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A questão racial no Brasil e as relações de gênero ST. 18
Daniela do Carmo
UNICAMP
Palavras-chave: família – “elite negra” – mulheres
Uma família da “elite negra” paulista na perspectiva de gênero
No dia 16 de março de 2006 teve lugar no Auditório do SESC (Avenida Paulista – São Paulo)
um tributo à memória de Cesarino Júnior e a celebração do centenário de seu nascimento. O discurso
de abertura foi proferido pelo ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Na platéia
estavam presentes familiares do homenageado; muitos desembargadores e promotores (a maioria exalunos de Cesarino Júnior); vários admiradores; e, por fim, jornalistas de diversas emissoras de rádio e
televisão que, de alguma forma, refletiam a dimensão do evento.
Cesarino Júnior foi um homem ilustre. Ingressou na Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco em 1924, onde colou grau em 1928. Fez ainda, na Faculdade de Direito da USP, o curso de
doutorado durante os anos de 1933 e 1934. Em 1938, prestou concurso à cátedra de Legislação Social
criada no ano anterior nessa Faculdade e foi classificado em primeiro lugar entre vários outros
candidatos. Em 1948, após concursos de títulos, foi nomeado professor da Faculdade de Ciências
Econômicas e Administrativas da USP, tornando-se professor catedrático por concurso de títulos e
provas em 1960. Antes, porém, em 1952, formou-se médico pela Faculdade Paulista de Medicina, ao
mesmo tempo em que exerceu as atividades de advogado, jurisconsulto e professor. Atingiu a mais alta
posição da carreira universitária e grande projeção no cenário internacional na área em que foi
especialista: Direito do Trabalho.
Fernando Henrique Cardoso conviveu com Cesarino Júnior quando este o convidou para
ministrar um curso de sociologia na Faculdade de Direito da USP na segunda metade da década de
1950. Em seu discurso de homenagem, o ex-presidente procurou recuperar a trajetória profissional de
Cesarino Júnior e afirmou que Cesarino além de ter sido “o precursor do Direito Social e do Direito do
Trabalho no Brasil”, foi, quando fundou o Instituto Brasileiro de Direito Social, “o dínamo daquela
instituição”. Apesar dos comentários ponderáveis, o discurso proferido por Fernando Henrique foi,
todavia, incompleto, pois “ocultou” a pertença racial do homenageado. Cesarino Júnior era negro e esse
fato não foi sequer mencionado em toda a homenagem.
O equacionamento da pertença racial de Cesarino Júnior vi-à-vis as instituições escolares que
freqüentou – na condição de aluno ou mesmo como professor – não é irrelevante. Ao contrário, permite
entender porque as instituições ora promoveram o seu acolhimento e o levaram à consagração, ora
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levantaram “barreiras desanimadoras”, causando-lhe frustrações. E grande parte das “barreiras” tinha a
ver com o fato dele ter sido um aluno negro, um professor negro. Entender a trajetória de Cesarino
Júnior pressupõe considerar a relação entre sua condição racial, as vicissitudes de sua inserção no
“mundo dos brancos” e sua notória capacidade de superar dificuldades.
Para além dos marcadores raciais, também ficou “oculto” na homenagem, talvez por
desconhecimento dos oradores (e aqui vale o benefício da dúvida), elementos que foram decisivos na
vida de Cesarino Júnior: a história de sua família assim como o investimento das mulheres da família
no processo de ascensão-social são os elementos mais evidentes e apresentam-se como sinais
inequívocos das (im)possibilidades geracionais de integração à sociedade, das diferentes posições que
os sujeitos ocuparam no espaço social e das estratégias por eles acionadas. Recuperar, por um lado e de
modo sucinto, fatos que marcaram a história da família Cesarino desde a segunda metade do século
XIX quando um antepassado de Cesarino Júnior conduziu um colégio feminino em Campinas com a
participação ativa de suas irmãs professoras até o casamento de Cesarino Júnior com a filha de um
mestre de obras e escultor, imigrante italiano anarquista, em 1926 e, por outro lado, recuperar as linhas
de força que remontam o investimento feminino na família corresponde a minha tarefa neste seminário.
Em 1906, ano do nascimento de Cesarino Júnior, a família Cesarino se distinguia das outras
famílias negras da cidade de Campinas não apenas pela sua história, mas também por suas ações.
Enquanto a maioria das famílias negras da cidade, recém-saídas da escravidão, encontrava-se em
situação de extrema pobreza, enfrentando problemas de subsistência decorrentes da frágil situação
econômica (desemprego, falta de moradia e serviços de saúde) e freqüentemente exposta às violências
explícitas da discriminação racial, a família Cesarino, de outra parte, constituída por negros livres em
pleno período escravista, tinha no passado a conquista da instrução, do prestígio e da respeitabilidade e
estava dando prosseguimento ao processo de ascensão sócio-econômica, iniciado pelos antepassados.
Custódio, trisavô de Cesarino Júnior, já no início do século XIX, se distinguia dos outros negros
da época por dois motivos: era livre e, sendo assim, não participava da grande massa escrava; e era
tropeiro, não se encontrando, então, à margem do sistema produtivo, como grande parte dos negros
alforriadosi. Segundo Maria Sylvia de Carvalho Franco (1974), o negro livre não coisificado pela
escravidão podia desenvolver atividades que lhe ofereciam boas oportunidades. E muito embora preso
ao mundo da escravidão, o tropeiro foi um dos tipos humanos para o qual mais se abriram as
possibilidades de integração na sociedade. Ao encontrar-se bem-sucedido em seu negócio, o tropeiro
“algumas vezes deixa-se seduzir pelo orgulho de fazer de seu filho um doutor”ii.
Antonio Maria Cesarino, bisavô de Cesarino Júnior, não chega a ser propriamente “um doutor”,
mas se torna um cidadão respeitável na cidade de Campinas ao fundar em 1860 o primeiro internato
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para meninas da cidade: o Colégio Perseverança ou Colégio Cesarino, como era mais conhecido. Este
colégio figurava entre as escolas particulares da cidade que tiveram grande expressão na época. O
prestígio desfrutado pelo colégio foi percebido por Celso Maria de Melo Pupo (1969) quando recupera
um registro do Diário do Imperador D. Pedro II. No Diário o imperador relata uma visita que fez a
Campinas em 1876 para inaugurar os serviços de iluminação a gás e comenta que: “... O Colégio
Perseverança do Cesarino e sua mulher, pardos. Tem muitas meninas e é conceituado”iii. Nos
manuscritos de sua autobiografia e da biografia familiar intitulado Memórias de um pajem, Cesarino
Júnior observa que “D. Pedro II, quando em Campinas, hospedou-se no Colégio, tal a sua fama”iv.
Ao recuperar uma série de reportagens do jornal O Diário do Povo a respeito dos nomes das
ruas da cidade de Campinas, Irene Maria Barbosa (1997) encontra referência à rua Antonio Cesarino.
Nessa referência tem-se o seguinte comentário sobre o público que freqüentava o Colégio Cesarino:
Em 1875, o colégio era freqüentado por cinqüenta e uma alunas,
algumas pertencentes às primeiras famílias da cidade, oito nada
pagavam... seis meninas pobres saíram do colégio casadasv.
Outras fontes são reveladoras das atividades desenvolvidas no colégio e, sobretudo, do
empenho das mulheres da família. De acordo com o Almanaque de Campinas para 1871:
O Colégio Cesarino ou Perseverança, para o sexo feminino, surge em
Campinas em 1860 e era dirigido pelas suas fundadoras D.
Bernardina e D. Amância Cesarino. Ensinava a ler, escrever, contar,
gramática nacional e francesa, geografia, música e todas as prendas
domésticasvi.
Assim, além da aprendizagem intelectual, as alunas do Colégio Cesarino recebiam também
conhecimentos manuais, como: costurar, bordar, cozinhar (pelo menos em determinadas ocasiões) que
faziam parte das atividades ensinadas no colégio. Cabe sublinhar, sobretudo, que Antonio Maria
Cesarino não foi o único fundador do colégio. Sua esposa e irmãs, além de fundadoras, foram
professoras e diretoras do Perseverança. Foram elas que estabeleciam e faziam cumprir a rotina de
atividades do colégio.
Passando para outra geração, encontramos Bartolomeu Ferreira Cesarino, avô de Cesarino
Júnior. Bartolomeu exercia a profissão de carteiro na cidade de Campinas. E se em relação a
Bartolomeu sabemos apenas que foi casado com Maria Joaquina e que foi pai de um outro Antonio, do
qual falaremos adiante, o material iconográfico que conseguimos junto aos seus descendentes
impressiona tanto pelo bom estado de conservação das fotos, tendo em conta a possível data de
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captação, quanto pelas características dos trajes de Bartolomeu e Maria Joaquina, assim como pela
austeridade de Maria Joaquinavii. Bartolomeu aparece trajando paletó de corte europeu, colete e
gravata. Tem o rosto levantado e encara com seriedade a lente. Maria Joaquina aparece vestida e
penteada à moda européia. O vestido de gola alta é encoberto por um véu de renda florida. O cabelo
encontra-se preso em coque por uma grinalda de folhasviii.
Se nessa antiga fotografia impressiona as características do traje do casal negro, a imagem
daquela mulher negra e altiva, de olhar severo, quase “dominador”, impressiona mais ainda. Afinal de
contas, quem foi Maria Joaquinha?
De tudo o que pude apurar até o momento, o certo é que Maria Joaquina foi aluna do Colégio
Perseverança e que morreu na primeira epidemia de febre amarela na cidade de Campinas em 1889.ix
E se o segundo elemento (da morte por febre amarela) nos obriga a pensar o contexto em que viviam
essas pessoas, o primeiro elemento (o fato de ter sido aluna do colégio) impõe trabalhar o universo
relacional de nossos personagens. Com efeito, estamos convencidos de que não é possível nem
desejável estudar a história de uma família e a trajetória de indivíduos como um universo social
estanque. Assim, este estudo deve ser orientado pelo interesse sócio-antropológico em enveredar no
universo relacional dos nossos personagens, integrando-os nos contextos sociais em que estão
envolvidos.
A passos largos chegamos a outra geração: Antonio Ferreira Cesarino, pai de Cesarino Júnior,
exercia a profissão de bedel no renomado “Colégio do Estado” em Campinas. Figura respeitável,
Antonio parece ter tido uma formação escolar razoável: recebeu instrução no Liceu de Artes e Ofício
em São Paulo, mas foi obrigado a deixar os estudos por razões financeiras. Em relação à Júlia, mãe de
Cesarino Júnior, pouca coisa havia sido descoberta. Contudo, através de uma leitura atenta das
Memórias, recuperamos a sua participação na trajetória do filho e a sua parcela de investimento no
êxito alcançado por ele. Júlia era filha de nordestinos, de origem humilde, alfabetizada e desenvolvia as
atividades de quitandeira na cidade de Campinas (o pai era de origem portuguesa e a mãe era índia da
etnia Potiguar, localizada no Ceará, segundo informação da própria Júlia, registrada pela sua neta
Thereza Cesarino Trevas). Sabe-se que a única vez que Cesarino Júnior, então com 14 anos, cogitou
em abandonar os estudos para trabalhar, dada a difícil situação financeira pela qual passava sua família
naquele momento, Júlia, impediu-o. Diante da atitude da mãe, o rapazinho resolveu então continuar
estudando. Sabe-se também que em 1936 o pai de Cesarino Júnior foi atropelado em São Paulo.
Cesarino Júnior escreve nas Memórias:
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Por isso minha mãe teve de desdobrar-se, afim de poder o casal sustentar os
08 filhos que tiveram e dos quais eu fui o primeiro... Extraordinariamente
inteligente e ativa, devo a minha formação tanto a meu pai como a ela, que
supria a falta de instrução por um espírito ambicioso, uma grande amenidade
no trato e uma infatigável dedicação ao trabalhox.
Se Cesarino lembra do “espírito ambicioso” da mãe, da sua “grande amenidade no trato” e da
“infatigável dedicação ao trabalho”, ele próprio parece ter incorporado estes elementos com bastante
veemência.
Filho mais velho dos nove do casal, Cesarino Júnior concretizou todos os sonhos acalentados
pelos outros “Antonios Cesarinos” que o antecederam. Foi mais longe ao conseguir atingir a mais alta
posição da carreira universitária e grande projeção no cenário internacional na área em que foi
especialista: Direito do Trabalho, posição que os outros “Antonios Cesarinos” jamais poderiam
imaginar. Em 1926 casou-se com Flora. Em relação à Flora, pouco se sabia e trabalhos acadêmicos
sobre a trajetória acadêmica de Ceranino Júnior não faziam referências pormenorizadas. Contudo, fui
informada – através do diálogo e da correspondência que mantenho com os membros da família e dos
documentos que estes disponibilizaram – sobre as origens européias da família de Flora e sobre uma
orientação particular, “profundamente anarquista”, que a constituía. Flora era filha de um pedreiro,
mestre de obras e escultor italiano chamado Pietro Massarotto e da portuguesa Ana (de Souza Letro)
Rodrigues da Silva. Pietro também escrevia peças de teatro; algumas até foram encenadas no Círculo
Italiano de Campinas. O casal residia em uma bela casa (construída por Pietro) na rua Irmã Serafina, no
centro de Campinasxi. De acordo com uma bisneta, Pietro Massarotto e Ana Rodrigues da Silva eram
anarquistas e isso, na sua opinião, foi decisivo para deixarem “a filha de 17 anos casar com um negro
sem isso ser um absurdo”xii.
Procurando reconstruir alguns acontecimentos marcantes da vida de Flora, ficamos sabendo que
ela teve que enfrentar, ao lado do marido, algumas situações que evidenciavam o preconceito racial.
Segundo a neta de Cesarino Júnior e Flora, há uma “estória clássica” na família sobre uma viagem que
o casal fez aos Estados Unidos nos anos de 1940 quando Cesarino Júnior foi convidado a dar uma
conferência naquele país. A neta conta um episódio dessa viagem:
Meu avô Cesarino e minha avó Flora entraram num restaurante para comer e
deram para eles a pior mesa, lá perto da cozinha, mesmo o restaurante
estando vazio, e o meu avô ficou super injuriado. Ele passou a odiar os EUA
por isso e minha avó também.
Numa reunião da família Cesarino que aconteceu recentemente, quando da homenagem à
memória de Cesarino Júnior, alguns familiares recordaram o episódio no restaurante nos Estados
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Unidos e comentaram que Flora teria ficado “indignada” com o tratamento lá recebido. Teria dito aos
parentes ao voltar da vigem que achava “inadmissível” um país segregar pessoas por causa da cor de
suas peles e que “um dia isso teria que acabar”xiii. De todo modo, parece consenso entre os
descendentes do casal Cesarino Júnior e Flora pensar em Flora como uma das pessoas que mais
influenciou Cesarino Júnior nas muitas dimensões da vida social e, particularmente, em suas tomadas
de decisões.
Ao que tudo indica, a família Cesarino parece se distinguir das outras famílias negras da cidade
de Campinas do início do século XX, constituindo o que se convencionou chamar “elite negra”xiv. João
Batista Borges Pereira (1967) entende a “elite negra” como uma minúscula parte da “população de cor”
que, graças ao grau de instrução, a êxitos econômicos e profissionais, conseguiu distinguir-se da grande
massa negraxv. Ao chamar a atenção para os critérios subjetivos de auto-avaliação social, perfilhados
pelos negros e mulatos em ascensão, Florestan Fernandes (1965) afirma que tais critérios só recebem
franco reconhecimento entre os negros e, ainda assim, “como algo legítimo e indiscutível, apenas por
aqueles que se identificam como a elite ou a alta sociedade dessa população”xvi.
Outra forma de pensar a “elite negra” é apresentada por Petrônio José Domingues (2001). De
acordo com Domingues, o termo tem três sentidos específicos: político, à medida que este grupo se
configurou como dirigente político da comunidade e foi aceito como tal pelos brancos; educacional e
cultural, à medida que, alfabetizado, era considerado “culturalmente evoluído”. E, por fim, um sentido
ideológico quando este grupo passa a reproduzir muitos valores ideológicos da classe dominantexvii.
Diante do exposto, não resta dúvida de que o que se convencionou chamar “elite negra” merece
uma discussão aprofundada. Borges Pereira e Florestan Fernandes entendem que o grupo de negros em
ascensão não chega a constituir uma camada social definida, amplamente reconhecida. Domingues, por
outro lado, reconhece a definição e a legitimidade deste grupo como camada social ao especificar seus
possíveis enquadramentos. Nos contornos deste seminário, sempre que eu falar em “elite negra”, estarei
me referindo ao grupo de negros que, graças ao grau de instrução, a êxitos econômicos e profissionais,
conseguiu distinguir-se da maioria da população negra.
Salvo melhor juízo, creio que já se tornou pedra de toque no campo dos estudos de gênero no
Brasil e, mais particularmente na sua relação com a teoria feminista, o reclame de trabalhos que
articulem, no plano da reflexão teórica, a perspectiva de gênero em interface com a perspectiva
racialxviii. Para mostrar que não se trata de uma questão de mera combinação das diversas formas de
opressão, Verena Stolcke (1990) traz o entendimento de Sandra Harding para quem a interseção entre
gênero e raça tem o potencial de mostrar como estas diferentes formas de dominação afetam os sujeitos
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de maneiras particulares. Diz Harding: “..em culturas estratificadas tanto por gênero quanto por ‘raça’,
o gênero é também uma categoria racial e a ‘raça’, uma categoria de gênero”xix.
A perspectiva de gênero que trabalho filia-se à linha de reflexão de Marilyn Strathern e Teresa
de Lauretisxx, que para além de considerar a necessidade de superar a conceitualização de gênero do
ponto de vista binário (masculino e feminino), pretende observar o processo de práticas significantes
que descrevem a realidade dos sujeitos, que colocam em detalhe os sujeitos com suas redes de relações
e expõem como se configuram as transformações sociais. M. Strathern pensa gênero como uma
categoria empírica, como um operador de diferenças que marcam e que podem ser percebidas
contextualmente. Aqui o gênero é pensado como um tipo de diferenciação categórica que assume
conteúdos específicos em contextos particulares. Assim, não se trata de focalizar apenas as mulheres
como objeto de estudo, mas os processos de formação de feminilidade e masculinidade, processos
dependentes e constitutivos um do outro. Quer dizer: os sujeitos se produzem em relação e na relação.
T. De Lauretis observa que gênero não é apenas uma construção sócio-cultural, mas um sistema de
representação que atribui significado aos indivíduos no interior da sociedade, atribuindo-lhes, inclusive,
identidade, prestígio e posição no sistema de parentesco.
Se é de todo evidente que essa família oferece bons exemplos e contrapontos para adensarmos a
investigação da ascensão sócio-econômica do negro no Brasil, é também válido reconhecer a
participação das mulheres em seu processo de ascensão sócio-econômica. Do ângulo das possibilidades
teóricas, estamos trabalhando com operadores de diferença: “raça” e “gênero” são categorias analíticas
vigorosas e sua articulação tem proeminência nos debates acadêmicos contemporâneos.
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Apesar de não dispor de muitas informações a respeito da vida desse tropeiro negro, sabe-se que ele ficou viúvo muito
cedo, quando o filho Antônio Maria Cesarino nasceu, e que o menino Antonio foi criado por uma de suas tias (irmã de
Custódio) que o ensinou a ler e escrever. Dono de uma tropa, Custódio deixou a cidade de Paracatu, Minas Gerais, com
destino à cidade de Campinas, interior paulista, determinado a dar uma vida melhor para o filho. O tropeiro tinha um sonho:
“queria que o filho fosse alguém”, mas não viveu para assistir à realização desse sonho, pois, pouco depois de instalados em
Campinas, morre, deixando o menino Antonio, com 14 anos. De acordo com Barbosa (1997) supõe-se que o próprio
Custódio deveria ter tido alguma instrução, pois, quando se fixou em uma fazenda de Campinas, foi incumbido por sua
patroa de ir à Bahia liquidar os negócios do marido falecido. BARBOSA, Irene Maria Ferreira, Enfrentando preconceitos.
Um estudo da escola como estratégia de superação de desigualdades. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp,
1997.
ii
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho, Homens livres na sociedade escravocrata. São Paulo: Editora Ática, 1974, p. 67.
iii
Cf. PUPO, 1969, p. 171 apud PEDRO II, Diário, Museu do Arquivo Imperial de Petrópolis. PUPO, Celso Maria de Melo,
Campinas, seu berço e juventude. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969.
iv
CESARINO JÚNIOR, A. F. (1982), Memórias de um pajem. Original datilografado. Centro de Memória-UNICAMP.
Manuscritos doados pelo titular ao Centro de Memória da Unicamp em 17 de outubro de 1986.
v
BARBOSA, 1997, p. 48 apud Diário do Povo, 28 de novembro de 1955, “A Rua Antonio Cesarino”. BARBOSA, Irene
Maria Ferreira, Enfrentando preconceitos. Um estudo da escola como estratégia de superação de desigualdades. Campinas:
Área de Publicações CMU/Unicamp, 1997.
vi
Almanack de Campinas para 1871. Organizado e Publicado por José Maria Lisboa. Campinas: typografia da Gazeta de
Campinas, 1872, p.8.
8
vii
Registro do Arquivo Massarotto-Cesarino. Tipo de documento: Foto. Procedência: Mariana Trevas, pessoa que detém o
documento original. Data provável da captação do documento: segunda metade do século XIX. Observação sobre a data do
documento: Fábio Moretto (descendente da família Massarotto). Situação da captação do documento: fotógrafo: “Henrique
Rosen Photographo”. Local de captação do documento: Campinas.
viii
Estudos sobre a (auto-)representação de negros livres e escravos no Brasil da segunda metade do século XIX têm
chamado a atenção para dois pontos: o ato de ir ao estúdio do fotógrafo torna-se uma demanda de status no século XIX e os
detalhes usados em uma cena constituem uma linguagem simbólica que torna inteligível a idéia que se queria passar. Ao
serem representados de acordo com o padrão de moda europeu – vigente na sociedade no período – os negros livres
procuravam ocultar os estigmas da escravidão. Ver: MAUAD, Ana Maria, “Imagem e auto-imagem no Segundo Reinado”.
In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.), História da vida privada no Brasil 2; Império: a corte e a modernidade
nacional. S.P., Cia. das Letras, 1997, pp.188-189; SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas; a moda no século
dezenove. S.P., Cia. das Letras, 1987; KOSSOY, Boris e CARNEIRO, Maria Luiza Tucci, O olhar europeu: o negro na
iconografia brasileira do século XIX. São Paulo: Edusp, 1994; AZEVEDO, Paulo Cesar de e LISSOVSKY, Mauricio [et
ali.]. Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Junior. São Paulo: Ed. Ex Libris, 1988.
ix
De acordo com a Biblioteca Virtual Adolpho Lutz, 1889 foi o “ano mais infausto” na história moderna da febre amarela
no Brasil. Em Campinas, seu desenvolvimento foi rápido, chegando a quarenta óbitos por dia. Avaliou-se que três quartos
da população, estimada em vinte mil habitantes, deixaram a cidade. Muitas pessoas que regressaram antes do tempo
contraíram a moléstia. Houve cerca de dois mil óbitos, incluindo os que faleceram em outros lugares.
x
CESARINO JÚNIOR, Antonio Ferreira, Memórias de um pajem. Original datilografado. Centro de Memória-Unicamp,
1982, p. 7.
xi
Registro do Arquivo Massarotto Cesarino. Tipo de documento: Foto. Procedência: Mariana Trevas, pessoa que detém o
documento original. Data provável da captação do documento: 23 de junho de 1925. Observação sobre a data do
documento: Anotada no verso da foto a lápis: 23-6-25. Situação da captação do documento: Fotógrafo Juvêncio, Rua
Rosário, 78 Campinas, SP. Local de captação do documento: Campinas, SP, casa na Rua Irmã Serafina, 242. Pessoas que
aparecem no documento: Pedro Massarotto, Ana Rodrigues da Silva, suas três filhas (Maria, Fulvia, Flora) e uma terceira
mulher com Ubirajara Batista (filho adotivo) no colo. Contexto em que a foto foi tirada: em frente à casa de Pedro e Ana.
xii
Depoimento de Flávia Cesarino Costa. Flávia é bisneta de Pietro Massarotto e Ana Rodrigues Silva e neta de Cesarino
Júnior e Flora Massarotto Cesarino.
xiii
Em outra de suas viagens aos Estados Unidos (provavelmente na década de 50), Cesarino e Flora aguardavam na frente
de uma fila de um cinema para comprar ingressos quando foram “convidados” para passar para o fim da fila. Entre outros
fatos Cesarino Júnior também relatou a seus familiares o desconforto que lhe causou ao tentar entrar em um banheiro e ver o
letreiro “White men only”- informação dada por Antonio Carlos Cesarino, filho de Cesarino Júnior e Flora. Este informante
também descreve a cena do restaurante de um modo um pouco diferente que aquele relatado pela neta. Ele diz que o pai e
mãe estavam aguardando em uma mesa e que o garçom nunca vinha servi-los. Após reclamarem, o garçom disse que
deviam se sentar em uma mesa localizada em um cantinho. Cesarino Júnior indignado levantou-se e deixou o restaurante.
xiv
De fato, naquele período, o segmento negro não constituía um bloco homogêneo e, de modo geral, era possível dividi-lo
em duas camadas: de um lado (e em número reduzido), “os negros da elite” e, de outro, “a massa negra plebléia”. Se o setor
plebeu era constituído por negros desqualificados socialmente (desempregados, malandros, trabalhadores braçais,
doméstico(a)s, biscateiros, indigentes, prostitutas, etc.), a “elite negra”, ao contrário, era constituída por negros provenientes
dos estratos intermediários da estrutura de classes (jornalistas, funcionários públicos, técnicos, profissionais liberais ou
especializados), em suma, era constituída por negros letrados e/ou qualificados socialmente.
xv
BORGES PEREIRA, João Batista, Côr, Profissão e Mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo. São Paulo: Pioneira,
1967.
xvi
FERNANDES, Florestan, A Integração do negro na sociedade de classes, vol. I. São Paulo: Ed. Ática, 1965, p. 160.
xvii
DOMINGUES, Petrônio José, Uma História Não Contada. Negro, Racismo e Trabalho no Pós-Abolição. Dissertação de
Mestrado, São Paulo, FFLCH/USP, 2001, p. 163-164.
xviii
Mariza Corrêa chama a atenção para a “imensa lacuna bibliográfica” nos estudos feministas realizados no Brasil no que
diz respeito à relação entre raça e gênero. CORRÊA, Mariza, “Do feminismo aos estudos de gênero no Brasil: um exemplo
pessoal”. In: Cadernos Pagu. Dossiê: Feminismo em questão, questões do feminismo. (16), 2001, pp. 13-30. Maria
Filomena Gregori nota que, diferentemente dos Estados Unidos, os estudos de gênero no Brasil têm incorporado “apenas
muito recentemente” a perspectiva racial. GREGORI, Maria Filomena, “Estudos de gênero no Brasil. Comentário crítico”.
In: MICELI, S. (org.). O Que ler na ciência social brasileira (1970-1995). Sociologia (Vol. II). São Paulo, Editora Sumaré:
ANPOCS. Brasília, DF: CAPES, 1999, pp. 223-235.
xix
Stolcke, 1990, p. 105 apud Harding, 1986, p. 18. STOLCKE, Verena, “Sexo está para gênero assim como ‘raça’ para
etnicidade?”. In: Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, n.20, junho de 1991, pp. 101-119.
xx
STRATHERN, Marilyn, The Gender of the Gift. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1988; DE
LAURETIS, Teresa, Technologies of Gender. Blomington: Indiana University Press, 1987 (pp.ix-xi e 01-30).
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1 A questão racial no Brasil e as relações de gênero ST. 18 Daniela