Com a palavra
www.arquidiocesedesaopaulo.org.br | 26 de junho a 2 de julho de 2014
| Geral | 15
Heidi Ann Cerneka
Lutar sem perder a
‘esperança e a persistência’
Luciney Martins/O SÃO PAULO
O SÃO PAULO – A privatização das
penitenciárias representa um risco
aos direitos humanos ou à segurança
pública?
Edcarlos Bispo
redação
Uma mulher em liberdade lutando pelos direitos dos encarcerados, essa é a
definição mais simples sobre Heidi Ann
Cerneka, militante da Pastoral Carcerária desde 1997. Há 17 anos no Brasil, a
americana, que faz parte da coordenação
nacional da Pastoral para a mulher presa, está de malas prontas para voltar para
seu País natal, onde irá estudar direito.
“Fui no presídio com a equipe [da Pastoral] a primeira vez e descobri um mundo
que estava abandonado. A população
presa em geral é abandonada pelo Estado, mas também pelo povo da Igreja
Católica. As mulheres mais ainda, porque parecia um mundo invisível, como
se não existissem mulheres presas” comenta.
O jornal O SÃO PAULO concede a
palavra a Heidi, que fala dos momentos
desse trabalho, faz uma avaliação do sistema penitenciário brasileiro, o aumento
no número de encarceramentos no País,
a situação das mulheres e outros assuntos.
Heidi deixa uma mensagem para os
integrantes da Pastoral Carcerária e deseja que “nunca percam a esperança e a
persistência na luta”, além de pedir que
“não esqueçam-se das mulheres e realmente fiquem na luta contra o encarceramento em massa que afeta as pessoas
mais pobres e marginalizadas, especialmente”.
Heidi – A Pastoral Carcerária está terminando um relatório sobre privatização,
mas eu, Heidi, diria que sim, representa
um risco aos direitos humanos e a democracia. Seguramente, funcionários
em presídios privatizados têm menos
tempo de treinamento e a rotatividade de
funcionários é alto (eles não ficam muito
tempo)... mas o que mais me preocupa é
a questão de transparência. O presídio
privatizado vai garantir a entrada de visita familiar? Vai garantir os trabalhos de
assistência religiosa e acesso as igrejas
para os presos? Vai garantir entrada de
conselhos da comunidade, de conselhos
de direitos humanos, de saúde etc.? É
claro que pela lei, são obrigados a deixar
entrar todos esses grupos e ver o presídio
inteiro, mas acredito que eles vão mais
facilmente dificultar esses trabalhos de
controle social e acompanhamento religioso.
“Nesta segunda categoria, entram não
somente as pessoas presas, mas também suas
famílias, e que o Estado não tem obrigação de
garantir os direitos desta população”
O SÃO PAULO - Quais, na sua opinião, foram os momentos mais difíceis Um segundo mito é que existe cidadãos
desse trabalho?
e subcidadãos. Nessa segunda categoria, entram não somente as pessoas preHeidi Ann Cerneka – O mais difícil não sas, mas também suas famílias, e que o
é o trabalho com os presos e as presas. O Estado não tem obrigação de garantir os
mais difícil é trabalhar com funcionários direitos desta população.
e um sistema que invalida pessoas como Esse sistema nunca vai resolver a quesser humanos e cidadãs, não merecedores tão de desigualdade e injustiça no País.
de direitos e dignidade, e um Estado que Esse sistema trata indivíduos como o
incentiva isso.
problema em vez de reconhecer que o
O mais difícil é trabalhar com uma Igre- problema que causa crime, violência e
ja que prega justiça, amor e serviço e ver pobreza é coletivo, é econômico e soos líderes que não acham que esta justiça ciopolítico.
e amor se estende à população mais ex- É muito mais fácil eu apontar uma pescluída. É um grande sinal de esperança soa ou umas pessoas e dizer “ele é o
que temos agora um Papa que olha para problema e a causa da violência aqui na
os presos e as presas, que chama a gente cidade” do que reconhecer a responsapara ser parceiros e parceiras na cons- bilidade social de todos nós, dizer “ele
trução deste mundo novo, aqui, agora, é o produto de tudo isso” e ter de munesta terra!
dar meu comportamento e meu estilo de
vida.
O SÃO PAULO – Que avaliação faz
do sistema prisional brasileiro?
O SÃO PAULO – Houve um primeiro passo para o fim da revista vexatóHeidi – O sistema prisional brasileiro ria. A Pastoral Carcerária é uma das
está construído em cima de alguns mi- grandes batalhadoras nessa frente?
tos. Primeiro, que punição e retribuição
vão mudar pessoas para melhor e acabar Heidi – A Pastoral Carcerária, eu diria,
com violência e que o medo de punição há décadas, denuncia essa ilegalidade
(o resto de nós com medo de ser preso) com os familiares e queridos da populavai ajudar o resto da população a não ção presa. Por quê? Porque a Pastoral
praticar crimes.
Carcerária está dentro dos presídios, co-
tovelo a cotovelo com a população presa
e seus familiares e tem ouvido o clamor
destas pessoas há muito tempo. Não
temos como ver algo deste nível na injustiça e indignidade que acha certo, por
exemplo, obrigar a mãe de um preso a
tirar toda sua roupa em frente de estranhos, agachar em cima de um espelho e
ser tratada como suspeita só por causa de
seu parentesco.
Estamos com muita esperança, assim
como o movimento, para acabar com a
revista continua crescendo e o projeto de
lei está no Congresso. O fim desta violação e ilegalidade está chegando.
O SÃO PAULO – O aumento do número de encarceramentos no Brasil se
deve, na sua opinião, a que fatores?
Heidi – Acho que são muitos fatores,
mas elencaria dois: a injustiça e desigualdade, que às vezes causam revolta e/
ou desespero, e o outro fator é a lei das
drogas que criminaliza o usuário, prevê
sentenças altas (sempre falamos que a
porta de entrada do presídio é grande,
mas a porta de saída é muito pequena).
Também tenho de dizer que a lentidão
do judiciário contribui bastante para a
superlotação e ao aumento da população
prisional.
O SÃO PAULO – Enquanto mulher,
como vê a situação das penitenciárias
femininas no País?
Heidi – A situação das penitenciárias
femininas é muito assustadora e preocupante. Com certeza, nestes anos,
há coisas que melhoraram. Quando
comecei este trabalho, nenhuma mãe
e nenhum bebê tinham direito de
amamentação. Hoje é lei (aliás, era
naquela época também, mas ninguém
respeitava).
O que nos deixa mais tristes é que a
grande maioria de mulheres que encontramos nos presídios é de crime não
violento, muitas vezes primária, e mais
de 80% com filhos. Não há necessidade de deixar presa. Tem alternativas
penais que ainda responsabiliza a pessoa pelo qual ela ou ele fez, mas não
precisa deixar espremida em celas superlotadas, sem qualquer condições de
higiene e saúde.
O Estado de São Paulo, por exemplo,
apesar de mais de 17 anos de luta, nunca tem levado à sério a questão de amamentação dos filhos das mães presas.
É lei. É obrigação, mas parece que só
cidadão comum (e “subcidadão”) tem
obrigação de cumprir a lei. O Estado
não tem. Isso não é peculiaridade de
São Paulo.
Outra Reflexão, acho importantíssimo lembrar que esse trabalho para um
mundo mais justo, para um mundo sem
cárceres (e sem violência), é de todos e
todas. É muito cômodo achar que “a
Pastoral Carcerária cuida disso e posso relaxar em meu cantinho da Igreja”,
mas eu acredito que as pastorais existem para chamar todos nós para a militância!
O SÃO PAULO
June 26, 2014
Article translation
HEIDI ANN CERNEKA
Fighting without losing ‘hope and tenacity’
A free woman fighting for the rights of those incarcerated, that is the simplest definition regarding Heidi
Ann Cerneka, activist in Prison Ministry since 1997. In Brazil for 17 years, the American, who was part
of the national coordinating team for Prison Pastoral Ministry, responsible for women in prison, has her
bags packed to return to her native country, where she will be going to law school. “The first time I
went to the prison with the ministry team, I discovered a world that had been abandoned. The prison
population in general is abandoned by the State, as well as by the members of the Catholic Church. The
women even more so; their world seemed invisible, as if women prisoners did not exist,” she
commented.
The newspaper O SÃO PAULO grants the word to Heidi, who speaks of moments in her work, evaluates
the Brazilian prison system, the increase in number of prisoners in the country, the situation of women
and other subjects.
Heidi leaves a message to all the members of the Prison Pastoral Ministry and wishes for them that
“they never lose the hope and determination in the struggle”, in addition to asking that they “not forget
the women and continue to fight against mass incarcerations that affect especially those who are poor
and marginalized”.
O SÃO PAULO – What were, in your opinion, the most difficult moments of this work?
Heidi Ann Cerneka – The most difficult thing is not the work with the prisoners. The most difficult thing
is working with the prison employees and a system that invalidates the person as a human being and a
citizen, as undeserving of rights and dignity, and a State that encourages this. Most difficult is working
with a Church that preaches justice, love and service and then seeing Church leaders who do not believe
this justice and love should be extended to the most excluded population. It’s a great sign of hope that
we now have a Pope that looks to the prisoners, who calls all of us to be partners in the creation of a
new world, here and now, on this earth!
O SÃO PAULO – What is your assessment of the Brazilian prison system?
Heidi – The Brazilian prison system is built on some myths. First, that punishment and retribution will
change people for the better, end the violence and that the fear of punishment (the rest of us will be
afraid of being arrested) will help the population to not commit crimes. The second myth is that there
are citizens and sub-citizens. In the second category, are not only the prisoners, but also their families,
and that the State has no obligation to guarantee the rights of this population. This system will never
solve the issue of inequality and injustice in the country. This system treats individuals as the problem
instead of recognizing that the problem that causes crime, violence and poverty is collective; it’s
economic and sociopolitical. It’s much easier for me to point to a person or persons and say “he’s the
problem and the cause of violence in this city” instead of recognizing the social responsibility we all
have, to say “he’s a bi-product of all of this” and I need to change my behavior and lifestyle.
O SÃO PAULO – There has been a first step towards the end of invasive body searches of family
members. Is the Prison Pastoral Ministry one of the great fighters on this front?
Heidi –I would say that, for decades, the Prison Pastoral Ministry has denounced that illegality with
family and loved ones of those in prison. Why? Because the Prison Ministry is inside the prisons, elbow
to elbow with the prison population and their families and has heard the cries of these people for a long
time. We cannot see this level of injustice and indignity and believe it is right to oblige the mother of a
prisoner to remove all her clothes in front of strangers, squat over a mirror and be treated as a suspect
simple because of her kinship. We great hope that we will be able to end the body searches along with
the movement that continues to grow and actually has a bill in Congress. The end of this violation and
illegality is coming.
O SÃO PAULO – The increase of incarcerations in Brazil is due, in your opinion, to what factors?
Heidi – I believe there are many factors, but I’d list two: injustice and inequality, that sometimes cause
outrage and/or despair. The other factor is the drug law that criminalizes the user and demands high
sentences (we always state the entrance door to the prison is wide but the exit door is very narrow). I
also have to say that the slowness of the judicial system greatly contributes to overcrowding and an
increase in the prison population.
O SÃO PAULO – Does the privatization of the penitentiaries pose a risk to human rights or public safety?
Heidi –The Prison Pastoral Ministry is finalizing a report regarding privatization, but I, Heidi, would say
that yes, it poses a risk to human rights and to democracy. We know that employees in privatized
prisons have less training; the employee turnover is high …but what worries me most is the question of
transparency. Is the privatized prison going to guarantee family visits? Is it going to guarantee religious
assistance and that the inmates have access to their churches? Is it going to guarantee entry for
community councils, human rights’ councils, health committees, etc.? It is clear that by law, they are
obliged to allow entry to all these groups and give them access to the entire prison, but I believe they
will more freely and more easily hinder social control and religious assistance.
O SÃO PAULO – As a woman, how do you see the situation of women’s prisons in this country?
Heidi – The situation in the women’s prisons is very alarming and worrisome. Certainly, some things
have improved over the years. When I started this work, no mother or baby was able to access the right
to breastfeeding. Today, it is guaranteed by a specific law - (it was also the law at the time, but no one
observed it.)
What is most disheartening and said is that the vast majority of the women we find in prison are for
non-violent crimes, often first-time offenders, and more than 80% of them have children. There is no
need to imprison them. There are alternative sentences that can hold a person responsible for what she
or he has done, but not leave them crammed in overcrowded cells, without any conditions for hygiene
or health.
For example, despite 17 years of struggle by the Prison Pastoral Ministry, the state of São Paulo has
never taken seriously the issue of breastfeeding for children of women in prison. It is the law. It is an
obligation, but it seems that only the ordinary citizens (and “sub-citizens”) have the obligation to follow
the law. The State does not. This is not a reality only in Sao Paulo.
Another reflection, I think it is extremely important to remember this work for a more just world, a
world without prisons (and without violence), is everyone’s. It is very convenient to believe that “the
Prison Pastoral Ministry will take care of that and I can relax in my little corner of the Church”, but I
believe that the social pastoral movements of the Church exist to call all of us to activism for the cause!
Picture Caption: “In the second category, are not only the prisoners, but also their families, and that the
State has no obligation to guarantee the rights of this population.”
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heidi ann cerneka