destinado aos professores “o que nos dizem os textos dos alunos?” em que especialistas da área expõem sua análise em relação às produções dos alunos nos diferentes gêneros previstos na Olimpíada. O importante da leitura desse material foi compreendermos as produções que iríamos analisar até mesmo para perceber se de fato aquilo que foi apontado pelos especialistas ocorreu nas produções que escolhemos para analisar. No decorrer da análise tentamos responder nossa segunda questão de pesquisa: 2) Quais vozes os alunos mobilizam nas produções discursivas das crônicas? Durante a análise dos textos dos alunos, percebemos que os alunos tiveram muita dificuldade em refratar o tema dado, o que fez com que não conseguissem produzir de fato uma crônica literária, conforme era o objetivo do caderno. Assim, ora produziram um texto escolar, exemplo, uma narração, ora uma crônica esportiva, ora uma crônica jornalística, ora uma anedota ou um causo popular, às vezes, não dava para definir se era um relato, ou se era uma descrição. Essa mescla, talvez, seja por ser o texto mais próximo de sua realidade, são textos que fazem parte de seu mundo social e talvez porque foi o mais enfatizado durante a preparação para a escrita desse texto. Mas também há momentos que os alunos-autores buscaram dialogar com outros textos, com as 171 informações recebidas ao longo da preparação da redação, há textos bem escritos, sem inadequação gramatical. Com relação às vozes mobilizadas nos textos, notamos que os alunos deixam claro a voz do destinatário real, aquele que efetivamente lê o texto, visando uma instância posterior à escrita. Em outras palavras, escrevem para a equipe avaliadora da Olimpíada e, além de ecoarem as vozes, esperam ansiosamente por respostas. Outra instância que percebemos nas vozes é o lugar do objeto discursivo, pois nenhum enunciado e nenhum autor é o primeiro a falar sobre o assunto abordado nas crônicas dos alunos. As temáticas já foram exploradas em outros textos, algumas, inclusive, no próprio material da Olimpíada. Os textos estão impregnados de apreciações ideológicas de outros lugares discursivos, ou melhor, de outras pessoas, por exemplo, (o professor, comunidade local e escolar, grupos políticos, familiares, visões de mundo), em alguns textos, ainda apareceram muito a voz do autor-pessoa, cheio de suas experiências pessoais, emotivas e a voz do autor-criador ficou um tanto afastada do texto, em algumas instâncias da escrita dos alunos. Talvez tenha faltado essa voz que traz um olhar do início ao fim de forma articulada, alguns textos deixaram transparecer tudo o que queriam dizer sem proporcionar ao leitor uma reflexão sobre o que já estava escrito, sem despertar nenhuma novidade no texto. Pensamos que o ético suplantou o estético nesse processo. Desse modo, pensamos que conseguir ou não ser autor vai depender das interações dialógicas, de forma que toda a pessoa que escreve busque interagir com o leitor de maneira a responder e dialogar com as vozes que nos norteiam, uma vez que não somos solitários e nem autônomos na linguagem. Diante do exposto, partimos para responder nossa terceira questão de pesquisa. 3) Como a autoria se apresentou nas crônicas produzidas pelos alunos participantes da OLPEF? Tendo em vista os textos por nós analisados, entendemos e afirmamos que os alunos são autores, mas não de crônicas literárias, conforme o material 172 orientou a produção. Essa não autoria para o gênero solicitado deve-se à falta de experiência suficiente para que eles produzissem a crônica literária, o tratamento didático dispensado no material, a nosso ver, não foi suficiente para favorecer a produção de uma crônica literária. A própria mescla de diferentes gêneros crônica literária, esportiva, jornalística não contribuiu. Talvez seria interessante realizar atividades direcionadas mais para a crônica literária, buscando atividades que levassem o aluno a compreender a literariedade do gênero, pois há mescla de literatura e jornalismo, para, posteriormente, eles produzirem. Ou, ao contrário, o trabalho poderia ser de abertura para o mais variados formatos de crônicas, como já assinalamos. Assim, para dar mais ênfase a nossa terceira resposta de pesquisa, se em conformidade a teoria bakhtiniana, o aluno conseguiu ser autor ou não, ancoramos nos dizeres de Bakhtin (2010[1959-1961]p.316) que coloca o seguinte: “Ver e compreender o autor [...] significa ver e compreender outra consciência, a consciência do outro e seu mundo, isto é, outro sujeito. Em certa medida, a compreensão é sempre dialógica”. Nesse sentido, entendemos que só atingiram o patamar de autoria aqueles que foram capazes de fazer da voz do interlocutor seu próprio dizer de modo a dar vida para a fala do outro, encontrando sua própria palavra, seu jeito singular e criativo. O que nos resta questionar se por meio da Olimpíada houve um avanço nas produções escritas de aluno em sala de aula, mas só nos arriscamos dizer que a iniciativa já é um caminho, mas ainda é preciso que as equipes de elaboração do material pensem no gênero crônica como uma possibilidade de oferecer ao leitor / ouvinte a oportunidade de comungar com o processo criativo e inovador. Por fim, todo o processo criativo vai depender não somente do autor, mas também das vozes dos outros que façam levar o aluno a pensar e transformar tudo o que aprende em suas próprias palavras de forma significativa para si e para que o outro entenda a necessidade de ser criativo e dialógico em contato com a outra palavra. O autor necessita recuperar os sentidos da palavra alheia, de maneira a evidenciar seus próprios anseios, de um jeito único que não fique parado em uma só consciência ou uma só voz. Isso porque a palavra é um fator 173 integrador, que envolve um conjunto de momentos e situações únicas, irrepetíveis e vale salientar que nos constituímos também pela valoração estética, nas próprias formas de dizer e agir na sociedade. Acreditamos que tanto a equipe organizadora da Olimpíada, quanto professores e alunos precisam alçar voos maiores, para dizer de fato que, na produção de crônicas da Olimpíada, constituíram-se alunos definitivamente autores no gênero crônica com foco na discursividade. Entretanto, percebemos em algumas produções a possibilidade de que qualquer pessoa pode ser autor de seu dizer. Mas, para isso, é necessário que haja um grupo de trabalho com boa formação e preparo, para orientar as atividades de escrita, em que os gêneros não sejam vistos apenas como modelos prontos e acabados, mas precisam de um trabalho apurado em que diferentes aspectos devem ser focalizados para permitir que o aluno seja autor de seu dizer. Assim como na vida, nas práticas sociais, em que nos deparamos com a multiplicidade de fatos, situações, pessoas, pontos de vista, assim é na arte, quando nos deparamos com a heterogeneidade das composições, infinitamente a serem criadas. Fora disso, é mero exercício escolar. 174 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMORIM, M. O pesquisador e seu outro – Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo, Musa Editora, 2001. ________, M. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em Ciências Humanas. Cadernos de Pesquisa, n. 116,p. 7-19, julho / 2002. ________, M. Cronotopo e exotopia In: BRAIT. B. (org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. ANTUNES, I. 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